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Jpo o nosso governo - cap 01

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João Pacheco de Oliveira. "O Nosso Governo" - cap 01

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ISBN 85-279-0080-7

Editora Marco Zeroem co-edi~io com 0

Conselho Naclonal de DesenvolvimentoCientffico e Tecnol6gico

"0 Nosso Governo"Os Ticuna e 0 Regime Tutelar

Joao Pacheco de Oliveira Filho

MCT·CNPq

Bibliografia.ISBN 85-279-0080-1

CDD-9S0.)-980.5

Indices para callilogo slslemtihco.l. Indices: Brasil: AciD protecioniata do Estade 980.52. tndios ; Brasil: PoLitico governamental 980.53. tndios : Brasil; Tutela governament.l 980.54. Tucunas : Indios: t\l:tirica do Sui 980.3

Oli~~i~;S~~l:~~e;~~~ ~a~~e~~c~:; C 0 regime tutelar!Joao Pacheco de Oliveira Flthp. -- Sao Paulo; MarcoZero; [Brasilia, DF) : MCT/CNPq. 1988.

052n

Dados de Calatoga~iio n8 PubllcB~jQ (CIP) lntarnaclonsl

(C~mara Brasll.r," do Llvro, SP, ernUJ

88-212)

Editores: Maria Jose Silveira, Felipe Jose Lindoso, Marcio SouzaRevisor responsaveL: Adalberto de Oliveira Couto

Capa de Jorge CassoL com desenho de Pedro lnacio Pinheiro, NgematUcu,Capitao-GeraL dos Ticuna. Mostra 0 demonio Ucae sendo vencido por Yoi ao

atacar 0 Lugar de reclusao de uma mOfa nova, na casa de Ngutapa. A cenaremonta aos tempo dos Maguta, onde todos os homens eram imortais, e ocorre

no territorio sagrado do Ewaie, nas cabeceiras do 19arapi Sao Jeronimo.

Copyright by © J030 Pacheco de Oliveira F2Direitos para publica~ao adquiridos pela Editora Marco Zero, R. Inacio Pereira

da Rocha, 273, CEP. 05432, Sao Paulo, SP, Telefone: (Oil) 815-0093.

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o Autor

Joao Pacheco de Oliveira Filho eantrop6logo, Professor Adjunto deEtnologia d.o Programa de, Pos-Graduacao em Antropologia Social doMuseu NaclOnai (UFRJ). E autor de vanos artigos sobre etnohistoria epoli~ica .indigenist~. Organizou a coletanea Sociedad~s Indigenas eIndzgenzsmo, pubhcada pela Marco Zero em 1987. E presidente doMaguta: Centro de Documentaf;oo e Pesquisa do Alto SolimOes, entidadeque reline indios e pesquisadores em atividades de preservacao da cultura edos direitos indigenas atuais.

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Sumario

Apresenta~ao 9

Capitulo 1: Os Obstaculos ao Estudo do ContatoIntrodm;;ao 24A naturalizacao da sociedade 26A soluCao dualista 29o esquema das tres realidades culturais 32Algumas contribuicOes para a analise do contato 36Urn novo enquadrainento do social 37Algumas teorias sobre 0 contato interetnico 43

a) a nocao de "situacao colonial" 43b) a teoria da friccao interetnica 44c) a m>cao de "encapsuIamento" e seus desdobramentos 49

Para uma analise de situacao 54

Capitulo 2: A Situa~ao de SeringalIntroducao 60Hist6rico politico-administrativo e apropriacao fundiaria 62Os antigos patroes 70A especificidade da empresa seringalista na regiao 77A situacao historica de seringal 83Duas agencias de contato 86

Capitulo 3: Elementos de Organiza~ao SocialIntroducao: 0 mito de origem do povo Maguta 88Mito e historia 105Lendo, no mito, a organizacao social 107Distribuicao espacial das naf;oes 112

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A importfulcia das na,oes 116Os paptis de comando 118A destrui~l1o das malocas 122o tuxawa 125o poder do seringalista 130

Capitulo 4: 0 Reencantamento do CotidianoIntroducl1o 137Os crimes basicos 141As puniCOes coletivas 144o exfiio de Yoi 145A deteriora~o dos costumes 150

. As visOes de Ngorane 153Quempode mostrar a salvacao? 154

Capitulo 5: A Forma~ao do Campo IndigenistaIntroducl1o 161Os conflitos cqm regionais 165o florescimentodo PIT 167A politica de recuoS e compromissos 171o encadeamento 16gico das acOes 172

Capitulo 6: A Representa~ao Sobre ManuelaoA epopeia do indigenismo 176o tradicional eo novo 180Manueliio eo "govemo dos indios" 183A mensagem dos imortais 188A consciencia hist6rica 191

Capitulo 7: Os Componentes Basicos do CampoIntroducao 193A" reserva de Umariacu 195Os grupos vicinais em Umariacu 197A natureza dos grupos vicinais 204o papel de capitiio 208

Capitulo 8: 0 Exercicio da Tutela: Parametros eCompulsoes

Introducao 214o contexto regional do SPI 215As linhas de atuacao dos encarregados 218o paradoxa ideol6gico da tutela 222Os referenciais da Administracao (doutrinas, imagens epraticas) 225Criterios de eficacia para atuacao dos encarregados 229o tutor e 0 patriio 234

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Capitulo 9: 0 Regime TutelarIntrodu~ao 236A domina~o colonial em estruturas acefalas 237Breve hist6rico dos capitiies de Umariacu 239A 16gica de sucessao ao cargo de capitiio 249o controle e a coopera~o cotidiana dos indios na reserva 256

Capitulo 10: A Dimensao Oculta da TutelaIntroducao: os limites do dualismo 263A pluralidade de referenciais 265o "nosso govemo" (toru aegacu ) 267o lado <:>culto da tutela 274Yoi eo "nosso govemo" 276o desencantamento do mundo e a retomada da queda 279

Bibliografia1. Sobre os Ticuna e 0 Alto Solimoes 2812. Documentos consultados·2953. Fontes estatisticas 2984. Diciomirios 2995. Outros textos mencionados 2996. Referencias te6ricas 302

Rela~ao de Quadros Constantes no Trabalho 314

Rela~ao de Mapas Constantes no Trabalho 314

Rela~ao de Graficos Constantes no Trabalho 315

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Capitulo 1:Os Obstaculos ao Estudo do Contato

AS dados etnognificos sUpOem igualmente uma outra viagem sobre aqual mais raramente se fala: como foi constituido 0 olhar do pesquisador?Quais as teorias e conceitos que 0 levaram a selecionar certos fatos comorelevantes, fazendo silencio sobre outros? Quais os pressupostosimplicitos nas explica~oes que pretende fornecer? Aceitar falar sobre umatal viagem significa posicionar-se claramente quanto aos conceitos eteorias existentes, explicitando e fundamentando 0 esquema de analiseutilizado, comparando-o com outras altemativas existentes e justificandoas razoes de sua escol,ha. Vma curta recomenda~o de Bachelard destaea anecessidade disto: "E preciso formar a razAo da mesma maneira que epreciso formar a experiencia" (1968:147).

Tal exercicio parece mais arriscado e fecundo quando se inicia sem urnatomada de posi~oo a priori, ou sem a pretensl10 de inventariar teorias nointuito de reaflrmar a corr~o dos pr6prios conceitos. A busca mo e enlaode uma resposta, muito menos de uma paIavra-chave, mas de apreender aracionalidade de construcao de algumas tentativas de resposta e como at secristaIizam certas resisrencias ao progresso posterior da pesquisa.

As teorias frequentemente partilham de certos pressupostos, remetem apontos nodais que nl\o se esgotam na men~l\oa urn autor especifico. Taiselementos se constituem em suportes basicos de evidencias, garantia doavan~o do conhecimento. Cristalizam-se concomitantemente como urnnovelo de resistencias as novas formas de elabora~l\o conceitual,transformando-se no que a filosofia da ciencia francesa chamou de"obstaculo epistemol6gico" (Bachelard, 1970:13-22).

Em suas reflexoes sobre 0 processo de constitui~l\o do espiritocientifico, Gaston Bachelard mostra que 0 ponto de partida para pensarsobre uma nova area de conhecimento nl\o e fazer tabula rasa dos saberesanteriores, mas justamente fazer passar por um crivo critico tais

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interpreta~Oes, pelas quais teorias cientificas e tradi~oes culturaispretendiam dar conta dos fenomenos ai incluidos. "a espfrito I}l\o e demaneira alguma jovem quando se apresenta a cultura cientffica. E de fatomuito velho, pois tern a idade de seus preconceitos. Ter accsso a ciencia erem~ar espiritualmente, aceitar uma mutaeao brusca que deve contradizerurn lla5sado" (Bachelard, 1970:13-22).

E preciso evitar tratar as ideias e os conceitos cientificos do passadounicamente como fatos de uma sequencia de "descobertas" que conduzemnecessariamente na dir~l\o de urn conhecimento sempre mais perfeito eatual - como 0 faz, por exemplo, uma hist6ria da ciencia de inspir~l\o

positivista, habitualmente instaIada nos manuais da disciplina. Jamais 0analista conseguira romper com isso se continuar a enquadrar tais ideias econceitos sob 0 prisma de "erros" ou de "aproxima~oes inexatas". De fatobaseiam-se (tal como qualquer outra teoria, as atuais inclusive) em urnsistema integrado de conceitos, que permite refletir sobre certos aspectosda realidade, aop~o de dificultar a apreensl\o de oulros.

Vma viagem as tradi~oes do passado sUpOe a paciencia de ver como 0avan~o do conhecimento exige 0 ct>tabelecimento (e a posterior superacao)de certas suposi~Oes basicas. As formula~oes inovadoras nao surgemdiretamente da extra~ao, poda ou do enxerto de conceitos em urn complexo16gico e te6rico diverso daqueles em que eles se encontram, mas sUpOeuma "catarse intelectual e afetiva" em que obstaculos presentes (imagens,evidencias e pressupostos) sl\o devidamente explicitados e criticados.

A presente tentativa de estudar os fenomenos do contato enquadra-seperfeitamente na dire~ao apontada por tais cogita~oes. Antes de apresentaros principios que iraQ orientar esta pesquisa, cabe procurar apontar, aindaque de forma esquematica, alguns dos principais obstaculos existentes natradi~l\o antropologica ao estudo do contato interetnico. Dessa formaescolhi penetrar na tematica do contato nao pelo lado da atualidade ou daproximidade, selecionando estudos mms recentes ou bcneficiando linhas depesquisa desenvolvidas na propria etnologia brasileira, mas sim pela buscados principais obstaculos presentes em textos e autores consideradosc1assicos da tradicao antropologica.

Os autores evolucionistas e funcionalistas, ao definirem 0 marco dadisciplina, inauguram e prescrevem uma forma propria de olhar e pensarsobre as sociedadeshumanas. Os conceitos elaborados por eles e seusdiscipulos imediatos decorrem dessa pcrce~ao elemcntar, raramente sendoexplicitados os seus pressupostos. as obstaculos ao estudo do contatoderivam de percep~oes desse tipo, localizadas na base dos principaisquadros te6ricos de referencia existentes na antropologia, de onde precisamser desentranhadas e submetidas a uma postura critica.

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Apoiando-se na considera~oo de urn conjunto de textos e autores5 epossivel apreender a existencia na tradi~~o antropol6gica de algunsobstaculos basicos, situados em diferentes niveis de generalidade; aoestudo do contato interetnico.

A naturalizQ(;iio da sociedade

Tylor utiliza as ciencias biol6gicas como urn paradigma para 0

conhecimento dos fenomenos da cultura, propondo como tarefa basica doantrop6logo proceder a uma compara~o sistematica entre tais fenomenos,distinguindo-os uns dos outros e agrupando-os em classes, generos eespeeies.

Trata-se de acompanhar 0 paradigma que concebe 0 conhecimentocomo urn ato prim'ordialmente classificat6rio. onde urn elemento danatureza (planta, animal, ra~as humanas) deve ser inserido em uma classe,que 0 agrupa junto com outros elementos, e que se contrapoe a outrasclasses consideradas distintas. A pr6pria n~~o de tribo - indicando umasubdivi~o(desaparecida) de sociedades do passado mas encontrada tambemcontemporaneamente em povos mais atrasados e sociedades n~o-ocidentais

- e compatibilizada com esse esquema de perce~ao e entendimento6•Em decorrencia desse paradigma e que foram constituidas as unidades

basicas da analise antropol6gica. com 0 conjunto de pressupostos aiimplicitos. Conhecer uma sociedade significa proceder a urn ato deenquadramento daquele exemplar empirico em urn tipo 16gico delineadopelo investigador. A partir disso 0 caminho do conhecimento do socialaponta necessariamente para a constru~ao de tipologias, dir~ao taocriticada por alguns antrop6logos atuais (Leach. 1961; Schneider, 1966.etc.)

A primeira propriedade - a descontinuidade - resulta de uma analogia,estabelecida com fmalidades hetiristicas, entre as sociedades humanas deurn lado e as espeeies na~urais de outro. Cada sociedade diverge de outra talcomo cada espeeie se diferencia da outra, isto e, por representarem "pontosde parada na escala da evolu~oo" (Gusdorf. 1974). Urn critico atual dessatradi~ indica que 0 habito de estudar as culturas como entidades discretas

5 (Redfield, 1941 e 1966; Malinowski, 1938 e 1949· Herskovits 1941·Linton, 1940; Monica Wilson, 1936, 1938, 1945; Evan;-Prilchard &.' Fortes:1940; F?rtes, 1938; Radcli~fe-Bro~n, 1955; Schapera, 1938 e 1955; Mair,1938; Richards, 1938; Redfield, Linton &. Herskovits, 1936; Siegel et alii,1954; D?hrenwend &. Smith, 1962; Wagley &. Galvio, 1961; Galvio, 1955 e1978; Ribeiro, 1970; Narroll, 1964).6Por exemplo, 0 Grand Dictionnaire Unillersel dw XIX·"'· Siecle menciona .aolado de outr.. raizes e significados, a acep~io de triho como "divisio de ~mafam~a de a~n1ais ou plantas" (t. 17, 2° suplemento, p'g. 484). Neste quadro an~ao de tn~ pas~a a fa.zer parte de ~m conjunto 16gico - lipos, classes,ordens, famili.., tnhos, generos e especles - onde figura como urn quintopatamar clusificlit6rio.

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entrava a discussao te6rica sobre as fronteiras etnicas de cada sistema(Barth, 1969:04), paralisando tambem a investiga~~o das interconexoesque cada cultura mantem com as culturas circunvizinhas.

A segunda propriedade diz respeito amodalidade de abstra~ que serapraticada na analise social. 0 estudo de uma pessoa ou institui~aocoletivarequer nao a totalidade de tra~os ou padroes ali presentes, mas simdistinguir aspectos que nao ~o exclusivamente de tal ou tal individuo,mas que se repetem em tOOos os integrantes de urn mesmo genero. Arecorrencia de alguns desses elementos permitinl ao analista classificaresses trac;os ou padroes em tipicos ou contingentes, os primeiros passandoa ser organizados em termos de estruturas e submetidos a uma analisecientifica, enquanto os segundos soo vistos como a dimens~o empirica,singular e inexplicavel de qualquer ser ou aconteeimento.

