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Indisciplina e Disfuncionalidade JORGE NUNES BARBOSA FEVEREIRO, 2012 JB iBooks Author

Indisciplina e Disfuncionalidade

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Indisciplina e Disfuncionalidade

JORGE NUNES BARBOSA

FEVEREIRO, 2012

JB

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Índice

Prólogo

I. Indisciplina e Disfunção Institucional

1.1. O Individualismo

1.2. A Burocracia

1.2.1. A Estrutura Disfuncional

II. Uma Abordagem Ecológica

2.1. Implicações Educativas e Organizacionais

III. A Proposta

1. Unidades de Funcionamento

1.1. Aspetos Organizacionais

IV. Apêndice Remediativo

Intervenção Educativa em Problemas de Comportamen-to

Questões prévias:

Plano de Intervenção

Passos a respeitar num Plano de Intervenção

Intervenção Ecológica

Consequências e Gestão de Crises

Aquisição de Comportamentos Ajustados

Código de Conduta

V. Conclusão

Notas Finais

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Este documento nasce originariamente de um compromisso assumido com os meus colegas de Departamento Curricular. Analisava-se a discre-pância entre juízos de alunos, professores e pais sobre a indisciplina na escola. Fazia sentido que a comunidade escolar estivesse segura de que parti-lhava um conceito consensual de disciplina e de indisciplina, que pudesse sustentar um diálogo produtivo entre perspetivas diferentes sobre o as-sunto. Neste quadro de referência, um código de conduta, um documento não judicializado, que

pusesse em evidência os aspetos mais valorizados nas atitudes de alunos, professores e pais parecia estar mais de acordo com o estabelecimento des-se consenso, do que um regulamento interno de-masiado extenso e muito difícil de ser traduzido em condutas positivas.

No meu espírito sempre esteve clara a necessida-de imperativa de fundamentar esse código de con-duta e a sua pertinência. Estava nas intenções sub-jetivas do compromisso assumido que essa funda-mentação deveria ser curta e assertiva, como pare-ce convir nestas situações. Só que o caminho se-guido deu-se a si mesmo uma dimensão que nem com boa vontade pode ser considerada curta. Por outro lado, coincidências inesperadas entre aqui-lo que se assemelhava a uma encomenda e outro tipo de solicitações, fizeram juntar, num só, um documento de trabalho interno e um documento reflexivo que, de qualquer modo, correspondendo a outro tipo de compromisso, era necessário que ficasse pronto num período de tempo quase coin-cidente. Por estas razões, e só por estas, este docu-mento é bastante mais longo do que seria desejá-

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Prólogo

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vel. Mas não menos assertivo do que era a inten-ção inicial, espero eu.

O que agora é divulgado corresponde a uma ver-são, apesar de tudo, simplificada e reduzida sobre os conceitos de disciplina e organização institucio-nal e sobre uma abordagem ecológica das organi-zações. Contém também uma visão geral sobre as linhas de força que devem nortear as reformas educativas, ou o projeto educativo da escola, con-soante o patamar de intervenção em que cada um se situe. É defendido ainda um modelo de inter-venção educativa, não aversiva, nos comporta-mentos difíceis de alunos e, obviamente, são apre-sentadas as linhas gerais de um código de condu-ta.

Em termos gerais, a postura ideológica aqui assu-mida é, num certo sentido, conservadora. Com efeito, é preservado o imaginário de escola como um espaço e um tempo de integração dos novos elementos na sociedade e de salvaguarda de valo-res, social e democraticamente, partilhados, que lhes pré-existem. Neste e só neste sentido, as críti-

cas e as propostas, neste documento, são conser-vadoras.

Uma ideia geral estrutura todo o documento: só poderemos proteger o atual imaginário de escola, se formos capazes de focar os seus aspetos nuclea-res e desvalorizar as suas componentes distrati-vas e circunstanciais. O conceito de imaginário, aqui utilizado, não coincide em todos os seus pon-tos, com o conceito de imaginário do senso co-mum. Entendamo-nos, portanto.

Em estudos meus, que levam já muito, talvez ex-cessivo, tempo sem publicação, sobre aquilo a que agora se chama “deficiências da inteligência e do desenvolvimento”, tem sido útil distinguir dois tipos de “lógica” que presidem à nossa forma hu-mana de pensar. Uma é, digamos, uma “lógica analógica” (imaginário), isto é, uma “lógica” que não é ilógica, mas também não é lógica, no senti-do matemático do termo. A outra é a lógica digital ou matemática. Ambas correspondem a podero-sas organizações da informação - daí o nome de “lógica” que ambas merecem -, mas o imaginário corresponde a uma lógica adaptativa (inteligen-

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te), mas pouco adaptável (persistente), e a lógica digital é simultaneamente adaptativa (inteligen-te) e adaptável (provisória). A nossa vida do quoti-diano é sobretudo dominada pela lógica analógi-ca, porque, sem conflitos, sem dissonâncias, e com uma enorme estabilidade, responde com efi-cácia e superior inteligência à maior parte dos pro-blemas que nos são colocados. Quando um con-junto dessas informações se mostra, em certas cir-cunstâncias, menos adaptativo, pode ser gerado um outro, por acumulação e reorganização de in-formações, mas sem destruir o anterior: ficamos, portanto, com duas soluções no repertório. Na ló-gica digital, quando o mesmo acontece, dá-se lu-gar a uma reformulação do conjunto de informa-ções em causa, sendo uma substituída pela outra. O imaginário é, então, um conjunto de informa-ções organizadas, geradoras e conservadoras de identidades, que se dá bem com a contradição: essa é uma das suas principais características; A lógica matemática, pelo contrário, usa a contradi-ção para se reestruturar.

Ora, o imaginário de escola que aqui se preserva é justamente esse que aglutina no seu interior con-tradições adaptativas (inteligentes) e que vive bem com elas. Neste sentido, o imaginário é realis-ta, não é uma fantasia, uma fuga à realidade, mas, pelo contrário, uma tentativa de adequação a ela. Traduzido em narrativa, este imaginário será o mito, se quisermos aprofundar as coisas. Há, por-tanto, uma narrativa mítica da escola a que não devemos fugir. Agora, se quisermos que a escola não estruture uma “deficiência da inteligência e do desenvolvimento”, não podemos ficar por aí.

É, então, no respeito pelo imaginário, pelo mito, da escola que aqui se propõe a construção de no-vos imaginários, que, seguramente, não farão mal algum ao que já se tem, e serão o embrião da sua própria preservação.

Concluído em Vila Nova de Gaia, 13 de fevereiro de 2012

Jorge Barbosa

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CAPÍTULO 1

Indisciplina e Disfunção Institucional

O conceito de indisciplina não é inteligí-vel, muito menos operacionalizável, se não for abordado na sua complexidade. Neste, como em muitos outros casos, a adoção de perspetivas analíticas estritas, embora satisfaça a nossa ambição explica-tiva, atira-nos para fora do campo, onde o objeto se estrutura e adquire sentido.

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INDISCIPLINA E DISFUNÇÃO INSTITUCIONAL

O conceito de indisciplina não é inteligível, muito menos operacionalizável, se não for abordado na sua complexidade 1. Neste, como em muitos ou-tros casos, a adoção de perspetivas analíticas estri-tas, embora satisfaça a nossa ambição explicativa, atira-nos para fora do campo, onde o objeto se es-trutura e adquire sentido. Podemos, então, encon-trar sábias explicações para quase tudo, sem que nos seja dado entender o que quer que seja. É o que, por exemplo, acontece teimosamente com os debates sobre o insucesso escolar: não nos faltam explicações científicas do fenómeno, mas, perante uma situação particular, elas revelam-se de uma inutilidade confrangedora, quando não prejudici-al, para a sua compreensão.

Ora, a indisciplina, por ser um assunto que preo-cupa fundamentalmente os educadores, é sistema-ticamente encarada, numa faina analítica ou sim-plificadora, como um problema com origem nos educandos. Raramente se cuida de saber se a in-

disciplina não terá origem na própria disciplina, ou na sua prática. De facto, quando os educado-res reconhecem que algo deve ser feito no domí-nio da disciplina, raramente equacionam o proble-ma da disciplina como um estilo de vida em comu-nidade, para o reduzirem, analiticamente, a um conjunto de regras que, por não estarem a ser cumpridas, devem ser reforçadas, apregoadas ou simplesmente traduzidas em processos sanciona-tórios. Ora, a disciplina é, ou deve ser, uma forma de viver em comunidade, da qual devem decorrer as regras de convivência, não o contrário.

Numa primeira abordagem, então, a indisciplina pode ser considerada uma manifestação, por ve-zes dolorosa, da disfuncionalidade organizacional da comunidade ou da instituição. É, muitas vezes, com efeito, o primeiro sintoma e o mais óbvio de que a instituição escolar se encontra na vertente decadente do seu percurso.

Não cabe nesta generalização o descuido de não identificar características individuais, de alunos e professores, que provocam ou agudizam as mani-festações de indisciplina. Bem antes pelo contrá-

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rio. Só que manda o bom senso que saibamos dis-tinguir as situações de indisciplina que envolvem uma percentagem reduzida da população escolar, daquelas outras que se manifestam de forma gene-ralizada ou numa percentagem elevada de alunos, de modo contínuo e quase como um ritual que, ele, pode flexibilizar-se em função das circunstân-cias, mas não a adesão a ele dos alunos. A discre-pância, entre os 1% a 2% de alunos que adotam habitualmente comportamentos de gestão difícil e os 15% a 20% que são identificados como indis-ciplinados, deve conduzir-nos a procurar outras razões para a origem do problema, para além das que associam o comportamento de crianças e jo-vens à desgraça em que o nosso tempo está a cair por via da deficiente formação dos elementos que só recentemente começaram fazer parte da socie-dade. Precisamente à educação, sistematizada ou não, cabe a tarefa essencial de garantir que as so-ciedades humanas não destruam esses novos ele-mentos e que estes não destruam a sociedade que os acolhe.

Pede-se, então, à escola que seja capaz de gerir um conflito que se estrutura e se desenvolve no in-terior de si mesma: que conserve valores do passa-do, aqueles mesmos que sustentam a sobrevivên-cia do passado e, desse modo, da sociedade tal como é, e que, ao mesmo tempo, promova a inova-ção, a criatividade e o questionamento do estabe-lecido como certo, para que essa mesma socieda-de não morra.

Não é próprio de um educador profissional negar a valia do presente e temer o futuro, do mesmo modo que não lhe é adequado desvalorizar o pas-sado e apresentar o futuro como única solução para o presente. Encarar o presente como uma de-cadência do passado não é muito diferente de en-carar o próximo futuro como a decadência do pre-sente atual. A decadência e o progresso são concei-tos vazios: não são nada, enquanto não forem ins-titucionalizados: dito por outras palavras, care-cem de institucionalização para serem algo. Não são, portanto, os valores, muito menos o tempo, que entram em decadência; são, isso sim, as insti-tuições, quando deixam de aceitar e de responder

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ao presente e se refugiam em soluções do passa-do, ou em miragens do futuro, descuidando o tem-po em que vivem. Podemos tomar como exemplo um dos valores mais caros à escola: o gosto e a prática da leitura. Dispensemos a tarefa de o justi-ficar, e admitamo-lo como valor a preservar, sem outro fundamento que não seja o de esclarecer o meu pensamento. Ora, se persistirmos em o asso-ciar à prática da leitura de livros em papel, numa época em que eles podem ser lidos em suporte di-gital, um suporte mais barato e até mais ecológi-co, estaremos a promover escandalosamente a desvalorização desse valor. De pouco nos adianta-rá rasgar as vestes e arrancar os cabelos perante o desinteresse que as novas gerações lhe atribuem: nós próprios nos estaríamos a encarregar de ali-mentar esse desinteresse, reduzindo a sua valida-de a um período histórico e a circunstâncias limi-tadas a um tempo, justamente identificado com o passado. Seria a nossa cegueira, ou a nossa dificul-dade em viver no nosso tempo, isto é, de aceitar o imperativo de adequação a novas realidades, as principais responsáveis pela decadência do valor

da leitura. A escola, na sua missão de gerir o con-flito de conservar e de inovar, em períodos de transição difícil, como aquele em que parece que vivemos, é, muitas vezes, a responsável pela des-valorização real daquilo mesmo que gostaria de valorizar. É ela que está decadente e não o gosto pela leitura, ou pela matemática ou pelo que quer que seja, do mesmo modo que não é a moral que está decadente, mas as instituições moralizado-ras.

Ora, o problema de uma indisciplina generalizada não pode ser simplesmente visto como o resulta-do da “desautorização dos professores”, ou, pior ainda, como resultando de uma crise de valores que afeta unicamente as novas gerações, como se uma eventual crise desse género pudesse ter o cui-dado de ser tão seletiva como seria necessário para ter tal efeito. Este pensamento mágico que atribui a conceitos poderes divinos, incluindo o de selecionar o seu povo, neste caso, as crianças e os jovens, é muito útil para as nossas conversas que não tenham a mínima intenção de superar as dificuldades, mas tão só a inebriante satisfação de

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se bastarem a si mesmas e ao nosso insaciável de-sejo de comunicar, nem que sejam só cumplicida-des, afetos ou desafetos. Mas temos de o superar, se quisermos alimentar a esperança de encontrar uma ou duas ideias que nos ajudem a ultrapassar constrangimentos ao nosso ideal de escola, de so-ciedade ou do que quer quer seja.

