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Pensamento científico a natureza da ciência no ensino fundamental - nélio bizzo (1)

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Apresentação

De que maneira uma pessoa configura sua identidade profissional? Que caminhos singulares e

diferenciados, no enfrentamento das tarefas cotidianas, compõem os contornos que caracterizam oprofessorquecadaumé?

Emsuaperformancesolitáriaemsaladeaula,cadaeducadorpodereconheceremsuavozegestosecos das condutas de tantos outrosmestres cujo comportamento desejou imitar; ou silêncios de tantosoutroscujaatuaçãoprocurourecalcar.

A identidadeprofissional resultadeumfeixedememóriasdesentidosdiversos,deencontrosedeoportunidadesaolongodajornada.Aidentidadeprofissionalé,portanto,oresultadododiálogocomooutroquenosconstitui.Écoletiva,nãosolitária.

A coleção Como Eu Ensino quer aproximar educadores que têm interesse por uma área deconhecimento e exercem um trabalho comum. Os autores são professores que compartilham suasreflexões e suas experiências com o ensino de um determinado tópico. Sabemos que acolher aexperiência do outro é constituir um espelho para refletir sobre a nossa própria experiência eressignificarovivido.Esperamosqueessesencontrospromovidosporessacoleçãorenovemodelicadoprazer de aprender junto, permitam romper o isolamento que nos fragiliza como profissionais,principalmentenomundocontemporâneo,emqueaeducaçãoexperimentaum tempodeaceleraçãoemcompassocomasociedadetecnológicanabuscadesenfreadaporprodutividade.

Apropostadesta sériede livrosespecialmenteescritosporprofessoresparaprofessores (emborasua leitura, estamos certos, interessará a outros aprendizes, bem como aos que são movidosincessantementepelabuscadoconhecimento)ésintetizaroconhecimentomaisavançadoexistentesobredeterminado tema, oferecendo ao leitor-docente algumas ferramentas didáticas com as quais o temaabordadopossaseraprendidopelosalunosdamaneiramaisenvolventepossível.

OpensamentocientíficonacoleçãoComoEuEnsino

Este volume apresenta um histórico do desenvolvimento da ciência centrado em uma ilustríssimatrindade:Aristóteles,GalileueDarwin.Nossajornadahistórica,plenadepercalços,intrigasedebatesacalorados,teminícionaAntiguidadeclássica,aquirepresentadapeloespíritoinovadordeAristóteles,querompeucomavisãoplatônica,fundandoumafilosofiaqueinfluenciariaaciênciapormaisdedezoitoséculos. Pormeio de exemplos práticos e compreensíveis, Bizzo nos surpreende aomostrar como asexplicações aristotélicas para os fenômenos físicos resistem impregnadas no senso comum até aatualidade.

A persistência das interpretações do filósofo grego nos ajuda a dimensionar a tarefa gigantescalevada a cabo pelos cientistas que, a partir do século XVI, começaram a demolir as concepções dofilósofo grego, especialmente os de natureza celestial. Foi observando os astros com uma luneta queGalileu Galilei encontraria a brecha para questionar o conhecimento consagrado, criando ao mesmotempoumaformadegerarconhecimentoapartirdaobservaçãorigorosa.EsserigorBizzonosprovaaosobreporacadernetadocientistacomanotaçõessobreas luasdeJúpitercomaslocalizaçõesprecisas

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dosmesmosastros,reconstruídasporcomputador.Dentrodesseespíritoiluminista,efazendousodeconhecimentossobregeologia,zoologiaebotânica

existentesnoséculoXIX,surgeaterceirapersonagemdessahistóriadasciências:CharlesDarwin,quesetornariacelebridadecientíficaaolançarsuaobraseminal,Aorigemdasespécies.

Aevoluçãodaciência,cujahistóriaformativaaquiseencontracentradanessastrêstrajetórias,nuncacessa.Entendê-lacomoumprocessohistóricoajudaráseusalunosavalorizaraquelesquelutaramcontrapreconceitos e postulados em nome da evolução do conhecimento. Por isso, o último capítulo trazreflexõessobrecomooensinodeciênciasépraticadonasescolasbrasileiras–esinalizaasescolhascapazesdelevarcriançasejovensalançaremumolharmaisatentoaoqueaprendemnaescola.

MariaJoséNóbregaeRicardoPrado

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Sumário

Introdução:omundodosmitosedosabercotidiano

1.Desobedecendoaosmestresdafilosofia:opensamentoinovadordeAristóteles

2.Umsistemadeideiasdestemido:GalileuGalileieasnovasciências

3.Umanovahistórianatural:CharlesDarwineasdinâmicasdanatureza

4.Anaturezadaciênciaeaescola:metodologiadeensino

Oautor/Agradecimentos

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Introdução

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Omundodosmitosedosabercotidiano

Umadascoisasmaisdifíceisquesepodeperguntaraumcientistaéoqueéaciênciaecomoépossíveldistingui-ladoquenãoéciência.Umrecursomuito rigorosoparaprocurarumaresposta,dopontodevistametodológico,ébuscaraevoluçãohistóricadofazercientífico.IssonosremeteàGréciaantigaeaosurgimentodafilosofia,conhecidacomoamãedaciênciamoderna.

No entanto, não será muito estimulante perceber que uma das coisas mais difíceis que se podeperguntaraumfilósofoéjustamenteoqueéafilosofia.Existempelomenostrêsrespostasdiferentesaessapergunta,oquebastaria, segundoalguns filósofos,mesmosemsaberquais sãoelas,paraafirmarcomsegurançaquenãosabemosoqueéafilosofia.Masesseaparenteparadoxonosajudaaperceberacomplexidadedoassuntoquequeremosdesenvolvernaescola,comjovensqueiniciamaadolescência.

Vamos às respostas. Uma das mais tradicionais, segundo alguns filósofos, diz que a filosofia sedistingue por seuobjeto, pois se ocupa de três questões fundamentais: o que existe nomundo, comosabemosoqueexistenomundoeoquevamosfazerarespeitodisso.Aobuscararespostaacadaumadessasperguntas,vamosnosenvolvercomtrêsáreasdosaberfilosófico.Aoprocurarsaberoqueexistenomundo,vamosestudaranaturezadarealidade,nocampodoconhecimentochamadopelosfilósofosde“metafísica”. Ao tentar compreender como podemos saber o que existe no mundo, vamos estudar ascondiçõesnecessáriasparaseconheceralgo,nocampodoconhecimentochamadode“epistemologia”.Porfim,aoestudaroquesepodeeoquenãosepodefazerdiantedosfatosdomundoedasformasdeconhecê-los,vamoslidarcomoqueosfilósofoschamamde“ética”.Todosnóscertamentejádedicamosumbomtempoaessastrêsquestões,masosqueprocuramsistematizar,registrarecomunicaroresultadodeseuspensamentossãoosfilósofosquesetornarammaisfamosos.

Essa resposta que confere relevo ao objeto da filosofia foi profundamente questionada a partir deNicolau Maquiavel (1469-1527), que percebeu a necessidade de buscar incessantemente novasperguntas, para além da metafísica, da epistemologia e da ética, afirmando que a questão central aenfrentarserásempreamanutençãodopoder,apolítica.1

Essa primeira resposta para a pergunta sobre o que é a filosofia nos ajuda a entender a segunda:pode-sefilosofarsobrequalquercoisa–ouseja,nãoéoobjetodareflexãoquedistingueofilosofar–,masoqueimportaéométodoqueseutilizanessasistematizaçãocuidadosadopensamento.Oapoionarazão,demaneiraexplícitaejustificada,seriaacaracterísticadistintivadafilosofia,independentementedoobjetosobreoqualelasedebruça.

A defesa do método e da razão como parte essencial da filosofia encontrou oponentesintelectualmente robustos, desde ImmanuelKant (1724-1804) eFriedrichNietzsche (1844-1900) atéocontemporâneoPaulKarlFeyerabend(1924-1994).Taisfilósofos,cadaqualaseumodo,questionaramaobjetividadedequalquermétodoeexpuseramavalidaderelativanãoapenasdareflexãofilosófica,mastambémdasteoriascientíficas,convidando-nosacriticaraformaderaciocínioqueutilizamosaqualquertempo.

Finalmente,aterceiraresposta,talvezamaisantiga.Paraalgunsfilósofos,afilosofiaéumaatitudeemrelaçãoàvida,ouseja,essencialmenteummododeviver.Elanoslevaaposiçõescríticasemrelaçãoàformadeconcebercoisas,fenômenosecomportamentos,umarecusainicialemaceitarpassivamenteoquetodasaspessoasaceitamsemrefletirmaisprofundamentearespeito.Talvezomaiorexemplodessaposição seja Sócrates, que levou ao extremo seu “amor pela sabedoria”, o significado da palavra

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“filosofia” em grego. Ele insistia em comunicar o resultado da sistematização de seus pensamentoscríticos (que não cuidou de registrar) e acabou condenado à morte por isso. Por coerência com seu“modode vida”, com sua crença de que umavida sem reflexãoprofundanãovale a pena ser vivida,enfrentoudignamenteseufimtrágicoenãofugiuaocastigocapital.

A visão socrática de filosofia foi questionada por outros filósofos, sendo um dos mais famososFrancisBacon(1561-1626),quedefendeuoprimadodométodoedarazão,poisavidahumana temainfluência de “ídolos”, que ofuscam nossa visão.Como vimos, a defesa dométodo, por sua vez, nãoesteveimuneacríticas.

Assim,apontandohonestamenteasincertezasdebaseemnossotemacentral,admitoque,emlugardebuscarresolveraquestãodedefiniroqueéaciência,oqueseriaalgopretensioso,opteiportrilharumcaminhomaissuave, trocandoa investigaçãodaessênciadenossoobjetodeestudopeladescriçãodoqueeletemsido,deixandoaoleitoratarefadeformularseupróprioconceitodeciência.Assim,convidooleitorainiciaraquiumajornadamuitoparticularemodestajuntoaopensamentocientíficoqueintegraaculturaocidentalequeé,portanto,essencialaoscurrículosdoensinofundamental.Portanto,dopontodevistametodológico, justifica-se o recurso da exposição histórica diante da impossibilidade de definirsimplesmenteoqueéciência;cabemostrarcomoopensamentocientíficosetransformounodecorrerdostempos. No entanto, tampouco poderia enfrentar a tarefa de produzir um compêndio de história daciência, por isso escolhi três ícones para discutir partes importantes de seus trabalhos nos próximoscapítulos.Assimcomotrêspontosdefinemumplano,trêspensadorespoderãonosdarumaideiadovastohorizontequedelineiaopanoramacientíficomoderno.Masantesseránecessárioentenderolugarondeseiniciaessajornada.

Asdescobertasdarazão

Um ponto de partida para nossa jornada pode ser localizado na Grécia, no período pré-socrático.Acredita-sequeSócratestenhavividoemAtenasentre470e399a.C.Deorigemhumilde,conta-sequeserviu comohoplitano exército ateniense, oque éuma indicação seguradequenão se tratavadeumaristocrata2. Sabe-se de seus pensamentos apenas pelos escritos de terceiros, alguns desenhandodesdenhosamente uma figura pouco interessante, outros, ao contrário, apontando-o como pensadorprofundoeoradorderaraqualidade.Osimplesfatodetersidocondenadoàmorteportransmitirseuspensamentosnosésuficienteparaconcluirqueosprimeirosdevemtertraçadodeleumaimagemmuitoimprecisa.

Sócrates foi celebrado como um filósofo que trouxe a filosofia para o mundo real – como dissedepois o famoso pensador romano Cícero, ele fez a filosofia “descer dos céus”. Aí temos algumasindicaçõesdequeomundointelectualgregoanterioraSócrateseraummundodistanteeinatingível,quenosremeteaotemor,àadmiraçãocegaou,nomínimo,àprostraçãoeaosentimentodeimpotênciadiantedomundo.Defato,asdescobertaseramvistascomorevelaçõesdeelaboraçõesdeentidadesmísticas,compondoumagaleriadedeusesquepovoavamamitologiadaépoca.

Os matemáticos viam nos números e nas formas geométricas expressão de vontades divinas, queinfundiam encantos capazes de deslumbrar magicamente nossas sensações. O círculo era visto comoexpressão da perfeição, só possível aos deuses. Assim, havia uma relação no círculo, que todosaprendemosnaescolapelonúmeroquealgumprofessorcertamentefezcadaumdenósmemorizarantesdealgumaprova:3,1416…Odiâmetrodeumcírculodequalquertamanhocabepoucomaisdetrêsvezesem sua circunferência. Trata-se de um número (“pi”) que demonstrou ser útil numa infinidade de

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aplicaçõespráticas,atéhoje.Masoutrarelaçãomatemáticaeracapazverdadeiramentededeslumbrarnossossentidos.Imagine-se

umsegmentoderetaqueligaopontoAaopontoB.Épossívelencontrarumpontoentreelescapazdedefinirdoissegmentosderetacomumarelaçãomuitoparticular.Arazãoentreosdoissubsegmentoséigualàrazãodosegmentocompletoporumdossubsegmentos(figura1).

Figura1.Adescobertadeumponto“mágico”emumsegmentodereta(opontoC)estabeleceumaigualdadeuniversaleumquocientemuitoparticular(“fi”).

Essarelaçãomatemática,cujoquocienteérepresentadopelaletragregamaiúsculaΦ(“fi”),passouaserconhecidacomo“relaçãoáurea”.Trata-sedeumequilíbriomuitointeressante,cujaparticularidadeaindapermaneceenigmática.Elenosencanta!Procure traçarumretânguloutilizandocomoladosessesdois subsegmentos.O retângulo resultante terá um equilíbrio estético que nenhumoutro retângulo serácapazde igualar.Essenúmero aparecia nanatureza, surpreendendoosmatemáticos, queoviamcomo“mágico”,frutodeumatramadivina,algodiantedoquesomoscompletamenteimpotentes.Sónosrestacontemplarsuabeleza.

Aplicaçõesdarazão

QuandoosateniensesdecidiramconstruirumtemplomajestosoparaadeusaAtena,noséculoVa.C.,suaarquitetura não podia deixar de incorporar essa relaçãomágica, que trazia harmonia ao conjunto.Aoobservarmoscadadetalhe,encontraremosousodessarelação(figura2).

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Figura2.Partenon,edifícioconstruídonoséculoVa.C.emAtenas,naGrécia.

Otemploeradestinadoàmaiordivindadegrega,consideradaadeusadasabedoriaedetantasoutrasvirtudes. Como era comum ocorrer com os templos gregos, era também o local onde se guardavamriquezas,comoasreservasdeouroepedraspreciosas.Aproporçãoáureapodeserencontradaemseusdetalhesarquitetônicoseatémesmonasestátuasmajestosasesculpidasparaornamentá-lo,deslumbrandoosvisitantesdotemplosagrado.

Não poderia haver dúvida de que a dízima 1,6081… fosse uma invenção divina. Ela podia serencontradanasmaisvariadasmanifestaçõesdanatureza,comonadistribuiçãodascoresempássaroseflores,naproporçãodocorpodeinsetosenaanatomiahumana.Obraçoeamãohumanos,eatémesmoasfalangesdosdedos,guardamumaproporçãoentresidaordemde1:1,6180…(figura3).

Figura3.Aproporçãoáureapodeserencontradanasmaisdiversasformasdanatureza,incluindoaanatomiadevegetaiseanimais,entreelesoserhumano.

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Até mesmo modernamente, encontramos a proporção áurea nas mais inesperadas situações, porexemplo,noeletrocardiogramaenaespiraldasgaláxias(figura4).

Figura4.Aproporçãoáureapodeserencontradanacurvadeumeletrocardiogramaenaespiraldasgaláxias.

As conchas de muitos animais são construídas em formas que guardam proporções idênticas àproporção áurea. Por exemplo, omolusco náutilo é um bom exemplo de como é possível observar aprecisãomatemáticanasformasnaturais(figura5).

Figura5.Aproporçãoáureapodeserencontradanosdetalhesdaconchademoluscoscomoonáutilo.

Assim, não era de se estranhar que essas descobertasmatemáticas fossemvistas como“mágicas”,reflexodedesígniosdivinos.Atéhojenãoháexplicaçõesrazoáveissobreporqueessaproporçãonosimpressionatantoeporqueelaétãocomumnanatureza.

Os fósseis, conhecidosdehámuito,mas semexplicação razoável atéo séculoXVII,muitasvezestraziamessamesmaproporção.Aqueles conhecidos como “amonites” (figura 6) eramencontrados emgrandes quantidades em certas localidades, como na Grécia, na Itália e no Egito, ocupadas pelascivilizaçõesmaisantigas.

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Figura6.DesdeoEgitoantigo,sãoconhecidasrochascomformasbizarras,quetrazemaproporçãoáurea.ForamconsideradasmarcasdodeusAmonechamadas“amonites”.

Nãoespanta,portanto,queessasrochasfossemvistascomomarcasdeixadasporumdeus,aindamaisporquetraziamigualmenteamarcadarazãoáurea.Elaseram,porassimdizer,uma“assinatura”deseuautor,alguémcomprofundoconhecimentomatemático,capazdecriarcoisasperfeitas–ouseja,umdeus!Os egípcios o chamaram Amon (figura 7), que chegou a ser a maior divindade egípcia no períodoptolomaico. De fato, Alexandre, o Grande, foi ao templo de Amon para obter seu reconhecimento,tornando-se,assim,reidoEgito.

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Figura7.OdeusAmon,dosegípcios,associadoaocarneiro,eraconsideradoumadasmaioresdivindades,capazdedeixarsinaisdesuapresençapelamarcadoschifres.

Osromanosincorporaramdiversasdivindadesegípcias,comoÍsiseAmon.ElespassaramaassociarAmon a Júpiter e aMarte, o deus guerreiro e vingador, que foi adotado como símbolo por uma daslegiõesromanas.Assim,as“marcasdeAmon”tinhamumprofundosignificadomísticoesimbóliconostemposromanos.Seissoforassociadoàampladistribuiçãodasmarcasfósseisdosamonites,nãoserádifícil perceber como os romanos utilizaram esse ícone petrificado a fim de amedrontar e impor seudomínioaospovosconquistados.

Nosso ponto de partida é, portanto, uma época de grandes construções monumentais, exércitosorganizadoseguerreirosarmados,comdisciplinamilitar.Aomesmotempo,osdeuseseraminvocadospara justificar quase tudo, desde as relações matemáticas até a concentração do poder e da riqueza.Vivia-seummundoexplicadopormitos.Amatemáticasedesenvolviaeerautilizadaporsacerdoteseartesãosconstrutoresemsuaselaborações.AfilosofiaaindaensaiavaseusprimeirospassoseSócratesfazia muitos discípulos em Atenas, os quais haveriam de influenciar o mundo ocidental por muitosséculos.

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Renascimento:aretomadadarazão

Durante muitos séculos a tradição ocidental foi dominada por certa maneira de interpretar osensinamentos antigos, emespecial da filosofia grega e de seus intérpretes romanosdaAntiguidade.Oestudodiretodanaturezaeranegligenciado,sendoatémesmoalvodealgumpreconceito.Masaexpansãocomercial dos reinos da Europa, em meados do século XV, exigia mapas melhores, o que dependiadiretamentedoentendimentodaastronomia.

A tradição astronômica europeia estava baseada em trabalhos da Antiguidade, mas dependia detraduções manuscritas de livros muito antigos, sobre cuja acuidade havia sérias dúvidas, seja natranscrição,sejanatradução.Assim,foirealizadaagrandetarefadetraduzirdiretamentedosoriginaisantigosoconjuntodetrezelivrosdeAlmagesto,deCláudioPtolomeu(séculoII),umgrandecatálogodeestrelas e de cálculos matemáticos. Seus livros traziam uma grande síntese de todas as observaçõesdisponíveis,incluindoasdosmundosgregoeárabe.Essanovatradução,publicadaem1496,estavaemsintonia com um movimento contrário à simples reprodução das tradições e alinhada com oredescobrimentodosoriginaisantigoseodireitodereinterpretá-los.Omesmoocorreucomosclássicosdamedicinaedabotânica.

Oaprendizadodogregoedoárabepassouaser incentivadoeespecialistasmédicoscomeçaramaestudardiretamenteosoriginaisantigos.Nessaépoca,autoridadesdemedicina,comoNiccolòLeoniceno(1428–1524), passaram a criticar autores tidos como irretocáveis, autores de livros em latim, comoPlínio,oVelho(23d.C.-79)3,queincorporavamosclássicosgregos.Umadesuasobrasdedicava-seaexporoserrosdePlínio,reeditadaapóssuamorte.4Assim,advogava-seanecessidadederetornaraosoriginais,conhecendonãoapenasoslivrosemlatimdisponíveisàépoca,mastambémosgregoseárabesnosquaisestavambaseados.5FoiassimqueoslivrosdePlínio,oVelho,tidoscomotextosbásicosparaaformaçãodosmédicospormaisdemilanos,passaramaserquestionados.PoucomaistardeseriaavezdeasliçõesdeanatomiahumanadeGalenoseremrevistasprofundamente.Seasdescriçõesanatômicas,explicações de doenças e indicações de plantas úteis para remediá-las, tomadas dos textos gregos,estavam erradas, então a prática médica deveria ser revista, ao mesmo tempo em que os autores debotânicadeveriamtambémserrevistos.

Naastronomia,arevisãodostextospermitiurealizarnovasobservações.Entreosquenaquelaépocafaziamseusestudosnapenínsula italianaestavaNicolauCopérnico (1473-1543), estudantedeDireitoCanônico naUniversidade deBolonha (entre 1496 e 1500) e deMedicina naUniversidade de Pádua(1501-1503).CopérnicoteveacessoànovatraduçãodoAlmagesto,entãorecentementedisponível,feitaa partir de fontes originais, com notas críticas introduzidas pelo tradutor, o celebrado matemático eastrônomo Johannes Regiomontanus (1436-1476). Copérnico desenvolveu sua obra a partir de 1514,quandoestavadevoltaasuasfunçõeseclesiásticasnaPolônia,emuitoprovavelmentefoiinfluenciadopor fontesárabes,emespecialpelocompêndiodoastrônomosírio Ibnal-Shatir (1304–1375),6 que setornaramuitoconhecidonoRenascimento.EstenãodiscordavadosistemageocêntricodePtolomeu,masvalidara asobservaçõesdiretas comomeiopara corrigiros livros clássicos.Assim, eleofereciaumaalternativa à mecânica ptolomaica, a partir de uma geometria mais simples e precisa para prever aposição dos astros. Como veremos adiante, Copérnico sabia das implicações de suas teoriasheliocêntricasedoimpactoqueteriamjuntoàIgrejaCatólica,àqualeraprofundamenteligado.Talvezissoexpliqueofatodenãoterpublicadosuasideiasemvida,deixandoaoutros,comoGalileuGalilei,comoveremosadiante,atarefadeenfrentarasreaçõescontráriasnoséculoseguinte.7

Aomesmo tempoemqueessa revoluçãode ideiascontaminavaaEuropa,outra revoluçãoocorrianos meios materiais de vida. A invenção da imprensa fazia essas novas ideias circularem ampla erapidamente,maselaprópriaeraresultadodamecanização,daintroduçãodenovastécnicasprodutivas,

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que se estendiam da mineração à navegação e às artes militares. Os autores dessas novas proezasmecânicas se autodenominavam “engenheiros” e reivindicavamo reconhecimento de seu status, comoteóricosdasproduçõespráticas.8

Essarevoluçãochegouàsartescomumconjuntodeinovações.Amineraçãotinhareveladoumnovoconjuntodesaisemineraisquepermitiamumainfindávelcombinaçãodearranjosdecoresetonalidadesjamais vistos pelos pintores da Idade Média. A volta aos clássicos gregos e romanos revelava aperfeiçãodosdetalhesanatômicosdasfigurashumanas,envoltasnamatemáticamágicadasescolaspré-socráticas.IssovaiexplicarosdetalhesdascriaçõesdeLeonardodaVinci(1452-1519),umdosmaioresíconesdoAltoRenascimento,queincluíamamarcadosgregos–arazãoáurea(figura8).

Outros artistas da época, envoltos sempre em disputas por obras, em especial as encomendas doVaticano, como Michelangelo Buonarroti (1475-1574), não deixaram de utilizar as regras clássicas,seguindonãoapenasosdetalhesmatemáticos,mastambémosestudosanatômicos.NosdetalhesdotetodaCapelaSistina,pintadoentre1508e1512,MichelangeloutilizouasregrasmatemáticaspresentesnasobrasdeLeonardo,emespecialnacenadomomentodacriaçãodeAdão(figura9).

Figura8.NascriaçõesartísticasdeLeonardodaVinci,asmarcasdaretomadadamatemáticadosgregosestavamsemprepresentes,comoaproporçãoáurea.

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Figura9.DetalhedeafrescodeMichelangelo:AcriaçãodeAdão,c.1510,queintegraapinturadotetodaCapelaSistina.

Os estudos anatômicos de Leonardo da Vinci e as esculturas de Michelangelo revelam umconhecimentoanatômicoempírico,quedificilmentepoderiaserexplicadoapartirdoconhecimentodasobrasdeGaleno.Defato,reconhece-sequeosartistasdoRenascimentotenhamparticipadodediversasatividadesproibidasàépoca,comoestudosanatômicoscomcadáveres.

Michelangelo tinha apenas 13 anos quando participou das primeiras sessões de dissecção decadáveres.Segundoumadesuasprimeirasbiografias,escritaporAscanioCondivicomsuaautorizaçãoepublicada em 1553, amaioria dos corpos dissecados pelo artista era de criminosos executados,masalguns provinham de hospitais. Amanipulação de cadáveres pormuito tempo teria sido responsável,segundo essa biografia, pelos distúrbios gástricos que o acompanharam por toda a vida. Seuconhecimento de anatomia humana era extraordinário. Uma interpretação recente do teto da CapelaSistina revelouumaprofusãodecenasanatômicas,que teriamfuncionadocomoumverdadeirocódigosecreto, reconhecível apenas por aqueles que frequentavam as sessões clandestinas de dissecção decadáveres,proibidaspelaprópriaIgrejaCatólica,queencomendaraaobra.9

AtéhojetemosexemplosdautilidadedaaplicaçãodasdescobertasdamatemáticamágicadaGréciaantiga.Maçosdecigarroecartõesdecréditoexploramamesmageometriadoencantodarazãoáurea,o“fi” dos gregos, que ajuda a nos convencer da beleza de agredir nossos pulmões e nossas economias(figura10).

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Figura10.Ageometriadomaçodecigarro(bemcomoadocartãodecrédito)sevaledageometriagrega,queencantanossossentidos.

Podemos entender que o período chamado de Renascimento foi ao mesmo tempo marcado pelaefervescência intelectual em todos os sentidos e, paradoxalmente, pela retomada de antigas crenças,ligadasaosmitoseaosabercotidiano.Asexplicaçõesparaomundoaindaresidiamnasuposiçãodequecadadetalhedascoisasexistenteshaviasidocriadoconformeumpropósito,oufinalidade.Aoretomarosclássicos,retornar-se-iaàsexplicaçõesinventadaspelosantigosgregosparaaexistênciadascoisas.Porexemplo, as plantas com folhas em forma de coração passaram a ser estudadas por seu potencialfarmacêuticoparaosmalescardíacos;afinal,acriaçãodesuaformadeveriaencerrarumamensagemdeseucriador.Enãosepensequeessamaneiradeentenderomundofosserestritaaomundocatólico.NaInglaterra,desdeoreinadodeHenriqueVII,queiniciouoperíodoTudorem1485,atéofinaldoreinadodaCasadosStuart (1714),avisãopredominanteeraadeummundocriadoespecialmenteparaobemhumano.10OsfilósofosclássicoseaBíbliafundamentavamessavisãodanatureza.ParaAristóteles,queviaemtudoumpropósito,elanãoproduziranadaemvão.Asplantasteriamsidocriadascomoalimento

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paraoshomenseosanimais,queporsuaveztambémtinhamafinalidadedealimentaroserhumano.Osanimaisdomésticosexistiamparaamenizarotrabalhohumanoeosselvagenstinhamsidocriadosparaser caçados.Os filósofos romanos tinhamensinadoamesmacoisa: anaturezaexistiaunicamenteparaserviraosinteresseshumanos.

Assim, pode-se entender como essa época foi ricamente contraditória. As artes, a filosofia e areligiãoganhavamautoresquerompiamcomastradiçõesmilenares,aomesmotempoemqueareaçãoemsentidoopostosefaziasentir,procurandoasseguraramanutençãodosvaloresmaistradicionais.AofinaldoséculoXVI,amaioriadaspessoasinstruídasaindatinhatidocomoreferênciaemseusestudosafísicadeAristóteles,amedicinadePlínioeGalenoeaastronomiadePtolomeu.11Decertaforma,depoisdaassimchamadaescuridãodaIdadeMédia,renasciaabuscadarazãonasraízesclássicasdeGréciaeRoma.Masnessasregiões tambémtinhamflorescidoosmitoseosabercotidiano,eumafilosofiaquetinha sido adaptada às necessidades da hierarquia católica. A Igreja Católica, como reação aosmovimentosprotestantes,realizououtragrandereuniãodelíderesnacidadedeTrento(atualItália)pararedefinir aposturada Igrejadiantedediversosquestionamentos, entre eles avalidadeda traduçãodaBíbliarealizadaporSãoJerônimo(347-420d.C.).Eleverteradogregoantigo(NovoTestamento)edohebraico (AntigoTestamento) para o latim popular, dando origem à obra que passou a ser conhecidacomo“Vulgata”,utilizadapormuitosséculos.Defato,oConcíliodeTrento(1545-1563)ratificouotextobíblicoquestionadopelosreformadores,tomandoaVulgatacomotextosagrado,aomesmotempoemquereafirmavaastesesdeTomásdeAquino(1225-1274),quetinhaincorporadooaristotelismoàdoutrinacatólicanoséculoXIII.

A astronomia de Copérnico, conhecida após 1543, foi reprovada pelos poucos astrônomos emcondiçãodeentendê-ladopontodevistadesuasdemonstraçõesmatemáticas.Contudo,nadaindicaqueessa reprovação inicial tenha sido influenciadapela Igreja, umavezqueamaioriadas reações foideadmiração pelos dotes matemáticos de Copérnico, tido como grande ou até o maior de todos osastrônomos.Noentanto,houveumaquaseunânimecontrariedadepelautilizaçãodoquefoiconsideradauma“físicaabsurda”.12Porexemplo,a ideiadequeaTerrasemoviaera totalmentecontráriaànoçãointuitivaquetemosaohabitá-la.Issodemonstrouqueumanovaexplicaçãoparaouniversonãopoderiaseraceitasemumanovaexplicaçãoparaosmovimentos.

Aristótelesexplicaraosmovimentosutilizandooconhecimentocotidiano.QuemhaveriadenegarsuafísicaecomprovaraastronomiaheliocêntricaseriaGalileu,umdenossospróximospersonagens.Mas,antes, éprecisomergulharnopensamento inovadordeAristóteles,que irá afetaromodoocidentaldepensarpormuitosséculos.

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Capítulo1

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Desobedecendoaosmestresdafilosofia:opensamentoinovadordeAristóteles

Aristótelesfoiconsideradoporalgunscomoomaiordetodososfilósofosdahistória,e,paradoxalmente,por outros, comoomais sério obstáculo para que oOcidente superasse as trevas da IdadeMédia.Aexplicaçãoparaessaamplagamadevisõesérelativamentesimples,poiseleéautordeumaobramuitovastaquefoiadaptadapelaIgrejaCatólicanoséculoXIII,porTomásdeAquinoeseumestre,AlbertoMagno, considerados duas sumidades intelectuais em sua época, referências maiores na chamada“tradiçãoescolástica”13.

Assim, superar essa visão implicava afrontar uma hierarquia rígida e uma autoridade consolidadapelas estruturas do poder político da Europa. No entanto, para entender o que havia a superar, énecessáriocompreenderdequemaneiraoconhecimentoproduzidoporAristótelessignificouumavanço,principalmente em sua época, mas, também, como seu legado passou a impedir o florescimento e aaceitaçãodasideiasmodernas.

Ojovemestagirita

Aristótelesnasceuem384a.C.nacidadedeEstagira,naextremidadenortedomarEgeu, filhodeuminfluentemédicodo reidaMacedônia.Aos17anos foimandadoparaAtenas, eestudoucomomaiorfilósofodaépoca,Platão,quefundaraumaescoladiantedobosquedeAcademos,umheróidamitologiagrega,porissoconhecidacomoAcademia.Ojovemestudantesedestacouapontodeserprezadocomoseumelhoraluno,oquenãooimpediudedivergirdomestredemaneiramuitoprofunda.Noentanto,issomesmo era, de certa maneira, prova de seu aprendizado verdadeiro, pois uma das lições maissignificativasdeseumestrePlatãosereferiaarefletirsobreasconvicçõesmaisprofundas.Ele,aoassimproceder,acabarapordiscordardeliçõesbásicas.

Nabasedafilosofiaplatônicaresideaconcepçãodequeaconcretizaçãodascoisassópodesedarpor meio de um empobrecimento de sua existência abstrata. Assim, o círculo pode ser perfeito empensamento, mas um círculo construído em madeira, por exemplo, jamais será perfeito. Porconsequência,aobservaçãodascoisasdomundoafimdedesenvolvermosnossasideiassobreeleeravista,porPlatão,comoumasimplesperdadetempo.Umpensamento,paraserverdadeiro,deveriaserperfeito,oqueimplicavaabandonaromundodascoisasconcretaseimperfeitascomofontedemodelosparanossopensamento.O“pensarcorreto”eracondiçãodecriaçãodascoisasverdadeiras,enãosuatangênciacomomundoreal.

Aristótelespassouadiscordardeseumestreeatribuiuaomundoconcretoerealpapeldecisivoparadesenvolveropensamento.Logose tornariaumprofessorconhecidoe respeitado,oqueo levouaserindicado,em342a.C.,preceptordofilhodoentãonovoreidaMacedônia,quehaveriadeserAlexandre,oGrande.Estesemprereconheceuosensinamentosdeseuprofessor,queolevaramagrandesconquistasmilitares, resultando em retribuições generosas para que o mestre continuasse a desenvolver suaspesquisas e escrever livros. Acredita-se que Aristóteles tenha escrito de quatrocentos a mil livros,emborapoucos tenhamsobrevividoaténosso tempo.Issosignificaque,muitoprovavelmente,aescola

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que ele fundou, e que se chamava Liceu, tinha uma vasta equipe de colaboradores, que devem terconstituídoaprimeiraequipedepesquisadahistória.Fala-seemcentenasdehomens,queviajavamaosmaisremotospontosdomundoconhecidoàépoca,coletandoedesenhandoespécimes.Assim,nãoédese estranhar que sua contribuição mais duradoura tenha sido no campo da Biologia, abarcandoaproximadamenteaterçapartedosescritosquechegaramaténós.

