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Gosto de Veneno

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Livro-reportagem sobre a relação entre agrotóxicos organofosforados e os suicídios em Fátima do Sul, MS

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Gosto de Veneno

Marcelle Souza

Campo Grande - MS,2009

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Projeto Experimental do Curso deComunicação Social

Jornalismo 2009Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

Textos e Diagramação: Marcelle SouzaOrientador: Marcelo CâncioFotos e capa: Bruno Barros

Copyright by Marcelle Souza

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“O repórter que não for capaz de

se emocionar, de chorar e se alegrar

junto com os personagens de quem

fala, jamais conseguirá transmitir ao

leitor a realidade que encontrou”

Ricardo Kotscho

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O trabalho desenvolvido pela acadêmica dejornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso doSul, Marcelle Souza, neste livro-reportagem é digno deelogios. Destaco inicialmente sua vontade de pesquisar eescrever sobre um tema de extrema importância social,mas que infelizmente não está no foco da mídia e, portan-to, não faz parte da pauta diária dos veículos de comunica-ção. A realidade e a dramaticidade dos depoimentos reve-lados no texto expõem a triste realidade de um grupo debrasileiros. Cidadãos que trabalham uma vida inteira paramorrer miseravelmente. E as causas dessas mortes são di-versas: procedimentos desumanos impostos pela agricul-tura brasileira, ganância das indústrias de inseticidas, ori-entação equivocada oferecida aos agricultores e, finalmen-te, a própria ignorância que ainda impera nas zonas ru-rais do país. O agricultor é estimulado a plantar, mas o

Apresentação

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mercado exige produção e impõe preços. A necessidadede aumentar continuamente a produtividade agrícola levao produtor rural às lojas agropecuárias. Elas, por sua vez,vendem a eles os agrotóxicos que vão eliminar as pragas epor consequência aumentar a produção da lavoura. Emcontrapartida, os agricultores passam a manusear produ-tos altamente tóxicos que, no decorrer dos anos, lhes ti-ram a vida precocemente. Aos serem encaminhados aoshospitais são relegados à própria sorte. Muitos morremintoxicados, outros sofrem consequências a longo prazo eas estatísticas ainda mostram um grande número de suicí-dios.

Esse é o quadro captado, observado e investigadocom persistência e indignação pela Marcelle. Este trabalhotem muitos méritos, mas ressalto três que considerofundamentais. O primeiro é o mérito da escolha da pauta.É um tema que raramente é tratado pelo jornalismo. Alémdisso, não é fácil se envolver com uma pauta que,antecipadamente, já se sabe que o que se vai ouvir não époesia, nem é música para os ouvidos. Não se trata apenasde estudar um tema que faz parte do cotidiano rural deMato Grosso do Sul. Os relatos dos agricultoresdemonstram como em determinados momentos édoloroso para o jornalista conviver com assuntos tãodramáticos.

O segundo mérito a ser realçado neste trabalho éo da investigação jornalística. A autora manteve adeterminação de conhecer criteriosamente a bibliografiacientífica sobre os riscos da utilização de agrotóxicos. Umabibliografia recheada de dados estatísticos ecomprobatórios. Depois a investigação se estende para aspesquisas de campo realizadas na área urbana e rural dacidade de Fátima do Sul, local onde foram registradasmuitas mortes de produtores rurais por envenenamento

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e suicídios. Falecimentos que estão intrinsecamente relaci-onados com a utilização de agrotóxicos. São muitos os ca-sos a serem revelados e a Marcelle foi conhecer de perto ocotidiano de homens e mulheres que cultivam lavourasna área rural desse município sul-mato-grossense. Ouviusuas histórias, entrevistou personagens, detalhou informa-ções técnicas, investigou as causas de tantas mortes, fezdescobertas, deu voz a pessoas desconhecidas e trouxe àtona um problema que é tratado com certo descaso pelasociedade e pelas autoridades governamentais. O conteúdodo livro mescla os sentimentos e as histórias dos agricultorescom impressionantes informações científicas. É acomprovação do flagelo sofrido por muitos produtores queseguem produzindo alimentos consumidos pela populaçãobrasileira.

O terceiro mérito é o da persistência. É precisoinsistir no trabalho quando se tem um tema tão árduo eáspero como esse. Ir fundo ao tema mesmo quando surgemmuitas dificuldades é um grande mérito. É a insistência ea indignação que move o jornalista a realizar um trabalhodiferenciado. É a persistência que estimula a concretizaçãode um produto jornalístico que se destaca pela relevânciasocial que possui. Um jornalismo que dá luz e vida a umtema que estava escondido dos olhos da sociedade.

O resultado final é uma obra jornalística que revelacom detalhes uma melancólica realidade brasileira. O livroreportagem intitulado “Gosto de Veneno” caminha nosentido positivo do bom jornalismo investigativo.

Marcelo CancioProfessor Adjunto do Curso de Jornalismo da UFMS

Doutor em Ciências da Comunicação pela USP

Orientador deste Projeto

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Sumário

1. A Primeira Vista......................................15

2. O Cheiro................................................27

3. O Silêncio..............................................39

4. O Gosto.................................................49

5. Um Novo Sorriso...................................63

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Adelina Oliveira

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1. A primeira vista

No sítio de poucos hectares, ela nos recebe com passosligeiros, corpo curvado e um balde na mão. Estamos emCulturama, distrito de Fátima do Sul, Mato Grosso do Sul,e a simpatia daquela senhora, aparentemente frágil, nosconvida a entrar na casa simples de madeira. São 242quilômetros de Campo Grande, e outros 20 quilômetrosda zona urbana do município.

A cidade fica na região sul do estado, próxima a Dou-rados, e tem pouco mais de 18 mil habitantes. Foi criadaem 1943 durante o Governo Getúlio Vargas com a inten-ção de que ali se desenvolvesse uma colônia agrícola. Avocação para o campo logo foi comprovada pelo plantiode algodão, que rendeu lucros à população até o fim dadécada de 1990.

Na zona rural, ainda hoje predominam as pequenaspropriedades, entre três e dez hectares, e os imigrantesnordestinos. O clima é ameno, as ruas são tranquilas e

“Eu digo: ‘Padre Damião, eu quero ir pra Mato Grosso’. Daí

o padre falou, ‘Meu filho, você vá pra Mato Grosso, porque lá dá

para o homem arrumar o pão, São Paulo já ta muito cansado”.

Erasmo Lunardo

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quase não se ouve barulho de carro por ali. Aliás, automó-vel é coisa difícil, ou estão parados nas garagens ou circu-lam vez ou outra, anunciando que alguém da cidade veiofazer uma visita. Comum mesmo são as motos pelo cami-nho e seus motoristas sem capacete, que cumprimentam atodos que cruzam a estrada de terra.

Naquela manhã chove um pouco, o que dificultounossa chegada ao local. Depois de uma longa viagem e dasrápidas boas-vindas, o banco de madeira parece um tantoconfortável para uma extensa conversa com aquela mulherde 1,50m de altura e de muitas histórias para contar.

Foi batizada Adelina Oliveira Mendes, nasceu emPernambuco e já soma mais de cinco décadas na casaconstruída com muito esforço no pedaço de terra ganhadodurante a reforma agrária promovida pelo governo deGetúlio Vargas. Enquanto mostra os retratos da família,sua filha logo pega uma escova de cabelos para arrumar ocoque que se desfez enquanto a mãe dava comida aosanimais. Arruma as cadeiras, ajeita a luz e ainda ajudaAdelina a se lembrar dos detalhes que lhe escapam damemória.

A família é de produtores rurais e imigrantes, quesaíram de Pernambuco para Fátima do Sul em busca demelhores oportunidades. “Nós deixamos até terra porvender lá em Pernambuco, até hoje ainda tá lá por vender,e viemos”, conta ela, lembrando do fato que aconteceu hámais de cinquenta anos.

As histórias de sucesso no Mato Grosso atraíram nãosó dona Adelina, assim como outras tantas famíliascansadas da seca do Sertão. Casou-se e veio em busca devida nova, teve quatro filhos e até hoje mora na mesmacasa construída com muito esforço quando chegara à terraprometida.

Os filhos foram criados com o resultado de muito

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trabalho: arroz, amendoim, milho e algodão são algunsdos produtos que viraram fonte de sustento para toda afamília. “Aqui era uma riqueza do mundo, minha filha, sóque acabava com as mulheres. As mulheres trabalhavamtanto que morriam. Morreu a finada Catarina, morreu afinada Antônia, morreu tudo as mulheres. Todo mundotinha que trabalhar, se não quisesse dever até o cabelo dacabeça”, lembra a senhora.

Assim como difundiam os primeiros imigrantes, osolo era mesmo bom para plantar, só que exigia dedicaçãode todos de sol a sol, já que era preciso pagar despesasdomésticas e os insumos para a lavoura. Era sofrido, masfome ninguém passava, afinal arroz, feijão e as verduraseram plantadas no terreno mesmo, logo ao lado doalgodão. Galinhas e porcos também ajudavam a diversificaro almoço, que era servido aos trabalhadores no meio dalavoura.

“O algodão enricou os povos que forneciam [semen-tes e insumos]. Eles ficaram podre de rico e nós, nem umacasa não tinha. Era só um rancho. Aí veio esse tal de sojaque tá acabando com os homens. Porque tá muito rica apreparação, a plantação, a semente, o adubo e o venenotão pior, tá mais caro do que tudo”, exclama Adelina sobrea desigualdade entre os que trabalhavam e os queenriqueciam com o cultivo da terra.

Fala da terra, do plantio do algodão e do cheiro doveneno. “Aquilo pegava nas folhas e cheirava tão forteque criança não podia chegar perto. Dava coceira, manchae amarelado na pele”. A história soa natural, como se oodor do agrotóxico fosse algo indispensável na vida dosque chegaram à nova terra. Saiu então da lavoura, ganhouos espaços da casa e, aos poucos, também a vida das pessoas.“Antigamente ele vinha em um pote de alumínio, daíquando acabava a mãe esvaziava o pote e fazia de caneca

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pra gente beber água”, lembra a filha de Adelina, MariaNilza Mendes Rodrigues.

E assim o desconhecimento facilitava a intoxicaçãodos agricultores, que usavam as embalagens de veneno paraguardar comida, água, armazenar alimentos para osanimais ou auxiliar nas tarefas domésticas. Uma exposiçãodiária que levou o marido da agricultora a ter queabandonar a lida na terra em nome da saúde. Vômito,diarréia, dor de cabeça e, por fim, uma sensibilização quefez com que o médico o proibisse de chegar perto dosagrotóxicos por um ano.

