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Texto V: Os meninos artistas Autores: Carol e seu Pai Fevereiro de 2011 http://caroleseupai.blogspot.com

Os meninos artistas

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Texto V: Os meninos artistas

Autores: Carol e seu Pai

Fevereiro de 2011

http://caroleseupai.blogspot.com

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Da janela do apartamento, no 8º andar, dá para ver a Desembargador Moreira. No cruzamento da Vicente Linhares com a Desembargador, geralmente, tem algum pedinte. Muitas vezes é uma senhora, com aparência de bem mais idosa do que talvez realmente seja; outras vezes, especialmente nos fins de semana ou nos fins de tarde, são meninos, meninos artistas.

O cruzamento está sempre cheio, talvez por causa da faculdade que se instalou na outra esquina ou, então, porque o trânsito em Fortaleza está difícil, mesmo. Meu pai vira e mexe tá reclamando do trânsito e da faculdade:

- Como é que pode? Eles não devem ter alvará de funcionamento, como pode instalar uma faculdade, em área residencial sem ter estacionamento, gente? Isto não é possível.

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Acho que ele só não entrou com algum processo contra a faculdade porque ele gosta de educação. E por isso, toda vez que passamos de carro na esquina e os meninos estão lá, às vezes, em dias de semana, à tardinha, meu pai baixa o vidro do carro e pergunta:

-Vem cá! Vocês não vão à escola, não? Não deveriam estar em casa?

E sempre sobra uma moedinha. Tem uma bolsinha, de plástico, em que ele vai juntando as moedas. Às vezes, quando algum deles deixa a gente entrar no seu mundo, se ouve um pouco da história sofrida, de muitos irmãos, com poucos recursos, e grande esperança.

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Texto V: Os meninos artistasOs meninos ficam com aqueles finos pedaços de madeira, como se fossem pequenos espetos, e utilizam para equilibrar outro pedaço de madeira, com enfeites na ponta, tocando o pedacinho de madeira, de um espeto pra outro, de várias maneiras, com malabarismos: passa por debaixo das pernas, rodopia, joga pra cima, bem alto e controla, e faz tudo de novo.

Tudo é feito no tempo em que um sinal abre e o outro fecha. Depois do ato, eles agradecem e passam entre os carros pedindo algum trocado. Qualquer dez centavos basta, já paga a apresentação.

O engraçado é que pra gente dez centavos não é dinheiro. Pelo menos quando nosso pai fala em dar um pouco das moedinhas da bolsinha de plástico. E de fato, não dá pra comprar nada na lanchonete do colégio ou ao menos um salgado na padaria.

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Texto V: Os meninos artistasMas quando meu pai deixa alguma moedinha em cima da mesa, depois que chega do trabalho e esvazia os bolsos, não sobra nenhuma, vai tudo pro cofrinho ou então, junto a outras moedinhas, completa a compra do “croissant” ou então do pão quentinho da tarde.

Talvez por isso, os meninos artistas fiquem alegres quando ganham uma moedinha de dez centavos. E quando é um real, então, os olhos brilham, parece um troféu que deve, obrigatoriamente, ser apresentado aos outros. Ás vezes, isto é feito escondido, como quando alguém não quer chamar a atenção, quer se proteger. Mas, geralmente, eles demonstram felicidade.

- Olha um real, ganhei um real!

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E saem correndo pra continuar o trabalho. Às vezes, vão encontrar a mãe, que também está ali, com os outros filhos, por vezes, até bebês. Cada vez mais é comum também ter meninas artistas ou pedintes.

É de dar dó ver os meninos e meninas no meio da rua, até mesmo aqueles que usam uma roupa limpinha, mas simples, que não parecem meninos de rua, mas que estão ali, não aproveitando uma ocasião como em feriados de receber presentes, mas porque têm alguma necessidade que não é satisfeita.

Por que eles não poderiam estar em casa brincando com seus brinquedos? As meninas brincando de boneca?

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De fato, quantos brinquedos eu e minhas irmãs temos em casa, e que estão em bom estado, ou nunca foram usados ou, talvez, só uma vez ou outra a gente se lembra de usar e não se consegue doar para uma criança que jamais teve uma bonequinha? É quase certeza que isso acontece em muitas casas.

- D. Sandra, vamos dar aquelas bonequinhas que eu não uso mais pras meninas lá no sinal? Faz o seguinte: quando a senhora for comprar o pão, você leva as bonecas, dá pra elas. Eu vou ficar aqui na varanda, olhando tudo, ok?

D. Sandra, também alegre com a ideia, ajuda a colocar as bonequinhas numa caixa, como se fosse um pacote de presente, com laço e tudo.

- Sandra, tu dá pra elas, mas eu quero ver daqui de cima tu entregando o presente pra elas!

Page 8: Os meninos artistas

Texto V: Os meninos artistasAquela sensação de ver alguém recebendo um presente inesperado parece que motivava mais ainda a situação. Uma ansiedade dominava enquanto a secretária se arrumava, pegava o dinheiro do pão e saía no elevador. Pareceu uma infinidade de tempo esperar a D. Sandra e ver ela se aproximando das meninas artistas.

Foi tudo muito rápido, como rápido, às vezes, são as coisas boas. Os meninos logo se aproximaram da D. Sandra e parecia que tudo ia dar errado, eles iam levar o presente da mão dela e pronto. Mas, com experiência de quem tem jeito pra conversar com gente simples, D. Sandra entregou o presente para duas das meninas e apontou para o edifício.

Elas ficaram sorrindo e dando tchau. Foi muito gostoso ver as meninas alegres, saltitantes, vendo as bonequinhas, que já não eram tão novas, mas que ainda mexiam com o imaginário delas.

Page 9: Os meninos artistas

Texto V: Os meninos artistasNa varanda, já não estavam mais a Marinhazinha, a Sheila, a Mônica e a Dorothy. Com certeza, as meninas artistas iam dar outro nome para as bonecas. Mas, o coração sentia que elas iam cuidar bem dos seus presentes. Mesmo distante, uma sensação chegava forte da esquina, talvez trazida pelo vento da tarde, e enquanto as meninas artistas acenavam com as mãos, ouvia-se:

- Obrigada, não se preocupe, nós vamos cuidar tão bem delas quanto você já cuidou.

Isso realmente é o que se espera de quem tem alma de artista e que, independente de tudo, de todas as dificuldades, nunca deixa de ser gente, de ter alma de criança.

Fim