As descrições zoológicas de Aristóteles eram coerentes com a forma de pensamento quedesenvolvera,tributáriododePlatãoemboraessencialmentedistinto.Porexemplo,opédagalinha,odopato e o do gavião são parecidos,mas profundamente diferentes. Para ele, era fácil entender a razãodisso,poisopédopatotinhaafinalidadedeimpulsionaroanimalnaágua;odagalinha,naterra;eodogaviãotinhaafinalidadedeagarraralimento.Diversosfilósofoshaviamdiscutidoarazãodepossuirmosmãos tão especiais. Para Anaxágoras (498-428 a.C.), por possuir mãos tão prodigiosas, teríamosdesenvolvido nossa inteligência e nos tornado os animais mais inteligentes domundo. A resposta deAristóteles era radicalmente oposta, pois dizia que a natureza nos dotara de mãos para queexercitássemosnossa inteligência.Afinalidadedascoisasexplicavasuaprópriaexistência,nosentidodequeosfinsexplicamosmeios,enãoaocontrário.

Outraconhecidapassagemdácontadesuaoposiçãoaoutrofilósofopré-socrático,Empédocles(c.490-430a.C.), que argumentavaque aspartesdos animais, como seuspés, oshabilitama sobreviver,sendoqueaquelesquenãoospossuíssemacabariampormorrer.Eleteriaexemplificadocomosdenteshumanos: por que temos dentes incisivos e dentes molares exatamente nos lugares da boca maisapropriados para sua função? A resposta de Empédocles, que vivera muito antes de Aristóteles, erasurpreendente, pois apontava justamente para uma explicação de feição “moderna”, conjugando acoincidênciadetê-losesuafunção.Elediziaque,acadageração,nascemanimaiscomdentesadequadosàssuasnecessidadeseoutrossemeles,masapenasosqueospossuemsobrevivem,numasurpreendenteaproximação que recorda um programa “adaptacionista”. Já a resposta de Aristóteles reafirmava seuprincípio de priorizar a finalidade, capaz de explicar osmeios. Ele dizia que, estivesse Empédoclescorreto,seriapossívelobservaralgomuitodiferentedoquedefatosevê,ouseja,osanimaisnascemcomosdentesdequenecessitam–porexemplo,todososcãesnascemcomgrandescaninoseasovelhasnascemsemeles–,enãoocontrário,comoexigiaateoriadeEmpédocles.14Afinalidade,enãooacaso,explicariaaperfeitaadequaçãodosdentesaoalimentodoanimal.

Oargumentocausalarivalizarcomessaexplicação,identificadacomasupremaciadanecessidade,éodoacaso.Oestagiritadizqueoargumentoésedutorepoderiaconfundirmuitaspessoas,maselesefixanaquestãoconstitutivadoser.Nãoexisteumcãoquenãosejaidentificável,emlinhasgeraispelomenos,porseusdentes.Pormaisqueumaondadefrioocorranoverão,issonãoésuficienteparanosconfundirsobreemqueestaçãodoanoestamos.Tampoucopassaremosadefiniroverãopelaocorrênciadeondasde frio,que,mesmoqueocorramnaquelaépocadoano,nãochegama serparte constitutivadela.Osfatosfortuitosnãotêmumafinalidadee,mesmoqueocorram,nãoseincorporamànaturezadascoisas. Assim, eles não se confundem com os fatos que cumprem uma finalidade e se incorporam ànaturezadascoisas,passandoaseridentificadoscomelas.Seosdentescumpremumafunção,têmumafinalidade,e,sendoassim,nãopodemsercreditadosaoacaso.Elesseincorporaramaoserecontinuarãoaconstituí-lonaturalmente,oquecontrariavaavisãodeEmpédocles.

Oentravedofinalismoaristotélico

Osanimaisestavamequipadoscomoquedemelhorhaviaparasuasobrevivênciae issolhesconferia

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estabilidade em um mundo em constante movimento.15 E, assim, Aristóteles conseguiu organizarclassificações, a partir dessas características estáveis, percebendo uma “ordem” nomundo, o que lhepermitia criar conhecimento de uma maneira rigorosa. Além de estudar as características externas,Aristóteles investigou o interior dos organismos, sendo provavelmente umdos primeiros estudiosos adissecar animais para estudá-los.Alémdisso, ele admitia a geração espontânea de animais pequenos,identificando o animal com o tipo de matéria emmeio à qual ele era gerado. Os animais que eramespontaneamentegeradosemmatériamole,comoalama,eram,elestambém,moles(comoosvermes).Osqueeramgeradosemmeioàareia,porexemplo, tinhamcarcaçasecarapaçasduras (oschamados“testáceos”).

Maspor que razão, então, sua influência é considerada tãodanosapor alguns?Bem, inicialmente,deve-se reconhecer a convicção aristotélica de que as partes estavam perfeitamente ajustadas àsnecessidades do animal, sendo, por isso, reveladoras da finalidade para a qual foram supostamentecriadas. Essa perspectiva, denominada “finalismo” ou “teleologia”, constitui por si uma grandedificuldadeparaodesenvolvimentodabiologiamoderna,comoveremosadiante.Abiologiaaristotélicatemmuitodedescritivoe,por isso, resistiuao tempo,16mas seu recursoao finalismoe suaaversãoaoutrosfatorescasuaiscolidemfrontalmentecomacompreensãomoderna.

Além disso, coerente com sua maneira de conceber o mundo, Aristóteles conseguia explicaçõesfactíveisparaaexistênciadepraticamentetudo,oqueacrescentavagrandedificuldadeparaaquelesquepretendiam criticá-lo. Por fim, seu sistema tinha uma demanda lógica que o tornava especialmentepalatável a hierarquias religiosas, pois não podia carecer de uma divindade. De fato, o Concílio deTrentodeclarouaversãodeTomásdeAquinodeAristótelescomoadoutrinaoficialdaIgrejaCatólica(“tomismo”).Adominânciacultural, intelectuale teológicadomestreestagiritaseestendeuaospaísesprotestantese,emboraadoutrinaaristotélicatenhasidoseriamentequestionadanachamada“revoluçãocientífica”,comoveremosnopróximocapítulo,elatevepresençamarcantenopensamentocientíficopelomenosatéoséculoXIX.Os jesuítas introduziram,em1586,aRatiostudiorum,quedefiniaos textos-padrãoparaoensinodafilosofiaaristotélicaemseuscolégios,apartirdesuasedevaticana,oCollegioRomano. Muitas escolas cristãs adotaram esse currículo, ainda que com adaptações. Os textosselecionados pelos jesuítas incluíam a descrição domundo físico constituído pelos quatro elementos(terra,água,arefogo)emencionavamoheliocentrismodeCopérnico,masdemaneiracrítica.Muitosesforçosforamempreendidos,apartirde1600,afimdeconciliarasnovasobservaçõesastronômicaseoutrasdescobertasaosistemaptolomaico-aristotélico,principalmenteapartirdoCollegioRomano.17Damesma forma, a Inquisição foi revigorada e passou a combater mais fortemente os oponentes dessaversãooficial.GiordanoBruno(1548-1600)acaboucondenadoporela,porsustentarvisõesopostasàfilosofia aristotélica tomista, emespecial suadefesada infinitudedouniverso18 e dapossibilidadedevidaemoutrosplanetas.

Asolidezdosistemaaristotélico

Ascoisasdomundoteriampropriedadesquepoderiamserreduzidasaquatroaspectos,oponíveisdoisadois.Ascoisaspoderiamserquentesoufrias,úmidasousecas,emumaamplagamadepossibilidadesentre esses extremos, ligadas a seus elementos constituintes. Estes, em nosso mundo, seriam tambémquatro:ofogo,aágua,oareaterra.Alenhafriapodiatornar-sequenteaoperderágua,porexemplo,caso fosse colocada no fogo.Vê-se que, quando começa a arder, ela perde água, que dela começa aporejar.Essamudançaliberaoardeseuinterior,naformadefumaça,eaterraqueaconstitui,queformaas cinzas.Assim, uma coisa fria e seca se tornaria quente e úmida. Essa era a visão tradicional dos

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quatroelementosnaGréciaantiga,jápresenteemEmpédocles,àqualAristóteleshaviaacrescentadoumquintoelemento,oéter(ouquintessência)presentedemaneiraimperceptívelnocéu,masaparenteaoseagregar,formandoasestrelase,emagregadosmaiores,osplanetas,aLuaeoSol.

Oscincoelementostinhampropriedadesintrínsecas,queexplicavamsuadinâmica.Ofogoteriaumatendêncianaturalparasemoverparacima;aágua,poroutrolado,descia,maspermaneciaporcimadaterra. O ar tendia a subir, ficando acima da água, mas nunca alcançaria a altura do fogo. Assim, oselementosterrestrestinhammovimentoretilíneo,sejaemsentidoascendenteoudescendente.Umobjetoconstituídoporgrandequantidadedeumelementopoderiasermaispesadooumaisleve.Umaplumaéconstituídademuitoar;issoexplicariaofatodesemoverlentamenteemdireçãoàterra.Jáumapedrapequena possuiria grande quantidade do elemento terra, o que explicaria seumovimento rápido parabaixo.Pedraspequenassemovimentariammaislentamenteparabaixo;pedrasmaispesadas,commaiselementoterraemsuaconstituição,semovimentariammaisrapidamente.

Essesmovimentosnaturaisdosobjetosdomundopoderiamseralteradosporalgumaviolência,os“movimentos forçados”,mas não se aplicariamaos objetos do céu.Estes seriam imperturbáveis, poisconstituídos de um elemento distinto (o éter), o qual invariavelmente semovia demaneira uniforme,descrevendo uma trajetória perfeitamente circular. O círculo era visto como uma manifestação deperfeição,remetendoàideiadedivindade.Asestrelassemoviamdescrevendoumcírculoperfeito.Osplanetasconstituíamumcasoàparteenãoporoutrarazãoeramtidos,elespróprios,comodivindades,capazesdesuperarasregrasfixasdosastrosordinários.19

OmovimentonaturaldosobjetosacimadaLuaera,pois,umadascaracterísticasdouniversoeeravisível:nãohánoiteemquenãosevejaomovimentodasestrelasedosplanetas,nãohádiaemquenãose veja o Sol sempre com a mesma velocidade e a mesma trajetória perfeitamente circular. Essemovimento eterno e invariável do quinto elemento influenciaria o movimento dos outros quatroelementos, embora ele aparecesse sem amesma regularidade. Esse quinto elemento, ao contrário dosdemais, era imaterial, e seu movimento, uniforme e eterno, seria revelador de outra característicaexclusiva:emvezdesermovido,eleseriamotor.Ele,naverdade,seriaomotorcapazdeexplicar,diretaou indiretamente, todos os demais movimentos que ocorriam abaixo da Lua. Algumas coisas seriammovidasindiretamenteporele,ouseja,pormotoresquereceberammovimentodele.Emoutraspalavras,omotorcelesteprovocavamovimentonascoisasounosmotoresqueasmovimentavamdiretamente,osquais seriam, eles também,móveis.Assim, não só as coisas domundo,mas também seusmotores, semoviam.Oúnicomotorimóvelseriaomotorprimeiro,queAristótelesreconheciaseracausaprimeirade tudo, por isso mesmo identificada com a figura de Deus. A teologia seria a forma suprema daFilosofia, ao debruçar-se sobre o motor de todas as coisas, aquilo que pode explicar todos osmovimentos,todasasmudançasdeproporçõesdoselementos.

ÉinteressantequeateologiadeAristótelesnãoéresultadodeumaexperiênciamística;aocontrário,éumadecorrêncialógicadoexercíciopurodarazão.SenãofossenecessárioevocarDeusparaexplicaromundo,comoconcluiuséculosmaistardeLaplace(1749-1827),entãoaFísicaseriaaFilosofiamaiselevada,diriaosábioestagirita.

Ametafísicaaristotélica

Os livros de Aristóteles sobre Física foram agrupados, muito depois de sua morte, sob o nome“Metafísica”, indicando uma certa forma de interpretá-los. Nossos sentidos poderiam nos ajudar avalidar argumentos, por exemplo, ao observarmos um animal e descrevermos suas qualidades. No

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entanto,algumascoisasnãopoderiamservistas,eissonãonosimpediriade,indoalémdaFísica,tecerconsiderações sobre elas, o que constituiria, para os seguidores de Aristóteles, sua metafísica, ou aciênciadasprimeirascausaseprincípios.

NaFísicadeAristóteles,comovimos,osmovimentosganharamexplicaçõesejustificativasprecisase lógicas. Aliás, até a existência de Deus segue o mesmo caminho. Fenômenos que não podem serobservadossãoamparadosigualmenteporexplicaçõesmeticulosas.Aluz,porexemplo,encerravaoutrodos grandes problemas que haveriam de ser enfrentados para alcançar visões modernas da Física.Empédocles argumentava que a luz se deslocava de um lado para outro, ou seja, que ela tinha umavelocidade. Aristóteles criticou duramente essa afirmação dizendo que ninguém era capaz de ver odeslocamento da luz, e que ela seria, portanto, “instantânea”, ou, em outros termos, de velocidadeinfinita.Mais tarde,Galileu analisará essa questão inclusive nosmesmos contextos.A observação dorelâmpagoedotrovãopermiteperceberapropagaçãodaluzemgrandesdistâncias,aomesmotempoqueresta entender sua relação com o som. NemmesmoGalileu conseguiu perceber algum atraso entre aemissãodaluzdorelâmpagoeseureflexoemmontanhasdistantes,embora,comoveremosadiante,tenhaplanejadoumexperimentoengenhoso.20

Omotorprimeironãoerareveladopelossentidos,damesmaformaqueoquintoelemento,maserapossíveltornarsuaexistênciaviável,porcoerênciacomoutrosfenômenosecoisas.Mas,porvezes,eranecessáriorealizarajustes.Porexemplo,apartirdedeterminadaaltitude,oarnãoconseguiriaavançar,estando acima dele, como vimos, o fogo.Acima do fogo teria início o chamado “mundo supralunar”,preenchido apenas por éter, o quinto elemento cuja existência Aristóteles havia teorizado. Nomundosublunarocorreriamfenômenoscomoaformaçãodasnuvens,havendoumalimitaçãonecessáriaentreadistribuiçãodosquatroelementostradicionaiseoquintoelemento.Noentanto,haviadificuldades,porexemplo,naformadosmeteoritosferrosos,ouseja,compostosdoelementoterra,corposquecaíamdocéuprovocandoincêndios,portantocompostostambémdoelementofogo.Elesrevelavamsercompostossimultaneamentededoiselementospresentesnomundosublunar(terraefogo).Ora,comocorpoceleste,ometeorodeveriasercompostodoelementoéter,enãodefogoeterra.

Asaída,paraAristóteles, foi levantarahipótesedequeosmeteoritoseramfenômenossublunares,quese formariamdemaneirasemelhanteàsnuvens.Estasse formariamcomaelevaçãodoar–comovimos,emsuatendêncianaturaldemovimentoretilíneoascendente–emcombinaçãocomaágua,aqualtenderiaamover-seemdireçãoàterra,oqueexplicavaachuva.Aristótelesconjecturououtraformadeelevaçãodoar,naausênciadeágua.Aoatingironívelmaiselevado,dofogo,haveriaumaqueima,e,casoelementossólidostivessemseelevadojuntocomoar,dacombustãoresultariamosmeteoritoseasestrelascadentes.Casoaqueimaenvolvesseapenasarseco,seoriginariamoscometas.Essesfenômenosocorreriam,portanto,todosnoespaçosublunar.

Os fenômenosqueenvolviamoelemento terra, comovimos,naturalmenteacabariampor semoverpara baixo, para ocupar seu lugar natural. Os meteoritos e as estrelas cadentes tinham também umaexplicação engenhosa para sua ocorrência, sempre no espaço sublunar. O espaço supralunar estavareservado para o mundo divino, com a perfeição do movimento circular, compondo eternamente umquadroperfeitoeinvariável.Oscometaseas“estrelasnovas”,osmeteoritoseasestrelascadentesnãopoderiam fazer parte desse quadro eterno e perfeito, tido como “incorruptível”, mas a revoluçãocientíficalogoperceberiaafragilidadedessaelaboraçãoteórica,comoveremosnopróximocapítulo.

Todas essas explicações para os fenômenos domundo, incluindo características observáveis e asimaginadas, compunham uma metafísica muito coerente, que estava, por sua vez, assentada em umcomplexo e elaborado estudo das causas. Além de estudar a causalidade dos fenômenos, Aristótelesdesenvolveuaindaummétodoparacriarconhecimentoseguro,noqualerapossívelcriarumaverdadedesconhecida a partir de outras duas verdades conhecidas, o silogismo aristotélico. O estudo da

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causalidadeeossilogismosdedutivoseindutivosfogem(infelizmente)aoescopodestelivro.Umadascausas aristotélicas é a causa final, a base do finalismo.Dequalquer forma, cabe apenas dizer queométodo silogístico será questionadoporFrancisBacon, e as causas finais porRenéDescartes (1598-1650),outrograndepensadordarevoluçãocientífica.

Oenfraquecimentodosistemaaristotélico

Maisimportantes,paraasfinalidadesdestelivro,sãoalgunsdosprincipaisproblemasquehaveriamdeser enfrentados por aqueles que viveram o renascimento da razão e se depararam com novaspossibilidades de pensar omundo, aomesmo tempo em que encontravam firmes obstáculos teóricos.Particularmente, a física de Aristóteles, com suas explicações sobre os movimentos, mostrava o queocorriaemummundoimóvel,ondeosquatroelementos–terra,água,arefogo–têmtendênciasnaturaisdesedeslocarparacimaouparabaixo.

AideiadeumaTerraimóveleraabsolutamentenecessáriaparaAristóteles,poisosmovimentosdosastros eram circulares, portanto perfeitos, e eternos. Por serem assim, constituíam evidências daexistência de uma divindade, uma necessidade básica em qualquer teologia.Quando a alta hierarquiacatólica declara, no Concílio de Trento, o tomismo aristotélico como doutrina oficial católica, aevidênciaconcretanomundosupralunaremconstantemovimentocircular,perfeitoe imutável,passaaserumdosdogmasdocatolicismo,justificandoarelaçãoentrerazãoefé.21

Ospensadoresdarevoluçãocientífica,aocontrariaressequadroteóricoedizerqueaTerragirava,transformaramas estrelas e oSol em astros fixos, semmovimento, em lugar de descreveremcírculosperfeitos. De certa forma, questionavam um dogma que se tornara central no catolicismo, pois, aoquestionarasevidênciasdopoderdivino,pareciamquestionaraexistênciadopróprioDeus.Alémdisso,a Terra passava a ter movimento circular, invertendo a localização da perfeição e da divindade,convertendoseuspecadoreshabitantesemseresperfeitosedivinos,oquea Inquisiçãoentendiacomopuraheresia.Masarotaçãodenossoplanetanãoaniquilariaapenasomovimentocirculardosobjetosdomundo supralunar, tornando-os corpos etéreos imóveis e inertes, como também simplesmente acabariacomomovimento retilíneodosquatroelementosdomundosublunar.Suacausadesapareceria,eisqueeraomovimentodomundosupralunarque respondiapelomovimentodosquatroelementosdomundosublunar.Além disso, suas trajetórias retas passariam a ser curvilíneas, pois uma gota de chuva, porexemplo,aocairdeixariaumanuvememmovimentocircularenãoatingiriaosoloimediatamenteabaixodela, mas o que teria estado pouco antes a leste. Ao jogar uma pedra para o alto, arremessando-aexatamentenaperpendicular,veríamossuaquedaaoestedopontodelançamento,devidoaomovimentodaTerra.

NoséculoXIV,quandoasartesmilitarescomeçaramaincluircanhõesdecurtoalcancenosnaviosdeguerra,porexemplo,astrajetóriasretilíneasaindaexplicavamostiroscerteiros.Mas,comaartilhariade longo alcance, com obuses impulsionando petardos a maior distância, o estudo do movimentocomeçouasercríticoparaocálculobalístico.SegundoafísicadeAristóteles,osprojéteissubiriamemlinharetaatéqueterminasseainfluênciadaperturbaçãoviolentadadetonaçãodapólvora.Terminadoomovimentoforçado,teriainícioomovimentonaturaldequedaemlinhareta,perpendicularmenteaosolo,descrevendo,assim,umatrajetóriatriangular.Otriânguloretânguloseriaarepresentaçãoaristotélicadopercursodoprojétil,comoânguloretosinalizandoopontodeimpactojuntoaosolo.

Não é difícil imaginar que os generais dos primeiros batalhões de artilharia não estivessem nadacontentes comageometria aristotélicanos camposdebatalha.A rotaçãodoplaneta acrescentavauma

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complicaçãonadadesprezívelaessequadro.SegundoAristóteles,inimigosalesteseriammaisdifíceisdeatingir,aopassoqueoscanhõesdeveriamalcançaralvosmaisdistantesseestesestivessemaoeste.Pelas leis aristotélicas de movimento, enquanto a bala de canhão estivesse viajando pelo ar, o alvoestaria se afastando (se localizadoa leste)ou se aproximando (se aoeste), oquenãoera confirmadopelosartilheiros.Defato,umdosprimeirosproblemaspráticosqueGalileuenfrentou,comoveremos,foia trajetória balística, um problema militar que a poderosa República de Veneza tinha interesse emresolverantesdosotomanos.

Justamente na época que denominamos Renascimento, o Ocidente estava mudado. A concepçãoaristotélico-ptolomaicadeuniversoconseguira suprirnecessidadespráticas,principalmente ligadasaocalendário, mas não dava conta de uma série de novas demandas, entre elas as da cinemática e dacartografia.Odesenvolvimentodanavegaçãoprecisavaurgentementedemapasmaisprecisos,oqueeraimpossível sem uma nova astronomia, imprescindível para determinar com precisão as coordenadasgeográficas. As artes militares e a engenharia, no novo contexto das manufaturas, traziam tambémdemandasqueatradiçãoescolásticaeraincapazdesatisfazer.GalileuGalileiiriaenfrentarAristóteles,desdesuamatemáticaatésuaastronomia,etodaahierarquiacatólicaseveriaameaçadacomasnovasideias.

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Capítulo2

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Umsistemadeideiasdestemido:GalileuGalileieasnovasciências

Nanoitedodia26desetembrode1687,astropasvenezianasapontavamsuaartilhariaparaaacrópoledeAtenas,ondetinhamserefugiadooscombatentesotomanosemretirada.EleshaviamtransformadooPartenonemumimensopaiol.Talescolha,porumlado,garantiriaoprolongamentodaresistênciaturca,mas, por outro, o transformaria em alvo militar prioritário. Sob as ordens do comandante venezianoFrancescoMorosini(1618-1694),umpetardocerteirofezexplodirodepósitodemunições,levandoaosares todo o teto daquele templo, quase intacto por inacreditáveis 2 mil anos. Naquele momento eradestruída não apenas a cimeira de um dosmaiores patrimônios culturais e artísticos da humanidade,comotambémoquerestaradosalicercesdafísicaaristotélica.Ocálculodotironãoseguiraemnadaosensinamentosdoantigomestreestagirita,quetantoconheciaaqueletemplo,massimosdofísicotoscanoquedesafiaraodogmatismodastrajetóriasretilíneasdomundosublunarerevelara,experimentalmente,atrajetória parabólica dos petardos dos obuses que garantiam o domínio das rotas comerciais daSereníssimaRepúblicadeVeneza.

Pisa havia se tornado uma Repubblica Marinara (“República do Mar”), uma cidade de muitodestaquenocenárioitalianoentreoséculoXIeoiníciodoséculoXV,pois,alémdeumafrotamercantile de guerra, cunhava moeda própria e mantinha um corpo consular encarregado dos negóciostransmarinos.Seusmonumentosarquitetônicosemmármorebrancoatéhojeatestamariquezaacumuladapelocomércio,quedominavaboapartedoMediterrâneoocidental.Em1406,acabousendoconquistadapelosflorentinos,demodoque,quandoGalileuGalileialinasceu,em15defevereirode1564,elaeragovernada pelo Grão-Ducado de Florença.22 Galileu era filho de um membro da nobreza, ainda quedecadente,lutandoparamanterfinanceiramenteopadrãodevidadafamília.VincenzoGalileidividiaotempoentreamúsica,suapaixão,eocomérciodelã,seuganha-pão.

Em1574,afamíliaGalileisemudouparaFlorençaemandouogarotode10anosparaestudosemumseminário.Em1581,comrazoáveisposses,opaiconseguiumatricularo filhoGalileu,com17anosereconhecidamentemuito inteligente, naUniversidade de Pisa.O jovemGalileu passou quatro anos nafaculdade,masnãoconcluiunenhumcurso, e começoua sededicar aoestudodaMatemática, lendoageometria de Euclides com a ajuda do matemático Ostilio Ricci (1540-1603), discípulo de NiccolòFontana (1500-1557), conhecido como Tartaglia. Mas Galileu retornou definitivamente para a casapaternaemFlorençaecomeçoua trabalharcomoprofessorparticulardeMatemáticaem1585,emsuacidadeepertodali,emSiena,encargoqueelemanteveatéconseguirumacolocaçãoquelhegarantisseuma boa renda, em 1610.23 Iniciou o estudo de Arquimedes, se dedicou a problemas de física e, aomesmotempo,realizoucontatosemRoma.Em1587,Galileuconseguiuserrecebidopeloastrônomoematemáticomais importante doVaticano, o padre jesuíta alemão Christophorus Clavius (1537-1612),destacadaautoridadedoCollegioRomano.Eleeraconhecidocomo“oEuclidesdoséculoXVI”etinhaestado à frente da reforma do calendário, colocada em prática em 1582, iniciando o calendáriogregoriano24.Essecontatoestabeleceuumarelaçãoquedurariamuitosanos,naformadetrocadecartasnasquaiseramdiscutidosproblemasteóricos.

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Ojovemprofessoruniversitário

Galileubuscouempregoemdiversasuniversidades,semsucesso,atéseraceitonaUniversidadedePisa,em 1589, com o salário de 160 escudos por ano. Algumas de suas notas de aulas sobreviveram edemonstramqueeleincorporavaavisãodeArquimedessobremovimentoemquedalivre,queafirmavaserproporcionalàdensidadedosobjetos,enãoaopesocomodefendiaAristóteles.Em1591,seupaifaleceueele,filhomaisvelho,passouaseroarrimodafamília,assumindoaresponsabilidadedehonraropagamentodepesadodotedecasamentodesuairmãVirgínia,acertadoporseupaipoucoantesdesuamorte.Elemesmoacabouacertandoumdotemuitomaiorparasuaoutrairmã,Lívia,dezanosdepois,oqueocolocouemsériosproblemasfinanceiros.

ATorredePisaésugestivadotipodeexperimentoqueGalileudiziaterrealizadoali.Defato,seuprimeirobiógrafoealuno,VincenzoViviani,escreveuqueasexperiênciasdequedadoscorpos foramefetivamenterealizadas,inclusivediantedacongregaçãodauniversidade.Oqueépossívelafirmar,comrelativasegurança,éofatodeque,emPisa,Galileuadmitiaqueobjetosdepesodiferentepoderiamterquedasimultâneasetivessemamesmadensidade,seguindoasconclusõesdeArquimedes,queeletantoadmirava.

UmdosquestionamentosdeGalileusereferiaàdescriçãodosmovimentosdescendentesdosobjetosconstituídos do elemento terra. Quanto maior a quantidade desse elemento, maior a tendência de sedeslocarparabaixo.Issoexplicava,paraAristóteles,arazãodeumafolha,aocair,terumavelocidadetão menor do que a de uma pedra. E, se esta fosse pequena, por sua vez, se deslocaria commenorvelocidadedoqueumapedradetamanhomaior.

EmumapassagemreveladoradasconclusõesamadurecidasdeGalileusobrequedadoscorpos,esteescreveu,anosdepoisdedeixarPisa:

Aristótelesdisse:umaboladecemlibras,quecaiadeumaalturadecembraças,chegaaosoloantesqueoutradeuma libra tenhapodidopercorrerumaúnicabraça.Eudigo, semdúvida,quechegamaomesmotempo.Seaexperiênciaforrealizada,seráobservadoqueabolamaiorchegacomapenasdoisdedosdevantagemsobreamenor, istoé,quequandoamaiorchegaaosoloamenor está a dois dedos de distância. Por tanto, pode-se pretender tomar por iguais esses doisdedose asnoventaenovebraçasdeAristóteles e,dessa forma, falandoapenasdeumpequenoerro,dissimularcomosilênciooerroenormequeelecometeu?25

Galileujáconseguirademonstrarcomoesseconjuntodeafirmaçõesnãoeracoerente,econduziaàsuapróprianegação.Ora,dizia ele, seumapedrapequena for amarradaaumapedragrande, apedragrande terá seumovimento retardadopelapedrapequena.Mas, juntas, elas terãomuitomaiselementoterra,ou seja, elasdeveriam,aocontrário, sedeslocarmais rapidamente.A inconsistência teóricaeraevidente, pois a previsão aristotélica indicava que as pedras amarradas deveriam ter seumovimentoretardado e, ao mesmo tempo, acelerado. Esse “experimento teórico”, como passou a ser chamado,certamenteenervavaosprofessoresuniversitáriosqueporanosafiovinhamensinandoaquelasprevisõescomoabsolutamenteverdadeiraseincontestáveis.Emoutraspalavras,elejádiscordavaabertamentedeAristótelesnoiníciodesuacarreiradeprofessoruniversitário.IssoindicaarazãodeGalileuseindisporcomseuscolegasprofessoresemPisa,aindamaisse for levadoemconsideraçãoqueeleerabastantejovemesequerpossuíaumtítuloacadêmico.

Essa maneira de questionar Aristóteles era desconcertante, e causava surpresa que tantos sábiostivessem se debruçado sobre os originais do sábio estagirita pormais demil anos sem perceber-lheinconsistênciastãoóbvias.FoinessaépocaqueGalileuterialançadodoisobjetosdepesosdiferentesda

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TorredePisanapresençade todaacongregaçãodauniversidade.Oeventonão temregistrohistóricoconfiável,mas certamente esse experimento passou a ser feito em diferentes lugares, e tem um efeitoaindahojedeslumbrante.

Umaversãosimpleseelegantedele,que talvez façaAristóteles remoer-seno túmuloatéhoje,noslevaautilizarumasimplesfolhadecaderno,quetemumaquedalivremuitolenta,eocadernodoqualprovém,quetemvelocidadedequedareconhecidamentemaior.Aocolocarmosafolhasobreocaderno,semnenhumtipodeadesão,oconjuntocaicomavelocidadedocaderno,semqueafolhasedesprendaemantenha sua queda retardada. Outra versão, muito mais impressionante, mostra um astronauta nasuperfíciedaLuafazendooexperimentoquecertamentelevariaAristótelesàloucura,aodeixarcairummarteloeumapluma.Osdoisobjetoscaemrigorosamentenomesmotempo!26

No fim de 1591, Galileu conseguiu uma posição como professor de Matemática na prestigiosauniversidadedacidadedePádua,que,àquelaépoca,estavasobcontroledeumaverdadeira“repúblicadomar”,aRepúblicadeVeneza,queestendiaseudomínioportodaaregiãovêneta,atéVeronaeolagodeGarda, com colônias em várias partes doAdriático e nomar Egeu.Nessa universidade, de longatradiçãodeliberdade,Galileutrabalhoupordezoitoanos,consideradosporelecomoosmelhoresdesuavida.OsalárioeramuitomaiordoqueodePisa,eosalunosparticulares,sempremembrosdanobreza,ajudavam-noacompletaroorçamentodafamília.

EmVeneza,umacidadequevivesobo jugodoníveldomar,Galileudesenvolveuumaexplicaçãopara as marés. Embora sua teoria seja engenhosa, explicava apenas parcialmente o fenômeno edemonstrouestarerrada.Dequalquerforma,umateoriaparaasmarésemVenezaestavafadada,qualquerquefosse,asermaisdoquebemrecebida.Noentanto,omesmonãosepoderiadizerdesuabaseteórica,pois utilizava as ideias deCopérnico, apresentando asmarés como consequência da combinação dosmovimentosdaTerra,derotaçãoemtornodesi,edetranslação,emtornodoSol.Assim,amaioriadoshistoriadoresconcordaque,pelomenosapartirde1595,GalileujáseconverteraaoheliocentrismodeCopérnico.

Veneza,àépocacentrodopoderpolíticoemilitardaregião,estálocalizadaaapenas38quilômetrosdedistânciadePádua,ondemoravaetrabalhavaGalileu.Elepassouafrequentaracidade,emespecialoArsenal,asdocasmilitaresondeseconstruíame reparavamosnaviosdeguerra.Alémdeestabelecercontatoscomanobrezalocal,seucoraçãoencontraodeumavenezianatidacomomuitobonita,MarinadiAndreaGamba(1570-1612),dequempoucosesabe,alémdeserdefamíliadepoucasposses.Elesparecem ter se conhecido em 1599, e se encontravam aos finais de semana em Veneza. Quando elaengravidou,Galileutrouxe-aparamoraremPádua,masnãosobomesmoteto.Viviampróximos,masemcasasseparadas27.Dorelacionamentonasceramtrêsfilhos,queganhariamnomesdeparentespróximosdeGalileu, que assim estabelecia um vínculo simbólico das crianças com a família Galilei. Virgínianasceuem1600,provavelmenteaprimeiracriançaaterumaauladeastronomiacomumaluneta.UmanodepoisnasceriaLíviae,finalmente,cincoanosdepois,Vincenzo.Arelaçãoduroupoucomaisdedozeanose,apósseufinal,Marinasecasarialogodepois,mantendoboasrelaçõescomoex-companheiro,oqualficoujuntoaosfilhosenuncasecasou.Aliás,constaqueopróprioGalileuconseguiuumempregoparaonovomaridodeMarina,GiovanniBartoluzzi,que,emagradecimento,mandavadiscosdevidrodealtaqualidadedasprestigiosasvidrariasdailhadeMurano,emVeneza,paraanovacasadeGalileu,emFlorença,paraaconfecçãodelentesparasuaslunetas.Marinamorreriapoucodepois,em1612,aos42anos.28

Comoprofessor,Galileucomplementavaseusalárioalugandoquartosparaseusalunosestrangeiros;nasférias,retornavaàToscana,indoaFlorençaeaSiena,ondemantinhaalunosparticulares,emgeralfilhosdanobreza,comoprofessordeMatemática.Ganhavaumbomdinheirotambémfazendohoróscoposemapasastraisparaas famíliasabastadas.Afinal, eleensinavaAstronomianocursodeMedicinaem

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Pádua,eninguémduvidavadainfluênciadosastrosnasaúdedaspessoas29.Ele tambémtinhavocaçãoempreendedora, tendo projetado uma bomba hidráulica, para grandes aplicações (era movida porcavalos),eumaréguadecálculo,queeravendidaaopreçode5florins.Tratava-sedeumaparelhodecálculoportátil,quefoipatenteadoem1597eoferecidoaosmilitaresvenezianos,maslogosetornouumaparatopopularentreosestudantes.

EmboraasprimeirasréguasdecálculotivessemsidoconstruídaspelopróprioGalileu,acrescentedemandaofezcontratarumartesãoparaproduzi-lasemtempointegral.Eletinhadedicadooinstrumentoao jovemsoberanodeFlorença,na esperançadeganhar a simpatiadonobregovernante e, talvez,umconvitede trabalhopara retornarpara suaamadaToscana,oquede fatoocorreriaapenasno segundosemestrede1610.

