1. Manuel Ferreira Lima Filho Cornelia Eckert Jane Felipe
Beltro (Organizadores) 2007
2. Copyright 2007 ABA - Associao Brasileira de Antropologia
Todos os direitos reservados. Proibida a reproduo, armazenamento ou
transmisso de partes deste livro, atravs de quaisquer meios, sem
prvia autorizao por escrito. Patrocnio: Foto capa Olavo Ramalho
Marques Beco da cidade de Gois, 15 junho 2006 Reviso e superviso
editorial Fernanda Cardozo Projeto grfico e impresso Nova Letra
Grfica e Editora Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca
Municipal Dr. Fritz Mller 363.69 A848a Associao Brasileira de
Antropologia. Antropologia e patrimnio cultural : dilogos e
Desafios contemporneos / organizadores Manuel Ferreira Lima Filho,
Jane Felipe Beltro, Cornelia Eckert. Blumenau : Nova Letra, 2007.
368p. ISBN 978-85-7682-198-4 1. Patrimnio cultural 2. Antropologia
e patrimnio cultural I. Lima Filho, Manuel Ferreira II. Beltro,
Jane Felipe III. Eckert, Cornelia IV. Ttulo. Impresso no
Brasil
3. SUMRIO A ABA E AS PESQUISAS SOBRE O PATRIMNIO CULTURAL Lus
Roberto Cardoso de Oliveira, Miriam Pillar Grossi
............................................... 7 QUANDO O CAMPO O
PATRIMNIO Manuel Ferreira Lima Filho, Jane Felipe Beltro, Cornelia
Eckert ........................... 11 1. ANTROPOLOGIA E PATRIMNIO:
REFLEXES E PERSPECTIVAS DA 25 REUNIO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA
GOINIA GO A ANTROPOLOGIA E O PATRIMNIO CULTURAL NO BRASIL Manuel
Ferreira Lima Filho, Regina Maria do Rego Monteiro de Abreu
............... 21 PATRIMNIO, LINGUAGENS E MEMRIA SCIAL Jane Felipe
Beltro, Carlos Caroso
.....................................................................................
45 PATRIMNIO E CULTURA: PROCESSOS DE POLITIZAO, MERCANTILIZAO E
CONSTRUO DE IDENTIDADES Mnica Rotman, Alicia Norma Gonzles de
Castells ..................................................... 57
EDUCAO PATRIMONIAL: PERSPECTIVAS E DILEMAS Flvio Leonel Abreu da
Silveira, Mrcia Bezerra
......................................................... 81 2.
EXPLORAES ANTROPOLGICAS: QUANDO O CAMPO O PATRIMNIO O IMPACTO DA
IMIGRAO EUROPIA SOBRE A PRODUO DE ALIMENTO E A CULINRIA DO MDIO
VALE DO ITAJA SC Marilda Checcucci Gonalves da Silva
..........................................................................
101 CAMINHOS E DESCAMINHOS DO PATRIMNIO IMATERIAL Bartolomeu Tito
Figueira de Medeiros
.......................................................................
133 TRADUES MAGTA: PENSAMENTO TICUNA E PATRIMNIO CULTURAL Priscila
Faulhaber
..............................................................................................................
145
4. PATRIMNIO CULTURAL, LUTA E IDENTIDADE. OS INDGENAS PANKARARU
EM SO PAULO Arlete Assumpo Monteiro
.............................................................................................
157 MUSEU DO NDIO: UMA INSTITUIO SINGULAR E UM PROBLEMA UNIVERSAL
Mrio Chagas
......................................................................................................................
175 RELQUIAS E PATRIMNIOS QUE O RIO VERMELHO LEVOU... Izabela Maria
Tamaso
.......................................................................................................
199 ENTRE FORMAS E TEMPOS: GOINIA NA PERSPECTIVA PATRIMONIAL Manuel
Ferreira Lima Filho
............................................................................................
221 3. O PATRIMNIO COMO CATEGORIA ANALTICA ANTROPOLGICA OS LIMITES
DO PATRIMNIO Jos Reginaldo Santos Gonalves
....................................................................................
239 PATRIMNIO, NEGOCIAO E CONFLITO Gilberto Velho
.....................................................................................................................
249 PATRIMNIO CULTURAL: TENSES E DISPUTAS NO CONTEXTO DE UMA NOVA
ORDEM DISCURSIVA Regina Maria do Rego Monteiro Abreu
........................................................................
263 M ETAMORFOSES C ONCEITUAIS DO M USEU PATRIMNIO ETNOGRFICO DO
BRASIL DE M AGIA N EGRA : PRIMEIRO Alexandre Fernandes Corra
...........................................................................................
287 OUVIR A CULTURA: ANTROPLOGOS, MEMRIAS, NARRATIVAS Julie
Cavignac, Andrea Ciacchi
.......................................................................................
319 A CIDADE: SEDE DE SENTIDOS Ana Luiza Carvalho da Rocha,
Cornelia Eckert
.......................................................... 343
5. A ABA E AS PESQUISAS SOBRE O PATRIMNIO CULTURAL Lus Roberto
Cardoso de Oliveira (Presidente da ABA - gesto 2006/2008) Miriam
Pillar Grossi (Presidente da ABA - gesto 2004/2006) com muita
satisfao que apresentamos este livro, fruto do frtil colquio sobre
Patrimnio, realizado com o apoio da Fundao Ford, da Secretaria de
Museus do Ministrio da Cultura e da Embaixada da Frana. O encontro,
organizado por Manuel Ferreira Lima Filho e por Regina Abreu, foi
uma das atividades organizadas pelo GT Patrimnio da ABA na gesto
2004/2006 e reuniu significativo grupo de especialistas brasileiros
e estrangeiros na cidade de Gois, de 15 a 16 de julho de 2006.
Neste colquio, foram apresentados os resultados dos trabalhos
expostos nos cinco grupos de trabalho reunidos sob este tema
durante a 25 Reunio Brasileira de Antropologia, bem como foram
discutidos temas candentes, como o papel dos antroplogos nos museus
e os dilemas ticos, polticos e tcnicos do resgate da arte dos povos
tradicionais. Alm de aprofundar coletivamente questes relativas s
novas prticas profissionais dos antroplogos no Brasil, o colquio
permitiu tambm a elaborao de um programa de aes do GT Patrimnio,
consolidando a proposta deste GT na ABA, o qual foi criado por
demanda de vrios scios no final da 24 RBA em Recife. A principal
discusso do livro se d em torno do tema do Patrimnio Intangvel,
tema que tem sido central para as polticas pblicas de patrimnio,
tanto em nvel internacional, como estabeleceram as ltimas reunies
da UNESCO sobre o tema, quanto em nvel nacional, por ter-se tornado
uma das prioridades do Ministrio de Cultura nos ltimos anos. Sobre
estas reflexes, o livro traz 7
6. contribuies de Gilberto Velho, Reginaldo Gonalves, Regina
Abreu, Tito Bartolomeu Medeiros, Ana Luiza Carvalho da Rocha e
Cornelia Eckert. Gilberto Velho, por sua vez, conta sua experincia
enquanto conselheiro do IPHAN no tombamento do primeiro terreiro de
candombl no Brasil, apontando para o papel do antroplogo em
momentos decisivos da poltica patrimonial. Os outros autores fazem
reflexes mais gerais sobre o tema, apontando para sua amplitude
conceitual e para a aplicao dos saberes antropolgicos na
implementao das polticas pblicas sobre este tema. O reconhecimento
e a divulgao do patrimnio intangvel de populaes tradicionais um dos
temas recorrentes no livro e est presente de forma mais central no
texto de Priscila Faulhaber, que relata sua experincia de
transformao de saberes indgenas em CD room. Outras questes tambm tm
destaque no livro, como a temtica da presena dos antroplogos nos
museus, que abordada nos trabalhos de Alexandre Fernandes Corra e
de Mario Chagas, respectivamente sobre o Museu de Magia Negra e
sobre o Museu do ndio, ambos no Rio de Janeiro, ou o tema da
migrao, presente nos trabalhos de Arlete Assumpo Monteiro, que
analisa as tradies urbanas em processo migratrio dos ndios
Pankararu de Pernambuco, e de Marilda Checcucci Gonalves da Silva,
que estuda a questo patrimonial referente alimentao de imigrantes
europeus no Vale do Itaja, em Santa Catarina. Os relatos das
atividades dos grupos de trabalho da 25 RBA so tambm um registro
importante para conhecermos o desenvolvimento desta temtica na
Antropologia brasileira contempornea. Jane Beltro e Carlos Caroso
relatam as atividades do grupo Patrimnio e Memria, tema tambm
central no GT coordenado por Julie Cavignac e Andra Ciacchi. Flavio
Leonel da Silveira e Mrcia Bezerra relatam as atividades do grupo
de Educao Patrimonial, tema que aproxima este grupo com o de Alcia
Gonzales Castells e Mnica Rotman sobre Patrimnio e Identidades.
Finalmente, o livro chama a ateno para pelo menos trs aspectos
importantes da temtica do patrimnio, particularmente realados
quando abordados sob a perspectiva antropolgica: (1) a 8
7. articulao cada vez mais forte entre as noes de bens
(inclusive os imateriais), direitos e identidades nas discusses
sobre patrimnio e sua relevncia para o exerccio da cidadania na
contemporaneidade; (2) a necessidade do dilogo com outras
disciplinas na definio do patrimnio e na elucidao de seus
significados, cujo carter dinmico no permite abordagens estticas
nem classificaes definitivas, dada a pluralidade de vises e de
experincias do pblico-alvo das polticas pblicas nesta rea; (3) o
potencial de interao dos museus com os cidados de uma maneira geral
seja por meio de sua identificao com o material exposto, seja pela
possibilidade de contrastar sua viso de mundo e sua identidade
social com as de outros povos. Os trs aspectos tm como pano de
fundo o significado da dimenso simblica da vida social e a
importncia de atentar para o ponto de vista nativo marca registrada
da Antropologia na compreenso do patrimnio. 9
8. QUANDO O CAMPO O PATRIMNIO Manuel Ferreira Lima Filho Jane
Felipe Beltro Cornelia Eckert O ano de 2006 foi significativo para
a Associao Brasileira de Antropologia em sua trajetria associativa.