Uma terceira propriedade reporta-se as condi~oes que propiciam aabstra~ao. A defini~ao cientifica de uma entidade social deve ser feitaeXclusivamente em fun~ao das caracteristicas morfol6gicas ou funcionaisque essa apresenta, enquadrando toda tentativa de, contextualizac;ao comouma marcha inutil no sentido de'r'eforc;ar as singularidades de cadafato.Nao importa muito saber se as culturas est1io ou nlio concretamente emestado de relativo isolamento, e preciso compreender que as regras deconstru~ao analitica tornam efetivamente impossivel pensar 0

relacionamento entre culturas como umfato teOrico.Essas propriedades atribuidas as unidades da analise social se

cristalizam e operam na pnitica cotidiana do antrop6logo atraves de urnconjunto de metaforas que contem fortes valora~oes. Uma das imagenspreferidas por antrop6logos funcionalistas e estruturalistas para explicar 0

foco central de seu trabalho e afirmar que se ocupam de urn' estudo"intemo" de uma sociedade, contrastando essa enfase com outros autoresque se fixariam mais nos aspectos "externos" (como, por exemplo, asrela~oes de domina~ao/subordina~~oa outras sociedades ou os processos deajustamento daquela sociedade ao meio ambiente em que se situa).

Considerando a hist6ria das ciencias fisicas, Bachelard ja haviamostrado como a "paixao pela interioridade" se constituia em uma dasformas privilegiadas pelas quais as fantasias (elaboradas com base nosenso comurn) penetravam no discurso cientifico, aprisionando-o eobstaculizando sua racionalidade7. Varias imagens podem ser utilizadasdentro dessa linha, como 0 par interno/externo, a classifica~ao deobserva~oescomo "interiores"!'exteriores", "intrinsecas" ou "extrinsecas"etc. E importante notar que em todos esses casos 0 uso de uma imagem ­em aparencia sO descritiva - ja traz consigo conota~oes que justificam evalorizam deuma forma diferencial tal ou tal tipo de pesquisa, exercendo

:"0 ~ilO do i~leril?r ~,u,m dos pr?cessos fundamentai~ d~ pensam~ntom~onsclenle que e mals dlficil de exorClZar. A nosso ver, a mlenonza~ao e dorelDO dos sonh,os (.,.), contadores de hist6rias, crian~as e alquimistas vao aocentro das COisas; tomam posse das coisas, creem nas luzes da intui~ao quenos instala no cora~ao do real..." (Bachelard, 1970: 101-2).

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portanto uma clara normatividade em relayno a forma de conduzir umainvestigayno de Campo ou de como ler e avaliar seus resultados.

PressuposiyOes que possuem uma funyoo ideol6gica similar podem serencontradas em outras imagens. Por meio de urn conjunto de imagenscontrastantes, 0 antrop6logo funcionalista e estruturalista freqiientementedesqualifica qualquer 6tica de apreensOO de fen6menos sociais que escape asua pr6pria ortodoxia. Constitui uma rotina a disposiyno de temas ecapitulos nas monografias tradicionais, sendo de praxe distinguir umaparte puramente "empirica" - onde sao fomecidas informayOes sobre ahist6ria do grupo estudado, suas relayOes com outros grupos ou com 0

meio ambiente, algumas vezes abrangendo taml>em dados demogrMicos eestatisticos - da parte propriamente "te6rica" - onde e apresentada aorganizayao social, os rituais e a cosmologia. Em textos com intenyoesanaliticas encontra-se tambern usualmente uma oposiyao entre asconsiderayOes de ordem estrutural, que sao ordenadas e que possuem umvalor explicativo, e as de ordem hist6rica, onde os acontecimentos saofatos singulares, nao passiveis de uma explicayao cientifica, figurando norelato somente na medida em que interferem no funcionamento dasestruturas.

Apoiando-se nessas imagens e em suas conotayOes, se desenvolve umadesvaloriza~iio teorica do estudo do contato interetnico, que passa enta~ aser justificado por fatores de ordem pragmatica. Partindo do pressuposto deque sua razao de ser e servir a utilidades praticas, as investigayOes sobre 0

contato freqiientemente se autolimitam, buscando urn conhecimentoutiliwio que Bachelard ja havia apontado como urn dos principaisobstaculos ao conhecimento cientifico (Bachelard, 1970:66). Muitostrabalhos que incidem sobre 0 contato interetnico incorporam claramentetais preconceitos, conscientemente reduzindo-se a condiyao de merosfomecedores de dados empiricos nao organizados ou de textos cuja linha deordenayao basica e avaliar Uustificando ou criticando) uma determinadapolitica de colonizayao.8

8 A oposi~iio entre essa fun~iio (que Malinowski ja classi~icava coJ!lo"practical anthropology") e a realiza~ao .de uma "vcrdadelTa pesq~l~a

antropol6gica" aparece, de forma bastante dueta. por exemplo, no prefaclOque,~' Fortes e E.E. Evans-Pritchard (\940) redigem ao _class~,co. fl:fri,~anPoll/lcal Systems, observando que por suas preocupa~ocs teoTlcas e"academicas" os autores que contribuem para 0 livro cingem sua aten~ao aofuncionamento dos sistemas politicos nativos. deixando de lado C? fato dapresen~a colonial, mais significativa para trabalhos e pesqulsas ,comfinalidades "administrativas".

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A solW;tio dualista

Equase wna constante que as ob~ayoes ~ue preCed~m uma d~riyaoou analise de uma situayao de contato mteretnlco caractenzem 0 fenomeno.como muito complexo. Enfrentar essa dificuldade remete sempre 0

estudioso a tentar adequar tal fato ao seu modelo analiti~o, reduzin~o.e

decompondo essa complexidade excessiva em u~ldades S?CI~IS

convencionais. Duas altemativas se apresentam para ISSO, a pnmeIraapelando para uma concepyao evolucionista da hi~t6ria, a ~e~undaprocedendo a uma decomposiyno do fen6rneno com fmalidade heuriStIcas.

Quando a concepyao do contato com urn fenomen? comp6sito edirigida por uma perspectiva evolucionista sur~e habItualmente urn'dualismo que caracteriza grande parte ~as peSqUlSas sobrecon~to. Associedades que estao concretamente em mterayao (europeus e~ afncanos,brancos e indios) nao sao vistas meramente como contemporaneas, massao dispostas pelo analista ao tonga de uma escala evol~tiva, onde estaorepresentados os diferentes graus de progresso da humamdade. Em funyaodessa ope~oo te6rica que atribui graus distintos de progresso a ca~ umadas sociedades em interayno, a cultura do contato passa a ser descn.ta emtermos de contraste entre instituiyOes e costumes mais "modemos" (IStO e,que derivam da sociedade mais avany.ada) e i~sti.tuiyoes e costumes"tradicionais" (isto e, que derivam das SOCledadeS tnbais). . .

A descriyao do fenomeno do contato passa. a se~ felta ~r ":lelO dolegado que 0 evolucionismo deixou para a soclologla funclOnah~~, ouseja, urn conjunto de variaveis pelas quais, esta conduz ~ a~ahse eestabelece as tipologias dos sistemas sociais. E ? caso de .VarIaV~IS comohomogeneidade x heterogeneidade, indiferencla~ao. x dlfere~cla.yaO defunyOes, ausencia x presenya de instituiyoes especlahzadas, atnbUl~ao destatus por prescriyao x atribuiyoo de status por escolha, co~tato drreto ecotidiano entre todos os membros da comuilidade x'compartlmentalyoo davida social, rela~Oes pessoais x impessoalidade d(~.s relacionmt,lentos,importAncia dos vinculos de sangue e pare.ntesco x. e~f~ nos v~nculoseconomicos formas extensas de falJlihas x famlhas atomlzadas,predominandia do sagrado x seculariza~no progressiva da vi~ ~.ial etc.Urn exemplo concreto da utilizayao de algumas dessas vanavelS paraanalise do contato e da mudanya social aparece na classica monografia deRedfield (1941) sobre os Maya da peninsula do Yucatan.

Os conceitos que resultam desse tipo de analise sublinham fortementeos aspectos culturais definindo cada sociedade como urn conglomerado detrayos de cultura e 0 'processo de mudan~ como a transmissOO e acei~oode padrlks isolados. Conceitos como os de acultura~ao (H~rskQvlts,

Linton e outros) e de assimilayao (Znaniecki, R. Park e D. Pierson) seconstituem em instrumentos basicos de reflexao, instituindo como viaprivilegiada de abordagem aquelas sociedades a tematica te6~ca da mudan~cultural. Os elementos da cultura dos grupos em IDtera~ao sno

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dicotomizados e rapidamente absorvidos a oposi~llo de tradicional xmodemo.

Alguns autores importantes procuram destacar que M uma d~aodupla no feoomeno das trocas culturais, sendo incorreto do ponto de vistacientifico pretender estabelecer previamente 0 sentido que tomam osprocessos de transferencia e emprestimo cultural. Assim, a aculturaliao foidefinida como estudo dos fenomenos que resultam quando grupos deindividuos, dotados de culturas diferentes, entram em contato diretoepermanente, dai decorrendo uma mudan~a nos padrres culturais dessesgrupos (Redfield, Linton & Herskovits, 1936:149).

A esfera cientifica da investiga\(llo seria, portanto, focalizar as trocasculturais resultantes do contato entre dois povos, sem restringir 0 estudodo processo de aculturaliao a apenas urn dos lados e sem estabelecerinferencias sobre 0 sentido geral da mudan~a. Varias pesquisas realizadasno Brasil sob a 6tica da acultura~o abordam nao somente as modificaliOessofridas pelas culturas indigenas em contato com 0 branco, mas tambemas aquisi~res tecno16gicas, de costumes ou de crenlias, que a populaliaoregional realizou de elementos da cultura indigena. Assim e que urnchissico estudo de Eduardo Galvao (Santos e Visagens, 1955) mostrajustamente a aculturaliao sofrida pelo caboclo amazonico em contato comas culturas indigenas. Abordando 0 caso dos Tenetehara, grupo indigenaque esUl em contato com 0 branco por mais de tres 8&:ulos, Wagley eGalvao observam que a lenta absor~ de padraes indigenas pelos regionaisfoi conduzindo a uma condiliao de saturaliao, quando se esgotou a sua"capacidade de assimilaliao" dos tra\(os culturais indigenas (Galvao, [1953]1978:128).

Quando aplicada a uma situa~o colonial, a n<~llo de trocas culturais,com as aquisiliQeS e empreslimos sendo vistos como fatos bilaterais, podeocultar 0 fenomeno da dominaf;iio, pulverizando-o em cadeias detransmissao que operam nos dois sentidos9. Dessa forma os estudos deaculturaliao tiveram uma aplicaf;iio ideol6gica bem clara, com 0 seU modode abordagem diluindo a quesLao de quem era 0 grupo beneficiario de urnatroca cultural. Omitiam tambem a capacidade diferencial de cada grupo paradefinir as suas pr6prias necessidades elechar as barreiras Ii importa(;iio decostumes, simbolos e tecnologias. Deixavam ainda de estabelecer escalasde importancia para essas trocas, tendo em vista as conseqiiencias queteriam sobre a organizaliao social e a cultura do povo receptor.

Amedida que os autores chegam a ultrapassar as minuciosas amilisesconcretas, a aparente neutralidade da postura cientifica submerge, vindo atona urn instrumental te6rico e generalizaliQes marcadamente unilaterais earbitrarias. Por mais que especificidades locais prevale\(am por periodoslimitados ou surjam combinalires singulares entre fatores modernos e

9Uma tentativa de refletir sOOre tais fenBmenos aparece em Redfield, Linton &Herskovits, 1936,. por meio da variavel .descritiv.a suj~i~io x do!!:,inancia;porcm em exposI~oes de metodo postenores (vide Siegel et aln, 1954;Dohrcnwend & Smith, 1962) essa e abandonada.

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tradicionais devido a circunstancias especificas, para os te6ricos dessaperspectiva a mudanf;a cultural possui urna diref;iio gerai e unica.Acoexistencia e 0 relacionamento entre grupos e culturas e vistovirtualmente como uma anomalia que tende a ser superada a tonga prazo,impondo-se os fatores modemizantes e operando-se a dissemina\(ao dascaracteristicas da sociedade industrial ocidental por todas as partes do

·mundo.Em urn estudo sobre muitos aspectos exemplar, Wachtel observa que

os estudos de acultura\(ao padecem de urn "pecado original": focalizandosociedades que disprem de forlia essencialmente desigual, 0 termo deacultura~ se baseia em uma "hipoteca hist6rica de supremacia" e am~atrazer consigo a velha marca do eurocentrismo (1971:25). Isso favorece aque a descrif;iio do contato siga uma historiografia exclusivamenteociden/ai, sem incorporar a visiio dos indios (1971:22). Outros problemaste6ricos igualmente serios tambem ocorrem. Para escapar afragmentalillodas culturas (procedida pelo difusionismo), os autores vinculados aanalisede aculturalil10 chamam a atenliao para as fases (graus, etapas) daaculturalil10 ou para 0 resultado final do processo (sincretismo,assimilalil1o, rejeilil1o). Assim, conclui este autor, tal abordagem"inviabiliza a analise do proprio contato em sua singularidade e unidade. Eindaga: "(... ) 0 que vern a ser do proprio processo? Onde ficam ascscolhas, os conflitos, as crialiQeS?" (Wachtel, 1971:26).

Os autores que se serviram dessa perspectiva para estudar os gruposindfgenas brasileiros sempre esbarraram em dificuldades para definir osllmites da condiliao de indio. A preocupaliao dominante era mostrar aprogressiva descaracterizaliao cultural daquelas sociedadese a absor~o dercnlias e costumes procedentes do branco (vide Schaden, 1969). 0squema te6rico utilizado fez com que alguns descrevessem 0 processo de

mudanlia cultural como inexonivel, prevendo como bern pr6xima aompleta assimilaliao de urn grupo etnico pelo contexto e pela culturagional. "0 processo de transforma\(ao dos Tenetehara em caboclos estani

m vias de se completar no espalio de uma gera~ao ou pouco mais"Wagley & Galvllo, 1961:185). Mirmalires mais nuanliadas podem serncontradas no mesmo texto (vide pag. 30 e principalmente Galvoo pag.

12), que coerentemente resulta de urn programa de estudos de aculturalioodirigido por Ralph Linton.10

lOA discussio sobre assimila~io acaba retomando sobre suas "conclusoesanteriores, reformulando as previsOes apresentadas na monoBrafia: "Somente

eXJ;>Criencia que adquirimos no Servi~o de Prote~io aos Indios, onde nosamiliarizamos com uma variedade de situa~oes de contato e assimila~io de

llropos indigenas, nos permitiu uma perspectiva mais correta. ~ bern possivelque 08 Tenetehara em certo ponto de sua transi~io tomem por outra

Itemativa que a de aderir a cultura cabocla ..... (Galvio, 1978:131). Cabeobservar porem que a pressuposi~io de assimila~o, implicita nas analises dea IIltura~io. sofre uma critica fundamentada exclusivamente no primado daI r4/ica e em experiencias extra-academicas, disso resultando a ascensio dan yio de integra~io ao plano central das invelliga~oes, subsistindo nontanto todo 0 quadro Teferencial.