EmPádua,GalileusededicoucomafincoaoestudodaMecânica,suasconsequênciasbalísticasedeengenharia civil. Escreveu sobre arquitetura e fortificações militares em 1594, diante de evidentesproblemaspráticoscomodesenvolvimentodaartilharia.Seumabaladecanhãoapontadoparaoaltoalcançasse a base de uma fortificação, deveria tambématingir suamais alta torre, segundo as leis demovimentodeAristóteles.Comoofilósofoestagiritadisseraqueeraimpossívelacombinaçãodedoismovimentos,o“natural”,dequedavertical,sópoderiaser iniciadoapósofimdomovimentoforçado,provocadopeladetonaçãodapólvoradocanhão,compondoumatrajetóriatriangular.Masisso,defato,nãoocorria.Otiroqueatingiaaamuradadeumafortificaçãoeraincapazdealcançarseupontomaisalto.

UmmatemáticoemPádua

Ao final de1604,Galileu sedebruçou sobreumproblemaastronômicomuito importante, aoprocurarexplicar uma supernova30 na constelação de Serpentário (Ophiucus), próxima da constelação deEscorpião.Tratava-sedeumaestrelanova,degrandebrilho,comparávelaodeJúpiter,repentinamentebrilhandonocéuemoutubrode1604,semregistroanterior.ComoelaestavapróximadaconjunçãodeJúpitereSaturno,queficaramnaquelaconstelaçãodesdejunhode1603atéoiníciodejunhode1605,causou grande sensação pelo significado astrológico que lhe era conferido. A localização precisa daaltura dessa nova estrela era crucial, pois, segundoAristóteles, asmudanças só poderiam ocorrer noespaçosublunar,ouseja,próximodasnuvens.Aquela luzdeveriaprovirdeumfenômenoocorrendoapequenadistânciadasuperfíciedaTerra,naalturaocupadapeloelementofogo,ouseja,muitoabaixodasupostaesferaondeaLuaestariafixada.

Galileusabiaqueerasimplesdeterminarseaquelaluzprovinhadeumobjetorelativamentepróximo,outãodistantequantoqualqueroutraestrela.Imaginequevocêestejaolhandoocéupelajaneladesuacasae,repentinamente,avisteumaluzdistante,semelhanteaobrilhodeVênusouJúpiter,ebempróxima,emseuângulodevisão,daschamadasTrêsMarias.Pode-sepensarterdescobertoumasupernova,maspode ser também uma aeronave a alguns poucos quilômetros de distância vindo em sua direção,mantendo-sevisualmentepróximadealgumasestrelasfixas.Paradecidirdeprontosetratadeumaviãooude uma supernova, basta a ajuda de um telefonema a umapessoa quemore emoutro lugar. Se elaestiver,digamos,a100kmdedistânciaelhedisserquenãovênenhumbrilhopróximodasTrêsMarias,entãovocêdeveestarvendoumaviãoouumhelicópterodistantepoucosquilômetros,seaproximandoemsuadireçãocomumaforte luzacesa.Se,aocontrário,oamigoenxergarasTrêsMariaseoobjetobrilhante,elecertamenteestámuitodistante,talveztantoquantoalgumadaquelastrêsconhecidasestrelas.

Estemétodoéochamado“cálculodaparalaxeestelar”e já tinhasidoutilizadoporumconhecidoastrônomo dinamarquês que trabalhava em Praga, Tycho Brahe (1546-1601), a maior figura da

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astronomia entre Copérnico e Galileu. Ele procurou medir com grande precisão a paralaxe de umasupernova anterior, surgida em 157231, na constelação de Cassiopeia, mas sem conseguir percebernenhuma diferença na sua distância das estrelas fixas.Asmedidas se justificavam porque, no espaçosupralunararistotélico-ptolomaico,cadaumdosplanetasestariapresoaumaesferaprópria,easestrelasfixasestariamtodasjuntasnamesmaesfera,acimadadeSaturno.TychoBraheapresentaraumavisãodouniversoquecontrastava tantocomadePtolomeuquantocomadeAristóteles,eusouseusresultadospararefutaraideiadequeasalteraçõesdocéusópoderiamocorrernaatmosfera.Comsuasmedições,ele tinha provas de que a supernova não estava sequer ligada a nenhuma das esferas planetárias, ecertamente estaria muito distante da Terra. No entanto, ele não a colocara na esfera aristotélico-ptolomaicadasestrelasfixas,argumentandoque,comoelaseesvaíra,nãopoderiaserformadadamesmamatériadasestrelasfixas.ElanãoseriacompostadaquintessênciadeAristóteles,oéter.

Johannes Kepler (1571-1630), matemático do imperador Rodolfo II, da casa dos Habsburgos,trabalharacomBrahee,comsuamortesúbita,herdaraseusinstrumentoseanotações.Quandorecebeuainformaçãodequehaviaumanovasensaçãonoscéus32,umaestrela“avermelhadaemaisbrilhantedoque Júpiter”, tratou de repetir as observações com os mesmos métodos, localizando-a com precisão(figura11).Adescoberta fora feita porumalto funcionáriodo império, em10deoutubrode1604, ecomunicadaaKepler.Nodia17deoutubro, elepróprio conseguiuavistá-la, iniciandoobservações emedições precisas de suas distâncias aparentes de Júpiter, Saturno,Marte e das estrelas fixas.AssimcomoBrahe,nãoconseguiuverificarnenhumaalteraçãonadistância aparente relativaa essasúltimas,apenasemrelaçãoaosplanetas.

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Figura11.Emoutubrode1604,umaestrelanova(emdestaque,próximoàletraN,logoabaixodocentrodafigura)apareceunaconstelaçãodoSerpentário,entreasconstelaçõesdeSagitário(esq.)eEscorpião(dir.),edepoisdesapareceu.

Comosensaçãodomomento,asupernovapermaneceuvisívelpordezoitomeses,emboracombrilhodecrescente, e foi observada atentamente por diversos astrônomos em Praga, Verona, Pádua e Roma,percebendo-semudançadedistânciaemrelaçãoaos trêsplanetaspróximos.33Assim ficavaclaroque,contrariando o que dissera Aristóteles, ocorriam perturbações na esfera das estrelas fixas, commovimentocircularperfeitoeeterno.O teólogofranciscanoeastrônomoIlarioAltobelli (1560-1637),amigodeGalileu,erareitoremVerona.Emcartadenovembrodaqueleanoescreveutervisto,apartirde9deoutubro,umnovo“monstronocéu”quehaveriade“deixarloucos”os“semifilósofos”aristotélicos,pois ele carecia de “movimento e paralaxe” em relação às estrelas fixas, mas, como permitia“experiênciamanifesta”,teriafeitoopróprioAristótelesmudardeideia.34

Até esse momento, Galileu não era um astrônomo de destaque. NoCollegio Romano estavam omatemáticoeastrônomoClavius,o“novoEuclides”,Marius35eseuestudantemilanês,BaldassareCapra

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(1580-1626), que realizaram observações desde a aparição da supernova, em outubro. Galileu sórealizoumediçõesmaistarde,etrêsaulassobreotemalogoseseguiram,masseuconteúdoexatonãoéconhecido36.Pelasreaçõesaelaspode-seinferirdoquefalara,umavezqueapareceadefesadasesferasptolomaico-aristotélicas em um texto escrito, direta ou indiretamente, por um docente de Filosofia namesmaUniversidade dePádua, e noutro assinadopelo jovemCapra, emque atacou as conclusões deGalileu.Oprofessortoscanofezdesseepisódioumprenúnciodoqueseriaorestantedesuavidacomocientista, sempre utilizando a ironia destilada para abater impiedosamente as ideias de opositorespoderosos,recebendodevoltaumareaçãodeforçaequivalente.

Palavrascomonavalhas:criandoinimigos

OsaristotélicosnãoformavamumblocomonolíticoemuitosdelestiveramproblemascomaInquisição,poisdefendiamumavisãodistintadaversãooficialcatólica,porexemplo,voltandoàideiaoriginaldeumuniversoeternoedeumDeusnãoprovidencial.UmdessesfilósofoseracolegaeamigodeGalileue,mesmosediscordassedele,eraaliadoemdiversosmomentos,porexemplo,naoposiçãoàcriaçãodeuma“contrauniversidade”queosjesuítasqueriaminstituiremPádua,noiníciode1600.Essefilósofo,CesareCremonini(1550-1631),conhecidocomoAristotelesredivivus, jácomproblemascomaIgrejaem160437,teriainspirado(ouajudado)umalunoaescreverepublicarumlivretocontraasconclusõesdeGalileu38sobreanovaestrela,defendendoosistemaptolomaico-aristotélico.Noentanto,onomedeGalileu não era mencionado em nenhum momento do texto, mas ficava claro que as conclusõesantiaristotélicassópoderiamseratribuídasaele.

OjovemBaldassareCapra,porsuavez,publicariaoutro livreto39,criticandofrontalmenteGalileu,citando-onominalmenteváriasvezes.Estenão teria sido sequer capazdeobservar a estrelano céu eteria“belamenteconfundido”adatadesuaapariçãonocéunassuasaulas(queerampúblicas).Capradizqueessetipodedescuidoétípicodematemáticosquenadasabemdeobservaçãoastronômicaequeelepróprio,comoastrônomo40,teriarealizadoobservações“todososdias”41,sendocapazdeconfirmarcomprecisão não apenas a localização,mas também a data da aparição, na companhia de seu “caríssimoprofessor, Sr. Simon Mario Alemano”. Os dois, em companhia de uma terceira pessoa, teriampresenciadoaestrelanodia10deoutubro.42EledefendiaasideiasdeTychoBraheexpressasem1572,dequeobrilhodetalestrelaeraresultadodoquerestaradeumeclipsesolar.Otextotécnicoéescritoemlatim,comdesenhosgeométricosdeacordocomosistemadeBrahe.Mas,nosseus“juízos”,diziasera aparição um bom prenúncio para a Igreja Católica, pois os dois fenômenos tinham ocorrido emintervalodetempocorrespondenteàidadedeCristo!43

Aposição deGalileu poderia ser sintetizada emdois pontos de vista.O primeiro era o de que adiscussão sobre a localização da nova estrela deveria ser resolvida com base em observações emensurações astronômicas e não embasada em argumentos metafísicos. O segundo ponto dizia serridículo pretender atrelar a discussão da natureza da estrela à sua composição.Aqui havia uma clararecusadesesubmeteràopiniãodeBrahesobreaquintessêncianaformaçãodasestrelasfixasenãonadas estrelas novas.44 Isso teria sido discutido em suas conferências, mas não divulgado de maneiraimpressa,oquedefatoocorreraapenascomascontestaçõesaessasideias.

Assim, era de se esperar por uma resposta de Galileu, a qual, contudo, apareceu na forma maisinusitada possível. Era necessário endereçar a investidamais forte, emais sofisticada, que teria sidoardilosamentepreparada,àpessoadeLorenzini,umaristotélico ligadoaCremonini.Nãovaliaapenaperder tempo com o jovem Capra, de 24 anos, claramente assumindo posições que não eram suas.

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Galileudecidiunãoresponderaesteúltimo,centrandoseupoderdefogonosaristotélicos.Assim,emmarço de 1605, publicaria sua resposta sob o títuloDialogo de Cecco di Ronchitti da Bruzene. Oinusitado era a língua na qual fora escrito, em dialeto padovano, na forma de um diálogo entre doishomens simples do campo, Matteo e Natale, que discutem as ideias de um “filósofo” e de um“matemático” sobreagrandenovidadedocéu.45Oopúsculoeradedicadoa “Antuogno Sguerengo”46,ninguémmenosqueobispodePádua,AntonioQuerenghi(1546-1633).Tratava-se,naverdade,deumadenúnciaveladaaindicarque,portrásdojovemquetomaraadefesadoaristotelismo,arespostaestavasendoarticuladapelaIgrejaCatólica47.

O diálogo se inicia com os dois camponeses, cansados depois de uma jornada de trabalho, sequeixandodefaltadechuva,queNataleassociaànovaestrela.Matteoseperguntacomoépossívelqueumaestrelatãodistantepossainfluenciarachuva,eNataledizqueleuemum“livreco”48queaestrelaestáqueimandomuitopróximaaochão.Nalinguagemsimplóriadedoiscamponeses,Matteoperguntaseoautoréagrimensor,eouvecomorespostaqueeleéum“filósofo,doutordePádua”.Eleentãoreagecomumprovérbiopopularpaduano,queaindahojecausarisadas,poisperguntacomoépossívelqueumsapateiroseponhaafalardefivelasdemetal49.Matteoconcluiqueumarespostasópoderiaprovirdeummatemático,acostumadoafazermedidasnomundoreal,poiselenãose limitariaaomundodos livroscomoosfilósofos.

O diálogo revela o ponto fulcral do pensamento deGalileu: não se pode avançar o conhecimentovoltando-seapenasparaoquefoiescritonopassado,defendendoideiascomoprincípiodaautoridade.Emvezdisso, épreciso ir alémdos livros, observaromundo real, experimentar, colocar asprópriasideiasemtestesquepossaminclusiverefutá-las,obrigando-nosamudarnossaformadepensar.Essateseseráretomadacommuitaforçaem1632,emseulivroDialogosopraiduemassimisistemidelmondo,quelhevaleráacondenaçãopeloSantoOfício.

O livreto temum tomde ironiaedemonstracomoatémesmoumcamponêspode,comraciocíniossimples, desafiar a erudição e, sobretudo, a autoridade dos doutores. Mas ele avança a linha daprudênciacomomaisdestiladosarcasmo,ridicularizandoasideiasaristotélicas.Nataledizqueanovaestrelanãopoderiaestarnocéu,poislásóexisteo“quintoelemento”,tambémchamado“quintessência”.EpassaadiscutircomMatteoseessa“essência”éalgumtipode…polenta!Aofinal,concluemqueébomqueotal“livreco”sejatodovendidoatéaPáscoa(queseriaemabril),casocontrárioelestememquesuaspáginaspassemaserusadasparafinsmaisúteis…Olivretocomodiálogosarcásticopassouporuma reimpressãonomesmoano, indicandograndeprocura,oqueprovavelmente inspirou reaçõesmais iradas do que seria de se esperar. O tempo só fez piorar a polêmica deGalileu comMarius eCapra50.ComCremonini,asrelaçõessemantiveramcordiais,masGalileutrocoucartasríspidascomeleentre1616e1620,pedindoadevoluçãodeumempréstimo51.

AlunetadeGalileu52

Em1609,Galileutevenotíciadeumaparelhocompostoporduaslentescapazdeaumentaropoderdevisão.Nãosesabeseobteveumexemplarfísico,ouapenasumadescriçãodele,maselesjáestavamàvenda em Paris desde o ano anterior. De concreto, sabe-se que o cientista toscano compreendeu oprincípio óptico envolvido e construiu um aparelhomuitomelhorado, batizando-o de perspicillum, edemonstrouseufuncionamentoaosenadoveneziano,visandosuaaplicaçãomilitar,emagostode1609.Aimpressão causada foi tão grande que o senado tornou vitalício seu contrato com a universidade eaumentouseusaláriopara1.000florins,maisdecincovezesseusalárioinicial53.

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Galileulogoconstruiuoutroequipamentoaindamelhor,comodobrodepoderdeaumento,epassouboapartededezembrode1609aobservaraLua,ondepôdeencontrarmontesecrateras,sombraseoreflexodaluzqueatingianossoplaneta,umconjuntodenovidadesinacreditáveis.Logosevoltouparaasestrelaseplanetas,percebendooaspectodiscoidaldestesepuntiformedaquelas,umadistinçãoinéditaefundamental. Desvendou o mistério da via Láctea, que se pensava composta de alguma substânciaespecial,percebendoograndenúmerodeestrelasdocéu.Em7dejaneiro,elerealizouadescobertaqueomarcariaparatodaahistória.ObservandoJúpiter,pôdeverumconjuntodesatélites,elogopercebeuquegiravamemtornodoplaneta.

Tratava-se de um conjunto de observações capaz de desmontar todo o sistema ptolomaico-aristotélico!Galileulogopercebeuoterrívelpoderdestruidordesuapequenaluneta,muitomaiordoquequalquercanhãoconhecido.Suasdescobertas forampublicadaspoucodepois,emmarçode161054,naformadeumpequenolivro,de29páginas,escritoemlatimeimpressoemVeneza,denominadoSidereusNuncius55. Em seu longo subtítulo, prometia grandes, incomuns e notáveis espetáculos, abrindo-os àconsideraçãodetodososhomenseespecialmentedosfilósofoseastrônomos,equeessesfenômenosserevelavamnaLua,naViaLáctea,nasestrelasfixas,emnebulosaseemquatroplanetasjamaisvistos,derevolução rápida em torno de Júpiter. Por fim, informava que decidira denominar este conjunto de“estrelasmedicianas”56,emhomenagemàfamíliadesoberanosdaToscana,osMédicideFlorença.

Com sua luneta, Galileu simplesmente destruiu a ideia de que o mundo lunar fosse perfeito. EleincluiudesenhosdaLuanapublicação,quecertamenteprovocaramgrandesensação,comasnuncaantesvistascrateraslunaresiluminadaspeloSoldemaneiraaexporseurelevo.Emprosaeverso,tinha-seacertezadequeaLuanãomantinhanenhumasemelhançacomaTerra,comoescreveraDante,naDivinacomédia, sendo perfeitamente esférica e homogênea,mesmo se a visão nos levasse a imaginar outrosmundos.Afirmouquea superfície lunarera talqual adaTerra, comvalesemontanhas,quechegouamedir inclusive57,mas se deixara “ferir pelas lanças da especulação”, como diria o poeta florentino,afirmandoqueaspartesclarasdaLuasãoasterrasemersaslunares,easpartesescuras,osoceanos.Essaafirmaçãoseriacorrigidamaistardeeindicaquesualunetanãolheforneciaimagensmuitoboas.Aliás,essaseráacríticadeseusopositoreseinimigos,aocentraremseusargumentosnofatodequeoaparelhointroduziriadeformaçõesnasimagensqueenganariamavisão.

GalileupôdeperceberaluzrefletidadaTerranaparteescuradaLuacrescente,ochamado“brilhocinéreo”,queelechamou“iluminaçãosecundária”.Ele,assim,comprovavaqueaTerrarefletiaaluzdoSol e seria vista de outrosmundos tal qual nós os vemosdaqui.Empouco tempoGalileu encontravaevidênciasdequeosplanetas são astrosque refletema luzdoSol, sendomundos tais comoonosso,girandoaoredordoSol,comopropostoporCopérnico.Asestrelas,astrospuntiformes,deveriamestaraenormesdistâncias,comparativamenteaosplanetas.Seuargumentoseriadesenvolvidocom todovigoranosmais tarde e, previsivelmente, resultaria em um processo de heresia pela Santa Inquisição, quepoderia levá-lo aomesmo destino de Giordano Bruno, condenado à morte apenas dez anos antes deGalileupublicarseulivrosobreoqueobservaracomsualuneta.

A profusão de estrelas no céu deslumbrou Galileu, que apenas nas cercanias das TrêsMarias, ocinturãodocaçadorepróximoàsuaespada(Órion),divisoumuitasdelas;noaglomeradodaColmeia,naconstelação deCâncer (por onde transitava Júpiter), ele identificou nadamenos do que 38 estrelas, eincluiu uma ilustração no livro. A Via Láctea, cuja explicação seguia um debate milenar, estavadefinitivamente resolvida: “para qualquer parte dela que se dirija a luneta, uma vasta multidão deestrelas imediatamente se apresenta à vista”. Portanto, nada de leite, éter ou quintessência: apenasestrelas. Tratava-se simplesmente de uma concentração assombrosa de estrelas, uma soluçãoabsolutamente simples, mas demolidora para os ptolomaicos, dado que no Almagesto tinham sidocatalogados“apenas”1.022astros.

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Maisadiante,emseulivrodemarçode1610,escreveu,àpágina17:

AsobservaçõesbrevesatéaquisereferemàLua,àsestrelasfixaseàViaLáctea.Restaamatériaqueemminhaopiniãomereceserconsideradaamaisimportantedetodas,adescobertadequatroPLANETAS [ênfase no original] nunca vistos desde o início do mundo até o nosso tempo,juntamentecomofatodeeuterdescobertoeestudadosuasdisposições,easobservaçõesfeitasdeseus movimentos e alterações durante os dois últimos meses. Convido todos os astrônomos aexaminá-los e determinar seus períodos, coisa que até o presente de modo algum foi possívelcompletar,devidoaocurtotempo.Advirtoqueseránecessáriodispordamesmíssimaluneta58, talcomodescrevemosnoiníciodestediscurso.59

Asonzepáginasrestantesforamdedicadasadescreversuasobservações,começandopelodia7dejaneiro,noqualelevislumbroutrês“planetas”60.Nosdiasseguintes,quandoocéunãoestavanublado,observoudiversasconfiguraçõesdeJúpitereseussatélites,atéavistarperfeitamenteosquatro,noiníciodanoitede13dejaneiro,trêsocidentaiseumoriental,concluindoqueelesestavamemrevoluçõestãorápidasque,mesmoduranteumamesmanoite,aconfiguraçãoobservadamudava.

Nosmesesseguintes,osmaisconceituadosastrônomospassaramaobservarocéudeacordocomasrecomendações de Galileu, e ele se manteve realizando suas próprias observações e registros. Asobservações de Galileu podem ser checadas hoje em dia, buscando-se as ilustrações originais e umsoftware de astronomiaquenosmostreo céu emPáduanaquele iníciode janeirode1610.Será fácilencontrarJúpiternaconstelaçãodoTouro,próximadeÓrionedeCâncer,econferirasobservaçõesdeGalileu:elassãoexatas!Épossívelinclusivedeterminarohoráriodaobservação!

Nosmesesseguintes,osmaisconceituadosastrônomospassaramaobservarocéudeacordocomasrecomendações de Galileu, e ele se manteve realizando suas próprias observações e registros. AsobservaçõesdeGalileupodemserconferidashoje,buscando-seasilustraçõesoriginaiseumsoftwaredeastronomiaquenosmostreocéuqueobservava.Em1613,jáconfortavelmenteinstaladoemFlorença,realizou uma série de observações emmarço e abril e as registrou (figura 12). Será fácil encontrarJúpiternaconstelaçãodeVirgem,próximodaconstelaçãodoCorvo,evisualmentejuntoaNetuno,aindadesconhecido à época, e conferir as observações de Galileu: elas são exatas! É possível inclusivedeterminarohoráriodasobservações!Keplerfoiumdosprimeirosaconfirmarasdescobertasdocolegatoscano,elogoapareceramoutros,inclusivereivindicandoprecedêncianadescoberta,comoMarius,oantigodesafetoemestredojovemCapra61.Dequalquer forma,Galileusabiaqueo instrumentoestavadisponívelemboapartedaEuropaenãotardariaqueoutrostivessemamesmainiciativa.Issoexplica,inclusive,apressadeGalileuempublicarsuasdescobertasdemaneiramuitorápida,poucomenosdoquedoismesesapósaprimeiraobservação.Noentanto,elepodiaanteveroimpactodessasdescobertas,poisestava imersoprofundamentenodebatesobreosistemaptolomaico-aristotélicoeconheciabemaobradeCopérnico.

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Figura12.ObservaçõesdeGalileucomsualuneta,realizadasemFlorença,em1613,epublicadasemIstoriaeDimostrazione.Podemserconferidascomauxíliodocomputadoreconfirmadas.

ApublicaçãodeGalileude1610,com550exemplares,esgotou-serapidamente;foireproduzidanoexterior e recebeu a previsível acolhida dos soberanos de Florença. Embora tivesse conseguido umsubstancial aumento salarial emais segurança, ele sabiaqueninguémpoderiaderrubar todoo sistemaptolomaico-aristotélico sem sofrer graves consequências. Veneza, local onde fora impresso seu livro,tinhaumacerta independênciadeRoma,egrandepoderiomilitar,masnãoeraumlugarabsolutamenteseguro.Afinal,GiordanoBruno(1548-1600)tinhasidopresopelaInquisiçãoemVeneza,nomesmoanoem que Galileu ganhara seu primeiro contrato outorgado pelo senado veneziano na Universidade dePádua.

Alémdas inquietaçõescomVeneza,queeraumarepública,GalileutinhamuitaproximidadecomocentrodopoderdaToscana,quedeixaradeserumarepúblicaehámaisdeumséculoeragovernadapelafamíliadosMédici.Quatropapaspertenceramaela,demodoquesuasrelaçõescomaIgrejaCatólicaeramexcelentes.Emsuaprimeiracátedrauniversitária,em1589,GalileuforadesignadoporFerdinando(1549-1609),quetinhasetornadocardealaos15anosdeidade,masrenunciaraàcarreiraeclesiásticaem1587,paraassumirotronodaToscana,quandoseuirmãomaisvelhofaleceu.EleentãosecasoucomCristinadeLorraine(1565-1637),dalinhagemrealfrancesa,etambémdafamíliatoscanaMédici,tendocomelaoitofilhos.Seuprimogênito,CosimoII(1590-1621),foraumdosalunosparticularesdeGalileue assumiuopoder em1609, comamorte dopai, tornando-segrão-duquedaToscana.Assim, quandoGalileudedicouosquatronovosplanetasaogrão-duqueeàfamíliaMédici,eleesperavaqueojovemsoberano e sua mãe ficassem envaidecidos. Como era de se esperar, logo lhe foi oferecida umairrecusável posição, como matemático da corte, com uma cátedra vitalícia na Universidade de Pisa,dispensadodaobrigaçãodedocência.Assim,emsetembrode1610,GalileuchegouaFlorençacomsuafilhaLívia,ondereencontrouVirgínia,amaisvelha,quejámoravacomaavódesdeooutonoanterior.

AconfirmaçãodeCopérnicoeasnovasciências

OtrabalhodeGalileufoiextenso,mas,comofizemosnocapítuloanterior,deveremostratardemaneiramuito abreviada alguns poucos exemplos de seus estudos, notadamente os que colidiram frontalmente

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comosistemaaristotélico-ptolomaico,equeconduziramàconfirmaçãodasteoriasdeCopérnicosobreoheliocentrismo.

AmecânicacelestedePtolomeupreviaqueVênusestivesseligadoaumaesferacelesteanterioràdoSol, ou seja, este estaria, a cada dia, transitando por sobre esse planeta.Galileu, ao perceber que osplanetaseramvistoscomodiscosiluminados,logoconcluiuqueeleseramesferasquenãoemitiamluz;apenasarefletiam,talqualaLua.SuasobservaçõesnosmesesseguintesrevelaramqueoplanetaVênusapresentava fases, como a Lua, e, além disso, seu tamanho aparente variava, exatamente como seriaprevistopelomodelocopernicano.Ora,seaTerrafosseocentroemtornodoqualgiravamosplanetas,elesdeveriamsemantersempreàmesmadistância,emvezdemantermaioroumenorproximidade62.AsfasesdeVênuseavariaçãodeseutamanhoaparenteconstituíramoutragrandedescobertadeGalileuem1610, comunicada do início de 1611, e que acrescentava mais evidências em favor do modeloheliocêntrico(figura13).Em1610,elepublicaraafrase“Haecimmaturaameiamfrustralegunturo.y.”[Essascoisasimaturas,euascolhoemvão],masdepoisesclareceuque,aomudaraordemdasletras,a verdadeira sentença aparece: “Cynthiae figuras aemulaturmater amorum” [Amãe do amor (Vênus)imitaasfasesdeCíntia(Lua)].63

Figura13.AsfasesdeVênusdescobertasporGalileu.Créditodaimagem:PauloCesarPereira.

O “funeral” dos “filósofos dos livros”, como definiu Galileu em uma carta, ocorreria em 1613,quandoexplicoucomoasmanchassolarespoderiamajudaraexplicararotaçãodoSolemtornodeseupróprioeixo,queelecalculouemcercadeummês.ObservaroSollhecustariacaro,poisficariacegomais tarde, mas, de qualquer forma, já em seus primeiros anos em Florença, ele havia conseguidorevolucionarnossavisãodemundo.

Comovimosnocapítuloanterior,seriaimpossívelaceitarumanovaexplicaçãoparaaorganizaçãodouniversosemumanovateoriadomovimento.ComoerapossívelqueaTerrasedeslocasseemtornodoSolequeaLuanãoseperdesse?Semdúvida,arespostadariacontaderespondercomoerapossívelque quatro luas girassem em torno de Júpiter, reconhecidamente um planeta emmovimento, e não seperdessem, ao contrário, mantivessem um ritmo sincronizado, como pôde depois ser estabelecido. AquestãodomovimentodaTerraera,defato,difícildeexplicare,arigor,respostasconvincentesaessasperguntas tiveram de esperar pelo trabalho de Isaac Newton (1643-1727). No entanto, Galileudesenvolveu uma base teórica, matemática inclusive, sem a qual o avanço subsequente teria sidoimpossível.

AsprevisõesdeGalileudequeestariamaisprotegidodaespadadaInquisiçãoemFlorençanãoseconfirmaram.CosimoIImorreuprecocemente,eseufilhotinhaapenas10anosquandoassumiuotrono,demaneiraqueablindagemqueeleesperavaconseguirseesvaíaemmeioà terrívelepidemiaqueseabateu sobre as cidades, que amontoavam corpos pelas ruas emmeio a vaticínios de que esse era ocastigo divino pelas heresias mundanas. Condenado pela Inquisição, Galileu teve de se submeter adiversashumilhaçõesparaevitarserqueimadovivocomotemia.

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Mesmo evitando o pior castigo, teve uma velhice duríssima, na qual conseguiu reunir forças parapublicarseulivromaisprofundo,dopontodevistateórico,equecontémasliçõesqueaindahojejovensdomundotodoestudamnaeducaçãobásica.Suasfilhashaviamsetornadofreiraseviviamemclausura;amaisvelha,Virgínia,escolheucomonomeeclesiásticoMariaCeleste,uma indicaçãodeseuorgulhopelotrabalhodopai.Noentanto,comacondenaçãodeste,umaprofundadepressãoaabateu,levando-aàmorteprecocemente,em1634,comapenas34anos,oquetalveztenhasidoparaopaiumcastigopiordoqueafogueira.

Em1638,cegoeseriamentedoente,proibidoderecebertratamentomédico,Galileuconseguiureunirforçasparasintetizarsuas tesessobreomovimento,desafiandoaproibiçãodaIgreja,apresentando-asem novas bases, que saíram publicadas naquele que é considerado seumaior emais profundo livro:Discorsi e dimostrazionimatematiche intorno a due nuove scienze64. Ele abriu o caminho para umafísicainercial,lançandoasbasesdamodernaDinâmica,ondeseestudamasrelaçõesentreasforçaseosmovimentosporelasproduzidos.

SeaTerragira,porqueachuvacaiperpendicularmenteaosolo?ArespostadeGalileuerasimples,poiselediziaque,aodeixarcairumapedradoaltodomastrodeumnavioquesemovecomvelocidadeconstante, mantendo trajetória retilínea, vemos que ela cai perpendicularmente ao convés, ao pé domastro.Assim,dizia ele, aover apedra cairdeveríamosconcluirqueonavioestáparado, senossosolhostestemunhamseumovimento?Easmoscasnacabinedonavio,nãovoamnormalmente?Assimsejustificaoestudodomovimentoretilíneouniforme.Afísica inercialgalileanarespondiaàmaioriadasobjeçõescontraaideiadequeaTerragiraemtornodeseueixo.

Não se deve pensar, contudo, que as objeções da Igreja Católica a Galileu e Copérnico fossemridículas,oumesmoelementares.Algumasdelaseramdesafiosimportantes,equenãoforamrespondidosnaépocadeGalileu.Porexemplo,seaTerrasedeslocaemtornodoSol,asconstelaçõesnãodeveriamse manter rigorosamente iguais ao longo do ano. A medida da paralaxe anual falhava em encontrarqualquerdiferençanadistânciaentreasestrelasdasconstelações,quetinhamsidojustamentedefinidascomo“estrelasfixas”,emfrancacontradiçãocomosistemacopernicano.Galileurespondeudizendoqueadistânciaentrenossoplanetaeasestrelasdeveriasertãograndeapontodeosaparelhosdisponíveisnão seremprecisos o suficiente para detectar a paralaxe.Embora correta65, a resposta não satisfez osinquisidores.

Aristóteles afirmara, como vimos, que a queda dos corpos envolve tempos inversamenteproporcionais à suamassa. Galileu demonstrou que essa maneira de pensar não tinha fundamento narealidade,mas isso talveznão tenha sidoumgolpe tão importantena física aristotélica, que já estavabastantedesacreditada.Galileu fezmaisdoque issoaomostrarqueoscorposarremessados,comoasbolas de canhão, não percorrem obviamente a trajetória triangular prevista por Aristóteles, nemtampouco uma trajetória curva qualquer, como conjecturara Tartaglia, mas sim uma exata parábola.Estudandoaquedalivre,demonstrouexperimentalmentequeoscorpospercorremdistânciascrescentesem intervalos iguais de tempo, na mesma razão que os números ímpares a partir da unidade.Compreendeucomoocorriasuaaceleração,damesmaformacomoexplicouoatrito,oqual“perturba-ostodosnumainfinitavariedadedemaneiras”,talqualomovimentoemumplanohorizontal,“quedeveriaseruniformeeconstantequandoseeliminamtodososobstáculos,poréméalteradopelaresistênciadoareassimcessa”.66

AciênciadeGalileueseusproblemas

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Galileu sempre se preocupou com as inúmeras aplicações de suas novas descobertas.Diversas delasdependiamdoestabelecimentoprecisodoshoráriosdosciclosdos satélitesde Júpitereele trabalhounesseproblemapordiversosanos.Em1604,oreiFilipeIII,daEspanha,ofereceuumprêmiomilionárioa quemdesenvolvesse ummétodoprático e preciso para determinar a longitude.Em1606, o governoholandês fez oferta semelhante, sendo seguido logo depois por França e Inglaterra. Assim, quandoGalileupercebeuqueJúpiterpodeoferecerumrelógiovistodetodaaTerra,logosedeucontadequepoderia resolver a questão da longitude e reivindicar os prêmios milionários. No entanto, haviaproblemas…

Após determinar com precisão os períodos de revolução dos satélites ao redor de Júpiter, cujapremência Galileu já assinalara desde sua descoberta de 1610, Jean Picard (1620-1682) e GiovanniDomenico Cassini (1625-1712) compilaram tabelas nas quais era possível saber antecipadamente oshorários dos eclipses e ocultações. Para seu desapontamento, as tabelas não coincidiam com asobservações, pormais que verificassem os cálculos. O erro entre as previsões e as observações, noentanto, apresentava uma estranha regularidade, uma vez que chegava a cerca de 16minutos, quandopassava a ser progressivamente menor.67 Novas tabelas passavam a ser compiladas, baseadas emhipótesesquedemandavamcorreções.68

AsobservaçõesdeGalileudossatélitesdeJúpiterseprolongarampor27anos.Masjáem1612elehaviadeterminadocomumaprecisão incríveloperíododespendidoparacadaumdosquatrosatélitescompletarumavoltaemtornodoplaneta.UmacomparaçãodeseusresultadoscomosqueapareceramnaEncyclopaedia Britannica, na edição de 1910, trezentos anos depois da primeira observação com aluneta,podedarumaboaideiadaprecisãodeseutrabalhoobservacional(quadro1).

