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Monografia UFRJ/IFCS Conrado Cavalcante
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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
Contribuições da Filosofia de Spinoza para um
Pensamento da Ecologia Contemporânea
Trabalho de Conclusão de Curso – 2010/2
Aluno: Conrado Cavalcante Lima e Silva
DRE: 105083826
Prof. Orientador: André Martins
2 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA DE SPINOZA PARA UM PENSAMENTO DA
ECOLOGIA CONTEMPORÂNEA
Trabalho de conclusão de curso apresentado à Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. André Martins Vilar de Carvalho
CONRADO CAVALCANTE LIMA E SILVA
4 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
Agradecimentos
Aos amigos e familiares. Aos parceiros cariocas e serranos, baianos, gaúchos, mineiros e
paulistanos. Aos parceiros das confrarias musicais e filosóficas. Aos parceiros de projetos. Ao
corpo técnico-administrativo e docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ao grupo
“BIOCHIP” da PUC-Rio. Meu sincero agradecimento.
5 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
LISTA DE ABREVIATURAS DAS OBRAS DE SPINOZA UTILIZADAS
E - Ética
TTP – Tratado Teológico-Político
6 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
Sumário
1. Introdução 7
2. Não separabilidade homem-natureza 13
3. Direitos do homem X Direitos da natureza? 16
4. O Princípio da utilidade 22
5. Conclusão 28
7 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
1- Introdução
Um dilema atual da contemporaneidade, massivamente despertado pela
mídia e de alguma forma imposto pela realidade, da possibilidade do
esgotamento dos recursos naturais que sustentam o suporte da vida
humana no planeta, demanda do conhecimento uma cruzada por novas
linhas de pesquisa interessadas em orientar as práticas humanas em suas
mais variadas manifestações, da produção industrial à criação de meios
de subjetivação. A fi losofia pode se propor uma reflexão sobre este atual
paradigma encontrando raízes nos pensamentos que vieram a dar em
nossa ecologia . O problema não é novidade; a partir dos anos sessenta,
como nos conta a autora Maria Luísa Ribeiro Ferreira1, em seu texto
“Spinoza, um ecologista ‘avant la let tre’?”2, vários fi lósofos foram
relidos a partir dessa perspectiva, como é o caso de Spinoza. Algumas
décadas antes, durante o regime hitlerista, algumas das leis mais
importantes em relação à proteção animal que já se tinha visto foram
levadas a cabo, como analisa o filósofo Luc Ferry3, problematizando as
origens talvez obscuras do ecologismo e, em geral , mostrando sua
estreita e confusa relação com a tradição humanista. Textos que revelam
nossa responsabilidade diante do pensamento da ecologia, pelos
desdobramentos ético-políticos que a ecologia logrou alcançar. Entre o
mais alto grau de entusiasmo de certos ecologistas e o mais alto grau de
responsabilidade do pensamento teórico existe, contanto, uma atmosfera
de importante reflexão sobre o tema da ecologia e suas implicações.
As linhas de ecologismo que vieram a consti tuir o paradigma
contemporâneo da ecologia, principalmente a ecologia profunda (umas
das que buscou se justificar com a Filosofia, notadamente a de Spinoza),
mantêm imprecisões filosóficas e visões que se acirram a respeito dos
1 Professora da Universidade de Lisboa.
2 Maria Luísa Ribeiro Ferreira, Spinoza, um Ecologista “Avant La Lettre”?
3 No livro A Nova Ordem Ecológica. FERRY, Luc. A Nova Ordem Ecológica: a árvore, o animal e o homem.
Rio de Janeiro: Difel, 2009. Trad: Rejane Janowitzer.
8 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
mesmos textos. É preciso, pois, novamente analisá-los, uma vez que a
filosofia de Spinoza se mostra útil para a ecologia. A questão central é a
de que a Filosofia espinosista é em essência ecológica, porque não
separa o homem da natureza, como faz a tradição humanista, e desloca da
natureza o antropomorfismo e a teleologia também característicos dessa
mesma tradição4. Porém, mais do que reafirmar a novidade proposta por
Spinoza, este trabalho se dedica a analisar, agora sob a pressão das
últimas demandas da “cruzada ecológica”, os pontos dos textos de
Spinoza que mais exigem compreensão dos ecologistas.
Na proposição 37 da parte IV da Ética Spinoza nos diz que “[.. .] a
lei que proíbe matar os animais é fundada mais numa vã superstição e
numa efeminada misericórdia que na sã Razão”. Proposição que
inicialmente parece controversa para muitos leitores, quando questionada
do ponto de vista ecológica, assusta pela precisão. Ali pode estar ou um
desvio de sua filosofia, para os leitores que acham a proposição
controversa, mas também uma resposta simples e contundente de Spinoza
para o dilema que opõe hoje os direi tos humanos e os “direitos da
natureza” no âmbito do ecologismo. A questão do valor intrínseco da
natureza, como quer a ecologia profunda, encontra em Spinoza o não-
privilégio da espécie humana dentre os outros modos da natureza.
Perfeito, porém, pelo menos o próprio Spinoza, tendo afirmado que tudo
que existe tem poder de existir, e somente nessa medida tem direito5, e,
poderíamos portanto pensar, valor, nunca afirmou que as coisas têm por
isso igual valor6.
Segundo Luc Ferry, em seu livro A �ova Ordem Ecológica , hoje a
questão é que os ecologistas ou caminharam na direção dos “direitos da
natureza”, defendendo a natureza em si, ou, na esteira dos direitos
humanos, defendem a natureza pelo que representa para o homem. Tais
caminhos os dividiram politicamente, pondo a questão em termos de
revolução contra reformismo. Em artigo bastante cauteloso, Maria Luiza
4 Ibid. Maria Luísa: p. 5 e 6.
5 SPINOZA, Benedictus de. Ética (E). Parte IV, prop. 37, escólio. Tradução e notas de Tomaz Tadeu. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2. Ed. – 2008 6 Arne naess, The Deep Ecological Movement: Some Philosophical Aspects, p. 14.