De tão acostumada à vida dura do campo, hojeAdelina não consegue nem aproveitar o descanso dignoda velhice. “Ela ficou assim porque choveu nesses últimosdias e ela não pode trabalhar”, explica a filha, enquanto asenhora responde com os olhos, garantindo que oesclarecimento é verdadeiro. Durante a visita, seus olhospareciam mais baixos que o normal, uma tristeza antigade quem reduziu o significado de felicidade ao local ondemora.

Na verdade, a vida perdeu um pouco o sentido paraela desde que o marido faleceu, há cerca de um ano. Nasfotografias, Adelina mostra um senhor moreno e sérioque veste uma roupa clara e bem passada durante a reuniãode família. Os olhos levemente enchem de lágrimas,enquanto a filha tenta acolhê-la nos braços. Ninguém podemedir quantas lembranças surgem naquele momento, sóé possível perceber que a vida não é a mesma sem ocompanheiro de tantos anos.

Desde que ele morreu, ela tem alimentado com maisdedicação um dos seus maiores prazeres: trocar cartas comos irmãos que moram em Pernambuco. Toda semanarecebe as novidades de alguma parte da família pelocorreio. Nos bilhetes carinhosos, parte da família relata as

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dificuldades da lavoura, as conquistas dos filhos e, princi-palmente, a saudade que não cessa.

Textos bem escritos, letras caprichadas e muitoemoção em cada uma das letras. Nos envelopes de cartas efotos estão guardadas as recordações que contam parte dahistória de Adelina e sua família. Orgulhosa, ela devolvepara a filha cada lembrança que a faz não esquecer dopassado nem desistir de continuar vivendo.

Marcha para o OesteA região do município de Fátima do Sul começou a

ser ocupada no final da década de 40 por imigrantes quevinham do Nordeste do país. A mudança era resultado dapolítica expansionista do governo Getúlio Vargas, queincentivou o f luxo migratório para regiões poucoexploradas, como Amazônia, Goiás e sul de Mato Grosso.A “Marcha para o Oeste” foi marcada pela criação, em1938, da Divisão da Terra e Colonização, que além dadoação de lotes, ficava encarregada de fornecerimplementos agrícolas e materiais de construção aosimigrantes.

“Essa fase da história do Brasil marca definitivamenteo desenvolvimento das relações capitalistas no país, o quese dá de forma mais intensa após a Segunda GuerraMundial, momento em que o capital externo vai incentivaro crescimento da indústria brasileira e tentar dominá-la”,explica o professor das Faculdades Integradas de Fátimado Sul (Fafisul), Nilton Paulo Ponciano. Desse modo, eleafirma que a colonização era vista como um acréscimo domercado interno para a indústria.

Mas existiam regras para receber os lotes destinadosà reforma agrária: o produtor deveria ser brasileiro, termais de 18 anos, não possuir propriedade rural em seunome e ser reconhecidamente pobre. Também estava

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proibida a concessão de terras a funcionários públicos dequalquer uma das esferas de governo. Durante o primeiroano, o colono ainda recebia assistência médica efarmacêutica.

Em 1943, o Decreto-Lei 5.941 oficializava a criaçãoda Colônia Agrícola Nacional de Dourados, no entãoterritório federal de Ponta Porã. A medida visava a ocupare, como consequência, aumentar a fiscalização na fronteiracom o Paraguai, além de fechar o cerco à Companhia MatteLaranjeira, que favorecia a presença constante deestrangeiros e conflitos armados na região. Desse modo, aárea, que segundo o decreto não poderia ter menos de300 mil hectares, reforçaria a campanha também nocampo ideológico, onde a ocupação territorial era símbolode brasilidade para o governo Vargas.

Porém, a demarcação da Colônia de Dourados sóaconteceu em 1948, durante o mandato do presidenteEurico Gaspar Dutra. Eram 409 mil hectares queabrigariam cerca de 10 mil famílias de imigrantes atraídospela qualidade do solo e as propagandas do governo. Nesseespaço, duas cidades foram projetadas: Vila Brasil,atualmente Fátima do Sul, e Vila Glória, onde hoje selocaliza o município de Glória de Dourados. Na Colôniaainda foram fundadas Deodápolis, Douradina e Jateí.

Nas décadas de 1960 e 1970 a região presencia umcrescimento significativo, impulsionado pela instalação defábricas e a construção de estradas que facilitaram o acessoda zona rural às cidades próximas. “Isso aqui era tudo cheiode gente”, lembra Adelina, sobre as famílias que cresciamos lotes vizinhos.

As festas, todos os finais de semana, eram embaladaspelo forró e outras músicas nordestinas que ajudavam oscolonos a matar a saudade da terra natal. Nesses bailes ecasais se conheciam e casamentos acabavam. O resultado

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eram fofocas e alegrias para o resto da semana, um soprode felicidade aos que passavam a semana inteira na lidacom a terra. Por um momento, os imigrantes esqueciam-se do cheiro do agrotóxico que pairava pelo ar.

Eram tempos bons, lembram os mais velhos, quelamentam ver nos terrenos vizinhos o mato tomar conta.Dona Adelina foi uma das que presenciou primeiro osfilhos e, em seguida, os amigos se despedirem do campo eirem para cidade. Onde antes era espaço de muito trabalhoe um tanto de alegria, agora virou reduto de homens quelutam contra a falta de dinheiro para plantar e que sonhamcom os tempos áureos do algodão.

Mulheres e jovens tornaram-se espécies raras entreos moradores da zona rural de Fátima do Sul. Elas buscamoportunidades de emprego melhores ou casamentos maisprósperos, enquanto os mais novos partem do sítio paraestudar e conquistar a tão sonhada “vida melhor”. Talvezo mesmo sonho dos avós que saíram do Nordesteprocurando terra boa para plantar e felicidade para toda afamília.

Alegre sabedoria

No meio da tarde, as visitas chegam e ele ainda estádormindo. A nora nos recebe e alguns minutos depois osenhor já esta de pé. Chega de moletom escuro, um gorrona cabeça e o ar meio de atrapalhado de quem acabou deacordar. Mesmo assim, Erasmo Lunardo da Silva perguntaquem somos, estende a mão para cumprimentar um a ume abre o sorriso acolhedor.

A casa de madeira é escura e parece muito confortávelpara um cochilo depois do almoço. Auxiliado pela nora,Erasmo senta em uma das cadeiras da cozinha e dispara afalar já nas primeiras perguntas. Um verdadeiro gozador,conta causos e brinca com a platéia como quem aprendeu

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a se divertir melhor com o passar dos anos.Filho único, o produtor nasceu em junho, mês de

São João, em Pernambuco, de onde sente falta das moçasbonitas e do verdadeiro forró. “Sou o filho preferido daminha mãe”, brinca.

Em busca de uma vida melhor, deixou a terra natalpara trás e partiu para São Paulo. “Lá toquei umas cinquentaroça, anotei tudo, tenho até o papelzinho”. Mas, comoveio parar em Fátima do Sul? A nora responde por ele,dizendo que “foi coisa do governo”, mas os detalhes dahistória surgem em seguida com a explicação do produtorrural. “Um dia fui no Padre Damião. E eu digo: ‘PadreDamião, eu quero ir pra Mato Grosso’. Daí o padre falou,‘Meu filho, você vá pra Mato Grosso, porque lá dá para ohomem arrumar o pão, São Paulo já tá muito cansado”.

Foi o suficiente para decidir mudar de novo e levar afamília para onde muitos dos seus conterrâneos já tinhamido. “Aí eu digo, ‘olhe, mulher, eu vou é pra Mato Grosso.O padre deu esse conselho é porque não é ruim não, ébom’”. Quando chegou à região onde hoje é o municípiode Fátima do Sul, o agricultor encontrou muita genteplantando algodão, que ele tratou de cultivar em sua terratambém.

“Comprei muito algodão naquela época, masembocou um presidente, que quando eu cuidei de mim,tomou o dinheiro todinho. Toquei muita roça naquelacasa lá em baixo, um terreirão. Acabou o dinheiro, acaboua poupança. Agora tem aposentadoria, um negócio atébom que inventaram pra veio. Trabalhei tanto que nãotenho nem cabelo branco, porque o cabelo já caiu tudo”,conta fazendo piada de si mesmo e fazendo os ouvintessorrirem também.

Ficar velho na zona rural parece ter um significadobem diferente dos anos a mais na cidade grande. É que o

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trabalho sob o sol e os anos de exposição aos agrotóxicosdeixam as rugas e os calos ainda mais aparentes. “Passeitanto veneno, que nem sei da conta. Tinha um chamadoTatuzinha que, Ave Maria, era de morrer conversando erindo”, relata Erasmo.

Ele mesmo ficou tão sensível que não consegue maischegar perto das máquinas de aplicação de agrotóxico. Oagricultor e seus vizinhos lembram-se das nuvens de fedornos períodos em que todos passavam os produtos em pónas lavouras.

Tem o sotaque carregado e, no rosto, traz as marcasdos anos de trabalho duro no campo. Entre uma perguntae outra, ele ajeita o gorro na cabeça em um gesto lento,preguiçoso. Às vezes não escuta e mesmo assim ri, açãoespontânea de quem aprendeu a fazer piada com aspassagens da própria vida.

Talvez o grande problema da velhice para Erasmosejam os lapsos de falta de memória, que, apesar dos sustos,rendem-lhe boas histórias para contar. “Esses dias sai daquie fui espiar a roça. Meu amigo, quanto acordei de mim,tava perdido. Ah, menino, eu andei numa roça de milhoali e ia quebrando no peito o milharal deste tamanho aqui.Ah, negócio danado, quanto mais caminhava, mais perdia.‘Eita que agora o Erasmo veio vai embora’, pensei. Soqueia perna num buraco de estaca, que a perna veio aqui. Aieu disse, ‘como que eu tiro a perna daqui?’ Eu deitadoassim, espiando pra perna. E disse, ‘Deus tem dó do veio’.Aqui, quando foi um pouco, a perna veio. Deus é bomdemais. Mas, menino, eu sofri. Ave Maria!”, e mais umavez a platéia aproveita para dar boas gargalhadas.

A alegria vai embora quando comenta da esposafalecida há mais de um ano. “A mulher veia Deus já levou”,diz Erasmo, enquanto perde o olhar entre as plantaçõesdo terreno vizinho. São alguns minutos de lembrança e a

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saudade dos 54 anos de casamento toma conta do senhorsentado na cadeira. “Olha, minha filha, ela era um mulhermuito boa pra mim e às vezes vejo ela andando assim peloterreiro”. A união deu fruto a 12 doze filhos (“rapaziadabonita”, segundo ele) que o visitam com freqüência nosítio.