Quadro1.ComparaçãodasconclusõesdeGalileusobreosperíodosderevoluçãodossatélitesdeJúpiter,em1612,easestampadastrezentosanosdepois,em1910.69

Noentanto,mesmocomessaprecisão,astabelascomasprevisõesdomovimentodossatélitesnãoseconfirmavam plenamente. Galileu já antevira que a chave da questão estava justamente em outro dosdogmasaristotélicos,avelocidade instantâneada luz.Maisumavez,Empédoclespoderiaestarcomarazão, mas o método galileano demandava uma demonstração experimental. Ele chegou, inclusive, aproporumexperimento,noqualdoisobservadores,aalgunsquilômetrosdedistância,fariamsinaiscomumaluzeobservariamsuaresposta.Oresultadodoexperimentoalongadistância(Galileupropôsquefosse,inclusive,realizadocomumaluneta),sediferentedorealizadoacurtadistância,derrubariaaideiadequealuztinhavelocidadeinfinita.ParaentenderoraciocíniodeGalileu,imaginequedoisjogadoresdetênisestãonumaquadraevocêpossaouviroruídodogolpedaraquetenabola.Seelesficaremnofundodaquadraoruídoseráouvidoemintervalosmaioresdoqueseambosestiverempróximosdarede.Noentanto,seabolasemovessecomvelocidadeinfinita,osruídosnãoseriamdistintos(seosjogadoresconseguissemgolpearabola!).Ofato,noentanto,équeadiferençaentreavelocidadedaluzeadeumabola de tênis é tão grande que o experimento,mesmo realizado a quilômetros de distância, não seriacapazdecolocaremdúvidaavelocidadeinstantânea.

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ImagineatrajetóriadaluzrefletidaporJúpiteremdoismomentos,separadospelointervalodeseismeses(figuras14ae14b).Observequeasfigurasnãoestãoemescala,poisadistânciadeJúpiterseriamuitomaior.Aluztemquepercorrerumatrajetóriamaislongaemumdosquadrosdoqueemoutro(linhabranca mais espessa nas figuras). Assim, estaria justificado seu “atraso” em certas épocas do ano.Galileu sabia disso, mas não conseguiu encontrar meios de comprovar (e corrigir) as distorçõesprovocadas pelo tempo consumido na jornada da luz no sistema solar. Contudo, o problema só seriaresolvidoem1676,comotrabalhodeOlafRoemernoObservatóriodeParis.

Figura14a.AtrajetóriadaluzdoSolatéJúpitere,refletidanele,atéaTerra(linhabrancamaisespessa)édiferenteaolongodoano.(Figuraforadeescala.)

Figura14b.Mesmoforadeescala,épossívelperceberqueasduastrajetóriassãodiferentes(figuras14ae14b).

OutroproblemaaquesededicoufoiaobservaçãodeSaturno,quepassouporumavariaçãomuitonotávelaolongodotempoemqueGalileuoestudou.Deinício,observouumcontornopouconítidodo

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discodoplaneta,parecendo-semaiscomumaelipse.Nodia13denovembrode1610,Galileuanunciavasua descoberta à famíliaMédici, de que Saturno seria um sistema de três astros, totalmente imóveis,chamando-o de “planeta trigêmeo”. Anos depois, em 1625, o disco visível do planeta parecia terassumidoocontornoperfeitamentecircular(figura15).Issolhesugeriuqueoconjuntonãodeveriaestar“totalmenteimóvel”comoimaginarainicialmente,masemrotaçãomuitolenta.

Figura15.OproblemadosanéisdeSaturno:imagensgeradasporcomputadordavisãoquesetinhadeleem1616e,depois,em1625.

Emverdade,naqueleintervalodetempoosanéisdoplanetasealinharamdetalformacomavisadaapartirdaTerraquesumiramcompletamenteaosobservadores.Trata-se,obviamente,deumerromuitorazoável,queesperouaté1656, jádepoisdamortedeGalileu,para sercorrigido,comapropostadeChristiaanHuygens(1629-1695).

Esse outro erro de Galileu nos permite ressaltar um aspecto fundamental na nova forma de criarconhecimento inaugurada por ele. A ciência moderna não produz verdades absolutas, mas o que umsaudosofilósofodaciênciadaatualidadechamoude“conhecimentoconfiável”70.Oconhecimentoestáancoradoemumarcabouçoteóricoeemumaparatoexperimental,quelhedásustentaçãoeconsistência.Mas isso significa quemudanças, tanto no arcabouço teórico como no aparato experimental, poderãotrazer implicações profundas para o conhecimento científico válido até aquele momento, inclusivelevandoarepensá-loprofundamente.

Comojádito,oexperimentonãofoiumaparteinovadoraenemmesmoécaracterísticaindispensáveldoconhecimentocientíficomoderno.Noentanto,eleteveumpapelmuitoimportantenodesenvolvimentodas ideias de Galileu, talvez mais importante do que os historiadores do século XX inicialmentepensaram.Diversas descrições de experimentos foram colocadas em dúvida, como seGalileu tivesserealizado“experimentosmentais”,comoodeamarrardoisobjetosdemassadiferenteemqueda livre,confundido-oscomexperimentosreais.Porexemplo,GalileudisseaseubiógrafoVivianiterpercebidoaregularidade do movimento do pêndulo na catedral de Pisa ainda quando era estudante, utilizando apulsação de seu coração como cronômetro paramedir a oscilação do candelabro central.No entanto,posteriormente,foiverificadoquetalcandelabroforainstaladoem1587,quandonãoeramaisestudanteem Pisa. Isso levou alguns historiadores a colocar em dúvida suas descrições de experimentos demaneiragerale,portanto,exagerada.

Outroexemplointeressantenosremeteàsdescriçõessobreosexperimentosdequedalivre,nosquaiseleterialançadoobjetoscomdiferentespesosdoaltodeumatorreeverificadosuaqueda,experimentosqueforamigualmentecolocadosemdúvida.EmumadessasdescriçõesquandoaindaeraprofessoremPisa,presenteemumdeseusmanuscritos71,eleafirmouque,quandodoisobjetosdepesodiferente,umleveeoutropesado,sãodeixadoscairdoaltodeumatorre,oobjetolevetemumavantageminicial,mas

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estaéperdidalogoemseguida.Eleescreveudizendoterrealizadodiversasvezesesseexperimento,oquecertamenteocorreraemPisaequasecertamenteemsuafamosatorre,particularmenteindicadaparaessetipodeexperimento,justamentedevidoasuainclinação(figura16).Oerroevidentedadescriçãodaquedaindicariaumasupostafaltadecorrespondênciacomarealidade.

Figura16.TorredePisa:usadaporGalileuparatestarsuashipóteses.

Alguns historiadores, chefiados pelo professor I. Bernard Cohen, da Universidade de Harvard,repetiram esses experimentos com objetos similares aos utilizados por Galileu, esferas de aço e demadeira,acompanhadosdeumsofisticadoaparatoderegistrofotográfico.Elessesurpreenderamaoverqueas imagens revelavam justamenteoqueGalileudescrevera.Estudos subsequentesdemonstraramainfluênciadeumcomponentefisiológicorelevante,pois,quandoamãohumanaseguraobjetosdepesosdiferentes, a reação muscular para soltá-los é igualmente diferente. Assim, ao tentar soltar os doisobjetosaomesmotempo,provavelmenteomaislevepartiaumafraçãodesegundoantes,oqueexplicavaadescriçãodeGalileu.72

Esse episódio ilustra bem o princípio geral fundado por Galileu, que procurou subordinar suascrenças ao resultado de ensaios sobre os quais não pretendia interferir. Esse método era, de fato,

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revolucionário, e demonstrou ser extremamente eficiente para criar conhecimento novo, capaz deresolver problemas concretos com eficácia.Não por acaso,Galileu fundou uma verdadeira escola depensamento, que teve ramificações importantes em todos os ramos do conhecimento, inclusive nageologiaenabiologia,comoveremosnopróximocapítulo.

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Capítulo3

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Umanovahistórianatural:CharlesDarwineasdinâmicasdanatureza

Nestecapítulo,procurosituaroestabelecimentodoparadigmaatualdasciênciasbiológicas,mostrandouma trajetória que incorporoumuito da tradição clássica, desde o legado deAristóteles,mas incluiuimportantesrupturas.Aideiadeumanaturezadinâmicaeempermanentemudançanãoeranovaeestavabem sedimentada. Mas as razões que explicavam essa dinâmica passaram a ser vistas de maneirainteiramente diferente. Uma profunda mudança ocorreu na maneira de olhar essa dinâmica natural, apartirdesuascausas.Nãomaisseriaadmissívelpensarqueumaúnicacausafinalexplicaria todososmovimentos, que haveriam de ser concebidos a partir de outro tipo de causas. Mesmo que algumasperguntas não tenham ainda sido respondidas até hoje, sabemos que muitas explicações foramdefinitivamente aposentadas. Os princípios filosóficos que demandavam uma finalidade, se possívelnobre,paracadadetalhedanaturezaforamenfrentadosporCharlesDarwin,queteveaindaquerefletirsobre um detalhe crucial em sua teoria, antes de publicá-la. A dinâmica do mundo permitiria umaadaptaçãocompletaeperfeitados seresvivosa seumeio?Ora,ummundoemconstantemudançanãopoderiaseracompanhado, instantaneamente,pormudançasdosseresvivos.Issoimplicavarepensarasvisõesdeperfeiçãodanaturezaedosseresvivos.

O rompimento com os princípios finalistas e de perfeição da natureza foi uma afronta a doisprincípiosbasilaresdateologiacristã.Ummundosempropósitoe,aindaporcima,imperfeitoeraalgoque colidia frontalmente com todos os ensinamentos religiosos, de tradição mais do que milenar,seguramentedesdeTomásdeAquino(1225-1274).Certamente,aquestãodaorigemdaespéciehumanaestavaincluídanessapolêmica,bemcomoaquestãodacronologiabíblicadoGênesiseadiscussãodaexistência do dilúvio universal. No entanto, elas já eram antigas, tendo sido debatidas nos meioscientíficospelomenosdesdeoséculoXVIIIdemaneiracalorosa.

Umavisãoevolutivadomundobiológicodependia,fundamentalmente,deumateoriaqueexplicasseamaneiracomoumageraçãopassasuascaracterísticasparaa seguinte.Seessa transmissãoocorre semnenhuma possibilidade de modificação, a perspectiva evolutiva restaria irremediavelmentecomprometida.Se,poroutrolado,umageraçãorecebedaanteriorumpatrimôniobiológicoligeiramentediferente, evidencia-seapossibilidadede seacumularemmodificaçõesao longodo tempo.Essa foi abasesobreaqualdoisdosmaiorescientistasdoséculoXIXdesenvolveramexperimentoseanalisaramdadosempíricos.DarwineMendelleramosmesmostrabalhoscientíficoserealizaramexperimentosquetiveram resultados incrivelmente parecidos. Mesmo assim, chegaram a conclusões diametralmenteopostas, refletindouma face característica do empreendimento científico, e queo diferencia de outrasformasdeorganizaropensamentoearazão.

AnovahistórianaturalqueseconsolidarianoséculoXIXmantinhaelementosaceitosanteriormente,comoavisãodinâmicadaAntiguidade,masincorporavaelementosessencialmentenovos,quecolidiamcom as visões teológicas judaico-cristãs de natureza e de homem, e que estão na base da Biologiamoderna.

Asvisõesdinâmicasdanatureza

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OséculodeGalileuéconhecidopelaexaltaçãodaracionalidade,emquenovossistemasdeideiasforamestabelecidos,organizandodecertaformaasgrandesnovidadesdoséculoanterior.Adescobertadeumnovomundo,novospovos,asrotascomerciaiscomoOriente,enfim,umasériedegrandesnovidades,trouxeconsigoumaondadeincertezas.KonradGessner(1516-1565)publicaraumlivrosobreZoologia73quepretendiaincluirtodososanimaisconhecidos,porrelatosdeviajantesedocumentosescritos.Aosepropor tal empreitada,dentremuitas espécies, descreveuanimaisbizarrosdaÁfrica,Ásia eAmérica,bemcomoseresmitológicoscomoounicórnio.ABotânica,damesmaforma,experimentouprogressosimensos,aindamaisaoseconsiderarquesetratavadeáreadeinteressedaFarmacologiaedaMedicina.OmédicosuíçoCasparBauhin(1560-1624)descreveupoucomaisde5milespéciesdevegetaisemseulivroPinaxtheatribotanici (1596),seguindoa tradiçãoaristotélica,maspretendendouniversalizarosnomesextensosdasplantas,comfinalidadesterapêuticas.

Na anatomia, os progressos haviam sido enormes, com grande avanço no conhecimento do corpohumano, graças à liberdade de pesquisa de universidades que não atendiam a restrições religiosas.AUniversidadedePádua,naItália,porexemplo,recebiaestudantesdetodaaEuropaparaosestudosdeMedicina, sendo famosapelas liçõesdeAnatomia,que incluíamadissecçãodecadáveres.Elaestavaequipada com o primeiro anfiteatro permanente de ensino de anatomia humana, inaugurado em 16 dejaneirode159574.

NaprimeirametadedoséculoXVIII,aortodoxiacatólicanãomantinhaumaleituraliteraldoGênesiscomo pressuposto essencial. Nesse sentido, a ideia de que o dilúvio bíblico tenha sido um eventouniversal, com água cobrindo fisicamente todo o planeta, embora fosse admitida por alguns teólogoscatólicos,nãoeravistacomoumavisãoessencialpor todos.EmboraRomasejaa referência imediatapara os católicos, é preciso recordar que a França, ou mais particularmente Paris, era a capitalintelectualdaEuropanaqueleperíodo,e láseencontravaocentromaisbempreparadoparaexerceropodereclesiástico.A tradicional,vigilanteeconservadoraFaculdadedeTeologiadaUniversidadedeParis,ondeestudaraTomásdeAquino,mantinhaelaboradamaquinariadecensurasobreaspublicaçõeseasigrejas,quedeviamdisciplinaaosdogmasedoutrinashierarquicamenteimpostos,comtodoapoiodoaparatorepressivodoEstado.Noentanto,aideiadequehaviaumaelitereligiosamonolíticaeemplenasintonia,controlandoumaestruturade intimidaçãoecensuramuitobemazeitada, temsidoamplamentequestionadapeloshistoriadoresdoperíodo.OséculoXVIIIseriamarcadopelosecularismodopróprioclero, conflitos e tensões relativos à doutrina cristã, bem como por uma grande ineficiência damaquinariarepressora,nãoraroexplicadaporinteressespessoaisecorrupção75.

Assim,nãoédifícilentenderarazãodeseremadmitidasnesseperíodointerpretaçõestantoliteraiscomo figuradas do relato bíblico no Gênesis. Em outras palavras, o dilúvio, como evento local ouuniversal,nãoeravistonecessariamentecomopartedeumacronologiarigorosadefatos,admitindo-seoadjetivo“antediluviano”paraexpressarumperíododeduraçãoextensadetempo,mesmoseimprecisa.Assim,em1721,omédicoitalianoAntonioVallisneri(1661-1730)publicavauminfluentelivro,noqualdefendiaatesedequeosrestosfósseisdecriaturasmarinhasencontradosemmontanhaseramdefatodeseresquetinhamvividonomar,masquenãoestavamrelacionadoscomorelatodenenhumdoslivrosdaBíblia.AexegeserealizadapelasautoridadescatólicasdeParisemrelaçãoaodilúviobíblicoresumia-seaentendê-locomoumcastigodeDeusàquelesquenãoseguiamseusensinamentos.Emsíntese,essaleitura seria o que se poderia chamar de “visão ortodoxa” do ponto de vista da exegese católica daprimeirametadedoséculoXVIII.

Nasegundametadedesseséculo,ocenáriosemodificaradramaticamente.Dopontodevistapolíticoe econômico, foi um período de grande agitação, entremeando conflitos sociais e guerras com criseeconômica ebaixaprodução agrícola, o quegerava tensões enormes.Dopontodevista científico, osprogressosforamgigantescosnesseperíodo.As5milespéciesdeplantasdescritasporBauhinnoséculo

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XVI haviam saltado para mais de 100 mil, agrupadas em milhares de gêneros. Com os animais, aexplosãoforaaindamaior,nãosóemtermosquantitativos,mastambémqualitativos.

Os ingleses, nessa época, chegaram à Austrália e aos mares do Sul, de onde trouxeram muitasnovidades surpreendentes, entre elas o canguru, um animal jamais imaginado nem nas mais exóticasmitologias. Os novos peixes das águas quentes do Pacífico foram logo identificados com fósseis depeixespetrificadosencontradosacentenasdemetrosacimadoníveldomar,emespecialemumlocalpróximoàcidadedeVerona,naItália,hámuitotempoconhecidos.ComoospeixesdaságuasquentesdosuldaTerra forampararnasmontanhasveronesas,e lá sepetrificaram?Essapergunta foialvodeumríspidodebate76,queenvolveudiversoscientistas,quesedividiamemdoisblocos.

De um lado, naturalistas com firmes compromissos religiosos, que pretendiam encontrar nasevidênciasgeológicascomprovaçõesdo relatobíblico, sobretudodo livrodoGênesis.Deoutro lado,naturalistas,algunsdelesmembrosdahierarquiacatólica,masquedefendiamosprincípiosdeGalileu,osistema das duas verdades. Sem abdicar de suas crenças religiosas, propunham uma interpretaçãopuramenteracionalparaasevidênciasgeológicas.

Esse debate era emblemático do tipo de confronto que se estabeleceu ao final do séculoXVIII einíciodo séculoXIX.Paraoscomprometidoscoma religião, asmarcasdomaremnível superior aoatualeramnadaalémdoquecomprovaçãodaliteralidadedorelatododilúvioqueaparecenolivrodoGênesisdaBíblia.Porisso,essesnaturalistassãoconhecidoscomo“diluvianistasapologéticos”,queseempenharamprofundamenteemcombaterosistemadeGalileu,retrocedendoparaoqueseriao“sistemade verdade única”.De fato, em 1801, foi criada uma academia77 noVaticano para enfrentar qualquerquestionamento da verdade bíblica ante as evidências coletadas pela ciência, tornando a doutrinacatólicamaisortodoxa78.

De outro lado, os “geólogos modernos”, vistos por alguns “diluvianistas apologéticos” comoverdadeiros inimigosdareligião, insistiamnosmétodosdaciênciadefendidosporGalileu,ouseja,senegavam a iluminar as evidências empíricas, por exemplo, os fósseis marinhos encontrados emmontanhas,comotextobíblico,procurandocomprová-lo.Aocontrário,buscavamentenderasevidênciaspormétodospuramenteracionais,buscandoconciliarosdoisrelatos,entendendoqueagrandeobradanaturezaeassagradasescriturastinhamtidoummesmoautor.Aoscientistas,queàépocaeramchamadosfilósofosnaturais(onome“cientista”sóseriacunhadonoséculoseguinte),cabiaentenderessagrandeobraemsuacomplexidade,atémesmoporumaquestãoderespeito.

Muitos desses cientistas do século XVIII tinham vínculos eclesiásticos, estudaram em seminárioscatólicos,mastornaram-seabades,enãopadres.EraocasodoabadeLazzaroSpallanzani(1729-1799),que realizava experimentos que colocavam em dúvida importantes conclusões deAristóteles, como apossibilidadedegeraçãoespontânea.Taiscientistas,mesmoabades,nãoeramremuneradospelaIgrejaedesenvolviamsuasatividadesdediferentes formas, inclusivecomoprofessoresuniversitários,casodeSpallanzani.Outrosnãotinhamessamesmainserção,nãopossuíamvínculoseclesiásticosetrabalhavamcomo professores em escolas ou em funções remuneradas no serviço público. Giambattista Brocchi(1772-1826), por exemplo, era professor de Química na cidade de Brescia, na Itália, quando foiconvidadoaintegrarumaimportantecomissãodefiscalizaçãodaatividademineradora.Tantonumcasocomonooutro,oestudodanaturezaerafeitocomasferramentasdajovemciência,enãocomosdogmassagradosdaTeologia.EsseeraoprincipallegadodeGalileuparaoscientistasdoséculoseguinteaoseu.

Aatividadedeestudarconchas,quepodeparecerquasequeumpassatempopoucoexcitante,era,naépoca,atividadeextremamenteimportante,quepoderiacomprometeradefesadaliteralidadedaleituradoGênesis,ou,poroutrolado,trazerevidênciasadicionaisparaacomprovaçãodaverdadedodilúviobíblico.Asconchasfósseisencontradasemmontanhaseramtidasporalgunscomoprovasirrefutáveisdeque omar tinha subido, alagando todas as terras, exatamente como dizia o relato bíblico.Outros, ao

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contrário,afirmariamquemuitaspertenciamaespéciesextintas,diferentesdasatuais.Issoacrescentavaumgrandeproblema,poisacronologialiteralbíblicapassavaaserquestionada.

Aextinção,alémdenãoserexplicadapelorelatobíblico,implicavapensaremumaescaladetempomuitodilatada,incompatívelcomacronologiateológica.Issoexplica,porexemplo,aimensaoposiçãoda Igreja Católica quando Giambattista Brocchi concluiu que a existência das espécies, no tempogeológico, é similar à existênciados indivíduos, comumnascimento, amadurecimento emorte.TendoestudadoasconchasfósseisdasmontanhaspróximasaFlorença,elepercebeuquediversasespéciesnãoguardavamcorrespondênciacoma faunaatual,oqueo levoua formularahojechamada“analogiadeBrocchi”. Para alguns, trata-se de um precursor importante da teoria evolutiva79. Seu livro sobre asconchasfósseisdosApeninos,publicadoem1814,aomesmotempoquelherendeuelogiosdegrandesautoridades científicasda época, recebeupesadas críticasde teólogosdepeso, reunidosnaPontificiaAccademiadiReligioneCattolica,doVaticano.Brocchiseperguntava:

Porque,portanto,nãosepodeadmitirqueasespéciespossamperecercomoosindivíduos,equetenham,aopardeles,umperíodofixoedeterminadoparaasuaexistência?Issonãodeveparecerestranho,dadoquenadaestáemestadoestáticoemnossoglobo,equeanaturezasemantémativacomumcírculoperpétuoecomumaperenesucessãodemudanças.80

Essavisãodinâmica,comoconstatamos,derivadiretamentedavisãoaristotélicadanatureza,naqualomovimentoeratidocomoumacaracterísticainerenteàscoisas.Comovimos,Aristóteleseratributáriodo legado da concepção dinâmica que nutrira seumestre, Platão.De fato, pela filosofia deHeráclito(540-480a.C.),éimpossívelentrarduasvezesnomesmorio,dadoofluxodesuaságuas,poistudoseencontracontinuamenteemmovimento–aáguadeumdiaserádiferentedaqueladeoutro.Umdeseusdiscípulos,Crátilo,levavaaoextremoessavisão,dizendoserimpossívelentraresairdeummesmorio,poisaoretornaràmargemencontramoságuadiferentedaquelaquetocamosnaentrada.Heráclitodiziaqueotempoquedespendemosparanomearascoisasémaiordoqueotempoqueelasprópriaslevampara semodificar,demaneiraque, aoencontrarumnomeparaumacoisa, ela jáéoutraenãomaisamesma.Assim,nossapercepção está diantedeum fluxoperpétuo, oque, para alguns, inviabilizaria ageração de conhecimento a partir de nossas sensações. A saída para esse aparente paradoxo foiencontrada por Platão em outro filósofo, Parmênides, que dizia que o conhecimento verdadeiro sópoderiaseroriginadodarazão.

Adinâmicadanaturezaera,portanto,partedeumlegadoantigoebemestabelecido,nãopodendoserentendido como fator distintivo do pensamento evolutivo. O que havia, então, de tão inovador nopensamento evolutivo proposto por Charles Darwin? Para responder à questão, antes de falarespecificamentedaobradeDarwin,éprecisoentenderoutroimportantelegadodafilosofiagrega,quefoiincorporadoàtradiçãoocidentaldemaneiramuitoprofunda:adoutrinado“finalismo”,aqualadmitea“causalidadedofim”,nosentidodequeafinalidadedeumobjetoéacausadesuaexistência.

O finalismo se funda em duas teses: 1) o mundo está organizado visando certa finalidade; 2) aexplicaçãodetodoacontecimentodomundoconsisteemdescobrirafinalidadeparaaqualestádirigido.Comovimos, trata-se de outra característica do pensamento aristotélico, que afirmavaque tudoo queexistetemumafinalidade,chegandoàgeneralizaçãodequeatotalidadedouniversoestásubordinadaaummesmo fim, que seriaDeus, de quemdependeria, emúltima instância, a ordeme omovimento douniverso81. As estrelas demonstravam ter movimentos circulares, e o círculo era, por princípio, umaexpressãodaperfeiçãodivina.

Defato,asuposiçãodequeomovimentodetodososastrosfossecircularperpassou,comovimosnocapítuloanterior,asmaisdiversascosmologias,atéKepler.Aideiadeperfeiçãodocírculo,pelomenosdesde Platão, estava profundamente arraigada namentalidade ocidental. Essa perfeição ligada a uma

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entidade divina está na base dosmais diversos sistemas filosóficos e teológicos. De fato, Tomás deAquinodestacouqueateologiasedividiaemnaturalerevelada.Deumlado,eranecessárioacreditar,ter fénaquiloqueadoutrinadizequenãoéobservável;porexemplo,aexistênciadeDeus,deJesusCristoedoEspíritoSanto.Trata-sedeumaverdaderevelada,quesecontrapõeàTeologiaNatural,quepermiteumaabordagem racional,guiadapelométodo filosófico.Aobservaçãodanaturezanos revelaelementosperfeitos,desdeaproporçãoáureadasconchasdoscaracóis,damorfologiados insetos,dacor das flores, até o ajuste perfeito entre o tamanho das flores a serem polinizadas e dos insetospolinizadores.Observar essa perfeição em seus detalhes seria, paraTomás deAquino, uma forma decomprovar a existência deDeus, pois apenas um ser perfeito poderia criar algo perfeito.Os estudosuniversitários de Darwin incluíram, como veremos a seguir, um dos mais importantes teólogosanglicanos, que escreveu justamente sobre a perfeição da criação divina a partir de uma releitura deTomásdeAquino.

Os conceitos de perfeição e de finalidade serão centrais para compreender como o pensamentodarwinianosecontrapôsaumalongatradiçãoocidental,desdeafilosofiadePlatãoeAristótelesatéaTeologiaNaturaldeseutempo.

AvisãodinâmicadeDarwin:ofimdofinalismonaciência

Darwinconcluiu seus estudosnaUniversidadedeCambridgeno iníciodadécadade1830,onde tevecontato com a obra deWilliam Paley (1743-1805)82 sobre Teologia Natural, e se empenhara, com aorientaçãodeministrosanglicanos,emestudosrelacionadosaBotânicaeGeologia.Darwinaprenderaque,aoandarporumaflorestaeencontrarumrelógiocaídonochão,pode-seconcluircomcertezaqueelepertenciaaalguém.Seumecanismointernodirámuitodaquelequeocrioueconstruiu.Masaflorestaé, também,de certa forma,umacriação e seusmecanismos internosnosdizemmuitodamentede seucriador.Essaseráabasedafamosa“analogiadorelojoeiro”,criadaporPaley83.

Em1831,Darwin recebeuumconviteparaparticipardeumaviagemao redordomundoe, quasecincoanosdepois,eleestádevoltaàInglaterra,ondeelaboravaexplicaçõesparaagrandecoleçãodefatosgeológicosebiológicosrecolhidosnaviagemempreendidaabordodoBeagle,correlacionado-oscomosdisponíveisnaliteratura.

Jáduranteaviagem,elecomeçouacolecionaranotaçõesemcadernosqueganharampensamentosereflexões ao longo de vários anos e que permanecem até hoje como fontes de pesquisa do processocriativo.ÉinteressantenotarqueháregistrosdeideiasdasquaisDarwindiscordoudiametralmenteanosdepois,porexemplo,sobreoritmodaevolução.Emseufamoso“cadernovermelho”,eleescreveuqueaorigemdasespéciessópoderiaserumprocessorepentino,utilizandoatémesmoumaexpressãolatina.Eleescreveuqueasespéciesnovasdeveriamsurgir“persaltum”,emprovávelreferênciainvertidaaoconhecido adágio latino “Naturae non facit saltum”. Vinte anos depois, ele mudou de ideia e seconvenceu do contrário, ou seja, não haveria mesmo saltos na história da formação das espécies. Operíodoquesesegueaseuretornoéconhecidocomo“oscriativosanoslondrinos”,nosquaisumDarwinsolteiro frequentou os círculos intelectuais conhecidos de seu admirado irmão mais velho e travoucontatocomideáriosliberaisavançados.

Foinesseperíodoque iniciouseu“CadernoE”,escritoentreoutubrode1838e julhode1839,noqualfezumaprimeirasistematizaçãodesuasideias,registrandotrêsprincípios:1)osnetosseparecemcomosavós;2)háumatendênciaàmudançanascaracterísticasdosseresvivos;e3)hásuperfertilidade,ouseja,opoderdereposiçãodosseresvivosémuitomaiordoqueaquelesuportadopeloambiente.

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Embora Darwin seja conhecido sobretudo pela formulação do mecanismo evolutivo denominado“seleçãonatural”, eleelaborouumsistemamuitoamploecomplexode reflexões teóricas.Aquiloquepassouaserchamadode“programaadaptacionista”,ouseja,oestudodasadaptaçõesparticularesqueajustamas espécies a seuhabitat, é, emverdade, umaonda tardia, que algunshistoriadores localizammuitoclaramentenoséculoXX,enãonoanterior.OconjuntodepesquisasincentivadoporDarwinsereferiamenosaidentificaradaptaçõesemaisatraçarfilogenias,ouseja,relaçõesdeparentesco,marcasdeancestralidade.84

Oprimeiroregistrodeumsistemaarticuladodeideias,queincluireferênciaexplícitaaomecanismodaseleçãonatural,apareceráapenasem1842,emumresumoqueescreveuentremaioejunho,quandovisitavaacasadeseussogros.Aolongode35páginas,comcercade15milpalavras,deucontinuidadeàsideiasdeseu“CadernoE”edesenvolveuanoçãodaseleçãonaturalcomomecanismomoduladordasinovações decorrentes da tendência a variações. Assim como os criadores de animais e plantasselecionam,acadageração,asvariaçõesquemaislhesinteressam,reservandoaelasaoportunidadededeixar descendentes, também na natureza isso ocorre com as melhores variações que surgem a cadageração. A simplicidade do mecanismo de seleção natural dependia, contudo, da confirmação daextensão do tempo geológico. As pequenas alterações na proporção de indivíduos só poderiam seacumularapontodeoriginarumanovaespécieseoprocessoserepetissepormilharesdegerações.

Nada indica, no entanto, que a imagemde adaptação tivessedeixadooplanodaperfeiçãodivina,presente já em suas formulações iniciais. De fato, desde esse primeiro ensaio de 1842, é evidente afunçãodesbastadoradaseleçãonatural,comoqueaeliminarosimperfeitos.Avariaçãoseriaresultadodeinfluênciasambientaiseasinovaçõesdesvantajosasseriameliminadaspelaseleçãonatural.Aorigemdasespéciesdependeria,sobretudo,debarreirasgeográficas,quemanteriamseparadaspopulaçõesporlongosperíodos,sobaaçãodeclimasdiferentes.

Aoquetudoindica,esseensaiofoiesquecido,poisDarwinnãofezreferênciaaeleemmomentosnosquaiscolecionavaseusprimeirosescritos,queforamcuidadosamenteguardados,comoseuscadernosdeanotações.De fato, em1844,Darwin escreveu um ensaiomais longo, com cerca de 52mil palavras,planejado para publicação em caso de morte súbita. Ele tinha pedido que sua esposa o guardasse,deixandoinstruçõesprecisasdoquefazerparapublicá-lo.EsseensaiojácontinhaaestruturabásicaqueseriaadotadamaisadianteemAorigemdasespécies,poisseiniciavacomadiscussãodadomesticação,amodificaçãodasespéciesrealizadaconscientementepeloserhumano,pormeiodaseleçãodeformasdiferentesacadageração.Oensaiodiscutiaemseguidaavariaçãodasespéciesnoestadoselvagemeasraçasdomésticas,temaqueacompanhariaDarwinpordiversasdécadas.

A domesticação cria espécies novas? Esta era a pergunta do momento, e diversos hibridistastrabalhavam ativamente na questão, inclusive do ponto de vista experimental.O instinto animal era otema seguinte, dado que a reprodução animal dependia, sobretudo, da disposição voluntária doacasalamento.EsseseriaoutrotemanoqualDarwintrabalhariapordécadas,entendendoquenadamaisestranhohaviadoqueumcasalconfinadoemumespaçocomoumajaulaouumaquário,equenãosereproduz. O que refreia o instinto de superpopulação dos animais? Por que razão os pandas não sereproduzemcomocoelhos?EssaeraoutradasquestõesqueacompanhariamDarwinpordiversosanos,encontrando respostasmuitooriginais.Oensaioaindadiscutiaaausênciade formas intermediáriasnoregistrofóssil,umtemadeparticularimportância.

Suaideiabásicaeraadequeumabarreirageográficapoderiadividirumapopulaçãoemduas,quepassariam a ter existências independentes. Se, ao longo de uma sucessão de períodos, mudassem ascondiçõesàsquaiscadaumadassubpopulaçõesestivesseexposta,asrespostasinduzidasemcadaumadelas seriam diferentes, e a seleção natural eliminaria as formas que não estivessem perfeitamenteadaptadasàsnovascondições.Assim,comotempo,aseleçãonaturalseriaresponsávelporeliminaras

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formas imperfeitas, impedindo que elas deixassem suas características nas novas gerações, o queacelerariaoprocessodemudança.Apartirdecertomomento,essasmodificaçõesseacumulariamatéoponto em que indivíduos das duas subpopulações não mais se reconheceriam e poderiam então serconsideradosseresdeespéciesdiferentes.Em1844,Darwinjátinhaumaideiamuitoprecisadaescalado tempogeológico, sabendoqueele seguramenteexcedia centenasdemilhõesdeanos.Essa ideia jáestava solidamente enraizada na base conceitual de Darwin pelo menos desde 1835, quando eledescobriraaflorestapetrificadadeVillavicencio,nasproximidadesdeUspallata,naatualArgentina85.

Havia uma primeira ruptura nessa forma de pensar, dado que, se os criadores de animaisselecionavamasformasquemaislhesinteressavam,elescertamentetinhamumfim.Omaiorcachorrodecadageração,porexemplo,poderiaserescolhidoparadarorigemaumanovaformacomafinalidadedeser umbom cão de guarda.Omenor cão de cada geração poderia ser escolhido com a finalidade dedesenvolverumaraçacomafinalidadedecaçarratos,porexemplo.Assim,nadomesticaçãoeraválidoofinalismoaristotélico,noqualafinalidadeexplicavaaprópriaexistênciadoser.Masoquedizerdosseres vivos selvagens, não domesticados? Suas formas revelariam alguma finalidade? A resposta deDarwineraenfáticanosentidonegativo:asformasrevelavamparentesco,masnãofinalidade.Aorigemdasespécieseradevidaaumacombinaçãodecircunstâncias,masnãoeraresultadodeumpropósito,deuma finalidade. Em suma, o finalismo, a teleologia, deixava o campo científico e passava a ser útilapenasnateologia,quadroquepermaneceinalteradoaténossosdias86.