Não é de grande ajuda nesta tarefa a tendência crescente dos comentadores do quotidiano para fabricarem os seus próprios conceitos sobre a vida e sobre a realidade com o objetivo único de exercitarem o seu valiosíssimo sentido crítico. Constroem ideias e soluções que são só suas, para depois discordarem delas. Comportam-se como aquela gaivota que, não sabendo já por onde anda o vento, decide voar contra aquele que ela própria produz ao bater as asas: voa e voa bem, mas não sai do sítio, e, como um carrossel que, ora está em cima, ora está em baixo, e nunca sai do seu lugar, um dia está bem no outro está mal, sem que nada se tenha alterado, numa neurose maníaco-depres-siva sem cura aparente. Um dos melhores exem-plos desta construção maníaca de conceitos de

uso privado é o de escola inclusiva, abundante-mente testemunhada pelos meios de comunica-ção social. Não falta quem responsabilize "esta ideia peregrina de escola inclusiva, essa tonteria" por, se não todos, pelo menos, um grande núme-ro dos problemas que a escola enfrenta. Ora, en-quanto não se provar que o desejo de comer bolos engorda mais, ou, pelo menos, tanto como comê-los, é absurdo pensar que uma coisa idealizada e não colocada em prática pode ser responsabiliza-da pelo que quer que seja. Com efeito, o conceito de escola inclusiva corresponde a uma convenção que define princípios e critérios de consecução muito claros, ao nível do funcionamento das esco-las e da administração da educação, que estão muito longe de estar em vigor em Portugal. Essa convenção foi patrocinada pela UNESCO e tra-duz-se numa declaração, da qual o Estado portu-guês é signatário, tal como muitos estados mem-bros da ONU. Podemos concordar ou discordar dessa Declaração universalizada aos estados mem-bros da UNESCO2, mas não temos o direito de dis-cordar dela por, mesmo antes de ser aplicada, já

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serem evidentes os seus efeitos perniciosos. Fica-nos bem, todavia, agradecer a esses comentado-res o facto de nos estimularem a imaginação para recorrer a outras palavras, que digam o mesmo, mas que ainda não tenham sido corrompidas pela vã glória de influenciar a opinião dos outros, mes-mo a respeito daquilo de que não têm sequer uma pálida ideia.

Com efeito, uma equação dos problemas que não seja a adequada - que seja uma inadequação - dará inevitavelmente origem a soluções ciclópi-cas, isto é, gigantescas e vesgas, de um só olho. Esta tendência para as soluções ciclópicas parece ser a vertigem dos nossos políticos e das organiza-ções dos profissionais da educação que, embora contestando, acabam sempre por concordar com a agenda “reformista” dos políticos. Por sorte, ou porque é esse o destino que merecem, essas solu-ções duram pouco mais do que o tempo que é pre-ciso para as debater. Passado o conflito, passam a integrar o quadro decadente que as precede. De pouco adianta que alguém se refira a elas como “medidas estruturais”, porque este termo de “me-

didas estruturais” também já foi corrompido pelo seu uso privado, tal como muitos outros concei-tos. Cada um pensa dele o que quer, sendo que aos políticos importa querer convencer os outros de que estão no caminho certo: “medidas estrutu-rais” passa a significar “medidas que não estamos dispostos a discutir com ninguém”, mesmo que, em boa verdade, sejam circunstanciais e tenham tão só a ver com a dita falta de dinheiro, ou de ideias, para fazer melhor.

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SECÇÃO 1

O Individualismo

A tendência analítica, perante o gigantismo de um problema, gerado sobretudo pela inadequa-ção da sua equação, encontra, por via de regra, uma solução engenhosa: reduzir o complexo - a organização e o seu dinamismo - à soma das suas partes, para encontrar uma ou mais característi-cas de cada uma delas e depois as generalizar ao todo. Aplicada à escola, esta tendência encontra na conversão dos indivíduos a solução para todos os problemas. Com efeito, os indivíduos são consi-derados os principais responsáveis pela ineficiên-cia da organização, no caso, da escola. Consoante a abordagem, ora são os professores, ora são os alunos, aqueles que devem converter-se.

Numa época pouco confiante no mundo do espíri-to e na conversão por adesão voluntária, a estraté-gia é a de forçar a mudança de vida dos indivídu-os através da introdução de procedimentos meri-tocráticos, e ficar à espera que, desse modo, ou en-tão milagrosamente, a organização encontre o ca-minho para o seu aperfeiçoamento. Há, de facto, professores que evidenciam dificuldades no exer-cício da sua profissão. Este elemento de uma pe-quena parte do problema é generalizado ao todo, justificando assim que a “medida estrutural” ina-diável seja a da adoção de um modelo de avalia-ção que “separe o trigo do joio”. Do mesmo modo, há alunos que revelam dificuldades na escola. A “medida estrutural” é, então, um novo estatuto do aluno, e um aumento da exigência.

Esta forma inebriante de destilar os problemas só se torna popular, aos olhos dos próprios professo-res, obviamente nos aspetos que não lhes dizem diretamente respeito, porque é um descanso para a mente haver sempre uma justificação, nem que seja absurda, que se compagine confortavelmente

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com o horror ao silêncio, à suspensão da palavra para pensar antes de falar.

Na verdade, a avaliação do desempenho dos pro-fessores, sem alterações no próprio funcionamen-to da escola, só serve para consolidar o seu funcio-namento atual, agregando todos os fragmentos, todo o cascalho, numa massa de cimento dentro de uma betoneira conformista, isto é, só serve para normalizar o erro. Muitos erros tornam-se invisíveis deste modo, mas como nada fica resolvi-do, só imerso em nevoeiro, é absolutamente im-prescindível encontrar outros responsáveis pela ineficiência. Aqueles que estão mais a jeito são os alunos. Transforma-se, então, o estatuto do aluno num código penal, e fazem-se apelos a uma maior exigência em termos académicos. A alteração do estatuto do aluno acaba por ter o mesmo efeito que tem a avaliação do desempenho dos professo-res, mas o dito aumento da exigência académica não é tão neutro como se possa pensar. De facto, evitando a dificuldade que consiste em alterar a natureza da exigência na escola, procura-se au-mentar aquela que já existe para que nada mude,

a não ser o nível de exclusão que se pretende que a escola passe a promover. Não só o erro é doloro-samente consolidado, betonizado mesmo, como tem efeitos práticos que reduzem drasticamente a eficiência da escola na sua missão social, de for-ma particularmente subtil porque, num primeiro momento, a ineficiência se traduzirá em melhores resultados nos exames, embora articulados com um aumento proporcional de insucesso escolar re-al. É como um motor que, antes de gripar, solta as suas engrenagens num frenesim de velocidade fatal. Basta tentar subir uma ligeira colina para que as peças se soldem umas nas outras. Bastará, no caso dos alunos, tentar gerir os resultados da exclusão, para que o sistema educativo, e, com ele, a qualidade de vida na sociedade, encontre o precipício que pensou estar a evitar, e aquilo que, provisoriamente se poupou na educação se trans-forme numa despesa insustentável.

Ora, esta abordagem individualista, também ao nível da gestão da disciplina ou do combate à in-disciplina, é ineficaz. De novo, convém lembrar que não é o comportamento difícil de alguns, pou-

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cos alunos, que está aqui em causa, mas o desas-sossego constante que afeta um grande número de alunos e de turmas. Só minimizando os danos da indisciplina generalizada, ou de difícil conten-ção em limiares suportáveis para uma vida agra-dável na escola, poderemos, com algumas hipóte-ses de sucesso, encarar os problemas de gestão de comportamentos mais raros e mais problemáti-cos. A experiência diz que o contrário raramente nos conduz a algo de frutuoso: a aplicação e o anúncio público de penas disciplinares não corri-ge o tal desassossego que tanto incomoda o traba-lho nas salas de aula. Graças a uma misteriosa sa-bedoria, os alunos também conseguem distinguir as duas situações, mesmo recorrendo tão só às mí-nimas das suas capacidades de entendimento do mundo. Seria escandaloso que os professores o não fizessem, e os alunos não esperam isso deles.

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SECÇÃO 2

A Burocracia

O conceito de burocracia é um dos que mais fre-quentemente está sujeito a fenómenos de privati-zação conceptual. Na verdade, cada um se sente no direito, e até no dever, de contestar a burocra-cia, interpretando, o mais das vezes, como buro-crata tudo aquilo que exige um esforço adicional, para além da própria tarefa que quer ou é solicita-do a realizar.

No entanto, a burocracia é um conceito sociológi-co3 que pretende descrever as estruturas e os pro-cessos de regulação da acção social em sociedades e organizações complexas, isto é, de preservação de direitos e de garantia de cumprimento dos de-veres, por parte dos indivíduos e das instituições.

Foi reconhecido, desde o nascimento deste concei-to científico4, o perigo de desumanização que a bu-rocracia poderia envolver. Apesar de tudo, ela era vista como uma parte central da racionalização da sociedade na idade moderna: em vez de confia-rem em crenças e costumes tradicionais, espera-va-se que os modernos tomassem decisões racio-nais orientadas para um objetivo concreto, tendo em conta registos rigorosos dos percursos e das metas a perseguir, dos direitos atribuídos e a atri-buir e das obrigações respeitadas e a respeitar. Si-gnificava, entre outras coisas, o poder da escrita sobre a tradição ou o testemunho oral. Por outro lado, a autoridade burocrática foi chamada a de-sempenhar o papel regulador das sociedades mo-dernas e industrializadas: os contratos coletivos de trabalho são um bom exemplo desta missão da burocracia; nos sistemas educativos, os processos de transição de ano ou de ciclo escolar, os certifi-cados e os diplomas, a definição das condições de acesso a cada um dos níveis académicos é outro excelente exemplo da autoridade burocrática: a tí-tulo de exemplo, se, por engano, um aluno recebe

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uma nota positiva e ela é publicada na respetiva pauta, aquilo que conta não é o facto de o aluno não estar preparado para prosseguir estudos, mas o facto de burocraticamente ter sido registado que ele obteve uma nota positiva, e, portanto, mesmo que devesse reprovar de acordo com a opi-nião oralmente transmitida pelos seus professo-res, aquilo que é validado é a nota escrita na pau-ta. Na sua verdadeira essência, a burocracia é isto mesmo que aqui é exemplificado, e não o traba-lho que dá.

Este esclarecimento prévio de conceitos - isto é, do conceito que aqui está a ser utilizado - é funda-mental para que se entenda o que a seguir será de-fendido e argumentado.

Nesta ordem de ideias, fica, no mínimo, bizarro que haja quem defenda um aumento de regulação social, seja através de exames aos alunos ou aos professores, seja através do acompanhamento das atividades financeiras especulativas ou outras quaisquer, e simultaneamente apregoe uma redu-ção da burocracia. Este discurso, só inteligível se for separado nos seus fragmentos e, portanto, se

corresponder mais a uma oratória panfletária do que discursiva5, põe em evidência as contradições do nosso tempo que, resumidamente, podem con-formar a ideia de uma estranhíssima e pouco razo-ável ditadura liberal. A linha de força parece ser, no entanto, a desenhada pela necessidade de ins-taurar sistemas sucessórios na gestão do poder. Com efeito, a burocracia, definindo critérios im-pessoais, democratizou o acesso à formação aca-démica e o acesso a certos cargos importantes nas organizações, tapando, num momento de crise e de prolongamento da vida dos cidadãos, lugares que sempre foram destinados aos jovens filhos da nova aristocracia burguesa, entretanto, ela pró-pria, em grande parte gerada por essa democrati-zação burocrata. Desta linha de força nasce o im-perativo de destruir os laços burocráticos, associa-dos aos “direitos adquiridos”, estabelecendo pro-cedimentos de avaliação dos indivíduos, tão assí-duos quanto seja necessário destruir ideias de competência, construídas a partir das suas históri-as de vida, ou dos simples registo biográficos, ou do tempo de serviço.

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Assim, uma das linhas de força que contesta a bu-rocracia não pretende reduzir a burocracia, a não ser naquele seu aspeto em que pode ser identifica-da com um excesso de democratização. Este ex-cesso de democratização é identificado como o pe-cado original que os deuses se estão a encarregar de punir ferozmente nos tempos que correm. As danças da chuva, as promessas de arrependimen-to e os sacrifícios humanos talvez acalmem a fúria dos deuses, mas não é este o ponto de vista que co-manda esta reflexão. Pelo contrário, as alterações recentemente introduzidas no modelo de gestão das escolas - que se manteve, de resto, tal como estava enquanto modelo - seguem religiosamente este pensamento mágico e encantatório, mas peri-goso, que consiste em pensar que um melhor fun-cionamento das escolas depende do perfil do seu diretor, que, por isso, é empossado de uma acres-cida autoridade, sem o correspondente poder ou autonomia. Autoridade sem poder real significa arbitrariedade, isto é, desburocratização, desregu-lação. Encavalitar o funcionamento da escola no perfil de uma pessoa a quem se atribui, não o po-

der de reformular e reorganizar a instituição, mas o de normalizar procedimentos corresponde, isso sim, a uma manifestação desse pensamento mági-co que culpa o excesso de democratização6 pela disfuncionalidade da escola.

A minha crítica à burocracia não segue, portanto, o caminho que propõe, no final de contas, a desre-gulação seletiva, isto é, a desregulação daquilo que prejudica o exercício do poder, seja ele políti-co, ou financeiro, ou outro.

Na verdade, a realidade da escola, mas também de outras organizações sociais, parece revelar a progressiva desburocratização dos processos de dominação, e o aumento da burocratização como processo de submissão e normalização, isto é, de controlo, já não de regulação, dos que são chama-dos a submeter-se. Ora, esta é uma das disfun-ções, a par da promoção do individualismo, mais óbvias da escola.

Com efeito, pela via da redução - eliminação em alguns aspetos fundamentais - 1) dos processos in-ternos de controlo e regulação do poder, 2) do au-mento da burocracia com vista à normalização

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dos indivíduos, 3) da redução do tempo de valida-de destes processos burocráticos, e 4) do aumen-to dos processos de controlo externo, a escola atin-giu níveis de disfuncionalidade que mereceriam ser considerados como muito preocupantes.