A vida, agora sim, é tranqüila. Os vizinhos são sempreconhecidos e o silêncio das tardes de sol só é interrompidopelo cantar de alguns pássaros. Enquanto na cidade otempo parece passar rápido demais, no campo os dias sãolongos, deixando as lembranças maiores ainda. E paraquem abandonou a terra querida para se aventurar emum desconhecido Mato Grosso, restam agora as imagense o carinho pelo que ficou por lá. “Não voltei proPernambuco, mas ainda tenho vontade de ir. Eu fico assimpensando, lá é coisa boa. Lá eu levava tudo, vendia nafeira, não apertava com nada não. Aqui é difícil muitacoisa”, compara a sabedoria sob a forma de um homemde 85 anos.

Adelina e Erasmo, dois amigos que representam ogrupo de imigrantes que deixou a Região Nordeste,acostumou-se ao fedor do veneno, às intoxicaçõesconsequentes dele e viu morrer muitos jovens com os golesdo que era matar apenas as pragas da lavoura. Criaram osfilhos no campo, beberam nas embalagens de agrotóxicoque viraram copos da cozinha e vivem hoje em uma tristezasilenciosa, causada pela falta dos companheiros que seforam e dos amigos que preferiram morar na cidade.

Testemunhas de uma época áurea, em que lavourasde algodão ocupavam todas as propriedades da região.Época dos vizinhos festeiros e de algumas notícias tristes,quando alguém era invadido pela tristeza e preferia morrer

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a lutar pela vida.

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Manuel Firmino

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2. O Cheiro

Um pequeno espaço de terra, uma casa de madeira eo Seu Manuel. A conversa acontece em um banco noquintal, e as primeiras perguntas deixam o agricultor de73 anos um pouco desconfiado. Ele observa bem,questiona, mas logo sorri e deixa os receios de lado.

Manuel Firmino Roberto nasceu em Alagoas, massaiu da terra natal aos 22 anos. O primeiro destino foi ointerior de São Paulo, de onde partiu pouco tempo depoisem busca do sonho de sucesso no desconhecido estado deMato Grosso. De Alagoas, ele ainda carrega o sotaquenordestino, a fala apressada, as palavras que se atropelame um bom humor irresistível. Para ele que faz de “filho daputa” nome, os palavrões saem sem nenhum temor.

A conversa frouxa e as opiniões sobre a atuação dopresidente Lula misturam-se a uma história de vida difícil.A pele queimada de sol e os traços aparentes da idademostram que o trabalho na lavoura fez os anos parecerem

“A medida mais segura para evitar o veneno é não usá-lo”

Sebastião Pinheiro

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mais duros para Manuel Firmino. Sua esposa morreu hámuitos anos.

O motivo ele não sabe ao certo, e mesmo assim tentaexplicar o que poderia ter levado a companheira embora.“Um dia ela tava com dor de cabeça e tomou AguardenteAlemanha pra curar. Tomou um café e foi prender umasroupas no varal. Ficou sem fala, levei pro doutor, mas nãoteve jeito. Parece que foi derrame”, narra o produtor rural,que explica, em seguida, que a Aguardente Alemanha erauma raizada usada para curar vários males.

De lá para cá a vida foi perdendo um pouco da graçapara Seu Mané, como é conhecido por todos na região.Os botões abertos da camisa revelam sua magreza,enquanto os olhos baixos indicam um pouco deinfelicidade. Em um dia, sem muitas brincadeiras, Manuelconta o motivo do seu mais profundo desgosto. Com amesma fala apressada, ele lamenta o desrespeito e os maustratos que sofre do filho de 35 anos, Abrão FirminoRoberto. “Nessa idade, minha filha, tendo que aguentaro filho maltratando a gente”.

Os dois são hoje o que restou da família, moram emuma casa simples com apenas um quarto, uma salapequena, cozinha e banheiro. As paredes de madeira nãoescondem a desordem e o vício de dois homens solitários:são nove horas da manhã e a garrafa de pinga sobre amesa já está pela metade.

A sala da casa traduz um pouco do que foi e ainda é avida de Manuel. Nas paredes estão pendurados retratosda família, quadros antigos, daqueles que ainda erampintados a mão. O sofá é velho e fica bem em frente àtelevisão, ferramenta importante de conhecimento paraquem, assim como ele, lê pouco e tem a TV como aprincipal fonte de informação.

Ao lado do aparelho e também atrás da porta, estão

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os sacos de sementes e as embalagens de agrotóxico. Comocada linha daquele rosto e cada tábua da casa de madeira,venenos da classificação “extremamente tóxicos” estãopresentes até nos momentos de lazer da família.

Desde quando Manuel usa agrotóxicos? Perguntadifícil para um homem que viu os anos passarem com umamáquina de aplicação manual nas costas. Em seu lote deterra já foram cultivados produtos como fumo, arroz ealgodão. Na última década, assim como os demaisprodutores da região, Manuel decidiu investir na soja e nomilho. Mas o pouco dinheiro e as secas sucessivas diminuema cada safra os ganhos do produtor.

Mesmo sem conseguir largar o trabalho na terra, SeuMané parece cansado. Nota-se pelo rosto, o corpo franzinoe as queixas frequentes. “Tem dia que tô lascado de dor,minha filha”, conta ele sobre a artrite que, às vezes, oimpede de trabalhar.

Perfume Inconfundível“Barrage”, “”, “Azodrin”, “Tamaron”, “2,4D” e “3,10”

são velhos conhecidos de agricultores como Seu Mané. Paraalguns, essas palavras estranhas podem até soar comoestrangeiras, mas na verdade são alguns dos agrotóxicosmais usados em Fátima do Sul para combater as pragas doalgodão, do milho e da soja.

A maioria pertence à família dos organofosforados emudaram a idéia do que é saúde para aquela população.Manuel e o filho Abrão chegam a enumerar os sintomasque se tornaram cotidianos: dor de cabeça, náusea, coceirae até o “perfume” inconfundível. “Quando a gente aplicao veneno, pode até tomar banho depois, mas a roupa e osuor fede Tamarão (sic). Não sai do corpo, né, Zé?”,comenta Manuel para o agente de saúde que nosacompanha.

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Há ainda muitas histórias de intoxicação aguda, emque os sintomas surgem rapidamente após uma exposiçãoao agrotóxico. “Uma vez tava passando Tamarão e o tempotava quente. Tive dor no estômago, vômito. Fiquei ruimumas duas semanas”, conta Abrão, que ainda acrescenta,“Tamarão mata hein, não precisa nem beber”.

Com a mesma naturalidade, Manuel, que estásentado no sofá velho da sala, vai acrescentando à conversaoutros relatos tão comuns e graves quanto os do filho, quepermanece em pé ao seu lado. “Naquela época a genteusava muito veneno em pó, colocava a máquina nas costase passava na lavoura. Dava uma coceira danada. Outravez passei Folidol, intoxiquei e fui pro hospital”.

Fatos nada isolados, que fazem parte das histórias davida de praticamente todos os produtores rurais da região,já acostumados ao cheiro e às consequências da exposiçãoaos agrotóxicos. “Uns 10 anos atrás eu passei quatro diasfedendo porque tomei um banho de veneno. A máquinacaiu em cima de mim e fiquei mais de um mês vomitando.Não fui pro médico, só tomei uma água com açúcarmesmo”, relata João Lima de Jesus, vizinho de Seu Manuel.Ele ainda lembra que as aplicações de veneno em pódurante o plantio do algodão eram as piores. “Aquiloqueimava as costas. E quando tava na época de aplicar, agente ia dormir inalando aquele pó”.

Em cada casa visitada, os relatos parecem os mesmos.Sintomas, cheiros, dores e o mal-estar característico dasintoxicações agudas. Mas o que parece tão estranho aosouvidos vindos da Capital, já se tornou parte inerente àlida no campo. Para eles, que acham graça do espanto dosforasteiros, veneno é parte da vida e intoxicação torna-semera consequência desse viver.

Existem, porém, outras histórias menos comuns e tãosérias quanto às anteriores. “Uma vez colocaram Tamarão

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(sic) no nosso feijão. Eu comi, o Abrão também. Deu umadisenteria braba e ele ficou até internado”, relata Manuel,sobre uma possível tentativa de assassinato. Segundo ele,algum inimigo da família teria colocado agrotóxico dentroda panela de feijão, o que, felizmente, só resultou em umavisita ao hospital.

Há os que conhecem os perigos e até sugerem medidaspara o fim das narrativas de intoxicação no campo. “Achoque o 2,4D devia ser proibido, porque acaba com tudonum raio de 1 quilômetro, galinha cai dura”, relata ovizinho de Manuel, Benedito Francisco da Silva. Curiosoé mesmo Benedito não dar a menor importância aossintomas que se tornaram parte do seu dia a dia. Em seus30 anos de trabalho na lavoura, dor de cabeça,“piniqueira”, enjôo, formigamento já são mais do quecomuns.

Apesar de conhecer as consequências do uso deagrotóxico por tanto tempo, Manuel e o filho Abrão, e osvizinhos Benedito e João Lima dispensam os equipamentosde proteção individual (EPIs) na hora de passar o venenona lavoura. As desculpas são sempre as mesmas: elesesquentam, atrapalham e são pouco confortáveis.Argumentos que, segundo o professor do departamentode Química da UFMS, Dario Xavier Pires, na maioria doscasos são válidos. “A gente tem que pensar que é muitodifícil você vestir o EPI e entrar em uma lavoura de milhoàs duas horas da tarde. O milho é alto, fecha, não circulaar, ninguém aguenta”, explica o pesquisador.

Para ele, porém, esse não é o único motivo dosequipamentos serem descartados pelos trabalhadoresrurais. Dario indica que culturalmente o brasileiro não dáimportância ao trabalho com segurança, diferente dosprodutores dos países desenvolvidos, onde a proteção étão importante quanto a própria lavoura. Esse descaso pode

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ser comparado pelos relatos dos próprios agricultores emFátima do Sul, que afirmam que a primeira e únicainformação observada no rótulo desses produtos são asconcentrações utilizadas na aplicação.

Pesquisador e duro crítico da indústria de defensivosagrícolas, o engenheiro agrícola Sebastião Pinheirotambém defende o argumento dos produtores, destacandoque na maioria das vezes a utilização dos EPIs torna-seinviável no campo. “Coloque todo o equipamento deproteção individual e depois fique andando à sombradebaixo de umas mangueiras em Mato Grosso do Sul emqualquer uma das estações. Sua morte ocorrerá em cincoou seis horas por desidratação”, desafia o ambientalista.

Pinheiro vai além afirmando que tais ferramentasde trabalho se tornaram recursos das empresas paratransferir a responsabilidade pelas intoxicações. “Indústrianecessita de álibis, pretextos para pôr a culpa nas vítimas.A medida mais segura para evitar o veneno é não usá-lo”,garante Pinheiro.