Aimperfeiçãonanatureza:arupturacomaTeologiaNatural

Duascaracterísticasimportantesdopensamentodarwinianodesseperíodopodemserevidenciadas.Umadelaséa importânciadascondiçõesgeológicas.Suasalteraçõesseriamos fatoresdesencadeantesdasmodificações dos seres vivos. Um ambiente estável, com seres vivos perfeitamente adaptados, nãopresenciariaevolução(ou“transmutação”,comosediziaàépoca)dasespécies.Adinâmicadanatureza,asconstantes“revoluçõesdoglobo”,comoaschamavamosgeólogos“modernos”,desdeSpallanzanieBrocchi,eramamplamenteadmitidas.Restavacontrovérsiasobreseu ritmo,quepoderiaserdealgunspoucosmilhõesdeanosoucentenasdemilhõesdeanos,masseguramente jáhaviaumconsensosobreumaimagemmodernadetempogeológico.Aoutracaracterísticamarcantedesseperíodoéaherançadascaracterísticas adquiridas, uma ideia que, erradamente, se tem atribuído a outros pensadores,apresentados como oponentes de Darwin e da seleção natural. As mudanças no ambiente induziriammodificaçõesnosseresvivoseissofariapartedeummecanismodinâmicodeajuste,cujaconsequênciaseriajustamenteamodificaçãodaproporçãodosdiferentestiposdeindivíduosemumapopulação.

AinduçãodoambienteeraexplicadaporDarwinpormeiodeumateoriasofisticada,queelesóiriapublicar em 1868, a teoria da pangênese (v. adiante). O que é realmente importante, para fins destecapítulo,éofatodeaseleçãonaturalter,atéestemomento,umpapelsecundárioemrelaçãoàinduçãodoambientesobreosseresvivos,que lhesprovocariaalteraçõesquepassariamaserhereditárias.Essasmudanças não tinham uma finalidade, mas deveriam ser herdadas, caso contrário as novas geraçõesnasceriammal adaptadas, ou seja, expostas à eliminação pura e simples. Por exemplo, o esfriamentoclimático provocaria o aparecimento de seres vivos mais peludos ou mais resistentes ao frio. Seusdescendentesdeveriamherdartalcaracterística,casocontrárioasformasjuvenismorreriamdefriologoaonascer.Oregistrofóssildeveria,portanto,seperfeitofosse,documentarasformascompoucospeloseasformaspeludas.Masospelosnãodeixammarcasordinariamentenosfósseis,detalformaqueseriaimpossívelpretenderencontrartodasasformasintermediáriasneles.Mesmoassim,haviadificuldades,poisasmudançasfacilmenteregistráveisdetamanho,porexemplo,tampoucopodiamseracompanhadas

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poralgumtipodecontinuidadedoregistrofóssil.Suafalta,oumesmosuanaturezalacunar,permaneciaumagrandedificuldadeparaateoria87.

Emalgummomentonoiníciode1857,ocorreaDarwinpensarqueosorganismospodemnãoestarperfeitamenteadaptadosaomeioambiente.Issoexplicariaespéciesdealtavalênciaecológica,ouseja,formasquepodemsuportarcondiçõesambientaismuitodiversas.OsprópriosanimaisdozoológicodeLondres, queDarwin frequentava, sobreviviam emum climamuito diferente daquele ao qual estavamacostumados. O urso polar suportava verões quentes, completamente diferentes dos do Ártico. Osmacacos, que impressionavam tanto os visitantes londrinos, viviam em florestas tropicais, massuportavam os frios invernos ingleses. A alternância da duração de dias e noites era outra notáveldiferençaqueosanimaisdebaixasoualtaslatitudesdeveriamsuportar.Muitosanimaiseplantas,aliás,viviammuitobememcondiçõesambientaisprofundamentediferentes,dopardalaosratoseaodente-de-leão. Esses exemplos de espécies ditas cosmopolitas comprovavam que os seres vivos estão apenasparcialmenteadaptadosaoseumeio.Damesmaformacomoelessemodificam,ascondiçõesambientaistambém o fazem, de tal forma que talvez a situação mais comum fosse diametralmente oposta àinicialmente admitida, ou seja, os seres vivos estão parcialmente adaptados ao meio de maneirapermanente.

Emoutraspalavras,osseresvivosnãoeramperfeitos,oquecontrariava todaa tradição teológicacristãdesdeTomásdeAquino.QuandoDarwinconceberaaseleçãonatural,eleseencontravaemmeioaumaonda“perfeccionista”semprecedentesnaInglaterra,queincluíraapublicaçãodeumacoleçãodetratados escritos comopropósito específicode comprovar a existênciadeDeus apartir de suaobra.EssacoleçãotinhaonomedeOstratadosdeBridgewaternasabedoria,poderebondadedeDeus,quese manifesta na criação e seus autores tinham sido escolhidos meticulosamente dentre os maioresespecialistasdesuasáreas.OreverendoanglicanoFrancisHenryEgerton,condedeBridgewater(1756-1829),deixouemseutestamentoumapequenafortunaparaapublicaçãodelivrosquemostrassemcomoaciênciapoderiaapontarinteligênciadivinanosmaisvariadoscampos.OsfundosestariamàdisposiçãodopresidentedaRoyalSocietydeLondres,queescolheriaosautoresecomporiaumprojetoeditorial,cujos lucros de venda deveriam reverter para cada autor selecionado. Em 1833, começaram a serpublicadososvolumesdesseprojetoeditorialdegrandeenvergadura,queenvolveuaRoyalSocietyealtasautoridadeseclesiásticasanglicanas,tendoaTeologiaNaturaldePaleycomograndeinspiração.Osautores selecionados eram pessoas demuito destaque nomeio anglicano (como o reverendo ThomasChalmers[1780-1847],queposteriormenteseráresponsávelpelocismadaIgrejadaEscócia,em1843)e científico (como John Kidd, [1775-1851] e William Buckland [1784-1856], professores daUniversidadedeOxford),alémdemédicosdeprestígio,comoCharlesBell(1774-1842),quedescobriraadistinçãoentrenervosmotorese sensitivos.Esteescreveuum tratadoapenas sobreamãohumana88,mostrandoaperfeiçãodecadadetalhe89.

Ao se desvencilhar dessa “onda perfeccionista”, quase vinte anos depois, Darwin sabia que essepensamento inovador era francamente herético nos círculos anglicanos. Contudo, ele fazia a seleçãonatural ganhar importância, pois ela passaria a atuar permanentemente. A herança das característicasadquiridassemanteriaimportantenoconjuntodosistemadarwiniano,mantendoseupapeldeestímuloamodificaçõesinduzidaspeloambientenosseresvivos.Finalmente,adescontinuidadedoregistrofóssilpoderia deixar de configurar problema, pois possivelmente não haveria uma mudança constante eunidirecionaladocumentar.Asdescontinuidadesseriamanormaenãoaexceçãonahistóriageológica,oqueevidenciaria,consequentemente,aadaptaçãoapenasparcialdasespéciesaoambiente.

EssamudançanamaneiracomoDarwinconcebiaaevoluçãopodeserpercebidaclaramenteemseusmanuscritosdoperíodo90.Aomesmo tempoqueescreviaocapítulosobreseleçãonaturalnaquelequedeveria ser seu grande livro, passou a conjecturar abertamente sobre a possibilidade da adaptação

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parcialesuasconsequências.Daíresultouaconcepçãodeummecanismoqueeledenominou“princípioda divergência”, talvez sua única ideia original após seus criativos anos londrinos, e sua verdadeirarupturacomasvisões teológicasdeperfeição.Emsuma,Darwinacabavadeconceberummecanismoque nada devia a uma tradição teológica, um genuíno mecanismo, em sentido laico91. Esse princípiopermitiaexplicardescontinuidadesdasespécies,tantonoespaço–comonasencostasdasmontanhasesuaszonasdevegetação–comonotempo–comasucessãodecamadassedimentaresfossilíferas.Issotornariaaslacunasdoregistrofóssilnãoapenaseventosassimiláveis,masatémesmoprevisíveispelateoria.

ÉinteressantequeoprincípiodadivergênciatenhaocorridoaDarwinemplenoprocessoderedaçãodesuasíntese.Issonosremeteaumcontextodeinovaçãopoucoreconhecido,noqualasistematizaçãodoescreverpareceterpapelimportantenacriaçãocientífica.Aonumeraraspáginasemseumanuscrito,Darwinrevelouqueestavarelendoalgoquejáforaescrito.Tratar-se-ianitidamentedeumarevisão,querevelara um detalhe importante a ser considerado. Ao inserir uma folha, e para não confundir asequência, repetiu o número da página e acrescentou apenas uma simples letra, o que revela suaexpectativadeacrescentarpoucacoisa.Noentanto,eleesgotouoalfabetoepassouaduplicarasletras,até que escreveu 47 meias-páginas. Claramente, ele passou a perceber que estava lidando com umaquestão mais importante do que pensava até aquele momento. É bem possível que Darwin estivesseinclusiveensaiandoaredaçãodeumaseçãoespecíficasobreaespéciehumana,masqueaextensãodainserçãoeoutroseventosotenhamdissuadidodaempreitada.

Aadaptaçãoparcialdosseresvivosimplicavaeliminaçãomaisfrequente,aqualseriaperfeitamentepossível diante da superfertilidade dos seres vivos.O efeito cumulativo das imperfeições adaptativascomaprópriadinâmicaambientalpossibilitariairregularidadesbiológicas,quedeporiamcontraaideiadeumgradualismoconstantenasmudançasdosseresvivos.Alémdisso,oprincípiodadivergênciaabriaum novo campo de reflexões, pois era bem sabido que muitas espécies se mantinham separadas emambientesquenãotinhamnenhumaevidênciadeseparaçãogeográfica.

Aorigemdeespéciesemambientescontínuoseraoutragrandedificuldadenasformulaçõesiniciaisde Darwin, que necessitava de isolamento geográfico. Ele poderia acrescentar uma novamaneira deformação de espécies, pois a ação constante da seleção natural abriria continuamente novasoportunidades de ocupação de áreas no ambiente. Assim, “manchas” de indivíduos diferentes,subpopulações diferenciadas, poderiam aparecer comodecorrência dessa adaptação parcial dos seresvivos, aliada a variações sazonais e oscilações nas populações.Em essência, essas ideias básicas semantêmaindamuitoatuais,acreditando-sequeoisolamentoreprodutivonãosejadependenteapenasdeisolamentogeográfico.

Por uma série de razões, Darwin teve de interromper a redação de seu longomanuscrito quandoestavaescrevendosobreessenovomecanismo.Mesesdepois,aoreassumiratarefaderedação,eleviviasituaçãocompletamentediferente,inclusivedopontodevistaemocional,edeixariadeladoseuprincípiodadivergência,semdar-lheodestaquequetudoindicavamerecer.Emvezdeexpandirseusistemadeideias,eledecidiuresumi-lasafimdeasseguraraprecedênciadaautoriadaseleçãonatural,queumacorrespondênciarecém-chegadadoarquipélagomalaioindicavaestarprestesaocorrer.Umabrevenotasobre a seleção sexual no mesmo capítulo sobre seleção natural indicava que a publicação de 1859continhaalgumasideiasbásicasqueDarwinesperavadesenvolvernofuturo.Defato,suaspublicaçõesseguintes,malgradoseuprecárioestadodesaúde,comprovamessapossibilidade.Orompimentocomofinalismoecomaperfeiçãodanatureza,comacertezadeummundoperfeito,pareceterabertoumnovoe profícuo campo de trabalho, ao mesmo tempo que provocava iradas reações em várias partes domundo,quetratavamdealgoquenãoapareciatãoexplicitamenteemseulivrode1859:aevoluçãodaespéciehumana.

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Aevoluçãoeoserhumano

Quando a publicação do livro de Charles Darwin foi anunciada, durante uma reunião daAssociaçãoBritânicaparaoProgressodaCiência(BAAS),seçãoC,Geologia,nodia18desetembrode1859,ofamoso geólogoCharles Lyell (1797-1875) afirmou que o trabalho de CharlesDarwin “lançaria luz”sobreo“misteriosoecomplicadoassunto”daorigemdasespécies.OjornalliterárioTheAthenaeum,naediçãode24desetembro,traziaasobservaçõesemdetalhe.Deinício,apresentavaainformaçãodeque,no começo da sessão, o professorLyell tomou assento,mas aguardou a chegada do príncipe consorteAlbertparaaaberturadostrabalhos.Aofinal,asseverouseraantiguidadedaraçahumanaoassuntoquemaischamavaaatençãodosgeólogosedopúblicoemgeral,alimentandoaexpectativadequeolivroviesse,defato,atratardoassunto.

Restos humanos tinham sido achados junto a ossadas de animais extintos, no interior de cavernas.Porém,CharlesLyellachavaduvidosoacreditarquetodoselestivessemamesmaidade.AorelatarsuavisitaàFrançaparaexaminarrestoshumanosencontradosemLePuy-en-Velay,concordouinteiramentecom a autenticidade do achado, assim como aceitou a opinião de osteologistas da época, segundo osquaisosossosnãopertenciamanenhumtipoeuropeuoucaucasoidemoderno.Todavia,comooexamenãopôderealizar-seinsitueosrestosforamrecolhidossemregistroacuradodesuaposiçãooriginal,elenãotinhaelementosparaconfirmaradataçãodoachado.Então,diziaLyell:

Entre os problemas de alto interesse teórico que os recentes avanços daHistória Natural e daGeologiatêmtrazidoàtona,nenhumémaisimportante,eaomesmotempoobscuro,doqueaquelerelacionadocomaorigemdas espécies.Sobre estedifícil emisteriosoassunto,um trabalho iráaparecer brevemente, escrito pelo sr. Charles Darwin, como resultado de vinte anos deexperimentoseobservaçõesemZoologia,BotânicaeGeologia,atravésdoqualelefoi levadoàconclusão de que os processos que dão origem às raças e variedades são osmesmos que, emespaçosdetempomuitomaiores,produzemasespéciese,emespaçosdetempoaindamaiores,dãoorigem a gêneros. A mim me parece que ele conseguiu, através de suas investigações epensamentos,terlançadoalgumaluzsobreasdiversasclassesdefenômenosqueestãoligadosàsafinidades, distribuição geográfica e sucessão geológica dos seres vivos.Nenhuma outra teoriajamaisconseguiu,enemmesmotemtentado,resolveresseproblema.92

Naquela sessão – e posteriormente no artigo –, discutindo a origem do ser humano, acontemporaneidade dos restos humanos com os de animais extintos, Lyell chamava a atenção para oassuntomaiscandentedomomentonaInglaterra.AapresentaçãodotrabalhodeDarwincomoaquelequelançaria luz sobre essaquestão se transformava, semdúvida, emumadasmaneirasmais eficientesdechamar atençãopara aobra.Contudo,o interessedeLyell nãodeveria sermeramentemercadológico.Como Darwin abordava a questão de um ponto de vista teórico, nada impedia que suas conclusõespudessemserestendidasa todososseresvivossemexceção,nãohavendo,pois, justificativarazoávelparaexcluiraespéciehumana.

A primeira resenha de A origem das espécies, às vésperas do seu lançamento, recolocaria oproblemadaorigemdasespéciesnaesferahumana.Nosábado,19denovembrode1859,apareciaumaresenhadecincocolunas,muitíssimobemescrita,nomesmojornalliterárioTheAthenaeum.Oautorseperguntava,comdestiladaironia:“Seummacacosetornouumhomem,oqueumhomemnãopoderiasetornar?”93

ÉbemconhecidaafrasedapartefinaldeAorigemdasespécies:“Luzserálançadasobreaorigemdo homem e sua história”94. Para muitos, essa frase seria análoga à “Eppur si muove”, atribuída a

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Galileu. Tendo passado ao largo das questões relativas ao ser humano em seu livro, e sabedor dascríticas que receberia justamente pelas conjecturas e inferências que atingiriam a espécie humana,Darwindeixavaclaroqueestavadispostoaenfrentá-las.

Decertamaneira,haviaumaforteexpectativadequeasnovidadesproduzidaspelajovem“Ciência”,e nãomais pela antiga “FilosofiaNatural”, repercutissem diretamente em nosso cotidiano, damesmaforma como a técnica e seus prodigiosos artefatos vinham fazendo, em especial após a RevoluçãoIndustrial na Inglaterra. Logo antes da publicação do livro, um jovem zoólogo que tinha recebido umexemplar de uma edição especial pré-lançamento, Thomas Henry Huxley (1825-1795), escreveu aDarwindizendoque reações indelicadaseramaltamenteprováveis,masqueesperavaquenão fossemcapazesdeperturbá-lo.Maseleadiantavaqueestava“afiandoasgarras”paradefendê-loassimquetaisreaçõesaparecessem.

Assim, deve-se considerar a existência de um clima de bastante expectativa em torno de teoriasprovenientesdosestudosdeHistóriaNaturalquepudessemlançarluzsobreaquestãohumana.Qualquerpublicação referindo-se às “espécies” seria entendida como ligada ao “homem”. Afinal, poder-se-iaafirmarque,seAorigemdasespéciesnãofoiescritopensandonoserhumano,certamentefoi lidoporquemestavapensandonoserhumano.Nãoseriademaisnotarque,em1863,CharlesLyellpublicariaTheGeologicalEvidenceof theAntiquityofMan, livroque tevenadamenosdoque trêsediçõesnaquelemesmoano.Olivrosetornouumareferênciaimportanteemseutempoemesmomeioséculodepois,em1914,logoapósadescobertado“homemdeJava”,quandoganhouumaediçãorevisada.

De fato, as críticas foram imediatas e tomaram a forma de resenhas longas, ácidas, extremamentecríticas, algumas delas irônicas, e asmais contundentes eram anônimas.A seleção natural foi tratadaironicamente como “versão homeopática da teoria da transmutação” – como era chamada a evolução.Umadessasresenhasanônimas,queocupavamuitaspáginasdeumjornalliterário,eratãocontundenteeelogiava tanto os trabalhos do então presidente daAssociaçãoBritânica para oProgresso daCiência(BAAS),RichardOwen(1804-1892),quepoucosduvidaramserelemesmoseuverdadeiroautor.Nãosurpreendia,portanto,queaprogramaçãodareuniãoanualdaBAASimediatamenteseguinte incluísse,comoconvidadoespecial,ninguémmenosdoqueobispodeOxford,SamuelWilberforce(1805-1873),queassinaraumaresenhaextremamentecríticaaolivrodeDarwin.

AspolêmicasemtornodeAorigemdasespécies

Em30dejunhode1860,aconferênciadeWilberforcesetornoumitológicadiantedagrandevariedadededescriçõesdoqueláocorreu,quemisturamlendasefatosemproporçõesincertas.Omaisfamosoedifundidodesses relatosdizque, a certa altura,obispoWilberforce foi interpeladoporHuxley sobreseusconhecimentosdeanatomiazoológica, e ele teria replicadoperguntando, ironicamente, seHuxleydescendiadeummacacoporpartedepaioudemãe.Ojovemzoólogoteriarespondidoque,setivessede escolher seu pai entre um ser ignóbil, que usa suas altas faculdades mentais para obscurecer averdade, e umpequeno e valentemacaco, ele preferiria este último.Nessemomento, segundoumdosrelatos, uma senhora teria desmaiado. Se isso for verdade, não seria de espantar que fosse amãe deHuxley,sobosefeitosdosprimeirospensamentospráticosdoqueteriasidonecessárioparasatisfazerasaspiraçõesdofilhopródigo.

Hádiversasevidênciasdequeesserelatotenhaadquiridoconotaçõesfantasiosasedistorçõesfatuaisparaalémdosimplesexagero.Acomeçarpelotestemunhododesmaiodasupostasenhora:elesurgiunaseçãodecartasdeumjornalem1898,exatos38anosdepois!Odebateexistiudefatoe,comcerteza,

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serviu para tornar Thomas Huxley muito conhecido e admirado nos círculos científicos. Mas o fatoessencial, para fins de nosso argumento, é que ele catalisou uma abordagem explícita sobre o que sepoderiaesperardasaplicaçõesdasteoriasbiológicasàorigemdohomem.

OdebatepareceterprecipitadoadecisãodeHuxleydepublicarseuprimeirolivro,Man’sPlaceinNature, que veio a público em janeiro de 1863, e que seria intensamente republicado e vendido nosquarentaanosseguintes95.Paramuitos,eleteriasidojustamenteseuprimeiroemelhorlivro,inaugurandoaabordagemexplícita,apartirdemétodospráticos,delançarluzsobreaorigemdaespéciehumanaesua história. Seu uso da anatomia comparada eramuito consistente e se contrapunha aosmétodos deRichardOwen,que tinhapublicadoaprimeiradescriçãometiculosadoesqueletodeumchimpanzénaInglaterraem1835equerestaracomosucessoringlêsdopoderosoGeorgesCuvier(1769-1832).Maisimportante, esse livro reforçava a vertente de divulgação científica que pretendia envolver o grandepúbliconosdebatesdapesquisacientíficadomomento.

ÉdecertaformasurpreendentequeosgrandessímiosafricanosedosudoesteasiáticoaindafossemmatériadecontrovérsiasàépocadapublicaçãodolivroAorigemdasespécies,oquetalvezexpliqueosucessodevendasdolivrodeHuxley.Antesdele,haviadescriçõescontraditóriassobresereshumanospequenos,nomeadoscomopigmeus,esímiosantropoidesdediversasnaturezas,inclusivedescritoscomomonstrosimensoseinvencíveis.Onúmeroeonomedasespéciesvariavagrandemente.

Huxley, em seu livro, retoma as descriçõesmais antigas e as descrições confiáveismais recentes,inclusive as deAlfred R.Wallace (1823-1913), o qual, a essa época, estava no arquipélagomalaio,coletandocentenasdemilharesdeespécimes,inclusiverealizandoexperiênciascombebêsorangotangos.Huxley recebia seus relatos em primeira mão e os acompanhava com muito cuidado. Wallace secorrespondiacomDarwin,tendo-lheenviadoumensaio,recebidoemjunhode1858,comumadescriçãominuciosa de uma teoria nova. Darwin reconheceu sua teoria da seleção natural e, portanto, ele éconsideradoseucoautor.96

Huxleyrealizouinclusiveestudosfilológicos,procurandosignificadosmaisprofundosparaosnomesatribuídosaossímios,concluindo,porexemplo,queonome“mandril”erainglêsesignificava“parecidocomohomem”eminglêscastiço.

Osdesenhosqueaparecememtextosantigossãoexaminadosporeledeformacrítica.Areferênciamaisantigaquedizconheceréde1598,deautoriadeFelipePigafetta,queteriabaseadoseusescritosnorelatodeumnavegadorportuguês,EduardoLopes,apóssuaexpediçãoaoCongo97.Nesselivroantigo,oautordizqueaspradariaspróximasaorioZaireestãorepletasdesímiosqueseesmeramemimitarosgestos e as expressões humanas. Seriam duas as espécies descritas no livro.Uma delas, amaior, erachamada“pongo”nalinguagemlocal,eamenorerachamada“engeco”.O“pongo”seriamuitoparecidocomoshumanos,masumanimalperigoso.Eledormiriaemárvores,construiriaabrigoscontraachuvaehavia muitas histórias de enfrentamentos com humanos. Eles teriam matado muitos negros africanos.Apesardediversosatributoshumanos,prosseguiaorelatoantigo,eleseramincapazesdefalaredefazerfogo.No entanto, eles o admiravam pois, ao encontrar um acampamento humano recém-utilizado, eracomumqueospongosseaproximassemesesentassememvoltadoquesobraradafogueira.

O“engeco”Huxleydiziaquesereferiaarelatosdefilhotesdomesmoanimal,quenoGabãoeramchamados “enché-eko”. As confusões entre animais adultos e filhotes eram bastante comuns, aindasegundoHuxley,eteriamensejadodiversasdescriçõesequivocadasdeespéciessupostamentediferentes.Nenhumpongoadultotinhasidocapturadovivoatéaquelemomento(1598),poiseleseramtidoscomomuito fortes e organizados. Usariam clavas para bater em elefantes visando espantá-los, quando elescomeçavamasealimentaremsuaárea.Noentanto,algunspongos jovens tinhamsidocapturadoscomdardosenvenenados.Comoofilhoteandaagarradoàmãe,matando-atinhasidopossívelcapturaralgunsbebêspongos.OlivrodePigafettaaindadiziaque,quandoumpongomorriaemseumeio,osdemaiso

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cobriamcomfolhasegravetos,comoemumritualdesepultamento.Huxleyreproduziuessasdescriçõesdeformacrítica,entendendoquepoderiahaveralgumadistorção

introduzida pela distância, seja no tempo, seja no espaço. Um esforço para localizar nos mapascontemporâneososnomesqueapareciamnaquelerelatofoitambémempreendido,mostrandoqueoquechamamos (hoje) deCamarões, Congo, RepúblicaDemocrática doCongo eGabão são as regiões deondeosrelatosforamtomados.Ospongoseram,naopiniãodeHuxley,nitidamentechimpanzés,descritosem1795comoTroglodytesniger,erebatizadosem1816comoPantroglodytes.Hojesereconhecequeadistribuiçãodaespécieconferecomaqueaparecianasantigasdescrições(figura17).

No entanto, Huxley deixava escapar uma grande descoberta, pois os “filhotes de pongo”, que osnativos supostamente confundiam com uma outra espécie, ao chamá-los de “engeco” ou “enché-eko”,eram de fato uma espécie diferente, descrita apenas em 1929 como Pan paniscus, os hoje famososbonobos, ou chimpanzés pigmeus, muito estudados por seu comportamento e sua maior similaridadegenéticacomaespéciehumana(figura18).

Figura17.DistribuiçãogeográficadochimpanzéPantroglodytes(áreascinza-clarasnomapadaÁfrica)edobonoboPanpaniscus(áreamaisescura),duasespéciesconfundidasatéoséculoXX.

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Figura18.Chimpanzéebonobo.

Huxley discutia ainda os macacos denominados “antropomorpha” por Lineu, descritos comoTrogloditabontii,Luciferaldrovanti,SatyrusTulpiiePyhgmaeuseduardi,queaparecemnoSystemaNaturae,queteriaexageradonasimilaridadedossímioscomossereshumanos,provavelmenteporcontadamaneiracomoospovosdeBornéueSumatrase referemaosorangotangos, tidoscomo“homensdafloresta”. JáBuffon,nosdizHuxley, aoescrever suagrandeobra, especificamenteo livroXIV, teveasorte de examinar um filhote de chimpanzé e ummacaco asiático, mas teve notícia do mandril e doorangotangoapenasindiretamente,porrelatoseleituras.

Muitosrelatosforamoriginadosdotrabalhodenaturalistasholandesesemsuascolôniasdosudoesteasiáticoe,comoconsequênciadasocupaçõesnapoleônicas,omaterial foi levadoparaaFrança,ondediversos esqueletos foram examinados por Geoffroy Saint-Hilaire (1772-1844) e por Cuvier98. Esteúltimo, segundoHuxley, teria descrito um animal originário daquela região como “pongo deBornéu”,confundindooorangotangocomochimpanzé.

Aexistênciadogorilateriasidobemestabelecidapoucosanosantes,apartirdeumrelatopublicadonosEstadosUnidos em1847, umadescriçãominuciosa da anatomia e dos hábitos dessa espécie, quepassavaa ser reconhecidacomodistintadochimpanzé.99Adistinção ocorreria definitivamente depoisqueocrâniodeumanimalmuitomaiordoqueochimpanzéfoiachadoe,cominformaçõesdosnativosdoGabão, reconhecidocomoumsímioantropoidemuitomaior,queosnativosdenominavam“Enge-ena”.Seu descobridor, Thomas Savage, resolveu evitar toda a confusão de nomes e atribuir-lhe um nomeretirado de um antigo relato do périplo de Hanno, o Navegador, um cartaginês que empreendeu umaviagemdoatualMarrocosatéogolfodaGuinénoséculoVa.C.Eleteriaencontradoumenormesímioemuma ilhaafricana,aquedenominougorillas.Essenome foientãoadotadoporSavagecomonomeespecíficoparaanovaespécie:Troglodytesgorilla.

Oprimeirocapítulodo livrodeHuxleyé,pois, aprimeiradiscussãoacercadosgrandesprimatasrealizadadeformasistemática–combinandoelementostécnicosedamodernadivulgaçãocientífica–,naqual são recolhidos os relatos mais importantes, as publicações mais conhecidas, e estabelecidassinonímias, deixandoclaroqueos símios antropoides, alémdogibão asiático, eramoorangotangodeSumatra e Bornéu, o chimpanzé (compreendendo o bonobo) e o gorila africanos. Essa síntese pareceestar na base de uma das maiores confusões estabelecidas sobre a evolução humana. No livro, osesqueletosdessessímiosapareciamumaoladodooutro,tendoumesqueletohumanoaofinal.Tratava-sede uma reprodução de uma ilustração realizada pelo famoso zoólogo e artista BenjaminWaterhouseHawkins(1807-1894)100,apartirdeexemplaresconservadosnoRoyalCollegeofSurgeons,naqualo

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esqueletoinicial,odogibão,tinhasidoampliadoduasvezes(figura19).

Figura19.ReproduçãodosdesenhosdeBenjaminWaterhouseHawkins,feitosapartirdosespécimesreaisdomuseudoRoyalCollegeofSurgeons.Otamanhodogibãofoiampliadoduasvezes.

Essaimagemfoi interpretadacomosendoumaconclusãodarotaevolutivadaespéciehumana,queteriapassadodogibãoaoorangotango,desteaochimpanzé,queteriasetransformadoemgorila,eesteteriaoriginadooserhumano,comoetapafinal.Éevidentequeaimagemtransmitiu–etransmiteatéhoje– uma ideiamuito diferente do que o autor do livro pretendia com ela.Não é de se estranhar que odescobrimento de formas humanas fósseis tenha reposto os símios antropoides nessa “escala danatureza”.

Tendo estabelecido, portanto, quais eram os macacos parecidos com o homem, Huxley passou adescreversuascaracterísticas,queeramsurpreendentementeparecidascomasdossereshumanos.Eletratava de características físicas,mas tambémde detalhes comportamentais, tais como as reações dosbebês orangotangos ao serem amamentados, dados que tinham sido recentemente enriquecidos pelasdescrições de Wallace provenientes do sudoeste asiático. A distribuição geográfica das espécies édiscutidacombaseemrelatoscuidadosos,remetendoafontesecitandoosautores.

Ascaracterísticasdentáriaseramsurpreendentes.Nãoapenasonúmerodedentesdosmacacoseraidêntico ao humano, como também sua distribuição entre os diferentes tipos (a chamada fórmuladentária).Temososmesmosincisivos,caninos,pré-molaresemolaresqueosgrandesmacacos.Olivrode Huxley é, ao mesmo tempo, o primeiro livro de etologia de primatas, dado o cuidado com queselecionaedescreveoshábitosalimentares,reprodutivosedetalhesdabiologiadessasquatroespécies.

Huxley reconheceu que na época havia um razoável conhecimento dos hábitos do gibão, bastanteconhecimentodoshábitosdoorangotango,maspoucosobreoschimpanzés(ebonobos)equasenenhumsobreorecém-descritogorila.Assim,olivrodeHuxleyofereceuumaleituradeliciosaesurpreendentesobreocomportamentodosgrandesmacacos.Éimpossívellê-losemprojetarnasvívidasdescriçõesoshábitosdealgumparenteconhecido.“Osorangotangos,segundoosnativosdyaks,dificilmentesaemdacamaondedormemantesdasnovedamanhãeparaelavoltampertodascincodatarde.”Nachuvaenofrio, eles se cobririam com folhas, em especial a cabeça, e dormiriam em posições idênticas às doshumanos,àsvezessegurandoacabeçacomasmãos.

Na segunda parte do livro é feita uma exposição detalhada da embriologia dos vertebrados,mostrandoassimilaridadesdodesenvolvimentoembrionárioentrediferentesanimais.Emseguida,são

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apresentadosestudosanatômicosdediversosossosedocérebrodossímios(comexceçãodogorila,doqual havia apenas ossos). Os desenhos de Hawkins demonstram com clareza uma similaridadeimpressionante.Osgrandesossosdabacia,ospequenosossosdasmãosedospés,bemcomooaspectoexternoeinternodocérebrosãoapresentadosforadeescala,comosetivessemtodosamesmadimensão,o que aumenta aindamais a sensaçãode similaridade.Emvez de alertar o leitor para a distorçãodetamanho,Huxley inseriuaobservaçãodequeeles tinhamsidofeitosapartirdeexemplares reais,“domesmotamanhoabsoluto”101.

As imagens sobre o cérebro de chimpanzés e humanos são outro momento impressionante. Osdesenhos feitos “comomesmo tamanho absoluto”provocama sensaçãodegrande similaridade e sãoargumentos muito convincentes em defesa de sua tese evolutiva. Mas, mais do que isso, elas sãofacilmenteentendidaspelocidadãoleigo,quesevêdiantedeevidênciasaparentementeincontestáveisdesemelhança.Ela,porsuavez,custaaserexplicadaporoutramaneiraalémdoparentesco.Ofinaldestaparte éumadefesaexplícita emuitoeloquenteda teoriada seleçãonaturalde“Mr.CharlesDarwin”,argumentandoafaltaderazãoparadiferenciaraespéciehumanadequalqueroutranoquedizrespeitoaosprocessosbiológicosdemodificação.102

Aterceirapartedolivroabordaosfósseishumanos,incluindodescobertasdascavernasdeEngis,naBélgica,próximasaLiège,descritasem1833peloprofessorPhilippe-CharlesSchmerling(1790-1836),eoentãorecenteachadodovaledorioNeander,naAlemanha.AanálisedeSchmerling103persegueatradiçãoantropológicadeJohannFriedrichBlumenbach(1752-1840),quetinharealizadoumestudodasdiferençasentrecrâniosdediferentespopulações,estabelecendoumacategorizaçãoderaçashumanasembases osteológicas. Novamente, a análise atribuía aos humanos modernos diferentes graus deproximidade com os fósseis achados e Huxley demonstrava estar de acordo com as conclusões deSchmerling,inclusiveporterrefeitoasmediçõescranianasapartirdeumaduplicata104.

Os crânios humanos aparecem a seguir, sendo reproduzidos um crânio “ortognata”, de um homembranco, e um crânio “prognata”, de um homem negro. Os crânios de povos “primitivos”, como osaboríginesaustralianos,pareciamserosmaiorescandidatosaparentespróximosdocrânioneandertal.Nãotardariaparaqueoargumentodos“parentesprognatas”voltasseaserutilizadoporHuxley.