9 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
Ribeiro Ferreira defende a moderação do entusiasmo dos ecologistas com
os textos espinosistas. Arne Naess, o filósofo norueguês que primeiro
tratou de unir os conceitos da ecologia profunda com argumentos
espinosistas, é um defensor ardoroso desta filosofia, porém sua
interpretação pode ser problemática ou incompleta. Felix Guattari , em As
Três Ecologias , fez um relato bastante realista a respeito da questão
ecológica, explicitando uma linha de continuidade entre a fi losofia e a
ecologia e defendendo, portanto, intrínseca relação entre estas. Nenhum
dos textos, no entanto, esgota o assunto, e muito longe disso, apenas
abrem um importante caminho para a reflexão. Claro que a ausência de
um uma articulação ético-política tem de ser posta à prova. É nesse
contexto que convidamos a filosofia de Spinoza, para ampliar a
discussão das principais questões, no campo político, enfrentadas hoje
pela ecologia.
O mérito da pesquisa é o de buscar novamente nos livros Ética ,
Tratado Político e Tratado Teológico-Político respostas para o confli to
dos direitos humanos em oposição ao direi to da natureza, questão que
tende a ser dissolvida a partir dessa perspectiva. A expectativa é de
encontrar mais pontos que favoreçam o pensamento de uma ecologia,
acreditando que um sistema essencialmente ecológico deve guardar mais
do que ganchos para se pensar o assunto.
A proposta aqui é a de realizar uma leitura deste sistema buscando
compreender como sua Natureza jamais separa o homem do ambiente em
que vive, construindo-se a partir da perspectiva imanente e inaugurando
uma visão potente para a criação de orientações capazes de articular os
diferentes registros da ecologia (Guattari, 1993). Nesta proposta o que
se mostra problemático é a multiplicidade das interpretações dos textos
spinozanos, que estão presentes em muitas das linhas do pensamento
ecológico, às vezes dividindo, como no caso da Ecologia Profunda7, os
meros ambientalistas dos defensores mais radicais da ecologia. Tais
divergências têm razão de ser: ao mesmo tempo em que traz a
7 Arne Naess, “The Shallow and the Deep. Long-Range Ecology Movements”, Bucarest, 1972.
10 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
perspectiva não antropomórfica para o vocábulo Deus e se rompa de
forma veemente com a teleologia, a filosofia de Spinoza sustenta o
argumento da utilidade em que o humano, de acordo com o seu poder de
existir , possa se valer dos animais para seu proveito. Idéias que custam
caro à ecologia. Outro ponto de divergência é a implicação irrestrita da
expressão “Deus sive �atura”, de Spinoza, que gera interpretações de um
deus finito, mas ao mesmo tempo de uma natureza que pré-existe em
relação aos seus modos. Problemas, enfim, concernentes à leitura de
Spinoza, que em face da discussão ecológica tomam posturas
solidamente divergentes e dão origem a grupos dist intos, mas que
creditam seus ideais ao mesmo filósofo.
Compreendendo a Natureza spinoziana, vemos que a busca por um
pensamento ecológico nesse sistema pode ser redundante, uma vez que
toda esta filosofia é de tal forma elaborada que não preconiza a invenção
de técnicas de exploração da natureza pelo homem, ao contrário,
descreve a contiguidade do homem e da natureza, através da
indiferenciação de seus atributos, como veremos detalhadamente adiante.
Suas diferenças reais de outros seres não-humanos provêm antes de sua
condição de serem modos da substância, não configurando, portanto,
nenhum privilégio ontológico entre estes domínios, que por tradição
mantivemos separados ou separáveis. A natureza como um todo, sim,
esta guarda consigo anterioridade ontológica em relação ao homem. Aqui
lembrando que o atributo pensamento, que em outras filosofias
diferencia o homem dos outros seres, em Spinoza existe com estatuto
natural, isto é, o atributo pensamento é um dentre infinitos nos quais
sempre se expressa a natureza, e assim é nos seres humanos. Com efeito,
preconceitos residuais da Filosofia atuam contra essa compreensão: a
noção de livre-arbítrio, por exemplo, que configura a metafísica do
possível (Chauí, M., 2008), obscurece a noção de que “não existe nada
de cuja natureza não se siga algum efeito” (E I, prop. 36) e que tudo é
11 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
determinado a agir de tal modo (EI prop. 29), que configura a ontologia
spinoziana como a ontologia do necessário8.
A idéia dos mundos possíveis – tão natural para o pensamento tradicional
– ao qual Deus estaria sempre por abandonar na direção da
presentificação do mundo; eis como se justificou na tradição teológica a
natureza como causa livre, volitiva: o oposto ao engendramento de
substância, modo e atributo realizado por Spinoza. O que veremos é que
em Spinoza, “Deus ou a Natureza” (EI, prop. 29 escólio) age
necessariamente, porque se compreende infinita e necessariamente, o que
confere à natureza um papel intrinsecamente ativo9. Isto é, a natureza
não está conforme fins10, ela é puramente atividade; ela não alcança, mas
se extende. Assim se rompe com a tradição teleológica.
Deste modo, ainda que Deus ou a Natureza nunca sejam constrangidos
por nada a agir desta ou daquela maneira; porque se compreende infinita
e necessariamente, age necessariamente. Assim a Natureza não criou o
mundo por livre vontade, mas porque se compreende, daí seu caráter
ativo. O homem, na medida em que é uma modificação da substância ou
da natureza, vive em interação modal com todas as outras modificações,
sendo constantemente constrangidos por estas.
Nesta interação, e não fora dela, é que podemos pensar uma ecologia que
ao contrário de propor um retorno a certo estado de natureza, reconheça
que quando o homem “modifica” a natureza, modifica a si mesmo, e que
além de ser impossível um retorno para de onde nunca saímos, este seria
em si indesejável .
A natureza não nos dá objetos, instrumentos e coisas criadas, o que seria
fruto da idéia de um mundo criado, mas é o homem que, criando com a
natureza, e meditando em nada mais que na vida, busca melhorar suas
condições de existência. É seguindo uma lógica de mercado, que busca
soluções individuais para problemas coletivos que as condições humanas
8 CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 95
9 DELEUZE, G. Spinoza et le problème de l’expression.Paris: Les Éditions de Minuit, 1968, p. 87-90 .
10 Para isso ver os prefácios às partes I e IV da Ética e EI prop. 16.
12 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
de vida aparecem como obstáculo para outras formas de vida. Porém,
como nos ensina Spinoza, a fel icidade é algo de ordem social11, e
podemos gozar dela por via da coletividade, o que de nenhum modo
exclui as outras formas da natureza.