“Aqui no Brasil os estudantes de agronomiaaprendem que os culpados pelas intoxicações são osagricultores por não usarem proteção individual. Há casosde funcionários de floriculturas na Flórida que morreramintoxicados pelo veneno nas rosas importadas daColômbia. Será que não se deveria obrigar as pessoas quetrabalham nas f loriculturas a usar equipamento deproteção?”, chama atenção o pesquisador, que é membrodo Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Ação emAgricultura e Saúde (GIPAAS) e ambientalista daAssociação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural(AGAPAN).

Nem obrigar os produtores a usarem equipamentos,nem colocar toda a culpa na indústria dos agrotóxicos, deacordo com Sebastião Pinheiro a melhor saída seria adotar

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a Diretiva Comunitária da União Européia 414/91, queobriga o agricultor que quiser usar venenos a fazer umcurso de 400 horas e passar por uma habilitação. “Minhaproposta é radical. O curso deveria ser pago 33% pelasindústrias, 33% pelos ambientalistas contra os venenos e33% pelo governo”.

Só uma talagada de cachaçaAssim como tantos produtores, Seu Manuel Firmino

sabe ler, mas dispensa as instruções contidas nos rótulosdos produtos. Destes, a única parte realmente importantesão as concentrações recomendadas para a aplicação doveneno em cada tipo de lavoura. Enquanto isso, ficam defora informações sobre grau de toxidade e equipamentosde proteção individual que devem ser usados para cadaagrotóxico.

“Isso de dizer que agricultor não conhece rótulo nãoé bem verdade, eles sabem o que é rótulo, as informações.Talvez não saibam as minúcias, mas eles sabem qualproduto é o mais e qual é o menos tóxico. Eles têmconhecimento do risco, mas eu acho que pelo fato de avida inteira trabalharem com aquilo, a noção de perigovai sendo amainada”, explica o pesquisador da UFMS,Dario Xavier Pires.

Segundo ele, a falta de atenção ao ler os cuidadoscontidos no rótulo mostra uma tendência do agricultor aminimizar o risco do contato com um produto já conhecidopor ele. “A noção de risco, por causa da rotina de uso, ficade algum modo esmorecida. Eles têm a noção de que éperigoso, mas é tanto tempo trabalhando com aquilo queacabam perdendo os cuidados”.

Por causa do tempo prolongado de exposição, algunsprodutores chegam a relatar que foram proibidos dechegar perto dos agrotóxicos, tamanha sensibilidade que

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atingiram. O organismo fica extremamente potencializadopra isso. “Alguns agricultores se mostraram extremamentepreocupados com um tipo de inseticida que o princípioativo é o piretróide, porque ele provoca alergia, apesar denão ser tão tóxico. Então, quando ele entra em contatocom o piretróide, os dedos ficam inflamados e a mão ficavermelha. Mas eles não se preocupam com os que nãoprovocam alergia e são extremamente tóxicos”, explica oprofessor do Departamento de Química da UniversidadeFederal de Mato Grosso do Sul.

Prova da falta de cuidado de muitos produtoresacostumados com o trabalho na lavoura, o vendedor deuma loja de produtos agropecuários, Pedro Vieira Santos,diz: “Antes ninguém usava equipamento, só um pano nonariz quando o veneno era muito fedido. ‘Se o agrotóxiconão é fedido, não mata’, é assim que os produtores pensam.Só que os mais perigosos são exatamente os que não têmcheiro”, relata o vendedor.

São maneiras de enganar o pouco de medo que aindapossuem de algo que, apesar da gravidade, já se tornouhabitual ao trabalho desses produtores. Outro sinal de queeles tendem a minimizar os riscos são os remédios caseirosque afirmam usar antes da aplicação. Entre as “curasmilagrosas” está o leite. “Passei mal e depois tomei um copode leite”, conta a maioria dos agricultores, já que o produtoé visto como forte aliado para “proteger” o corpo contra aalta exposição aos agrotóxicos.

Durante a realização de suas pesquisas, Dario Xavierdescobriu que além dessa bebida, a cachaça também é umforte aliado dos produtores na hora de aplicar o veneno.“É da cultura machista isso de enfrentar o perigo, então,principalmente os mais novos, tomam uma talagada decachaça e vão passar o veneno na lavoura. Dessa forma,para muitos, a cachaça, de algum modo, previne, mas a

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gente sabe que é o oposto”.Para a psiquiatra Jussinalva Aguiar a bebida é uma

pseudofortaleza que faz com que a pessoa se sintaaparentemente mais forte. “O ser humano é onipotente.Acha que vai acontecer com o outro, mas nunca com ele”,completa a médica.

Ao contrário do que pensam os moradores da zonarural de Fátima do Sul, a bebida alcoólica deixa o corpomais propenso à desidratação. Portanto, ao invés de buscaras curas mágicas, medidas mais eficazes poderiam seradotadas: não aplicar agrotóxico com o sol muito forte,porque a insolação favorece a penetração do veneno napele , ter uma dieta rica em proteína e não fumar ou co-mer durante aplicação.

Na porta da cozinhaEnquanto os homens sentem na pele as consequências

das intoxicações, em casa as esposas também conhecem otamanho do perigo. “O 3,10 era o mais pior, era o gambá,fedido demais. A roupa dos homens tinha deixar lá fora elavar com sabão de soda muito forte pra não envenenar ocorpo deles depois. Aquilo pregava nas folhas da lavoura esó saía com chuva. Um cheiro forte que criança não podiair lá. Eu ia levar comida na roça e não levava criança,porque pregava no couro, dava coceira, ficava umasmanchas meio amareladinha no couro”, descreve DonaAdelina, que nunca trabalhou na roça com os filhos e omarido, e no quintal era capaz de sentir o fedor doagrotóxico.

Em casa, mulheres como ela são as primeiras a acolheros familiares intoxicados e são elas que chamam o socorronessas horas. “Meu marido intoxicou duas vezes. A primeiravez ele ficou inchado e a outra vez ficou sem podercaminhar. Quem curou ele foi a Dona Marina Japonesa.

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Ela é viva ainda, agora parece que o marido dela, Seu Jor-ge, morreu. Meu marido não podia andar não. Atiraramele num carrinho de pneu de um homem ali, chamadoZé Pereira, e pagaram R$ 3 pra levar, não me lembro, masacho que foi pra Dourados”. E emenda: “não ficou nohospital, só deram remédio.Teve vômito, diarréia e dorde cabeça. Ele vomitou até sangue. Ficou ruim um mês.Foi quando ele ficou um ano sem pegar em veneno. Era ode passar na maçã, o Bicudo, nunca tinha ouvido falar,mas quem falou foi um homem chamado Daniel” detalhaa senhora viúva de 81 anos.

Mas mães, esposas, filhas e nora de produtores rurais,não percebem o perigo do veneno apenas de casa, emboranão figurem entre as estatísticas de intoxicação aguda,caracterizada por reações rápidas diante de exposições aoveneno, o ambiente as expõe aos resíduos e, assim comoos homens, as mulheres sentem as consequências dasintoxicações crônicas, cujos sintomas aparecem anos depoise podem se manifestar em várias doenças.

Da cadeira do laboratório de informática doDepartamento de Química da Universidade Federal, oprofessor Doutor Dario Xavier Pires, que estudou ofenômeno em Fátima do Sul durante mais de 10 anos,explica a relação das mulheres com os agrotóxicos. “Se vocêfor lá em Fátima do Sul, você vê: a casa de moradia érodeada, às vezes, de soja, milho. A agricultura chega,basicamente, quase na porta da cozinha. Então, se vocêestá aplicando o veneno, mesmo que a pessoa não estejaaplicando diretamente, ela está exposta. Outra coisa, sãoelas que fazem a lavagem das roupas dos homens, entãoelas também estão expostas apesar de não diretamente”.

O ambientalista Sebastião Pinheiro tem ainda outraexplicação para os casos de intoxicação crônica emmulheres. Segundo ele, elas são mais sensíveis à ação

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cumulativa dos venenos porque as doses são letais em quan-tidades menores do que as expostas aos homens. “Um ve-neno para a mulher é muitíssimas vezes mais perigoso.Elas passam aos filhos a herança citoplasmática e oprimeiro alimento, muitas substâncias tóxicas ficam retidasnas gorduras e passam para o bebê. Os organofosforadoscausam disrupção endócrina, ou seja, alteram aconcentração de hormônios para mais ou para menosalterando todo o metabolismo da pessoa”. A relação éperigosa, só que o problema é que o fato não é estudadocom maior profundidade.

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Culturama, Fátima do Sul

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3. O silêncio

Ao lado de um grande terreno com alguns pés deeucalipto, mora dona Sinésia Maria dos Anjos. Assim comoas demais, o acesso à sua residência também é de terra e achuva exige mais destreza dos motoristas que se arriscamna lama escorregadia para chegar aos sítios que ficam dooutro lado da rodovia.

A casa de alvenaria parece bem cuidada e, logo naentrada, um coração feito na terra com pedras e algumasflores “recebem” os visitantes. O enfeite foi feito por umdos filhos de Sinésia durante uma das visitas rápidas quecostuma fazer à mãe.

Logo à frente, a anfitriã nos recebe sem nenhumentusiasmo, deixando claro que a visita não é bem-vinda.É uma senhora pequena, de 82 anos, olhos fundos emagreza que gera compaixão dos demais. Tem três filhose um enteado, mas apesar da recepção graciosa das rosasem formato de coração da entrada, a história dessa família

“Meu filho ficou três dias dentro do quarto, só tomava água e

café. E gritava ‘eu matei meu irmão!’ Um dia o médico mandou

me chamar e disse ‘O seu menino tem a depressão mais terrível que

existe. Só sai se tomar remédio’. E ele tomou por cinco meses e até

hoje ainda toma”

Sinésia dos Anjos

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não parece tão doce.No começo responde sempre com poucas palavras,

diz apenas que sua vida não é interessante o suficiente paraser contada. O olhar distante revela que seu grandeproblema é lembrar-se da dor que parece ser inerente.Aparenta ser uma mulher frágil e lúcida, resultado de umaforça inexplicável e uma loucura que muitos nãosuportariam.

Aos poucos saem as primeiras palavras sobre a história,no começo tão parecida com as outras que tinha escutadonas andanças pela região. “Casei e deu na cabeça de virpro Mato Grosso”, conta Sinésia. Nasceu na Bahia e aosvinte anos casou-se com um homem viúvo, que já tinhaum filho de outro casamento. Sobre o romance, ela seesquiva de buscar detalhes, e continua com o relato sobrea mudança para tão longe. “Lá era difícil pra viver”. Omarido então ficou sabendo que para as bandas de MatoGrosso tinha gente dando certo. “Ele perguntou se euqueria vir e concordei”, comenta.

Mas os primeiros anos em uma terra tão distante nãoforam fáceis. “Eu chorava dia e noite. Pensava que nuncamais ia ver meus pais”, lembra a senhora, ainda com umafeição de tristeza. Felizmente, apesar da distância, vez ououtra o pai ainda vem visitá-la, mas Sinésia nunca maisviajou para a terra natal.