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A penta (tida como irreversivel) de tra~os culturais pr6prios pode levarurn grupo indigena a condi~ao de "indio-generico", onde as peculiaridadesde sua cultura ja desaparec~ramno processo de integra~ao, mas subsisteurn sentimento de ser diferente, decorrente tanto da persistencia dopreconceito dos brancoscontra os indios, mesti~os ou os seus.remanescentes, quanto de a altemativa de incorporacao a sociedade nacionals6 ser possivel em seus estratos inferiores. Essas as razoes pelas quais 0

processo de assimila~ao nao se completaria, ainda que fosse muito alto 0grau de integra~ao do indio na sociedade nacional e que a acultura~o 0

privasse inteiramente de seu quadro referencial trndicional (Ribeiro, 1957 e1970).

Em urn texto de carater critico, Da Matta volta-se contra essa"antrop%gia de integra~iio, onde 0 lado do indio deixava sempre de ser .considerado e 0 ponto de partida era sistematicarnente evolucionista"(1979:25). Enquanto tal postura consideraria a sociedade brasileira(sobretudo em sua estrutura economica) como fator absolutamentedeterminante da situa~ao, os indios seriam vistos· em uma perspectivapaternalista como "objetos frageis e vulneraveis, prontos a desaparecer"(1979:26). Limitando a aten~ao a focalizar 0 grupo tribal e suas rea~oes,

ignorando-se as suas potencialidades, suas elabora~oes e sua capacidade deinterferir e reinterpretar uma situa~ao de contato, tal tipo de antropologiase enclausura em urn rigido esquema analitico. Apesar das diferen~as

te6ricas, as suas conclusoes convergem na mesma dire~ao das criticas deWachtel as teorias da acultura~ao.

o esquema das tres realidades culturais

Vma outra forma de enfrentar a complexidade do contato interetnico ecaracteriza-Io como urn fenomeno composto, que deve ser abordado demodo analitico-redutivo, focalizando as unidades menores que 0

constituem. Vma tentativa nessa dir~ao foi realizada por Malinowski(1938 e 1949) e deve ser considerada nao s6 pela posi~ao do autor nadisciplina c pela postura programatica que assumiu, mas ainda por seucarater sintomatico, explicitando pressuposi~oes, seguidas por muitosautores posteriores, em constru~oes conceituais algumas vezes dirigidasmanifestamcntc contra Malinowski.

Solidamentc ancorado no relativismo cultural e em uma sociologiafuncionalista, avesso a analises teleol6gicas na linha do evolucionismo,Malinowski procura refletir teoricamente sobre 0 contato, dissociando paraefeitos de investiga~ao as diferentes ordens de racionalidade ai existentes erepresentadas pelas culturas que estilo em urn processo concreto deintera~ao. ContrapOe-se decididamente a formula~oes como a de AudreyRichards (1938), que fala de urn "ponto zero de mudan~ social", umasitua~ao anterior a chegada dos europeus e suposta como de equilibrio na

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1

vida tribal. Essa estratcgia de pesquisa, preocupada em promover umarecons~ hist6rica do processo dem~ foi decididarnente recusadapor Malinowski, que a considera propria de uma "antropologia deantiquanos" (1938: xxx-xxxii). Para ele a tarefa que cabe ao estudioso e,ao inverso, investigar "0 que ainda sobrevive do antigo passado tradicionalde uma tribo africana (... ) pois apenas 0 que sobrevive e relevante para 0

contato nos dias presentes, e ainda capaz de desenvolvimento ouresistencia" (1938: xviii).

Ao construir a sua teoria, Malinowski marca suas discordancias emface <las anaIises culturalistas do contato, distaneiando-se inclusive da linhade estudos de acultura~ao (ainda que esses nao sejarn mencionadosdiretamente). A sua critica se dirige 80S trabalhos de Monica Hunter (1936e 1938), onde as instituiyoes se apresentam como urna "mistura deelementos parcialmente fundidos" (Hunter, 1938: lQ).:que 56 poderiam seradequadamente estudados quando decompostos em 'c'omplexos culturaisdistintos e homogeneos, ou seja, remetidos as "culturas-genitoras"("parent cultures"). Malinowski argumenta que a mudaoya cultural e arorma~o de novas realidades cufturais 0110 podem ser tratadas como 0

produto mecanico de uma mistura, de uma justaposiyao de elementosparcialmente fundidos (1938: xxi). Trata-se de "novas realidades culturaisde uma Africa ocidentallzada, que rem de ser estudadas por si mesmas"(l938:xxiv), focalizando 0 modo como elas funcionarn em seu novomeio, atravcs de mecanismos proprios, "sob pressOes e incentivosngendrados dentro de suas novas instituiyOes" (1938:xix).

Mas como realizar isso apoiando-se no metodo funcionalista?Malinowski discorda de Fortes e Schapera, que tentam evitar 0 dualismobordando 0 contato como urn fenomeno integrado, que configura axisrencia de uma cultura propria A seu ver, tal metodo se presta somente

para 0 estudo de urna cultura que tenha atingido urn estado de re/aJivoqui/ibrio, suposi~o que nao e satisfeita pela cultura do contato. AJX?Ilta a

nocessidade de novas metodos e principios de pesquisa que permitam fazerprogredir esse novo ramo da disciplina, "a antropologia do nativo emmudan~" (1938:xii).

Para Malinowski isso nao significa abandonar 0 funcionalisrno, masmplexifica-Io, tratando nao com duas culturas geradoras, nern com uma

ultura tinica (0 que ele considera ser uma postura reducionista), mas comurn esquema de tres fases onde aparecem a cultura "antiga da Africa, amportada da Europa e a Nova Cultura Comp6sita" (1938:viii). Ele afmnanfaticamente que "De fato, em cada situayao de contato cultural nos

l mos nao uma, nem mesmo duas, mas tres fases culturais coexistentes"(l938:xv). Na conduyao dessa analise, cada fase apresenta problemasdiversos e deve ser estudada por metodos diferentes, sendo necessariodistingui-Ias e focaliza-Ias separadamente, posteriormente relacionando-asumas com as outras (1938:xvi).

A intenylio de Malinowski nlio era de elaborar conceitos gerais edcmasiado abstratos, mas sim que permitissem descer ao plano da

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operacionalizayao da pesquisa. Nesse sentido ele procura definircuidadosamente essas fases, de urn lade distinguindo entre as formastradicionais, que persistern (e sao apreendidas no trabalho de campo), e asreconslrUyOCs do passado tribal; de outro lade distingue igualmente entreos costumes e instituiyocs pr6prias aos europeus na metr6pole e aquelesque sao efetivamente atualizados na vida da colonia. Quanto acultura docontato, ele explicita que por isso entende 0 fenomeno de uma mudanyaautonoma e resultante da reayao(acarretando pelo menos urndesajustamento temporario) entre as duas Outras culturas.

Propoe a conslrUyao de uma Carta ou Tabela onde as Tres RealidadesCulturais fossem Jepresentadas por colunas diversas, a cada esfera dacultura equivalendo uma linha com os contetidos que assume em cacta umadessas fases. 0 esquema toma simples evidenciar 0 que Malinowski julgaser a base da mudanya cultural - que as pressoes e adaptayoes se exercemprimordialmente para responder a determinada$necessidades, as quais eramanteriormente satisfeitas por instituiyoes hom610gas, Le., situadas namesma esfera de cultura, Assim a explicayao da substituiyao, modificayaoou fusao de instituiyoes passa necessariamerite pela busca do que elechamou de Fator da Medida Comum ("Common Measure Factor") e peladescoberta de homologias entre instituiyoes e esferas das culturas emcontato.

Procurando agora avaliar essa teoria cabe inicialmente indicar 0 quantoessas formulayoes dependem de sua teoria geral sobre a sociedade como urnconjunto de instituiyoes que cumprem funyoes sociais satisfazendo adeterminadas necessidades, estando tais insliluiyoes inter-relacionadas emurn lodo coerente e relativamente equilibrado (vide Malinowski, 1975)11.A sua teoria da mudanya se apoia justamente em uma visao (naodurkheimiana) do social e do conceito de funyao, ambas nao partilhadaspor outros antropOlogos ingleses (Radcliffe-Brown, Fortes, Schapera,Evans-Pritchard).

Silo as decorrencias disso - como a teoria das necessidades e a peculiarcompartimentayao das esferas da cultura - que propiciam a Malinowski abase para 0 entendimento dos processos efetivos de mudanya social,sempre segundo linhas homologas de transmissao e influencia. A eficaciadessa forma de iilterpretayao da mudanya exige, portanto, que 0 contatoseja visto nilo como urn fato coerente e integra<lo (como pretendiam outrosfuncionalistas), mas sim como urn fenomeno em si contraditorio eheterogeneo, uma vez que composto por diferentes conjuntos deinstituiyoes que, embora apresentem coerencia interna em cada cultura,conflitam uns com os outros'. Dai a sua proposta de enfocar 0 contatoatraves de uma "tabela de tres entradas", 0 que virtualmente significaproceder a uma analise reducionista do fenomeno.

I lOt" " "- d I b'6 f h"'que con rana a 0PlD180 e a guns 1 gra os e lStonadores daantropologia, que consideram os seus estudos sobre mudan~a cultural comouma parte isolada e menor de sua obra.

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A construyao teorica de Malinowski deixa explicito 0 artificialismoque car~teriza algu~as p~postas (e nao apenas a sua ou as de outros queo segUlssem, mas mclusive <Ie outros que 0 criticam e dele afirmamdivergir) de como estudar 0 contato. Retomando as considerayoesanteriores sobre os obstaculos cristalizados em tome (e em defesa) de urndeterminado ponto de vista ou pressuposto te6rico, enecessario frisar queas reflexoes e busca de soluyoes partem de urn modelo naturalizado dassoci~dades, que so permite pensa-Ias como organismos integrados erelauvamente harmonicos, cuja analise exige sempre uma abstrayao doontexto e uma enfase especial nos aspectos anatomicos e fisiologicos. 0tudo do contato nilo e essa "terra de ninguem da antropologia" (no dizer

de Malinowski) por acaso ou omissao de autores anteriores, mas simporque os fundamentos sobre os quais estava assentada a construr;ao domodelo cient(fico de sociedade retiravam justamente da cogitar;iio dopesquisador osfatos do contato, sobrevivendo apenas como constatar;oescmp{ricas sem maior relew'incia teorica. Epor isso que as justificativasupresentadas por varios autores para a considerayao do contato estilofreqiientemente marcadas por razoes utilitarias, de ordem pratica ou aindahumanitarias.

l!ma aborda~em teorica ao contato, como quer Malinowski, precisafabncar, por melO de expedientes indiretos, urn objeto te6rico compOsito,que retina e aglutine as caracteristicas de diferentes unidades sociais. A" omplexidade" que 0 analista enxerga no contato - e que de modo algumdccorre do proprio fenomeno e sim do modele de sociedade utilizado paralntcrpr~ta-Io - deve ser entilo reduzida aos fatos "simples", isto e,passivels de serem analisados segundo 0 modele de unidade social adotado.lese modo para poder analisar tal fenomeno 0 investigador precisar' orrer a ideia de sobreposiyilo de tres sociedades - a colonizadora a'olonizada e a cultura do contato. '

A t~nta~va de inovayao te6rica termina em urn impasse, pois se asIluas pnmerras correspondem a construyoes convencionais em tome da. ncepyao ja criticada de sociedade, a terceira, mantendo 0 mesmo modelolnalitico, pretende dar conta e abranger aspectos que sao justamente

purgados por tal visao (a hist6ria, a adaptayao ao meio ambiente, aqu stilo das fronteiras do sistema social). A terceira sociedade parece serportanto uma tentativa nominalista de ocupar com uma categoriafrouxa,lUI: niio satisfaz aos requisitos teoricos de uma sociedade e de uma cultura.

r) spar;o exterior a um quadro teorico de referencia. camuj1ando assim arise de um modelo,

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Algumas contribui~oes para a analise do contato

As fonnul~oes de Malinowski foram aqui destacadas por se tratar de. uma tentativa ambiciosa e radical de contornar a.crise de urn modelo de

construy!<> de sociedades com a elaboray!<> de urn novo quadro conceitual,especffico para 0 estudo do contato. Existem outras formula~oes, noentanto, que possuem urn carater mais setorizado e ptocuram enfrentaralgumas dificuldades particulares. Ainda que seus autores n:io cheguem arecusar inteiramente 0 modelo naturalizado de sociedade, suas reflexoesajudaram bastante a operacionalizar a pesquisa sobre 0 contato interetnico,

,. contribuindo com criticas fecundas e retifica~oes importantes quanto aoesquema tradicional de aruilise. .

Alguns autores indicaram 0 perigo de que as descri~oes do impacto dasinstitui~oes europeias sobre as culturas africanasvi~m a sec conduzidaspor meio de conceitos genericos, como 0 de moderniza~oo, secuIariza~o,

institui~oes colorriais, heran~a euro~ia etc. Apesar de suas limi~oeste6ricas e da sua conten~ao politica 2 Malinowski e 0 primeiro autor as~blinhar fortemente a assimetria existente no processo de mudan~a

social.13 E, ao falar sobre ltcnicas de investiga~lio do contato, reitera aimportfulcia da pesquisa de campo para conseguir apreender junto ao grupotribal a significa~ao e as repercussoes do contato, pois "... e 0 nativoquem e primariamente afetado pela mudan~a cultural, quem aindapennanece como protagonista do drama" (1938:x) .

A transmissao de elementos da cultura ealtamente seletiva, aa~ dealguns sendO imposta, a de outros sendo facultativa, a deterceiros podendomesmo estar desautorizada. Malinowski ja observara a profunda difei'en~

entre as institui~oes ditas europeias segundo estivessem essas nametr6pole ou em territ6rio colonial. A necessidade de captar conteudosconcretamente atualizados pelas institui~oes coloniais nas situa~oes decontato efortemente sublinhada tambtm por Schapera;14

Para evitar que a etnografia do contato sublinhe exclusivamente osfatores individuais e particulariiantes da rela~ branco x nativo, a n~oode agencia de contato, particularmente desenvolvida por Fortes, revela-se

12" , na minha opmlao 0 sistema colonial ingles nio tern rival em .uacapacldade de ~prender com ,. experiencia. sua adaptabilidade e tolerincia, esobretudo seu mteresse genumo no bem-estar dos nalivos" (1949:161).13"Q d ' , I ~ d' -' d 'uan 0 0 tema pnnclpa ., 0 aspecto Inamlco 0 Impacto das dUalcultu~as, ~ inleiramente inapropriado esquecer ~ue as influencias euro~iasconsllluem em lodo 0 lugar a for~a principal. Elas sao os faloresdeterminanles no que conceme a iniciativa e ao planejamento" (I9g8: xiv),14"A ideia nativa de Crislianismo nao vern realmenle da Biblia ou do credooficial da igreja. Vern .obretudo do missionario que prega para ele e que~rabalha em .ua irea. Ele (0 nalivo) julga a vida de urn cristio pelasImpressOes que forma sobre as condulas e atitudes do missionario..... (1938:33-4).