AreaçãopúblicaaolivrodeHuxleylembramuitooquevemoshojeemdiacomosdadosdabiologiamolecularemseusestudoscomparativosentrehomemechimpanzé.Damesmaforma,asdescobertasemchimpanzésdecomportamentos tidoscomoexclusivamentehumanos–comoa transmissãoculturaleosorrisodorecém-nascido–causamespécieaindahoje,poisnosmostramgrandesemelhançadenossosparentessímiosconosco.Essaeraagrandemensagemdolivro:aorigemdasespéciesnãodependiadaespécieconsiderada.Aorigemdohomemseriaentendidanamedidaemqueseelucidasseaorigemdetodasasdemais.Emoutraspalavras,oserhumanoeraummacaco,nadaalémdisso,aliás,comotinhaconcluídoLineu,aoincluiroserhumanoentreosprimatas.

Seleçãosexualeseleçãonatural

A busca de um mecanismo evolutivo capaz de explicar a evolução humana já havia merecido umapequena referência emAorigemdas espécies, quandoDarwinmencionou a “seleção sexual”, sem seaprofundarnoassunto.Eleescreveu:

Seleção sexual:damesma formacomoaspeculiaridades frequentementeaparecemnoestadodedomesticaçãoemumdossexosesetornamhereditáriasnaquelesexo,omesmofatoprovavelmente

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ocorresobcondiçõesnaturais,e,nessecaso,aseleçãosexualserácapazdemodificarumsexonassuas relações funcionais com o outro sexo, ou em relação com o conjunto de hábitos de vidadiferentes nos dois sexos, como algumas vezes ocorre com os insetos. E isso me leva a dizeralgumas palavras sobre o que eu denomino “seleção sexual”. Ela depende não de luta pelaexistência,masdelutaentreosmachosparapossessãodasfêmeas;oresultadonãoéamorteparao competidor malsucedido, mas diminuição, parcial ou total, de sua descendência. Portanto, aseleçãosexualémenosrigorosadoqueaseleçãonatural.Geralmente,osmachosmaisvigorosos,aqueles que estão mais bem adaptados para as condições em que vivem na natureza, deixarãomaiordescendência.Mas,emmuitoscasos,avitóriadependenãodeumvigorgeral,masdearmasespeciais,confinadasaosexomasculino.105

Valeapenadestacaressetrechodoiníciodocapítulosobreseleçãonaturalparalevantarumaoutrasuspeitasobreaorigemdeumaconfusãomuitofrequente,qualseja,entender“maisbemadaptado”comoo“maisforte”,convertendo,assim,aideiadosucessoreprodutivodosmaisbemadaptadosna“leidomaisforte”.Aideiadaseleçãosexualseriadesenvolvidamaisadiante,emumlivropublicadoapenasem1871,equeabordavaexplicitamenteocasohumano,Aorigemdohomem.Nesselivro,Darwincomeçapor abordar a seleção sexual, com miríades de exemplos, alguns deles retomados de A origem dasespécies.Suaideiaémostrarcomosetratadeummecanismopraticamenteuniversalnanaturezaequepoderiaexplicaradiversidadedeformashumanas,baseadasnapreferênciasexual.

Noentanto,a seleçãosexualeramenos rigorosadoqueaseleçãonatural,aqual,paradoxalmente,não dependia de força física, mas de adaptações sutis, como a capacidade de resistir a condiçõesdesérticas. A luta pela existência que um cacto deve empreender depende, basicamente, de suaresistência à inclemência do sol e à falta de água. Seu sucesso reprodutivo, além disso, depende dacapacidade da parte masculina da flor produzir grande quantidade de pólen, ou atrair polinizadoreseficientes.Ocaráter ativoda fecundaçãonos animais,que,porvezes,dependedecomportamentosdecorte complexos, seria alvode escrutínio adicional à seleçãonatural.Essesdoisprocessos, ao seremapresentadosnomesmocapítulo,podemterinduzidoumacompreensãodistorcida.

EmAorigemdasespéciesDarwindescreveu,inicialmente,algunsexemplosdeseleçãosexual,paradepois se concentrar naquele que seria o mecanismo mais severo, a seleção natural. Não é de seestranhar,portanto,queDarwinestivesseestimuladoaescrevermaissobreseleçãosexualmaisadiante,aindamaisporqueessaera,segundoele,achaveparaentenderaevoluçãohumana.Issoexplicaarazãodeterestudadoasdiferentespopulaçõeshumanas,apartirdofamosoBlumenbach,aquemeradedicadoum dos livros que consultava enquanto redigiaA origem das espécies:Researches into the PhysicalHistoryofMankind,deJamesPrichard (1786-1848).Trata-sedeumautorextraordinário,que reunirainformações sobre centenas de povos e línguas faladas no globo, delimitando-as geograficamente. Oprojetográficoeramuitoarrojado,emdoisvolumes, incluindopranchascoloridasdosmaisdiferentespovos(figura20).

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Figura20:ReproduçãodeimagensdolivrodeJ.Prichard,daediçãode1826,queretratamhomensorigináriosdePapua(esq.),ilhasSandwich(centro)eEtiópia(dir.).

No exemplar pessoal de Darwin deste livro, agora guardado na biblioteca da Universidade deCambridge,háumacuriosaanotação,realizadaemdataanterioràpublicaçãodeAorigemdasespécies:“Comomeulivroseráparecidoaeste”.Defato,éumlongotratado,emdoisvolumes,queinvestigaasdiferentes formashumanase suaorigem,apartirdeestudoscomparativos.Porexemplo,discute seasdiferentes raças de cães descendem de um mesmo tipo ancestral, ou se poderiam ser resultado dedegenerações de diferentes tipos ancestrais, retomando a discussão de Blumenbach. Assim escreveuPrichardnocapítuloreferenteàadaptaçãolocal:

Quando espécies particulares são comparadas umas às outras, as várias formas se parecemmarcadamenteemrelaçãoaumúnicotipodeorganização.Amaissutildiferençaquedemarcaasespécies individualmente parece se perder na uniformidade morfológica do gênero a quepertencem,esurgeumasuspeitadequeelastodasprocedemdeumaformaoriginal.[…]Serámaisprovável que asmodificações foramposteriores à suaorigem, e queogênero, em suaprimeiracriação, era único e uniforme, e depois se tornou diversificado sob as influências de agentesexternos?

Qualquer que seja a suposição verdadeira, a separação de famílias e gêneros em espéciesparticulares,eadistribuiçãodessasespéciesnoslugaresparticularesondevivem,deacordocomsuas propriedades físicas, é evidentemente parte de uma provisão da natureza para repovoar aTerracomhabitantesorganizados,colocadosemcadalocaldeacordocomaadequaçãoasoloetemperatura,asuasestruturasehábitos.

Mas por que deve-se supor que a influência dessa lei de adaptação tenha parado aqui?Nãoseriaprovávelqueasvariedadesqueflorescemforadoslimitesdeumaespécieparticularsejamadaptações complementares de estrutura às condições e circunstâncias sob as quais aqueleconjuntodeseresestádestinadoaexistir.Variedadesseramificamdaformacomumdasespécies,damesmaformaqueespéciesseramificamapartirdaformacomumdeumgêneroúnico.Porqueumaclassedefenômenospodeocorrersemfinalidadeouutilidade,ummeroefeitodecontingênciaouacaso,maisdoqueooutro?

[…]dificilmentepoderemosevitarconcluirqueavariaçãodosanimaisocorredeacordocomalgumasleis,pelasquaisaestruturaestáadaptadaàscircunstânciaslocais.106

Após discutir exemplos em algumas espécies de animais, Prichard disse não ser difícil encontrar

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exemplosnaespéciehumana,epassouadiscutircomoapeleescurapermiteviversobosolescaldanteda zona tórrida. Lembrou como sofrem os homens brancos em locais muito quentes, ao dizer que aextradição para colônias penais da zona tórrida equivalia, para os europeus brancos, a uma pena demorte.Issojustificaria,paraalguns(nãoparaPrichard),orecursoàescravidãodeafricanosnoCaribe,diante da incapacidade de trabalho do braço europeu107. E assim, após incluir o ser humano em suasconjecturas,concluiPrichard:

[…]adoutrinadavariação,oudesvio,nasraçasdeanimaisemgeral,parecenosconduziràconclusão de que ele não é meramente um fenômeno acidental, mas parte de uma provisão danaturezaparafornecer,acadaregião,umnúmeroadequadodehabitantes,oumodificaraestruturae constituição da espécie, de tal forma que são produzidas raças adaptadas a cada modo econdiçãodeexistência.Amaiorpartedesseplanodeadaptaçãolocalpareceseracompanhadadamodificaçãooriginaldogêneroemdiferentesespécies.Comooprocessoécontínuoedirecionadoparaomesmofim,aramificaçãodeumaespéciecriadiversasvariedades.108

Emseguida,Prichardrecapitulouadistribuiçãodasmaisdiferentespopulaçõeshumanas,concluindoqueoclimapareceseravariávelmaisimportanteaexplicaracordapele.NaÁfrica,queeleacreditavaserolocaldeondeaespéciehumanaoriginalmenteprovinha109,otrópicodeCâncerassinalavaolimitesuperior de distribuição e, ao redor de todo o globo, na região intertropical, a pele escura era umaconstante.Eleassinalavaquearegravaliaapenasparalocaisquentes,pois,mesmoemlocaistropicais,masdealtitude(citandoazonaandinaeoMéxico),acordapelenãoeratãoescura.MasPrichard,comsuaexperiênciamédica,discutiaexplicitamentecomoasmudançasintroduzidaspeloambientenãoeramincorporadasaosdescendentes,aproveitandoacordapele.

Elediziaqueoseuropeusqueviviamemambientesquentespormuitotempodesenvolviampelemaisescura,masseusfilhosnasciamsemomenor traçodemelanismo.Elecitouaindacasosdealbinismo,mostrandocomoeleerarecorrenteemcertasfamílias,semqualquerrelaçãocomotipodeclimaemquevivessem.Assim, a doutrina da variação carecia de ummecanismo hereditário, que pudesse explicartantoavariaçãocomosuatransmissãohereditária.DarwinnãopodiaprescindirdeumaeGregorMendel(1822-1884)trabalhava,quaseaomesmotempo,emsuaprópria.

AteoriahereditáriadeDarwin

Oanode1865éemblemáticodatrajetóriadasteoriasgenéticasdeMendeleDarwin.Em8defevereiroe8demarço,MendelapresentouseutrabalhosobrehibridizaçãoemervilhasefeijõesnoencontrodaSociedadedosNaturalistasdeBrünn(hoje,naRepúblicaTcheca).Em1ºdemaiodomesmoano,ThomasHuxley escreveu a Darwin dizendo ter ouvido rumores de que seu opus magnum já teria tido aescrituraçãoterminadaequeestariasendopreparadoparapublicação.ElesereferiaaolivroVariationsofAnimalsandPlantsUnderDomestication,quesairiaemdoisvolumes,contendoumcapítulosobresua “teoria dos pangenes”, que explicaria, de maneira conclusiva, a descendência com modificação,apresentadaemseulivrode1859,Aorigemdasespécies.Defato,Darwinrespondeupositivamenteelheencaminhouoesboçomanuscrito,afimderecebercomentários,oqualpassariaafazerpartedeseunovoegrandelivro,emfinaldeescrituração.

Darwin concluía a redação iniciada quase dez anos antes, em 1857, quando escreveu um longomanuscrito sobre hibridismo, que faria parte de seu “grande livro sobre as espécies”. Esse longomanuscrito foi publicado apenas em 1975110, mas seu conteúdo foi utilizado tanto em A origem das

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espécies(1859)comoemVariationsofAnimalsandPlantsUnderDomestication(1868)eemEffectsofSelfandCrossFertilizationintheVegetableKingdom(1876).

Maso“longomanuscrito”teveinícioem1856,comduasprimeirasseçõessobrevariaçõesnoestadodedomesticação,queacabaramsendoutilizadasnolivrode1868.Aterceiraseçãoerajustamentesobrea possibilidade de cruzamentos na natureza entre todas as espécies naturais e a extraordináriasusceptibilidadedosistemareprodutorainfluênciasexternas.Estapartedomanuscrito,quedevetersidoterminada ao redor de dezembro de 1856, ressalta o famoso trabalho de 1849 deCarl Friedrich vonGärtner(1772-1850)111.DizDarwin,sobreasquestõespráticasenvolvidasnahibridização:“Semumaúnicaexceção,todosessesnaturalistas(oshibridizadores)diversos,osquaisdevotaramvidasinteirasaoassunto, insistem da maneira mais enfática na necessidade absoluta de isolamento perfeito da florcastrada”.Nesseponto,eleinseriuumanota,naqualselê:“v.otrabalhodeGärtner,omaisadmiráveldetodososobservadoresdoassunto,esuagrandeênfasenotemaemsuaobraBastardzeugung”112.

Darwinapontoucomoevidênciadaextraordináriasusceptibilidadedosórgãosdosistemareprodutora influências externas a impossibilidade de reprodução de espécies em cativeiro: “Por que muitosanimais recolhidos ainda jovens, perfeitamente amansados, saudáveis e longevos, não procriam, éimpossívelexplicar.Sósepodeatribuiramudançasnassuascondiçõesdeexistência”.Emseguidaelecitou relatóriosde jardinszoológicose associaçõesdecriadoresdeaves.Umexemplodado foiodoquati“doParaguai”113,quenunca tinhasidocriadoemcativeiro,emboramantidoemcasais.Masénaobservação de plantas que aparece mais perfeitamente a argumentação da sensibilidade dos órgãosreprodutoresàscondiçõesdeexistência.Darwinfaloudesuasprópriasexperiênciasedasdaquelesqueafirmavamseroexcessodeadubaçãonitrogenadaarazãodaesterilidade.Aadubaçãoexageradalevariaagrandesfloradassemfrutosesementes.Novamente,elecitouaautoridadenoassuntodehibridizaçãodevegetais:“Gärtnertambémfazmençãoaoexcessodefloresdealgumasespéciesestéreis,ecomparaofato ao excesso de flores em híbridos estéreis; em outros casos, muito adubo, especialmente seacompanhadodemuitocalor[…],impedeafloração”.Regarasplantasemperíodosimprópriostambémconduziriaàesterilidade.114

Édesenotar,portanto,queDarwin liaomesmoautorqueMendel,aomesmo tempo.MendeldeuinícioaosexperimentoscomaservilhasdogêneroPisumnoanode1857,oquefazsuporque,noanoanterior, lia o autor mais importante no assunto. Enquanto este, como veremos adiante, foi levado aconcluirqueGärtnervialimitesrígidosentreasespécies,Darwinprocuravanamesmafonteindíciosdocontrário,ressaltandoqueospróprioshibridizadoresconheciamacapacidadeilimitadadepolinizaçãodas plantas. Essa é uma das características intrínsecas do empreendimento científico: ao observar anatureza, emesmo ao ler um texto, é impossível que o cientista deixe de projetar suas convicções einteresses.

Mais adiante no manuscrito, na seção especificamente sobre hibridismo, Darwin sintetizava oprogramadepesquisassobreoshíbridose,numclaroposicionamentointelectual,antecipavasuaopçãoteórica.Aterceira,decincoquestões-chave,eraassimdefinida:

Asdiversas leisquegovernamograueo tipode infertilidadenoprimeirocruzamentoenosdescendentes híbridos, nos casos em que eles são acasalados entre si ou com um dos tiposparentaisoucomumaespéciedistinta,indicamqueasespéciesforamcriadascomessatendênciaàesterilidade de modo a mantê-las separadas; ou a esterilidade parece ser uma consequênciaacidentaldeoutrasdiferençasemsuaorganização?Eupensoqueosnumerosos fatos,que serãoapresentados,claramenteapontamparaessasegundaalternativa.115

Mais adiante nomanuscrito, que foi utilizado emdiversas publicações (hámarcações indicandoofatoemdiversaspassagens,inclusivepáginascortadas),aparecemaslinhasgeraisdasleisdevariação.

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Neste capítulo de seumanuscrito, Darwin reservou uma seção para tratar da “prepotência” e, poucoadiante, da telegonia, citandoo caso relatadoem1821,por lordeMorton, da égua árabeque teveumdescendentedeummachodazebraquaggaanosdepoisdeumacópula.Estecasoémaisimportantedoqueseuaspectobizarroeprosaicopossampossivelmente indicar,poiscomprovariaosefeitosa longoprazo de uma cópula nos animais, o que seria “universalmente admitido”. Em outras palavras, asdificuldadesdahibridizaçãocomanimaistalvezfossemmenoresdoquepareciaàprimeiravista,dadoqueos efeitos de uma cópula poderiamaparecer anos depois do cruzamento.Opotrinho zebrado era,alémdomais,perfeitamentefértil,oqueindicavafaltadebarreiraentreasespécies.Comoanunciado,Darwin concluiu suas 145 páginas manuscritas sobre hibridização dizendo que a literatura apontavaclaras evidências de que a esterilidade aparece comoum subproduto acidental da reprodução,muitasvezes em espécimes da própria espécie. Em outras palavras, duas espécies diferentes poderiam terdescendentesférteis.

O bem conhecido incidente com o recebimento do trabalho de Alfred Russel Wallace em 1858mudariaacronologiadaconstruçãodolongomanuscrito,cujaredaçãofoidefatointerrompida.Assim,apósbreve intervalo,começouaserpreparadoAorigemdasespécies, sem tempo suficienteparadarforma adequada às notas (como a reproduzida há pouco, só utilizada em 1876) e a todos os fatosarregimentadosemfavordastesesevolucionistas.Assim,édecompreendercomoumaseçãoespecíficasobresuateoriagenéticaacessórianãofoiescritaàquelaoportunidade.Maselaestavapresentenoseulivrode1868,seuopusmagnum,comoodefiniraHuxley.

Darwin adiantava, nesse livro, uma nova interpretação dasmonstruosidades no reino animal e dopelorismo,umtipodefloraçãoanormal,noreinovegetal:

Nessavisãodanaturezadasflorespelóricas,etendoemmentecertasmonstruosidadesnoreinoanimal, nós devemos necessariamente concluir que os progenitores da maioria das plantas eanimaisdeixaramumaimpressão,capazderedesenvolvimento,nosgermesdeseusdescendentes,emboraestestenhamsido,desdeentão,profundamentemodificados.116

Adiantandoa terminologiaquedepois seriautilizadaporAugustWeismann (1834-1914), emoutrocontexto,Darwindiziaqueogermefertilizadodeanimaissuperioresésubmetidoaumaamplagamadeinfluênciasdesdea“célulagerminal”atéaidadeavançada,equeéquaseimpossívelqueumamudançaalterealgumdospaissemdeixaralgumamarcanogerme.Eleseriacoroadoporcaracteres invisíveis,oriundosdosdoissexos,do ladodireitoeesquerdodocorpo,eporumalonga linhagemancestral,doladomaterno e paterno, de centenas ou talvez atémilhares de gerações. Essamultidão de caracteresestariaprontaasedesenvolver,maspoderiaserfacilmenteperturbadaporquaisquercircunstâncias117.Adescendênciamodificadadasplantasenxertadasseriaoutroexemploaserexplicado.

Mas havia uma forma de transmissão hereditária “esquisita”, reputada como reconhecidamenteexcepcional, queDarwin tinha obtido em sua própria chácara. Seus experimentos com bocas-de-leão(Anthirrinusmajus) comprovaram o que já fora encontrado por outros pesquisadores, inclusive porCharles Victor Naudin (1815-1899), com outra planta (Linaria)118. Os resultados que chamaram aatenção de Darwin, por sua “esquisitice”, se alinhavam com os deMendel: na primeira geração docruzamento entre bocas-de-leão comuns e pelóricas, 100 por cento dos híbridos eram perfeitamenteiguais à forma comum. Este resultado havia sido encontrado por outros pesquisadores, inclusive emoutras espécies.Ao seremdeixados se autofecundar, foi possível recuperar 127plantas, das quais 88eram perfeitamente normais. O pelorismo aparecera na segunda geração, em nada menos do que 37plantas119.Emoutraspalavras,aformadetransmissão“esquisita”,paraDarwin,eraaquelaqueobedeciaà“leiválidaparaPisum”,comoMendelachamava,tratando-acomo“merahipótese”.120

ParaDarwin,aformadetransmissãodecaracterísticashereditáriasnasquaisaprimeirageraçãonão

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apresentaformasintermediárias,easegundageraçãoapresentacercade25%dedescendentesparecidoscomumadasformasparentais,eraumaexceçãoàregracomum.Esta,porsuavez,apareciaclaramenteafirmada no capítulo XXVII do livro de Darwin de 1868, Variation of Plants and Animals underDomestication.

Finalmente, vemos que sob hipótese da pangênese a variabilidade depende de dois gruposdistintosdecausas.Primeiramente,adeficiência,superabundânciaoutransposiçãodegêmulas,eoredesenvolvimento daquelas que ficaram dormentes por longos períodos; as próprias gêmulaspodem não ter tido nenhumamodificação,mas essas alterações dão conta de explicarmuito daflutuação da variabilidade.Demaneira secundária, a ação direta das condiçõesmodificadas naorganização, e no aumento do uso ou no desuso das partes; neste caso, as gêmulas sofrerãomodificaçãoseaspartessemodificareme,sesuficientementemultiplicadas,suplantarãoasantigasgêmulasedarãoorigemanovasestruturas.121

Essesdoisgruposdistintosdecausasexplicariammuitodoqueseconheciadeherança.Emessência,aherançadependiadeumamodificaçãodaspartículasquedeterminavamaparte,queremquantidade,queremqualidade.Poucasgêmulas,comoocorreriacomasamputaçõesnosanimaisouosenxertosnasplantas,oumuitasgêmulas, comoocorria coma superalimentaçãoouoexcessodeadubonasplantas,determinariammodificaçõesnareproduçãodoorganismo.Mas,emtermosqualitativos,seoorganismofossemodificadoporalgumacircunstânciadomeio,comousoaumentadodaspartesou,poroutrolado,seudesuso,issotrariarepercussãoimediataparaaspartículashereditárias.Modificadas,elaspoderiamsemultiplicaresuplantaraspartículasantigas,produzidasanteriormenteàmodificação.

Asmodificações das partículas estariam sujeitas periodicamente a um tipo de revigoramento, queDarwin associava ao conhecido fenômeno da reversão. Esta seria a norma geral a explicar o padrão“esquisito” de reaparecimento, em uma parte dos descendentes dos híbridos, de uma das formasparentais.

Essa “hipótese provisória” foi alvo de repetidas saudações e testes. AlfredWallace deu as boasvindas ao artefato teórico do companheiro, que não recebeu amesma recepção calorosa da parte deHuxley. No entanto, nos diz o saudoso Newton Freire-Maia122, ainda em 1903, o livro do famosoneolamarquista francêsYvesDelage (1854-1920), sobrehereditariedade,nãocitaMendelnemmesmouma única vez, mas faz rasgados elogios à pangênese de Darwin. Assim, vemos que as ideias doevolucionistaJeanBaptistedeMonet,oCavaleirodeLamarck(1744-1829),ferrenhoopositordeCuvier,tinhamresistidoaotempo,masacustadeumapossívelcompatibilizaçãocomasideiasdarwinianasdeherança,queteria,contudo,existênciaefêmera.

DarwineMendel:perspectivasopostas?

EoqueteriaditoMendeldateoriadepangênesedeDarwin?Mesmoseemfevereirode1865elanãotivesse sido escrita demaneira formal, já fora antecipada emA origem das espécies, pelomenos demaneira funcional. Mendel, que possuía a versão alemã desse livro, escreveu um parágrafo em seutrabalhopublicadoem1866quemereceatenção.Disseele:

Seamudançadascondiçõesfosseaúnicacausadavariabilidade,dever-se-iaesperarqueasplantas cultivadas,mantidas durante séculos sobquase idênticas condições, tivessemnovamenteatingidoaconstância.Comosesabe,istonãoocorre,umavezqueprecisamenteentreelaséquese

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encontramnãosóasformasmaisvariadas,comotambémasmaisvariáveis.123

EmboraoprimeirogrupodecausasdavariabilidadedeDarwinhouvessesidoformalmenteexpostoapenasem1868,osegundoeramaisconhecido,podendoserclaramentedivisadoemseuAorigemdasespécies. Portanto, deve-se admitir a possibilidade deMendel estar embutindo uma crítica aDarwinnessetrecho.Dequalquerforma,sejacomofor,nãorestadúvidadequeambosoperavamemsistemasmuitodistintos.AspartículashereditáriasdeMendeleramessencialmentedistintasdasdeDarwin.ErnstMayr (1905-2005)124 chamou de “herança dura” o modelo de Mendel e, por oposição, de “herançamacia”125omodelodeDarwin.Asgêmulaserampartículasquesemodificavamplasticamente,voltandoeventualmenteàformaoriginal,aosabordascircunstâncias.

Não espanta, portanto, que ainda em 1903 a teoria hereditária de Darwin fosse saudada emcompêndios de hereditariedade por cientistas evolucionistas. Herança e evolução estavamintrinsecamente unidas e as ideias deMendel teriam que vencer muitos obstáculos para mostrar suacompatibilidadecomumavisãoevolutivadomundobiológiconasprimeirasdécadasdoséculoXX.

William Bateson (1861-1926) cunhou o termo “genética” ao descrever a elaboração de GregorMendel com seu trabalho sobre ervilhas. Segundo ele,Mendel teria tido pouca sorte ao publicar seutrabalho em 1866, justamente quando a comunidade científica discutia as decorrências do trabalholuminar de Darwin de 1859, o livro A origem das espécies. De fato, como vimos, a discussão daevolução, em especial a humana, magnetizava a atenção do público naqueles anos. Huxley, Lyell,Wallace,Darwinemuitosoutros trabalhavamativamentenoassunto.Ummecanismoevolutivodeveriaestarbaseadoemumcorrespondentehereditário,ouseja,haviaumentrelaçamentoobrigatórioentreasideiasdeherançaeevoluçãonocontextocientíficodemeadosdoséculoXIX.Emoutraspalavras,seummecanismohereditáriofossecomprovado,ele trariaarespostaparaaevoluçãodemaneiraobjetiva:asucessão das gerações ocorre sem nenhuma modificação? Esta era a pergunta crucial. Qualquermodificação,porpequenaquefosse,indicariaumapossibilidadeevolutiva.NomodelodeMendel,comovimos,nãohavianenhumapossibilidadeaparente.

Assim,nãoédifícilentenderqueexistiaumademandaporumateoriadaherançaparticular,ouseja,asideiasnessecamponãopoderiamserdissociadasdasperspectivasevolutivasqueapareciamcomoagrandenovidadedoperíodo.Nãoquefaltassemideiassobreherança;acomunidadecientíficacareciadeumateoriaquepudesseincorporarasnovasdemandastrazidaspelasnovidadesdateoriaevolutiva.Nadadesprezível,aextensãodaperspectivaevolutivaaoserhumano,queestevepresentedesdeo iníciodaformulaçãodarwiniana, adicionava importância a umpossívelmodelopara explicar a herança e tinhasidopercebidadesdeoséculoXVIII126,comotrabalhodeJ.G.Koelreuter(1733-1806),queafirmavaque, mesmo entre os humanos, a hibridização127 poderia explicar a maior ou menor fertilidade dosorganismos128.

Mendeleosurgimentodenovasespécies

EmboraseafirmecomfrequênciaqueotrabalhodeMendelpassoudespercebidopelomundocientíficoaté a virada do século, há historiadores que afirmam o contrário, dizendo que as ideiasmendelianasforam deliberadamente repelidas. A indiferença quase solene reservada ao trabalho deMendel seriaprevisível,atomarohistóricodaspesquisassobrehibridização.Muitosdeseuscontemporâneosteriamtomadoseutrabalhocomosendouma“tentativaconfusadeinvestigaraorigemdasespécies”,poissuaênfaserecaíasobreoaspectoconservativodaherança,semacreditarnapossibilidadedeoriginarnovas

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espéciesapartirdahibridização129.Agrandequestãosubjacenteaostrabalhosdehibridizaçãodiziarespeitoàpossibilidadedecriarou

extinguirespéciesnovas,emverdadeiraaproximaçãoexperimentaldaquestãodaorigemdasespécies.Até que ponto pode-se inovar no mundo natural? Esta era a questão central investigada peloshibridizadoresdesdeoséculoXVIII,quealiavamestudospuramenteteóricosaproduçõestecnológicas.Os trabalhos de Koelreuter comprovaram que os híbridos portavam elementos tanto da contribuiçãomasculina (pólen) quanto da feminina, e tinham sido planejados para investigar a possibilidade decriaçãodenovasespécies.Diversasespéciesdetabacoforamporeleinvestigadas–oquedemonstravaessaaliançaentrequestõespuramenteteóricaseaplicaçõescomerciais–,maselementosquantitativosdevariação contínua (como morfologia floral) mostravam híbridos intermediários em muitas espécies.Mesmoassim,essasinovaçõesquantitativasforamtomadascomoevidênciasdapossibilidadedecriaçãode novas espécies pormeio de cruzamentos planejados, que apenas repetiriam processos naturais, osquaispromoveriamaconstanteorigemdenovasespécies.

Um bem-sucedido horticultor inglês, Thomas Andrew Knight (1759-1838), que estabeleceu osprocedimentos básicos para realização de cruzamentos verdadeiros entre variedades de ervilhas,desenvolveunoiníciodoséculoXIXavariedadechamada“ervilhadoce”,queestáatéhojeàvendaemfreezersdesupermercados,alémdevariedadesdemorangos,maçãs,perasemuitosoutrosvegetais.Suasilustraçõesdenovoscultivares,comoPomonaherefordiensis,umanovamaçãamarelacomumamanchaavermelhada,apareceramemumapublicaçãode1811,disputadaatéhojeporantiquáriose leiloeiros.Foielequeestreou,em1787,oestudodecruzamentosdeervilhasvisandoaplicarseusresultadosemmaçãs, cerejas e outras espécies de interesse econômico. As espécies arbóreas se tornam produtivasapenasapósalgunsanos,oqueinviabilizaarealizaçãodecruzamentos;aservilhas,poroutrolado,comum ciclo anual, permitem acelerar enormemente tais estudos. As possibilidades de criar essas novasformas passaram a ser estudadas em ensaios comoutras espécies, de ciclomais rápido. Pelo fato deserem anuais e de possuírem linhagens puras, além de possibilitarem cruzamentos verdadeiros commuitas linhagens conhecidas, as ervilhas foram escolhidas porKnight comomodelo experimental. Emoutrostermos,mesmotendoemvistaaplicaçõestecnológicas,aervilhatinhasidoescolhidacomoplantaexperimentalmuito antes deMendel. Knight recebeu, em 1806, amedalha Copley, uma comenda queDarwintambémreceberiaquasesessentaanosdepois.

Defato,em1822,foipublicadonaInglaterraumresultadodecruzamentodeervilhasrealizadoporJohnGoss130, que antecipava de alguma forma os resultados deMendel. O cruzamento entre ervilhasbrancas e a variedade produzida por Andrew Knight, chamada “anã-azul”, tinha como resultado, naprimeirageração,apenaservilhasbrancas.Deixadasaseautopolinizarem,asplantas“anãs-azuis”tinhamapenaservilhasdomesmotipocomoresultado.Noentanto,aoautocruzaraservilhasbrancasdaprimeirageração,pôderecuperarnãosógrandequantidadedeervilhasbrancas,comotambémalgumaservilhas“anãs-azuis”131.

Taisresultados,emboraapresentadosinicialmenteapenasaoshorticultoresdaépoca,nãopassaramdespercebidos aos teóricos da hereditariedade, mesmo que estes buscassem modelos mais amplos egeneralizaçõesmaisabrangentes.Os trabalhosdeAndrewKnight foramtranscritosnosanaisdaRoyalSociety, de maneira a torná-los conhecidos da comunidade científica. O oferecimento de prêmiosespecíficosatrabalhossobrehibridizaçãoqueincluíssemconsequênciasparaaagriculturaéindicativoda demanda por esse tipo de esforço conciliatório. Em 1761, a Academia de Ciências de SãoPetersburgoinstituiuumprêmioquefoiganhoporLineu,porseustrabalhossobrehibridização,comoobem-sucedidocruzamentodeduasasteráceas,umaamarela(Tragopogonpratensis)eoutradecorlilás(Tragopogonporrifolius), produzindoumanovavariedadehíbrida. Suas sementes foramapresentadascomo evidência da hibridização, não sem certa desconfiança de Koelreuter, que deveria verificar a

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veracidadedoanúnciodeLineu.EsteacreditavaqueasordenstaxonômicassuperioreseramobradeumCriador,masqueasformashíbridastinhampassadoacriarcombinaçõesnovas,ideiaqueafrontavaascrenças de Koelreuter, para quem a fertilidade dos híbridos era um completo e incompreensívelcontrassenso132.

Aspesquisassobrehibridização

Ainduçãoapesquisassobrehibridizaçãoseacentuounoséculoseguinte.Prêmiosforaminstituídospordiversasacademias,como,porexemplo,aAcademiadeCiênciasdaHolanda,em1830.Odesafiodizia:“Oquenosensinaaexperiênciasobreaproduçãodenovasespéciesevariedadesapartirdocruzamentoartificial compólenentre floresdiferentes, equeplantasdevaloreconômicoeornamentalpodemserproduzidasdessaforma?”OprêmiofoiganhojustamenteporCarlFriedrichvonGärtnerem1837,queanosdepoisescreveriaumlongolivrosobreoassunto,oqualsetornouumareferênciabásicanaárea,como vimos, estudado por Darwin e Mendel. Ele tinha realizado cerca de 10 mil cruzamentos,envolvendoaproximadamentesetecentasespéciesdiferentes,aolongode25anos,estabelecendoalgumasconclusões importantes.AlémdeconfirmarmuitosresultadosdeKoelreutersobreosexonosvegetais,ele concluía, como lei geral que se estendia a animais e vegetais, que os pais não transmitem suascaracterísticas de maneira inalterada para sua descendência. Alguns entendem que ele prenunciavaclaramenteapossibilidadeevolutiva;outros, aocontrário, afirmamque suasconclusõesnãopoderiamapoiarumateoriaevolutiva.

De certa forma, as conclusões sobre a natureza dos híbridos tinham como justificativa asrepercussões econômicas do possível desenvolvimento de novos cultivares, mas, ao mesmo tempo,potencialmentepoderiamresponderaquestões-chavesobreapossibilidadedaorigemdasespécies.Paraalgunshistoriadoresmuito importantes,Mendel,na realidade, teriapoucoavercomomendelismodoséculo XX, pois ele não perseguia uma teoria para a hereditariedade, mas seguira a tradição doshibridistasdeseutempo,queprocuravamporconsequênciasevolutivasda(im)possibilidadederomperas barreiras entre as espécies133.O trabalho deMendel sinalizava para amanutenção dos limites dasespécies,emoposição,nãodetodoimplícita,àpossibilidadedaorigemdenovasespécies.