A burocratização que diz respeito aos processos de normalização e de promoção do conformismo é ostensivamente ocultada pela redução do tempo de validade dos procedimentos burocratas, o que, tecnicamente, corresponde a uma violenta mani-pulação das vontades e da capacidade reflexiva e crítica: aquilo que hoje é defendido e criticado, amanhã já não tem validade, mas mantém-se o procedimento na sua essência sem qualquer alte-ração de substância, só de forma.

Esta tendência manipuladora recebe, apesar de tudo, o apoio de muitos dos manipulados, por-que, de facto, a heteronomia, a responsabilização de quem decide, é muito mais repousante do que a autonomia, a responsabilização que cada um as-sume de si e para si. A resposta positiva a este ape-lo à conformidade, ao conformismo, ou, como pre-firo dizer para não deixar dúvidas, à mediocrida-

de traduz-se na adesão, por vezes entusiasta, a um conjunto de rituais sem nexo e sem outra utili-dade que não seja a do próprio ritual: os rituais re-petem-se incessantemente para que simplesmen-te não deixem de se repetir.

A escola moderna sempre foi burocrática e, por-tanto, o apelo à ritualização da vida na escola é consentâneo com a sua tradição modernista. Des-de muito cedo, as decisões burocráticas, como a certificação escolar, a transição de ano ou de ciclo de estudos, assumiram uma função sobreordena-da face à tarefa subordinada de ensinar e apren-der. Ensina-se e aprende-se para passar de ano, não para se saber. Só que nunca como agora, os procedimentos burocráticos alcançaram tanto pre-domínio sobre os procedimentos de ensino e aprendizagem. Os currículos, os programas, as próprias aulas parecem estar mais ao serviço des-sa decisão burocrática de sucesso e insucesso, do que ao serviço do sucesso na aprendizagem. Este cenário torna-se ainda mais preocupante quando um conjunto muito vasto de atividades dos profes-sores se subordinam quase inteiramente mais à

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necessidade de responder à burocracia do que aos problemas. Algumas são idealizadas para que se possa construir um plano anual de atividades, ou-tras para construir um projeto curricular de tur-ma e ainda outras para obter uma classificação agradável na avaliação do desempenho; fazem-se reuniões para preencher formulários; já nem se-quer falta a oportunidade de fazer reuniões para que se façam atas delas. A tragédia é que este ce-nário é particularmente sedutor, pelo relaxamen-to que induz, sem deixar de proporcionar catarses de contestação inconsequente: um equilíbrio abso-lutamente paralisante.

Precisamente, esta é uma primeira dimensão, tal-vez a mais óbvia e que, sendo-o, passa facilmente despercebida, da disfuncionalidade estrutural da escola. A burocracia deixou de ser um processo de regulação numa organização complexa, e passou a ser o seu principal objetivo e uma das evidênci-as mais valorizadas nas avaliações externas. Só as-sim se poderá compreender como é possível, para se ter uma menção de excelente, exigir de um pro-fessor que use instrumentos da mesma natureza

daqueles que usou, 20, 30 ou mais anos antes, du-rante o seu estágio para ingresso na profissão. Ser excelente é não ter evoluído, ou, pelo menos, não mostrar o quanto a experiência o enriqueceu e o quanto ela o dispensa de formulários de treino para principiantes ou iniciados. Aplicado este cri-tério a um pianista, ser um pianista excelente se-ria ocultar a sua competência para interpretar uma obra de Chopin e demonstrar que ainda sa-bia tocar as escalas que lhe serviram de treino ini-cial e que, de vez em quando, ainda precisa de usar para desenferrujar os dedos, ou quando a ins-piração lhe foge.

Ora, esta burocracia estritamente normativa, sem substância, sem outro objetivo que não seja o de promover o conformismo, corresponde justamen-te ao risco desde há muito tempo temido de que se viesse a transformar em alguma variante, ain-da desconhecida, mas reconhecidamente virulen-ta, de desumanidade. A disfuncionalidade da esco-la é, então, numa primeira abordagem, a sua desu-manidade.

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Num contexto ritualizado, os comportamentos in-cómodos são, por um lado, mais facilmente dete-táveis, e, por outro lado, mais frequentes, pela fal-ta de sentido da própria vida no interior da organi-zação. O aumento da frequência de comportamen-tos de difícil gestão e a facilidade da sua deteção nos alunos acabam por se potenciar mutuamente, originando uma espiral de problemas que nem o bom senso, por vezes, consegue superar.

Chegados aqui, é oportuno formular uma primei-ra conclusão: o contexto escolar sobrevive mal à gestão do conflito que lhe é próprio, o de conser-var inovando, mas o núcleo central do seu proble-ma encontra-se sobretudo na disfuncionalidade da organização, espartilhada num conflito insaná-vel entre o individualismo e a burocracia, entre a destruição das memórias e das histórias de vida e a formação de pessoas, entre a forma sem subs-tância e o ideal de bem fazer. O bem que a escola possa fazer não pode ficar no domínio das inten-ções e da justificação simples do mal-estar que gera em alunos e professores: a ideia de que é por bem que a escola faz o mal é uma justificação que

só serve para adormecer crianças. A generaliza-ção de uma postura desorganizada dos alunos na sala de aula é só a manifestação menos grave, por-que visível e denunciadora do mal-estar, da dis-funcionalidade da escola.

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SECÇÃO 3

A Estrutura Disfuncional

Estabelecida uma burocracia que se tem a si mes-ma como o principal objetivo mensurável e susce-tível de se afirmar como evidência, o aparelho de gestão do quotidiano da escola, a nomenclatura, ajusta-se, em termos estruturais, à irracionalida-de daquilo mesmo que lhe dá origem e sustento.

A primeira e mais visível consequência é a frag-mentação das estruturas de gestão do quotidiano, começando pela pulverização do próprio núcleo de toda atividade escolar e pela distribuição dos estilhaços por um conjunto muito vasto de estru-turas compensatórias. A unidade funcional da es-cola, isto é, o conjunto formado pelos grupos de professores e pelos seus alunos perde relevância

prática e adquire um estatuto seráfico, de persis-tente homenageado pelos serviços prestados, ago-ra às portas da morte. Essa perda de relevância prática tem origem em dois processos antagóni-cos, mas que se potenciam mutuamente:

๏ A conservação do conceito de “turma” e de “conselho de turma”: estes conceitos fo-ram mantidos nas condições de um passado que, felizmente, não voltará, e já não respon-dem, nem bem nem mal, às características do nosso tempo. Na verdade, se o conselho de tur-ma corresponde a uma unidade estabilizada, do lado da componente que diz respeito aos alu-nos, já na componente dos professores ela reve-la-se instável, na justa medida em que fazem parte de mais 3, 4 ou cinco unidades do mesmo género. Por outras palavras, aquilo que é a uni-dade funcional para os alunos não o é para os professores. Por outro lado, a unidade funcio-nal estável para os professores - o departamen-to curricular ou o grupo disciplinar (já falare-mos deste assunto) - não é sequer uma unida-de para os alunos, como é bom de ver e fácil de

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aceitar. A escola não dispõe, por isso, de uma unidade que congregue um conjunto de profes-sores e um conjunto de alunos, devidamente es-tabilizada e duradoura, que seja capaz de con-duzir a bom termo um projeto comum, seja um projeto curricular de turma, ou outro qualquer. Cada conjunto de alunos pode ser envolvido num projeto comum, mas o conjunto de proje-tos não reúne equipas sólidas de professores e alunos. A componente dos professores, por si só, pode ser sólida, a componente dos alunos, por si só, também é, mas a reunião das duas não é, porque pulveriza as atividades dos pro-fessores por um conjunto de turmas que, no seu conjunto, não constituem uma unidade.

๏ A adição das equipas educativas sem al-teração do conceito de turma: era bom de ver que o conceito de turma não era suscetível de se constituir numa unidade, capaz de ser o combustível, a energia, e o motor do projeto educativo da escola ou do plano anual de ativi-dades. Em honra desse reconhecimento, cui-dou-se de criar as equipas educativas. Esta é,

de facto, uma boa ideia, só que, não tendo sido feita a rutura com a estrutura que as equipas educativas deveriam substituir, foram manti-das as turmas e acrescentadas as equipas educa-tivas. Ora, esta sobreposição constitui uma ou-tra grave disfunção das estruturas escolares. Com efeito, considerar a turma como unidade de base, ou considerar como unidade de base a equipa educativa, correspondem a modelos de funcionamento que, nem à custa de muito boa vontade dos professores, conseguem subsistir em simultâneo. A convivência destas duas es-truturas, independentemente das vontades in-dividuais, conduz à auto-desvalorização mú-tua.

Muitos podem ver, nesta disfunção, uma simples irracionalidade, como muitas das que governam a nossa vida do quotidiano, sem outra consequên-cia que não seja a de duplicar atividades e tarefas, uma consequência que, no final de contas, até po-deria ser vantajosa, tendo em conta os benefícios da redundância nos processos de refinamento de

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competências. Mas as consequências, sendo irraci-onais, são, como convém, racionalizadas através da multiplicação de mecanismos de burocratiza-ção ritualista, com efeitos muito perniciosos, quer na promoção das aprendizagens, quer no estabele-cimento de um estilo de vida na escola - de uma disciplina - que gere consensos e bem-estar nos professores e nos alunos.

Assim, sendo detetados problemas de aprendiza-gem em alguns alunos, assunto que, na esmagado-ra maioria dos casos, deveria ser resolvido no qua-dro da acção da equipa educativa sem necessida-de de intervenção externa, o que acontece é que esses alunos são encaminhados para uma outra equipa, de sala de estudo, de apoio educativo, para superarem as suas dificuldades. Desta op-ção, resulta, entre outras coisas, a imperativa ne-cessidade de elaborar relatórios periódicos para articular aquilo que nunca deveria ter sido desarti-culado. A distribuição de tarefas, entre os profes-sores das equipas educativas, para não ser neces-sário “articular” aquilo que se “desarticulou”, de-veria contemplar esse tipo de respostas.

O mesmo fenómeno de complicação do que seria simples, se o modelo de funcionamento da escola não fosse contraditório na sua própria equação, é visível no processo de substituição de professores em falta. Um assunto desta natureza, resolvido no interior da equipa educativa, nem carecia de ne-nhuma formalidade, à exceção da comunicação da falta do professor em causa. Não sendo assim, cria-se uma nova equipa de coordenação, inven-tam-se formulários, grelhas, mecanismos de veri-ficação do cumprimento das tarefas, fazem-se ajustamentos de horários de professores avulsos, provocam-se irritações e por aí fora, só para coor-denar o processo de substituição dos professores.

Começa, espero eu, a ficar clara a indisciplina, isto é, a falta de qualidade de vida que, por esta via é gerada na escola.

Mas o funcionamento da escola fica ainda mais complicado, porque a gestão dos comportamen-tos difíceis é levada a cabo dentro do mesmo en-quadramento disfuncional. A equipa educativa, que deveria estar concentrada quase exclusiva-mente nas atividades com os alunos, seria a estru-

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tura que disporia dos meios e da competência para gerir a esmagadora maioria das situações de indisciplina. A conflitualidade interna do modelo de funcionamento da escola atribui essa tarefa ao diretor de turma e ao conselho de turma, que, como se viu, tem condições para detetar o proble-ma, mas não tem espaço de manobra para o supe-rar. É que, para além de fazerem parte de um de-terminado conselho de turma, o seu diretor e os restantes professores ainda fazem parte de um ou-tro conjunto de equipas de trabalho que esgotam completamente as suas disponibilidades7 e que são concebidas para isso mesmo, para ocupar todo o tempo disponível de cada um. Daqui resul-ta que, mesmo comportamentos que, embora ca-reçam de retificação, não demonstram complexi-dade que incapacite uma pessoa de bom senso a encontrar uma ou duas soluções adequadas, são motivo para encaminhar alunos para uma outra equipa paralela, para que os resolva, como se isso fosse possível. Deste modo, aqueles alunos, cujos comportamentos solicitam uma intervenção mais cuidadosa, acabam por se sentir mais “em roda li-

vre” do que o que seria desejável, para eles e para a escola.

Analisados só estes aspetos, talvez não fosse ne-cessário insistir mais na tecla da disfuncionalida-de para que a ideia aqui transmitida ficasse clara. Só que o ambiente “indisciplinado” da escola não fica por aqui. A duplicação de tarefas, a redundân-cia paralisante, a burocracia inútil inundam todo o contexto escolar. Demonstração disto mesmo é a multiplicação incessante de equipas, de coorde-nadores e de coordenadores de coordenadores, com origem na tentativa de superar a desorganiza-ção pela quantidade de coisas a fazer e a coorde-nar e a articular. Todos os projetos - clubes, salas de estudo, apoio educativo e outros - funcionam no exterior das equipas educativas e dos conse-lhos de turma, sugando toda a energia e tempo disponível que os professores deveriam dedicar, com os mesmos ou outros projetos, aos seus pró-prios alunos, num quadro de cooperação entre si. Desta opção quase anárquica de organização esco-lar resulta uma percentagem elevadíssima de co-ordenadores, entre os professores, se contarmos

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com os diretores de turma, os coordenadores de cada projeto, os coordenadores dos coordenado-res dos projetos, os coordenadores de departa-mento curricular, os coordenadores de grupo dis-ciplinar: enfim, poucos são os professores que não coordenam alguma coisa, inflacionando o conceito de coordenação a um ponto tal, que dei-xa de ter qualquer valor, para além da eventual e ingénua satisfação de se pertencer à nomenclatu-ra. Esta generosíssima distribuição de cargos de coordenação já se teria convertido na mais acirra-da avareza, não fosse dar-se o caso de esta profu-são e diluição de responsabilidades se ter implan-tado nas escolas sem qualquer custo adicional.