Sob a presidncia da Prof. Dr. Miriam Pillar Grossi (gesto
2004-2006), foi realizada a 25 Reunio Brasileira de Antropologia na
cidade de Goinia GO, no perodo de 10 a 13 de junho, congregando os
associados na comemorao de bodas de prata de atividade de congresso
e finalizando igualmente as comemoraes das bodas de ouro da ABA, em
seus cinqenta anos de existncia. O contexto era propcio para se
falar das lembranas e para se viver a memria da Associao. Assim
sendo, o patrimnio tornou-se campo para os antroplogos, no sentido
mais amplo da tradio do fazer Antropologia. O Grupo de Trabalho
Patrimnio Cultural foi institudo na gesto da Prof. Miriam Pillar
Grossi, que convidou os antroplogos Dr. Manuel Ferreira Lima Filho
e Dr. Regina Maria do Rego Monteiro para, respectivamente,
coordenar e vice-coordenar a primeira gesto do GT dedicado ao
Patrimnio Cultural no mbito da ABA. O desafio maior foi o
pioneirismo da tarefa, voltada a articular uma rede de antroplogos
da ABA com o intuito de sistematizar e de informar comunidade
cientfica os vrios campos de pesquisas e aes relacionados ao tema.
Os frutos das aes desaguaram na 25a RBA, em Goinia, sob a forma de
inmeros trabalhos sobre o Patrimnio Cultural na perspectiva
antropolgica, inclusive com boa articulao internacional. Isso
provocou a continuidade da discusso no formato 11
9. MANUEL FERREIRA LIMA FILHO, CORNELIA ECKERT, JANE FELIPE
BELTRO (Organizadores) de um Colquio sobre o Patrimnio Cultural,
desta vez na colonial e acolhedora cidade de Gois, sob os auspcios
da Fundao Ford e do Departamento de Museus do IPHAN este sob a
coordenao do antroplogo Jos Nascimento Jnior. A discusso e os vrios
textos sobre o assunto gestaram o presente livro, que rene diversos
artigos, indicando ao pblico que os autores no apenas palmilham e
mapeaim o territrio nacional, mas que, com autoridade, discutem
temas candentes e provocativos que fogem s impertinentes fronteiras
disciplinares. A diversidade da discusso repercutiu na organizao do
livro em trs partes. A primeira discute Antropologia e Patrimnio:
reflexes e perspectivas da 25 Reunio Brasileira de Antropologia
Goinia GO. Nela nossos colegas coordenadores do GT de Patrimnio da
ABA, Manuel Ferreira Lima Filho e Regina Maria do Rego Monteiro,
abrem a seo com o artigo A Antropologia e o Patrimnio Cultural no
Brasil e contextualizam a trajetria conceitual do tema do Patrimnio
como campo de atuao dos antroplogos, apresentando as primeiras
produes e o crescimento do tema nos ltimos anos e revelando um
forte apelo ao dilogo interdisciplinar, sobremaneira com
profissionais que transitam em outras esferas de atuao diferentes
do crculo acadmico e universitrio. Em Patrimnio, linguagens e
memria social, Jane Felipe Beltro e Carlos Caroso fazem uma sntese
das questes levantadas no GT Patrimnio, Linguagens e Memria
Cultural, coordenado pelos autores pela ocasio da 25a RBA em
Goinia. O GT abordou temas desde a origem e constituio de colees
controladas pelo Estado brasileiro por amadores; a definio dos
papis dos museus institucionais e a relao com as comunidades
estudadas; a necessidade de se romper com as fronteiras da
disciplinaridade e a importncia de se estabelecer uma proposta de
indexao de acervos e de imagens fotogrficas visando a um maior
acesso s informaes, uma vez que a fotografia um instrumento
analtico pertinente compreenso minudente da sociedade brasileira.
Em Patrimnio e Cultura: processos de politizao, mercantilizao e
construo de identidades, Mnica Rotman e Alicia Castells apresentam
uma sntese dos trabalhos debatidos no GT de mesmo nome. As autoras
pontuam reflexes sobre a questo patrimonial na Amrica Latina
12
10. ANTROPOLOGIA E PATRIMNIO CULTURAL: DILOGOS E DESAFIOS
CONTEMPORNEOS destacando: (1) a importncia dos documentos
internacionais como o de Haya de 1954, e (2) a proteo de bens
patrimoniais em caso de conflito armado ambos referentes a
documentos da UNESCO sobre a salvaguarda da cultura tradicional
popular (1989) e do patrimnio imaterial (2003). A partir deles,
observam-se luzes focalizando culturas populares e relao entre o
patrimnio e identidade que amalgama a noo de herdeiros culturais e
a possibilidade de se visualizarem os criadores de novos
patrimnios. As autoras exploram a tenso entre os conceitos do
patrimnio material e imaterial e apontam imprecises de alcance
junto a grupos denominados por elas como culturas subalternas.
Encerrando a primeira parte, Flvio Leonel Abreu da Silveira e Mrcia
Bezerra, em Educao Patrimonial: perspectivas e dilemas, trazem a
lume questes candentes sobre patrimnio, indicando que, no Brasil,
pouca ateno tem sido dada s experincias de ensino-aprendizagem que
valorizem o patrimnio mantido pelos mais diversos grupos sociais,
sendo que, no mais das vezes, se ignoram saberes e fazeres
acumulados pela tradio e a relao dos agentes sociais com o
patrimnio enquanto estratgia de conservao, a ponto de se questionar
o trabalho desenvolvido por especialistas. O trabalho feito a
partir da frutfera discusso dos temas durante a RBA; nesse sentido,
interessante observar que os autores trabalham questes tericas que
preocuparam os participantes do GT, fechando a argumentao em torno
de problemas prticos no esgotados, para os quais no temos soluo.
Discutem, sobretudo, a chamada educao para o patrimnio e a
Arqueologia pblica, estratgias que objetivam correr em busca do
tempo perdido quando a postura de muitos ignorava patrimnio no
expresso em pedra e cal. A segunda parte do livro denominada
Exploraes Antropolgicas: quando o campo o patrimnio. Apresenta a
trama das reflexes sobre a atuao dos antroplogos que produzem
etnografias relacionadas ao tema do Patrimnio Cultural. Em O
Impacto da Imigrao Europia sobre a Produo de Alimento e a Culinria
do Mdio Vale do Itaja SC, Marilda Checcucci Gonalves da Silva expe
um interessante estudo da culinria da colnia alem no Vale do Itaja,
em Santa Catarina. A autora opta por uma etnografia do contato por
meio das prticas e do saber fazer da culinria alem 13
11. MANUEL FERREIRA LIMA FILHO, CORNELIA ECKERT, JANE FELIPE
BELTRO (Organizadores) enraizada no Brasil. Esta, por sua vez,
marcada por estratgias culturais como o rito de passagem da noiva,
uma espcie de noviciado para as artes culinrias em casas de famlias
ou de freiras luteranas envoltas em segredo. A pesquisadora
disserta, ainda, a respeito de como se deu, aos poucos, a
substituio por algumas prticas de cultivo impostas pela diferena
ambiental entre o pas de origem e o Brasil, apontando para uma
adaptao e incorporao das prticas lusobrasileiras e indgenas
presentes na regio antes da chegada dos imigrantes, o que revela
processos de transformaes sociais. O estudo demarca uma
Patrimonializao da alimentao, que passa da esfera privada para a
pblica, notadamente com a conotao poltica do patrimnio imaterial
que valoriza prticas culturais fomentadas pelo turismo. Assim, a
culinria migra de um mbito cultural para uma esfera econmica. Em
Caminhos e descaminhos do Patrimnio Imaterial, Bartolomeu Tito
Figueira de Medeiros nos fala de suas vrias experincias como
antroplogo atuando no campo da gesto do patrimnio cultural e da
academia, especialmente como pesquisador envolvido com aplicao da
metodologia do INRC (Inventrio Nacional de Referncias Culturais)
para o patrimnio Imaterial, especificamente no Litoral Norte de
Pernambuco. Tange questes de grande pertinncia sobre o ofcio do
trabalho numa equipe multidisciplinar, o papel de mediador entre o
Estado e a sociedade civil e, ainda, a relao do mercado com os
produtos patrimoniais. O autor chama a ateno sobre o fato de no
haver uma articulao entre o IPHAN e o GT do Patrimnio da ABA na
questo do Patrimnio Imaterial. Em continuidade, trazemos trs
experincias com a temtica indgena. Primeiramente, sobre os Ticuna,
Priscila Faulhaber, por meio do artigo Tradues Magta: pensamento
Ticuna e patrimnio cultural, revela-nos como os Ticuna valorizam
sua produo material, a saber, objetos culturais, numa escala de
alta significao ritual at a destituio de mana, quando, ento, passam
a ser musealizados. O estudo aponta para uma reapropriao, por parte
deste grupo indgena amaznico, de seus objetos indexados e guardados
em museus, utilizando-se da noo de patrimnio cultural como
instrumento operacional do contato intertnico e de um grande poder
comunicativo. Como resultado de seus estudos, a autora apresenta um
Cd room interativo no qual se 14
12. ANTROPOLOGIA E PATRIMNIO CULTURAL: DILOGOS E DESAFIOS
CONTEMPORNEOS encontram indexados 455 objetos do Museu Paraense
Emlio Goeldi que segue uma classificao segundo a viso de mundo dos
Ticuna. Em seguida, Arlete Assumpo Monteiro d voz aos Pankararu, em
Patrimnio cultural, luta e identidade. Os indgenas Pankararu em So
Paulo. A partir da metodologia da histria oral, o processo
migratrio do grupo de Pernambuco para So Paulo reconstrudo. O
cenrio de deslocamento tambm o contexto de mudanas advindas das
prticas culturais do grupo, aderindo aos impactos de novas situaes
e de novas complexidades, sobretudo pela interface de sua cultura
com a educao formal. Por fim, fechando a temtica indgena, Mrio
Chagas, em Museu do ndio: uma instituio singular e um problema
universal, faz um recorte histrico e conceitual dos museus
etnogrficos no Brasil. Versa sobre o papel deles como mediadores
entre os atores sociais na contemporaneidade a partir da experincia
do Museu do ndio (RJ), ao realizar a exposio com a co-participao do
grupo indgena Wajpi, quando se processou a construo de uma exposio
ou de uma representao museal sobre eles mesmos para o outros,
registrando, assim, uma alterao na qualidade da participao e da
prtica de mediao museal. Essa parte do livro encerra-se com duas
etnografias realizadas no Estado de Gois. Sobre Goinia, Manuel
Ferreira Lima Filho, no artigo Entre Formas e Tempos: Goinia na
perspectiva patrimonial, parte de uma experincia etnogrfica de uma
Antropologia na cidade de Goinia e analisa as representaes
construdas em torno do ato administrativo e poltico do tombamento
do conjunto Art Dco de Goinia em contraponto com as narrativas dos
primeiros habitantes da primeira rua da cidade, a Rua 20, tendo
como referncia uma etnografia da memria, nas quais o referido
estilo arquitetnico est longe de ser uma representao central
identitria da cidade. Neste campo patrimonial de reflexo, as
categorias serto, mundo rural, modernidade, nao e regio e passado
tecem as narrativas em torno do patrimnio cultural da cidade.