Vamos ao desenvolvimento.
11
“O sumo bem, contudo, é chegar ao ponto de gozar com outros indivíduos, se possível, dessa natureza. Qual, porém, seja ela mostraremos em seu lugar, a saber, o conhecimento da união que a mente tem com toda a natureza. Este é, portanto, o fim ao qual tendo: adquirir uma natureza assim e esforçar-me por que muitos a adquiram comigo; isto é, pertence também à minha felicidade fazer com que muitos outros entendam o mesmo que eu (...). E para que isso aconteça, é preciso entender tanto da Natureza quanto baste para adquirir semelhante natureza; a seguir, formar uma tal sociedade como é desejável para que o maior número chegue a isso do modo mais fácil e seguro.” Tratado da Correção do Intelecto, § 13 e 14, trad. de Carlos Lopes de Mattos, Editora Abril , 1973.
13 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
2- �ão-separabilidade homem-natureza
Lê-se no prefácio à parte III da ética:
“Os que escreveram sobre os afetos e o modo de vida dos homens parecem, em sua maioria, ter tratado não de coisas naturais, que seguem as leis comuns da natureza, mas de coisas que estão fora dela. Ou melhor, parecem conceber o homem na natureza como um império num império. Pois acreditam que, em vez de seguir a ordem da natureza, o homem a perturba, que ele tem uma potência absoluta sobre suas próprias ações e que não é determinado por nada mais além de si próprio.”
Quando lemos um trecho como esse, temos a certeza de que Spinoza fala
de um homem plenamente inseparável da natureza, porém simplesmente
nossa contemporaneidade tem dificuldade em compreender isso.
É, no entanto, necessário uma limpeza conceitual , um certo esvaziamento
dos sentidos das palavras para nos encontrarmos verdadeiramente com o
que nos diz Spinoza. Acredito que muito dessa dificuldade na leitura de
suas obras deve-se justamente ao conceito fundante de natureza. É o que
deixa ver o prefácio à parte III da Ética, quando nos diz claramente que
os afetos, considerados em si mesmos, seguem a mesma necessidade da
ordem comum da natureza. De forma simplificada, enquanto modo ou
coisa singular, cada homem e cada mulher e cada ser vivo ou inanimado
ou é compreendido pela Natureza (Deus) ou pela própria natureza (EI
definição 5), neste último caso, no entanto, não se compreende
verdadeiramente sem as outras partes da natureza (EIV capitulo 1 do
apêndice). Acrescenta-se que enquanto pode ser concebido por si mesmo,
deve-se assim proceder12.
12
Isso decorre tanto das definições da primeira parte da Ética quanto da própria definição de conatus na EIII proposição 6: “Cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar em seu ser”. Além disso, em se falando da criação de leis humanas, no capítulo IV do Tratado Teológico-Político, Spinoza acrescenta: “(...)Essas leis dependem, como disse, da decisão do homem, porque devemos definir e explicar as coisas pelas suas causas próximas (...)(SPINOZA, Benedictus de. Tratado Teológico-Político. São Paulo: Martins Fontes, 2008. Trad: Diogo Pires Aurélio, p. 58)
14 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
Por isso quando Spinoza afirma, seja com o princípio de uti lidade, seja
com o conatus , que os homens em sua relação com a natureza (do que
afinal nunca deixou de falar a Ética) devem se guiar não pelas potências
exteriores mas pela sua própria, não é de uma parte isolada que está
falando, e sim de um humano que não pode ser compreendido sem as
outras partes da natureza. Pois, como vimos, esta é a forma correta de se
conceber os modos e as coisas singulares.
Ao contrário, nossa atual moral ecológica, disseminada pelos quatro
cantos e repetida solenemente em todos os cânones da cultura, ciência e
rel igião, não nos diz muito diferente disso: a ati tude individual de cada
um de nós é a única saída para a crise; está nas mãos de sua liberdade
salvar ou detonar o planeta; o homem é uma espécie predatória e
parasitária (os que defendem uma ecologia) ou que é natural o homem
ser tal predador; que não há outro caminho para o progresso humano; que
toda ação humana é em si perturbadora etc (os que repelem a idéia de
uma ecologia).
Porém, desses dizeres morais, muito poucos, ou nenhum deles encontra
eco na filosofia de Spinoza. Ter a ação individual como solução do
problema evidentemente coletivo; desprezar as ações humanas e
menosprezar sua condição; afirmar que o homem é naturalmente
monstruoso e que tudo que ele produz é mau; enfim, são meios
injustificáveis para a finalidade imaginada.
Pois bem, acredito que estaremos complicados se tivermos que situar
Spinoza em uma dessas correntes que hoje são ditas ecológicas, ou
simplesmente, em outras teorias que, não querendo ser ecológicas, se
insurgem contra uma ecologia, mas permanecem na esteira da discussão
da relação do homem com a natureza.
Relação “homem-natureza” que, aliás, não faria sentido a não ser que o
homem fosse “um império num império”, pois, em se falando de uma
ética, está em questão a relação de todos os modos entre si, e, mais
profundamente, de todas as coisas singulares entre si, consideradas em si
mesmas, e por isso como cada potência singular não implica num
15 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
obstáculo e ao mesmo tempo como é vulgarmente comum contemplar
uma negação para a idéia do conatus.
O caminho percorrido pela Ética de Spinoza irá mostrar que não há
diferença entre ética da natureza e ética do homem, e como sendo a
ordem de ambas uma e mesma13, chamamo-la simplesmente ét ica, e por
essa razão, e reconhecendo a mesma falsa dicotomia na idéia de ecologia
(que surge para ser a ética do meio ambiente), poderíamos chamá-la
também simplesmente de ecologia. Ou seja, se a ecologia não designar a
comunidade do homem e da natureza, adequadamente, irá incorrer nos
atuais contrasensos que parecem opor natureza e cultura, homem e
natureza.