Historicamente, esta tradição barata de pulveriza-ção de responsabilidades tem origem na ideia de que estar com o poder já é gratificação bastante e que, por ela, os agraciados têm de se deschapelar e ficar obrigados, de alguma forma, pelo reconhe-cimento público do seu valor simbólico. Inicial-mente, a distribuição de cargos era menor e com-pensada, não com aumentos de salários, mas com benesses no regime de trabalho. O aumento impa-

rável dos cargos levou a que os decisores políticos esquecessem a origem histórica do fenómeno e, de uma forma quase leviana, viessem a terreiro denunciar as regalias abusivas dos encarregados dos cargos. Na verdade, embora os agraciados não ganhassem nada com a situação, as ditas be-nesses custavam dinheiro. E acabaram8. Agora, as coordenações podem envolver a esmagadora maioria dos professores numa escola porque são absolutamente gratuitas, embora tenham custos na qualidade de funcionamento incalculáveis.

Um grande número de professores pode, portan-to, exercer alguma forma de coordenação, mau grado a mais do que evidente ineficácia e falta de proveito para os próprios e para a escola. No en-tanto, a ineficácia e a falta de proveito são só um problema menor face à incoerência, à indiscipli-na, à falta de respeito pela própria atividade de co-ordenação que essa pulverização gera. Com efei-to, basta pensarmos no sentido que faz um dire-tor de turma ser avaliado no seu desempenho do-cente por um dos professores do seu conselho de turma, só porque este é coordenador de departa-

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mento. Afinal qual é o papel do diretor de turma? Não será o de coordenar a atividade docente dos professores do conselho de turma? Talvez não seja prudente dar mais exemplos deste outro ní-vel de disfuncionalidade da escola, porque, de fac-to, não é minha intenção criar resistências desne-cessárias a uma perspetiva diferente sobre como a escola se deve organizar.

Todavia, parece-me importante dar relevo a uma tendência xistosa do nosso sistema educativo, que opera as suas “reformas” por acumulação de ca-madas sucessivas, talvez na esperança de que o peso das placas acabe por fazer rebentar nas pro-fundezas um qualquer poço de petróleo que, final-mente, resolva todos os problemas. Assim é com as turmas e as equipas educativas, como vimos: mantêm-se as turmas e acrescenta-se-lhes uma nova placa, as equipas educativas, para sedimen-tar bem as coisas. Ora, o mesmo acontece do ou-tro lado das equipas de trabalho, agora dos profes-sores. No tempo em que as coordenações de gru-po disciplinar correspondiam a custos sem pro-veito - as reduções dos tempos letivos - alguém se

deu conta de que, se fossem agrupados em depar-tamentos, os custos seriam reduzidos e os provei-tos ficariam como já estavam. Talvez alguns ou-tros tivessem pensado também que os departa-mentos configurariam uma reformulação na for-mação dos professores e na promoção de alguma polivalência docente. Esta ideia articulava-se me-nos mal com a outra da constituição de equipas educativas. Mas o que é que ficou de facto? Tiran-do a redução de custos e a manutenção do provei-to nulo, foi construída mais uma placa sobre aque-la que já lá estava.

Podemos não querer enfrentar o absurdo da vida da escola, mas recusarmo-nos a vê-lo, agora que está à frente dos olhos a inutilidade das “refor-mas” empreendidas, não é uma atitude que pare-ça promissora, nem do ponto de vista da qualida-de do trabalho dos professores, nem do ponto de vista do rendimento e da adesão a uma vida disci-plinada por parte dos alunos.

Sabendo da possibilidade de uma análise crua da realidade da escola poder ofender inadvertida-mente sentimentos genuínos de dedicação à pro-

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fissão docente, que, se fossem de outro tipo, pou-ca diferença me faria, é com passos miúdos e sal-tando alguns obstáculos que me fui movimentan-do nesta parte deste documento. Nem por isso se-ria honesto não denunciar esta tendência a criar, a cada vez, novas camadas de soluções mais pro-blemáticas do que razoáveis, sedimentando, a cada passo, aquilo que se devia refrescar, como sendo o último, aqui a ser referido, dos níveis de disfuncionalidade da escola.

A mudança não é a ocultação para debaixo do ta-pete dos problemas; não é mesmo a compra de um novo tapete para tapar o velho, já roto, apo-drecendo-se o novo por tapar o velho, como está acontecendo com a nossa escola.

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CAPÍTULO 2

Uma Abordagem Ecológica

Com frequência se ouve atribuir a proble-mas familiares uma boa parte da respon-sabilidade pelos comportamentos desa-justados dos alunos. Por outras palavras, admite-se, sem grandes constrangimen-tos, que um número variável, mas em todo o caso muito elevado de famílias, tendo em conta o número de alunos afeta-dos, apresenta alguma forma de disfunci-onalidade.

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UMA ABORDAGEM ECOLÓGICA

Com frequência se ouve atribuir a problemas fa-miliares uma boa parte da responsabilidade pelos comportamentos desajustados dos alunos. Por ou-tras palavras, admite-se, sem grandes constrangi-mentos, que um número variável, mas em todo o caso muito elevado de famílias, tendo em conta o número de alunos afetados, apresenta alguma for-ma de disfuncionalidade. Ora, admitindo que esta forma de pensar seja razoável, isto é, que algo es-teja a acontecer nas nossas sociedades que tenha influência bastante para gerar confusões de pa-peis e de estatutos nas estruturas familiares, pen-sar que a escola só seria abordada por um proble-ma desta envergadura pelo flanco dos alunos reti-ra a esse raciocínio qualquer legitimidade razoá-vel.

Não custa acreditar, é até muito óbvio, que a nos-sa vida em sociedade está a sofrer mutações de grande envergadura a um ritmo que dificulta ou até, muitas vezes, impede os processos de acomo-

dação e, por conseguinte, dificulta a sincronia e a sintonia de funcionamento das estruturas sociais. Com efeito, as mutações não respeitam as conve-niências sociais, nem de qualquer outra natureza, e manifestam-se, na forma e no ritmo, de modo distinto e, por vezes, conflituoso nas diferentes es-truturas sociais, isto é, nas famílias, nas empre-sas, nas escolas e por aí fora. Neste contexto, se-ria muito preocupante que a escola fosse a única instituição social poupada a essas pressões de mu-dança, ou que a forma e o ritmo, com que elas se exercem no seu interior, fossem completamente alheios ao que se passa nas famílias, nas empre-sas, nas organizações políticas, etc.

Por muito conveniente que pareça ser encontrar fora da escola todas, ou quase todas, as razões para as dificuldades no seu interior, a verdade é que, de um ponto de vista menos estreito, faz pou-co sentido separar o interior do exterior. O proble-ma que se deve colocar é outro: até que ponto a es-cola atualiza, no seu interior, as perturbações e as dificuldades que, pela natureza das coisas e pela distorção do ponto de vista, são mais facilmente

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detetáveis no seu exterior? Nós nunca nos fala-mos a nós mesmos olhos nos olhos, a não ser atra-vés de um mediador: o reflexo de um espelho ou alguma modalidade de reflexão. A escola precisa de se ver ao espelho, para não continuar a chapi-nhar água para todo o lado, para aprender a na-dar, sem molhar os transeuntes.

Uma dessas mutações sociais, ao nível dos micros-sistemas de desenvolvimento humano 9, revela-se particularmente relevante para a compreensão do problema da indisciplina, na medida em que, pre-cisamente, ela se manifesta na escola e na família, de um modo sincronizado e sintonizado.

Dois tipos de contexto, no quadro dos microssiste-mas, eram apreciados por pais e professores, ain-da que não lhes dessem estes nomes ou qualquer outro: o contexto primordial e o contexto secundá-rio. O primeiro (contexto primordial) pode, muito resumidamente, ser caracterizado como o contex-to da supervisão, das regras estabelecidas e feitas cumprir por adultos; o segundo (contexto secun-dário) corresponde ao espaço de autonomia dos humanos em desenvolvimento, aquele onde é pos-

sível testar as regras, os comandos adultos, sem supervisão, entre pares. A dinâmica entre estes dois contextos é responsável por um equilíbrio, embora instável - porque sujeito a ajustamentos em função das idades, e das características indivi-duais -, fundamental no processo do desenvolvi-mento da autonomia moral ou da auto-disciplina: por um lado, é necessário conhecer as regras, por outro lado, é necessário assumi-las como também suas.

Ora, a mutação, aqui em causa, traduz-se pela se-paração dos dois contextos, e pela redução da di-nâmica entre eles à rigidez de cada um, de forma a corresponderem cada vez mais a modelos educa-tivos distintos e cada vez menos a dois ambientes educativos igualmente importantes para a educa-ção dos mais novos, qualquer que seja o modelo. Na verdade, eles são mais importantes do que os modelos educativos, mas na nossa sociedade fo-ram reduzidos, na prática, à, pelos vistos, impera-tiva necessidade de distinguir os “bons” dos “maus” pais, a “boa” da “má” educação. Por ou-

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tras palavras, foram reduzidos à sua insignificân-cia, à sua falta de significado e sentido.

Então, “bons pais” são aqueles que reduzem dras-ticamente o acesso dos seus filhos a contextos se-cundários, e “maus pais” são aqueles outros que não conseguem estruturar contextos primordiais para os seus filhos. Do mesmo modo, a “boa esco-la” reduz o espaço de autonomia aos seus alunos, por oposição a uma ideia, mais fantasmática do que outra coisa, de uma escola sem supervisão, isto é, de uma escola não-escola.

Não nos devemos, no entanto, deixar levar pela tentação de, agora, por novas razões responsabili-zarmos o ambiente familiar por esta dicotomia malfazeja para o desenvolvimento das crianças. Na verdade, as crianças são escolarizadas muito precocemente e a sua escolarização é um dos me-canismos sociais mais poderosos de legitimação das atitudes que conduzem à eliminação dos espa-ços de autonomia, na família e, depois, em outras instituições. Digamos, para abreviar, que, com o contributo indispensável da escola, as crianças são mantidas crianças muito para além daquilo

que é aconselhado pelo seu relógio biológico. Ex-perimentar, autonomamente, regras de conduta com os seus pares, sem supervisão, ao três anos, não é seguramente a mesma coisa que começar a ter essa oportunidade aos treze, nem tem os mes-mo riscos. Não correr riscos aos três anos é segu-ramente perigoso quando for necessário corrê-los aos treze.

Se formos rigorosos, no entanto, teremos de admi-tir que as crianças, por força da sua humanidade, testam, de qualquer modo, essa autonomia na re-lação com os pares, só que o fazem nos espaços de supervisão adulta, por falta de outros. Daqui, resulta uma aprendizagem poderosa, porque es-truturada muito precocemente e de forma siste-mática: os contextos de supervisão só se distin-guem dos contextos de autonomia, pelas necessi-dades de afirmação da criança, e não pelas carac-terísticas educativas desses espaços ou momen-tos. A sala de aula transforma-se assim em mais um momento possível de realização autónoma, e sem regras adultas, das interações entre pares. Muitos alunos têm mesmo sinceras dificuldades

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em perceber por que razão os professores interfe-rem nesse processo interativo, “que não tem nada de mal”. Na verdade, corresponde a uma necessi-dade vital que não encontra, por aprendizagem, outro espaço para se realizar, mesmo que, por ve-zes, a alternativa possa estar diante dos seus olhos. Esta cegueira é uma cegueira aprendida, e, portanto, tem a vantagem de poder ser desapren-dida, só que a escola não tem as características de funcionamento que poderiam facilitar a reapren-dizagem da autonomia. Ela teme, tal como a famí-lia, os perigos, mais do que a certeza de estar a proceder mal, e até perigosamente mal. O perigo, o risco suposto é, pelos vistos, muito mais ameaça-dor e muito mais “perigoso” do que o perigo em ato, talvez, precisamente, pela ilusão do poder magnífico que é atribuído à supervisão e às regras dos adultos.

Deste modo, é fabricado um conjunto vasto de alu-nos “bem educados”, que se porta mal. A atenção, a supervisão, o interesse dos pais são prova de boa educação. Aquilo que os prejudica “são as companhias”, dito por outras palavras, a má ges-

tão que fazem das suas interações com os pares. A não ser que se pretenda destruir toda a possibili-dade de esses alunos terem “companhias”, o que seria a supervisão levada ao limite da irracionali-dade e da desumanidade, não devemos ser tão simplistas. Na verdade, parece precisarem que o espaço de autonomia seja, ele também, supervisio-nado, isto é: não sabem ser bem educados, embo-ra saibam como é que se faz.