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lmo de grande valia, buscando apreender em separado a distinta dinamicaI aLua~lio da administra~o local e das missoes (1938:63-72)15

lnversamente a Schapera, Fortes aponta os condicionantes de diversasil dens que limitam a lil>erdade de escolha dos ocupantes de tais cargos,

nstatando que em geral sao papeis e caracteres sociais estereotipados,t Into do ponto de vista do nativo quanto dos 6rgoos coloniais (1938:90).

~ r~ando a importancia de dispor de boas descri~oes etnograficas dasI~ ncias de contato, Fortes observa que isso etao relevante quanto estudar

ultura tribal (1938:91).Mas a constata~lio da existencia de heterogeneidade nao diz respeito

lmente aos brancos, estendendo-se igualmente aos nativos. A absor~o

Jl 1 s nativos de costumes e cren~as europtias nlio e de modo algumlit l~ erne em uma tribo, variando de acordo com posi~oes de parentesco,om papeis rituais ou religiosos, com fun~oes economicas etc. SchaperaIh rva que sob fortes influencias externas, a escala de varia~oo existente111 ada cultura pode admitir distAncia entre padroes contrastantes muito

111 Ilores do que em rela~o a outras cuIturas, ou da mesma em urn outroIII lmento do tempo (1938:28).

am refletir sobre esse processo de aproxima~oo entre 0 universo <10

1l1onlzador e do colonizado na figura de alguns individuos nativos,II ~iram posterionnente diferentes conceitos, como os de "middleman",

"III iator", "broker" e "patron" (Bailey, 1960 e 1969; Friedrich, 1968;I' II • 1971; Atwood, 1974). Uteis para descrever a fun~o de media~o

III estruturas politicas e economicas assimetricas, tais papeis vern emr 1associados a uma teoria onde a mudan~ cultural possa ser explicada

I I scolhas, calculos e interesses de atores individuais somente (vider I as a Bailey fonnuladas mais adiante, oeste capitulo).

11m novo enquadramento do social

lnquanto continuam a admitir como fundamento urn modeloII tlurulizado de sociedade, as tentativas de elabora~ao conceitual sobre 0

lIul LO interetnico ficam necessariamente limitadas a exercicios deI ( bramento l6gico ou a meras refonnula~oes setoriais ou operacionais.I/tr nle urna ruptura teorica mais profunda. redefinindo a natureza das

Ufl dades sociais. pode perrnitir que 0 estudo do contato deixe de ser urnIIntinente iso/ado na pesquisa antropologica. para 0 qual sao delineados

II itos e metodos singulares nao aplic8veis a outros dominios da

pr~rio Malinowski, em trabalho posterior, tenlou definir melhor essaII : Agencias de conlato sao corpas organizados de seres humanos

" , Ihando para uma finalidade definida. manipulando urn aparatoI'I priado de cultura malerial e .ujeitos a uma carta de leis, regras e

I" n Ipios" (1945:65).

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A visl10 de Gluckman se distancia muito das outras formula~oes

L nles, pois ele nll<> ve 0 contato como urn fator desintegrador, sempreIInfr ntado com a existencia plena e separada das culturas componentes.

I r clc 0 contato interetnico e urn fator organizador basico para a1 ncia de determinadas comunidades, urn elemento ordenador

Illilponente da organiza~l1o social. Assim, rejeita firmemente 0 esquemaII Ir realidades culturais desenvolvido por Malinowski (1968:9-10 e 51- .

I I 63:217-227), afirmando ao contrano que 0 ponto de partida de sua1111 Ii' e "a existencia de uma unica comunidade Africana-Branca emI,,(uland" (Gluckman, 1968:10).

A fiO\:l1o de comunidade com que trabalha Gluckman nl10 supOe limitesIII lais bern delimitados, nem unidades em termos de c6digo de

II Ilta~l1o cultural, mas somente que sejam partilhados determinadosJlIIlI s de inte~o no comportamento cotidiano dos individuos uns ParaIlit outros.1 ..

I In sua argumenta~l1o Gluckman incorpora algumas reflexoes deI CHI S coerentes com sua pr6pria perspectiva. Assim, para eSludar 01I1llil 0 antrop6logo precisaria trabalhar mais com as comunidades doI 'om os costumes, sua unidade de observ~ deve ser "uma unidadedeII nll<> de costume - uma aldeia, cidade, acampamenlo, economico e na

ial" (Fortes, 1938:62).N sa 6tica os agentes de contato nl10 podem ser descurados ou tratados

CH I) fatores externos avida tribal, mas sim abordados como "parteIII r ote da comunidade" (idem). E Gluckman encampa ainda como

I lite uti! para 0 processo de pesquisa a recomen~l1o de Schapera deIII •• missioOlirio, administrador, comerciante e recrutador de

II h Ilhadores devem ser vistos como fatores na vida tribal da mesma formaIII I) hefe ou 0 xaml1" (1938:27)17

essas coloca~Oes de Gluckman que fundamentam a constitui~l1o de1111 vi lio processualista em antropologia, estando na origem de vanasI ulln ens novas (como a analise de drama, elaborada por Turner, 1957 e

Ie JleI 1972); ou a analise situacional, es~ada pelo pr6prio Gluckman( 1\ ) e desenvolvida por Van Velsen, 1964; ou ainda 0 estudo em termosI •• lffipO poli~co" proposto por Swartz, Turner e Tuden (1966) e por

rll, (1968). E importante, porem, distinguir a visl10 de Gluckman de\ II d sdobramentos e reapropria~Oes por autores posteriores, sem

I" Zu ulus e Europeus possam cooperar em uma celebra~io na ponletil til que eles fonnam juntos uma comunidade com modos especificos de"1111111. urn face ao oUlro" (Gluckman, 1968:9). Em urn texto poslerior ele

1'1 I I. rn:lh~r a sua con~ep.~i,o de comuni~ade como "urn amplo campo deIII III pendencla no qual IndlVlduos dos dolS grupos de cores lem nonnas\ '"otllz.adas de comportamento uns com os outros" (1963:214).

f 1'\ I mizando com Malinowski, em defesa I FOrles e Schapera eIII "' nhando paralelamenle sua pr6pria vislo de que 0 fundamenlal seria

11111 • padrOes de inlera~io e. nio a cultura do contato, Gluckman chega aIII (nnula~io - de senlido didalico, mas sem adequado aprimoramenloI I I - de que se trala de "urna sociedade unica composla de grupolIlllllllirnenle helerogeneos" (1968:51).

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disciplina e relativamente imune aos avan~os e discussoe~:\e6ricas aiexistentes.

Se tais ~fi~uldades embargam fortemente 0 estudo doc()ntato, poroutro lado IOsUtuem esse como urn fenomeno cntico, exercendo umafun~o de ponta na renova~l1o dos fundamentos te6ricos da disciplina. Paraque a pesquisa sobre esse fenomeno possa se desenvolver e dar contadasrealidades observadas, e imprescindivel constituir algumas altemativasconc~tasde investiga~l1o.Por surgirem como modalidades de condu~dapesqu~sa - e. n~o .como uma. reflexl10 cntica sobre alguns pressupostosce~~.s da dlsclphna - a novldade e 0 caniter radical dessa ruptura forammmlmlzados por seus contemporaneos e tenderam a ficar ocultados por .quase duas decadas, sendo redescobertos pelos manifestos processualistasda antropologia politica da decada de 60.

A meu ver essa ruptura ocorre em alguns trabalhos de Max Gluckmanque, e~bora datados da decada de 40 (1939 e 1947), tomam-se maisCon~ecl<;k>Spor publica~Oesposteriores (respectivamente. 1958 e 1968 parao pnmerro, 1%3 para 0 segundo). Nesses textos a suposi~ao central domodele naturalizado de sociedade - a descontinuidade entre as unidadessociais -:- e urn. d~ ~us mais importantes corohirios - a identifica~l1oautomatlca do IOdlVlduo com os valores sociais - silo questionados nacondu~ll<> da pesquisa em Zululand e encaminhadas solu~Oes altemativas.Ret~mar essas el~bora~oes.pode significar uma contribui~l1o importanteaos Impasses te6ncos de hOJe, quando 0 pesquisador se defronta com umasit~l1o c.oncreta de contato interetnico e se da conta da inadequacl10 dasteonas eXlStentes. . .

o ponto de partida parece haver sido a constata~ll<> elementar, feita porGluckman (1968:1-28), de que as unidades bcisicasdeanalise nao podemser pensadas como en~i~ades f~h~das ou homogeneas. 0 simplesacompanhamento das atlvldades dimas de urn informante e urn eventoritual (como a inaug~l1o de uma ponte) envolve 0 pesquisador em umacomplexa rede de intera~Oes sociais, cuja explicacao requer a referencia asrela~Oes interetnicas e a pessoas e institui~Oes cujos interesses e valoressllo ~terminados ~e ~ora <J:l comunidade local (0 aparato da administracll<>colomal, a a~ll<> ml~lonaria, as empresas ecooomicas e as determina~Oes

do mercado mternaclOnal). Rotular de "extralocais" tais feoomenos - comose tornou de habito na antropologia, ate mesmo quando se lhes atribuiagrande .peso explicativo (Adams, 1970) - corresponderia a impor a umanova vlsllo da analise social uma classifica~o coerente com uma visllo

. tradicional, coisa que Gluckman nl10 faz. Se os aconteeimentos e atoressociais presentes em uma comunidade nl10 constituem urn universo au'to­explicavel, se as significa~s ali geradas necessariamente extravasam 0nivellocal e requerem 0 apelo a outros agentes e costumes, nlio M sentidoalgum em chamar tais fatos - cruciais - de "extralocais" como seconfigurassem apenas uma linha subsidiaria e comple~entar deentendimento.

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pretender encontrar nele uma falta, urn n1\o enunciado, que sO viria a fazersentido na voz de seus interpretadores.

Uma leitura atenta de seus textos permitiria afrrmar que a n~1\o de"campo social" ai esti clararnente delineada, inclusive com uma historia eurn significado bern diversos daqueles que assumiram hoje em dia. Aocriticar os paradoxos culturalistas de falar de uma Africa modema, ondeentr~am as cidades europeizadas e as minas Rand no interior, oposta a!Jma Africa tradicional, onde viveriam astribos de acordo com suastradi~s, Gluckman deixa explicito que considera que ambas fazem partede "urn tinico campo social" (1963:215 e 216), de urn mesmo "campo deinterdependencias" (214). Mais adiante indica que brancos e negros na areaestudada fazem parte de urn "tinico organismo social" (pags. 215 e 216),que 0 administrador e 0 chefe tribal encontram-se em urn campo tinico(223), que ambos compaem "urn tinico organismo politico" (215). Ap6s aapresenta~1\o e critica da tabela de tres entradas de Malinowski, ele retomaas referencias aideia de campo, observando que as rela~6es dos grupossociais e indivfduos entre si seriam muito melhor tratadas se fossemabordadas n1\o como eventos a serem localizados em diferentes colunas (eassim distanciados), mas sim atraves do "conceito de campo social" (232),que os reuniria e permitiria captar suas interconexoes. Note-se que amen~1\o ao conceito de campo social e feita explicitamente no texto, ondealias aparecem 14 referencias diretas a campo, isoladamente ouacompanhado de outro fator (respectivamente as pags. 210 e 217; 232;223 e 233; 215,216 e 232; 214; 215 e 216; 215; e 232).

Acompanhar 0 surgimento do conceito de campo nos trabalhos .deGluckman permite compreender uma aparente contradi~1\o que existiriaentre a conceitua~1\o de campo em psicologia (Lewin, 1952) e a suaaplica~1\o na antropologia social. Assim Swartz, Turner e Tudencaracterizam a sua unidade de analise como urn "continuum espa~o­

temporal" (1966:8) e chamam de diacronico 0 seu metodo de analise. Masobservam 0 paradoxa de estarem invertendo a heran~a lewiniana, queestritamente mais se aproximaria da proposta de analise sincronicadefendida por Radcliffe-Brown.18

A contradi~o pode ser entendida quando se percebe que n1\o houveinfluencia alThuma da psicologia no surgimento da nO(:1\o de campo emantropologia . A elabora~l\o do conceito ocorre em uma discussiio com ahistoria e no texto citado Gluckman niio se refere a qualquer autor outeoria da psicologia, embora enumere varlas pesquisas que considera

IS"Propriamente falando n6s nio estariamos estudando urn 'campo' (nainterpreta~io de Lewin). porque a teoria de campo de Lewin trata somente dasitua~io conlemporanea como causadora da conduta" (Swartz, Turner e Tuden,1966:31). .

19 Em alguns trabalhos de Turner, analisando • atualiza~io dos simbolosrituais na pratica social, surge a ideia de campo de poder e campo simb61ico­ritual. No entanto trata-se de texto muito posterior a formula~io de Gluckmane com inten~oes bastante diferentes das do metodo diacronico exposto porSwartz, Turner e Tuden, 1966.

40

mplares em historia e cujo conhecimento muito poderia auxiliar 0

Illf p610go.A ideia de campo surge nesse contexto, quando Gluckman indica 0

11 j rente papel que a seu ver a historia teria nas ciencias exatas e nasII 'iplinas hurnanfsticas. Nas primeiras, a hist6ria se limitaria adescri~1\o

III condi~oes do experimento, isto e, do seu "set-up" (1968:209),IIquanto na antropologia 0 pr6prio objeto'da investiga~1\o seria hist6rico,Hna vez que focalizado em certo periodo de tempo, no correr de uma

I Ilquisa.20

A seguir Gluckman mostra a utilidade do conhecimento hist6rico, dev 'I. que os objetQs da sociologia s1\o historicos e os processos atII' ntrados dificilmente se Iimitam asitua~1\o presente do campo. Pondera

1111 0 conhecimento de processos ocorridos no passado ampliam 0 alcance11 110ssas generaIiza~oes comparativas (1963:212) eafirma que n1\o M11 I cn~a essencial entre processos de mudan~a hoje e os ocorridos no111I sado, desde que sobre esses existam dados suficientes (1963:211). N1\oII IV ria sentido algum portanto em supor que uma tal conce~1\o de campoI v sse uma conex1\o teorica ou ~pistemologica com a sua utiliza~1\o,

I I adamente anti-historica, na psicologia.A retomada do conceito de campo por autores posteriores ja ocorre no .

III rior de uma discuss1\o teorica, a sua utilidade sendo de permitirIlrcizar os pressupostos estruturalistas de uma analise politica. Como

1 flnir os Iimites para uma analise? As respostas usuais ate ent1\opontavam para criterios espaciais (relativo isolamento), sociais (0 recorteI urn grupo) ou estruturais (a existencia de uma estrutura ideal de

Ilyoes, em situa~1\o de equiHbrio).A ideia de campo ajuda a de-substancializar a analise social, libertando­

nelusive das imagens e metiforas que inconscientemente impunham eralizavam a normatividade derivada daqueles pressupostos. 0 campo

I a a ser descrito como "composto de atores diretamente envolvidos nospH essos estudados" (Swartz, 1968:6), entendendo-se com isso que osII rticipantes trazem consigo para esse processo "valores, sentidos,

ursos e relacionamentos" (idem:8). A sua extensao social e territorial, el1reas de conduta que envolve mudam amedida que atores adicionais

otram nos processos, ou que os antigos participantes se retiram,rretando novos tipos de atividade em sua'intera~l\o ou abandonando os

v Ihos tipos" (Swartz, 1968:6).As suposi~oes sobre a integra~1\o necessaria e homogenea das partes, 0

II liter de sistema e a sua condi~o de equilibrio sao abandonadas como urn11111110 de partida desnecessario, uma vez que n1\o apresentam validade

U"N6s observamos que os individuos e seus bens materiais, seusrupamentos e relacionamentos lersistem atraves das mudan~as.· ~ 0 estudo

,I .uas interdependencias que 0 nosso campo. Para analisa-las devemos'Iud'-las por urn periodo de tempo, e a analise da mudan~a entio envolvetudo hist6rico dentro de urn periodo abrangido pelo problema:' (1966:209-10). ..