Desta forma, longe de fundar uma metafísica, o relevo da infinitude no
sistema spinozista (natura naturans) apenas facilita a concepção de uma
natureza fundante e de coisas naturais, uma longa viagem simplesmente
para garantir que é como natureza que o homem deve ser pensado, em
sua natureza expansiva, sim, pois como modo deve se conceber por si
mesma, porém, como parte, deve se conceber com as outras partes e
modos. A irrealidade de nossa situação está muito mais na aparente
dicotomia homem-natureza.
Mas como aparece essa dicotomia? Absorvida pela linguagem
publicitária e por toda a sorte de mecanismos de poder, para despistar o
verdadeiro problema ecológico que é a péssima distribuição do que é
produzido pelo homem, do desperdício e falta que assim são gerados; o
excesso de segurança e a emergência constante de modos de produção
total izantes etc.
13
Como se pode ler no prefácio à parte III
16 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
3- Direitos do Homem X Direitos da �atureza?
Luc Ferry, em seu livro A Nova Ordem Ecológica, desenvolve importante
argumentação contra as vertentes do ecologismo que vieram a
reinvindicar no seu ápice os direitos da natureza como solução para o
problema ecológico, enxergando na essência dessas vertentes
incoerências e irresponsabilidades no que tange ao projeto político que
delas se multiplicam, identificando os pilares da teoria de Arne Naess e
da Ecologia Profunda, em geral, à idéia central da legislação nazista de
proteção à natureza.
Nos termos da Tierschutzgesetz (lei nazista de 24 de novembro de 1933,
a respeito da proteção dos animais), que retiro da tradução de Luc Ferry:
“O povo alemão teve desde sempre um grande amor pelos animais e
sempre foi consciente das obrigações éticas elevadas que temos em relação
a eles. Mas somente graças à Direção Nacional-Socialista é que a aspiração,
compartilhada por largos círculos, a uma melhora das disposições jurídicas
relacionadas à proteção dos animais e à edição de uma lei específica que
reconhecesse o direito que possuem os animais, como tais, de serem
protegidos por si mesmos foi realizada de fato.”14
Nos termos da Ecologia Profunda, os quais considero indispensáveis
aqui, também extraídos de sua tradução:
“1) O bem-estar e o desenvolvimento da vida humana e não humana sobre
a Terra são valores em si (sinônimos: valores intrínsecos, valores inerentes).
Esses valores são independentes da utilidade do mundo não humano para
as finalidades do homem.
2)A riqueza e diversidade de formas de vida contribuem para a realização
desses valores e, consequentemente, são também valores em si.
3)Os humanos não têm nenhum direito de reduzir essa riqueza e essa
diversidade, a não ser que seja para satisfazer necessidades vitais.
14
Ibid., p. 179
17 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
4)O desenvolvimento da vida e da cultura humanas é compatível com uma
diminuição substancial da população humana. O desenvolvimento da vida
não humana exige uma tal diminuição.
5)A intervenção humana no mundo não humano é atualmente excessiva e a
situação está se degradando rapidamente.
6)É preciso, pois, mudar as orientações políticas de maneira drástica no
plano das estruturas econômicas, tecnológicas e ideológicas. O resultado da
operação será profundamente diferente do estado atual.
7)A modificação ideológica consiste principalmente em valorizar a
qualidade de vida em vez de visar permanentemente a um nível de vida
mais elevado. Será necessário uma tomada de consciência profunda da
diferença entre desmedido (big) e grande (great).
8)Os que subscrevem os pontos que acabamos de anunciar têm obrigação
direta ou indireta de trabalhar para essas modificações necessárias”.15
Nas passagens fica claro que apesar de muito distantes, poli ticamente o
ecologismo também apresenta sua visão totalizante, contrária à
liberdade, nesses trechos alavancados pela questão dos direitos em si da
natureza, que chegam a justificar, no caso da Ecologia Profunda, a
diminuição substancial da população humana. Alguma dúvida de que o
mais alto amor à natureza poderia neste caso conviver pacificamente com
o mais alto ódio pelos humanos?
Diferentemente, Spinoza jamais prescreveria os valores em si da
natureza, pois seu pensamento nos conduz, ao contrário, para o princípio
de utilidade do homem.
Se, num primeiro momento, isso parece frustrar a idéia de uma ecologia,
tal como é pensada hoje, num outro se mostra maduramente à frente do
tempo da ecologia meramente ambiental, impondo claros limites ao
excesso da razão controladora.
Como nos diz Maria Luiza Ribeiro, a respeito da visão de Luc Ferry:
15
Ibid., p. 133.
18 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
“Ora, segundo Ferry, para proteger a Natureza não é necessário
reconhecer-lhe direitos. Aliás, reconhecer-lhe direitos é, para L. F., uma
projeção antropomórfica. Com o advento da laicidade a ecologia deverá
prescindir da sua carga religiosa. A nossa obrigação é elaborar uma teoria
dos deveres para com a Natureza, o que é diferente de uma carta de
direitos da mesma. É esta a ecologia que o filósofo francês apelida de
democrática, saída do humanismo laico da Revolução Francesa, de Kant, de
Rousseau e dos Iluministas.”16
A respeito da questão dos limites dos direitos do homem e da natureza, o
excelente art igo Espinosa como inspiração para uma filosofia ambiental
(D`ABREU, Rochelle Cysne Frota17) também parece optar pela via que
aos olhos do ecologismo contemporâneo convém-se chamar humanista e
racionalista, porque demonstra que creditar valor em si à natureza é uma
espécie apenas mais sofisticada de antropomorfismo, o que segunda a
autora Spinoza rejeitaria, pois o valor da natureza não é intrínseco a ela,
mas devotado a ela pelos homens. Esta visão, com efeito, tende a frustrar
a via filosófica da Ecologia Profunda.
Entretanto ainda que filosoficamente tenhamos razões para moderar o
entusiasmo da ecologia meramente ambiental , que exclui o homem de seu
centro, a categoria meramente humanista tampouco parece corresponder
às teorias spinozistas.
Até onde caminhamos por abandonar a questão dos direitos da natureza,
encontramos em Luc Ferry a idéia de uma ecologia pautada em deveres
do homem; restando-nos ainda não deixar que por deveres se entenda
uma nova sobrecarga moral .