Agora, tendo a cidade de Gois, antiga Vila Boa, como objeto de
estudo, Izabela Maria Tamaso, em Relquias e Patrimnios que o Rio
Vermelho Levou, revela-nos um sentimento de inquietude quando se
comparam aes a respeito do patrimnio coletivo, pblico, tombado
15
13. MANUEL FERREIRA LIMA FILHO, CORNELIA ECKERT, JANE FELIPE
BELTRO (Organizadores) e, por outro lado, os patrimnios familiares,
pessoais, numa condio de crise ou de catstrofe, como foi o caso da
enchente que destruiu boa parte da cidade de Gois em dezembro de
2001. A autora constata, de fato, que o conflito constitutivo das
polticas de preservao ou, de outra forma, aponta para a existncia
de um hiato entre o tempo monumental e o tempo social. A terceira
parte do livro intitulada O Patrimnio como categoria analtica
antropolgica. Traz como pontos convergentes algumas questes
conceituais inerentes ao tema do patrimnio cultural. Constri uma
reflexo crtica sobre o prprio campo disciplinar e sobre tenses em
torno dos processos de objetivao da cultura. Assim, em Os limites
do Patrimnio, Jos Reginaldo Santos Gonalves alerta para o risco de
um enflacionamento da categoria patrimnio, o que pode fazer perder
de vista a fora da categoria enquanto instrumento analtico, e
ressalta, ainda, que, apesar de a mesma ser uma categoria
universal, no se pode deixar de qualific-la em termos culturais e
histricos. O autor, em sua anlise, chama a ateno para o fato de que
a construo do passado ou da memria muitas vezes no depende das
intenes do Estado, ou as agncias de enquadramento do
passado/patrimnio podem no ter sucesso e, conseqentemente, o
sucesso do mercado turstico pode no acontecer, uma vez que os
patrimnios esto numa zona de ambigidades que pode ser exterior a ns
ou, como quer Reginaldo, nossa inteira revelia. Em Patrimnio,
Negociao e Conflito, Gilberto Velho narra um episdio ocorrido em
1984 em torno do tombamento do terreiro de candombl Casa Branca, em
Salvador, Bahia. A partir deste estudo de caso, demonstra, por um
lado, a fora do deslocamento dos sentidos de conceitos como tradio
e memria cultural a partir de novos paradigmas da disciplina
antropolgica no final do sculo XX e, por outro lado, as mudanas que
o reconhecimento simblico das produes coletivas operacionaliza
sobre a gesto poltica da memria social. Esta conjuntura favorvel
para a transformao do que patrimnio e do que memria no Brasil se d
em torno de novos agentes sociais convergentes s polticas
afirmativas de respeito alteridade e diversidade do sistema de
crenas dos grupos sociais que configuram a nao. A atualidade do
episdio coloca em alto relevo a trama complexa 16
14. ANTROPOLOGIA E PATRIMNIO CULTURAL: DILOGOS E DESAFIOS
CONTEMPORNEOS que os antroplogos brasileiros buscam considerar ao
ter por problemtica de ponta a questo da memria coletiva no trajeto
da nao. Regina Maria do Rego Monteiro Abreu nos traz o tema do
Patrimnio Cultural: tenses e disputas no contexto de uma nova ordem
discursiva. Regina Abreu faz uma didtica apresentao da constituio
da noo de patrimnio Cultural desde a sua identificao com a formao
dos Estados Nacionais, a trajetria da conceituao da noo no Brasil
at se chegar aos domnios contemporneos da apropriao das questes
patrimoniais (patrimnio imaterial, por exemplo) pela sociedade,
grupos tnicos, ONGs. Nesse cenrio epistmico e histrico, a autora
aponta que o papel do antroplogo est para alm de mediador entre
culturas ou de rbitro de disputas entres grupos. Ela chama a ateno
de que a dimenso da humanidade, implcita ao conceito de cultura,
est diretamente ligada noo de patrimnio cultural. J Alexandre
Fernandes Corra nos apresenta O Primeiro Patrimnio Etnogrfico do
Brasil: a coleo-Museu de Magia Negra do Rio de Janeiro (1938).
Tendo como referncia um tipo de arqueologia da noo de patrimnio
etnogrfico para se compreender a gnese da idia de um patrimnio
etnogrfico, o autor toma como alvo de pesquisa a Coleo-Museu de
Magia Negra do Rio de Janeiro (1938), tombada pelo Iphan, e procura
interpretar os sentidos das categorias esquecimento e negao para,
desta forma, indagar sobre os significados do conceito de
etnogrfico na sociedade brasileira e sobre qual a lgica de
classificao no que se refere inscrio de um bem cultural na
categoria etnogrfico no Livro do Tombamento Federal. Por fim, evoca
a necessidade de um quadro conceitual mais adequado para dar conta
de uma realidade social e cultural global e contempornea e menciona
o fato de que no se pode ser neutro num domnio de ao cultural como
no caso estudado. Os antroplogos Julie Cavignac e Andrea Ciacchi
preferiram o tema das Memrias e Narrativas em Ouvir a Cultura:
Antroplogos, Memrias, Narrativas. Eles advogam que h uma ausncia de
estudos tericos sobre a matria narrativa e apontam sobre a
necessidade de se ter um maior cuidado metodolgico e de melhor
explorao conceitual quando o antroplogo faz das narrativas o seu
objeto principal de anlise e de se prestar ateno nas pormenoridades
das 17
15. MANUEL FERREIRA LIMA FILHO, CORNELIA ECKERT, JANE FELIPE
BELTRO (Organizadores) narrativas, ou seja, aprender a ouvir. Esse
fato relevante no campo patrimonial de investigao dos saberes
ancorados no passado. Utilizando o termo etnografia da memria, os
autores escrevem que, ao se escutar, transcrever e depois ficar
disposio de novos olhares e escutas, esse processo, inerente ao
ofcio do antroplogo, revela questes metodolgicas como as
caractersticas das transcries e a relao quantitativa e qualitativa
dos dados sobre uma nova realidade social. Fechamos o livro com a A
cidade: sede de sentidos, de Ana Luiza Carvalho da Rocha e Cornelia
Eckert. As autoras trazem para o debate a poltica de preservao e de
conservao de bens culturais nas cidades modernas. Para isto, trazem
como notcia o caso do patrimnio universitrio como campo de disposio
de sentidos, a fim de dimensionar a perspectiva de situar a cidade
no plano do simblico como condio humana. Desta forma, a poltica do
patrimnio deveria contemplar as estruturas espaciais da cidade como
tributria de uma fantstica transcendental por meio da qual o homem
ocidental tem operado o seu conhecimento do mundo social e csmico.
Por ltimo, agradecemos ao Presidente da atual gesto da ABA,
Professor Dr. Lus Roberto Cardoso de Oliveira, e sua diretoria, por
abraar e reforar o seu apoio causa do patrimnio cultural como um
dos eixos norteadores dos debates da antropologia brasileira
contempornea. 18
16. 1 ANTROPOLOGIA E PATRIMNIO: REFLEXES E PERSPECTIVAS DA 25
REUNIO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA GOINIA GO
17. A ANTROPOLOGIA E O PATRIMNIO CULTURAL NO BRASIL Manuel
Ferreira Lima Filho Regina Maria do Rego Monteiro de Abreu O nmero
de antroplogos que se dedicam ao tema do patrimnio cultural quer em
atividades acadmicas, quer em atividades de gesto de polticas
pblicas ou comunitrias tem crescido muito no Brasil. Acompanhando
essa demanda, a Associao Brasileira de Antropologia instituiu o
Grupo de Trabalho Permanente do Patrimnio Cultural em 2002. Assim,
o objetivo do presente artigo apresentar uma seqncia histrica das
produes e aes dos antroplogos relacionados e apontar algumas
reflexes. Esperamos, assim, estar contribuindo com a consolidao do
tema do Patrimnio como rea de produo de conhecimento antropolgico,
o que implica muitos desafios tanto na ABA quanto no que diz
respeito a aes voltadas sociedade brasileira para os prximos anos.
As Produes Antropolgicas e de Campos Afins Pode-se dizer que a
atuao dos antroplogos no campo do Patrimnio no nova. Se incluirmos
no campo do Patrimnio os museus, ser possvel sistematizar aes
significativas tanto em prticas de colecionamento, pesquisa em
museus, quanto em formulaes e realizaes de exposies. A Antropologia
nasceu nos museus e marcada pela idia de preservao desde o incio,
quando os primeiros pesquisadores da disciplina coletavam objetos e
documentos em suas pesquisas de campo e depois os armazenavam nos
laboratrios de pesquisa. Internacionalmente, h alguns exemplos
expressivos de 21
18. MANUEL FERREIRA LIMA FILHO, CORNELIA ECKERT, JANE FELIPE
BELTRO (Organizadores) antroplogos articulados diretamente ao tema
dos museus, como Franz Boas, Georges Henri Rivire (Museu de Artes e
Tradies Populares de Paris), Paul Rivet (Museu do Homem) e mesmo
Claude Lvi-Strauss (colaborador do Museu do Homem e do Projeto de
fundao da UNESCO). Nacionalmente, h algumas personagens emblemticas
neste sentido, como dison Carneiro (Museu Nacional), Darcy Ribeiro
(fundador do Museu do ndio) e Luiz de Castro Faria (Museu
Nacional). No que tange s instituies de patrimnio propriamente
ditas, a atuao dos antroplogos se fez sentir desde o incio, mas
sempre de forma espordica, num campo em que predominavam arquitetos
e historiadores. No Conselho do Patrimnio do IPHAN, h de se
distinguirem a atuao de Gilberto Velho integrante deste Conselho
por alguns anos e, mais recentemente, a presena de Roque de Barros
Laraia. De qualquer modo, o patrimnio tornou-se objeto de reflexo
sistemtica dos antroplogos nos ltimos anos, quando alguns
pesquisadores decidiram incluir o tema em suas teses de doutorado.