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universal. Assim afirrnam Swartz, Turner & Tuden (1966:30): "0 que n6schamamos de campo polftico nlIo enecessariamente urn sistema fechado,mas urn continuo espa~o-temporal com algumas caracteristicassistematicas. As partes de uma tal unidade, em condi~oes especificadas,podem exibir varios graus e tipos de interdependencia, tantoinstitueionalizada quanto contingente. Sob condi~oesdiferentes, contudo,as mesmas partes podem operar como se estivessem 'fora do bolo',independentemente de outras partes do continuum". . .

Se a unidade de analise nlIo tern limites genericamente definidos, aquestao de como circunscrever 0 campo de investiga~lIopassa a primeiroplano e se torna dependente da preocupa~o te6rica que dirige a pesquisa. .Swartz e bern explfcito sobre isso, nos dois momentos em que definecampo sublinhando que a sel~lio de participantes af envolvidos deriva dos"processos estudados" (1968:6 e 8).

Em outro texto, Gluckman & Devons (1964) chegaram a indicaralguns criterios para a delimita~ao de u~ c~mpo de invest.ig~~ao,

mostrando que 0 tra~ado das interdependenclas tern como lImite amanuten~o de urn alto grau de consistencia 16gica e de relev1lncia em facedo objeto te6rico da pesquisa. Uma pequena densidade no relacionamentoexistente entre pessoas e eventos~ co~. a necessidade crescent~ .deconsidera~ao de atos frouxamente relaclOnados com a problematIcaestudada, indicariam a oportunidade dese estabelecer limites mais estreitospara 0 campo.

De qualquer modo eimportante entender que a conce}J\:ao de campo eantes metodol6gica e instrumental do que de. uma constru~ao 16gico­abstrata e te6rica~l. Isso deve ficar claro para eVltar que a nO\ao de campose transforrne em uma PO\ao milagrosa, que resolveria tOOos os problemase poderia ser aplicada a todos os dominios da antropologia sem maiorescuidados. Ha uma tendencia em muitos textos da ultima decada aprivilegiar a ideia de campo como se fosse urn simples sucedfmco para aantiga conceitua~o de sociedade. Esse risco eainda mais grave quando seleva em conta que nas pr6prias antologias da antropologia polftica(Swartz, Turner & Tuden, 1966 e Swartz, 1968), se manifesta uma claradominancia de uma sociologia e uma ciencia polftica funcionalista,ancorada em conceitos de Parsons, de Easton e de Lasswell, onde muitasvezes a palavra campo parece ser comutavel com sistema. .

De qualquer modo eprimordial ter em mente que ao passar a defimr 0

objeto de investiga~aocomo urn campo, a antropologia parece haver dadourn passo primordial no sentido de superar urn antigo modelo de perce~ao

e afastar-se da n~ao de esp&;ie como urn paradigma para a constru~ao dosocial. A elabora~ao te6rica nao mais imp6e a abstra~ao de cogita~oes denatureza hist6rica ou procedentes do pr6prio meio ambiente, nem maispretende manter uma diviSllo rigida e uma hierarquiz~ao entre esses dois

2l"A conceitualiza~lio aqui avan~ada nio e uma teoria, mas .somente umamaneira de chamar aten~lio para problemas e fatol que podenam de outromodo ser omitidos." (Swartz, 1968:7/8).

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I ltimos fatores - vistos como nao sistematizaveis e passfveis apenas delusfazer a interesses pragmaticos - e os fenomenos de ordem estrutural ­" S vistos como os unicos passiveis de uma explora~o propriamente

It' rica.

l umas teorias sobre 0 contato interitnico

ssa nova fonna de recorte do social, se inviabiliza uma conce}J\:aoII ILuralizada de sociedade e dessa forma remove os obstaculos jaIlIlCriorrnente apontados, nao significa a cria~ de imediato de conceitos eI )rias interpretativas. Em fun~ao disso procurei a seguir focalizarII umas das principais tentativas de reflexao te6rica sobre 0 contatoIlL'rc1nico, destacando alguns conceitos e esquemas analiticos que avalio

I umo mais interessantes para considera~ao e analise. Ap6s 0 que,I IS ando-me na analise critica d~stes autores e em uma releitura bernp lI'ticular de Gluckman, e com 0 apoio de outros autores, 'proc?r~ expor eII, Lificar a minha propria visao sobre 0 estudo do contato mteretmco.,

a) a llO900 de "situLlftio colonial"

A no~ao de "situa~ao colonial", elaborada por Georges Balandier,lin 'ura superar de urn lado "a busca do emologicamente 'p~ro,,~om fatosIlIllI.crados, miraculosamente preservados em urn estado ongmal ,de outro

'apar ao empirismo e ao pragmatismo de uma antropologia pratica(n llandier, 1951, 1971:35). Critica as pesquisas antropol6gicas por1\ 'lIlizarem as mudan~as sociais apenas atraves de processos vistos sempre

paradamente uns dos outros (como a entrada da economia monetaria, ouII 'n ina moderno, ou a acao missionana), ao inves de perceber que eles"tl)nsLituem urn todo" e enquanto uma conjuntura particular "imp6e uma

rta orientacao aos agentes e processos de transforrnacao" (Balandier,1>71/3). .

Ao tentar delinear a especificidade de seu enfoque, dOiS pontosclhr saem: primeiro, uma decidida tomada de partido pela totalidade (pag.I , ntendida como uma categoria analitica central e vanas vezes repetida

1111 orrer do texto (1971:3,4, 10 e 35); segundo, uma recomendacao de1111 os estudos de mudan~ social sejam sempre realizados "em situa~ao"

1971:8,23/4,36). Apesar de referir-se por vanas vezes a Gluckman e asillS analises de situacao (1971:23 e 35/6), a ace}J\:ao que Balandier da ao

II I III0 parece afastar-se bastante daquela da antropologia inglesa, o~il~dolitre uma ideia de contextualizacao ou de urn pano de fundo hlst6ncop . 23) e, de outro lado, como uma noc~o capaz de as~egurar ailL 'gracao entre diferentes pontos de VIsta, desenvolvldo~ por

hi l riadores, soci610gos, psic610gos e antrop6logos (pag. 23/4). E essaIllOma a posiCao que predomina, Balandier (1971:36) explicitando que as

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origens dessa abordagem - um "estudo concreto e completo" (1971:27)­r~montariama n<~ao de "fenomeno social total" formulada por M. Mauss.E nesse espirito que ele conduz a sua critica a Malinowski, apontandoprincipalmente as limitacoes decorrentes de sua conce~o de institui~ao

como resposta a necessidades, bern como refutando a cren~a de que 0contato e a mudan~ cultural oeorreriam entre institui~oes hom610gas.

Em uma avalia~ao global parece-me que a n~o de situa~o colonialem pouco poderia ajudar a viabilizar as pesquisas atuais sobre contatointeretnico. A conce~ao da situa~ao colonial como urn todo complexo(pag. 3 e 10) nao se operacionaliza de nenhum modo e a pr6pria defini~ao

apresentada revela-se como muito generica ("... a domina~ao imposta poruma minoria estrangeira, 'racialmente' e culturalmente diferenciada, emnome de uma superioridade racial (ou etnica) e cultural afrrmada de mododogmatico sobre uma maioria aut6ctone materialmente inferiorizada" (pag.34-5). Vma tal enumera~ao de caracteristicas economicas, politicas eideo16gicas nao consegue dar solidez it no~ao ou concretizar melhor 0encaminhamento da analise.

b) a teoria da fricr;iio interetnica

Das pesquisas sobre contato realizadas no Brasil no final da decada de50 e no correr da decada de 60 resultou a elabor~ao de urn metodo deabordagem as sociedades indigenas freqiientemente denominado de teoria dafric~ao interetnica (vide Cardoso d~ Oliveira, 1962, 1963, 1964, 1966,1967, 1971, 1972, 1972b; posteriormente, 1975, 1980 e 1983). Em urnoutro texto (Oliveira Filho, 1985) pr()curei apontar as conexoes que essateoria mantem com outros enfoques sobre 0' contato igualmente praticadosno Brasil, indicando paralelamente os seus desdobramentos na pesquisaantropo16gica, servindo por mais de duas decactas como 0 referencial basicopara as investiga9<ks sobre contato realizadas no pais. Aqui, no 'entanto,me concentrarei primordialmente em pensar as suas formula~oes maisgerais, mostrando suas vincula~oes com diferentes tradi~oes te6ricas e,posteriormente, discutindo sua aplicabilidade ao objeto de investig~no

selecionado.Para considerar uma teoria cuja elabora~ao se estende por urn periodo

longo de tempo, a primeira necessidade, acredito, e de realizar uma data~oque permita captar os seus desdobramentos no tempo, com redefini~oes eelabora~oes, isto e, como uma trajet6ria em certa medida autoeonduzida.Assim, anotei a existencia de tres momentos basicos, que eu caracterizariacomo a apresenta~o e defini~o da n~ao, enquadramento socio16gico eproblematica da identidade etnica22. Obviamente caberia a ressalva de que

22Em funcriio do interesse J?l:culiar desta parte do trabalho (focalizar algumasteorias sobre contato mteretnico). concentrei minhas observacroesprimordialmente nas duas primeiras fases. mais adiante referindo-me a certascontribuicrOes e desdobramento desta terceira fase (a qual se enquadra noestudo geral de identidades sociais).

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II Ita de enfases, nao de exclusividade, em vacios momentos essas1111' Ocs se associando e sobrepondo.

() prlmeiro momento eo da elabor~ao,do conceito, correspondendo aI 10 programaticos (vide "Estudo de Areas de Fric~ao Interetnica",I'Ill to de pesquisa publicado em 1962), polemicos ("Acultura~ao eI,. ~ () Interetnica", publicado em 1963) e que resultam de uma prlmeiraI utlliva de aplica~ao pratica dessas ideias ("0 Indio e 0 Mundo dosIII III s", 1964). Vma referencia oosica e 0 texto ja citado de Balandier e aII I II 'ao de situa~ao colonial, da qual Cardoso de Oliveira destaca aI'll I upacao com a totalidade, 0 que implicaria em considerar que 0II II lit lnteretnico se da entre "grupos relacionados entre si em termos de

1IIIIIICI110 e submissao" (1964:21). 0 contato entre grupos tribais eIII mos da sociedade brasileira, quando caracterizado por seus aspectos

111111 'Iltivos e conflituosos, diz 0 autor, assumiria uma propo~ao total,II Illd a envolver toda a conduta tribal e nao-tribal (1962:128). AII I II ' 0 da situa~ao de fric~ao interetnica e de uma " ... situa~ao de

I III 10 entre duas popula~oes 'dialeticamente unificadas' atraves deII I diametralmente opostos, ronda que interdependentes" (1962:127-

IAI ntar para 0 proeesso de metaforiza~ao - nao apenas implicito na

Ilhl II 1.1I~nO, mas constitutivo do pr6prio ato criador23 - poderia ajudar a, I r 0 posicionamento do autor diante de outras linhas e vertentes

I ". A pr6pria escolha do termo fric~ao ja indicaria a preocupa~ao do111111 In salientar como componentes estruturais do contato 0 conflito e a

I I fill: 0 continuada. Ao banir de seu discurso imagens como a deI' II nissao", "ado~ao", "assimila~ao" ou "incorpora~o",Cardoso deI v chama a aten~ao nao para os aspectos culturais, mas para asIII . sociais que sao ai constituidas. Trata-se de modificar 0 foeo da

, I aCao, afastando-se de uma diretiva em termos de "mudan~a" ou de1I/11ll cultural" (expressao preferida por alguns autores ingleses,

III 11 un nte M. Fortes, L. Mair e Audrey Richards).N sentido a n~ao de fric~ao interetnica tern a mcsma diretivaI que as formula~t'les posteriores de Barth (1969: 11-15), cumprindo a

'11I\ u de deslocar a enfase dos grupos etnicos enquanto "unidades., "torus de cultura" ("culture-bearing units") para a sua existencia e

I ,ocial como "tipos organizacionais" ("organizational types"). TalIII III dade de perspectivas explica, inclusive, por que em reelabora~oes

I III )t s (1971, 1975, 1983) Cardoso de Oliveira faz men~ao e utilizaII IIluJacOes desse autor.

II I mbrar algumas consideracrOcs de Derrida: "As nocroes abstratas111111 rn aempre uma figura sensivel ( ... ) 0 sentido primitivo, a figura

, II I, lempre sensivel e material ( ... ) nio 6 exatamente uma metafora. ~IlII I Ie de figura transparente, equivalente a urn sentido proprio. que se

" II I II III I em uma metafora quando 0 discurso filos6fico a coloca emh,"1 \ 0" (Derrida. 1971:2-3).

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Ao sugerir uma intera~o continuada entre duas sociedades, a o~o defric~ao fecha 0 caminho a imagens e conceitos que tendem a descrever 0

contato como algo acidental e instantiineo, possuindo urn "caraterdisruptivo" e conduzindo a urn estado de anomia ou mesmo dedesorganiza~ao social. Ate mesmo por suas associa~oes inconscientes,portanto, a teoria da fricr;iio interetnica niio pressupunha a condir;ao deindio como passageira, levando os pesquisadores a nao projetar nos fatosobservados ideias quanta a"extin~o" (brusca) ou ao "desaparecimento"(gradual) desses povos.

Cabe observar que os conceitos ai utilizados possuem urn campo deaplica~ao bastante extenso. Os grupos sociais que estao envolvidos nasitua~ao de fric~ao interetnica sao caracterizados da forma mais amplapossivel, ora como "grupos tribais" (1962:128, 129), "sociedades tribais"(1962:128, 129) ou mesmo "sociedades" (1962:129; 1964:30), ora demodo ainda menos carregado de pressuposi~oes, como ao falar, por seisvezes, em "popula~oes" (1962:127, 128 e 129). Tambem a tarefa deprecisar 0 conteudo das relalroes entre esses grupos fica a cargo da pesquisaempirica: " ... a sociedade tribal mantem com a sociedade envolvente(nacional ou colonial) rela~oes de oposicao, hist6rica e estruturalmentedemonstraveis" (1963; 1964:30 e 1965;79).

Em urn segundo momento, Cardoso de Oliveira (1965 eprincipalmente 1967, no artigo intitulado "Problemas e hip6tesesrelativos afri~o interetnica") procura dermir suas id6ias de urn modo queconsidera majs preciso, atraves da utiliza~ao de alguns conceitossociol6gicos. 0 que foi antes denominado de friclrao interetnica agora ecaracterizado como urn sistema interetnico, composto por doissubsistemas, o tribal e 0 nacional, em oposilrlio e contradilrlio urn com 0outro. A escolha desses cpnceitos parece proceder de uma sociologia damoderniza~ao - e mencionado Gino Germani, 1962 - cujo esquemate6rico tern uma divida clara com as elabora~oes funcionalistas de TalcouParsons.