Entre uma palavra e outra, é impossível não observarseu enteado, que caminha de um lado para o outro navaranda feita de madeira nos fundos da casa. É um homemde mais de 50 anos e notavelmente tem uma deficiênciamental. Resmunga o tempo todo e cospe no chão quandopara. Está fora da conversa, parece querer chamar aatenção, os visitantes não conseguem tirar os olhos dele.Sinésia, no entanto, ignora as ações do enteado, mostrandoque a cena se tornou cotidiana para ela. Os dois são hoje o

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que restou da família, ele vive em um mundo distante,inacessível, enquanto a senhora sofre sozinha uma tristezaque parece que só terá fim no dia de sua morte.

“Minha vida foi muito sofrida. Vivi pra criar filhos,netos e bisnetos”, diz ela, sem saber que a expressão desuas palavras está marcada em seu rosto. O motivo do olharperdido e da falta de esperança na vida é esclarecido quandoSinésia começa a falar sobre os filhos, que trabalharam nocampo desde crianças. “Tem um que o juízo dele não émuito bom desde pequeno. Já ficou internado em Fátimado Sul, Campo Grande e São Paulo uns três meses. Tásempre atrás de uma pinga e conversando lorota. Fica mesurtando. Às vezes é agressivo e triste”, conta a mãe.

O que parecia só tristeza logo foi diagnosticada comodepressão. “Ele ficou pior depois que vendeu toda a madeirados eucaliptos que eu tinha no terreno do lado. Só que ohomem nunca pagou. Daí, acho que ele ficou com remorso,porque eu não queria que vendesse. Ficou com olho fundoe não comia quase nada”, lembra Sinésia, sobre o quedesencadeou a doença do filho mais velho.

Antes de contar a próxima história, ela para poucosminutos, lembra-se das coisas que viveu, dá um leve suspiroe diz: “Já sofri tanto nesse mundo”. Recorda das crises dedepressão, das bebedeiras e internações do filho que quasea colocaram em um processo de loucura também. E, comose não bastasse, pouco tempo depois sua lucidez seria testadanovamente.

Quando ainda se recuperava do tratamento do maisvelho, uma fatalidade fez Sinésia perder seus outros doisfilhos. “Ele vinha dirigindo o trator calmo, devagarinho,mas o outro menino tinha bebido e caiu do trator. Quandopercebemos, ele tinha passado por cima do irmão”. Osegundo morreu na hora, enquanto o motorista entrouem uma depressão profunda que até hoje, dez anos depois

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do ocorrido, faz o homem ficar grande parte do anointernado em uma clínica pública na Capital.

“Meu filho ficou três dias dentro do quarto, só tomavaágua e café. E gritava ‘eu matei meu irmão!’ Chorava quedava dó, daí não teve quem desse jeito. Tivemos quemandar ele para Campo Grande e um dia o médicomandou me chamar. ‘O seu menino tem a depressão maisterrível que existe. Só sai se tomar remédio. E ele tomoupor cinco meses e até hoje toma”. O acidente foi confuso,a mãe estava ali no meio dos curiosos que se reunirampara saber o que havia acontecido. Lembra-se apenas quea dor era muito forte e não conseguia compreender o queestava acontecendo.

Naquele momento ela mal podia entender que alémde suportar o luto, teria que aprender a ver seu outro fi-lho perder a vontade de viver. Até hoje ele passa de 2 a 3meses internado em Campo Grande, volta para a casa damãe, mas logo tem que retomar os tratamentos na clínicapsiquiátrica. “Quando ele vem, arranja um falatório queaborrece até os vizinhos. Aí tem que internar ele de novo”,conta.

A mãe franzina, que tira forças de onde parece nãoser possível, lamenta o rumo que a vida tomou. “Eu tenhosofrido muito. Tem dia que fico de cabeça baixa pensandonesse menino. Antes ele tinha vontade de ter as coisinhasdele, mas agora nunca vejo do jeito que ele era naquelaépoca”, diz. Dor de quem perdeu as esperanças de ter umavida melhor e teve que se acostumar com a falta de brilhonos olhos.

Mas a conversa que trouxe de volta as lembrançasruins conseguiu também iluminar alguns minutos do diadaquela mulher. Ao final da entrevista surge um pequenosorriso, resultado simples por alguém ter dedicado umpouco de atenção à sua história de vida. Tímida, pede que

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as visitas voltem outra vez e tanta dor é aliviada com umabraço de despedida.

Nem fraco nem esquisitoA tristeza no campo é um silêncio assustador, uma

falta de esperança de que a lavoura dê lucro e de que aregião volte a ser populosa como antigamente. Nãoexistem mais festas de forró, como as que os imigrantesfaziam logo que chegaram em busca de uma nova vida. Otempo também parou, os filhos foram embora e os poucosque ficaram vivem das lembranças.

Nos idosos isso é mais aparente, sentem-se sozinhos ea falta de perspectiva para prepará-los para a despedidafinal. Por isso, uma simples conversa funciona como umacatarse, trazendo à tona a dor, a saudade e as lembrançasque esqueceram por alguns instantes.

Para o pesquisador da UFMS Dario Xavier Pires, ossintomas que se aproximam da depressão são evidentestanto no contato com os produtores quanto nas conversasinformais com profissionais da saúde. “Eu nunca meesqueço de um médico do Programa Saúde da Família,que não posso dizer o nome, sentar e dizer: ‘Fátima do Sulé uma cidade de loucos’. Isso porque ele nunca tinha vistotamanho consumo de remédios controlados”.

A cidade não possui Programa de Saúde Mental porisso, em grande parte dos casos, os doentes sãoencaminhados para Dourados ou Campo Grande, que ficaa 242 quilômetros de Fátima do Sul. Para a psiquiatra,Jussinalva Silva de Aguiar, o tratamento longe de casaprejudica a recuperação do paciente, que vez ou outra acabavoltando à cidade de origem e sofrendo um retrocesso emrelação aos avanços conquistados pelos médicos. Sem afamília, a pessoa também se sente desamparada diante doambiente estranho e das dificuldades que surgem durante

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o tratamento.Há 20 anos, parte dos casos de depressão, porém, não

eram sequer identificados. Isso porque a assistência à saúdepara as populações rurais era ainda mais deficiente e adoença não chegava a ser diagnosticada pelos médicos. Oproblema é que nos casos graves, a falta de tratamentopode levar ao suicídio, tema também recorrente nasconversas com os produtores.

“Normalmente os casos de suicídio estão ligados aquadros depressivos. Mesmo que a família diga que não,em uma análise mais profunda acabamos descobrindo quea pessoa já vinha apresentando sintomas. No meio rural épior, porque eles não têm muita perspicácia do ladopsíquico e humano. Dizem que a pessoa é meio esquisita,fraca, o que na verdade pode ser uma depressão ouesquizofrenia”, explica a psiquiatra.

Existem pesquisas no Brasil e em outros países queestudam a relação entre a exposição aos agrotóxicosorganofosforados e a depressão. No meio acadêmico odebate é pouco conhecido, mas produz boas discussões sobrea efetiva ligação entre os fatores. De um lado, estãopesquisadores, como o médico toxicologista Ângelo ZanagaTrapé, que acreditam que os levantamentos realizados atéhoje não conseguiram sustentar a relação.

Do outro, representando os defensores dos estudossobre o tema, o engenheiro agrônomo Sebastião Pinheiroafirma com veemência que a intoxicação pororganofosforados resulta não só na depressão, como estádiretamente relacionada aos casos de suicídios em regiõesonde os produtores estão expostos ao produto.

Nessa discussão, o consenso é que esse tipo deagrotóxico inibe a enzima acetilcolinesterase, causando oacúmulo do neurotransmissor acetilcolina e a consequentesuperestimulação das terminações nervosas. O resultado

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são sintomas conhecidos pelos produtores, como dor decabeça, tontura, ânsia de vômito e palpitação

“Entre um neurônio e outro existem as fendassinápticas, onde ficam esses neurotransmissores. Aintoxicação por agrotóxico causa variações qualitativas equantitativas nas sinapses, que agem na alteração dohumor, o que pode causar tanto sintomas depressivos,como o aparecimento de manias e agitação”, explica apsiquiatra Jussinalva Aguiar. A especialista ainda destacaque a depressão causada pelo uso de agrotóxicos é exógena,ou seja, de causa externa, resultado da intoxicação a longoprazo.

Entre 2004 e 2005, um grupo de pesquisadores daUFMS realizou um levantamento sobre os estadosdepressivos e os níveis da enzima colinesterase em 261agricultores expostos aos organofosforados em Fátima doSul. Os resultados apontaram que 149 produtores (57,1%)relataram algum tipo de sintoma após o uso dos agrotóxicos,e 30 pessoas apresentaram Distúrbios PsiquiátricosMenores (DPM), sendo que três destes já haviam tentadocometer suicídio.

Em 24 agricultores foi detectada a redução da ativi-dade enzimática em relação ao período de não exposição,abaixo do limite inferior de referência do grupo controle,e foram considerados extremamente expostos. Destes, cin-co confirmaram DPM. O estudo ainda diagnosticou a as-sociação entre os distúrbios psiquiátricos, os baixos níveisde escolaridade e uso de pulverizadores costais, o que indicaum aumento do risco por conta das condições insegurasde aplicação.

CâncerSegundo a Agência Internacional para Pesquisa de

Câncer (IARC), alguns tipos desses agrotóxicos são consi-

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derados cancerígenos. Em Fátima do Sul, a observação acampo aponta para o câncer como possível reflexo da ex-posição prolongada aos organofosforados.

“Quando nós fomos a Fátima do Sul, as pessoascitavam que o índice de câncer na cidade era elevado eestavam preocupados. Talvez essa seja uma evidência deque o número é mesmo alto, já que a própria populaçãocomeça a perceber isso”, comenta o professor de Químicada UFMS, Dario Xavier Pires, que esteve na zona rural domunicípio coletando informações para sua pesquisa dedoutorado.

E não é só para os visitantes que a incidência da doençaparece ter aumentado. Para o médico Hermindo de David,do Hospital Nazareno, em Fátima do Sul, há 20 anos essetipo de relato não era tão comum quanto os que chegamcom frequência aos profissionais da saúde do município.

“Antigamente quase não existiam casos de câncer,agora percebemos que o número aumentousignificativamente e isso pode ter um conexão com o usode agrotóxico”. Segundo David, os mais comuns são o demama, próstata e aparelho digestivo.

Mais uma vez, como o tratamento não pode ser feitona cidade, os pacientes são encaminhados à Capital.“Durante os contatos para o nosso trabalho, eu me lembrode uma enfermeira do setor de oncologia do HospitalUniversitário, em Campo Grande, comentar sobre ogrande número de pacientesque vinham da região de Dou-rados, como crianças com câncer de medula ou com defei-to lábio-palatino”, lembra o pesquisador.