Antonio Augusto Arantes Neto, orientado por Edmund Leach, defendeu,
em 1978, na Universidade de Cambridge/Kings College, Inglaterra, a
tese Sociological aspects of folhetos literature in Northeast
Brazil; mais tarde, em 1984, ele publicou o livro Produzindo o
passado. No ano de 1989, registra-se a tese de doutorado de Jos
Reginaldo Gonalves (UFRJ), intitulada Rediscoveries of Brazil:
Nation and Cultural Heritage as Narratives, defendida na
Universidade da Virginia (EUA), orientada por Richard Handler e
transformada no livro A Retrica da Perda os discursos do patrimnio
cultural no Brasil (1996). Esses dois trabalhos podem ser
considerados marcos de uma reflexo antropolgica sobre o patrimnio
no Brasil. Um tema antes tratado por arquitetos e historiadores
passava a ser focalizado sob o vis da Antropologia. A tnica destes
trabalhos consistiu em apresentar uma viso desnaturalizada de um
campo eivado por ideologias e por paixes sobretudo de cunho
nacionalista. Arantes e Gonalves esforaram-se por propor uma outra
leitura de construes discursivas particularmente eficazes na
fabricao de uma memria e de uma identidade nacionais. Ao mostrarem
o quanto estas construes discursivas so datadas na histria do
Ocidente e a maneira como elas foram sendo construdas por intermdio
de polticas especficas no interior do aparelho de 22
19. ANTROPOLOGIA E PATRIMNIO CULTURAL: DILOGOS E DESAFIOS
CONTEMPORNEOS Estado, estes trabalhos abriram nova perspectiva no
campo dos estudos de patrimnio. Particularmente, o trabalho de
Gonalves iniciou um dilogo importante com antroplogos americanos de
linhagem interpretativista, como Richard Handler e James Clifford,
e toda uma rea de estudos antropolgicos voltada para memria social,
museus, prticas de colecionamento e patrimnios. Estas pesquisas
problematizaram, sobretudo, o tema do patrimnio nacional,
evidenciando sua relao com o carter arbitrrio das naes modernas
enquanto comunidades imaginadas (ANDERSON, 1989) e a necessidade de
construes discursivas e de alegorias capazes de expressar certa
iluso de homogeneidade e de coeso para os Estadosnaes. A estratgia
de Gonalves foi analisar duas narrativas centrais na formulao de
polticas do patrimnio no Brasil: a de Rodrigo Mello Franco de
Andrade um dos idealizadores e primeiro diretor do SPHAN, que
inspirou sua poltica de 1937 a 1979 e a de Alosio Magalhes que
esteve frente do SPHAN/Pr-Memria por um curto perodo, de 1979 a
1983, mas que foi decisivo para sua transformao. Ao tomar o
patrimnio como um campo no sentido etnogrfico, estas duas pesquisas
evidenciaram as estratgias de construo ou de inveno de bens
considerados dignos para representar a memria e a identidade
nacionais e as justificativas retricas que passaram a ser
introjetadas pelos agentes do patrimnio e pela sociedade
brasileira. Alguns conceitos foram especialmente introduzidos
formando um pensamento antropolgico sobre o patrimnio, como o
conceito de objetificao cultural, de Richard Handler, quando este
autor sugere a coisificao de culturas e de tradies em modernos
contextos nacionais, ou seja, uma certa tendncia em pensar as
culturas como coisas, em represent-las a partir de determinados
bens materiais, como edificaes, paisagens ou objetos museolgicos
cuidadosamente escolhidos e retirados de seus contextos originais
para serem (re)significados em outros. O patrimnio seria, portanto,
o lugar em que agentes estatais especialmente treinados coletariam
fragmentos de tradies culturais diversas para reuni-los num
conjunto artificialmente criado voltado para representar a idia de
uma totalidade cultural artificialmente criada expressa pela idia
de nao. Outro conceito importante, desenvolvido especialmente por
James Clifford em ensaio sobre sistemas de arte e cultura seria o
conceito de prtica 23
20. MANUEL FERREIRA LIMA FILHO, CORNELIA ECKERT, JANE FELIPE
BELTRO (Organizadores) de colecionamento, entendido como uma prtica
universal, presente em todas as sociedades humanas e relacionada
necessidade vital dos homens em classificar e hierarquizar. A
reflexo de Clifford inspiradora para a pesquisa seminal de
Gonalves, que sinaliza, nas construes discursivas estudadas (de
Rodrigo Mello Franco de Andrade e de Alosio Magalhes), os bens
considerados dignos de colecionamento com o intuito de formar um
mosaico autenticamente nacional. O tema da autenticidade colocado
em relevo. Gonalves, utilizando-se de estratgia etnogrfica e
tomando os discursos de Rodrigo Mello Franco de Andrade e de Alosio
Magalhes como os de informantes selecionados numa pesquisa de
campo, produz a relativizao desta categoria fundante das modernas
ideologias ocidentais. O tema do patrimnio emerge, assim, como um
lugar de construo de valores e, como tal, extremamente plstico e
varivel. O bem cultural autntico como representao metafrica da
totalidade nacional desnaturalizado, e a sua face ideolgica e
ficcional descortinada. Gonalves est atento para a dimenso literria
e provisria de ideologias que procuram firmar-se como verdades
calcadas em noes positivistas da cincia. Neste sentido, alinha-se
com a reflexo de Hayden White acerca dos mecanismos de produo da
moderna historiografia e da fixao da idia presente em toda a
histria linear de que todas as naes devam obrigatoriamente ter um
passado. O patrimnio, em certa modalidade discursiva (no caso, a de
Rodrigo Mello Franco de Andrade), seria a de representao ou de
objetificao deste passado. Por outro lado, o patrimnio na
modalidade discursiva de Alosio Magalhes estaria mais fixado na noo
de cultura e de diversidade cultural numa nfase num tempo presente
capaz de, por si s, eternizar-se. A nao, em ambas as construes
discursivas, apresentada como uma entidade dotada de coerncia e de
continuidade. Essa coerncia seria menos um dado ontolgico do que o
efeito daquelas estratgias narrativas. Enquanto o trabalho de
Gonalves centrado no estudo de categorias de pensamento, em
discursos, narrativas, o trabalho de Arantes volta-se para os
contextos sociais e intitucionais em que as polticas de patrimnio
nacionais so construdas. Arantes est interessado em desvendar as
relaes sociais envolvidas neste processo de patrimonializao. Estes
dois trabalhos abrem caminho para que 24
21. ANTROPOLOGIA E PATRIMNIO CULTURAL: DILOGOS E DESAFIOS
CONTEMPORNEOS outros antroplogos se interessem pelo tema do
patrimnio. Na dcada de 90, duas pesquisas so especialmente
relevantes: a primeira de autoria de Silvana Rubino (Unicamp),
intitulada As fachadas da histria: os antecedentes, a criao e os
trabalhos do Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional,
1937-1968, apresentada como dissertao de mestrado ao Departamento
de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de
Campinas, em janeiro de 1991; a segunda produzida por Marisa
Velloso M. Santos, O tecido do tempo: a idia de patrimnio cultural
no Brasil (1920-1970), orientada por Roberto Cardoso de Oliveira e
apresentada como tese de doutorado ao Departamento de Antropologia
da Universidade de Braslia, em 1992. preciso observar que, do final
dos anos 80 at pelo menos a primeira metade dos anos 90, houve uma
expressiva voga de trabalhos refletindo sobre o tema da nao. Talvez
este interesse reflexivo sobre o nacional tenha sido, em parte,
motivado pela grande quantidade de produes de historiadores e de
cientistas sociais franceses por ocasio das comemoraes do
bi-centenrio da Revoluo Francesa. deste perodo a publicao da
coletnea de textos organizados em quatro grossos volumes pelo
historiador francs Pierre Nora, da cole des Hautes tudes en
Sciences Sociales, intitulada Lugares de Memria. Em cada um destes
volumes trs volumes consagrados ao tema da Nao e um volume voltado
para a Repblica , historiadores consagrados dedicaram-se a
esquadrinhar o longo processo de construo do Estado-nao francs em
todos os seus mais nfimos detalhes, como o culto aos heris, os
manuais de histria da Frana para crianas, os guias de viagem para
formar os cidados franceses na noo de ptria e de territrio e,
claro, toda a mquina estatal que se voltou para a inveno do
patrimnio francs desde os primeiros protestos de Vitor Hugo em 1832
quando ameaavam destruir os prdios histricos e monumentais e os
primeiros projetos de Violet Le Duc, engenheiro e arquiteto francs
que iniciou todo o processo de restaurao de Paris para que ela
conservasse para sempre sua feio eloqente de bero dos novos ideais
que passariam a reger o Ocidente. Nas palavras de Pierre Nora, as
comemoraes do bi-centenrio da Revoluo Francesa incitaram o autor a
tecer um inventrio dos lugares onde a memria nacional na Frana
tomou corpo e que, pela vontade dos homens ou pelo trabalho dos
sculos, sobreviveram como os 25
22. MANUEL FERREIRA LIMA FILHO, CORNELIA ECKERT, JANE FELIPE
BELTRO (Organizadores) smbolos mais evidentes: festas, emblemas,
monumentos e comemoraes, mas tambm elogios, dicionrios e museus. A
noo de lugares de memria, construda ao longo de trs anos de 1978 a
1981 num seminrio dirigido por Nora na cole, foi um marco
importante nos estudos que procuravam relacionar Memria e Histria.
