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- Você prefere passar uma semana sem comer, mas ter os seus livros daqui a mil anos analisados nas escolas? - Analisados nas escolas, nunca. Mas lidos, mas amados, sem dúvida.
Campos Lara, personagem de O feijão e o sonho
Maratona Orígenes Lessa
Para ser exato, devo dizer que sofro de literatura hereditária ou adquirida, em segundo ou terceiro grau. Os primeiros sintomas esboçaram-se muito cedo. Não se assuste!
Sobre o ato de escrever
Maratona Orígenes Lessa
Em geral eu começo quando tenho vontade ou necessidade de escrever (esta 'necessidade' é geralmente de ordem externa, pedido ou encomenda do editor), quase sempre eu começo com um ideia vaga do que vou escrever, ou melhor, do que vai acontecer. Como o grosso das coisas que tenho escrito é no domínio da ficção, para mim as coisas acontecem mesmo, às vezes com total surpresa para mim. É por isso, talvez, que tenho conseguido escrever tanto...
Maratona Orígenes Lessa
Quanto a me chamar de escritor, considero o título muito grande para mim. Prefiro usar o título dado por um sobrinho, que me chama de escrevedor.
Maratona Orígenes Lessa
Maratona Orígenes Lessa
Literatura é sempre a mesma coisa. A postura da literatura em qualquer país deve ser, acima de tudo, de independência e de repulsa a qualquer forma de injustiça e manifestação de corrupção... (...) a luta do homem que escreve é exatamente a luta do homem que sabe que a violência não resolve coisa alguma. O fundamental é que o escritor tenha uma escolha e não deixe de se comprometer em qualquer luta em benefício do seu povo.
Atividades
Leitura de textos do autor
Pesquisa biográfica
Produção escrita
Maria Alice abandonou o livro onde seus dedos longos liam uma história de
amor. Em seu pequeno mundo de volumes, de cheiros, de sons, todas aquelas
palavras eram a perpétua renovação dos mistérios em cujo seio sua
imaginação se perdia. Esboçou um sorriso... Sabia estar só na casa que
conhecia tão bem, em seus mínimos detalhes, casa grande de vários quartos
e salas onde se movia livremente, as mãos olhando por ela, o passo calmo,
firme e silencioso, casa cheia de ecos de um mundo não seu, mundo em que
a imagem e a cor pareciam a nota mais viva das outras vidas de ilimitados
horizontes.
Como seria cor e o que seria? Conhecia todas pelos nomes, dava com elas
a cada passo nos seus livros, soavam aos seus ouvidos a todo momento,
verdadeira constante de todas as palestras. Era, com certeza, a nota
marcante de todas as coisas para aqueles cujos olhos viam, aqueles olhos
que tantas vezes palpara com inveja calada e que se fechavam, quando os
tocava, sensíveis como pássaros assustados, palpitantes de vida, sob seus
dedos trêmulos, que diziam ser claros. Que seria o claro, afinal? Algo que
aprendera, de há muito, ser igual ao branco. Branco, o mesmo que alvo,
característica de todos os seus, marca dos amigos da casa, de todos os
amigos, algo que os distinguia dos humildes serviçais da copa e da cozinha,
às vezes das entregas do armazém. Conhecia o negro pela voz, o branco pela
maneira de agir ou falar. Seria uma condição social? Seguramente. Nos
primeiros tempos, perguntava. É preto? É branco? Raramente se enganava
agora. Já sabia... Nas pessoas, sabia... Às vezes, pelo olfato, outras, pelo
tom de voz, quase sempre pela condição. Embora algumas vezes – e aquilo a
perturbava – encontrasse também a cor social mais nobre no trato das
panelas e na limpeza da casa. (...) Que seria a cor, detalhe que fugia aos seus
dedos, escapava ao seu olfato conhecedor das almas e dos corpos, que o
seu ouvido apurado não aprendia, e que era vermelho nas cerejas, nos
morangos e em certas gelatinas, mas nada tinha em comum com o adocicado
de outras frutas e se encontrava também nos vestidos, nos lábios (...), em
certas cortinas, naquele cinzeiro áspero da mesinha do centro, em
determinadas rosas (e havia brancas e amarelas), na pesada poltrona que
ficava à direita e onde se afundava feliz para ouvir novelas? Que seria a cor,
que definia as coisas e marcava os contrastes, e ora agradava, ora
desagradava? (...) E que seria ver? Era o sentido certamente que permitia
evitar as pancadas, os tropeções, sair à rua sozinho, sem apoio de bengala, e
aquela inquieta procura de mãos divinatórias que tantas vezes falhavam. Era
o sentido que permitia encontrar o bonito, sem tocar, nos vestidos, nos
corpos, nas feições, o bonito, variedade do belo e de outras palavras sempre
ouvidas e empregadas e que bem compreendia, porque o podia sentir na voz
e no caráter das pessoas, nas atitudes e nos gestos humanos, no Rêve d’Amour, que executava ao piano, e em muita coisa mais...