Nopenúltimoparágrafodeseutrabalhopublicadoem1866,MendelescreveuqueGärtnertinhasidolevadoaseoporàopiniãodosnaturalistasquepretendiamapontarafaltadeestabilidadedasespéciesvegetais como evidência da evolução das espécies. Para Gärtner, existiriam limites fixos que nãopoderiam ser transpostos e a esterilidade seria a evidência desses limites. Mendel e Darwin nãoconcordavamsobreesseaspecto.Aofinaldeseutrabalho,ondeélícitoressaltaraquiloqueneleoautorvêdemaisimportante,Mendelnãofaladasleisdaherança,masdasconsequênciasdosexperimentosdehibridização para a possibilidade da evolução das espécies. Uma indicação de que duas mentesprivilegiadas tinham interesses parecidos, tiveram acesso a umamesma base bibliográfica e a dadosempíricossemelhantes,mastiraramconclusõesdiametralmentediferentes.Issonosdizmuitodoqueéaciência.

FoiopróprioBatesonqueafirmouque,tivessetidoDarwinconhecimentodostrabalhosdeMendel,ahistóriadaBiologiamodernateriasidoabreviadaemcinquentaanos.Trata-sedeumaversãoequivocadadoproblema,dopontodevistahistóricoinclusive,alémdeumainjustiçaparacomMendel.Esteteve,reconhecidamente,contatocomasobrasdeDarwin,eesteveinclusivevisitandoLondres,semcontudopensaremvisitá-lo.MasessecontatonãosignificoumuitoparaaBiologiamoderna.E,defato,DarwinconheceuosresultadosdeMendelechegouinclusiveacitaroartigonoqualtiveranotíciadelesemseus

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livros. Essa versão equivocada, do ponto de vista epistemológico e histórico, tem uma profundaimportânciaparaoensinodaBiologia134.

Os pensamentos de Lamarck e Darwin terminaram o século XIX ainda vivos, mas em ritmosdiferentes.Aperspectivalamarquistatomavaosseresvivoscomocapazesdeumritmoimpressionantede transformação. Uma baleia era vista como uma forma derivada do aperfeiçoamento de répteismarinhos(gráfico1).

Gráfico1.Perspectivalamarquistadeevoluçãodosseresvivos,naqualficaevidenteotransformismovistocomoaperfeiçoamento.OorganismoIseriamaisaperfeiçoadoqueoorganismoII.

Aprimeiradécadado séculoXXassistiu aodeclíniodasperspectivas lamarquistas.Logodepois,mesmoqueemmeioaumprocessoalgoconflituoso,dadoqueacompatibilizaçãodomendelismocomodarwinismonãofoifácil, tampoucoimediata,começouaascenderummodeloalternativo.Abaleia, talqualpreviraDarwin,seriadescendentedemamíferosterrestres,ouseja,a“doutrinadavariação”dequenosfalavaPrichardtinhaseestabelecidoconfortavelmentenoedifíciodaciência(gráfico2).

Os erros e acertosdemuitos cientistasmudaramprofundamenteoque se entendiapor natureza.Ofinalismo e a perfeição, características quase indiscutíveis do mundo natural no século XVIII, nãoresistiram ao século XX. Hoje, o finalismo ou suas versões mais sofisticadas de teleologia sãoconsideradosabsolutamenteinúteisparaageraçãodeconhecimentocientífico.A“doutrinadavariação”,poroutrolado,atravessariaoséculoganhandoaformadeteoriasevolutivas,queoséculoXXsofisticouenormemente.EntenderaBiologiaatual,decertamaneira,demandaentenderaevoluçãobiológica.

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Gráfico2:Perspectivadarwinistadeevoluçãodosseresvivos,naqualficaevidentearelaçãodeparentescoentreosseresvivos,quesediversificammantendoancestraiscomuns.

Quando Darwin publicou seu A origem das espécies, duas críticas parecem tê-lo afetadoparticularmente.Umadelas se referia ao tempo geológico, considerando suas estimativas como sendomuito dilatadas e discutíveis. De fato, ele antecipara uma estimativa objetiva que se mostraria nadamenosdoque200milhõesdeanosmais“jovem”doqueelepensava.Aoutracrítica se referiaà suaprevisão de que a baleia descendia de mamíferos terrestres, e não de répteis marinhos. Na segundaediçãodeseulivro,elecuidouderetiraressasreferênciasdolivroparatentar,dealgumaforma,aplacaras críticas. No entanto, nada indica que ele tivesse mudado de ideia. Em cartas, ele se queixa dascríticas,dizendoqueopúblicoasconsiderariapertinentes,esuamudançaeditorialparecetersidomuitomaisestratégica.Porém,passados150anos,qualnãoseriasuasatisfaçãoaoverquepraticamentetodaasérie de fósseis entre um mamífero terrestre parecido com um cachorro e a baleia foi finalmentedescoberta?(figura21).

Assim como o heliocentrismo de Copérnico não poderia se estabelecer sem uma nova lei domovimento, também a biologia evolutiva demandava uma teoria que explicasse a hereditariedade. Apartirde1930,opensamentobiológicopassouacompatibilizarplenamenteagenéticamendelianacomalógica evolutiva darwiniana, enriquecida com mecanismos de variação, que permitiam que a cadageração fossem introduzidas modificações. A síntese evolutiva, como foi chamada, tinha aposentadodefinitivamente o finalismo aristotélico e a imagem de mundo perfeito, que tinha papel central naTeologiaNatural, comovimos,desdeTomásdeAquino.A influênciadoambientena constituiçãodosorganismos foi minimizada, entendida como uma forma de modulação da expressão dos genes, mas

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incapazdeinduzirmudançasdesejáveis,comoaapariçãodegrossapelagememanimaisquevivemnofrio.Oacasotomouolugardascausasfinaisquehaviamsobrevividoatéaquelemomentoeavastidãodotempogeológicopodeexplicarseupapelnosucesso(enofracasso)evolutivo.

Figura21.De1859até2009,todaumasériedefósseisfoidescoberta,mostrandoaprogressãodeumaformaterrestre(noalto)atéasformasatuaisdecetáceos,emumespaçodetemporelativamentecurto(menosde50milhõesdeanos).

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Capítulo4

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Anaturezadaciênciaeaescola:metodologiadeensino

Porqueensinarciêncianaescola?

Umaprimeiraperguntaquedevemosnosfazer,aoenfrentaratarefadeplanejaradisciplinaCiênciasnoensinofundamentaléaderefletirsobreasrazõesquejustificamsuapresençanocurrículo.Elasnãosãoóbvias,tampoucoconsensuais,eestãointimamenteligadasàmaneiracomoconcebemosciênciascomoafísica,aquímica,abiologiaeasgeociências.Umapossibilidadeseriaadedefiniraciênciacomoumamaneiramuitoeficienteeprivilegiadadeconheceromundoecomoelefunciona135.Outropontodevistadefineaciênciacomo“conhecimentoconfiável”,nosentidodeque,apósgerado,passoupelocrivodeuma comunidade erudita, que o chancela. Ameta da ciência seria, portanto, um consenso de opiniãoracionalsobreocampomaisamplopossível.Assim,poder-se-ia“afirmarqueeleéalcançadocomumacrítica intensade teorias,modelos,mapase imagens.Chega-seaoconsensopela crítica intersubjetivapossibilitadapelaconsensibilidade[peloconsenso]”136.Umaterceiradefinição,diametralmenteopostaaessasduasposturas,diriaquea ciência é apenasumdiscursoquedeterminada sociedadeconstrói emdeterminado tempo, para cumprir certas funções e refletir os valores daquela sociedade,mas que nãorefletenecessariamentecomoomundoé.

Adeclaraçãonasprimeiraspáginasdeste livro,dequea formulação finaldadefiniçãodeciênciaseriaumatarefapessoaldoleitor,eraverdadeiraenãosepretendeaquicontrariá-lamasdemarcartrêspossíveis concepções de ciência a que o leitor poderia chegar. A primeira definição aponta para aeficiência da ciência, destacando seu poder preditivo. Este é igualmente ressaltado pela segundadefinição, mas que se vale adicionalmente da chancela necessária de uma comunidade, que deveconcordar em torno de verdades mínimas. A terceira definição, por outro lado, ressalta o carátersubjetivoerelativodasciênciasnaturais,quenãoteriamnenhumrigoradicionalaosmitos,porexemplo.

Amaneiracomoseconcebeaciênciatemrepercussãodiretasobreamaneiracomoelaéensinada.Umacomunidadequeentendaqueaciênciaéalgoque seaproximadasduasprimeirasdefinições,ouseja,deuma formadegerarconhecimentocomgrandepoderdepreveros fenômenosqueocorremnomundo,defenderáoensinodeCiênciascomargumentosqueapontamparaoentendimento.JáaquelesqueconcebemaCiênciacomoumsimplestipodediscurso,esperarãoqueoensinodeCiênciasofereçaaosalunosapenasumaliteraturatécnica,sendoamemorização,talqualdeumpoema,oudeumaprosa,umresultado razoável de seu ensino. Longe de pretender construir uma caricatura de qualquer uma daspropostaseducacionais,trata-sedaessênciadadistinçãoentreasdiferentesformasdeensinarCiências.Existemdiversasmaneirasdedesenvolveroentendimentodaciência,masadefesadesuapuraesimplesmemorização deriva da convicção de que não há nenhuma vantagem real em entendê-la em suaprofundidade,mesmonosconceitossimples.

Certavez,aofalarsobreoensinodeCiênciasemseupaís,JeanBricmont137dissequeaeducaçãoeuropeia, tomandoaBélgicaeaFrançacomoexemplos, inclui temasmuitocomplexosparaosalunos,maselesnãotêmcondiçõesdeentenderoqueestudam,portantosólhesrestamemorizaroqueleem.Aissochamam“nívelmuitoavançado”,masosalunosnãoaprendemdeverdade.Osexamesaquedevem

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sesubmeternãosãodifíceis,ebastaterlidoomaterialdidáticoquelheséfornecidoparapoderalcançaraprovação nas provas. Ele, como físico, não se conforma com esse tipo de perspectiva e, em certaocasião,disseque,naeducaçãobásica,“emFísica,elesaprendemaTeoriadaRelatividade,MecânicaQuântica.FazemdebatessobreMecânicaQuântica!Mas,narealidade,nãoconhecemnemosprincípiosmaiselementaresdeFísica.Esseéumdosproblemascomaeducaçãoeuropeia”.SegundoBricmont,avisãodeciênciapredominanteemseupaís,emespecialnasciênciashumanas,éadeumadescrençaemseu poder preditivo, vendo-a apenas como uma literatura técnica. De certa maneira, essa tendênciaeuropeia138 está presente em diversos países não europeus, que tomammodelos sem a devida crítica,esperando superar problemas básicos espelhando-se na realidade atual de países com alto nível derenda.

Durantemilênios,ahumanidadeacreditouqueaTerrafosseplanaequeoSolgirasseemtornodela.Ainda hoje, em muitas culturas indígenas, isso é aceito e está incorporado em rituais e normas deconduta.Masumaescolaemmeioaumadessascomunidadesnãopoderádeixardeterumgloboterrestrepróximoàmesadoprofessor,pelasimplesrazãodequeexisteumaculturacomumatodosospovos,àqualtodosdevemteracessoafimdecompreenderomundoatualepoderatuarsobreele.Essaéumadasfunçõesprecípuasdaeducação.

Talveztenhaficadoclaraarazãodealgumasescolasincorporaremcertasdecisõescurriculares,porexemplo, abordar de forma extensa no ensino fundamental as equações demovimento deGalileu e aMecânicademaneirageral,napartereferenteàFísica.Defato,arupturaquerepresentouarevoluçãocientíficajustificaofereceraosalunosaoportunidadedesuperaraconcepçãoaristotélicadosfenômenosfísicos.Aperspectivaepistemológicaadotadaaquiprocurouressaltaramudançaculturalqueaciênciamoderna trouxe para a humanidade. De certa forma, somos tributários das profundas mudanças quenossosantepassadosconseguiramempreendersobreamaneiraantigadeveromundo.Comovimos,nãoforam poucas, tampouco fáceis, mas mudaram a maneira como o mundo era visto. De um mundoassombrado por demônios, para tomar a expressão do saudoso Carl Sagan, passamos a um mundoindeterminado,semumafinalidadeespecíficae,decertaforma,imperfeito.

Em 1999, cientistas e governantes reunidos em Budapeste aprovaram um documento no qualpretendemalertarosdiferentespaísesparaofatodequeapobrezanomundonãoseconfiguraapenaspelacarênciaderecursosnaturaisoudeparquesindustriaisoudeserviços,massobretudopelaexclusãodaparticipaçãonageraçãoenousodosabercientífico.RessaltaramanecessidadedepromoveroensinodaCiência em todas as idades, como pré-requisito essencial para a democracia e o desenvolvimentosustentável.

Umcidadãoquenãocompreendaomododeproduzirciêncianamodernidadeserácertamenteumapessoa com sérios problemas de ajuste nomundo. Terá dificuldades de compreender o noticiário datelevisão, entender as razões das recomendações médicas mudarem com o tempo, os interesses daindústriadapropagandaaoutilizarargumentoscientíficosetc.Aolidarcomastecnologias,éprecisoumolhar crítico, evitando aomesmo tempo o preconceito contra a inovação e a aceitação passiva e atémesmo a entronização de novidades tecnológicas, estejam elas baseadas em conhecimentos falsos oumesmoverdadeiros.Umpaíscomamaioriadeseuscidadãossemessacompreensãonãoterácondiçõesde participar do desenvolvimento econômico e enfrentará sérios problemas sociais, políticos eambientais139.

Oqueesperardametodologiadeensino?

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Começamosestelivrodiscutindocomoseriadifícildefiniraciência.Vimosqueafilosofiatambémnãoadmite resposta simples, e seria surpreendente se fosse muito diferente ao tratar da metodologia deensino. Para início de conversa, seria útil dizer que a metodologia de ensino não se confunde comtécnicasdeensinoequenãoexisteumametodologiaquedissocieoprofessordosalunos140.Emoutraspalavras, é impossível aprendermetodologia de ensino assistindo apenas a aulas teóricas, oumesmolendoumlivro,pormaisesforçadoquesejaseuautor.Ametodologiadeensinovoltadaparaasaladeauladepende fundamentalmenteda interaçãoprofessor-alunos,eestanãopodeserantecipadaemseuspormenores,emborasejapossívelplanejá-laemlinhasgerais.

Um mesmo professor, em uma mesma escola, comumente tem diferentes experiências com seusalunos, em cada uma das salas de aula. Dificilmente o professor consegue prever como será suaexperiênciacomumaeoutraclasse.Ao longodoano letivoéqueele formaráum juízomaisapuradosobre cada um dos grupos de alunos e vice-versa. Isso é uma indicação de que as variáveis queinterferem no trabalho de sala de aula são inúmeras e que não é possível antever com exatidão, porexemplo,comooclimaafetivosedesenvolveráemcadaumdosgruposdealunoscomoprofessor.

Umametodologiadeensinoseconfiguraemtrêsdimensões,queconcretizamumatoeducativo.Umadelas é epistemológica, e tem a ver com os conhecimentos necessários à sala de aula; outra éinstitucional, ligadaaoarranjopolítico-socialnoqualasaladeaulaeaescolaestão inseridas.Juntaspavimentam a base sobre a qual se assenta a dimensão humana, envolvida tanto na geração doconhecimentocomoemsuasocializaçãonoâmbitodasociedade(figura22).

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Figura22.Dimensõesdametodologiadeensinoqueconcretizamoatoeducativo.

Inicialmente,cabe refletir sobrea imagemdeprofessorquese tem,pois se tratadeumadefiniçãocrucialparaaconcretizaçãodotrabalhonasaladeaula.Elejáfoitidocomocomunicador,transmissor,facilitador,motivador,pesquisadoretc.Ummétododeveestaradequadoaseuusuáriomaisdireto,que,no caso da metodologia de ensino, é o professor, de maneira que há reconhecidamente diferentespossibilidades, diferentes metodologias possíveis. Este livro, ao decidir trilhar certo caminho, e nãooutros, buscando referências teóricas para fundamentar o objeto do trabalho com a ciência no ensinofundamental,certamenteestárespaldadoemumaimagemdeprofessor.AodiscutirAristóteles,GalileueDarwin,pretende-seacumularelementos teóricosparaqueopróprioprofessor formulesuaconcepçãoepistemológicasobreaciência.Issofoiditonaprimeirapáginadestelivro.Assim,entenderoprofessorcomoumprofissionalqueformulaadefiniçãodoobjetodeseupróprio trabalho implicaatribuir-lheafunção de intelectual. Dois professores de Ciências podem ter concepções totalmente diferentes deciência,comovimosacima,eportantoempregarmetodologiasdeensinoessencialmentedistintas.

Asegundabasedequalquermetodologiadeensinoserefereaosalunos.Éprecisorefletirsobreopapel que o aluno deverá assumir em sala de aula. Para muitas pessoas, os alunos têm capacidadescognitivas evidentes, ligadas a alguma variável. Para outras pessoas, no entanto, a plasticidadeintelectual humana é tal que seu potencial é praticamente ilimitado, profundamente ligado a sua basesociocultural. Uma importante pesquisadora norte-americana define a natureza humana como

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“biologicamente cultural”141, no sentido de que tanto os aspectos biológicos como os culturais sãoessenciaisparaentenderacogniçãohumana.Assim,aoseprocurarlevaraosestudantesoentendimentodaciência,corre-seoriscodenãoconseguirsucessocasosetenhadúvidadesuacapacidadecognitiva.Por exemplo, por muito tempo se deixou de ensinar ciência para crianças em diversos paísesdesenvolvidos economicamente e a justificativa mais comum era algo como “elas ainda não podementender ciência”, mas isso foi definitivamente refutado, mesmo se há pouco tempo”142. De um lado,provavelmente, havia uma ideia de que a ciência é inerentemente hipotético-dedutiva, e apenasadolescentes dominam plenamente essas operações mentais. Embora essa justificativa seja muitoquestionável, ela foi ouvida em diversos contextos e, se associada a outra, será possível entender asrazõesdediversospaísesteremdeixadoparatrásoensinodaciênciaparacrianças.Trata-sedadefesado primado da leitura, escrita e operaçõesmatemáticas como “habilidades básicas”, necessárias paratodas as demais áreas do conhecimento. Embora não seja uma definição falsa, haja vista o inegávelentrelaçamentodosmaisdistintossaberes,tampoucoétotalmenteverdadeira.Mesmoassim,aavaliaçãodoaprendizadoemexamesoficiaismuitasvezesseresumeàMatemáticaeàlínguamaterna,entendendoquetodasasdemaisáreasdoconhecimentoestãodiretamentecorrelacionadas–estasimumapremissafacilmentequestionável.

Asimagensdeprofessorealunodevemfazerpartedeumareflexãoaprofundadaemcadaescola,afim de definir seu projeto político-pedagógico. Como vimos, essa reflexão poderá dar coerência àsconcepçõesdeciênciaquesepretendeimplementar.Alémdisso,nãosepodepensaringenuamentequeoresultadodosatoseducativosdependaisoladamentedashabilidadesdoprofessor,desconsiderandosuastrêsdimensõeseseusdiversoscomponentes.

Porfim,éimportanteressaltaradistinçãoentremetodologiasdeensinoeteoriasdaaprendizagem,frequentemente confundidas. O ato educativo, como acabamos de ver, tem diversos componentes, osquaiscontribuememalgumamedidaparaseuresultadofinal.Elepressupõeummétodo, relacionadoaações como coletar dados e tomar decisões. As teorias de aprendizagem fazem parte dos saberesnecessáriosàsaladeaula,ouseja,estãoinseridasemumadasdimensõesdoatoeducativo.Portanto,étemerárioconfundirumprofessordemetodologiadeensinoou,oqueseriaaindapior,umprofessordaeducação básica com um psicólogo cognitivo. Este pode se dizer limitado a determinada orientaçãoteórica, mas aqueles têm compromissos com uma pluralidade de estudantes e devem se valer dediferentes vertentes teóricas a fim de coletar dados e tomar decisões com o objetivo de assegurar osucessodoatoeducativocomtodososseusestudantes.143

A própria etimologia da palavra “método” fala por si. A palavra tem origem grega (μέτοδος) esignifica“procura,investigação”144.Masovocábuloécomposto,porsuavez,deumsufixo(μέτα)quesignifica“nomeio,entre,nacompanhiade”,emsensoespacial,e“após,depois,emseguida”emsentidotemporal145.Assim,osentidooriginaldovocábulotemavercomalgoqueserealizanocaminharjuntoenão deixa de ser uma boa definição de método como uma pesquisa cujo resultado depende de umacaminhada, de um percurso, que não pode ser solitário. Trata-se de uma definição que poderia serchamada de “concepção processualística”, em oposição àquela denominada “concepção formulista”,muitocomum,queentendeametodologiadeensinocomoumconjuntodeprescriçõesdefinidasapriori,umformulário.Assim,“segundoessaaproximaçãoconceitual,ocaminhodapesquisajáestádecididonabasedeummapadeaçõesepistêmicasdefinidasantesdeseiniciaracaminhar”146.

É importante distinguir essas duas perspectivas demetodologia de ensino e, coerentemente com aconcepção de professor aqui adotada, há que se perceber as limitações da concepção formulista demétodo. A própria etimologia da palavra, como vimos, nos sugere uma concepção na qual ométodoverdadeiramentesedefineaofinaldoprocessoesuajustasistematizaçãosópodeserretrospectiva.Issocolidecomalgumasperspectivasmuitotradicionaiseamplamenteaceitas,quedefendemanecessidade

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demétodospadronizadosparaalcançarresultadosgarantidos147.

Elementosparaumametodologiadeensinodaciência

Apartirdofinaldosanos1970,começouaseconfigurarumconsensonocampodametodologiadeensino da ciência de que ela constituía uma área especializada. Desde aquela época, permaneceramalgumascertezasentreosespecialistas,umadasquaiséadequeoensinodeciênciassópodeserefetivose professor e alunos tiverem consciência das concepções que têm sobre os fenômenos que queremestudar.Assim,umadasetapasiniciaisdoensinoéadelevantaropiniõesepermitirqueosestudantesprocuremexplicarcomsuaspalavrasoqueconhecemsobreosmaisdiferentesfenômenosestudadospelaciência.

Nãofoiporacasoque,nesseperíodo,diversosartigosforampublicadosmostrandoqueosestudantestinham concepções “aristotélicas” de movimento. De fato, se entendermos que a ciência acabou poroferecer explicações contraintuitivas para os mais variados fenômenos, não é surpreendente que, emmuitasáreas,osestudantestenhamideiascompartilhadasporsuacomunidade.Conhecê-laséumpassoimportantetantoparaoprofessor,comopartedeseumétodo,comoparaopróprioaluno.Aoconhecerotrabalho de Galileu não será difícil notar que há diferentes possibilidades de planejar atividadesdidáticas nas quais os estudantes possam perceber as limitações de suas concepções aristotélicas dequedadoscorpos,porexemplo.

A área do estudo das concepções dos estudantes ganhou grande impulso na década de 1990, ediversasconferênciasinternacionaisforamorganizadas.Ostrabalhoscientíficosapresentadospermitemperceber algumas distinções importantes nas diferentes ciências, apontando para tradições muitodistintas.UmestudoaprofundadodetrêsconferênciasinternacionaisnaáreadasciênciasindicaqueostrabalhossobreensinodeFísicatêmdominâncianuméricaexpressiva.Alémdisso,aanálisedetalhadadoconteúdodostrabalhosapresentadosnaáreadeensinodeQuímicaindicaqueos“tópicosabordadossãotípicoseconvencionais(porexemplo,pressãodoareequilíbrio),emboraalgunssejamfundamentaise centrais para aQuímica (como a teoria atômica e as propriedades periódicas)”.As atualidades dapesquisa química, bem como uma grande abrangência das pesquisas, estão ausentes desses trabalhos.PoucasáreasdaQuímicaconcentrammuitostrabalhos,quenãoabordamocotidianodoscientistasdessaárea148.

Aanáliseconjuntadostrabalhosapresentadosemcincoconferênciasinternacionais149,quereunirampesquisadoresemensinodasciênciasdemuitospaíses,tendeacorroboraraconclusãoqueapontaparaasuperioridadenuméricadostrabalhosnaáreadeensinodeFísica,equeasituaçãobrasileirarepeteadocontexto internacional. Portanto, a investigação das consequências desse fato parece ser realmentenecessária.UmexemplodainfluênciadessasuperioridadenuméricapodeservistoemalgunstrabalhosdepesquisanaáreadeensinodeBiologia,emquealgumasafirmaçõespretendemjustificarofatodeosresultados encontrados não serem tão elegantes e regulares como aqueles encontrados na Física.Afirmaçõesdessetipoindicamumatentativadeimitarosprocedimentosdeumaáreanaexpectativadeencontrar resultadossimilares,oquenemsempre temsidopossível.Modelosdeaprendizagempodemestar baseados em regularidades percebidas em certos relatos históricos, presentes na revoluçãocopernicana,porexemplo,masquedificilmentepoderiamserentendidoscomouniversaisnosdiversoscamposdaciência.

No entanto, para complementar nossa análise, do conteúdo das pesquisas realizadas em Física eBiologia, devemos aprofundá-la.Ao comparar a abrangência das pesquisas e sua atualidade, veremos

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que diferentes áreas têm tradições marcadamente distintas. As pesquisas sobre ensino de Biologiaapresentadas nessas cinco conferências internacionais estão divididas em dezesseis diferentes temas,mostrando grande dispersão temática. Os temas mais frequentes são “Ecologia” (quatro trabalhos) e“Evolução”(trêstrabalhos);osdemaisapresentamouumoudoistrabalhosapenas.Portanto,observamosaltaabrangênciadaspesquisasnaBiologia,aindamaisseatentarmosparaofatodequeosdoistemasmaisfrequentes,EcologiaeEvolução,sãointegradores,ouseja,abarcampraticamentetodasasáreasdoconhecimentobiológico,chegandoatéaincluiroutrasciências.Alémdisso,revelamjustamenteospolosdinâmicosdasciênciasbiológicasdaatualidade.Portanto,acaracterísticaevidentedessaspesquisaséasuaabrangênciaeatualidade.

OstrabalhossobreensinodeFísicanessasmesmasconferênciasinternacionaisabrangemdeztemasdiferentes.TrêstemasreferentesàFísicaModerna(FísicaNuclear,MecânicaQuânticaeRelatividade)somamapenas7%dostrabalhos.Maisdoqueametadedostrabalhos(58%)foirealizadacomtemasdeMecânica, sendo Cinemática mais frequente do que Estática e Dinâmica. O segundo tema maispesquisado éEletricidade (13%), seguidoporTermologia (7%) eÓtica (6%).Temas comoAcústica,MagnetismoeMecânicaOndulatóriaforamtrintavezesmenosfrequentesdoqueMecânica–apenasumtrabalho. Se considerarmos que os temas de Mecânica foram desenvolvidos quase inteiramente nosséculosXVIIeXVIII, torna-seclaroqueessaconcentraçãorevelagrandedistânciadotrabalhoqueoscientistasdaáreadesenvolvemhojeemdia,ressaltandoagrandediferençaemrelaçãoàatualidadedostemasdeBiologia.SeacrescentarmosasobservaçõesdoprofessorJeanBricmontsobreousodetemasde “nível muito avançado” na Física da educação básica, há pouco expostas, evidencia-se a grandedistinçãoentreessasduasdisciplinasnocontextoescolar.

Comovimosnoscapítulosanteriores,natrajetóriadeconstruçãodosconceitoscentraisdamecânicaclássica, temos um exemplo lapidar de não cumulatividade, comuma claramudança de paradigmas apartir deCopérnico eGalileu em relação aAristóteles e Ptolomeu.Outra característica damecânicaclássicaéodesereportaraumasériedefatoshistóricosdifíceisdeseremexaminadosereavaliadoshojeemdia.OprocessosofridoporGalileueaimportânciadasideiassobreheliocentrismonadenúnciaàInquisiçãoforamobjetodequestionamentos150.Nãofossemdetalheshistóricosimportantes,porémmaldocumentados,existeaprópriabarreiradotempoaseencarregardedeteriorareperderdocumentos.OcontextohistóricoqueenvolveasideiasdeAristóteles-Ptolomeuémuitodistanteparaosaprendizesdehojeemesmoparaospesquisadoresqueinvestigamoensinodasciências.Mesmoquetemasmodernossejam eventualmente introduzidos no currículo, haverá sempre o risco de dar razão à crítica de JeanBricmont, vendo jovens discutindomecânica quântica,mas acreditando que fora da atmosfera não hágravidade. Assim, com a centralidade da mecânica clássica nas questões que envolvem o ensino daFísicanoensinofundamental,aliadaàsconcepções intuitivasaristotélicas,vê-sequeumametodologiade ensino para a Física, e a possível contribuição da história das ciências para o ensino, têmparticularidades evidentes. Apesar de sua dominância quantitativa em congressos científicos,dificilmenteelasetornaráummodelocanônicoparaasdemaisciências.

AspesquisassobreensinodeBiologiapermitemumaaproximaçãocomahistóriadaciênciamuitodiferente. A diversidade e a atualidade dos temas abordados nos currículos tornam as ideias dosestudantes não apenas objetos de investigação por professores e pesquisadores profissionais, mastambém podem prover hipóteses de reconstrução histórica que se mostrem úteis aos próprioshistoriadores.Porexemplo,aoexploraras ideiasdosestudantessobreaevolução,saltavaaosolhosacentralidade da questão humana. Os jovens não conseguem dissociar a evolução dos seres vivos daevoluçãodaespéciehumana.Haviaumalongatradiçãohistoriográficaqueinsistianessadissociação151,dequeateoriaevolutivafoipensadaindependentementedaquestãohumana.Aspesquisascomosjovensacabaramporgerarhipótesesdereconstruçãohistoriográficaqueseprovarammuitoúteisnaconsultadasfontesprimárias,comoosmanuscritosdaprimeiraediçãodeAorigemdasespécies.Ahipótesedeque

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CharlesDarwinsereferiaaoserhumanodesdeaprimeiraediçãodeseufamosolivroseviufortalecida,inclusive diante das marcações que deixou em livros de sua biblioteca pessoal, como os de JamesPrichard (v. capítulo 3)152. Passados vinte anos, essa tese passou a fazer parte do consenso entrehistoriadores da ciência, e até mesmo o respeitado historiador Peter Bowler, que defendia a tesecontrária,podeserconsiderado“umconvertido”153.

Essa proximidade entre a história da ciência e a sala de aula talvez seja uma particularidade doensinodeBiologia,mas,dequalquerforma,indicaapossibilidadedehaverumafértilaproximaçãoentreessasduasáreas,comobemoatestaofatodehaverumasociedadecientíficaespecíficanoBrasilquerealizaencontrosanuaisemantémumapublicaçãoindexadaregular154.NosEstadosUnidoshádiversasiniciativas,comoaspublicaçõesdeDouglasAllchin,daUniversidadedeMinnesota.Elenosalertaparaos riscos de outro extremo, ao lidar com aquilo que denomina “pseudo-história”155, uma reconstruçãoarbitrária,comaúnicafinalidadedeadicionarelementospitorescosaepisódiosdeensino.

Paraencerrarestecapítuloeestelivro,caberiaumapalavrasobreaimportânciadeproporcionaraosalunos do ensino fundamental uma aprendizagem realmente significativa sobre essa forma de produzirconhecimento.As abordagens integradas, que combinamasdiferentes ciências, sãomuito estimuladas,apesardehaverpoucoapoioefetivoaoprofessoremsaladeaula,cujotrânsitopelasdiferentesciênciasémuitomaisdifícildoqueasdiretrizesedeclaraçõesoficiaislevamacrer.

Emanosrecentes,temganhadoforçaummovimentoquepropõeaoensinodeciênciasatarefacentraldeensinaranaturezadaciência(eminglês,NatureOfScience–NOS),quepoderiaserdefinidaemsetepontos156.Assim,pormeiodecontextosconcretos,osestudantesdeveriamaprenderqueoconhecimentocientíficoé…

•inacabado;•baseadoemprovasempíricas;•subjetivo;•dependentedocontextoculturalesocial;•necessariamenteenvolveinferências,imaginaçãoecriatividade;

…tendopresenteasdistinçõesentre:

•observaçõeseinferências;•leiseteoriascientíficas.

Essapropostaestábaseadanopressupostodequehásuficienteconsensoentrefilósofosdaciênciaepesquisadoresdeensinodeciências, apontodepossibilitarqueessesaspectosestejampresentesnoscursosdepreparaçãodedocentesquevãoatuarnoensinofundamental.Obviamentehávisõesdistintaseaindasedebateatémesmooquesignificaasubjetividadedaciência,porexemplo.Noentanto,podemosacreditarquehárazoávelconsensoparaperceberadiferençafundamentalentreumaprescriçãomédica,umconselhosobrealimentaçãosadiaeumaopiniãosobrequaléomelhorautomóveldomercado.Nostrêscasos,acargadepontosdevistapessoaiséreconhecidamentedistintaeasubjetividade,emciência,temaverjustamentecomisso.Portanto,nãosetratadeaplicar“ométodocientífico”,comoseaciênciativesseumprotocoloaguiarcadapassodoscientistas,masdeproporatividadesnasquaisosmétodosdaciênciasejamutilizados,permitindodesenvolverumacompreensãomaisprecisadosignificadodeseusdiferentescomponentes.

Aquiloquealguns têmchamadode“métododeGalileu”se resumeadesenvolveracapacidadedeobservação, ahabilidadedeexperimentar–no sentidode isolarvariáveis e colocá-las àprova– e a

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habilidadedeformularmatematicamenteofenômenoestudado157.Iniciaresseprocessodesdeainfânciaétarefadaescola,quecertamenteencontramuitoentusiasmoentreospequenos.AsformulaçõesdaNOS,vistashápouco, podemajudar amostrar comoépossível refinar esseprocessogradativamente, até ofinaldaeducaçãobásica.Éumapenaque,depoisdealgunsanos,muitos jovenspercamoentusiasmopelaciência.Masissonãoocorreàtoa.Nofinaldestetextoqueroreproduzirumaprovaempíricadequeascriançassãodesestimuladasaaprenderciência.Umapublicaçãooficialdogovernoitalianode2011,doMinistériodoAmbienteedaTuteladoTerritórioedoMar,destinadaaentretercriançasemlongasviagensaéreas, falaráporsisódoquedeveserevitadoa todocustoemqualquerépoca,emqualquerlugardomundo(figuras23ae23b).Naformadeumteste,ascriançasdevemresponderaquestõesondemostram se (1) memorizaram a que família pertence a “cereja” (na verdade, a cerejeira), devemresponder(8)queéimpossívelobterenergiadasrochas(ocarvãomineral,belarocha,nãoteriaservidoparaasfornalhasdaRevoluçãoIndustrial!)edevemreconhecerfrutosdotipodrupa!

Figura23a.OMinistériodoAmbienteedaTuteladoTerritórioedoMardaItáliaproduziueste“jogopedagógico”paraentreter(epossivelmente“educar”)criançaspequenasemlongasviagensaéreas,produzindoumverdadeirodesastrepedagógico.

Figura23b.Alémdagrafiaerradanosnomescientíficos,o“jogopedagógico”trazafirmaçõesevidentementeerradas(comoadequenãosepodeextrairenergiaderochas).

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Esteja a questão referida a conhecimento correto ou grotescamente errado, trata-se de um desastrepedagógico.GalileuGalileiseperguntariasefoiparaissoquelutoutantoparatirarahumanidadedastrevasdaignorância!