Surgem, em conseqiiencia, alguns elementos de rigidez em sua analise,que anteriormente nllo se colocavam de forma manifesta. A imagem defric~o tern, sem duvida, 0 poder de afastar uma visao negativa do conflito,como algo necessariamente disruptivo e disfuncional. Passa a sugerir, noentanto, a ideia de urn desajuste temporario, urn conflito que pudesse vir aser superado e corrigido, admitindo uma conceP\rao de sistema onde aexistencia de entidades diferenciadas ou mesmo contradit6rias viesse aconcorrer para a sobrevivencia e 0 dinamismo (atraves de umatransform~gradual) do sistema.

o conceito Msico passa a ser 0 de "integra~o social", que designa "0processo responsavel pela constituilrlio desse sistema interetnico". Oselementos integrantes desse sistema sao aqui descritos nao mais comogrupos, mas sim como "mecanismos de integra~o social", sendo possiveldistinguir tres "niveis de operalrao do sistema" (0 economico, 0 social e 0politico) onde tais mecanismos podem ser apreendidos em funcionamento.

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I ,taqu~ e dado aoO\;ao de "potencial de integra~o" [1967] (1972:87-9),III dcslgna 0 grau de dependencia que urn grupo tern de recursosolllrola~os por.outro, 0 que indicaria a sua capacidade de integralrllo no

t rna mteretnlco.A procurar esmiulrar analiticamente as relalrCies entre grupos

IIv)lvldos em urn sistema interetnico, 0 autor aponta umaI 1111 spondencia 16gica entre tais fenomenos e as classes sociais dentro da

II -dade brasileira [1967] (1972:87), afIrmando que a friclrao interetnicaI "equivalente 16gico (mas oao ontol6gico) do que os soci610gos

I h IIllum de 'luta de classes' ".Mas considerando a enfase dada ainte~ no texto citado, 0 usa dado

110 no de classe parece diferir muito dos esquemas marxistas"1"0 irnando-se mais de uma sociologia do conflito industrial, onde ~hlllill entre~. classes CO?~Uz a urn aprimoramento do sistema (noI 10 tecnologlco e de pohttcas de bem-estar social- vide Dahrendorf

IIJ I) , ou ainda da conceP\rllo vigente na economia politica classica, ond~I s~ grupos co~ funlroes ecooomicas diferenciadas e especializadas.

A dlscussao sobre mtegralrao val ter como conseqilencia a retomada de11 11 ma, dualistas, par~lhadospelos ~studiosos da aculturalrao e pela

III 101 gla da modermzalra02 . ASSlm, ao tecer comentarios sobreI I r I no e assimilacao (esta marcada como fato que s6 tenderia a ocorrer

111I ndividuos de terceira geralrllo, com indios urbanizados ou ainda1~() ), Cardoso de Oliveira observa que ..... 0 destino das sociedade's

I III IIUS, enquanto sociedades, e0 da sua descaracte~ao progressiva, naI I tllll em que vao sendo integradas as economias regionais" [1962]II IJ I :129). No mesmo texto, indica que as pesquisas devem se orientarI 1110 pllra urn estudo de situar;iio quanto para urn estudo de processo, porI I J1lcndendo ..... a elucidalrllo dos mecanismos que norteiam aII I 10 da ordem tribal aordem nacional, em que se transfiguram ou, III I lJl a se transfigurar as populalrCies aborigenes" [1962] (1972:127).

I I l~d~, ao enquadrar sociologicamente a nO\;llo de fric~ao interetnica,I ph Ita que O' seu foco de investigalrllo e 0 P!QCesso de "integr~aodo

111111 110 sociedade nacional" [1967] (1972:89)25. E ao tentar associar aII I I, pcctiva sociol6gica com um dualismo sOcio-cultural, acaba como

I III (jYlrO conjunto de textos (Cardoso de Oliveira, 1960 e 1966) eIII I II' mente daqueles aqui abordados, 0 autor mantem' urn conSlanteII I.. II om os esquemas dualistas.

I I r lS,istr8:r que um~ tal pre~upa~io te6rica contrasta fortemente com a1111 Ild~ge~lsta. as~uml~~ pelo auto~, que em urn artigo inlitulado "Utopia

1".11t a mdlgemsta cnlIcava 0 anlIgo SPI por sua docilidade ideol6gicaI Ill. IIllio! do Estado brasileiro: ..... a pergunta para onde m!4davam nuncaI I II' d uma constata~io te6rica de que viriam, no fim de contas a custa deI I II • le~nol6gica e medico-sanitaria eficaz, a alcan~ar os ~neficios da

I II '\ . Nl~tO es~ava imp'H~ito que elas viriam, mais cedo ou mais tarde, aIH IIlrorar a na~ao b~asilelra, desde que se pennitisse a realiza~io nonnal

I II rocesso evolulIvo. Mas nunC8 ocorreu 80S indigenistas brasileirosI I" Ilca dessa politica levava em seu bojo a supressio quase que total da

111 .. ,1 I IlIllna~iio dessas sociedades" [19611 (1972:62).

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t hlln allemativa analitica que surge para abordaras transforma~Oespor1'1. sam as comunidades camponesas ou grupos tribais em fun~ao de

IIbmissao a outras estruturas (como Estados nacionais ou outras

I lui OCs na atua~ao individual de seus representantes, permitindoI IV ,I rizar a liberdade e autonomia desses individuos em detrimento deIII' dClermina~oes grupais, institucionais e corporativas a que

I I V ltn nLe obedecem.IIUll especializa~ao de dominios pode surgir entre esses dois conceitos,

III Hf 'nle de expan~o" sendo mais adequado quando se trata em algomaI .llf I om urn (ou mais) grupo(s) organizado(s), 0 conceito de "agente

III I uILural" sendo mais utilizado quando se focaliza a presen~ direta e ahlll~ de nao-indios em face do subsistema indigena. Essa divisao de111111 ncias pode ter uma utilidade pragmatica, porem destr6i a unidadet 'IlIldro conceitual, que passa a mover-se em eixos te6ricos nao­

I IJlllrveis. Parece uma tarefa impossivel a de instituir uma unidadeI , ntre 0 conceito de "frente de expansao,,26 e 0 de "agente

I It IIllural", herdado dos estudos norte-americanos sobre acultura~ao

II Siegel et alii, 1954:980-982), os guais eram decididamenteIt Id s pela n~ao de fri~ao interetnica,27I III tcrmos bern simples e esquematicos pode-se dizer que 0 problemaII 'omo descrever e encarar teoricamente os individuos e grupos nao­

\l IlilS que intervem na situa~ao de contato. 0 microorganismo socialIII Illal 0 indigena esm em intera~ao direta (ou que tern conseqiiencias

Npccificas; sobre a sua condi~ao presenle e destino) nao mantem11111 'r isomorfismo ou similaridade estrutural com padrOes ou gruposI n ntes na sociedade nacional28. Buscar os conceitos e esquemas que

lin refletir de modo mais adequado a diversidade das situa~i5es de1111/11 (em termos de composi~ao interna. escala, interdependencia enil to entre as unidades sociais ai existentes, brancos e indios) foi a

() aqui escolhida para tentar essa reeleitura da teoria da fric~ao

tnica, conduzindo a seguie a discussao de outros conceitos queUII superar em outra linha as dificuldades aqui apontadas.

( fl no~iiode "encapsu[amento" e seus desdobramentos

III n~io a agentes interculturais leva 0 autor mais adiante a falar emI I '" • interculturais" [1967) (1972:97), 0 que parece caminhar em dire~io

" I sua visao de grupo etnico como produto de intera~ao social.I" urn trabalho posterior Da Matta (1978:29) observa que as contradi~Oes

I II rnpassos existentes na sociedade dominante dos brancos, acarretando"' I WI c brechas entre seus inleresses e ideologias, aumentam as chances deI" Y V ncia e preserva~ao cultural dos povos indfgenas.

I IIIl Ito eSle profundamente ligado a no~ao de fric~ao interetnica,'"11 olio 0 processo de extensao das rela~oes capitalistas ao campo

t II r • dimensao essa muito trabalhada em desdobramentos posterioresI 11111101 autores - vide Velho, 1971, 1972, 1975 e 1985, e Martins, 1975,

II

Malinowski, sendo conduzido a urn esquema tripartido de Brasil, onde seteria urn Brasil indigena, urn segundo com nma dinfunica expansionista, eo terceiro constituido pela dialetica das rel~oes entre classes sociais egrupos tribais, 0 qual seria 0 foco das pesquisas desenvolvidas nessaorienta~ao [1965] (1972:82/3).

Alguns soci610gos tern ponderado sobre a necessidade de dermic melhora no~ao de integra~ao, uma vez que ela apresenta 6bvios aspectosvalorativos (Germani, 1962:17). Para isso foram propostas algumasdistin~oes,como aquela entre a integr~ao normativa e integra~o psico­social, ou entre a integra~ao de ajuste e a integra~o de valores, ou aindaentre juizos de integra~aoe juizos de funcionalidade (Germani, 4147). Ateoria dos sistemas interetnicos, porem, nao tenta caminhar nessa dir~ao.

Uma outra linlita~ao desse esquema socio16gico e que reduz 0 campode aplica~ao da no~ao de fric~ao interetnica, tomando uma particularmodalidade de contato como modelo para pensar todas as demais. Aconce~ao de grupo etnico como nascendo de uma situa~ao de intera~ao,

envolvendo aspectos de conflito e interdependencia, e igualmentepartilhada por Barth. No entanto esse ultimo tern uma ideia menosrestritiva de integra~ao, concebendo a situa~ao de complementaridadeecon6mica entre grupos (cita ocaso das tribos Fur e Baggara,respectivamente agricultores e criadores - vide Barth, 1969: 25-6) comouma possibilidade de relacionamento entre outras, incluindo igualmente adisputa por urn mesmo territ6rio, a manuten~ao de rela~Oeseventuaisdetroca, ouainda aexistencia de uma interdependencia ritual ou politica(1%9:19). Oesque~anaUtico de Barthpermanece assim aberto ao estudoda var~ao de situa~i5es, permitindo conceber desde caSQS onde a sinlbioseparece ocorrer, com as identidades etnicas dirigindo globalmente 0

comportamento dos individuos, ate 0 caso extremo, onde nao M qualquercomplementaridade entre os grupos, que nao se organizam portanto emlinhas etnicas (1969: 18).

Existem tarribem dificuldades te6ricas nao resolvidas quanto amaneirade operacionalizar a analise dos sistemas interetnicos. No planoconceitual, ~o indicadas duas ferramentas analiticas, os conceitos de"frentes de expansao" {l967] (1972:47-105) e de "agentes interculturais"(idem: 44-95). Urn seringal, urn castanhal, uma fazenda, urn garimpo,podem ser comodamente pensados como uma expressao concreta de tiposdiferentes de frentes de expansao. Mas urn Posto Indigena, uma missaoreligiosa, uma base militar, a atua~ao do regat1io, a a~ao intermitente de6rgaos federaisem diferentes esferas - isso pode ser conceiluado comofrente de expansao? Por outro lado urn missionarioespecifico ou urndeterminadoindigenistapode sercaracterizado como "agente intercultural",pois expressa a l6gicae a dinfunica do universo nao-indigena. Mas comopensar a unidade entre esse missionario (ou indigenista) e outro quetrabalbe do mesmo modo e com inten~oes semelhantes, unidos muitasvezes por vinculos organizacionais e por uma hierarquia bern definida?Nesse sentido a analise por "agentes interculturais" pulveriza a a~ao de

1

I

48 49

\

l.bL~=........ ~_~~---------~---

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sociedades) e a n~o do encapsulamento, elaborada por F. Bailey (1969),desde entilo bastante utilizada nos textos de antropologia politica. 0 pontode partida para a descriyao desse esquema analitico pode ser a discussOO queele realiza, em urn estudo monografico anterior, sobre a questao doisolamento das aldeias indianas e dos grupos tribais. A comunidade ondeele realiza a sua pesquisa - Baderi - e composta por urn grupo de parentesagmiticos, territorialmente segregados, que atuam conjun~ente tendo emvista finalidades politicas. Mas saindo dos esquemas formals e apreendendoa estrutura em movimento, esse fechamento revela-se como bastanteenganoso, 0 observador sendo levado a rec~)Ohecer que"... a aldeia nlio eurn todo em si mesmo", mas " ... uma uOldade dentro de uma estruturamaior, onde existem lacos individuais e reiacionamentos indo muito maisalem dos limites da aldeia" (Bailey, 1960:267).

Enesse sentido que Bailey formula a n~o de encapsulamento paratentar superar algumas dificuldades dos estudos tradicionais de politicatribal. "Os antrop610gos concentraram-se nas comunidades politicas e?1pequena escala e de relacOes face a face. (...) Quase s,~ exc~s, hOjeessas estruturas existem dentro de estruturas pohucas malOres deencapsulamento." (Bailey, 1969:146). 0 que caracteri~~a entao e~sa

situacao de encapsulamento? Para esse autor os grupos tnbal~ e as. ald~IaSindianas sao grupos em pequena escala, com estruturas mulufunclOnals epouco diferenciadas em termos de atribuicOes especificas. Contrasta".',assim com as estruturas mais abrangentes de urn Estado-Nacao, as quaisprocedem a uma grande especializacao de atividades, dispondo de umasoma de recursos muito maior.

Isso lorna evidente de urn lado a direyao que devem seguir os processosde mudanca, de outro a impossibilidade de fazer uma anaIise atomizada damudanca. "Nao podemos estudar a mudanca social dentr~ ~os limites .deuma aldeia" (Bailey, 1960:269). A analise da estrutUI3 pohuca daB alde~

deve ser feita considerando-se 0 seu processo de ajustamento a esse meloambiente social e hist6rico, tomando-se a estrutura politica encapsuladacomo uma variavel dependente e a estrutura maior como uma variavelindependente. Isso permitira apreender os efeitos que mudanCas.ao niv~l doEstado tern sobre a estrutura politica tribal ou da aldela (Batley,1969:147). .

Euma tarefa no entanto bastante dificil tentar transformar essa noyaode encapsulamento· em conceitos mais operacionais, que viabilizem adescricao das conexOes entre a estrutura politica local e as· estru~~asmaiores do Estado. Em funcao disso Bailey (1960:240) procura uUlizaroutros conceitos (como os de subestrutura e campo) cabendo aqui destaearjustamente aqueles que fogem aos padrOes mais convenciona~ d~ analise.