No entender de Nora, os lugares de memria surgiram nas sociedades
ocidentais modernas como fragmentos de uma memria em franco
desaparecimento. A ao da Histria moderna, calcada numa representao
linear do tempo e numa reconstruo sempre problemtica do que no mais
existe, teria condenado ao fim da memria coletiva. O fato de se
falar tanto em memria seria, para Nora, um sintoma de que esta no
mais existiria, tendo sido substituda pela Histria. As sociedades
ocidentais modernas seriam o resultado de uma mutilao sem retorno
representada pelo fim das coletividadesmemria que eram as
sociedades tradicionais, por excelncia as sociedades camponesas, em
que cada gesto cotidiano era vivido como uma repetio religiosa de
atos extremamente significativos para a coletividade, ou seja,
havia uma identificao do ato e do significado. Com certo tom
nostlgico, Nora se props a discorrer sobre os estilhaos ou
fragmentos daquela que seria o ltimo esforo de construo de uma
memria coletiva no Ocidente: a memria nacional. Estes lugares
precisam ser compreendidos no sentido pleno do termo, do mais
material e concreto, como os monumentos aos mortos e os Arquivos
nacionais, ao mais abstrato e intelectualmente construdo, como a
noo de linhagem, de gerao, ou mesmo de regio e de homem-memria. Dos
lugares institucionalmente sagrados, como Reims ou o Panteo, aos
humildes manuais de nossas infncias republicanas. Das crnicas de
Saint-Dennis do sculo XIII, ao Tesouro da Lngua Francesa, passando
pelo Louvre, pela Marselhesa e a Enciclopdia Larousse1 . Esta onda
de estudos dessacralizadores do ideal de nao teve talvez no campo
da Histria sua maior repercusso, mas circulou tambm entre
antroplogos e cientistas sociais que desenvolveram estudos
reflexivos sobre os mecanismos de constituio do nacional 1 Nora,
Pierre. Prsentation. In: Les Lieux de Mmoire. Paris: Ed. Gallimard,
1984. 26
23. ANTROPOLOGIA E PATRIMNIO CULTURAL: DILOGOS E DESAFIOS
CONTEMPORNEOS entre ns. Afinal, se a Repblica francesa comemorava
200 anos em 1989, no mesmo ano a Repblica verde e amarela
completava 100 anos. Na perspectiva da Histria, desta poca o
trabalho, por exemplo, de Jos Murilo de Carvalho intitulado A
Formao das Almas e que evidencia em mincias o processo de elaborao
dos smbolos nacionais: a bandeira, o hino, as alegorias, os
monumentos2 . Por esta ocasio passava-se em revista a histria da
formao das naes modernas. O historiador ric Hobsbawm publicou a Era
dos Imprios, tematizando o perodo que se abriu em 1870, quando, na
Europa, tiveram lugar as grandes transformaes que desencadearam
novas relaes entre os indivduos. A partir de ento, todos deviam
fidelidade a um ente abstrato e distante: o Estado-nao. Outro
trabalho do historiador ingls deste perodo foi A Inveno das
Tradies, que propunha pesquisar sobre pequenas invenes necessrias
consolidao dos Estados nacionais, como alegorias e trajes tpicos. O
ensaio sobre a inveno do traje tpico dos escoceses e de toda a
tradio envolvida inspirou pesquisas de historiadores e de
antroplogos sobre o papel das identidades regionais e locais na
construo dos smbolos nacionais3 . Outros trabalhos de Antropologia,
embora no se dedicassem exatamente ao tema do patrimnio nacional,
voltaram-se para o estudo da criao de muitos outros smbolos
necessrios formao dos novos cidados. Cabe registrar o trabalho do
antroplogo Ruben Geoge Oliven sobre a inveno do gacho, em certa
parte inspirado no ensaio de Eric Hobsbawm. Oliven utiliza a
perspectiva antropolgica para desvendar a maneira pela qual a
tradio gacha foi criada com festas, datas e trajes tpicos. A
antroploga Maria Eunice Maciel, tambm do Departamento de
Antropologia da UFRGS, iniciou suas pesquisas sobre o tema do
patrimnio nacional, vindo a abrir uma linha de pesquisa em torno do
tema do Patrimnio Intangvel, especialmente articulado com a questo
dos saberes e fazeres em torno do processo da alimentao. Uma outra
linha de investigao que se inaugurou no perodo dos anos 80 e 90 foi
o estudo dos museus e das prticas de colecionamento de objetos
museolgicos. Tambm em parte inspira2 Carvalho, Jos Murilo de. A
Formao das Almas. O Imaginrio da Repblica no Brasil. So Paulo:
Companhia das Letras, 1990. 3 Hobsbawm, ric. A inveno das tradies.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. 27
24. MANUEL FERREIRA LIMA FILHO, CORNELIA ECKERT, JANE FELIPE
BELTRO (Organizadores) dos na voga dos estudos sobre a formao dos
Estados-naes e seus smbolos, estes estudos congregaram
historiadores e antroplogos. Os museus e suas colees eram
entendidos enquanto partes expressivas dos patrimnios nacionais.
Com relao perspectiva antropolgica de estudos de museus e de
prticas de colecionamento, devemos registrar que a tendncia
auto-reflexiva da Antropologia tambm contribuiu para o foco nesta
rea. Do projeto editorial organizado por George Stocking Jr. sobre
a histria da Antropologia, foi lanado, em 1985, um nmero especial
sobre museus e prticas de colecionamento na Antropologia. O livro
Objects and Others. Essays on Museums and Material Culture,
terceiro volume da srie, trouxe artigos sobre a estreita relao da
Antropologia com os museus desde o nascimento da disciplina. Vale
destacar o artigo de Ira Jacknis focalizando o trabalho de Franz
Boas como curador de exposies em museus etnogrficos; o artigo de
Richard Handler, que se tornou clssico nos estudos do patrimnio,
sobre o processo de construo do patrimnio em Quebec; e, por fim, o
artigo de James Clifford sobre a prtica de colecionamento dos
objetos dos outros nos grandes museus e sobre os problemas advindos
desses deslocamentos dos objetos com relao a seus contextos de
origem4 . Tomar os museus e as colees de museus numa perspectiva
antropolgica procurando perceber estes lugares de memria como
elementos importantes do sagrado nacional consistiu no objetivo na
dissertao de mestrado de Regina Maria do Rego Monteiro Abreu,
apresentada ao PPGAS do Museu Nacional em 1990 com o ttulo Sangue,
Nobreza e Poltica no Templo dos Imortais: um estudo antropolgico da
Coleo Miguel Calmon no Museu Histrico Nacional e publicada em livro
em 1996 sob o ttulo A Fabricao do Imortal. Utilizando como
principal referncia o Ensaio sobre a ddiva, de Marcel Mauss, e suas
reflexes sobre reciprocidade, a autora percebeu o museu enquanto um
lugar de trocas simblicas e rituais entre os agentes sociais que,
nestes movimentos, construam uma verso da Histria do Brasil e
fabricavam personagens histricos. No dos anos 80 e 90, muitos dos
autores citados dialogaram em 4 Os ttulos dos artigos so
respectivamente: JACKNIS, Ira. Franz Boas and Exhibits: On the
Limitation of the Museum Method of Anthropology; HANDLER, Richard,
On Having a Culture: Nationalism and the Preservations of Quebecs
Patrimoine; CLIFFORD, James Objects and Selves An Afterword. In:
STOCKING, Jr., George W. Objects and Others. Essays on Museums and
Material Culture. London: University of Wisconsin Press Ltd., 1985.
28
25. ANTROPOLOGIA E PATRIMNIO CULTURAL: DILOGOS E DESAFIOS
CONTEMPORNEOS diferentes momentos no Grupo de Trabalho sobre
Pensamento Social Brasileiro nas reunies da ANPOCS, em Caxambu. Alm
dos trabalhos citados, o tema do patrimnio foi objeto de reflexo de
teses e de pesquisas de socilogos e de cientistas polticos.
importante destacar o trabalho de Myrian Seplveda dos Santos, que
focalizou o tema dos museus em dissertao apresentada em 1989 no
mestrado em Cincia Poltica no IUPERJ, Histria, Tempo e Memria: um
estudo sobre museus a partir da observao feita no Museu Imperial e
no Museu Histrico Nacional. Outro trabalho relevante sobre o tema
do Patrimnio no perodo focalizado o de Ceclia Londres apresentado
como tese de doutorado em Sociologia da Cultura na UnB e publicado
em 1997 pela editora da UFRJ sob o ttulo Patrimnio em Processo.
Trajetria da poltica federal de preservao no Brasil. Myrian
Seplveda dos Santos preocupouse em refletir sobre construes da
histria em diferentes momentos de dois museus histricos. Ceclia
Londres, pelo contrrio, no refletiu sobre a histria, mas adotou uma
perspectiva primordialmente histrica, tomando como objeto de
pesquisa o processo de construo do patrimnio histrico e artstico no
Brasil, considerado enquanto uma prtica social produtiva, criadora
de valor em diferentes direes5 . Na Universidade de Braslia,
Izabela Maria Tamaso defende, em 1997, a dissertao de mestrado em
Antropologia com o tema A Histria: Percepes do Conflito na Prtica
da Preservao do Patrimnio Cultural Edificado em Esprito Santo do
Pinhal; e, em 1998, tambm na UnB, Manuel Ferreira Lima Filho
defende a sua tese de doutorado Pioneiros da Marcha para o Oeste:
Memria e Identidade na Fronteira do Mdio Araguaia, quando encontra,
entre os pioneiros, a prtica de constituio de museus e de colees
como estratgia de construo de uma memria coletiva. Ainda em 1998,
Mrcia Regina Romeiro Chuva defende sua tese de doutorado em Histria
pela Universidade Federal Fluminense com o ttulo Os arquitetos da
memria: a construo do patrimnio histrico e artstico nacional no
Brasil anos 30 e 40. Por fim, Alexandre Fernandes Corra apresenta a
sua tese de doutorado em 2001, na Pontifcia Universidade de So
Paulo, em Cincias Sociais, com o ttulo Vilas, parques e Terreiros
Novos Patrimnios na Cena das Polticas Culturais de So Lus e So
Paulo. 5 Trecho retirado de FONSECA, Maria Ceclia Londres. O
Patrimnio em Processo. Trajetria da poltica federal de preservao no
Brasil. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/Minc-IPHAN, 1997 (pp. 19-20).
29
26. MANUEL FERREIRA LIMA FILHO, CORNELIA ECKERT, JANE FELIPE
BELTRO (Organizadores) Patrimnio como Antropologia da Ao? Se, de um
lado, temos um movimento crescente nas universidades, novos debates
nacionais e internacionais vm colocando o tema do patrimnio na
ordem do dia das polticas pblicas no Brasil e no exterior.