Adentrando o sentido do princípio da utilidade humana em Spinoza,
vejamos:
E IV prop. 37, escólio:
“[...] enquanto a impotência consiste em o homem se deixar conduzir pelas
coisas que estão fora dele e em ser determinado por elas a fazer aquilo que
o arranjo ordinário das coisas exige e não aquilo que exige a sua própria
16
Ibid., p. 8. 17
Participante do GT Benedictus de Spinoza – ANPOF 2010. D`ABREU, Rochelle Cysne Frota. Espinosa como inspiração para uma filosofia ambiental. Revista Conatus, v. 3 número 6, p. 47 e 48.
19 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
natureza, considerada só em si mesma.[...] Por isso, é evidente que a lei
que proíbe matar os animais funda-se mais numa vã superstição e numa
misericórdia feminil do que na sã razão. O princípio pelo qual se deve
buscar o que é útil ensina, indubitavelmente, a necessidade de nos unirmos
aos homens e não aos animais ou às coisas, cuja natureza é diferente da
natureza humana. Temos sobre eles o mesmo direito que eles têm sobre
nós. Ou melhor, como direito de cada um se define pela sua virtude ou
potência, os homens têm muito mais direito sobre os animais do que estes
sobre os homens. Não nego, entretanto, que os animais sintam. Nego que
não nos seja permitido, por causa disso, atender à nossa conveniência,
utilizando-os como desejarmos e tratando-os da maneira que nos seja mais
útil, pois eles não concordam, em natureza, conosco, e seus afetos são
diferentes, em natureza, dos afetos humanos.”
A passagem define que os homens devem ser concebidos pela sua própria
natureza. Pois como vimos no capítulo anterior, é como modo que deve
ser concebido um homem. Seguindo-se que se de sua natureza resultasse
necessariamente a relação desfavorável para o animal, não seria a
compaixão – afeto passivo – por ele e tampouco decretar-se
simplesmente que ele tem direitos, porque possui valor em si (o que seria
a forma sofisticada do antropomorfismo) que os fariam mais ou menos
protegidos. Pois nossas relações com a natureza não estão postas
somente em questão de direito jurídico e de controle, mas de poder.
Sabiamente, Spinoza nos ensina nessa passagem que direito se define
pela potência de uma coisa. E ainda que direitos os protejam, e mesmo
sendo chamados direi tos dos animais, que direitos são esses senão
aqueles que nós prescrevemos a nós mesmos18?
Como vemos, é própria da compreensão que separa o homem da natureza
a idéia de que o homem em sua potência expansiva contradiz um
princípio de sociedade. Dificuldade clássica têm os leitores da Ética em
geral: como passar dessa ética que interpretam como individual para uma
ética da coletividade? Pois, se o sábio medita em nada mais que na vida,
é em nome dessa expansão da condição humana, e não em limites, que
devemos falar. É por isso que Spinoza diz que os homens devem
18
“A (lei) que depende de uma decisão humana, e à qual se chamaria com mais propriedade de direito, é aquela que os homens, para tornar a vida mais segura e mais cômoda, ou por outro motivo qualquer, prescrevem a si e aos outros.” (TTP, cap. IV, p. 58)
20 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
compreender a part ir de sua natureza, uma natureza de expansão e
coletividade.
Volto a citar o artigo de D`ABREU:
“Se nada é melhor para um homem do que outro homem, visamos em
primeiro lugar a conservação dos homens. Mas, se sabemos que a
conservação dos animais implica numa melhoria para a vida humana e que
sua destruição gratuita não nos é útil em nada, sendo muitas vezes
prejudiciais a nós, compactuar com sua destruição seria uma forma de
irracionalismo. Não conservamos a vida dos animais por compaixão, mas
simplesmente porque a existência deles em nada atrapalha a nossa,
podendo todos coexistirmos juntos, para maior riqueza do meio ambiente e
da experiência humana.”
A questão específica do direitos dos animais em relação à produção de
alimentos é que, sendo o humano capaz de se servir dos animais para
este fim, por ser-lhe útil como alimento pode perpetuar-se, porém em sua
escala predatória e por impedir que outros homens possam também se
servir dos mesmo e outros bens, é um absurdo.
Embora veemente em sua descrição, Spinoza antecipa uma questão que
hoje é central. Os ambientalistas querem defender a natureza em si,
porém assim indiferenciam o que para o homem é útil ou inúti l. O
exagero dos opostos ilustra bem a questão: será que têm os bebês-foca os
mesmos direitos do mosquito vetor da malária ou da dengue?
Todavia ignorar a questão da proteção animal é hoje, de fato, uma
lástima. Como podemos ver, não porque não seja um direi to humano
utilizar o que encontra na natureza, porém, como naturalmente essa
disposição se inclinaria à multiplicidade19 (infinitude) desses meios, e
tendo sido, ao contrário, regidas em essência pela economia da
equivalência, uma história (e, portanto, uma natureza) de destruição se
credita aos humanos. Se o crédito é justo, aqui não nos cabe analisar,
apenas podemos observar que o afeto relativo à extinção de certas formas
19
Ibid. E IV, cap. 26 do apêndice: “(...)O princípio de atender à nossa utilidade não exige que nós o conservemos. Este princípio nos ensina, em vez disso, que, conforme as suas diferentes utilizações, nós conservemos, destruamos ou adaptemos as coisas, de qualquer maneira, às nossas conveniências”
21 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
de vida se dirige a algo que se imagina como necessário, e, portanto, é
mais forte em relação a algo que se imagina como contingente20.
A situação atual , na qual o cidadão conhece uma parcela mínima de seus
direitos, isto é, suas leis, tampouco se reconhece neles, se torna bastante
difícil mesmo compreender por que é um direito seu defender as áreas
comuns de nossa cidade, e mais do que isso, seu usufruto expandido,
legalizado; proteger-nos para que não sejamos simplesmente
empoleirados, reduzidos à dimensão de estarmos sozinhos entre milhares
de homens e mulheres, pois se a cidade assim se constituiu foi para nos
unir, e, em vez disso, nos afastou de nós mesmos e nos privou da
natureza para além de prédios.
Porque embora pareça conservador, hoje, o argumento da utilidade
apresentado por Spinoza pode em princípio mostrar outro caminho que
não uma ditadura ecológica, onde, nos moldes da legislação “ecológica”
nazista, o amor sincero aos animais e à natureza convivam com o mais
cruel ódio à humanidade. Pois em se protegendo a natureza em si ,
desconsidera-se o homem como natureza, e aí se corre esse risco.