Durante as décadas de 1960 e 1970, o solo e osprodutores foram expostos aos organoclorados, quepossuem alta toxidade, bioacumulação e persistência noambiente por muitos anos. São agrotóxicos extremamentecancerígenos e a maioria deles já foi proibida no Brasil. O

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problema é que os resíduos de aplicações anteriores po-dem ter permanecido no ambiente, o que torna necessá-ria a realização de estudos para detectar até que ponto essacontaminação pode ter afetado os agricultores domunicípio.

“Se agora a população rural diz que não há assistênciatécnica, nem atenção à saúde, imagina na década de 60,70, quando eles chegaram. Além disso, tinha todo umprograma de financiamento dos bancos que só liberavamo dinheiro mediante o uso de veneno”, critica Dario Xavier,sobre os fatores que levaram ao uso indiscriminado deagrotóxicos na região.

De fato, a necessidade de investimento em pesticidastorna o financiamento mais difícil para produtores queoptam pela agricultura orgânica, segundo o gerente dasede da Agência de Desenvolvimento Agrário e ExtensãoRural (Agraer/MS) em Fátima do Sul, Marcio RibeiroBonette. “Fora da cerca, todo mundo tem lucro, bancos,revendedoras e fabricantes, enquanto o agricultor vive parapagar as dívidas”, diz Bonette.

De um lado, as grandes empresas e do outro,pequenos produtores, entre eles um produto lucrativo masque pode causar danos irreversíveis à saúde do homem. Enessa disputa desleal ganham aqueles que têm mais força,sendo que a outra ponta sobrevive lutando contra asdoenças e tentando ganhar dinheiro para pagar o que devee conseguir plantar.

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Erasmo Lunardo

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4. O Gosto

Ainda não tinha completado 18 anos, quando elaresolveu acabar com a própria vida. Deixou para trás afilha de um ano e meio e todos os sonhos da juventudeem nome de um grande amor. Filha de Seu Erasmo, EvaErasmo da Silva surpreendeu toda a família quandodesmaiou porque tinha bebido veneno. O motivo, segundoela, era um romance mal resolvido, que antes já tinhamotivado uma depressão percebida pelas irmãs.

A jovem era bonita e, assim como todas as garotas dosítio, sonhava em morar na cidade. Teve sua primeira filha,fruto de um casamento forçado pelo pai. O namoro nãodera certo e Eva voltou para a casa da mãe. Pouco tempodepois, envolveu-se com um homem casado, que lhe deuum novo lar, mas não o amor que ela esperava.

O relacionamento rendia momentos de extremodescontentamento, enquanto em outras horas eraalimentado pela esperança de que poderia dar certo. Para

“O padre achou ruim levar a vizinha para a igreja, porque

todo mundo ficava participando daquele fedor mais triste. A finada

Eva misturou três venenos e bebeu. Daí disse, ‘eu não disse que

bebia’, e caiu”

Adelina Oliveira

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as irmãs e a mãe, estava claro que Eva vivia infeliz e atristeza próxima à depressão foi relatada pelos conhecidosem muitos momentos.

A família dava-lhe conselhos, mas ela não queriaescutá-los. Foi quando descobriu que estava grávidanovamente e o grande amor deixou claro que não iriaabandonar o casamento para ficar com ela. Só que apesarda tristeza pelo desprezo do homem amado, naquele diaela parecia especialmente feliz. Chegou alegre à casa dacunhada e disse apenas que iria tomar banho no córrego.Lucia confessa que estranhou a felicidade da jovem quenos últimos dias parecia bem abatida, mas logo deixoudesconfiança de lado e resolveu ficar contente com aaparente recuperação da irmã de seu marido.

Minutos depois, porém, Eva voltou para a casa eencontrou-se novamente com a cunhada. “Olhou e faloupra mim que tinha tomado veneno. Daí tirou uma canecae tomou o resto que tinha. Demorou uns minutos e jácaiu. Fiquei meio atrapalhada, meia doida, ai já correrame levaram pra cidade, mas não teve jeito, porque ela tomoudemais”, lembra Lúcia, casada com um dos filhos deErasmo.

Eva morreu a caminho do hospital, já em Fátima doSul. A família recorda que ninguém conseguia ficar novelório da jovem, tamanho era o fedor do agrotóxico queela havia ingerido. O caso aconteceu há 25 anos, mas atéhoje os irmãos choram ao lembrar da notícia quereceberam naquele dia. “Quando me contaram quealguém tinha bebido veneno no sítio, eu nunca imagineique era a minha irmã”, lembra Cida, uma das mais velhas,que ficou sabendo do suicídio quando estava na cidadefazendo compras de charrete.

Diante da dor de uma perda tão grande, Seu Erasmoe a esposa tiveram que tirar forças para educar a neta que

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mal sabia andar. Hoje com 26 anos e dois filhos, a meninavirou mulher e aprendeu a chamar os avós de pais, já quenão tem lembranças da mãe que não a viu crescer.

Suicídio em númerosA história poderia ser só mais uma fatalidade, não

fossem as histórias semelhantes que se ouvem em Fátimado Sul. Todas por ingestão de agrotóxico e consequênciado que antes era conhecido como tristeza, mas hoje recebeo nome de depressão.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima queocorram anualmente no mundo cerca de três milhões deintoxicações agudas provocadas pela exposição aosagrotóxicos, o que resulta em aproximadamente 220 milmortes por ano. Ainda de acordo com a OMS, esses casosconstituem um grave problema de saúde pública,principalmente nos países em desenvolvimento.

Do outro lado, um levantamento da AssociaçãoNacional de Defesa de Vegetal (Andef) à consultoria alemãKleffmann Group indica que o Brasil é o maior mercadode agrotóxicos do mundo. O estudo ainda mostra que aindústria dos defensivos agrícolas movimentou US$ 7,1bilhões no país em 2008, ante US$ 6,6 bilhões do segundocolocado, os Estados Unidos. Comparados com 2007,quando o consumo brasileiro foi de US$ 5,4 bilhões, osnúmeros revelam um crescimento significativo apesar dea área plantada ter encolhido 2% no ano passado.

Consequência desse consumo crescente de agrotóxicosno país, o Serviço Integrado de Informações Tóxico-farmacológicas (Sinitox) do Ministério da Saúde, registrou112.403 casos de intoxicação em 2007. Destes, 2.899correspondem a tentativas de suicídio por ingestão deveneno de uso agrícola. Segundo o pesquisador DarioXavier, o problema é que, para cada intoxicação desse tipo

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notificada, existem outras cinquenta não registradas pelosistema de saúde, o que dificulta a implantação de açõesconcretas para conter as consequências da exposiçãoprolongada a esses venenos.

Em números absolutos, Mato Grosso do Sul ocupava,em 2002, o quarto lugar em suicídios de homens e o se-gundo de mulheres no Brasil. Quando se estuda o índicede morte por ingestão intencional de agrotóxicos, dadosdo Centro Integrado de Vigilância Toxicológica (Civitox)da Secretaria de Estado de Saúde de MS apresentam amacrorregião geográfica de Dourados, da qual Fátima doSul faz parte, como a campeã em tentativas de suicídio emtodo o estado. O número leva em conta o período entre1992 e 2002, quando foram registradas 203 tentativas e63 óbitos nos 15 municípios que compõem essamacrorregião.

Entre esses municípios, Dourados apresentou maiorprevalência de tentativas, enquanto Fátima do Sul assumiuo segundo lugar. Nesse sentido é importante destacar queparte dos números de Dourados está relacionada à altaincidência de suicídios entre os índios guarani-kaiowás,resultado, principalmente, do processo de confinamentoa que foram submetidos. Relação diferente, portanto, daatribuída aos casos de Fátima do Sul, que seriamconsequência, em sua maioria, da exposição aos agrotóxicosusados em grande quantidade no período de cultivo intensodo algodão que durou até o fim da década de 1990.

Fátima do Sul e a vizinha Vicentina, segundo oCivitox, apresentam as maiores razões entre intoxicaçõese área de culturas temporárias na região. A primeiratambém assume o topo quando se analisa a relação entretentativas de suicídios e áreas de culturas temporárias. Issosignifica que o alto índice de suicídios e intoxicações é maisbem percebido quando se leva em conta a pequena área

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geográfica que esses municípios possuem.Apesar de os números mostrarem a forte relação

entre o consumo alto de agrotóxico e os suicídios ocorridosna região, pesquisadores divergem sobre a relação diretaentre os dois fatores. “Eu pessoalmente acredito, já queesses agrotóxicos levam à depressão, essa que tem umaligação direta com o suicídio sim”, defende o professorDario Xavier, autor em parceria com outras pesquisadoras,do artigo “O uso de agrotóxicos e os suicídios em MatoGrosso do Sul, Brasil”, publicado em 2005. Do outro lado,o médico toxicologista e professor da Unicamp, ÂngeloZanaga Trapé rebate: “os estudos feitos nessas populaçõesnão são determinantes e ainda não conseguiram comprovaressa relação”.

No meio da discussão, números e levantamentosperdem a força diante dos relatos de uma população queviu de perto muita gente morrer com os goles de veneno.Histórias tristes de pessoas que tentam esquecer a dor daperda dos parentes que cometeram o suicídio.

Fedor mais triste Aos 81 anos, Dona Adelina Oliveira enche os olhos

de lágrimas ao lembrar-se de conhecidos que seguiram essecaminho. “Aqui morreu foi 11 pessoas com raiva, tomavao veneno pra morrer. Bastava perder, ia pro jogo, nãofazia aqueles pontos, tinha raiva e bebia veneno. Umatristeza do mundo”, chora. Esse é um dos momentos emque ela realmente se emociona, não foram seus filhos nemnetos que se mataram, mas a dor alheia e a tristeza dasfamílias são suficientes para desestruturar essa mulher fortee ao mesmo tempo tão sensível.

A conversa avança, e aos poucos ela vai lembrandode outras histórias parecidas, como dos inúmeros velóriosque apresentavam o ser humano de uma das piores

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maneiras. “Levava pro hospital, vinha no caixão e já leva-va pro cemitério. Era um alívio. Não velava porque o dou-tor não queria que velasse, por causa do fedorzão que tava”.E continua, “tinha que ter uma toalha para ir cobrindo,que é para as crianças não chegarem perto daquele fedor.Cobria com as toalhas e já levava pro hospital”.

A toalha era para que ninguém visse o estado docorpo, alguns com a boca espumada, outros com a línguapara fora, marcas, segundo ela, de uma morte que seaproxima do sentido de definhar. “É um fedor e umatristeza. A gente chora e nunca se conforma”, contaAdelina. E com os olhos baixos e algumas lágrimas nosolhos, ela ainda se lembra de deixar um conselho aos maisjovens: “Se um rapaz tem uma namorada e ela não quer,meu filho, não vá morrer não. Não tem coisa pior que amorte”.

