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"A minha carne, o sangue, é indefesa, como a Terra; mas eu, a minha áurea não é indefesa não. Se queimar os espaço todinho, e eu tô no meio, pode queimar, eu tô no meio, invisível. Se queimar meu sentimento, minha carne, meu sangue, se for pra o bem, se for pra verdade, pra o bem, pela lucidez de todos os seres, pra mim pode ser agora, nesse segundo, e eu agradeço ainda". Estamira

O que eh saude

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"A minha carne, o sangue, é indefesa, como a Terra; mas eu, a minha áurea não é indefesa não.

Se queimar os espaço todinho, e eu tô no meio, pode queimar, eu tô no meio, invisível.

Se queimar meu sentimento, minha carne, meu sangue, se for pra o bem, se for pra verdade, pra o bem, pela lucidez de todos os seres, pra mim pode

ser agora, nesse segundo, e eu agradeço ainda".

Estamira

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O que é um indivíduo saudável? O que é estar com saúde? De acordo

com Motta (2000), é necessário haver um conceito de saúde e compreendê–lo

para que se possa responder a essas perguntas.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS)1, saúde é ‘um estado

de completo bem estar físico, mental e social e, não meramente a ausência de

doença e enfermidade’. Esta afirmação também reforça a ideia de que a saúde

é um direito humano fundamental (HPA, 2004).

Com o advento da VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS) em 1986,

Brasília, define-se saúde como resultante das condições de alimentação,

habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego,

lazer, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde (determinantes

sociais). Desse modo, saúde é primordialmente o resultado das formas de

organização social da produção, e estas podem implicar mais ou menos

dificuldades nos níveis de vida (MOTTA, 2000). Portanto, conceituar saúde sob

essa definição mais ampla, leva à reflexão de que, para se obter níveis ótimos

de saúde, é necessário haver uma ação conjunta desses determinantes, ou

seja, de vários setores sociais e econômicos com o setor saúde.

No mesmo ano da realização da VIII CNS, ocorre no Canadá, em

Otawa, a I Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde (CIPS), que

considera condições necessárias para haver saúde, determinantes como

educação, habitação, alimentação, renda, segurança, paz, ecossistema

estável, recursos sustentáveis, justiça social e equidade (BUSS, 2000).

De acordo com Canguilhem2 (1990), desde a Grécia antiga que se sabe

da dificuldade em conceituar saúde. Em seu texto ‘La Santè: Concept Vulgaire

et Question Philosophique’ (A saúde: concepção vulgar/comum e a questão

filosófica), o autor considera que a saúde se realiza no genótipo, na história da

vida do sujeito e em sua relação com o meio. Ele compreende que, enquanto a

saúde filosófica compreender a saúde individual, a saúde científica será a

saúde pública, ou seja, uma salubridade que se constitui em oposição à ideia

de morbidade. Ainda em Canguilhem (1990), o corpo é um produto de

1 <http://www.who.int/en/>.2 Georges Canguilhem foi um filósofo e médico francês. Especialista em epistemologia e história da ciência, publicou obras importantes sobre a constituição da biologia como ciência, sobre medicina, psicologia, ideologias científicas e ética, notadamente Le normal et le pathologique e La connaissance de la vie. Discípulo de Gaston Bachelard, inscreve-se na tradição da epistemologia histórica francesa e teve uma notável influência sobre Michel Foucault. Fonte: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Georges_Canguilhem>.

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complexos processos de intercâmbio com o meio, na medida em que estes

podem contribuir para determinar o fenótipo, a saúde corresponderia a uma

ordem implicada tanto na esfera biológica da vida, quanto no modo de vida.

Note-se aqui a utilização de termos bem específicos da genética (genótipo e

fenótipo), porém, em um visível esforço de aproximação a uma forma de

pensar que também contempla interações sociais do indivíduo e deste com o

meio.

Estudos conceituais no campo da saúde têm como foco quase que

exclusivamente os conceitos de doença, patologia e seus correlatos (Temkin,

1963; Margolis, 1976; Berlinguer, 1988). Na América Latina, autores como

Pérez-Tamayo (1988) e Abed (1993) desenvolvem uma abordagem

historiográfica do conceito de enfermidade. Em nível de Brasil, encontra-se

desde uma investigação sobre a história do conceito de risco (Ayres, 1997) até

um estudo filosófico sobre a doença (Hegenberg, 1998), além de aproximações

etnográficas (COELHO E ALMEIDA-FILHO, 2002).

Há uma diversidade nas vivências e/ou percepções acerca do processo

saúde/doença dentro de cada sociedade, cada ambiente, cada contexto, além

da dimensão do imaginário, das fantasias e do medo nele presentes, posto que

a saúde sempre tem sido uma preocupação inerente ao existencial humano.

Cada sociedade tem um discurso próprio sobre saúde/doença e sobre o corpo,

e este discurso se apresenta correspondente à coerência ou às contradições

de sua organização social e à sua visão de mundo (Borges, 2002). Vê-se,

então, que saúde, não é um estado de ser, não é algo estático, engessado em

um único conceito cartesiano. Muito ao contrário, saúde é um processo

dinâmico que se encontra em constante mutação (MOTTA, 2000).

Refletindo sobre normalidade, rotulação e desvio no campo da

sociologia (Coelho e Almeida Filho, 2002: p.317), há os ‘teóricos do rótulo’, que

discordam acerca da base sobre a determinação do desvio. Para os autores

Becker (1963) e Goffman, (1963), o desvio não se define em si, ou seja, não se

pode reconhecê-lo por características do sujeito ou do próprio comportamento,

na medida em que este só seria desviante a partir da classificação de um outro

sujeito (ou grupo). Já Lemert (1951, 1967) e Scheff (1966), consideram a

ocorrência de dois tiposde desvio, o primário (atributos desviantes originais do

indivíduo. Neste caso, a maioria dos atos e sujeitos não seriam publicamente

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reconhecidos) e o secundário (a partir de uma reação social ao desvio primário.