Dessa maneira podemos dizer que a crí tica ao antropomorfismo de
Spinoza não indica valores intrínsecos à natureza, e a questão da defesa
ou da conservação da natureza por si não parece mais forte e potente que
a defesa da natureza para os humanos, uma vez que os humanos também
são a natureza se modificando.
20
Ibid., EIV prop. 11
22 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
4- O princípio de Utilidade
Lê-se no capítulo 26 do Apêndice à parte IV da Ética:
“Por isso, com respeito a tudo aquilo que existe na natureza das coisas,
afora o homem, o princípio de atender à nossa utilidade não exige que nós
o conservemos. Este princípio nos ensina, em vez disso, que, conforme as
suas diferentes utilizações, nós conservemos, destruamos ou adaptemos as
coisas, de qualquer maneira, às nossas conveniências”
Podemos dizer que o princípio de utilidade decorre da idéia de conatus,
de que “nenhuma coisa pode ser destruída senão por uma causa
exterior”21, e de que “o esforço por pelo qual cada coisa se esforça por
perseverar em seu ser nada mais é do que a sua essência atual”22. Se, na
primeira parte da ética, nos é ensinado que um modo ou coisa singular
existe noutra coisa relativamente à natureza naturante, por meio da qual
também é concebido, na terceira parte nos ensina que os conceber então
segundo sua própria natureza, segundo seu conatus e portanto sem
envolver qualquer idéia de negação em sua essência não resguarda
nenhuma contradição, ao contrário, aponta para a imanência das relações
naturais, para a necessidade dessas relações, e de como cada homem é
dotado de meios para perseverar em si mesmo, buscar o que lhe é útil
segundo suas finalidades.
Assim, conforme este princípio, as leis humanas, embora pertençam à
mesma ordem e conexão das coisas, são definidas pelos homens e não
simplesmente derivadas de leis da natureza, pois estas, em sua maior
complexidade não sendo possíveis ao entendimento humano, permanecem
como causa imanente e não transitiva de sua compreensão, enquanto que
as leis humanas o tempo todo lidam com transformações.
21
Ibid., EIII prop 4 22
Ibid., EIII prop 7
23 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
Além da impossibilidade do intelecto humano frente às leis da natureza,
há outro forte motivo para impedir a derivação desta para as leis
humanas: nos termos do TTP, a lei divina está como que interpretada por
profetas que, ao concederem estatuto humano para suas revelações, o
fazem sob jugo dos próprios afetos e à luz da sua própria razão, e por
isso não há diferença entre o conhecimento à luz natural da razão e o
conhecimento profético23, exceto que pelas revelações não se obtém nada
além de um conjunto de ensinamentos morais bastante simplificados24.
Em termos pouco mais atuais, e como à lei se remete também o sentido
de ditames morais, é meramente a superst ição que faz as massas
creditarem seus próprios ideais às idéias contidas naquelas revelações.
Nessa medida, é isto que se conhece e não as verdadeiras leis humanas25,
sendo que são estas que, se modificando, modificam o modo de vida de
cada ser humano da Terra. Neste sentido nos diz Spinoza, uma lei é um
direito:
“A lei que depende da necessidade natural é aquela que deriva
necessariamente da própria natureza, ou seja, da definição de uma coisa; a
que depende de uma decisão humana, e à qual se chamaria com mais
propriedade de direito, é aquela que os homens, para tornar a vida mais
segura e mais cômoda, ou por outro motivo qualquer, prescrevem a si e aos
outros.” (TTP, cap. IV, p. 58)
Retomando a passagem que abre este capítulo, note-se que “de qualquer
maneira” denota apenas infinitas possibilidades, e não uma forma
pejorativa do usufruto humano dos bens naturais. Por isso que “conforme
suas utilizações, conservemos, destruamos ou adaptemos” significa, ao
contrário, apenas que não há problemas em “modificar” a natureza26, uma
vez que 1) não são as leis da natureza que são modificadas e 2) que as
23
“Ora, nos diz Espinosa, não há diferença entre profecia e conhecimento natural (...)” (Ibid., p. 75) 24
No livro Política em Espinosa, Marilena Chauí reúne os motivos que levaram Spinoza a escrever o TTP, e entre esses, lê-se: “Demonstrar que não há verdades especulativas na Escritura, mas ensinamentos morais e religiosos muito simples (...)” (Ibid., p. 73) 25
“Porém, uma vez que a verdadeira finalidade das leis não costuma ser clara senão para um pequeno número, ao passo que a maioria dos homens são praticamente incapazes de a perceber (...)” (TTP, cap. IV, p. 67) 26
Ibid., D`ABREU, p. 42
24 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
coisas existem também em seu poder de existir e não porque foram
criadas27.
Tal é o sentido, também, da distinção, operada no TTP, entre leis da
natureza e lei dos homens. Poder-se-ia questionar que talvez estejamos,
hoje, no limite de criar algo monstruoso, capaz de gerar a própria vida,
porém, sendo ainda e sempre uma mera ilusão, fica de realidade apenas
como o poder corrosivo das coisas que nós criamos até agora não alterou
em nada a ordem infinita da natureza, pelo contrário, a natureza apenas
nos devolveu como poluição.
A depender do momento em que fosse lido, o princípio de uti lidade
penderia mais para lá ou mais para cá, isto é, ou simplesmente garante o
direito humano de usufruto dos bens naturais, ou aponta para a
diversidade dos seus meios de utilização. Sobre este último ponto resta
muito mais a ser dito. De um lado, garantir tal usufruto, agora e sempre,
é um direito humano, já mais ou menos defendido e sabido, ainda que
comumente definido como contrário ao uso racional da natureza. Justo
por essa definição equivocada os ecologistas foram levados a crer que o
problema ecológico tem suas raízes na tradição humanista. Porém, a meu
ver, resta um campo mais amplo para a discussão, que é o das
possibilidades virtualmente infinitas de usufruto da natureza e o “esboço
de uma inteligência afetiva, política e ecológica”28 ao longo da obra de
Spinoza, sobretudo na parte V da Ética.