No pólo oposto, encontramos os “mal educados”, aqueles que, por falta de condições de supervisão, tiveram de fabricar um conjunto de regras com os seus pares por conta própria. Alguns destes “até não se portam muito mal” na sala de aula, porque lhes é mais fácil distinguir o “seu próprio” espaço, do espaço gerido por adultos. O que surpreende é que, sendo “mal educados”, como é que conse-guem ser menos perturbadores do que muitos dos “bem educados”. Na verdade, por via de re-gra, não se portam tão bem quanto à primeira vis-ta possa parecer: a sua disposição vai mais no sen-tido de desvalorizar e até desprezar as tarefas e as regras desse espaço adulto, o que, normalmente,

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lhes gera limitações nos processos de adesão a ati-vidades de aprendizagem e consequentes dificul-dades escolares, de intensidade variável, mas sem-pre significativas. Se, por qualquer razão, algo os faz “portar-se mal” (adotar comportamentos per-turbadores), é este desprezo e esta desvalorização que se tornam evidentes, de uma forma que, o mais das vezes, é sentida pelos professores como extraordinariamente ofensiva. Ainda que este “portar mal” seja menos frequente do que o dos “bem educados”, a intensidade da ofensa cria a ilusão da frequência. De facto, um comportamen-to desajustado destes alunos “mal educados” pode corresponder a dez ou mais comportamen-tos desajustados, mas menos graves, dos alunos “bem educados”. Por outro lado, o grau de ofensa, sentido pelo adulto, ou o seu sentido de responsa-bilidade como educador, que sente como tarefa da sua responsabilidade impedir certos excessos, conduz à alimentação dos comportamentos desa-justados destes “mal educados”, por via da siste-mática testagem, por vezes, inconsciente, da sua capacidade para respeitar as regras de conduta,

isto é, por via da própria avaliação da consistên-cia das competências comportamentais, suposta-mente adquiridas por esses alunos.

A redução, a tentativa mesmo de destruição, da dinâmica entre contextos primordiais e contextos secundários nos microssistemas não consegue ob-ter um sucesso real e mensurável, como se depre-ende do dito nos últimos parágrafos. O que acon-tece é que as instituições educativas ficam do lado de fora dessa dinâmica, mantendo uma ideia resi-dual do que ela possa ser, para efeitos de oratória. Na verdade, ela continua, por força da humanida-de dos sujeitos, gerando uma variedade de situa-ções tão vasta quanto os sistemas interativos e di-nâmicos podem construir num processo sabida-mente aleatório. Os resultados obtidos, ainda por cima, raramente caem na tipologia atrás mencio-nada. Pelo contrário, não só são inesperados e dís-pares num tempo dado, como a sua evolução é im-previsível, desatualizando qualquer tentativa de retificação das consequências, que não tenha a co-ragem de abordar o problema pelo seu lado ecoló-gico, ou bioecológico para ser mais preciso.

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SECÇÃO 1

Implicações Educativas e Organizacinais

Não seria completamente ilegítimo pretender que os problemas decorrentes de alterações dramáticas nas di-nâmicas dos microssistemas externos - família, vizi-nhança - fossem objeto de intervenção social no senti-do da sua superação, na expectativa de que, por essa via, a escola fosse poupada a ter de os enfrentar. Talvez não seja ilegítimo, mas seria completamente absurdo. É que a escola é, também ela, um microssistema, e as interações entre microssistemas - o mesossistema - são tão dinâmicas e poderosas como as que se estabelecem ao nível de cada microssistema, já não tanto ao nível da interferência direta no comportamento individual, mas mais na forma como cada um dos microssistemas des-envolve a sua dinâmica interna. O absurdo seria cons-truir a ilusão de que a escola é, no atual contexto, o úni-

co ambiente que escapou aos problemas que gostaria de ver corrigidos fora de si, para não os ter. As famílias, as empresas, enfim, todas as restantes organizações so-ciais teriam de corrigir-se, para que a escola não preci-sasse de o fazer. Seguir este caminho seria o mesmo que trilhar uma perigosa senda que remeteria a escola para um lugar sem referências, onde o norte e o sul se misturariam, para o vazio da mais absoluta inutilidade: uma escola, tão perfeita que se afastasse das imperfei-ções do que a rodeia e lhe dá sentido, seria desejavel-mente descartável.

Apesar de tudo, faz sentido que nos questionemos so-bre o que queremos como modelo de sociedade e, sen-do assim, que reflitamos sobre se os modelos macrossis-témicos - política de trabalho, de saúde, de educação, de segurança social - não estarão a potenciar perigosa-mente a destruição dos ambientes ecológicos que julga-mos serem os ideais para a formação da juventude. É que as crianças e os jovens não “decidem”, num eventu-al congresso ou por outros meios, que vão dedicar-se a criar problemas à sociedade (ou à escola) que os rece-be, como às vezes parece, se levarmos a sério certas con-versas que nós, adultos, vamos tendo entre nós. Pelo contrário, são as crianças que, em primeira mão, so-

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frem os problemas e as disfuncionalidades da socieda-de de que se pretende que venham a fazer parte inte-grante. O sofrimento da escola é um sofrimento em se-gunda mão, já cheio de tiques e de malformações que lhe vêm do primeiro uso.

Só que uma abordagem global deste tipo, embora te-nha de estar presente na sua forma de consciência polí-tica, não pode tornar-se num obstáculo intransponível. A reflexão crítica deve, portanto, incidir mais sobre a dinâmica do que sobre os componentes, ou os indivídu-os, ou os meios de que dispõem os diferentes patama-res do sistema social. É na dinâmica que podemos en-contrar os pontos comuns que nos permitem transitar entre os diferentes níveis do sistema - micro, meso, exo, macro e cronossistema - sem cairmos na tentação reducionista dos analistas estreitos. O debate sobre os indivíduos ou os meios deve submeter-se a uma ideia de dinâmica e não o contrário10. As políticas educativas atuais são inoperantes, precisamente porque partem do pressuposto de que a manipulação dos indivíduos e dos meios vai produzir retificações nas dinâmicas. E não produz outra coisa que não seja o conformismo, a ilusão de mudança e a revolta contra essa mesma ilu-são, em resumo, um quixotismo invertido, a que alguns

mais eruditos e muito mais argutos chamam pós-mo-dernismo. Os moinhos de vento só não são castelos, são masmorras pútridas, cheias de nada ou de resíduos mal espalhados e mal varridos da modernidade, que se insinuam debaixo de tapetes rotos, para os quais já não há fio que os cosa: daí, a fragmentação de que nos fa-lam alguns pensadores contemporâneos.

Ora, o dinamismo da escola, como microssistema, é, cada vez mais, reprodutor daquilo mesmo que se pro-põe corrigir. Saber ler não é seguramente saber pedir ajuda a um professor para associar grafemas e fone-mas, a cada palavra nova que surja. Pelo contrário, é, tendo aprendido essa tarefa em 28, ou mais ou menos palavras, ser capaz de fazer o mesmo em todas as novas que surjam ou venham a ser inventadas. É mesmo não ser capaz de fazer outra coisa, ainda que o conjunto de letras agrupadas não constitua uma palavra genuína. A este processo, chama-se aprendizagem significativa, isto é, aprendizagem que se estrutura numa memória semântica praticamente indestrutível, embora sempre renovável e suscetível de aperfeiçoamento. Distingue-se este tipo de aprendizagens das aprendizagens instru-mentais, isto é, daquelas que, organizando-se sobretu-do na memória episódica, são indispensáveis para al-

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cançar as primeiras, mas formam uma estrutura frágil, sujeita a processamento intensivo nos períodos de sono, responsáveis pelos sonhos, pela criatividade, mas incapazes de sustentar-se a si mesmas. São as aprendi-zagens significativas que as sustentam no tempo, embo-ra sejam elas que, a cada momento, ajudam a organizar estas aprendizagens significativas.

Se a escola pretende ser um espaço de aprendizagem es-truturada, não pode, nem poupar-se ao trabalho de in-sistir nas aprendizagens instrumentais, nem insistir de tal modo nelas que reduza as aprendizagens significati-vas (de cariz semântico) a processamentos de informa-ção de natureza instrumental. Ora, se a aprendizagem instrumental é sobretudo aquilo que o ensino, no seu sentido mais restrito, pode assegurar, dependendo por-tanto da supervisão, a aprendizagem significativa, essa, nasce da autonomia do aprendiz, da construção do alu-no11. As aprendizagens de valores, de teorias, de concei-tos são aprendizagens de tipo semântico. Implicam, para que sejam estruturantes, a construção do sujeito aprendiz. Por outras palavras, implicam autonomia, isto é, trabalho mental sem supervisão direta e simultâ-nea. O bom aluno é aquele que adquire as aprendiza-gens por via do ensino e as organiza fora da supervisão

direta do professor. Sabe o que o professor ensina, mas para saber à sua maneira. O bom aluno é aquele que apoia a aprendizagem instrumental com trabalho autó-nomo. Para alguns deles, momentos relativamente cur-tos e assíduos de apoio à aprendizagem são o bastante, para outros esses momentos têm de ser mais longos e menos assíduos, e ainda para outros, a gestão desse apoio é variável consoante a matéria de aprendizagem. Mas nenhum dispensa essa gestão. Há ainda um núme-ro sempre crescente de alunos que, por razões que não vão agora ser aqui repetidas, precisam que a sua pró-pria autonomia seja supervisionada pelos pais ou por centros de estudo, explicadores ou outros. Na verdade, este é um dos sintomas mais evidentes de que a escola, ao longo dos vários ciclos de aprendizagem, não dá oportunidades de gestão autónoma das aprendizagens, isto é, não permite, ou impede mesmo, a aprendizagem da autonomia. É natural que, nas primeiras idades, a aprendizagem da autonomia careça de supervisão, de ensino instrumental, mas começa a ser preocupante que alunos com 12, 13 anos e, pior ainda, com idades mais avançadas ainda se sintam completamente despro-tegidos na sua autonomia.

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Ora, a escola tem de se organizar de modo a promover as aprendizagens instrumentais e as aprendizagens es-truturantes. Para isso, não pode ter o modelo rígido de funcionamento que lhe conhecemos atualmente. Diga-mos, para abreviar, que não se superam as limitações da escola criando “salas de estudo”, “estudo acompa-nhado”, “aulas de apoio”, num contexto em que tudo o que seja criado de novo acaba sempre por fortalecer a rigidez daquilo que já existe e parece insuficiente. Estas compensações só compensam aqueles alunos que, por mérito próprio, são pouco afetados pelas limitações da escola. Os outros, muitas vezes, evitam confrontar-se com a confirmação da sua incompetência que estas es-tratégias compensadoras se limitam a pôr em evidên-cia. Compensar um erro não é corrigi-lo, é tentar man-tê-lo, disfarçando-o tanto quanto possível, nem que seja só através da hiperatividade burocrática ou da hi-perventilação dos agentes compensadores. Os concei-tos de sala de estudo, de estudo acompanhado e de apoio educativo dão conta da insuficiência do modelo de escola que temos, mas não são compatíveis com ele. Em aplicação, limitam-se a acrescentar às dificuldades já existentes algumas mais. Este acrescento de dificul-dades é, apesar de tudo, invisibilizado e até camuflado

pela impossibilidade prática de essas modalidades de intervenção se universalizarem a todos os alunos. As-sim, não sendo atividades disponíveis para todos os que delas necessitam, e não sendo aproveitadas por to-dos para quem são disponibilizadas, têm o mérito de se constituírem como mais uma oportunidade para articu-lar aquilo que não deveria ter sido desarticulado, isto é, de se constituírem numa poderosa afirmação da buro-cracia auto-justificada e auto-alimentada.

Ao nível da indisciplina, sobretudo aquela que se mani-festa de baixa intensidade e de alta frequência, este mo-delo de escola pulverizado para fora das equipas educa-tivas, descentrado da sua atividade nuclear, é particu-larmente gerador de problemas e incapaz de enfrentar com sucesso aqueles outros que possam ser gerados ou potenciados no seu exterior.

Seria insensato supor sequer a possibilidade de uma or-ganização social alcançar um ponto tal de perfeição que anulasse todos os tipos de conflitualidade no seu interi-or ou na sua relação com o exterior. Não só seria insen-sato como, no limite, seria opressor e perigosamente inibidor do desenvolvimento e melhoria da própria or-ganização. Essa “perfeição” só poderia ser a mais abo-minável imperfeição. Não se tratará, aqui, portanto, de

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encontrar um modelo de organização da escola que saia em busca dessa quimérica perfeição. Pelo contrá-rio, o modelo, que aqui se pesquisa, procura, sobretu-do, ser um modelo que suporte com eficiência a dinâmi-ca da escola, não que solucione os problemas de hoje ou de amanhã, mas que se dote dos meios necessários para os superar, ao nível do seu próprio funcionamen-to.

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CAPÍTULO 3

A Proposta

O modelo de escola aqui proposto procu-ra deliberadamente ser um modelo de di-nâmica, isto é, um modelo funcional, ope-ratório, mais do que um modelo pura-mente conceptual ou abstrato.

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A PROPOSTA

O modelo de escola aqui proposto procura delibe-radamente ser um modelo de dinâmica, isto é, um modelo funcional, operatório, mais do que um modelo puramente conceptual ou abstrato. Esta opção não significa a ausência desse concei-to de escola, mas uma opção de economia, tendo em conta o propósito deste documento.

Nos capítulos anteriores, a crítica ao funciona-mento atual da escola, em resumo, aponta para a denúncia de uma dinâmica, em que os circuitos de informação e de gestão do quotidiano provo-cam “engarrafamentos”, disfunções, que, para além de criarem enormes dificuldades à direção da organização, afastam os professores, no seu tempo não letivo, para fora do centro da sua ativi-dade profissional nuclear. Com efeito, nesses tem-pos, os professores continuam, muitas vezes, a de-dicar-se a atividades com alunos, desde que não façam parte da suas turmas.

Ora, precisamente, o que aqui se propõe é uma al-teração radical deste estado de coisas. Trata-se de uma proposta que deve enformar o projeto educa-tivo da escola e traduzir-se em planos anuais de atividades que correspondam à execução anual do projeto, por um período estimado de quatro/cinco anos.

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SECÇÃO 1

Unidades de Funcionamento

As unidades de funcionamento devem aproxi-mar-se o mais possível de uma posição isomorfa da atividade nuclear da escola - ensinar e apren-der. As culturas, em cuja base linguística os con-ceitos de educar e instruir, e os de ensinar e apren-der adquirem matizes que, ou os reduzem artifici-almente um ao outro (“educado” como sinónimo de “instruído”), ou os juntam numa mesma pala-vra (“apprendre” como significando aprender e ensinar), dominam as investigações científicas so-bre estes conceitos, como é compreensível. Para evitar malentendidos, os termos “ensinar” e “aprender”, neste documento, correspondem aos

conceitos de senso comum em uso genuíno na lín-gua portuguesa.