Aqui, indivíduos seriam rotulados como doentes mentais por suas famílias,

médicos e outros agentes sociais. O psiquiatra é visto como principal

rotulador). (Scheff, 1966).

Coelho e Almeida-Filho (2002) citam Parsons (1951), principal teórico do

funcionalismo norte-americano, que desenvolveu a ’teoria do papel de doente’

(sick role theory). A teoria parsoniana aborda a saúde individual como papel

social, performance, funcionamento, atividade e capacidade, entre outros

aspectos. Essas dimensões do conceito de papel de doente têm sido

recentemente recuperadas e condensadas na concepção de qualidade de vida

ligada à saúde (health related quality of life), vinculado a uma teoria utilitarista

da saúde (Patrick et al., 1993). Centrada na categoria de doença, a teoria do

papel de doente fala da adequação do estado patológico às normas sociais,

onde o ‘doente’ teria um papel definido, com isenção das responsabilidades

sociais, impossibilidade do cuidado de si, desejo de ficar bem e dever de

procurar e cooperar com o tratamento médico, no entanto, possuir uma

condição enferma ou ocupar legitimamente a posição de doente não

constituiria em si um comportamento desviante (Robinson, 1971).

Ao nos depararmos com a história de Estamira Gomes de Sousa, a

Estamira, protagonista do documentário homônimo internacionalmente

premiado, uma senhora que apresentava esquizofrenia (a forma mais

prevalente de psicose), viveu e trabalhou por mais de duas décadas no aterro

sanitário de Jardim Gramacho, local que recebe os resíduos produzidos na

cidade do Rio de Janeiro.

Estamira notabilizou-se pelo seu enigmático e riquíssimo discurso,

mescla de extrema lucidez e gritante loucura, e proferia temas como a vida,

Deus, trabalho e reflexões sobre a própria existência, e a sociedade. Ela

acreditava que sua missão era a de convocar as pessoas que viviam fora do

aterro, a exercer efetivamentea ética. O verdadeiro lixo para Estamira estava

nos valores falidos sustentados pela sociedade, conforme, comentou Marcos

Prado, diretor do filme.

A mensagem mais contrassensual, relacionada à saúde, da história de

Estamira, é que, portadora de diabetes, foi internada no Hospital Miguel Couto

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do Rio de Janeiro, em virtude de uma infecção no braço e morreu aos 70 anos,

em 28 de setembro de 2011, de septicemia, consequência de uma infecção

generalizada, adquirida no ambiente hospitalar. Ela, que viveu por 22 anos em

um ambiente inóspito, insalubre, absolutamente favorável mais à doenças e

morte, do que ao que se compreende por saúde e à vida, morre por infecção

hospitalar.

O que Estamira julgava ser saúde, dentro de sua louca lucidez ou de sua

lúcida loucura, não coadunava em coisa alguma com o que indivíduos, grupos,

sociedades julgam ser saúde. Retirar Estamira do espaço que escolheu como

seu lar, talvez a adoecesse e mortificasse mais do que mantê-la no aterro,

ambiente que fazia sentido para ela, que a “acolheu”, no qual orgulhosamente

trabalhava e do qual usufruía o que considerava alimentação, relações sociais,

contato com o meio ambiente.

A fragmentação subjetiva de Estamira encontrava repouso nesse espaço

que adotou como “seu”. Ao longo do documentário, é notória a mudança de

seu discurso, de suas narrativas, para mais ou menos “compensado” (um

termo emprestado da saúde mental), a depender de estar no “lixão” ou não.

Prova-se, utilizando a história de Estamira, que a saúde deve ser

compreendida como um fenômeno que transcende a ausência de doença no

corpo e/ou na mente do sujeito. O que significa saúde e doença para um, pode

representar algo totalmente distinto para outro. Mesmo naquelas condições de

vida, insalubres, indignas da vida humana, retirar Estamira daquele lugar era

adoecê-la e mortificá-la.

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REFERÊNCIAS

BORGES, C. C. Sentidos de saúde/doença produzidos em grupo numa

comunidade alvo do Programa de Saúde da Família (PSF). 2002. 161 f.

Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Faculdade de Filosofia, Ciências e

Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2002.

BUSS, P. M.  Promoção da saúde e qualidade de vida. Ciência & Saúde

Coletiva, Rio de Janeiro, v. 5, n.1, p.163–177, 2000. Disponível em:

<http://www.scielo.br/pdf/csc/v5n1/7087.pdf>. Acesso em: 18.07.2016.

CANGUILHEM, G. La Santè: Concept Vulgaire et Question

Philosophique. Toulouse, Sables, 1990.

COELHO, M. T. A D.; ALMEIDA FILHO, N. Conceitos de saúde em

discursos contemporâneos de referência científica. História, Ciências, Saúde-

Manguinhos, Rio de Janeiro, v.9, n. 2, p. 315–333, maio/ago. 2002. Disponível

em: <http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v9n2/a05v9n2.pdf>. Acesso em:

20.01.2016.

HEALTH PROMOTION AGENCY FOR NORTHERN IRELAND. What is

Health Promotion, 2004.

MOTTA, J. I. J. O Processo Saúde/Doença. In TEIXEIRA, P.(Org.) Curso

de Aperfeiçoamento em Biossegurança On-line. Rio de Janeiro: Educação a

Distância EAD/ENSP, 2000. Unidade II. Módulo 7.