Assim, como na célebre proposição 42 da Ética V29, que inverte o sentido
usual da relação entre a potência de refrear os afetos e a beati tude, pode-
se dizer que não é o princípio de uti lidade que faz do homem um
27
Ausência de finalidade 28
A expressão é de D`ABREU, que define o amor intelectual a Deus como sendo tal esboço. “Se o amor intelectual prometesse uma vida mais feliz no futuro, o homem estaria ainda pensando em termos de tempo. Como essa noção é uma promessa de eternidade e como eternidade se define pela necessidade de existência apenas a partir da definição da coisa dada, segue-se que sentir-se comum a Deus é não mais se perceber como um indivíduo, mas como uma parte singular da Natureza que como toda e qualquer outra deseja viver” 29
Ibid., EV prop. 42. “E como a potência humana para refrear os afetos consiste exclusivamente no intelecto, ninguém desfruta, pois, dessa beatitude porque refreou os afetos, mas, em vez disso, o poder de refrear os apetites lúbricos é que provém da própria beatitude”
25 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
predador desmedido, mas ao contrário, é pela forma de util ização que
podemos ou não nos orientar por caminhos mais seguros.
Sobre a diversidade dos meios de util ização, parece que são esses os
preconceitos de que nos adverte Spinoza.
Apêndice à parte I da Ética:
“[...]Os homens pressupõem, em geral, que todas as coisas naturais agem,
tal como eles próprios, em função de um fim, chegando até mesmo a dar
como assentado que o próprio Deus dirige todas as coisas tendo em vista
algum fim preciso, pois dizem que Deus fez todas as coisas em função do
homem[...]”
“Tendo, pois, passado a considerar as coisas como meios, não podiam mais
acreditar que elas tivessem sido feitas por seu próprio valor.”
“É por isso que, quanto às coisas acabadas, eles buscam, sempre, saber
apenas as causas finais, satisfazendo-se, por não terem qualquer outro
motivo para duvidar, em saber delas por ouvir dizer.”
Sabemos que “por ouvir dizer” podemos entender o primeiro gênero de
conhecimento, que é o conhecimento imaginativo, por meio do qual todas
as idéias são formadas, e que é fonte maior das idéias inadequadas, isto
é, idéias que não convêm ao seu ideado, que não contêm conhecimento
suficiente para agir sendo do efeito uma causa adequada, isto é, que pode
ser compreendida pela sua própria natureza.
Diferentemente, pelo terceiro gênero de conhecimento compreendemos a
Natureza como causa de cada coisa singular, o que é o mesmo que
compreender que a Natureza Naturante (Deus) não age por liberdade da
vontade, logo não cria os modos e as coisas singulares, pois estes,
concebidos pela própria natureza singular, perseveram apenas em seu
próprio ser, porém, como modos, são pela Natureza determinados a
existir de certa maneira, pela qual participam necessariamente da
Natureza inteira. É da anterioridade ontológica da Natureza Naturante
que esta é causa imanente de todas as coisas e, por isso, não há
contradição em se pensar que as coisas singulares, podendo ser
26 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
concebidas também por si mesmas, não podem ser concebidas sem
Deus30.
Prop 29 EI, escólio
“[...] Por natureza naturante devemos compreender o que existe em si
mesmo e por si mesmo é concebido, ou seja, aqueles atributos da
substância que exprimem uma essência eterna e infinita, isto é, Deus,
enquanto é considerado como causa livre. Por natureza naturada, por sua
vez compreendo tudo o que se segue da necessidade da natureza de Deus,
ou seja, de cada um dos atributos de Deus, isto é, todos os modos dos
atributos de Deus, e que, sem Deus, não podem existir nem ser concebidas.
Se falamos dos gêneros de conhecimento é porque, como se pode ler no
prefácio à parte V da Ética, os homens confundem causas finais com
causas eficientes, é por meio dos afetos humanos que podemos entender
as coisas que ele cria, e por conseguinte, as idéias – adequadas ou
inadequadas – que lhes convêm.
Perseverar no próprio ser é ter em vista o princípio da utilidade, porém,
descontados a crítica ao antropomorfismo e a potência relativa da mente
sobre os afetos, é claro que em vez de criar um “um império num
império”, tal princípio apenas coloca o homem em poder da pequena
parte que lhe cabe, infinitamente menor que o da natureza inteira.
Ademais, o sentido do princípio do conatus aplicado ao conjunto como
indivíduo remete em sociedade à manutenção da vida humana diante de
grandezas da ordem de catástrofes naturais, nas quais a própria espécie
estivesse em perigo. Porém hoje é outro nosso problema, pois a questão
da superpopulação de humanos, por onde o problema não poderá ser
resolvido (exceto caso percamos a guerra contra o poder genocida), não
podendo ser uma variável nesta conta, apenas obriga a todos e a cada um
que viva menos. Neste sentido, não é a espécie que está em risco,
tampouco o planeta, é a supervida, e não a sobrevida. No limiar dessa
afetividade ecológica, nos vemos irremediavelmente dependentes de
valores externos como o “verdadeiro” que nos traz a mídia, e ela, por sua
30
Aqui utilizo a palavra Deus para não aniquilar a diferença entre natureza naturante e naturada, à maneira que Maria Luísa Ribeiro Ferreira encontra em Arne Naess. Ibid., p. 9.
27 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
natureza, não lida com o verdadeiro da questão. Agora, em se tratando
realmente o problema como um perigo em níveis de tais catástrofes, e
tendo sido nós os criadores; uma visão, como a expressa na proposição
abaixo, tende a apaziguar o desejo de mudanças bruscas, mas deixa ver
que o tempo, o presente no qual vivemos quando agimos, é o maior
aliado.
Capítulo 32 do apêndice à E IV:
“A potência humana é, entretanto, bastante limitada, sendo infinitamente
superada pela potência das causas exteriores. Por isso, não temos o poder
absoluto de adaptar as coisas exteriores ao nosso uso. Contudo,
suportaremos com equanimidade os acontecimentos contrários ao que
postula o princípio de atender à nossa utilidade, se tivermos consciência de
que fizemos nosso trabalho, de que a nossa potência não foi suficiente para
poder evitá-las, e de que somos uma parte da natureza inteira, cuja ordem
seguimos. Se compreendemos isso clara e distintamente, aquela parte de
nós mesmos que é definida pela inteligência, isto é, a nossa melhor parte, se
satisfará plenamente com isso e se esforçará por perseverar nessa
satisfação. Pois, à medida que compreendemos, não podemos desejar
aquilo que é necessário, nem nos satisfazer, absolutamente, senão com o
verdadeiro. Por isso, à medida que compreendemos isso corretamente, o
esforço da melhor parte de nós mesmos está em acordo com a ordem da
natureza inteira.”