Sobre o suicídio de Eva, filha de seu grande amigoErasmo, Adelina lembra detalhes. “O padre achou ruimlevar a vizinha aqui para a igreja, porque todo mundoficava participando daquele fedor mais triste. A finada Evamisturou três venenos e bebeu. Daí disse, ‘eu não disseque bebia’, aí caiu”. Só que logo as memórias acabam, sinalde que se lembrar do cheiro de morte não faz bem nem aquem escolheu ficar vivo.

Há alguns metros dali, a sabedoria de um vizinho dedona Adelina, Manuel Firmino, busca as minúcias do diaem que o cunhado bebeu veneno para se matar. Dessa veza dor é de família, que buscou apagar o resto de lembrançasobre o fato de que deveria mesmo ser esquecido por todos.

Já faz mais ou menos 20 anos desde que o cunhadode Manuel, Valdemiro, tomou Azodrin e morreu na hora.O homem tinha aproximadamente 40 anos e morava coma mãe no terreno que fica em frente ao de Seu Mané. Naépoca em que tudo era tratado com remédios naturais,

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talvez a tristeza daquele homem ainda não tivesse cura.Calado, Valdemiro era um homem que trabalhava nalavoura de algodão e mostrava sinais de depressão. “Eleera bobão, meio doidão, fraco das idéias. Gente assim agente conhece”, descreve Manuel.

Para a família, o motivo do suicídio foi fútil. SegundoAbrão, o tio queria muito comprar um Fusca, mas a mãenão deixou. Uma briga, alguns goles de pinga e outrostantos de veneno. Valdemiro tomou Azodrin e andou atéuma árvore no quintal, onde mais tarde o corpo foiencontrado pela mãe. “Já tava pálido, com espuma naboca”, conta Abrão que não consegue esquecer a cena docorpo do tio morto no terreiro.

Já para Seu Mané, a história deve ser usada apenascomo exemplo do que não se deve fazer. “Não desejo amorte de jeito nenhum. A gente tem que saber conversar,saber suportar as dificuldades da vida”, declara Manuel coma sabedoria de quem já viveu 73 anos. “Gente é o bichomais fraco de morrer”, acrescenta sobre a fragilidade dohomem diante da letalidade do agrotóxico.

Organofosforados e suicídios

Em todo o Brasil, pesquisas têm se aprofundado cadavez mais na ligação entre os organofosforados e os casosde suicídio. Em Venâncio Aires, Rio Grande do Sul, umgrupo de pesquisadores fez um levantamento dasconseqüências da exposição prolongada dos trabalhadoresrurais a esse tipo de agrotóxico. O estudo foi uma demandada Assembléia Legislativa e, apesar dos resultadossignificativos, não conseguiu mobilizar o poder público paraa gravidade da situação.

O agrônomo Sebastião Pinheiro foi um dosresponsáveis pelo trabalho e lamenta que não tenha sidousado para melhorar a vida daqueles agricultores. Assim

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como em Fátima do Sul, os produtores de Venâncio Airestambém estão expostos aos organofosforados. Os últimos,porém, trabalham com plantio do fumo, que necessita dequantidades maiores de veneno, o que produz resultadosainda mais visíveis que os encontrados na cidade sul-mato-grossense.

Conhecidas em todo o mundo, as conseqüências douso prolongado desse tipo de agrotóxico produziramresultados diversos em várias partes do mundo. “NaNoruega (primeiro país em qualidade de vida) foi feito em1990 um estudo epidemiológicosobre a deficiência noaprendizado de escolares da área rural em relação aosurbanos. Desde aquele momento, todos os fosforadosforam restritos em toda a Europa e no mundo civilizado”,compara Pinheiro.

No relatório Safer Acess to Pesticides (Acesso Seguroaos Agrotóxicos, em português) divulgado em 2006, aOrganização Mundial da Saúde reúne recomendações paratentar diminuir o número de intoxicações e suicídioscausados pelos pesticidas. De acordo com a organização,esses casos têm sido pouco estudados porque grande partedas pesquisas sobre prevenção ao suicídio é procedente dospaíses desenvolvidos, enquanto as consequências àexposição ao uso de pesticidas aparecem predominantesem países pobres e em desenvolvimento, como as áreasrurais da Ásia, América Central e do Sul, África e ilhas doPacífico. O documento ainda destaca o alto número desuicídios em lavouras de tabaco no Brasil, como é o casode Venâncio Aires , onde os produtores são expostosexatamente aos mesmos organofosforados presentes nasplantações de algodão, em Fátima do Sul.

Em nível federal, o Ministério da Saúde reconheceas consequências da relação entre o uso de inseticidas esuicídios no relatório Saúde Brasil 2007. “Alguns estudiosos

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apontam os agrotóxicos como elementos desencadeadoresde quadros depressivos, em função de mecanismosneurológicos e endócrinos. Mas há que se investigar ainda,com mais profundidade, outras hipóteses, como a questãocultural”, cita. Apesar disso, não existem estudos nempolítica preventiva de suicídio na zona rural, o que éprovado pelo documento lançado em 2006, titulado“Estratégia Nacional de Prevenção ao Suicídio”, ondenenhum ponto aborda as especificidades das populaçõesrurais expostas aos organofosforados.

Em Mato Grosso do Sul, a Secretaria de Estado deSaúde também não realiza nenhuma ação específica e afalta de conhecimento dos profissionais de saúde foi umadas dificuldades encontradas pelo pesquisador Dario Xavier.“Eu comecei ler, é uma coisa pouco conhecida, então pro-curei alguns médicos psiquiatras que trabalham nessa área.Mas eles não conheciam essa ligação entre organofosforadoe depressão. Eu tive que levar artigos para discutir comeles e acho que isso pode sim prejudicar o atendimento”,avalia.

Notável desgraça

Tímida, ela nos cumprimenta com os olhos baixos eos braços cruzados. Antônia de Souza Lucas também vivena zona rural de Fátima do Sul, mas há alguns anos emsuas terras já não germina nenhum tipo de semente. Ador talvez tenha sido a responsável pela decisão de arren-dar o pedaço de terra de onde a família por tantos anostirou o sustento.

Aos 64 anos, restaram-lhe poucos dentes e algunssorrisos no rosto. As marcas da idade, do sol, da dor e douso de agrotóxico também são notáveis. Dona Antôniatransmite calma e até certa ternura. Ela fala pouco, observabastante e procura não demonstrar os sentimentos que

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lhe trouxeram tanto amor e sofrimento.Nasceu em Pernambuco, para onde nunca mais

voltou desde os 15 anos de idade, e não sente vontade devoltar. “Aqui é bom. Melhor do que lá. Gosto daqui dojeito ta”, explica-se. Casou-se em Fátima do Sul, ondetambém ficou viúva. Foi seu único homem, pelo qualAntônia diz não guardar nenhuma saudade. Daslembranças do companheiro só restaram as noites em quechegava bêbado e brigava com ela e os filhos. “Se soubesseque ele era assim, eu nem casava”, conta a mulher quenão entra em detalhes, mas demonstra parte do rancorque tem por um homem que a humilhou por muito tempo.

Dos quinze filhos que nasceram desse casamento,apenas cinco vivem hoje com ela. Esses são homens,solteiros e trabalhadores rurais. A família sobrevive com aaposentadoria que Antônia recebe, da quantia doarrendamento e da trabalho dos filhos, que nem semprecontribuem com as despesas da casa. Assim como o pai,todos são alcoólatras.

Coincidência ou fatalidade, três dos seus filhos se sui-cidaram e outros dois tentaram, mas não conseguiram sematar com agrotóxico. “Bugrão”, Mauro e Luiz encontra-ram a morte a poucos passos de casa, numa casinha queservia de depósito para as embalagens de veneno. Umadesilusão qualquer, o álcool, e a decisão estava tomada:era só entrar no local e escolher o gosto de sua morte.

Jonas, mais conhecido como “Burgão”, foi o primei-ro a morrer. De acordo com a mãe, o filho tinha um “ca-belo bem pretinho” e talvez se estivesse sóbrio não teria sematado. Tomou veneno e morreu em casa. Não deu nemtempo de ser socorrido, já que o corpo foi encontrado pelafamília quando ele já estava morto. “Discutiu na rua e foilá e bebeu dois tipos de veneno. Bebeu e caiu ali no buraco.Ele queria ir longe pra morrer”, lembra dona Antônia.

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Luiz foi o caso mais recente, chegou em casa à noite epassou direto para a casinha. “Ele era o mais novo e veiobebendo de uma festa que teve lá na 5 ª [linha]. Já tavameio chumbado, aí passou direito pra tuia, nem veio aquiem casa. Quando nós demos por fé ouvimos um gemidolá dentro, com a tuia fechada ainda, e tava cheinho deveneno. Eu tinha um algodãzinho lá embaixo que tavabranquinho quando ele morreu. Ele passou o veneno nessedia e depois que foi pra festa, veio e bebeu”, descreveAntônia sem manifestar dor. “O negócio foi tão forte quecomeu a língua dele. Os outros beberam pouco e morreulogo, já esse ficou sofrendo”, completa.

Mauro não foi muito diferente. Fez o mesmocaminho dos irmãos e depois de ingerir dois tipos deagrotóxico ainda conseguiu caminhar alguns metros parachegar até a casa. “O Mauro foi assim, o irmão dele bateuno rádio dele e ele ficou brabo. Ai correu logo pra tuia. Eunem vi, quando vi, já tinha bebido. Ele chegou aqui caindoe falou ‘Mãe, eu bebi veneno’. Foi lá pra cama e ficou lá.Aí chamamos um carro pra levar pra Fátima, mas quandofoi um pouquinho já morreu”, conta a mãe.

Cecília misturou veneno líquido com farinha, comeuo prato inteiro, mas não morreu. “Na hora não deu nada,mas depois a gente teve que levar ela pra Campo Grande”relata Antônia. E o irmão Pedro completa: “Até hoje ela émeio atrapalhada”.

Outro que poderia ter ido pelo mesmo caminho queos demais foi Paulo, um dos mais novos. No início do ano,ele ficou bêbado e começou a dizer que a vida não tinhamais graça. Decidido, chegou a pedir que alguém passassepor cima dele com um trator, mas a solicitação felizmentenão foi atendida.

Da história de “bebedeira” a mãe faz graça, como sealiviada ou acostumada com a presença da morte na famí-

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lia. Envergonhado, Paulo desmente, diz que não se lem-bra da tentativa de suicídio e muda de assunto. Enquantoisso, Antônia dá um sorriso leve e permanece encostadana porta da varanda de casa, cenário comum, não fosse anotável desgraça a que essa família teve que se acostumar.