A O<lCao de "arena" aparece inicialmente com certa am.bl~fildade,orausada como urn sinonimo de campo (1960:10), ora para lOdlcar setoresdentro desse Cartlpo onde sao disi>utados recursos diferentes com unidadesde conflito diversas (1960:269). Posteriormente predomina essa segundaacepyao, Bailey especificando que 0 termo arena indica a existencia de uma

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strut~a (linica) de regras que delimita urn tipo de competicAo politica(1969.135). 0

A ideia de campo perpassa tOOo 0 trabalho etnognifico de Bailey que,focalizando a politica como atividade (e nao como normas ou crencas),llfrrma que a sua descriyao dos Konds ~ muito mais em termos de "campopolitico" do que de "estrutura politica" (1960: 12). Ao final desse textochega a indicar 0 que entende por campo poli~co, englo?ando ~ao apenasas atividades cooperativas, mas ainda tudo aqUilo que seJa relaclOnad? .aosindivi~uos que se referenciam a determinadas arenas. '''A~ rel.acoe~ po~ucas

oncefIlem adistribuiyao de recursos e ao poder. A dlstnbUicao lOcIUI naoomeote aquelas situacOes em que os homens cooperam uns com osoutro~ para atingir controle sobre 0 territ6rio, ou p~a proteger 0 seutcrrit6rio contra estranhos, mas tambem urn campo malor onde as pessoasolIo cooperam mas, ao contrlirio, competem uma contra a outra porontrole dos recursos" (1960:243). .

o autor distingue entre conflito e contradicao, 0 primeiro deslgna.ndoquelas disputas para as quais'a estrutura dispOe de mecanismos corretlvosregularizadores, a cont{adicao indicando aquelas outras onde nao atuaI~

Ulis mecanismos. A aplicacao de tais conceitos e a dis\incao entre eles sopode ser feita em uma analise dinamica, pois tanto ~ma disputa poder velar-se urn conflito (e assim reforcar a estrutura eXlstente, tal ~omo 0fariam certos rituais), quanto 0 seu resultado pode ser questlOnar astrutura demonstrando sua ineficlicia on ilegitimidade (1960:253).

Quando a disputa extravasa os limites da estrutura, a anaIise cheg~~ aurn estligio mais complexo e seria necessario falar do campo pohtlcoomo possuindo mais de uma estrutura. Manter a anaIise no quaw:o de

uma linica estrutura levaria 0 pesquisador a ignorar a contradlcao,r tirando-a da realidade. "Como altemativa pode ser assumido que existenllo uma estrutura a ser analisada, mas duas ou mais estruturas operandom urn linico campo social" (1960:8)29.

Apesar de alguns conceitos inovadores, a anaIise de J:lailey ~an~em

muitos compromissos com a abordagem do estruturallsmo clasSICO,partilhando de conceitos e tecnicas de investigayao decorrentes ctt:~ quadroIOOrico. Se 0 conceito blisico para a analise politica seria 0 de auvldades (eolIo de estrutura), por que entilo buscar apreender a organiz~ca? ~ campotraves deste conceito? Nlio hA como pensar a coexistencia e as

nrticulacOes/conflitos entre estruturas dentro de urn mesmo campo, uma\fez que e dito que as estruturas nao diferem teoricamente umas das outra~

(1960: 10) e que podem ser apresentadas como "algo completo em Slmesmo" (1960:246-7). Conceituar deste modo as unidades componentes

9A des(i:ri~o realizada por Leach (1954) da politica Kachin como dinimica edOlada de' urn movimenlo pendular, oscilando entre duas estrut~ras opostas,e distancia bastante da visiio de Bailey de tres. estruturas coeXlsotentes, coada

uma com determina~oes pr6prias, competindo entre si. Desse pnsma Bail~y

cha~a a possibilidade de pensar as rela~Oes entreess~s estruturas por melOde elquemas fechados ou como uma outra estrutura (Bailey, 1960:10).

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do campo, caracterizando-as como totalidades e entidades socialsrigorosamente hom610gas, tern urn efeito imobilizante, inviabilizandoqualquer constru~ te6rica para a amUise do campo politico.

N~ perspectiva de Bailey, asemelhanr;a de alsuns autores (Leach eBarth) que tambem estudaram grupos tribais na India neste periodo, aresposta se dli em uma dimensao estritamente individual, atraves deescolhas reaIizadas em contextos especificos por individuos concretos,sendo 0 somat6rio dessas ar;oes e opr;oes isoladas que ira definir a novaconfigurar;ao do campo. Em conseqiieneia, destaca como crucial a atuar;aode determinados individuos, caracterizados como lideres que, porconhecimentose habilidades especificas, desenvolvem ar;oes que conectamentre si as diferentes estruturas (e 0 que Bailey (1960:268-9) chama de"a~-ponte"ou "bridge-action")~30.

Mas como se pode estabelecer limites it liberdade de escolha dosindividuos? Por urn lado Leach, raciocinando em termos de modelosideol6gicos nativos, estabelece somente os parametros culturais dentro dosquais os individuos daquelas sociedades tern uma capacidade de escolhaquase absoluta e Dao passivel de reflexao te6rica. Sem operar com modelosnativos, Bailey e Barth preferemespecificar as condi~oes sociais de cadaescolha realizada, apreendendo 0 seu perfil, trar;ando as regularidades eexplicitando os fatores que as condicionam.

Se esta resposta (socioI6gica, e nao cultural) pode ser encaminhada poreles na condu~ao da pesquisa etnografica, em termos te6ricos permaneceurn perigoso vazio. Como coloca em plano secundario a analise doscostumes e considera a mudan~a social como urn processo cujo vetor vaidas cidades-coloniais as aldeias-tribais, Bailey pensa 0 contato interetnicode modo muito unilateral, onde fica ausente a visao do nativo e dacomunidade local. Por minimizar 0 estudo doscostumes, dos modelosnormativos e principalmente das teorias nativas de interpreta~aodo sociale do universo, Bailey reflete sobre 0 processo de mudan~a como se esteocorresse sempre em meio cultural homogeneo (ou algo bern pr6ximodisso).

Em alguns textos de carater exclusivamente te6rico (Bailey, 196ge1978) aparece urn individuo generico, caracterizado primariamente porinteresses e motivar;oes egoisticas, para 0 qual arbitrario cultural ecosmovisao nao constituem mais do que uma vestimenta, que pode serfacilmente substituida de acordo com as necessidades e os contextos. Umatal concep~ao do individuo estli muito pr6xima das constru~oes dosfil6sofos utilitaristas e liberais, contemporaneos a implanta~ao docapitalismo industrial na Inglaterra (vide Macpherson, 1971:287-9 eSahlins, 1978). Tal figura, centrada na experiencia hist6rica e na

30Com uma preocupa~ao muito semelhante Barth (1957 e 1966) elabora assuas analises, preferindo no entanto destacar conceitualmente nao as a~oes,

mas os individuos que as concebem e atualizam. que qualifica de"entrepreneur" e que funcionam como fator de conversiio de recursos situadosem diferentes esferas e circuitos transacionais (vide Barth, 1962).

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lllctafisica do ocidente, de utiliza~ao nao recomendavel em povos comoutras tradi~oes (Dumont, 1978), foi transformada por Bailey no pivo da1061ise da politica e da mudan~a social, onde se sobrepoe comodamente asdeologias modemizantes de Estados Nacionais p6s-coloniais e vinculados10 circuito capitalista da economia mundial. .

Nestequadro te6rico a descri~o e amllise do dinamismo do campoI Htico tendem a ser feitas exclusivamente na 6tica de urn dos atores,Iquele no qual melhor cabem as pressuposi~oes do modelo. AoslIdividuos e grupos submetidos a essa situar;ao de encapsulamento Dao M

Il(l\:ao ou altemativa mais simples do que desvestir a sua "segundaIIl1~Ureza",adotando outro arbitrario cultural e incorporando a cosmovisaoIlle melhor se the ajuste. Nesta perspectiva, ereio, a analise de campo se

dcscaracteriza inteiramente, transmutando-se de urn estudo de interaciio e(' nflito em descricao monoc6rdica de urn processo unidirecional, 0 queonula a realidade po[{tica e cultural dos grupos dominados.

Os problemas apontados neste quadro te6rico se expressam igualmentem seus desdobramentos mais recentes. Urn conceito que desempenha

Iunr;ao muito semelhante ao de •"encapsulamento" e 0 de "gruposorporados de circunscrir;ao" construido por R. Salisbury tendo em vista anl1lise do faccionalismo e da politica em uma perspectiva transacional.

Parte da concepr;ao de que 0 grupo humano sob observa~ao diretJ, a'omunidade camponesa ou a aldeia indigena, pode ser tratado como umaunidade menor (mas com caracteristicas corporadas) dentro de um esquemamaior de poder, geralmente de natureza administrativa (Salisbury,1978:113). Os recmsos, a defmi~o dos papeis e os parametros de varia~ao

disputa sao fomecidos por essa entidade maior, da qual provem os maisfurtes estimulos amodifica~ao de estruturas e ao desencadeamento de urnprocesso cumulativo de mudan~a social.

Alguns dos conceitos elaborados dentro desta perspectiva chamam at.enr;ao para aspectos importantes do contato interetnico e algumas de suasd6ias serao incorporadas na discussao etnognifica. Mas surgem tambemIlgumas dificuldades graves que mostram a necessidade de buscar mais116m os conceitos blisicos de referencia 0 primeiro ponto que caberiaII ·stacar e 0 papelfortemente passivo assumido peias comunidades locais.No esquema de Salisbury isso e inclusive ainda mais acentuado, muitombora no correr da analise concreta esse autor reconher;a a existencia de

lima relativa autonomia do nivel local, 0 que pode levar inclusive averter decisoes e orienta~Oes procedentes da esfera do Estado. No entanto

plIra todos estes autores 0 sentido da mudan~ae sempre claro, indo dasunidades mais abrangentes aquelas menores, operando de modo

cessivamente unfvoco e determinista.Urn segundo aspecto, em boa medida interligado ao primeiro, e uma

r Iativa despreocupaciio comfatores culturais, ja criticada anteriormente.I r ser atribuido nesse referencial te6rico para estudo da mudanr;a socialurn valor heuristico menor aos costumes e interpretar;oes nativas, reduz-semuito 0 espa(;o para as reinterpre~Oes, as manipulac6es e as resistencias,

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-que instituem uma diatetica bern mais complexa do que e suposto entrecolonizador e colonizado, entre as politicas do Estado e as suasconseqiiencias reais no ambito local. Devem ser registradas, no entanto,grandes diferen\(as entre os autores citados co.m rela~ao a este ponto,.emBailey sendo bastante acentuada tal tendenCla, enquanto ~as peSqUlSasetnograficas e analises concretas de Barth.(1957) e SalIsbury ~1956)

bastante aten~ao e dada as normas, valores e sIstemas de caIculo nauvos.Terceiro, que tais conceitos se qestinam a situa~Oes ~deais, bern

distanciadas da realidade, e que projetarn na descri~ao etnograficapressuposi~Oesarbitnirias e esquemas de entendimento inadequados. Assimo conceito de encapsulamento e 0 de "grupos corporados de circunscri~llo"

8upOem que a comunidade local esteja ilhada por uma unica agencia decontato, que todo 0 upiverso da politica at presente (comportamento,recursos, valores) tenha de ser desvendado tao-somenty atraves da rel~llo

assimetrica que une os dois grupos.De fato tais cOIJdi~Oes revelam-se como muito especiais, verdadeiras

condi~Oes de laborat6rio, que nllo possuem contrapartida em grande partedas situa~oes de contato interetnico estudadas. Em tais situa~oes

freqtientemente a comunidade local recebe 0 impacto de diferentes agenciasde contato; 0 comportamento dos atores na situa~ao e afetado porpresen~as anteriores, por noticias sobre ou possibilidade de pre~n~a deoutras agencias, bern como pelo comportamento de uma agenCla diante dasoutras; como· ainda pelas, compara~Oes e sistema de interpreta~Oes

utilizados pela comunidade local para refletir sobre essas a~encias. .o que senecessita, portanto, e de urn outro concelto, que permlta

abranger a pluralidade de atores envolvidos, resgatando as formas deorganiza~,valores, ideologias de cada urn; buscando apree~der os padrOesconcretos de intera~llo existentes entre eles, destacando 19ualmente asmanipula~Oes e estrategias de ~llo colocadas em pnitica por cada ator;captar as significa~Oes que cada ator atribui a estes padrOes bern c~mo 0modo pelo qual ele os codifica e sistematiza, integrando a ambos aSSlm noseu quadro referencial primano.

Para uma analise de situllftio

A n~llo de campo e arecomen~llo de proceder a estudos de si~aoforam elementos valiosos para romper com 0 modelo naturalizado desociedade e com as percep~oes elementares pelas quais tal, modeloinviabilizava urn enquadramento te6rico do contato interetnico. E precisono entanto buscar alguns instrumentos anallticos de aplica~llo mais ampla,menos carregados de pressupostos particularizantes e naturalizadores, quepermitarn descrever 0 ordenamento existente entre os elementos do campo.Esta ea preocupa~llo da ~llo final deste primeiro capitulo, que procurorealizar partindo de umareapro~ de fonnu~Oes de Gluckman.

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Ao falar de situa~llo social, Gluckman, de fato, refere-se a doisinstrumentos inteirarnente distintos, localizados em diferentes patamarestc6ricos, ainda que possarn ser usados consecutiv~nte (e assim. de m~oindiferenciado) no processo concreto de pesqUlsa. O.sentldo malSonhecido, que 0 autor explicita em uma defini~llo (VIde 19~~:9) e

materializa atraves de extensa diSCUSS30 de urn exemplo especlflcO, euquele que implica na sobreposiy30 de tres elementos: a) urn conjuntoIimitado de atores sociais (individuos e grupos); b) ayoes eomportamentos sociais destes atores; c) urn evento ou conjunto deventos, que referencia a situay30 social a urn dado mom~nto do teO?po. .

Entendida em seu modo mais estrito a situ~1io SOCial nao sena malSque isso, urn repert6rio de atores relacionados por determinadas ayOes e'\'Cntos. Amedida porem que 0 levantamento desses elementos r~mete a• ntextos de intera~ao e a formas de inter-rela~ao,0 relato da sltua~ao

nha densidade, conduzindo progressivamente aindicayao de padrOes deIlll.Crdependencia entre os personagens elencados. A distinyao rigida entred SCriy30 e analise revela-se completarnente artificial, uma vez que alI1Alise situacional nada mais e do que a reflex30 sobre 0 entrecruzamentoduqueles ues elementos. '

o mais interessante da anaIise situacional e justamente essa demarcheI onstrutivista, onde se apreendem relayOes abstratas e valores grupais .apnrtir da observa~ao da conduta manifesta. Nllo M razao para predefimrlima unidade ao objeto de investiga~ao, intitulado por Gluckman

ncricamente de "comunidade" (em uma alusao direta ao conjunto delores que estabelecem uma convivencia social em urn dado mo,?ento).

I ata-se de algo que concebe como muito distinto da n~ao de socledade,lIodcndo abranger efetivamente duas ou mais sociedades, classes, gruposlnicos ou culturas.

o levantarnento das interdependencias existentes entre todos essesI res permitira a abordagem do fato etnic?, nao como algoIIbstaneializado, aprioristico, mas como produto de linhas de cooper~oeI vagem entre urn universo de atores e condutas. 0 alinhamento dosndivfduos em grupos e subgrupos pode variar grandemente de urnnntexto para outro, inclusive transpondo as barreiras etnicas, sem

III Jufro do fato de que a c1ivagem etnica funcione como 0 fator O1~e~adorI /lico das rel~Oes sociais na situa~o por ele estudada31. 0 que hmlta as

olhas individuais e destaca a importancia da clivagem sao fatoresIt t6rico-culturais especificos, de urn lado as rel~oes de dependencia (ondeII brancos sao fazendeiros e os Zulu vendedores de for~a de trabalho), deIIlllrO 0 conjunto de normas legais fixadas no context? hist6rico (aI Isla~o segregacionista). Para Gluckman, portanto, a UD1~de e ~oesao

III rna de urn grupo etnieo nao e de modo algum urn fato meduuvel ou

I ·0. grupos b'sicos de Brancos e Zulus esti? partidos em gruposubtldiarios. fonnalizados ou infonnais, o. pertenclmento a estes. grupos\\Ida para 0 individuo de acordo com seus mteresses, valores e. moUVOI que

I I mllnam sua conduta em diferentes situa~oes" (Glucknnan, 1968:25).