Ver era saber que um quadro não constava apenas de uma superfície
estranha, áspera e desigual, sem nenhum sentido para o seu mundo interior,
por vezes bonita, ao seu tato, nas molduras, mas que para os outros figurava
casas, ruas, objetos, frutas, peixes, panelas de cobre (...) e, em certos casos,
mesmo para os outros, não dizia nada...
Claro que via muito pelos olhos dos outros. Sabia onde ficavam as coisas e
seria capaz de descrevê-las nos menores detalhes. Conhecia-lhes até a cor...
Se lhe pedissem o cinzeiro vermelho, iria buscá-lo sem receio. E sabia dizer,
quando tocava em Ana Beatriz, se estava com o vestido bege ou com a blusa
lilás. E de tal maneira a cor flutuava em seus lábios, nas palestras diárias, que
para todos os familiares era como se a visse também.
— Ponha hoje o vestido verde, Ana Beatriz...
Dizia aquilo um pouco para que não dessem conta da sua inferioridade,
mais ainda para não inspirar compaixão. Porque a piedade alheia a cada
passo a torturava e Maria Alice tinha pudor de seu estado. Seria mais feliz se
pudesse estar sempre sozinha como agora, movendo-se como sombra muda
pela casa, certa de não provocar exclamações repentinas de pena, quando
se contundia ou tropeçava nas idas e vindas do cotidiano labor.
— Machucou, meu bem?
Doía mais a pergunta. Certa vez a testa sangrava, diante da família
assustada e do remorso de Jorge, que deixara um móvel fora do lugar mas
teimava em dizer que não fora nada. E quando insistiam, com visita presente,
para que tocasse piano, era sistemática a recusa.
— Maria Alice é modesta, odeia exibições...
Outro era o motivo. Ela muita vez bem que ardia em desejos de se refugiar
no mundo dos sons, para escapar aos mexericos de toda a gente... Mas como
a remordia a admiração piedosa dos amigos... As palmas e os louvores
vinham sempre cheios de pena e havia grosserias trágicas em certos
entusiasmos, desde o espanto infantil por vê-la acertar direitinho com as
teclas à exclamação maravilhada de alguns:
— Muita gente que enxerga se orgulharia de tocar assim... (...)
E como tinha os outros sentidos mais apurados, sempre se antecipava na
descrição das pessoas e coisas. Sabia se era homem ou mulher o recém-
chegado, antes que se pusesse a falar. Pela maneira de pisar, por mil e uma
sutilezas. Sem que lhe dissessem, já sabia se era gordo ou magro, bonito ou
feio. E antes que qualquer outro, lia-lhe o caráter e o temperamento. (...)
O livro abandonado sobre a mesa, o pensamento de Maria Alice caminhava
liberto. Recordava agora o largo tempo que passara no Instituto, onde a
família julgara que lhe seria mais fácil aprender a ler. Detestava o ambiente de
humildade, raramente de revolta, que lá encontrara. Vivendo em comunidade,
sabia facilmente quais os que enxergavam, sem que nenhum destes se desse
conta disso ou dissesse que enxergava. Pela simples linguagem, pela maneira
de agir o sabia. E ali começara a odiar os dois mundos diferentes. O seu, de
humildes e resignados, cônscios de sua inferioridade humana, o outro, o da
piedade e da cor.
— Me dá o cinzeiro vermelho, Maria Alice...
Maria Alice dava.
— Vou ao cinema com o vestido claro ou com aquele estampado, Maria
Alice?
Maria Alice aconselhava.