Por outro lado, considera-se que a função educati-va do professor corresponde a uma inevitabilida-de que resulta da sua função de ensinar. Fazer apelo a essa função educativa no professor signifi-ca sobretudo fazer um apelo à tomada de consci-ência sobre essa inevitabilidade. Dito de outro modo, evitar essa tomada de consciência não tem qualquer impacto na redução da função educati-va, só a remete para a inconsciência, com todos os riscos que isso comporta. Consequentemente, ser-se bom professor implica ser-se um educador consciente, não sendo, todavia, verdade o inver-so. Nesta ordem de ideias, a componente educati-va do professor deve traduzir-se na criação de con-dições favoráveis à aprendizagem, seja no domí-nio dos conhecimentos e informações cultural-mente relevantes, seja no domínio do contexto em que ela se realiza, ao nível das condutas dos alunos e dos professores, dos materiais, da quali-dade da comunicação e por aí fora.

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Ora, em resumo, a atividade nuclear da escola, aquela que lhe dá algum sentido distintivo de ou-tras também informativas e educativas, é justa-mente a de ensinar e aprender em condi-ções favoráveis, significando, em coerência com o acima enunciado, que ela não é nunca com-pleta - na verdade, não será nada - se algum dos três elementos que a compõem (ensinar, apren-der e condições favoráveis) estiver ausente.

Discutir analiticamente cada um desses conceitos e encontrar um solução para eles, na tentativa de fundamentar previamente um modelo de funcio-namento de escola, seria uma das tais tarefas ci-clópicas que nunca estaria concluída, e, ou a solu-ção seria uma dissolução dos conceitos num ou vá-rios preconceitos, ou a busca de solução seria o seu adiamento permanente.

Por estas razões, aqui muito sinteticamente expos-tas, alimento a crença de que quaisquer que se-jam as teorias científicas, ideológicas ou outras, e sendo elas sempre provisórias, a escola deve pro-curar instaurar dentro de si mesma, através do seu modelo de funcionamento, as condições práti-

cas para responder o mais eficientemente que lhe seja possível à evolução inevitável das sociedades, fortalecendo, a cada passo, a sua atividade nucle-ar. Assim,

๏ As equipas educativas devem ser a estru-tura funcional nuclear da escola. A) Por equipa educativa entende-se um conjunto de alunos, professores e auxiliares de educação que desenvolvem, em conjunto, a atividade nu-clear da escola. Não coincide este conceito de equipa educativa com a prática atual que a iden-tifica com o grupo de professores que traba-lham com os mesmos alunos. Pelo contrário, a equipa educativa é aqui concebida como uma unidade funcional para realização de todas as tarefas que possam caber nessa atividade cen-tral da escola. B) O conceito de estrutura funci-onal nuclear corresponde, por outro lado, à base estrutural de todo o edifício organizacio-nal da escola. Na verdade, significa a sua so-breordenação face a qualquer outra estrutura: departamento curricular, grupo disciplinar, clu-bes, etc.

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๏ As equipas educativas devem ser dimen-sionadas, a partir do número de alunos a envolver em cada uma delas. Nos documentos legais reguladores do “lançamento do ano leti-vo”, surge, desde há vários anos, a indicação de que a constituição das turmas deve resultar da definição prévia das equipas educativas. Esta orientação tem sido obviamente absorvida da única forma que é possível, não lhe sendo dada qualquer relevância. Com efeito, as atuais práti-cas de formação de turmas e de organização de equipas educativas não se compaginam, de modo a viabilizar a concretização dessa orienta-ção talvez bem intencionada, mas sem nexo no atual contexto escolar. No entanto, sendo corri-gidas essas práticas, esta orientação adquire todo o sentido. Assim, as equipas devem dispor dos recursos humanos, materiais, e eventual-mente outros, que se ajustem às necessidades de, aproximadamente, 100 a 200 alunos. A for-mação de grupos de identificação mais reduzi-dos (“turmas”) é, tudo leva a crer, muito útil, mas deve resultar da constituição das equipas e

não o inverso. A formação de grupos de traba-lho (os grupos reduzidos mais importantes) deve responder, como veremos, à avaliação dos níveis de autonomia na realização das tarefas escolares, quer dos professores, quer dos alu-nos, isto é, as condições subjetivas de ensino e de aprendizagem devem ser valorizadas, mais do que as condições que resultam daquilo que cada um pensa que sabe objetivamente. Por exemplo, ser capaz de aprender, de realizar uma tarefa de aprendizagem, sem supervisão de um adulto é um critério mais seguro para or-ganização dos grupos de trabalho do que a ava-liação do que já se sabe.

๏ As equipas educativas devem ter níveis de autonomia alargados no interior da orga-nização escolar. Numa escola com um pouco mais de 1 000 alunos, podemos antever a neces-sidade de 8, 9, talvez, 10 equipas educativas. Isto corresponderia à criação de igual número de coordenações, em substituição dos atuais cerca de 50 diretores de turma12 que tal núme-ro de alunos implica. Ora, ser-se coordenador

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num quadro deste género não poderá ser um apêndice, nem sempre fácil de plantar, num vasto conjunto de outras atividades. Deve dedi-car-se por inteiro a essa tarefa, o que, de modo nenhum, implica que deixe de ter responsabili-dades letivas, antes pelo contrário. Por outro lado, admitindo a redução ou eliminação mes-mo da democracia representativa na escolha do coordenador da equipa educativa, tal como já sucede atualmente em todos os cargos de res-ponsabilidade, é vital, para a eficiência da esco-la, que seja cultivada a democracia participati-va. Assim, devendo o coordenador reportar di-retamente ao diretor da escola, sendo mesmo escolhido por ele, faz todo o sentido que o dire-tor não tenha de se envolver na gestão do quoti-diano da equipa. Pelo contrário, deve manter a distância prudente, que lhe permita intervir sensatamente, em caso de necessidade impera-tiva. A autonomia, a que aqui se faz referência, é a de elaborar e gerir os horários dos professo-res e dos alunos, de os ajustar às necessidades da equipa, de flexibilizar a gestão dos currícu-

los, de organizar atividades de enriquecimento, de apoio à aprendizagem, de retificação de con-dutas indesejadas, etc.

๏ Os coordenadores das equipas educati-vas devem constituir o principal órgão de assessoria do diretor de escola. Em coe-rência com o que é afirmado antes, o diretor deve ser, antes de tudo o mais, o gestor de últi-ma instância, não o de primeira, da atividade nuclear da escola. A sua equipa de assessores deve, portanto, formar-se a partir das unidades funcionais nucleares, assegurando-lhe os mei-os que lhe permitam exercer as suas funções, recorrendo o menos possível a informações avulsas.

๏ Devem ser criadas outras unidades fun-cionais, para além das equipas educativas. As equipas educativas devem ser estruturadas em torno do core curricular de cada ciclo de estu-dos ou de cada curso, pelo menos numa primei-ra fase de mudança. A opção por outras unida-des funcionais deve corresponder a uma afirma-ção da identidade da escola. Assim, pode ser cri-

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ada a unidade de desporto escolar, de artes vi-suais, de artes de palco. De qualquer modo, a escola deve limitar o número destas unidades a não mais de 3 ou 4 em cada ciclo de estudos.

๏ A articulação entre as Unidades Funcio-nais Nucleares e as outras Unidades Funcionais deve ser dirigida pelas equipas educativas. Por outras palavras, todos os alu-nos devem, naturalmente, ter acesso ao currícu-lo nacional e ao currículo específico da escola, através de uma gestão a ser conduzida pelas equipas educativas. São estas que se responsa-bilizam pela inscrição de cada aluno nas ativida-des adicionais, são elas que recolhem os ele-mentos relativos à participação de cada aluno nessas atividades, são elas, também, que, em última instância, procedem à avaliação de cada aluno, tendo em conta a informação recolhida.

๏ Os departamentos curriculares/grupos disciplinares devem dedicar-se exclusi-vamente à promoção da qualidade cientí-fica das disciplinas lecionadas. Todos os pro-fessores da escola devem participar em ativida-

des de aprofundamento dos seus conhecimen-tos científicos. De acordo com um plano anual, tendo em conta as afinidades científicas entre eles, os professores devem levar a cabo e parti-cipar em 1 ou 2 sessões anuais de debate cientí-fico no interior da escola. Os departamentos curriculares/grupos disciplinares não devem constituir-se em estrutura de gestão da escola, mas tão só em órgão consultivo ad-hoc, a ser ativado de acordo com as necessidades senti-das pelo diretor. Por outro lado, a sua coordena-ção deve submeter-se à conveniência da ativida-de a desenvolver: para uma sessão de debate pode ser escolhido um dos seus elementos, para a seguinte pode ser escolhido outro e, tra-tando-se de responder a uma consulta do dire-tor, pode este escolher aquele que entenda.

Em resumo, a escola organiza-se, de acordo com este modelo, em torno da sua atividade central - ensinar e aprender - e afasta das suas preocupa-ções de gestão aquilo que atualmente a dispersa por um conjunto muito vasto de outras coisas. É

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desta recentração que deve resultar a necessidade de levar a cabo outras iniciativas.

Assim, se a escola sente que o problema da indis-ciplina ultrapassa as capacidades de intervenção das equipas educativas, pode criar um pequeno grupo de professores que, escolhidos ou indica-dos pelos coordenadores das equipas educativas, executem um plano de trabalho com vista à sua superação. É importante que estes professores não percam, em razão desta nova responsabilida-de, a sua forte ligação à equipa educativa. Na ver-dade, um grupo desta natureza deve correspon-der à continuação do trabalho que é da responsa-bilidade das equipas. Pode ter origem simples-mente na cooperação entre duas ou três equipas, sem envolver toda a escola, por exemplo. O mes-mo pode acontecer com outras iniciativas, seja de aperfeiçoar o ensino da matemática, ou de promo-ver uma semana cultural. Por outras palavras, mantendo as equipas educativas a sua identidade e a sua autonomia, nada as impede de levar a cabo iniciativas que impliquem a cooperação en-tre elas. O que importa ressalvar é que a coordena-

ção dessas atividades de cooperação deve ser sem-pre da responsabilidade dos coordenadores das equipas envolvidas.

Um primeiro impacto destas alterações traduz-se numa fortíssima redução da burocracia. O atual aparelho hierárquico e funcional da escola é subs-tancialmente reduzido, quer na sua dimensão, quer nos seus patamares, quer sobretudo na sua redundância. De cerca de 72 coordenadores, numa dada escola, (contando só com os atuais di-retores de turma -DT-, diretores de curso -DC-, coordenadores de departamento - CD) reduz-se para cerca de 14 coordenadores; por outro lado, o mais importante é que as sobreposições que atual-mente existem entre DT, DC, CD são anuladas.

Está obviamente subjacente a esta proposta a ideia de que, se algo deve ser feito para reduzir a burocracia, isso deve começar pela estrutura hie-rárquica ou funcional do exercício de poder, por muito que este não ultrapasse muitas vezes uma formulação mais simbólica do que material.

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SECÇÃO 2

Aspetos Organizacionais

Neste documento, é proposta uma mudança mui-to significativa no funcionamento da escola, ten-do em vista, não só, como poderia sinalizar o tiro de partida, a superação de problemas associados à gestão da disciplina, mas também muitos ou-tros, sobretudo os que derivam de uma preocupa-ção consequente com a eficiência da escola para todos. Na verdade uma “escola eficiente só para alguns” é, pela sua própria natureza, inefici-ente, porque começa por não cumprir a sua mis-são, subjugando a sua tarefa àquilo que pensa ser capaz de fazer: até muitos alunos com dificulda-des deixariam de as ter, pelo simples facto de se-guirem o mesmo princípio. Pode uma escola des-

sas ser eficaz, no sentido de rentável do ponto de vista do dinheiro que gasta, mas será ineficiente, no sentido de a sua ação ser apreciada do ponto de vista do que deveria realizar com eficácia.

Uma das alterações sistémicas, que foi proposita-damente deixada para este momento, tem a ver com a hierarquização de valores nas nossas socie-dades ocidentais. O apelo institucional ao respei-to pelos direitos humanos, pela solidariedade, pela paz, pela educação e saúde para todos, pelo direito à habitação, pela justiça e por aí fora, su-bordina-se sistematicamente a um valor mais alto: o valor atribuído ao dinheiro13. Os direitos humanos, a educação, a paz, o combate à pobre-za, entre outros, são valores que muitos estão dis-postos a não ter em conta, se da sua valorização resultarem dificuldades financeiras ou económi-cas. A educação, assunto que nos interessa aqui, está, portanto, mais ao serviço da economia do que o inverso. Pensou-se, pelos vistos erradamen-te, que a transferência para a dimensão humana de valores anteriormente, de algum modo, despe-jados sobre nós, a partir de origens transcenden-

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tes, seria uma forma de combater eficazmente o fundamentalismo, o poder arbitrário e desumano, tradicionalmente praticado pelos agentes oficiais da transcendência. Só que, talvez por incapacida-de de transitar de um para outro modelo de ética e de política, vivemos um tempo em que uma nova divindade politeísta, arbitrária, desumana e olimpicamente desinteressada pelas pessoas, rege as nossas tábuas de valores: os mercados, seja lá o que isso for.