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~~LlIDill --------j

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urn dado absoluto, mas sim a consequencia de relar;oes de interdependenciaque se atualizam em urn dad<.> contexto hist6rico e cultural especfjico.

Do ponto de vista da analise situacional, campo e situa~~o social ~oconceitos solidarios, que tendem a se identificar no processo de pesquisa.Toda analise situacional acaba por delimitar (ainda que implicitarnente) urncampo, tOOo campo supOe uma multiplicidade de contextos que poderiamser decompostos em situayoes sociais. A o~oo do pesquisador por urn ououtro conceito decorre n~o de diferen~as te6ricas, mas de privilegiardeterminada estrategia de apresentayao de dados oucerta modalidade de

cjconstruy~o de etnografia. ' ~':-", ", ,.

Seria focil interpretar algumas referencias que Gluckman faz an<~ao deequilibrio dentro do quadro dominante do pensamento antropol6gico ingles(Radcliffe-Brown e Malinowski), como expres~o de uma posiy~o anti­hist6rica. Isso no entanto entraria em contradiyoo manifesta com a posi~ao

que ele expressou quanto anecessidade da analise hist6rica (Gluckman,1963:209-214). Para ele a ideia de equilibrio n~o seria urn pressupostoquanto ao carater integrado e repetitivo das relayoes sociais (como 0 fazemas analises sincr6nicas), mas uma resultante da existencia de algumaorganizar;&J de uma situa~ii032. A sua con~oo de equilibrio aponta n~odiretamente para sistemas integrados com continuidade no tempo, maspara rela~oes de interdependencia e expectativas que criam linhas epossibilidodes de~&J e orde~&J.

Ao fazer uma analise.<fe mais de 150 anos de hist6ria Zulu, 0 autorexplicita sua inten~o nlio de buscar urn "ponto zero" da mudan~ social,mas de "reconstruir os equilibrios do passado" (Gluckman, 1968:50),apreendendo a "suces~o de diferentes equihbriossociais" (idem, pag. 49).Assim seria possivel distinguir diferentes periOOos, cada urn marcado porurn padr~o de equilibrio pr6prio, conduzindo a uma estabilidadecomparativa. De fato 0 que a sua analise ira buscar em uma considerayoodo relacionamento passado entre negros e brancos eurna rel~iio balanceada(e mutavel) existente entre esses dois grupos, permitindo perceber asalterar;oes e ajustamentos como 0 surgimento' de diferentes padroes deinterdependencia. A essa tentativa de estudar a variayoo hist6rica de umarel~o entre grupos ele chamou de "a mudan~no equilibrio" (Gluckman,1968:27).

Ao proceder a essa analise, Gluckman abre uma nova dimensoo para 0

conceito de situa~ao. Em vez daquele primeiro sentido ja conhecido, desitua~~o social como urn conjunto de ayres relacionadas a urn evento

, especific~ no tempo e no espa~o, surge uma ace~~o bastante distinta,remetendo aelabo~oo de urn modelo analftico que privilegia os padroes

32" por equiHbrio eu entendo al rela~Oes de uma interdepend€ncia entrepanes diferentes da estrutura social de uma comunidade em um IM:.rlodopanicular". (Gluckman, 1968:25 e tambem 28). Cabe lembrar a conc~~!,o decomunidade CJue Gluckman trabalha neste texto, remetendo. a Id~la. ~e

contexto de Intera~io, nio de grupos corporados ou de umdadel SOCla11cOlivencionais. '

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de interdependencia. 0 seu interesse nao ede maneira alguma conduziruma apreciay~o hist6rica dos Zulu, no sentido d~ compor serie~ e.es~udar'riteriosamente os fen6menos e as fontes, mas Slm captar a eXlStenCla dediferentes padroes de interdependencia entre os Zulu e os brancos, bern'omo em refletir sobre as razoes de passagem de uma situa~iio a outra.Nesta perspectiva 0 conceito de situa~o social se apresenta como urnl'iciente instrumento para 0 estudo comparativo e a investiga~iio damudan~a social. .

Ao falar em interdependencia, caberia fazer duas ressalvas, pOlS se trata(\ urn termo bastante carregado pelo uso que dele tern feito umaociologia funcionalista. Em primeiro lugar, a ideia de interdependencia

fI 0 implica em uma reciprocidade balanceada, uma condiy~o de simetril,\litre grupos e pessoas envolvid9s. Gluckman deixa bern claro ~ssoao

,firmar que negros e brancos na Africa do SuI esmo em uma condl~o deI. simetria ("oposiy~o desigual") que determina 0 modo concreto de( peray~o e antagonismo entre esses dois grupos (Gluckman, 1968:26).

I In outros momentos ele se utiliza da O(~~o de dominay~o (pag. 24, entreIlUll"dS), explicando a ascendencia politica e economica dos Europeus sobreII Zulu em termos de uma diferenciay~o de classe, os primeiros sendoI Ipitalistas e trabalhadores qualificados, os segundos sendo camponeses eIr Ibalhadores nao especializados (Gluckman, 1968:17).

Em segundo lugar, a interdependencia n~o implica em que os atoresI, sim relacionados tenham urn identico peso quanto a determinar as

I lracterfsticas e os rumos da intera~do. A instaurayao de equilibrio e aIIlllnuteny~o da interdependencia nOO decorrem de propriedades an6nimas ouIrnpessoais do sistema, mas esmo ligadas adi~ens&J .da intencionalida.d~,

rca onde ~o conectadas com os interesses e ldeologms dos atores SOCialS(I stcjam esses em condiy~o dominante ou dominada). Assim, GluckmanII smistifica a aparente neutralidade de umasi~ social, mostrando que

Nua organizay~o responde prioritariamente a interesses de uma classe,plicitando que 0 fator final para a manuten~~o do equilibrio e"a for~

uperior do grupo branco" (1968:25).Para distinguir essa outra dimen~o implicita na analise de Gluckman,

que contrasta com a mais freqiiente utili~o de situa~o social, .uso aquixpressao situa~iio hist6rica, noyoo que olio se refere a eve~tos lsolados,

III IS a modelos ou esquemas de distribui~iio de poder entre diversos atoresWI lais. Nao se trata de conduzir uma analise constitucional da politica

omo 0 faziam os estruturalistas classicos no African Political Systems,1940), nem de operar com modelos ideol6gicos (vide Leach, 1954).0 queI. 'im se designa e 0 resultado de uma analise situacional, pressupondoJlo tanto 0 manuseio de situayoes sociais (no primeiro sentido) e da O(~oo(I campo. Trata-se de uma constru~o do pesquisador, uma abstra~ comI II Iidades analiticas, composta dos padroes de interdependencia entre osliMes sociais e das fontes e canais institucionais de conflito.

A noy~o de situa~iio hist6rica, correspondendo a uma explicita~~oIIlquele segundo uso dado a situa~~o social e aanalise situacional, nao

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I,

deixa no entanto de estar marcada por distin~oesconceituais e esquemasinterpretativos caracteristicos de certas anaIises politicas de umaconjuntura especifica. Uma compar~l\o sistematica entre esse trabalho deGluckman e a classica analise de Marx em 0 18 Brumario de LuisBonaparte (1968) revelaria muitas similaridades na preocupa~l\o dediferenciar internamente e de buscar a unidade de cada ator e grupo; natentativa de captar 0 jogo de aliancas e oposi~<'ks como urn resultado dere~<'ks de interdependencia em contextos especfficos; no destaque dado aoprocesso de elabora~l\o social de urna condi~ao de relativo equilibrio, comesferas onde os conflitos se expressam apenas por determinadas regras.

Em extensa medida a analise que se segue nos pr6ximos capitulos foialimentada por conceitos e discuss<'ks caracteristicos da antropologiapolitica. Ainda que uma noc~o como regime, de.transito melhor entrecientistas politicos e antrop610gos, tenha urn sentido muito pr6ximo aode situaf;tlO historica, preferi manter esta ultima nocl\o por considera-lamais abrangente, podendo servir tanto para situa~<'ks em que a politica euma esfera especializada em eventos e atividades, quanta para outrassitua~<'ks em que a politica esta embutida juntamente com outrosdominios da vida social. Ja a no~ao de regime, muito embora aantropologia politica tenha Ihe expurgado toda possivel associa~l\o com anocl\o de Estado, parece adequar-se melhor a situa~oes nas quais osfenomenos politicos parecem encadear-se em urn campo de rela~oes

relativamente autonomo.Diferentemente de outras formas de analise, a situaf;iio historica nl\o

estimula qualquer dualismo (moderno x tradicional ou sociedade nacional xgmpo indigena), nem favorece 0 artificialismo de esquemas analiticos queenquadram 0 contato como uma unidade social sui-generis masparadoxalmente pensada em moldes convencionais. Em tal conce~l\o 0contato interetnico precisa ser pensado como uma situa~l\o, isto e, comourn conjunto de relacoes entre atores sociais vinculados a diferentes gmposetnicos. A unidade desta situa~l\o nl\o e urn pressuposto te6rico queexplique todos os fatos, mas algo a ser pesquisado e cuidadosamentedefinido pelo estudioso do contato, que deve buscar tal unidade no processoconcreto de intera~o social e nas perce~s que dele tern os diferentesgmpos (etnicos e outros) envolvidos.

Na perspectiva analitica proposta por Barth, se inverte a posturatradicional, de que primeiro as unidades culturais sl\o definidas eintemamente organizadas, depois mantem rela~<'ks extemas umas com asoutras. 0 contato interetnico e, ao contrario, urn fato constitativo, quepreside a propria organiza~l\o interna e ao estabelecimento da identidade deurn grupo etnico. Como procurarei fundamentar mais adiante (para issoapoiando-me em Paine, Berreman e outros), para urn individuo localizadoem uma situa~l\o de,contato, onde estao envolvidas igualmente diferentesculturas, a adesao ao seu pr6prio c6digo cultural nao e urn fatoautomatico, compulsivo, mas passa pela percep~ao da diferen~a, daconstata~ao de existencia de outros padroes e crencas, que podem ser

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1I11mente atualizados em contextos limitados e atendendo a interesses ouY lIItagens setoriais. A situa~1io de contato interetnico de certo modoI naturaliza os c6digos culturais em que uma pessoa foi socializada,

Ir In formando as normas de ~ao em uma (entre outras) possibilidade de,lInduta: os valores de orienta~ficando como componentes de ideologiasIII rnattvas. As normas e 0 saber politico de cada gmpo etnico ganham

11111 signific~ao adscrita aquela situa~o de contato, tendendo a refletir eII '()rporar (poe urn processo relativamente consistente de tradu~ao cultural)II lOS padr<'ks e simbolos de outras culturas, nl\o decorrendo apenasIklflanto de interesses, costumes e valores da tradi~ao.

m sua utiliza~l\o nos capitulos seguintes, na analise do contato"' rctnico no Alto Solimoes, a n~l\o de situa~ao hist6rica poderia ser

II f nida pela capacidade que assume temporariamente urna agencia detlllta~ d~ produzir, atraves da imposicao de interesses, valores e padroes

ur umzattvos, urn certo esquema de distribuiCl\o de poder e autoridade entreII diferentes atores sociais ai existentes, baseado em urn conjunto de1111 rdependencias e no estabelecimento de determinados canais paraI oluCl\o de conflitos. •

A: i~~tauracao regular dessa dominacl\o pressupOe --' alem da ameaca ouJIll. slblhdade de uso de fatores coercitivos - 0 estabclecimento dedlfaentes graus de compromisso com cada urn dos diversos atores, alem de

La do~e de legitimidade, proveniente de uma conexiio positivaI beleclda pelo grupo etnico s,ubordinado entre esta dominacl\o e seus

Jlr prios valores liltimos33 . E por meio dessas imerdependencias,IImpromissos e legitimidade (obtida esta, no caso, em virtude justamente

111.~ diferentes interpretaf;oes sobre 0 poder polftico e sobre 0 proprioufltverso), que 0 grupo dominante passa a articular e representar interesses"uros que niio os seus pr6prios, obtendo certa dose de consenso eJlI/lsando a exercer 0 poder de urn modo hegemonico, em nome deIII resses e valores mais gerais que os seus pr6prios.

I Niio p,?de haver uma a~alis~ situacional caso ~e. omita a visao que osII tlvos tern do processo hlst6nco; mas tambern limllar-se a esta 6tica ouII .~reve; tao~s?mente visOes dife~entes e polar~zadas dos brancos e' dosIllh?s, e sacn~lcar a ?usca de umdade e dmamlSmo do campo para maior16na das anal~ses dua~lstas. Como reflete Wachtel, fazendo urn reparo critico,III certa medlda ~phcavel ,a ~ua pr6pria pesquisa: "Nos esfor~amos por

II t,,!bar a perspecuva eurocentnca enos colocarmos do ponto de vista dosY nCldos (.. .) Mas s6 0 ponto de vista dos vencidos seria tao parcial quanto 0

I Into. de ViSta dos vencedores. 0 que importa e restituir (ou ao menosIllgenr) uma visiio global da hisl6ria" (Wachtel, 1971 :307).

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Page 23: Jpo   o nosso governo - cap 01

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roso grupo indigena do pais, com cer -a\'>__~~_' ../,<.",,---.~~A'lJ~~de18.0001!1embros.~~> ..J ___.___../

Neste Iivro, 0 autor - doutorem An· "< ~--,~ -~

tropologia pelo Programa de pas· '-----':"'.. ' ~-~~...--Gradua~ao do Museu Nacional da UFRJ -~-, ,(Universidade Federal do Rio de Janei·ro) - examina amudan~a social e0 pro·'cesso de domina~ao vividos pelos Ticu·na, vistos tambem apartir da otica dosproprios indios. Analisa, assim, comoum grupo etnico com elementos vivoseatuantes de sua propria organiza~ao

social ede sua cosmologia, se adapta,resiste ereinterpreta aa~ao do Esta~o.

Nao se trata de uma analise conven·cional na Iinha estruturalista enfocandouma tribo isoladaeem condi~6es de suoposto equilibrio, mas sim de um estudosobre as rela~6es entre um grupo indiogena e0 Estado brasileiro, representa·do pelo orgao oficial de assistencia (0SPI.e depois a FUNAI).

Euma analise extremamente ricaque, ao se detersobre um grupo amaze)·nicoeseu destino, suas lutas eseus ini·migos (entre os quais 0 mais recente eochamado Projeto Calha Norte, do Con·selho de Seguran~a Nac!onal); i1uminade maneira exemplar aquestao indige·na na AmazOnia atual.