Ninguém conseguia entender como sabia ela indicar qual o sapato ou a
bolsa que ia melhor com este ou aquele vestido. Quase sempre acertava.
Assim como ninguém sabia que, com o tempo, Maria Alice fora identificando
as cores com sentimentos e coisas. O branco era como barulho de água de
torneira aberta. Cor-de-rosa se confundia com valsa. Verde, aprendera a
identificá-lo com cheiro de árvore. Cinza, com maciez de veludo. Azul, com
serenidade. Dizia que o céu era azul. Que seria o céu? Um lugar, com certeza.
Tinha mil e uma ideias sobre o céu. Deus, anjos, glória divina, bem-
aventurança, hinos e salmos. Hendel. Bach. Mas sabia haver um outro,
material, sobre as pessoas e casas, feito de nuvens, que associava à ideia do
veludo, mais própria do cinza, apesar de insistirem em que o céu era azul.
Aquelas associações materiais, porém, não a satisfaziam. A cor realmente
era o grande mistério. Sentira muitas vezes que o cinza pertencia a
substâncias ásperas ou duras. Que o branco estava no mármore duro e na
folha de papel, leve e flexível. E que o negro estava num cavalo que relinchava
inquieto, com um sopro vigoroso de vida, e na suavidade e leveza de um
vestido de baile, mas era ao mesmo tempo a cor do ódio e da negação, a
marca inexplicável da inferioridade.
E agora Maria Alice voltava outra vez ao Instituto. E ao grande amigo que lá
conhecera. Voltavam as longas horas em que falavam de Bach, de Beethoven,
dos mistérios para eles tão claros da música eterna. Lembrava-se da ternura
daquela voz, da beleza daquela voz. De como se adivinhavam entre dezenas
de outros e suas mãos se encontravam. De como as palavras de amor tinham
irrompido e suas bocas se encontrado... De como um dia seus pais haviam
surgido inesperadamente no Instituto e a haviam levado à sala
do diretor e se haviam queixado da falta de vigilância e
moralidade no estabelecimento. E de como, no momento em
que a retiravam e quando ela disse que pretendia se despedir
de um amigo pelo qual tinha grande afeição e com quem se
queria casar, o pai exclamara horrorizado:
— Você não tem juízo, criatura? Casar-se com um mulato?
Nunca!
Mulato era cor.
Estava longe aquele dia. Estava longe o Instituto, ao qual não
saberia voltar, do qual nunca mais tivera notícia, e do qual
somente restara o privilégio de caminhar sozinha pelo reino
dos livros, tão parecido com a vida dos outros, tão cheio de
cores...
Um rumor familiar ouviu-se à porta. Era a volta do cinema.
Ana Beatriz ia contar-lhe o filme todo, com certeza. O rumor –
passos e vozes – encheu a casa.
— Tudo azul? – perguntou Ana Beatriz, entrando na sala.
— Tudo azul – respondeu Maria Alice.
Biografia Orígenes Lessa nasceu em Lençóis Paulista, em 12/07/1903.
Em 1906, foi viver com a família em São Luís do Maranhão,
acompanhando a jornada do pai, missionário protestante. Da
experiência de sua infância resultou o romance Rua do Sol.
De volta a São Paulo, entre os 12 e 13 anos “estreou” na
“escritura”, por meio de textos em jornais escolares.
Depois de viver uma experiência de dois anos em um seminário,
transferiu-se para o Rio de Janeiro. Rompido com a família,
ingressou no magistério, após o curso de Educação Física,
trabalhando como instrutor de ginástica.
Ingressou no jornalismo, publicando artigos em “O Imparcial”.
Após vivências no teatro, voltou a São Paulo para trabalhar como
publicitário, tornando-se um dos maiores profissionais do país.
Em 1929, passou a escrever no Diário da Noite de São Paulo e
publicou a primeira coleção de contos, O escritor proibido,
calorosamente recebida pela crítica.
Seguiram-se a essa coletânea Garçon, garçonnette,
garçonnière, menção honrosa da Academia Brasileira de
Letras, e A cidade que o diabo esqueceu.
Em 1932 participou da Revolução Constitucionalista. Preso,
escreveu Não há de ser nada e Ilha Grande, jornal de um
prisioneiro de guerra.