Particularmente os antroplogos vm sendo convocados diante de
mudanas significativas nas formulaes de polticas culturais,
afirmativas e do prprio, notadamente a partir da constituio de 1988
e particularmente com o fomento do chamado Patrimnio Intangvel, de
2001. Desta maneira, um campo de atuao profissional se abre
rapidamente, clamando por profissionais com capacidade tanto de
atuar na reflexo conceitual do tema do patrimnio cultural como de
agir como gestor ou aquilo que Roberto Cardoso de Oliveira chamou
de Antropologia da Ao. Mas uma questo se apresentava como
fundmental nesse jogo de atuao: o antroplogo se via diante do
desafio de se sustentar como profissional, norteado pelas regras do
mercado, e, ao mesmo tempo, ser fiel aos princpios metodolgicos,
conceituais e ticos da disciplina. Tal desafio foi, inclusive, tema
de um seminrio promovido pela ABA com a Universidade Federal
Fluminense intitulado Antropologia extra-muros, no ano de 2003. A
participao dos antroplogos nas instituies de patrimnio era pequena
at bem pouco tempo atrs. No Brasil, na instituio mais
representativa, o IPHAN, h de se ressaltar a participao de Gilberto
Velho no Conselho do Patrimnio, rgo renomado e de grande
credibilidade no setor. A poltica hegemnica do IPHAN de sua fundao
at final dos anos 90 privilegiou os tombamentos e a preservao de
edificaes em pedra e cal, de conjuntos arquitetnicos e
paisagsticos, bem como a proteo a bens mveis e imveis considerados
de relevo para a nao brasileira, seja por expressivas
caractersticas arquitetnicas, artsticas ou histricas. Tornou-se j
um relato mtico para os que contam a histria da instituio mencionar
as diferenas entre o ante-projeto de Mrio de Andrade esboado em
1936 e a verso final do Decreto-Lei 25, que instituiu e criou a
instituio. De acordo com uma certa corrente de pesquisadores mais
simpticos viso de Mrio de Andrade, seu ante-projeto conteria uma
verso mais culturalista e antropolgica, privilegiando uma noo de
patrimnio que enfatizava os aspectos mais intangveis da cultura,
30
27. ANTROPOLOGIA E PATRIMNIO CULTURAL: DILOGOS E DESAFIOS
CONTEMPORNEOS como manifestaes diversas da cultura popular. A
proposta vencedora, protagonizada na figura de Rodrigo de Mello
Franco de Andrade, tenderia a privilegiar os aspectos materiais do
patrimnio. Evidentemente, este relato mtico da proposta vencida de
Mrio de Andrade na disputa com Rodrigo de Mello Franco de Andrade
serve para legitimar a viso de um grupo de gestores do patrimnio
que manteve uma oposio ao poder hegemnico no campo, formado, em
grande parte, por arquitetos, e que privilegiaram aes de preservao
de cunho material pautadas em critrios histricos e artsticos. As
aes mais contundentes do rgo com repercusses em esferas regionais e
locais de preservao e de construo da memria no pas consistiram em
tombamentos de grandes monumentos, exemplarmente ilustrados pelas
igrejas barrocas de Ouro Preto. A breve passagem do designer Alosio
Magalhes pela instituio trouxe algumas idias novas com a criao do
Centro Nacional de Referncias Culturais e com a transformao, por um
certo perodo, da instituio de Servio do Patrimnio Histrico e
Artstico Nacional para Fundao Nacional Pr-Memria. Alosio Magalhes
adotava uma perspectiva mais culturalista do Patrimnio e formou um
grupo de colaboradores que fazia uma crtica velada ao que eles
consideravam um certo elitismo da proposta at ento hegemnica
encarnada por Rodrigo. A viso deste grupo era a de que a nao inclua
diferentes culturas que deveriam ter seus patrimnios representados
numa instituio voltada para este fim. Essas diferentes culturas
eram expressas em diferentes suportes e no apenas nos suportes
arquitetnicos, que acabaram constituindo o grande elenco de bens
preservados. A morte prematura de Alosio Magalhes e o acirramento
de disputas internas no rgo no possibilitaram que vingasse uma
proposta culturalista do patrimnio, permanecendo a viso at ento
hegemnica. Entretanto, alguns esforos isolados continuaram a ser
implementados. Um dos momentos de destaque desta disputa consistiu
na luta pelo tombamento do terreiro de candombl Casa Branca, na
Bahia, onde havia uma rvore sagrada que tambm deveria ser
preservada. Amplo debate se processou envolvendo antroplogos,
arquitetos e historiadores que produziram artigos para um nmero da
Revista do Patrimnio. Arquitetos acostumados com tombamentos de
bens mveis e imveis e no exatamente com um local sagrado com as
caractersticas de um terreiro 31
28. MANUEL FERREIRA LIMA FILHO, CORNELIA ECKERT, JANE FELIPE
BELTRO (Organizadores) de candombl expressaram certa perplexidade
com relao ao papel do Estado no caso de um tombamento com aquelas
caractersticas. Alm do mais, levantavam objees relativas fiscalizao
por parte de um organismo estatal de um espao csmico, controlado,
em ltima instncia, pelos desgnios do sobrenatural. E se os santos
decidissem que o terreiro deveria migrar para outro local? O
terreiro deveria ser destombado? Em suma, o terreiro foi tombado,
mas a polmica em torno do caso tornou-se um emblema da contenda
entre duas vises de patrimnio. Durante a passagem de Fernando
Collor pelo Governo, a instituio, seguindo os mesmos desgnios de
outros setores da cultura no pas, sofreu um desmonte com demisses
de funcionrios e com falta de verbas e de uma poltica clara para o
setor. A instituio mudou de nome e passou a se chamar Instituto
Brasileiro do Patrimnio Cultural, num sinal evidente de que a
tendncia culturalista continuava a se insinuar em oposio vertente
histrica e artstica. Nos anos do Governo de Fernando Henrique
Cardoso, intelectuais e profissionais do campo insistiram que a
instituio deveria retomar sua sigla original, com a qual ganhou
credibilidade nacional e internacional. Desse modo, a instituio
passou a se chamar Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico
Nacional, nome que permanece at hoje. Mas, apesar de a instituio
manter no nome a referncia ao histrico e artstico nacional e no ao
cultural, um movimento novo comeou a se insinuar, em grande parte
em funo de novos posicionamentos de organismos internacionais.
importante frisar que, durante os anos que se seguiram Segunda
Guerra Mundial, novos organismos internacionais foram criados, como
a UNESCO, e certos debates, como o caso dos relativos ao tema do
patrimnio, passaram a ser regidos tambm em funo de reflexes de
ordem internacional. Nos anos 90, comearam a surgir com intensidade
preocupaes relativas ao que os documentos da UNESCO chamavam de
culturas tradicionais. Por um lado, levanta-se o temor do
desaparecimento dessas culturas face mundializao das culturas que
tenderiam a homogeneizar e ocidentalizar o planeta. Por outro lado,
eram manifestadas preocupaes de que os produtores dessas culturas
tradicionais viessem a ser saqueados por novas modalidades de
pirataria na dinmica do capitalismo globalizado. Conhecimentos
tradicionais 32
29. ANTROPOLOGIA E PATRIMNIO CULTURAL: DILOGOS E DESAFIOS
CONTEMPORNEOS necessrios manipulao de ervas medicinais, msicas
folclricas, danas tradicionais e outras manifestaes destas culturas
se teriam convertido em fontes cobiadas por um mercado cada vez
mais vido por objetos raros e exticos. Novas questes eram
levantadas: como salvar essas culturas tradicionais? Como munir
seus produtores de mecanismos de proteo contra a apropriao de seus
acervos de conhecimentos tradicionais por parte de um mercado que
se globaliza? Num mundo organizado por patentes, como regular
direitos sobre a propriedade intelectual de criaes coletivas ou de
autoria desconhecida expressa em msicas, rituais, folguedos e
manifestaes culturais diversas? Como regulamentar juridicamente os
direitos relativos aos conhecimentos tradicionais, uma vez que no h
legislao sobre direitos coletivos? Como proteger comunidades que
atualizam antigas tradies, uma vez que o mercado expande suas
fronteiras delas se apropriando? Em outras palavras, quando uma
empresa utiliza padres grficos de uma etnia indgena transformandoos
em padres industriais de tecidos ou quaisquer outros suportes,
seria correto ignorar as populaes que criaram estes padres? Na
lgica do capitalismo industrial no seriam elas as inventoras dos
respectivos padres e, portanto, detentoras legtimas do direito de
patente sobre todas e quaisquer utilizaes futuras destes bens? O
mesmo raciocnio no poderia aplicar-se a conhecimentos tradicionais
sobre plantas e ervas medicinais, performances e rituais, tcnicas
especficas de confeco de instrumentos ou equipamentos e assim por
diante? Como adaptar o mecanismo das patentes criadas durante a
fase do capitalismo industrial e relacionadas a invenes individuais
para um direito de propriedade intelectual coletiva? As sociedades
produtoras de culturas tradicionais deveriam aderir ao mecanismo
das patentes? Haveria como aboli-las? Esses tm sido alguns temas
presentes nos debates promovidos pela UNESCO, dos quais participam
representantes de diferentes Estados-naes. Em Documentos produzidos
nos anos 90 sob o ttulo Recomendaes para a proteo e salvaguarda de
manifestaes culturais tradicionais, a UNESCO fazia algumas
propostas aos pases membros da organizao. Como antdoto a problemas
to graves, propunha-se que os pases membros adotassem algumas
medidas, entre elas novas polticas de patrimnio capazes de proteger
as chamadas 33
30. MANUEL FERREIRA LIMA FILHO, CORNELIA ECKERT, JANE FELIPE
BELTRO (Organizadores) culturas tradicionais. Especificamente um
destes documentos propunha que os pases seguissem a inspirao
japonesa de proteger o conhecimento tradicional, as habilidades
especficas que so passadas de geraes a geraes de forma ritualizada
e por meio de mecanismos prprios. Observava-se que, no caso japons,
a proteo ao patrimnio no se faz priorizando os resultados ou os
produtos de tcnicas de construo ou de conhecimentos ancestrais, mas
que, pelo contrrio, se valoriza o processo do fazer. Desse modo, se
um prdio considerado importante para a cultura japonesa, de tempos
em tempos se promove ritualmente uma desconstruo deste prdio e uma
reconstruo do mesmo. A proteo mais adequada, segundo esta concepo,
baseia-se na valorizao do processo e no no resultado final. Por
outro lado, o Documento da UNESCO chamava a ateno para a importncia
de proteger, no caso das culturas tradicionais, os mestres
considerados patrimnios vivos de conhecimentos muitas vezes no
documentados por meio da escrita. Dizia o texto: em sociedades
tradicionais, quando morre um ancio toda uma biblioteca se queima e
se perde para sempre. Era evidente o surgimento de um dado novo no
campo do patrimnio. Se, nos primeiros anos de constituio dos
patrimnios nacionais, predominara uma retrica que lastimava a perda
de um mundo constitudo de prdios e de edificaes que davam lugar a
novos cones das modernas sociedades urbano-industriais e se nestes
anos era preciso salvar algo que testemunhasse momentos do longa
trajetria de construo da civilizao ocidental, no final dos anos 90
discutia-se um outro sentido para uma mesma retrica da perda.