28 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
5- Conclusão
Porém, além da verdade especulativa que uma filosofia ambiental deve
ser capaz de abrigar, em sua situação política ela deve ser capaz de
abrigar algumas compreensões de que nos serve Spinoza; de que as
massas creditam seus ideais facilmente na direção ora do medo ora da
salvação, ignorantes das causas e de como se produzem as coisas e os
fatos. Neste sentido é um retrocesso a ressacralização da natureza, no
sentido de que esta alimenta a superstição e o desejo ou de ser dominado,
ou de não ser por nada governado. Neste sentido considero interessante a
atitude de Luc Ferry em reconhecer que apesar de representar, sim, o
desejo de muitos, a Ecologia não pode se pretender um modelo político
sofisticado, pois, em termos spinozistas, as massas ou os governos
ignorantes podem fazer com que lutemos pela própria servidão como se
fosse pela salvação, isto é, em nome de um medo fundador da polít ica,
recair em situações profundamente sombrias que seriam uma ditadura
moralmente devastadora, maquiada apenas de teorias biocêntricas, ditas
ecológicas, mas que na prática se revelariam totalmente contrárias à
liberdade humana.
Nessa pesquisa pude constatar que há uma dificuldade em se
compreender como ascender a um pensamento ecológico, que em
princípio põe numa linha de força a questão dos valores em si da
natureza, e desta forma numa outra linha, oposta, a necessidade humana
de se expandir. O argumento da utilidade, sustentado diversas vezes por
Spinoza ao longo da Ética e do TTP, como citamos neste trabalho,
definit ivamente não é um detalhe – e pode conter belas inspirações para
uma ecologia que em vez de oprimir, liberte.
A respeito do perigo que ronda o medo e a esperança de um futuro
ecológico, nos diz Guattari:
29 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
“Não podemos nos deixar guiar cegamente pelos tecnocratas dos aparelhos
de Estado para controlar as evoluções e conjurar os riscos nesses domínios,
regidos no essencial pelos princípios da economia de lucro.”31
“O capitalismo pós-industrial tende, cada vez mais, a descentrar seus focos
de poder das estruturas da produção de bens e de serviços para as
estruturas produtoras de signo, de sintaxe e de subjetividade, por
intermédio, especialmente, do controle que exerce sobre a mídia, a
publicidade, as sondagens etc.”32
Quer dizer, em vez de pôr a discussão nos termos da propaganda
midiática, do dever e da opressão moral que considera apenas o fato
individual do consumo, devemos pensar, agora sem o preconceito contra
o princípio de utilidade humana, que é justamente pela uti lidade que
podemos conservar bens que simplesmente são nossa fonte de vida. Claro
que, não sendo meramente individuais as ações que art iculam política e
ética em nome de uma ecologia, esta está posta na relação de medo e
esperança política, na medida em que dela se espera a salvação ou a
derrota total. Porém, sendo a ética regida nesse segmento pela expansão
da vida humana e pelo princípio de utilidade, o que podemos
compreender é que há um limite para a idéia de sustentabilidade, e que
não há a necessidade cega de neutralizar a ação humana, pois esta é
simplesmente ação da natureza sobre si mesma, e, portanto, que um
retorno a certo estado de natureza é impossível e indesejável . Podemos,
contudo, em nome de assegurar tudo aquilo de que precisamos para viver
melhor, conservar a história que é a natureza, para dela nos servirmos de
conhecimento de nós mesmos, além, é claro, que sem as outras partes da
natureza, nós simplesmente não existimos.
Com isso concluo que ao oferecer a ontologia spinozista para a questão
ecológica, avançamos no terreno das “verdades especuladas”, porém o
verdadeiro sentido do problema ecológico tem suas raízes teológico-
políticas, pois nesse domínio, sim, para além da subjetividade humana,
encontram-se as relações de dominação que colocam, no âmbito da
31
Guattari, Félix. As Três Ecologias. Campinas: Papirus, 1990. Trad. Maria Cristina F. Bittencourt, p. 24. 32
Ibid., p. 31
30 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
discussão ambiental , o homem contra a natureza, o desenvolvimento
contra o ambiente, as leis contra a cultura.
Pensar a partir do próprio conatus e retirar dele uma idéia de negação,
eis uma tarefa eminentemente ecológica: pensar a expansão em
coletividade com todos, e não que reside na expansão do conhecimento
humano um grave defeito de nossa natureza.
31 Contribuições da Filosofia de Spinoza para um Pensamento da Ecologia Contemporânea
REFERÊNCIAS:
FERRY, Luc. A Nova Ordem Ecológica: a árvore, o animal e o homem. Rio de Janeiro: Difel,
2009. Trad: Rejane Janowitzer.
CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
DELEUZE, G. Spinoza et le problème de l’expression.Paris: Les Éditions de Minuit, 1968.
SPINOZA, Benedictus de. Ética [tradução e notas de Tomaz Tadeu]. Ed. – Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2008.
_____________________. Tratado Teológico-Político. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
Trad: Diogo Pires Aurélio.
D`ABREU, Rochelle Cysne Frota. Espinosa como inspiração para uma filosofia ambiental.
Revista Conatus, v. 3 número 6, 2009.
Guattari, Félix. As Três Ecologias. Campinas: Papirus, 1990. Trad. Maria Cristina F.
Bittencourt.
Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Spinoza: Um Ecologista Avant La Lettre?
NAESS, Arne. “The Deep Ecological Movement: Some Philosophical Aspects” em Michael
E. Zimmerman (ed.), Environmental Philosophy. From Animal Rights to Radical Ecology,
Upper Saddle River, New Jersey, Prentice Hall, 2001, p. 185-203.
___________. “The Shallow and the Deep. Long-Range Ecology Movements”, Bucarest,
1972.
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