Enveredou pela literatura de vez, publicando o volume de
contos Passa-três, a novela O joguete e o romance O feijão e o sonho, obra adaptada, anos depois, para a TV.
Em 1942, diretamente de Nova York, trabalhou na
radiodifusão de programas da NBC para o Brasil.
A partir de 1970 dedicou-se também à literatura
infantojuvenil, chegando a publicar, nessa área, quase 40
títulos, que o tornaram um autor conhecido e amado pelas
crianças e jovens brasileiros.
Foi casado com a jornalista e cronista Elsie Lessa, sua
prima-irmã, com quem teve um filho, o jornalista, cronista
e escritor Ivan Lessa.
Seu segundo casamento foi com Edith Thomas, mãe de
seu outro filho, Rubens Lessa.
Faleceu no Rio de Janeiro, em 13 de julho de 1986. Foi eleito em
9 de julho de 1981 para a Cadeira n. 10 da Academia Brasileira
de Letras, na sucessão de Osvaldo Orico.
contos
reportagem
literatura infantil e juvenil
literatura infantil e juvenil
Sua obra mais conhecida...
O feijão e o sonho é a história do poeta
Campos Lara e sua mulher, Maria Rosa –
ele, um homem sonhador voltado para o
seu ideal de criação, disposto a todos os
sacrifícios para viver de sua literatura;
ela, uma mulher de pés no chão, valente
e batalhadora, às voltas com o trabalho
da casa e a criação dos filhos,
inconformada com o conformismo diante
da vida do marido e sempre a exigir dele
mais empenho, mais feijão e menos
sonho, para garantir o sustento da
família. Um tema ao mesmo tempo social
e intimista, explorado com humor e uma
discreta ternura, permeada da visão
crítica que caracteriza o autor.
Publicado em 1938, foi recebido com
admiração por leitores e críticos, o livro
conquistou premiação expressiva.
literatura infantil e juvenil (tradução)
A coleção “Enrola e Desenrola” teve formato narrativo original: o leitor
participava da escolha dos episódios, que gerava inúmeras
possibilidades no desenrolar da história. Esses livros foram os
precursores dos RPGs, mas com a diferença de não dependerem de
outros participantes para o "jogo".
Literatura de cordel
Curiosidade
Orígenes Lessa era admirador
dos poetas populares, dando-lhes
visibilidade em diversos eventos.
Mas teve uma desavença com Sá
de João Pessoa, porque Orígenes
subverteu um dos “combinados”
do mundo do cordel: fazer apenas
homenagens póstumas.
Contrariando essa lógica, o
cordelista fez um folheto sobre
Orígenes, que distribuiria apenas
entre amigos, mas... O poeta se
justificou com o prosador, que lhe
devolveu os seguintes versos:
I Colega, peço licença pra baixar no seu terreiro mas lhe quero agradecer o necrológio maneiro com que você antecipa meu suspiro derradeiro. II Quando o meu dia chegar – para alguns um dia atroz – vou procurar o Leandro, quero ouvir-lhe a nobre voz, vou buscar Chagas Batista que é mestre de todos nós. III Vou pedir lição de verso que eu não quero fazer feio na hora de aparecer de repente em chão alheio pra contar as novidades que vi dos mortos no meio.
IV Muito povo me interessa no vasto império do Além, eu quero levar um papo com o velho Matusalém, vou ver se Adão me recebe e a dona dele também. V Se ao morrer se arrependeram (só no céu vou me esbaldar) eu gostaria de os ver, para um pé também lhes dar, Hitler, Nero e outros patifes, mil pecados por pagar. VI Todos eles, bons ou maus, que da terra se mandaram, na minha cuca em delírio vertiginosos bailaram ao simples ler dos seus versos
que tanto me impressionaram.
VII Logo vi, porém, que tudo não passava de ilusão minha hora não chegara, ia haver continuação, inda um pouco me sobrava pra viver no mundo cão. VIII Não sei que tempo me resta não sei que tempo será... um ano? um mês? um minuto? que tempo Deus me dará? sei que a morte é uma pergunta, quando vem, quem sabe lá? IX Mas agora estou sereno, vou ficar em paz imensa não há vida que me assuste, não há morte que me vença pra ganhar seu necrológio qualquer morte é recompensa...
Elaborado por Luciane A. Almeida
E/SUBE/CED/GME
15 de setembro de 2016