Lastimava-se, agora, o desaparecimento daqueles que constituam os
outros do mundo civilizado outros que expressavam culturas exticas
que teriam sobrevivido a diversas fases do capitalismo mas que, com
a globalizao, estariam irremediavelmente fadados dissoluo. As
propostas salvacionistas da UNESCO tiveram boa repercusso no Brasil
entre gestores do patrimnio, entre eles os segmentos da vertente
culturalista do IPHAN e tambm de outras agncias do Ministrio da
Cultura. Reunies foram realizadas, dentre as quais uma reunio em
Fortaleza que congregou tcnicos de vrias agncias governamentais e
durante a qual foi proposta a formulao de uma poltica voltada para
o Patrimnio Intangvel. Uma das instituies que aderiu de imediato
foi a ento Coordenao de Folclore e de Cultura 34
31. ANTROPOLOGIA E PATRIMNIO CULTURAL: DILOGOS E DESAFIOS
CONTEMPORNEOS Popular ligada Funarte, instituio herdeira da
Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, atuante desde os anos
50, e que tinha longa experincia com pesquisa em folclore e em
cultura popular. Das instituies do Ministrio da Cultura, era esta
uma das que congregavam maior nmero de antroplogos.
Concomitantemente, por ocasio dos festejos dos 500 anos do
Descobrimento do Brasil, o Ministrio da Cultura props a Antonio
Augusto Arantes a criao de uma metodologia de inventrio das
manifestaes culturais na regio do sul da Bahia, onde havia um
projeto de criao de um Museu Aberto do Descobrimento. Gestores do
patrimnio interessados na nova poltica do Patrimnio Intangvel
articularam-se no projeto de criao de um programa de ao voltado
para o Patrimnio Intangvel no Brasil; e, em 4 de agosto de 2000,
foi promulgado o Decreto 3.551, instituindo o Registro de Bens
Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimnio cultural
brasileiro e criando o Programa Nacional do Patrimnio Imaterial. A
proposta do Registro significou essencialmente a criao de um selo
distintivo oficial para os chamados bens culturais de natureza
imaterial. Evidentemente, como todo o processo de patrimonializao,
esta proposta inclui a idia de seleo, de construo de um acervo
digno de ser memorializado em oposio a um outro conjunto de bens
culturais que devem ser relegados ao esquecimento. A dinmica
patrimonial implica prticas de colecionamento, e a prtica do
Registro pode ser comparada prtica do tombamento, de acordo com a
qual so necessrios critrios que possibilitem escolhas daquilo que
dever ser preservado. Para o Registro dos Bens Culturais de
Natureza Imaterial, foram criados quatro livros: o Livro do
Registro dos Saberes (para o registro de conhecimentos e de modos
de fazer); o Livro das celebraes (para as festas, os rituais e os
folguedos); o Livro das formas de expresso (para a inscrio de
manifestaes literrias, musicais, plsticas, cnicas e ldicas); o
Livro dos lugares (destinado inscrio de espaos onde se concentram e
se reproduzem prticas culturais coletivas). Prev-se, ento, que
alguns bens culturais devam ser registrados nestes livros e que,
como manifestaes culturais vivas, estes bens culturais sejam
acompanhados pelos agentes do patrimnio, e suas transformaes
documentadas. 35
32. MANUEL FERREIRA LIMA FILHO, CORNELIA ECKERT, JANE FELIPE
BELTRO (Organizadores) Nas palavras da atual diretora do
Departamento do Patrimnio do IPHAN, a arquiteta Marcia SantAnna, O
registro corresponde identificao e produo de conhecimento sobre o
bem cultural de natureza imaterial e equivale a documentar, pelos
meios tcnicos mais adequados, o passado e o presente dessas
manifestaes em suas diferentes verses, tornando tais informaes
amplamente acessveis ao pblico. O objetivo manter o registro da
memria desses bens culturais e de sua trajetria no tempo, porque s
assim se pode preserv-los. Como processos culturais dinmicos, as
referidas manifestaes implicam uma concepo de preservao diversa
daquela prtica ocidental, no podendo ser fundada em seus conceitos
de permanncia e autenticidade. Os bens culturais de natureza
imaterial so dotados de uma dinmica de desenvolvimento e
transformao que no cabe nesses conceitos, sendo mais importante,
nesses casos, registro e documentao do que interveno, restaurao e
conservao6 . Paralelamente ao instrumento do Registro, o IPHAN
criou, em parte com as contribuies do projeto piloto desenvolvido
por Antonio Augusto Arantes no sul da Bahia, uma metodologia de
inventrio que gerou uma proposta de Inventrio Nacional de
Referncias Culturais (INRC) instrumento para subsidiar as aes de
registro e realizar um recenseamento amplo das manifestaes
culturais no pas. Ana Gita de Oliveira, antroploga e tcnica do
IPHAN, chama a ateno para o fato de que, a partir de 1995, [...] o
IPHAN comeou a sistematizar os diversos modelos de inventrios
existentes at ento e, pela primeira vez, arriscar a difcil tarefa
de organizar um inventrio que fosse adequado natureza do patrimnio
imaterial (...). Entre os anos de 1997 e 2000, tendo como fonte de
inspirao as experincias realizadas na Fundao Pr-Memria e no
desenvolvimento de trs experincias de inventrios de referncias
culturais, no Serro/ MG, em Diamantina/MG e na Cidade de Gois/GO,
se comeou a estruturar um modelo de Inventrio (...)7 . 6 SantAnna,
Marcia. A face imaterial do patrimnio cultural. In: ABREU, Regina
& CHAGAS, Mrio. Memria e Patrimnio. Rio de Janeiro: ed. DPA,
2003. 7 OLIVEIRA, Ana Gita de. Diversidade cultural como categoria
organizadora de polticas pblicas. In: TEIXEIRA, Joo Gabriel et al.
Patrimnio imaterial, performance cultural e (re)tradicionalizao.
Braslia: Transe/Ceam, 2004. 36
33. ANTROPOLOGIA E PATRIMNIO CULTURAL: DILOGOS E DESAFIOS
CONTEMPORNEOS A metodologia de inventrio sistematizada pelo IPHAN
comeou a ser posta em prtica por alguns tcnicos das agncias
governamentais, entre eles os tcnicos do Centro Nacional de
Folclore e Cultura Popular CNFCP , sob a coordenao da antroploga
Letcia Vianna. Esta experincia merece ser registrada, pois vem
abrindo um importante mercado de trabalho para antroplogos. No caso
do projeto do CNFCP, h uma equipe fixa e diversos consultores
relacionados a temas especficos que foram selecionados para serem
inventariados: [...] as diferentes celebraes relacionadas ao
complexo cultural do boi, os diferentes modos de fazer relacionados
ao artesanato em barro; as diferentes formas de expresso e modos de
fazer relacionados musicalidade das violas e percusses; os
diferentes modos de fazer relacionados aos sistemas culinrios a
partir dos elementos mandioca e feijo8 . A maior parte dos
envolvidos nestas pesquisas so antroplogos ou estudantes de
antropologia em fase de mestrado ou de doutorado recrutados em
cursos de ps-graduao e que esto envolvidos com teses sobre temas
correlatos. O objetivo das pesquisas duplo: tecer um inventrio
dessas manifestaes culturais, escolhidas em parte por retratar
certa tradio de estudos da instituio, e preparar dossis para
possveis registros dentro do Programa Nacional de Patrimnio
Imaterial. Concomitantemente aos inventrios, o mote dos registros
de manifestaes culturais que passariam a ser distinguidas com um
selo do Ministrio da Cultura vem desencadeando ampla mobilizao de
profissionais da cultura e de agentes sociais em organismos
estatais, ongs e instituies culturais. Com o incio da gesto de
Gilberto Gil no Ministrio da Cultura, houve um incentivo muito
grande para que o Programa do Patrimnio Imaterial entrasse em
vigor, inclusive com editais de concursos de financiamentos com
apoio da Petrobrs para pesquisas nesta rea. Pode-se falar em uma
verdadeira corrida de pesquisadores, principalmente de antroplogos,
que se sentiram estimulados a organizar dossis de pesquisas sobre
as manifestaes culturais relacionadas aos grupos de seus interesses
de pesquisa. 8 Vianna, Letcia. Pluralidade cultural e identidade
nacional: experincias recentes de polticas no Brasil. In: TEIXEIRA,
Joo Gabriel et al. Op cit 37
34. MANUEL FERREIRA LIMA FILHO, CORNELIA ECKERT, JANE FELIPE
BELTRO (Organizadores) Para que uma manifestao cultural concorra ao
registro, necessrio um amplo dossi com pesquisas consistentes,
descries detalhadas e justificativas sobre as razes dos pedidos de
registro. evidente que, para esta atividade especfica, os
antroplogos renem os atributos necessrios. O que vem ocorrendo que
antroplogos com maiores informaes e condies materiais de realizar
tais dossis levam vantagem numa certa concorrncia para definir
quais bens culturais sero registrados e recebero o ttulo de
patrimnios culturais do Brasil. Os primeiros casos de registros de
bens culturais exemplificam esse processo. O caso do primeiro bem
cultural indgena registrado no Livro dos Saberes do patrimnio
imaterial emblemtico. Trata-se do registro da arte kusiwa pintura
corporal e arte grfica wajpi, ou seja, de ndios habitantes do Amap
e estudados pela antroploga Dominique Gallois, do Ncleo de Histria
Indgena e do Indigenismo da USP. Apoiada pelo Museu do ndio por
ocasio da elaborao de uma exposio desta etnia no museu, Dominique
Gallois organizou um vasto dossi, resultado de mais de quinze anos
de pesquisa, e o encaminhou, junto com o diretor do Museu do ndio,
o tambm antroplogo Jos Carlos Levinho, ao IPHAN, solicitando o
registro do kusiwa como patrimnio cultural do Brasil dentro do
Programa Nacional do Patrimnio Imaterial. Num certo sentido,
pode-se dizer que por uma srie de motivos, entre eles a agilidade e
o trabalho anterior acumulado, Dominique Gallois chegou frente no
pedido de registro para a arte grfica do grupo que estuda, de modo
que, em 20 de dezembro de 2002, o kusiwa foi registrado como
patrimnio cultural do Brasil. Evidentemente, injunes polticas tambm
concorreram para que este bem cultural recebesse o selo de
patrimnio oficial pelo Governo Federal. Na ocasio, o Presidente
Fernando Henrique Cardoso encerrava sua gesto, e era interessante
que o Governo mostrasse resultados e que a ento gesto do IPHAN
tornasse visvel a poltica que naquele Governo comeara a se
implantar. Com senso de oportunidade e uma pesquisa consolidada
sobre os waipi, o Museu do ndio, as lideranas indgenas waipi e a
antroploga Dominique Gallois emplacaram o registro da bela arte
grfica waipi. Entretanto, o que significa dar um selo oficial de
reconhecimento a uma manifestao cultural se o pas feito de muitas
manifestaes 38
35. ANTROPOLOGIA E PATRIMNIO CULTURAL: DILOGOS E DESAFIOS
CONTEMPORNEOS culturais, todas igualmente significativas? A relao
entre universidades e agncias estatais tm sido uma constante no
meio daqueles que escrevem sobre o assunto do patrimnio. Os
antroplogos comearam a ser chamados pelos tcnicos das instituies
museais e de patrimnio para refletirem com eles sobre polticas
pblicas, modos de funcionamento, ideologias, princpios e prticas de
identificao, de preservao e de difuso dos acervos e dos bens
culturais. Estes intercmbios entre o pesquisador e as agncias que
configuraram o campo etnogrfico de suas pesquisas so extremamente
interessantes, mas muitas vezes provocam confuses e mal-entendidos.