Ora, num contexto desta natureza, que aqui não é descrito em toda a sua violência para evitar uma derivação que fomente paixões discordantes, a es-cola deve repensar-se, de forma a não se esconder numa estufa de cultivo do civismo, da liberdade e da democracia. A escolarização destes valores, como de todos os outros, separada da vida concre-ta, só pode ter efeitos nefastos, identificando-os com algo de abstracto e só aplicável em ambien-tes transitórios e contingentes. Pelo contrário, eles devem ser parte integrante da vida da escola, para que possam, legitimamente, ser objeto de re-

flexões académicas elaboradas e conscientemente assumidas.

Nesta ordem de ideias, a organização da vida da escola, centrada, como já se percebeu, em Equi-pas Educativas agrupando alunos, professores, e auxiliares de educação, como veremos, deve ajus-tar-se aos princípios de liberdade, autonomia, res-ponsabilidade e justiça. Na verdade, este é o meu conceito de democracia que melhor se aplica a uma instituição do tipo da escola, porque apela mais à participação do que à representação.

Respeitando obviamente o core curricular nacio-nal, cada equipa deve ter um projecto próprio e autónomo, que defina:

1. O emprego do tempo e a sua gestão flexível

2. Os critérios de autonomia conducentes à reali-zação de actividades sem supervisão direta

3. A gestão do tempo de cooperação:

a. Entre alunos

b. Entre alunos e professores

c. Entre professores

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4. A cooperação com outras equipas educativas, ou unidades de funcionamento da escola

5. A participação em projectos locais, regionais e nacionais.

Deste modo, deve, para cada unidade de ensino, ficar claro o que será objeto de informação por parte dos professores e o que deve resultar da pes-quisa e estudo autónomo dos alunos. Deve tam-bém ser claro o compromisso de, através da coo-peração entre alunos e/ou entre alunos e professo-res, acompanhar aqueles que, num momento ou noutro, não demonstram possuir a autonomia ne-cessária para desenvolver a sua própria activida-de. Deve ser também definido o conjunto de ac-ções a levar a cabo, de forma a apoiar alunos com dificuldades no acesso às aprendizagens escolares e/ou na sua conduta. Esta forma de organização é compatível com a formação de grupos de dimen-são e constituição variáveis. Por exemplo, se, para lançar uma determinada unidade de ensino, o pro-fessor pode organizar sessões para 50 ou mais alu-nos (dependendo do espaço disponível), já para acompanhar os que revelam mais dificuldades, ou

orientar os mais autónomos, ou fazer sessões de aprofundamento, o professor pode trabalhar com grupos com menos de 10 alunos.

Por outro lado, a cooperação com outras equipas educativas ou unidades funcionais, com iniciati-vas locais ou nacionais, deve ser sempre subordi-nada ao projecto de cada equipa e ao seu desen-volvimento, em cada momento.

Este modelo organizacional implica que o tempo de permanência na escola de alunos, professores e auxiliares de educação de uma dada equipa seja coincidente. As faltas dos professores, por exem-plo, deixam de ser um problema para poderem ser mesmo uma oportunidade de enriquecimen-to. A gestão das faltas dos alunos e professores pode adquirir uma dimensão humanizada, com-preensiva e auto-regulada. Os processos de ensi-no e aprendizagem, podendo ser muito mais exi-gentes, em alguns casos e para alguns alunos, do que são actualmente, não terão de ser, por esse motivo, opressores. Se alguma pressão é inevitá-vel, ela deve resultar da natureza complexa do as-sunto a aprender e não da relação direta com o

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professor que, ele, deve ser sempre o que ajuda a aprender.

Por outro lado, cada equipa educativa deve dispor de um espaço próprio. É a ela que deve competir mantê-lo organizado, limpo, acessível e agradá-vel. É a ela também que compete gerir a sua ocu-pação ao longo do tempo. Haverá sempre a neces-sidade de partilhar espaços da escola, comuns a várias equipas (salas específicas, logradouro, sala de alunos, refeitório, etc.), mas a aprendizagem do estar-com-os-outros implica necessariamente a partilha de um espaço comum e exclusivo, com regras próprias conducentes à preservação do bem-estar. A diluição desta responsabilidade pela ocupação de espaços de todos e de ninguém é a pi-or forma de educar os mais novos. Por outro lado, as proibições, as limitações de ocupação dos espa-ços de sala de aula, ou outros, associadas à ausên-cia de responsabilidade identificada por atribui-ção, só conseguem constituir-se em factores que promovem a indisciplina e o mal-estar.

Vem agora a propósito dizer que cada equipa deve integrar, pelo menos, um auxiliar de edu-

cação que exerça efetivamente essa função. Fa-zendo parte do grupo de adultos, o auxiliar de educação deve ser capaz de orientar e enquadrar os alunos em muitas das suas actividades. Esta é a tarefa que esses profissionais devem realizar a tempo inteiro, em cooperação com os professores e com os alunos.

Finalmente, o coordenador da equipa deve ser o dinamizador de toda a actividade e desempenhar um papel de afastamento da burocracia e do po-der burocrático das preocupações dos elementos da sua equipa. Responde perante o diretor de es-cola e é o responsável pela avaliação do desempe-nho de todos os profissionais que constituem a equipa educativa.

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CAPÍTULO 4

Apêndice Remediativo

Não se deve esperar de mim, e por conse-guinte deste documento, que, ao nível das ideias, seja solidário, conciliador e muito menos consensual.

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Mesmo na ausência de uma política nacional re-formista, capaz de liderar um projeto da natureza daquele que é aqui muito sumariamente apresen-tado, a escola, cada escola, pode assumir estas li-nhas gerais como suas. Só que seria contraprodu-cente que um projeto desta natureza não envolves-se conscientemente todos os elementos da comu-nidade educativa. Seria contra a sua matriz que, alguma vez, alguém o impusesse aos outros.

No quadro de uma política nacional, falta aqui fa-lar da reorganização administrativa, ao nível das estruturas do poder central e local, que deveria acompanhar as mudanças propostas. No quadro de um projeto de escola, falta aqui operacionali-zar o conjunto de tarefas e debates a empreender para as implementar de forma proveitosa.

Não se deve esperar de mim, e por conseguinte deste documento, que, ao nível das ideias, seja so-lidário, conciliador e muito menos consensual. Pelo contrário. Já ao nível das atitudes e compor-tamentos, esses valores fazem parte daqueles que apreciaria que me fossem reconhecidos, tal como os aprecio nos outros. Seria, todavia, possível que

este documento fosse conciliador ou consensual, sem qualquer ofensa aos meus princípios, se tives-se assumido a tarefa de conciliar propostas ou de-bates já tidos, ou em curso. Ora, não é isso o que acontece: não só o debate sobre estes assuntos não faz parte das preocupações explícitas dos pro-fessores, como está completamente excluído do debate público.

Nestas condições, é imperativo que nenhuma das sugestões, aqui apresentadas, seja seguida sem o debate prévio que isso implica necessariamente, para que se encontrem, aí sim, as perspetivas con-ciliadoras e consensuais.

Faz, então, algum sentido que este documento, o que vai ser entregue para apreciação dos meus co-legas de Departamento Curricular, não prossiga o caminho que lhe seria mais natural, mas que em-preenda um desvio pragmático no sentido de, pro-visoriamente, encontrarmos alguns remédios que ajudem a minimizar os sintomas, e (quem sabe?) talvez, assim se encontre uma motivação adicio-nal para aprofundar a reflexão sobre a Escola.

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SECÇÃO 1

Intervenção Educativa em Problemas de Comportamento

Será adoptada, a partir de agora, uma modalida-de mais esquemática do que discursiva de apre-sentação de um modelo de intervenção educativa em problemas de comportamento. Na verdade, esta opção resulta, em grande medida, de uma vontade de economia de esforço14, reconhecendo como reconheço os limites do modelo de interven-ção, numa organização que o dificulta mais do que o pode promover. Mesmo assim, a experiên-cia diz que, utilizado de uma forma adaptada às circunstâncias, este modelo de intervenção pode dar resultados muito positivos.

Questões prévias:

✓Os comportamentos perturbadores não são com-portamentos bizarros ou estranhos à espécie hu-mana. O que melhor os distingue é a intensidade e/ou a frequência, não a sua natureza. Alguns comportamentos perturbadores são mesmo vanta-josos para o indivíduo e para a sociedade.

✓Relacionam-se sempre com características indi-viduais. Actualizam-se e afirmam-se sempre em contextos sociais. Há contextos que promovem comportamentos perturbadores. Há contextos que inibem comportamentos perturbadores.

✓Tem sentido enquadrar os comportamentos pro-blemáticos dos alunos num contexto social mais vasto do que a Escola.

✓Não tem sentido pensar ou agir como se o con-texto escolar não devesse ter condições para dei-xar de ser também uma das raízes dos problemas.

✓O contexto escolar não é menos disfuncional do que o de outras organizações sociais.

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✓O contexto escolar dispõe de meios para mais fa-cilmente superar as suas disfuncionalidades do que a maioria de outras organizações sociais.

✓O contexto escolar não consegue garantir a fun-cionalidade de outras organizações sociais, como a família.

✓O contexto escolar consegue criar um ambiente educativo mais apropriado, se assim quiser.

✓O contexto escolar não resolve os seus proble-mas, enquanto estiver à espera que outras organi-zações, como a família, resolvam os seus.

✓O contexto escolar resolve muitos dos seus pro-blemas, se se focar na sua tarefa e se apostar na criação de um ambiente organizacional adequado ao nosso tempo.

✓Um dos problemas mais graves do contexto es-colar é manter a esperança de que melhorar coi-sas erradas seja o mesmo que cometer erros pro-fissionalmente valorizados.

Para superar os aspetos disfuncionais do ambiente escolar, para além do que é dito em capí-tulos anteriores, é vital distinguir:

✓Comportamentos perturbadores que exigem cui-dados diferenciados

✓Comportamentos perturbadores associados a um ambiente de difícil gestão emocional (para professores e alunos).

Fundamentos Educacionais.

Independentemente da gravidade dos comporta-mentos devemos reconhecer que:

✓Comportamentos perturbadores de tipo seme-lhante ocorrem em quase toda a gente.

✓Mesmo os comportamentos mais extremos ser-vem algum propósito para o indivíduo (são adap-tativos).

✓Tendo diferentes propósitos, nem sempre o mes-mo comportamento reage de igual modo à mes-ma estratégia.

Princípios

✓Encorajar o comportamento ajustado e promo-ver a participação do sujeito em tarefas significati-vas.

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Page 55: Indisciplina e Disfuncionalidade

✓Nem todos os comportamentos perturbadores são prioritários numa tentativa de modificação do comportamento

✓A forma mais eficiente de reduzir um comporta-mento indesejado é substituí-lo por uma mais ajustado.

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Page 56: Indisciplina e Disfuncionalidade

SECÇÃO 2

Plano de Intervenção

Prevenção no Curto Prazo

A. Medidas ecológicas

✓As condições ambientais devem ser organizadas de modo a reduzir a probabilidade do comporta-mento indesejado

✓O aluno não deve ser confrontado com situa-ções de risco que não consiga ainda controlar

Supervisão apertada

Enquanto o aluno não for capaz de ajustar certos comportamentos, pode ser necessária uma super-visão próxima que iniba o comportamento ao seu primeiro sinal.

Consequências Imediatas

Princípio fundamental: O comportamento excessi-vo deve deixar de ser funcional para o aluno (não pode ter uma consequência imediata para o alu-no, o que não é a mesma coisa que ignorar o com-portamento). Normalmente é necessário contro-lar todo o grupo de alunos e responsabilizá-los por alimentarem com as suas reações o comporta-mento desajustado do colega.

Alternativas Ajustadas

Princípio geral: o aluno deve aprender a substitu-ir o comportamento excessivo por um mais ade-quado.

Procedimentos de modificação de compor-tamento

Gestão do reforço:

✓ Em situações de ensino formal

✓ Em outras situações, em que os comporta-mentos excessivos acontecem.

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Page 57: Indisciplina e Disfuncionalidade

Prevenção a Longo Prazo

Princípio fundamental:

Identificar padrões de dificuldades no comporta-mento, em resultado sobretudo:

✓Debilidades no controlo de impulsos

✓Défice de empatia pelos outros

✓Juízos deficientes sobre as consequências dos seus actos

Programa de formação, com colaboração da comu-nidade: alteração do estilo de vida

Passos a respeitar num Plano de Interven-ção

✓Identificação dos comportamentos excessivos prioritários para a intervenção (não mais do que 2 ou 3);

✓Descrição rigorosa dos objectivos comportamen-tais desejados;

✓Identificação das condições precisas em que o comportamento pode/não pode ocorrer

✓Gerar hipótese relativas às possíveis vantagens dos comportamentos desejados

✓Reuniões da equipa responsável para avaliação de resultados (o que se deseja/o que já se conse-guiu)

✓Elaboração/Reelaboração do plano de interven-ção

✓Identificação de procedimentos para avaliar os resultados da intervenção

Níveis de gravidade dos comportamentos:

Nível 1:

Comportamentos perigosos que colocam em risco a vida do próprio ou de outros (interven-ção urgente)

Nível 2:

✓ O comportamento prejudica a aprendizagem

✓ O comportamento pode agravar-se e tornar-se mais complicado num futuro próximo

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Page 58: Indisciplina e Disfuncionalidade

✓ O comportamento é muito incómodo para co-legas e professores

Nível 3:

✓ O comportamento excessivo reflecte um “des-vio normal”

✓ O comportamento não piora nem melhora

✓ O comportamento prejudica a integração soci-al

✓ Uma melhoria no comportamento pode ter consequências positivas imediatas em outras áreas.