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Adelina, Erasmo, Manuel, Sinésia e Antônia: cincohistórias que mostram um pouco do que é a realidade dazona rural de Fátima do Sul. Imigrantes que construíramuma nova vida na terra desconhecida, criaram os filhosentre o plantio e a colheita do algodão e agora vivem atristeza que é sutil para uns e visível para outros. Um lugaronde o silêncio das estradas remete à mudez de alguns dessesprodutores ao recordar de momentos importantes de suasvidas.

Trouxeram para dentro de casa a máquina deaplicação de agrotóxico, as roupas sujas do trabalho nalavoura e as consequências dessa proximidade com aquiloque deveria matar apenas as pragas do algodão. Transfor-maram as embalagens em copos para tomar água e, derepente, os goles do veneno começaram a assustar os mo-radores da região.

Os anos foram passando e agora convivem as

5. Um novo sorriso

“Nas grandes propriedades o veneno é aplicado na lavoura

em tratores com GPS, rádio e bico de pulverização. Já o agricultor

familiar tem acesso apenas a bomba costal e uma máscara

rasgada”

Ângelo Zanaga Trapé

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lembranças das festas de forró nos finais de semana e ados velórios com caixão fechado, que não podiam ser feitosdentro da igreja a pedido do padre. Restam agora os filhosadultos sem trabalho e dinheiro para plantar.

Aos poucos também vão perdendo as esperanças deque a vida melhore e que o corpo volte a ser como eraantes. Dor de cabeça, vômito, coceira, câncer e depressãotornaram-se sintomas normais de quem já perdeu a noçãodo significado de saúde.

Afinal, foram anos dedicados aos agrotóxicos, histó-rias inteiras regadas as bombeadas da máquina costal e,para alguns, foi dele também o último gosto que sentiramna boca. Um amargo que sufoca, dói e mata.

Lapso de lucidezÉ o aperto de mão firme que dá as boas-vindas aos

visitantes de Culturama. Cumprimentos de um homemde estatura média e simpatia séria, que serve de guia àquem veio conhecer o lugar. José Lima de Jesus, ou apenas“Zé Lima”, conhece bem cada uma das histórias narradasao longo deste livro-reportagem. Aliás decorou nome, so-brenome e número de identidade da maioria dosmoradores da região.

O rosto de pele branca mostra um leve queimado desol, enquanto os olhos são verdes, presentes, notáveis. Vestecalça jeans, botina e uma camiseta muito bem passada.Conhece metro a metro da região e cuida de cada famíliacom um zelo incomparável. “Seu Manuel, ta acabando oremédio, né? Essa semana passo aqui para trazer outracartela para o senhor”, diz ele, pouco antes que a entrevistacomece.

Zé Lima é agente de saúde por paixão. Passou noconcurso da Prefeitura de Fátima do Sul há 11 anos elargou tudo para trabalhar no lugar onde cresceu. Formou-

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se em Ciências Contábeis, concluiu o curso técnico emEnfermagem, e fez a opção de ganhar menos de doissalários mínimos para se aventurar no que realmente gostade fazer.

Vive com a esposa e dois filhos em um sítio pequenona zona rural, onde tem uma horta e planta outros gênerosalimentícios. É vizinho dos tios e do pai e faz questão dedizer que não sairia dali por dinheiro algum.

De segunda a sexta acorda, vai trabalhar a pé, voltapara o almoço e tira um cochilo. Levanta novamente, dáum beijo na filha de seis meses e continua as visitas. Aofinal da tarde está em casa de novo. A rotina é quase sempreparecida, salvo os dias de vacinação, quando é preciso irmais longe e ficar o dia todo fora.

Zé tem 41 anos, revelados por uma leve calvície; parecetambém um pouco fechado, mas isso é só aparência. Brinca,ri e faz piada como se estivesse no sofá de casa, e de certaforma está. Aos sábados à tarde tem um compromissosagrado com os homens da vizinhança: o futebol, outra desuas grandes paixões.

Casou-se pela primeira vez há mais de dez anos e nãotem vergonha de dizer que foi abandonado pela esposa,que fugiu com outro homem. Sozinho, ele teve que criaro filho pequeno e conviver com a decepção. Há quatroanos arrumou uma nova esposa, com quem teve uma filha.Marido dedicado e pai carinhoso, Zé deixa bem claro quea família é a coisa mais importante em sua vida.

Zé Lima é um herói solitário, representante de umsistema de saúde que só chega até a comunidade por meiodele. Remédios, consultas e encaminhamentos são algumasde suas atribuições. E como as outras políticas públicas sãoinsuficientes, é na conversa na varanda que ele aproveitapara explicar que alguns venenos são muito perigosos eque os equipamentos de proteção individual são sempre

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necessários.Tenta combater sozinho os anos de experiência e

teimosia dos produtores rurais . É um lapso de consciênciaem meio aos resultados dos anos de exposição dacomunidade aos agrotóxicos. Uma luta diária de quemacredita no trabalho que faz e ama o lugar onde mora.

Uma balança desigualA carência de políticas públicas exposta na

comunidade do distrito de Culturama, em Fátima do Sul,faz parte da realidade dos pequenos produtores de todo oBrasil. Segundo o Censo Agropecuário de 2006 feito peloIBGE, apesar de ocupar só um quarto da área cultivada doBrasil, a agricultura familiar é responsável por 38% dovalor da produção nacional. Gera 54 bilhões de reais porano e é dela também a responsabilidade por garantir asegurança alimentar do país, gerando os principais produtosda cesta básica brasileira. Emprega ainda 74% da mão-de-obra do campo. Só em Mato Grosso do Sul, o IBGE calculaque mais de 200 mil pessoas trabalhem no meio rural,destes 133 mil tem laços de parentesco com o produtor.

Só que a participação dessas pequenas propriedadesna produção nacional de alimentos não garante que aspolíticas públicas alcancem essa fatia de brasileiros. O IBGEainda apontou, por exemplo, que 80% dos produtoresentrevistados durante a pesquisa tinham baixa escolaridade.

A carência de políticas educacionais está diretamenteligada aos casos de intoxicação no campo, afinal, sãoexatamente os que não sabem ler que aplicam o venenona lavoura. Sem conseguir identificar no rótulo asconcentrações e as precauções necessárias, acabam seexpondo muito mais aos riscos do produto.

Nas grandes propriedades o veneno é aplicado nalavoura em tratores com GPS, rádio e bico de pulveriza-

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ção. Já o agricultor familiar tem acesso apenas à bombacostal e uma máscara rasgada, então acaba se intoxicando.No primeiro caso, a pessoa fica totalmente protegida. En-tão, o segundo acaba sublimando o risco, porque tem quefazer o serviço e não tem outro jeito de aplicar o veneno”,compara o toxicologista Ângelo Zanaga Trapé, mostran-do a desigualdade no campo.

Prova da crítica feita pelo médico é que, de acordocom o Censo Agropecuário, 78% das lavouras que usamagrotóxico são dirigidas pelos proprietários, de forma queo equipamento mais usado é o pulverizador costal (69,1%),que tem maior potencial de exposição.

Ainda conforme o estudo, em mais da metade dosestabelecimentos onde houve utilização de agrotóxicos(56%) os agricultores não receberam orientação técnica,sendo que 15% dos responsáveis por essas propriedadesnão sabiam ler nem escrever.

Para Trapé, outra grande deficiência é revelada pelosistema de saúde que, segundo ele, está sempre distantedo pequeno produtor e não vê a zona rural como áreaimportante de atuação. No distrito de Culturama, porexemplo, não existem programas de prevenção ou gruposque acompanhem a saúde dos produtores. Nesse contex-to, ações simples como medir periodicamente os níveis daenzima acetilcolinesterase poderiam servir de base paraque equipes multidisciplinares avaliassem os níveis deintoxicação de cada agricultor.

A falta de orientação técnica que poderia suprir emparte a baixa escolaridade e ausência de fiscalização davigilância sanitária ajudam a completar o quadro depolíticas públicas que não chegam a essa população.

Conforme o professor de Química, Dario Xavier Pires,os dados reforçam sua tese de que é necessário trabalharna prevenção envolvendo basicamente saúde e educação

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de forma conjunta. “É importante que isso seja tratado deforma mais séria”, diz. Desde a década de 1990, quandocomeçaram suas pesquisas sobre o assunto, Pires avalia quehouve a introdução de algumas iniciativas de prevenção,que ainda são incipientes para tratar do problema demaneira efetiva.

Baseado nos resultados obtidos na zona rural deCampinas nos últimos dois anos, o médico Ângelo Trapéaponta que essa integração de políticas pode dar certo.Nesse período, ele destaca que nenhum caso de intoxicaçãofoi registrado no município, onde educação, orientaçãotécnica e acompanhamento médico frequente dapopulação têm reduzido também as consequências dasexposições a longo prazo.

Há também quem discorde, como o engenheiro agrô-nomo Sebastião Pinheiro, e não acredita que haja umasaída que possa minimizar os riscos dos pequenos produto-res expostos frequentemente aos agrotóxicos. Ele defendea realização de cursos de capacitação para esses trabalha-dores, mas acha que uma relação saudável entre os doislados só acontece quando os venenos são de fato proibi-dos.

“As industrias de agrotóxicos e de alimentos são umacoisa só, logo, não há futuro. Pois tudo será industria dealimentos em um feudalismo medieval altamentetecnológico”, prevê sobre o futuro desses agricultores.

Pela graça dos sorrisos

Debates à parte, o importante é garantir proteçãoaos produtores rurais enquanto esses pesticidas forem legaisno país. E são iniciativas governamentais ou o trabalho doherói solitário de Fátima do Sul que alimentam asesperanças de que devem existir formas eficazes deprevenção. Antes de tudo é preciso discutir o tema, para

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que as políticas públicas não continuem dando as costas a16 milhões de brasileiros.

Pessoas que dedicaram grande parte da vida à terra eainda veem nela o futuro das próximas gerações, sentem-se esquecidas, assim como suas lembranças. Já perderamas esperanças de que algo possa mudar.

Senhores e senhoras acham que a visita de um agentede saúde em casa é o máximo que podem ter do poderpúblico. Governo que só chega ali em época de eleição oupor meio das recordações de que as terras foram doadasdurante a presidência de Getúlio Vergas. Este, por sua vez,que montou uma colônia agrícola no afastado edesconhecido sul de Mato Grosso e não fez questão deequipar o local com o mínimo de infraestrutura necessária.

Perderam-se muitas vidas, muitas lágrimas e muitossonhos. Mas são por histórias como as de Adelina, Manuel,Erasmo, Sinésia, Antônia e Zé Lima que vale a penatrabalhar para que o futuro seja diferente e as festas definais de semana voltem a acontecer, sem cheiro de venenoe com a mesma graça que é contada nos sorrisos dos maisvelhos.

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