A perspectiva acadmica, reflexiva, tem uma especificidade com relao
ao trabalho de atuao numa rea que, independentemente das
relativizaes que se possa fazer, funciona como instncia
canonizadora, formando cones e smbolos da memria nacional. O
dilogo, portanto, tem limites, e muitas vezes difcil precis-los.
Faz parte do jogo das agncias do patrimnio a consagrao, por meio de
aes de tombamentos, de bens mveis e imveis, listas de edificaes a
serem preservadas ou de objetos a serem recolhidos. As polticas de
memria so o resultado de dinmicas deliberadas de lembranas e
esquecimentos. Valorizar objetos, entronizar personagens no panteo
de uma construo discursiva da histria, restaurar um quadro, um
prdio ou um bairro seguindo a opo de uma determinada poca ou padro
arquitetnico bem diferente de refletir sobre os mecanismos que
levaram uma sociedade a valorizar aqueles objetos e no outros, ou
de estudar sobre as escolhas dos quadros a serem restaurados e
daqueles fadados destruio, ou ainda de observar criticamente que a
restaurao de um bairro ou de um complexo arquitetnico a partir de
determinados padres estticos no suficiente para restaurar a
autenticidade original destes espaos. Ressalta-se o papel das
universidades, principalmente nos programas de ps-graduao, que vm
gerando um nmero crescente de dissertaes e de teses e alimentando
debates, simpsios e mesas redondas em todo o pas. De tema marginal
ou menor nos estudos antropolgicos, os estudos de memria, patrimnio
e cultura material vm ganhando visibilidade e inserindo-se no
movimento contemporneo de uma Antropologia voltada para pensar a
sociedade do observador ou, para usar a expresso de Marisa Peirano,
de uma 39
36. MANUEL FERREIRA LIMA FILHO, CORNELIA ECKERT, JANE FELIPE
BELTRO (Organizadores) Antropologia em que a construo da alteridade
prxima, seno mnima. Este um campo sem dvida de interseo entre
antroplogos e outros dos mais variados lugares e tendncias campo
que se movimenta na confluncia entre a Academia e as agncias de
governo, instituies, ongs e movimentos sociais, entre pesquisas
reflexivas e paixes desenfreadas que fazem do patrimnio uma causa e
uma bandeira de luta. Decorrente disso, pergunta-se: papel dos
antroplogos hierarquizar as culturas? Os antroplogos nos Conselhos
de Patrimnio ou nas agncias governamentais podem selecionar algumas
manifestaes culturais em detrimento de outras? Como patrimonializar
as diferenas sem trair o prprio conceito de diferena? Como criar
colees de manifestaes culturais dignas de representar a nao
brasileira, sabendo-se que, no mesmo movimento, estamos tambm
praticando o descolecionamento, ou seja, criando colees de
manifestaes culturais indignas de representar a nao brasileira?
Cabe ao antroplogo este papel de certificador das culturas? Quais
os significados para o trabalho antropolgico quando atuamos como
mediadores entre culturas especficas e singulares e agncias do
Governo Federal que retiram delas fragmentos para metaforizar uma
outra totalidade, a nao totalidade que vem sendo construda por
agentes especialmente treinados do aparelho de Estado? Como
integrar o aparelho de Estado sem perder de vista a premissa bsica
e fundante de toda a Antropologia, que a de trabalhar com a
diferena e buscar traduzi-la sem hierarquizaes e etnocentrismos?
Como lidar com nossos prprios valores, gostos, idiossincrasias
quando temos, diante de ns, o poder de certific-los em detrimentos
de outros? Por outro lado, como deixar de aproveitar oportunidades
de certificar culturas que so nossos prprios objetos de estudo, uma
vez que sabemos que elas podem ser boas estratgias para a
auto-afirmao e a construo da auto-estima desses grupos? Como fazer
isso sem estimular a guerra das culturas num planeta onde a noo de
diversidade cultural vem ganhando o significado do
multiculturalismo, ou seja, de culturas fechadas como mnadas ou
totalidades que, em muitos casos, perdem quaisquer referncias ao
objetivo do entendimento humano? Ainda refletindo sobre o caso do
grafismo waipi e sem tirar o mrito e a beleza dessa arte grfica,
como proceder diante de todas as demais 40
37. ANTROPOLOGIA E PATRIMNIO CULTURAL: DILOGOS E DESAFIOS
CONTEMPORNEOS artes grficas das etnias indgenas no Brasil, uma vez
que todas elas produzem artes grficas igualmente belas e
culturalmente significativas? No estaramos tambm correndo o risco
de engessar as manifestaes culturais, congelando-as a partir da
imagem cristalizada no registro? Referncias Bibliogrficas ABA.
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Transe/Ceam, 2004. 43
40. PATRIMNIO, LINGUAGENS E MEMRIA SOCIAL: PROBLEMAS, ESTUDOS E
VISES NO CAMPO DA ANTROPOLOGIA Jane Felipe Beltro1 Carlos Caroso2
Por que patrimnio? Patrimnio enquanto tema, na Antropologia,
candente, especialmente porque proporciona o conhecimento de
linguagens diferenciadas e remete memria social, atravs da qual se
constroem e se reconstroem as identidades de grupos, de sociedades,
de naes e de povos. As chamadas bienais para acolhimento de
proposies para organizar grupos de trabalhos nas reunies
brasileiras de Antropologia sempre despertam interesse de muitos
pesquisadores, que respondem a estas apresentando um grande e
diversificado nmero de propostas para organizar grupos de
trabalhos, mesas redondas, simpsios, cursos, entre as mltiplas
atividades do evento. A diversidade de seus contedos tem dois
efeitos aparentemente contraditrios. Se, por um lado, estimula a
concorrncia e desperta rivalidades entre grupos e indivduos, por
outro traz luz uma dinmica no avano do conhecimento no campo das
antropologias, sendo ambos os efeitos de suma importncia para que
se compreenda o estado da arte e para que se enriquea o debate.
Diante desta realidade, o Conselho Cientfico da Associao Brasileira
1 Doutora em Histria pela UNICAMP. Professor Associado do
Departamento de Antropologia/ UFPA. Pesquisador II do CNPq. 2 PhD.
em Antropologia pela UCLA. Professor Associado do Departamento de
Antropologia e Etnologia-FFCH/UFBA. Pesquisador I-D do CNPq.
Diretor do Museu de Arqueologia e EtnologiaMAE/UFBA. 45
41. MANUEL FERREIRA LIMA FILHO, CORNELIA ECKERT, JANE FELIPE
BELTRO (Organizadores) de Antropologia (ABA) encontra grande
dificuldade para decidir sobre a programao a ser observada durante
os eventos. Por ocasio dos preparativos da 25a Reunio Brasileira de
Antropologia (RBA), a escrita se manteve. Na Reunio que se realizou
em Goinia, o Conselho da ABA teve uma atitude visionria,
valorizando as questes relativas ao patrimnio e acolhendo, em sua
programao, dois simpsios intitulados Memria e esquecimento: rastros
da ditadura e reconstruo da memria social e Antropologia e Museus:
revitalizando o dilogo, uma mesa redonda denominada Antropologia na
cidade e polticas patrimoniais, uma oficina sob o ttulo O
antroplogo face s novas polticas de patrimnio, trs grupos de
trabalho chamados Antropologia, Memria e Narrativas; Educao
patrimonial: perspectivas e dilemas; Patrimnio e cultura: processos
de politizao, mercantilizao e identidades; e Patrimnio, linguagens
e memria cultural, alm de um Colquio sobre Patrimnio Cidadania e
Direitos Culturais. Este ltimo foi realizado aps a reunio na cidade
de Gois, visando a promover uma apreciao das discusses iniciadas no
mbito da reunio de Goinia e a abrir a discusso a novas perspectivas
e olhares interdisciplinares, com a presena de antroplogos,
arquelogos, muselogos e de outros profissionais que tm como objeto
de suas preocupaes e ocupaes o patrimnio histrico-cultural.
amplitude de espaos especficos destinados s discusses do tema,
somou-se aquela ocorrida nos demais grupos de trabalho que tm relao
com ou implicaes e repercusses sobre o tema patrimnio, muito
particularmente saberes e prticas, o mote da reunio3 . Todo este
conjunto de eventos permite-nos considerar que esta foi a reunio da
ABA em que se conferiu maior importncia questo entre todos os
eventos promovidos pela Associao, evidenciando pelo menos duas
questes: 1) que os problemas e seu estudo ganham crescente
importncia no meio acadmico-cientfico; e 2) que os antroplogos,
coerentes com tradies de estudo, vem, nos bens patrimoniais, a
representao de seu objeto de estudo, estando dispostos a discutir e
a compartilhar com outros profissionais o conhecimento e as
estratgias para sua proteo, guarda, conservao 3 Cf. ABA. 25a Reunio
Brasileira de Antropologia. Programao impressa em papel e cd-rom.
Goinia, 2006 e ainda LIMA FILHO, Manuel Ferreira & BEZERRA,
Mrcia. Os caminhos do Patrimnio no Brasil. Goinia, Alternativa,
2006 publicao lanada durante a 25a RBA. 46
42. ANTROPOLOGIA E PATRIMNIO CULTURAL: DILOGOS E DESAFIOS
CONTEMPORNEOS e retorno de conhecimento para as comunidades de onde
esses bens provm, porque aqueles bens so representaes de culturas,
de povos e de sociedades pretritas e contemporneas. Destarte, a
crescente corrida ao tema, que se verifica a partir da ltima dcada
do sculo XX, traz a possibilidade de tratar o patrimnio e as
questes referentes ao mesmo de forma multifacetada e,
principalmente, permite identificar a natureza, a formao e a
preservao de acervos de bens simblicos. Seu emprego social, sua
percepo e valorao, como proposto por ns, coordenadores do Grupo de
Trabalho denominado Patrimnio