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Page 59: Indisciplina e Disfuncionalidade

SECÇÃO 3

Intervenção Ecológica

Avaliação global:

Identificação dos antecedentes que ocorrem antes do comportamento problemático;

✓ Sinais do aluno

✓ Circunstâncias do contexto

Previsão do tipo e gravidade do comporta-mento:

✓Identificação das situações em que o comporta-mento é menos provável

✓Alterações ambientais

Modificações ecológicas individualizadas

✓ Factores: espaço/tempo, actividade

✓ Factores relacionados com a tarefa

✓ Alterações na posição e na postura

✓ Alterações do calendário ou sequência das ac-tividades

✓ Interrupção da resposta

Consequências e Gestão de Crises

Princípios a respeitar na gestão dos castigos:

✓As consequências punitivas devem ser aceitá-veis para qualquer aluno

✓As consequências punitivas devem ser conside-radas como próprias do ambiente em que são apli-cadas.

Orientações gerais:

✓A pessoa castigada deve saber o que deveria ter feito como alternativa ao comportamento desajus-tado

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Page 60: Indisciplina e Disfuncionalidade

✓O castigo deve ser identificado com as condi-ções objetivas (pessoas, local)

✓O castigo não deve acentuar um eventual dese-quilíbrio emocional do aluno

✓O castigo não deve gerar habituação

✓O castigo não deve potenciar outros comporta-mentos indesejáveis.

Castigos - Técnicas específicas:

Exclusão da atividade para comportamentos mui-to agressivos:

✓ Alguém deve acompanhar e orientar o aluno durante o período de exclusão

✓ O objetivo da exclusão deve ser o de o aluno aprender a utilizar o tempo de isolamento para se auto-regular e a evitar situações que ele próprio não controla.

✓ O tempo de exclusão não tem de ser longo, nem tem de coincidir com o período de uma aula.

✓ O aluno deve ser readmitido, depois de expli-citamente assegurar que se sente preparado para retomar a atividade.

✓ Períodos breves de isolamento para realiza-ção de tarefas podem ser repetidos durante al-guns dias seguidos.

Repreensão verbal: para alunos que, embora apre-sentem comportamentos desajustados, mantêm relações sociais positivas e que estão motivados para agradar aos outros.

Restrição contingente do comportamento (de cur-ta duração):

✓ É um castigo de peso médio (pode mesmo não ser identificado como castigo)

✓ Duração: curta, imediatamente a seguir ao comportamento indesejado.

Gestão das Crises:

Os procedimentos de gestão de crises não são uma intervenção, no sentido em que não é supos-to terem um impacto direto na ocorrência posteri-

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Page 61: Indisciplina e Disfuncionalidade

or do problema. O seu único objetivo é parar um comportamento que pode ser, ou já é, muito pre-judicial para o próprio ou para os outros.

Tendo em conta os antecedentes, a gestão das cri-ses deve ser, sempre que possível, preparada pelo adulto previamente. O procedimento geral envol-ve uma restrição física do aluno. Mas a gestão das crises nunca pode transformar-se num campo de batalha em que um dos elementos tem de sair ven-cedor.

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Page 62: Indisciplina e Disfuncionalidade

SECÇÃO 4

Aquisição de Comportamentos Ajustados

A. Técnicas de Reforço

Técnicas de Modificação do Comportamento:

✓ Reforço positivo

✓ Reforço negativo

Reforço positivo: aumenta a probabilidade de ocorrência de um comportamento desejado, atra-vés de uma consequência agradável.

Reforço negativo: aumenta a probabilidade de ocorrência de um comportamento desejado, atra-vés do evitamento de uma consequência desagra-dável.

Gestão dos reforços:

✓Seleção dos comportamentos prioritários (pou-cos)

✓Gestão de reforços (gestão de pontos, de fichas, etc.)

✓Evolução no tempo e adequações do programa de reforço

✓Consolidação do comportamento

✓Avaliação e autonomização

✓Generalização.

Estilo de Vida (intervenção ecológica)

Organização e gestão da vida diária do aluno ten-do em conta:

1. As pessoas

a. Elementos que

1. Fazem parte

2. Vai passar a fazer parte

3. Vai deixar de fazer parte da vida do aluno

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Page 63: Indisciplina e Disfuncionalidade

2. Coisas a que

1. Tem acesso

2. Pode deixar de ter acesso

3. Não tem acesso

4. Pode vir a ter acesso

3. Atividades que

1. Realiza

2. Vai passar a realizar

3. Vai deixar de realizar

Pressupostos:

✓Prioridades

✓Calendarização

✓Distribuição de responsabilidades

✓Definição dos espaços e tempos de autonomia

✓Organização de um plano de vida diário.

Código de Conduta

Um código de conduta deve submeter-se a um único princípio geral que deve ser explícito parta todos:

Valorização dos alunos, através da promoção da sua auto-imagem e auto-estima, e da escola.

Deve ser considerado inadequado qualquer com-portamento de professores, alunos ou funcionári-os que não respeite este princípio geral.

A gravidade dos comportamentos deve ser avalia-da em função da escala de níveis de comporta-mento desajustado, acima enunciada. Esta escala deve ser pública.

Os alunos, professores e funcionários devem co-nhecer e pôr em prática um modelo explícito de intervenção no comportamento desajustado.

A escola deve elaborar um pequeno documento em que enumera a tipificação de castigos que se situam fora de procedimentos disciplinares for-mais, como atrás se refere. Os procedimentos dis-ciplinares formais devem ser reservados para situ-

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Page 64: Indisciplina e Disfuncionalidade

ações muito graves e devem deixar de ser divulga-dos por toda a escola, restringindo-se ao foro do aluno em causa, da sua família, dos adultos envol-vidos e da direção da escola.

Em resumo, o código de conduta, se houver acor-do, pode ser constituído pelo enunciado do seu princípio geral, pela definição dos níveis de desa-justamento dos comportamentos perturbadores e pela enunciação da tipologia de medidas apresen-tadas neste documento, a saber:

“Níveis de gravidade dos comportamentos:

Nível 1:

Comportamentos perigosos que colocam em risco a vida do próprio ou de outros (inter-venção urgente)

Nível 2:

O comportamento prejudica a aprendiza-gem

O comportamento pode agravar-se e tornar-se mais complicado num futuro próximo

O comportamento é muito incómodo para co-legas e professores

Nível 3:

O comportamento excessivo reflecte um “des-vio normal”

O comportamento não piora nem melhora

O comportamento prejudica a integração so-cial

Uma melhoria no comportamento pode ter consequências positivas imediatas em outras áreas.

Princípios a respeitar na gestão dos casti-gos:

As consequências punitivas devem ser aceitáveis para qualquer aluno

As consequências punitivas devem ser considera-das como próprias do ambiente em que são apli-cadas.

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Page 65: Indisciplina e Disfuncionalidade

Orientações gerais:

A pessoa castigada deve saber o que deveria ter feito como alternativa ao comportamento desa-justado

O castigo deve ser identificado com as condições objetivas (pessoas, local)

O castigo não deve acentuar um eventual dese-quilíbrio emocional do aluno

O castigo não deve gerar habituação

O castigo não deve potenciar outros comporta-mentos indesejáveis.

Castigos - Técnicas específicas:

Exclusão da atividade para comportamentos muito agressivos:

Alguém deve acompanhar e orientar o aluno durante o período de exclusão

O objetivo da exclusão deve ser o de o aluno aprender a utilizar o tempo de isolamento para se auto-regular e a evitar situações que ele próprio não controla.

O tempo de exclusão não tem de ser longo, nem tem de coincidir com o período de uma aula.

O aluno deve ser readmitido, depois de expli-citamente assegurar que se sente preparado para retomar a atividade.

Períodos breves de isolamento para realiza-ção de tarefas podem ser repetidos durante alguns dias seguidos.

Repreensão verbal: para alunos que, embora apresentem comportamentos desajustados, man-têm relações sociais positivas e que estão motiva-dos para agradar aos outros.

Restrição contingente do comportamento (de cur-ta duração):

É um castigo de peso médio (pode mesmo não ser identificado como castigo)

Duração: curta, imediatamente a seguir ao comportamento indesejado”.

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Page 66: Indisciplina e Disfuncionalidade

O documento aqui apresentado deveria ter sido muito menos longo. Mas algo se perderia com essa restrição que não quis impor a mim mesmo. Por um lado, porque não está na minha natureza poupar argumentos, por outro lado, como já foi dito, porque o acaso fez com que me fosse neces-sário escrever algo com objetivos próximos, mas para destinatários diferentes, no mesmo período aproximado de tempo.

Embora o documento seja escrito como se não houvesse alternativa, porque assim me parece que deve ser, isso não quer dizer que ele não se

destine precisamente a gerar acordos e desacor-dos, como convém, e a encontrar consensos.

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Conclusão

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Page 67: Indisciplina e Disfuncionalidade

NOTAS FINAIS

1 Este texto é integralmente redigido sem recurso a consultas bibliográficas ou outras. Sendo escrito, sem mediação de ou-tro qualquer instrumento que não seja o meu pensamento e as teclas de um computador, não carece, portanto, do sempre erudito e bem apessoado processo de referenciação. No entan-to, isso não significa ausência de influência prévia de leituras de muitos autores e de partilha de reflexões com muita gente.

2 “A Declaração de Salamanca” e o respetivo “Enquadramento da Ação” foram subscritos por 92 governos e 15 organizações internacionais, em Junho de 1994. Estes documentos repre-sentam um consenso mundial sobre as futuras orientações da educação das crianças e jovens.

3 É bom de ver que aqui é adotado o conceito weberiano de bu-rocracia.

4 O conceito de burocracia de Gournay, no século XVIII, refe-rindo-se à acção dos funcionários dos governos, pode ser con-siderada precursora, mas não científica, uma vez que fazia mais parte de uma manifestação contestatária, do que de uma verdadeira manifestação de rigor científico, ou de procura dele.

5 a não ser que o discurso pós-moderno seja precisamente a oratória panfletária, composta de fragmentos que uma qual-quer betoneira conformista (pode até ser esta a principal tare-fa dos media) se encarregará de transformar em cimento ar-mado, em betão.

6 Não vem aqui ao caso discutir se uma organização como a escola deve assentar fundamentalmente numa democracia re-presentativa ou participativa. Para que conste, fique aqui re-gistado que defendo que a democracia representativa que ca-racterizava a escola há alguns anos atrás não responde de for-ma tão satisfatória às necessidades do nosso tempo, como po-derá responder uma democracia participativa. O que aconte-ceu foi que a democracia representativa foi completamente destruída, e, em seu lugar, ficou nada, a não ser o aumento de autoridade do diretor, para nada, se tomar consciência do ca-ráter ciclópico, gigantesco e vesgo, das pressões normalizado-ras.

7 Se não ficou claro antes, agora entende-se melhor como a componente dos professores é pulverizada e se torna instável, pouco presente, na relação pedagógica com a componente dos alunos.

8 Não vem aqui ao caso falar das remunerações que, em con-trapartida, foram instauradas de forma seletiva e bastante ge-nerosa. Com efeito, elas ajudam a compreender as opções bu-rocráticas, a que se faz referência em páginas anteriores.

9 Os conceitos de desenvolvimento ecológico, aqui utilizados, são os da Cornell University College of Human Ecology, de que Bronfenbrenner é o mais ilustre representante.

10 Por exemplo: a modernização dos edifícios escolares não de-veria ter a única pretensão de atualizar ou melhorar os meios; o projeto deveria estar de acordo com um novo modelo de fun-cionamento da escola, e deste resultariam os meios e sobretu-

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do a sua afetação. Não sendo assim, como não foi, a moderni-zação só torna ainda mais desesperante o facto de nada de fun-damental se ter alterado significativamente na vida da escola. Por outras palavras, os meios tornam-se em fins.

11 Não é que não me apetecesse, mas parece melhor evitar a polémica a respeito do construtivismo na aprendizagem, mui-to criticado por quem não conhece os seus fundamentos cientí-ficos e, sobretudo, por quem se atreve a pensar que este é um assunto, suscetível de legislação. Se confundem aprendiza-gens estruturais com aprendizagens instrumentais, como aprender a andar com o treino de marcha, então estão a falar da sua própria ideia privada de construtivismo, com a qual, pelos vistos, não concordam. O enigma é mais saber porque têm essa ideia privada, do que detetar a ignorância como fon-te renovável de disparates.

12 Numa escola com a dimensão da ESMGA, existem 60 direto-res de turma.

13 O dinheiro tornou-se num valor supremo, de tal ordem que a própria liberdade depende dele e se organiza em seu torno, e isto a tal ponto que aquela de que se fala mais insistentemen-te é a de ter e de manter todo o que é de cada um, desrespei-tando a evidência de que ninguém teria nenhum, se não vives-se em sociedade, ou, todo o que tivesse seria de uma total inu-tilidade, se não vivesse em sociedade, isto é, se não beneficias-se de um “condomínio” para o qual muitos acham que não de-vem contribuir proporcionalmente. Sendo um valor supremo, é natural que ninguém queira perder o pouco ou o muito que

tem, mesmo que dessa ganância resulte mais prejuízo do que benefício. A avareza transformou-se em generosidade. Redu-zir ou eliminar “a zona de conforto” em que vive um miserável ou um desempregado, como se diz nos dias de hoje, passou a ser a manifestação mais grandiosa de generosidade que mui-tos conseguem imaginar. É para o bem deles, dos desemprega-dos, dos miseráveis, que lhes reduzimos ainda mais os poucos meios de subsistência de que dispõem. Nunca, como nos dias de hoje, a avareza teve um nome tão pomposo. Hoje, como em tempos de má memória e de negritude nos costumes, a so-lidariedade é uma atividade de opção individual, de voluntari-ado, porque, se resultar de um desígnio de justiça social, será roubo.

14 Pode mesmo chamar-se “uma certa forma de preguiça”

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