RecursosparaprofessoresdeCiênciasNaturais

Ahistóriaeconômicabrasileiraexplica,emboamedida,ofatodeaeducaçãopúblicaserumfenômenotardioentrenós.NostemposdoBrasilColônia,aimprensaeamanufaturaeramsimplesmenteproibidas.Oensinodaleituraera,antesdetudo,umatoelitistaousubversivo.Segundointelectuaisimportantesnaeducação brasileira, como Anísio Teixeira (1900-1971), o ensino público ampliou-se no Brasilacompanhado de certo estranhamento, com dúvidas a respeito de sua real necessidade. Seu podertransformador era visto antes como um perigo à manutenção dos valores e das relações de podervigentes. Assim, entende-se a luta para o reconhecimento da educação como direito e não comoprivilégio,ouseja,umanecessidadeenãoumsimplesregalo.Temos,hoje,umnovoembatenoBrasil,quebuscaultrapassaroaspectoformaldessedireito.Garantireducaçãoparatodosnãosignificaapenasumacadeiranaescolaporquatrohorasaodia,masoamploacessoerealdomíniodoacervoculturaldahumanidade.

O ensino da ciência requer uma dupla atualização no atual contexto brasileiro. De um lado, asfamíliaseacomunidadeemgeralprecisamterumaexpectativamaisatualdoquesejaaprenderciência.Por outro lado, os conteúdos científicos abordados na escola devem ser atualizados – quando nãocorrigidos –, de modo a aproximar o que se ensina na escola daquilo que a sociedade efetivamentedemanda. Basta conferir o resultado de uma pesquisa realizada com pais de alunos de uma escolatradicionaldeSãoPaulo:amemorizaçãodeconteúdosetermostécnicoseramuitomaisvalorizadadoqueaaplicaçãodoconhecimentocientífico.

Existemmuitosrecursosdisponíveishojeemdiaparaqueosprofessoresdequalquerpartedopaíspossam ter ideias, sugestões e mesmomateriais para aprimorar suas aulas de ciências. A seguir sãoapresentadasalgumassugestõescomcomentários,sempretenderesgotaraspossibilidades.

PortaldoProfessor–MinistériodaEducação(http://portaldoprofessor.mec.gov.br)Oferece uma ampla gama de materiais destinados a professores e alunos, incluindo sugestões de

aulas, conjuntos temáticos de aulas,materiais didáticos e osmais variados recursos, inclusive cursosparaprofessores,oferecidosgratuitamente.

InstitutoCiênciaHoje(http://cienciahoje.uol.com.br/)OInstitutoCiênciaHojealimentaumsitedenotíciasondepodemserencontradasgrandesnovidades

e informações sobre o mundo da ciência, da mesma forma que links para blogs e outras fontes deinformação em todas as áreas da ciência. Lá é possível encontrar um link para “Ciência Hoje dasCrianças” (www.chc.org.br), destinado a professores e alunos do ensino fundamental, em que seapresentaumaversãoeducativadaciência,naformadeartigosescritosporcientistasbrasileiros,alémdeentrevistaseumblogcomnovidades,ideias,notíciasetc.

SociedadeBrasileiradeQuímica–RevistaQuímicaNovanaEscola(http://qnesc.sbq.org.br/)Aentidadeofereceapoioaprofessores,pormeiodarevistaQuímicaNovanaEscola(QNEsc).Com

periodicidade trimestral, publica artigos voltados a professores do ensino fundamental e médio,

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promovendo debates e reflexões sobre o ensino e a aprendizagem de química. O site Quid+(http://quid.sbq.org.br)oferecepropostasdeatividadesemateriaisvoltadosdiretamenteparacriançaseadolescentes,paraaproximá-losdaquímica,retratando-adeformalúdica.Possuiartigos,comentáriosereportagensqueajudarãoaaproximaraquímicadocotidianodosalunosemumalinguagemacessível,comrecursosvisuaismuitoatraentes.

Sociedade Brasileira de Bioquímica e Biologia Molecular – Revista Brasileira de Ensino deBioquímicaeBiologiaMolecular(http://www.bdc.ib.unicamp.br/rbebbm/)

Apartir de umcadastro gratuito, é possível ter acesso a uma ampla gamade artigos e objetos deaprendizagemsobreBioquímicaeBiologiaMolecular.Orientaçõessobreaulaspráticassimples,comodesnaturação de proteínas, até atividades mais complexas, dirigidas à formação do professor, estãodisponíveis em artigos e contribuições dirigidas a diferentes tipos de demandas dos professores daeducaçãobásica,emespecialdeBiologia.

SociedadeBrasileiradeGenética–RevistaGenéticanaEscola(http://www.geneticanaescola.com.br)Trata-se de uma revista dirigida a professores de Biologia, com seções que versam sobre temas

atuaisemgenética,atividadespráticas,trabalhosclássicosemetodologiasalternativas,abordandoumadas seguintes áreas: Genética Humana e Médica, Genética do Desenvolvimento, Genética Vegetal,GenéticaAnimal,GenéticaEvolutiva,GenéticadeMicro-Organismos,MutagêneseeEnsinodeGenética.

SociedadeBrasileiradeFísica–RevistaFísicanaEscola(http://www.sbfisica.org.br/fne/)A Física na Escola é um suplemento semestral da Revista Brasileira de Ensino de Física

(http://www.sbfisica.org.br/rbef) destinado a apoiar as atividades de professores de Física do ensinomédioefundamental,oferecendosugestõesdeatividadespráticasereflexõessobreapráticaemsaladeaula.

AssociaçãoBrasileiradeFilosofiaeHistóriadaBiologia(www.abfhib.org)A associaçãomantém encontros anuais e publicações que tratam tanto de assuntos específicos de

Filosofia e História da Ciência quanto de sua convergência para a educação. Sua página de links éparticularmenteútilparaacessaroutrasreferênciasdaárea,noBrasilenoexterior.Umencontrotemáticorealizadoem2008resultouemumasériedetrabalhosvoltadosparaprofessoresdaeducaçãobásica,queestãodisponíveisnoendereçoeletrônicohttp://www.abfhib.org/Encontros/I-Tematico.pdf

AssociaçãoBrasileiradeCentroseMuseusdeCiência(www.abcmc.org.br)NosmaisdiversoslugaresdoBrasil,hácentrosemuseusdeciências,queoferecemdiversostiposde

atividadesparaescolas, inclusivevisitasplanejadaseguiadaspormonitores.Nositedaentidadequecongregaessesmuseusecentrosdeciênciasépossívelencontrarosmaispróximosdesuacidade,bemcomoterinformaçõesdasmostrasqueestãoocorrendoedoseventosprogramadosparaofuturo.

CentroEspecializadoemPlantasAromáticas,MedicinaiseTóxicasdaUFMG(CEPLAMT/UFMG)ConstituiumespaçodoMuseudeHistóriaNatural e JardimBotânicodaUniversidadeFederalde

Minas Gerais (http://www.ufmg.br/mhnjb/site/museu/mhnjb/), reservado aos estudos de recuperação,organizaçãoedivulgaçãodeaspectoshistóricosetécnico-científicosdasplantasnativasbrasileirasdeusotradicional.Responsávelpeloresgateereediçãodeobrascomgrandevalorhistórico,reúnediversascontribuições da História da Ciência brasileira para o ensino e mantém um banco de dados único,resultado de pesquisa de informações sobre as plantas medicinais nativas do Brasil(http://www.dataplamt.org.br/bd.php), focalizando a botânica brasileira e os usos tradicionais das

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plantasincorporadosadiferentesculturas.

AssociaçãoBrasileiradePlanetários(www.planetarios.org.br)Além de manter notícias e novidades, o site da associação mantém uma lista atualizada dos

planetários em atividade no país, com links para cada um deles. Assim, é possível saber suaprogramação,alémdeoutrasinformaçõesquecadaplanetáriopodemanterdisponíveis.

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OautorNélio Bizzo tem formação emCiências Biológicas. Realizou estudos de pós-graduação na Inglaterra,onde teve contato com osmanuscritos e a biblioteca pessoal de Charles Darwin naUniversidade deCambridge.Fezpós-doutoramentonaUniversidadedeLeedsefoiVisitingProfessordaUniversidadedeVerona(Itália).DocentedaUniversidadedeSãoPaulo,émembrodeváriasassociaçõesesociedadescientíficas,eéFellowdaSocietyofBiology(Londres).

AgradecimentosEste livro nasceu de uma sistematização de palestras, ao lado de pesquisas e deminha prática comoprofessornagraduaçãoepós-graduação.DevoagradeceraoCNPq/MCT,FAPESP,CAPES/MEC,BIDeUSP. Quero ainda agradecer a várias pessoas que estiveram envolvidas nos convites a eventos e naleituradepartesdomanuscrito.Devomedesculparporeventuaisomissõesinvoluntárias,bemcomopelaincapacidade de introduzir todas as correções sugeridas. Agradeço a: Aldo Mellender de Araújo,AssociaçãoBrasileiradeFilosofiaeHistóriadaBiologia,CarlosAlbertodosSantos,CarlosAlexandreNetto,CecíliaAlmeidaSalles,ClaudineyFerreira,DouglasGalante,FátimaBrito,GuilhermeKujawskiRamos,GiuseppePellegrini, IldeudeCastroMoreira, JorgeHorvath, JoséCastello,LilianAl-ChueyrPereiraMartins,LucaCiancio,LuiginaMortari,MariaEliceBrzezinskiPrestes,Maria IsabelLandim,PalomaMenezesRubin,RamachrisnaTeixeira,RobertoMartins,RobertoD.DiasdaCosta,SérgioM.C.Brandão,SociedadeBrasileiradeEstudosInterdisciplinaresdaComunicaçãoeSoniaZaniniCecchin.

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1TalvezMaquiavelseja,entretodososmencionadosadiante,omaisincompreendidoemaiserroneamentecitado,oquesedifundiunalinguagempopularpormeiodoadjetivo“maquiavélico”,deconotaçãonegativa.Paraumaintroduçãorápida,porémsólida,aopensamentodesseflorentinomemorável,recomendoolivrodeJoséNivaldoJúnior,Maquiavel,opoder,históriaemarketing.SãoPaulo:MartinClaret,2005.

2Oexércitoateniensedividiaasarmassegundoopoderaquisitivodosguerreiroseosbensconquistadosdeacordocomaeficiênciarelativadecadaguerreironocampodebatalha.Assim,osaristocratasdispunhamdecavalosearmasmaiseficazes.Ainfantaria,compostapeloshoplitas,dispunhadeelmo,escudo,lança,espadacurta,umaarmaduraqueprotegiaopeitoeumabotaquecobriaapartefrontaldacanelaedojoelho(acnêmide).Adisciplinadoshoplitas,queformavamfileirascerradasemfalanges,lhesgarantiagrandeeficiêncianoscombates,sósuplantadapeloslegionáriosromanos.

3GaiusPliniusSecundus,naturalistaromanoeoficialmilitar,alémdeembaixadorromano,compiloutrabalhosdecercade4milautoresdiferentes,amaioriaapartirdefontesgregas.Seutrabalhomaisimportantetem37volumes(Historiarummundi)ereúnetodooconhecimentodosromanossobrediversasáreasdoconhecimento,comocosmologia,astronomia,geografia,zoologia,botânica,mineralogia,medicina,metalurgiaeagricultura.

4AobraDePliniierroribus,deLeoniceno,nãoapenasdemonstravaoserrosdosescritosantigos,masapresentavaformasdeencontrarconhecimentoválidoapartirdaobservaçãodireta.AúltimapartedeseulivroeratodadedicadaadescreverosestudosbotânicosrealizadosaoredordacidadedeLucca.Cf.OGILVIE,B.W,TheScienceofDescribing.Chicago;Londres:TheUniversityofChicagoPress,2006,p.108.

5V.GRAFTON,A.Renaissance,p.717-719.In:HEILBRON,J.L.(ed.).TheOxfordCompaniontotheHistoryofModernScience.Oxford:OxfordUniversityPress,2003,939p.

6V.ROBERTS,V.TheSolarandLunarTheoryofIbnal-Shátir:aprecopernicanmodel.Isis,48:428-432.7Porvoltade1510,CopérnicoescreveuseufamosoPequenocomentáriosobreashipótesesformuladasporNicolauCopérnicoacercadosmovimentoscelestes,quecirculoupelaEuropanaformamanuscrita,durantesuavidaeporquasecemanos.Trata-sedeumresumodeseusistemaheliocêntrico,quesóseriaplenamentedesenvolvidoemsuaobraposterior,Sobrearevoluçãodasesferasterrestres(“Derevolutionibusorbiumcaelestium”),naqualeleincluiurefinamentosimportantes,comoumtratamentomaisadequadodaprecessãodosequinócios.EleprovavelmenteviuoRevolutionibussairdagráficaapenasemseuleitodemorte,em1543.V.GINGERICH,O.Copernicus.In:HEILBRON,J.L.(ed.),TheOxfordCompaniontotheHistoryofModernScience.Oxford:OxfordUniversityPress,2003,939p.,p.179-181;eMARTINS,R.IntroduçãogeralaoComentariolusdeNicolauCopérnico.InCOPÉRNICO,N.,Commentariolus.2ed.,SãoPaulo:LivrariadaFísica,2003,p.25-104.

8V.GRAFTON,A.Renaissance,p.718.In:HEILBRON,J.L.(ed.).TheOxfordCompaniontotheHistoryofModernScience.Oxford:OxfordUniversityPress,2003,939p.

9BARRETO,G.;GANZAROLLI,M.AartesecretadeMichelangelo:umaliçãodeanatomianaCapelaSistina.SãoPaulo:Arx,2006.10V.THOMAS,K.Ohomemeomundonatural.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1988.11V.GRAFTON,A.Renaissance,p.717-719.In:HEILBRON,J.L.(ed.).TheOxfordCompaniontotheHistoryofModernScience.

Oxford:OxfordUniversityPress,2003,939p.12V.MARTINS,R.IntroduçãoGeralaoCommentariolusdeNicolauCopérnico,p.25-104.In:COPÉRNICO,N.Commentariolus.2ed.São

Paulo:LivrariadaFísica,2003,emespecialp.91-93.13AescolásticafoiummovimentoreformadorcristãoiniciadoporSantoAgostinho(345-430d.C.),quebuscoureinterpretarosensinamentos

docristianismoàluzdopensamentoocidental,conciliandoféerazão.Asprimeirasescolaseclesiásticasforamfortementeinfluenciadasporessatradição,profundamenteabaladapeloRenascimentoepelaReformaprotestante.

14V.IRWIN,T.H.Aristotle’sFirstPrinciples.Oxford:ClarendonPress,1988,emespecialp.105eseguintes(“Disputesaboutteleology”).15EstaeraumanítidainfluênciadoplatonismoincorporadaporAristóteles.16DarwinsereferiuelogiosamenteaAristóteles,como“umdosmaiores,senãoomaiordosobservadores”,emboraadmitisseum

conhecimentoindireto,apenasapartirdefontessecundáriasecomentaristas.V.GOTTHELF,A.DarwinonAristotle.JournaloftheHistoryofBiology,1999,32(1):3-30.

17SARGENT,R-M.Aristotelianism.In:OLBY,R.C.;CANTOR,G.N.;CHRISTIE,J.R.R.;HODGE,M.J.S.CompaniontotheHistoryofModernScience.Londres;NovaYork:Routledge,1990,1081p.,p.44-45.

18EstaeraumadasretificaçõesdeTomásdeAquino,poisAristótelesoriginalmenteacreditavaqueouniversonãohaviatidouminício,oquecontrariavaadescriçãodacriaçãodomundoexnovo(criadoapartirdonada)presentenoGênesis.

19Opróprionome“planeta”éindicativodesuatrajetórianocéu,poissignifica“astroerrante”.20V.FILONOVICH,S.R.TheGreatestSpeed.Moscou:MIRPublishers,1986.21Otomismotemcomoumdeseusfundamentosacertezadequesepodeconfiaràrazãoatarefadedemonstrarospreâmbulosdafé

(preambulafidei),ouseja,oconjuntodeverdadescujademonstraçãoénecessáriaparaaprópriafé,entreasquaisseencontra,emprimeirolugar,aexistênciadeDeus.Omovimentoperfeitamentecirculardoespaçosupralunareaperfeiçãodosseresvivosseriam

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justamenteprovasdaexistênciadeumsersuperior.(Cf.ABBAGNANO.Diccionariodefilosofía.Bogotá:FondodeCulturaEconômica,1997,p.943e1143-1144).

22FlorençaconstituíaumarepúblicaquandoadquiriuosdireitossobrePisa,pagandopesadasomaaosmilaneses,queahaviamconquistado.Noséculoseguinte,aRepúblicaFlorentinafoiderrotadaporumaaliançaentreoreidaFrançaeopapaClementeVII(quepertenciaàfamíliaMédici),queinstituiuumducado,oqualmantevecontudoórgãosrepublicanos,comoumSenadoeumaCâmara,masenriqueceuacidadecomaresprincipescos,incentivandoasartes.

23V.BOIDO,G.NoticiasdelPlanetaTierra:GalileuGalileiylarevolucióncientífica.BuenosAires:A.Z.,1996,emespecialocap.3(“AñosdecátedraenPisayPadua”),p.81.

24AdeterminaçãodadatadaPáscoaéumaquestãocrucialparaocristianismo,poisdesdeoConcíliodeNiceia(325d.C.)aIgrejadecidiranãoadotarométododecálculodaPáscoajudaica,definidapelocalendáriolunar.AfaltadecoincidênciaentreocalendáriocivileoanosolarvinhadistanciandoadatadaPáscoacatólica,noprimeirodomingodeluacheiaquesucedeoequinóciodeprimavera,fixadoemNiceiaem21demarço(primaveraborealeclesiástica).Assim,foinecessáriosubtrairdezdiasdoanode1582,ediminuironúmerodeanosbissextosfuturos,paraevitarqueadatasedistanciassenovamentedofinaldemarço.ComoareformafoipromulgadapelopapaGregórioXIII,ocalendáriopassouaserchamadogregoriano.Noentanto,atéhojeasdatasdaPáscoanãoforamunificadasentretodasasdenominaçõescristãs,algumasdasquaisnãoaceitamaprimaveraeclesiásticaeasmudançasintroduzidaspelopapaem1582.

25GALILEI,G.Discorsiedimostrazionimatematicheintornoaduenuovescienze(1638),apudBOIDO,G.NoticiasdelplanetaTierra.BuenosAires:A.Z.,1996,p.85.

26Trata-sedamissãoApollo15,naqualocomandanteDavidScottrealizouoexperimentoqueteriafascinadoGalileu.Vídeodisponívelem:http://www.youtube.com/watch?v=5C5_dOEyAfk.Acessoem:19fev.2012.

27GalileuvivianoBorgodeiVignali,agorarenomeadaViaGalileoGalilei,aumaquadradaBasílicadeSantoAntônio,eMarina,numacasanaViaS.Francesco,aoladodoPontecorvo,apoucomaisde300m.V.Sobel,D.Galileu’sDaughter.NovaYork:PenguinBooks,2000,p.23.

28(ibidem,p.38).Essaversãofoirecentementequestionada,alegando-sequeMarinaBartoluzziseriaoutrapessoa,confundidacomMarinaGamba(cf.“MarinaGamba”,MuseoGalileoonline,disponívelemhttp://brunelleschi.imss.fi.it/itineraries/biography/marinagamba.html.Acessoem:19fev.2012.

29NaIdadeMédiaotermo“influentia”erautilizadoparaexplicardiversossintomasatribuídosàinfluênciadosastros,masotermoitaliano“influenza”,referindo-seàgripe,sepopularizoudepoisdaepidemiade1743,contagiandoinclusivealíngua.Aslínguasholandesa,húngaraeinglesaadotaramotermo,nestaúltimaporvezesabreviadopara“flu”.

30Àépoca,talfenômenoerasimplesmentedenominado“astronovo”(novumsidus)ou“estrelanova”(novastella),mesmopelosaristotélicos.Desde1934ofenômenoédenominado“supernova”,designandoumaexplosãoestelar.AtéoiníciodoséculoXXI,nãohouveocorrênciadeoutrasupernovavisívelaolhonudepoisdasde1572e1604.

31V.KRAUSE,Oliveretal.TychoBrahe’s1572supernovaasastandardtypelaasrevealedbyitslight-echospectrum.Nature,2008,456(7222):617-619.

32GREEN,D.W.E.Anewlookatthepositionofthe1604Supernova(V843Ophiuchi).AstronomischeNachrichten,2005,326(2):101-111.

33EscreveuKepler:“Die10OctobrisJoannesBrunowskyviditNovumSidumpropeJovem,rubicundiusetclariusJove.Paucisantediebusnonvisum.”(“Nodia10deoutubro,JohannesBrunowskyobservouumanovaestrelapróximaaJúpiter,avermelhadaemaisbrilhantedoqueJúpiter.Elanãotinhasidovistaanteriormente.”),apudBIALAS,V.KeplerasAstronomicalObserverinPrague,p.128-36.In:Christianson,J.R.etal.TychoBraheandPrague:CrossroadsofEuropeanscience:proceedingsoftheInternationalSymposiumontheHistoryofScienceintheRudolphinePeriod.Praga,outubro2001,22-25.

34BELLONE,E.Galileiel’abisso.Torino:Codiceedizioni,2009,p.6-7.35SimonMarius(1570-1624)estudouastronomiacomTychoBraheeKeplerecursoumedicinanaUniversidadedePáduaentre1601e1604.

DepoisretornouparaaAlemanha,tornando-seastrônomodacortedomargravedeBrandenburgo.(cf.MOURÃO,R.R.F.Dicionáriodeastronomiaeastronáutica.2ed.RiodeJaneiro:NovaFronteira,1995,p.511.)

36Asaulaseramconferênciasbaseadasemumtextoqueerapublicadoemseguida.Galileunãoseguiuessanormanessecaso.37Cf.SCHMITT,C.B.CesareCremonini.DizionarioBiograficodegliItaliani.Disponívelem:http://www.treccani.it/enciclopedia/cesare-

cremonini_(Dizionario-Biografico)/38“Discorsointornoallanuovastella,diAntonioLorenzinidaMontepulciano.”Padova:PietroPaoloTozzi,1605.Originaldisponívelem:

http://fermi.imss.fi.it/rd/bdv?/bdviewer/bid=000000404212.Acessoem:2fev.2012.39CAPRA,B.Considerationeastronomicacircalanova,etportentosastellachenell’anno1604adì10ottobreapparse,conunbrevegiudicio

dellisuoisignificati.Pádua:LorenzoPasquati,1605.Originaldisponívelem:http://fermi.imss.fi.it/rd/bdv?/bdviewer/bid=367673#.Acessoem:11nov.2011.

40Àépoca,utilizava-seotermo“astrólogo”tantoparaoquehojesemantémligadoaoladomístico,comoparaaquelequehojedenominamos“astrônomo”.

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41GalileuficouiradocomCapra,dizendoqueumjovempedante,emvezdeterescritoquesuasobservaçõesocorreram“todososdias”(p.6),melhorteriafeitosetivesseescrito“todasasnoites”.Elepreferiunãosemanifestarsobreoepisódioanãosermaisadiante,em1607.

42Nodia8Caprateriarealizadoumaobservação,semavistamentodaestrelanova,eodia9tinhasidonubladoemPádua,impossibilitandoaobservação.EleteriacomunicadoadescobertaaGalileu,inclusivedescrevendosualocalização(nalongitudede18ºdeSagitárioe2ºdelatitudeboreal).Galileuteriaproferidosuaaulacomlocalizaçãodiversa,ea“confusão”dadatadadescobertaéumacríticaaofatodeelenãoteratribuídoadescobertadaestrelaaojovemCapra.

43OprópriotítulodolivretojátraziaacríticaaGalileu,poisindicavaadatadeapariçãocomosendo10deoutubro,oqueprovavelmentecontrariavaoqueforaditoemsuasaulas.

44Cf.PERUZZI,G.Astronomia.Disponívelem:http://www.scienze.unipd.it/storiascienza/Galileiana/Lectio2_Astronomia.pdf.Acessoem:19fev.2012.

45OsespecialistasdizemqueodialetoutilizadoétãocastiçoqueGalileunãopoderiaterescritosozinho;defato,acredita-sequeeletenhaapenasacompanhadosuaescrita;arealautoriateriasidodeummongebeneditino,nascidoemPádua,D.GirolamoSpinelli(c.1580-1647),queeraalunodeGalileuàépocaequeseenvolveudiretamentenadiscussãocomCapra.

46“Ilustreereverendopatrão,osenhorAntuognoSguerengo”.47MOTTA,U.AntonioQuerenghi(1546-1633),umletteratopadovanonellaRomadeltardoRinascimento.Milão:VitaePensiero,

1997,p.173.48Otermooriginal,emdialetopaduano,temconotaçãonegativa.49Nosentidodequeumpobreartesãoquesósabeconsertarsapatosefurarcintosnãopodesemeterafalardemetalurgia,umassuntodo

qualnadasabe.Naversãodoitaliano:“Nonsaicheunciabattinononpuòragionaredifibbie?”.50Em1606,Galileupublicouumpequenolivrodandopublicidadedesuaréguadecálculo[Leoperazionidelcompassogeometricoetmilitare(Padova,1606)].Emseguida,Caprapublicouumaversãoemlatim[Ususetfabricacircinicuiusdamproportionis,perquemomniaferetumEuclidis,tummathematicorumomniumproblematafacilenegotioresolvitur(Padova,1607)],atribuindo-seaautoriadotextoedopróprioaparelho.Galileuoprocessou,juntocomopai,ocondeCapra,desafiandoojovemafazerusodaréguaperanteumjuiz,oqueeleserecusouafazer.AcaboucondenadoearruinadoperanteaUniversidadedePáduaetambémnadeMilão,ondetentouingressarposteriormente,semsucesso.OimbroglioteriasidoimpossívelsemaparticipaçãoocultadeMarius.Este,segundoGalileu,teria“fugido”paraaAlemanhaafimdeevitarocastigo,querecaiuapenassobreseupobrepupilo.Mariusintitulou-sedescobridordossatélitesdeJúpiter,quedenominouSideraBrandenburgica.(V.GALILEI,G.Oensaiador,SãoPaulo:NovaCultural,2000,p.24-26,eMOURÃO,R.R.F.Dicionáriodeastronomiaeastronáutica.2ed.RiodeJaneiro:NovaFronteira,1995,p.511).

51Cf.http://www.treccani.it/enciclopedia/cesare-cremonini_(Dizionario-Biografico)/52Nestetexto,utiliza-seotermo“luneta”paradesignarosaparelhosreferidoseutilizadosporGalileu,emboranãotivessemessenomeà

época.53SOBEL,D.Galileu’sDaughter.NovaYork:PenguinBooks,2000,p.31.54Oprefáciotemadatade4demarçode1610.55Otítuloéexpressãoambígua,quetantopodeterumsignificadoneutro,como“Mensagemdasestrelas”,comooutrodiverso,“Mensageiro

dosastros”,quesoariacomoumautoelogio.56Nooriginal,“MediceaSidera”.57Galileuexplicaométodoutilizado,portrigonometria,paraasmedições(p.13).EleescreveuqueadistânciadaTerraàLuaerade“66

diâmetros”(sic;naverdadeàépocaseacreditavaserde66raiosterrestres),e,peloteoremadePitágoras,dadooraiodaLua(catetomaior),conseguiumedirasalturasdospicosiluminados(raiodaLua+alturadosmontes),concluindoseremperfeitamentedeacordocomasmedidasterrestres.V.ROSEN,E.GalileoonthedistancebetweentheEarthandtheMoon.Isis,1952,43:344-348.

58Galileusereferiaaseuinstrumentocomo“perspicilloexactissimo”.V.GALILEO,G.SidereusNuncius.1610,p.17.[Ooriginal,conhecidocomo“primeiraediçãoveneziana”,bemcomoaediçãodomesmoanoimpressaemFrankfurt,estãodisponíveisonlinenosítiodaBibliotecaLindaHall(http://www.lindahall.org)]

59GALILEO,G.SidereusNuncius.1610,p.17;COHEN,B.I.Onascimentodeumanovafísica.SãoPaulo:Edart,1967,p.75.60Pelareconstruçãoquepodemosfazerhoje,conclui-sequeeleobservavaquatro“planetas”,masnasprimeirashorasdanoitedodia7de

janeirode1610haviaumaconjunçãoentreoprimeiroeosegundosatélites(depoisdenominadosIoeEuropa),queseapresentavamcomobrilhodeumúnico.

61Eleteriarealizadoumaobservaçãonodia28dedezembrode1609.Comoeleviviaemumreinoluterano,seguiaocalendáriojuliano,oqueseriaequivalenteaodia7dejaneirode1610nocalendáriogregoriano.Galileuficouenfurecidocomacomunicação,colocando-aemdúvida.GalileuexpõesuafúrianaaberturadeseulivroIlsaggiatore.Noentanto,éprovávelqueelatenhadefatosidofeita.Mourão,R.R.F.Dicionáriodeastronomiaeastronáutica.2ed.RiodeJaneiro:NovaFronteira,1995,p.511.

62Emverdade,osistemaptolomaicotinhasidosofisticadocomaintroduçãodeepiciclos,querigorosamentepoderiamresolveroproblema,masapenasparcialmente.

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63Cf.CAYEUX,A.;BRUNIER,S.Osplanetas.SãoPaulo:FranciscoAlves,1985,p.45.64OlivrofoiimpressonaHolanda,paraevitarcastigosaindamaioresdoqueosquejásofriacomaInquisição.65Aprimeiramedidadeparalaxeestelarsófoipossívelem1840.66V.BOIDO,G.NoticiasdelPlanetaTierra:GalileuGalileiylarevolucióncientífica.BuenosAires:A.Z.Editora,1996,p.275.67V.FILONOVICH,S.R.TheGreatestSpeed.Moscou:Mir,1986.68V.aobraoriginaldeCassini,LeshypothèsesetlestablesdessatellitesdeJupiter,reforméessurdenouvellesobservationsparmonsieurCassini.Paris,1693.Disponívelem:http://www-obs.univ-lyon1.fr/labo/fc/ama09/pages_hras/mars_t08_sat-j

69Cf.PERUZZI,G.Op.cit.p.63.70V.ZIMAN,J.ReliableKnowledge:anexplorationofthegroundsforbeliefinscience.Cambridge:CambridgeUniversityPress,1978.71Trata-sedomanuscritoDemotu(“Domovimento”),escritoaoredorde1590,masnuncapublicado.Galileumudousuasconclusõessobreo

assuntoapartirdeseutrabalhoexperimentalematemático,oqueexplicanuncaterretomadosuaescrita.72V.BOIDO,G.NoticiasdelplanetaTierra:GalileuGalileiylarevolucióncientífica.BuenosAires:A.Z.,1996,p.85-86.73Trata-sedeHistoriaAnimalium,publicadoemquatrovolumesemZurique,entre1551e1558.74Oanfiteatroesuahistória,eumtourvirtual,podemserencontradosnosítiodauniversidadedePádua:

http://www.dei.unipd.it/conferences/3DPVT/visita/italiano_wav/filmati/anatomico/visitateatro.htm.Acessoem:20fev.2012.75RAPPAPORT,R.GeologyandOrthodoxy:thecaseofNoah’sFloodineighteenthcenturythought.TheBritishJournalfortheHistoryofScience,1978,37(11):1-18.

76GAUDANT,J.Laquerelledestroisabbés(1793-1795):ledébatentreDomenicoTesta,AlbertoFortisetGiovanniSerafinoVoltasurlasignificationdespoissonspétrifiésduMonteBolca(Italie).In:TYLER,J.(acuradi)«MiscellaneaPaleontologica»,VIII.Verona:MuseoCivicodiStoriaNaturale,1999,p.159-206.

77Trata-sedaPontificiaAccademiadiReligioneCattolica,fundadapelosacerdoteGiovanniFortunatoZamboniem1801,comoobjetivodeclaradodedefenderasdoutrinasdogmáticaemoraldaIgrejaCatólica,vistascomoameaçadaspelasideiasinovadorasdaRevoluçãoFrancesa.FoiformalmentereconhecidapelopapaPioVIIesucessivospapaslheemprestaramapoio.Em1934,foiincorporadaàPontifíciaAcademiaRomanadeTomásdeAquino,fundadaem1879.

78Teólogosprotestantesutilizamaexpressão“catolicismoanti-iluminismo”paradesignarafaseinicialdoquechamamde“catolicismoreacionário”,queteriaperduradode1790atéoConcílioVaticanoII,naprimeirametadedosanos1960.

79Verporex.DOMINICI,S.Brocchi’sSubapennineFossilConchology.Evolution:educationandoutreach,2010,3:585-594,e,DOMINICI,S.&ELDREDGE,N.Brocchi,Darwinandtransmutation:phylogeneticsandpaleontologyatthedawnofevolutionarybiology.Evolution:educationandoutreach,2010,3:576-584.

80BROCCHI,G.ConchiologiafossilesubappenninaconosservazionigeologichesugliAppenniniesulsuoloadiacente.Milão:GiovanniSilvestre,1843[1814],2v.,v.1,p.400.

81V.ABBAGNANO,N.Op.cit.,p.556-559.82WilliamPaleyformou-senoChrist’sCollege(omesmoemqueDarwinestudou)em1763eescreveulivrossobreTeologiaquesetornaram

leituraobrigatóriaatéoséculoXX,comoAViewoftheEvidenceofChristianity(1794)eNaturalTheology;or,EvidencesoftheExistenceandAttributesoftheDeity,CollectedfromtheAppearancesofNature(1802).

83EqueRichardDawkinsperverteránotítulodeseulivroOrelojoeirocego.84V.CAPONI,G.LasegundaAgendaDarwiniana:contribuciónpreliminaraunahistoriadelprogramaadaptacionista.CidadedoMéxico:

CentrodeEstudiosFilosóficos,PolíticosySocialesVicenteLombardoToledano,2011,p.197.85V.BIZZO,N.;L.E.BIZZO.CharlesDarwinintheAndes.JournalofBiologicalEducation,2006,40:68-73.86Ofinalismofoiumdosmaioresobstáculosparaoestabelecimentodabiologiaevolutivaeé“atualmentereconhecidocomoinútilemtodosos

camposdaexplicaçãocientífica”,eseresumeaumadastantas“esperançasouilusõesparaasquaisapelaohomemnafaltadeprocedimentoseficazesouemsubstituiçãoaeles”.Cf.ABBAGNANO.Op.cit.,p.95.

87PATTERSON,H.ThecompetitiveDarwin.Paleobiology,2005,31(2,supplement):56-76.88TheHand:itsmechanismandvitalendowmentsasevincingdesign(1834).89Omovimentoatualdenominado“intelligentdesign”apenasatualiza,comcontextosmolecularesebioquímicos,esseprojetoeditorial

concebidonotestamentodocondedeBridgewaterem1825,combasenolivrodePaley,de1802.90BIZZO,N.Darwineaevoluçãohumana:desfazendoalgunsmitos.Ciência&Ambiente,2008,v.36,p.23-36.91OSPOVAT,D.TheDevelopmentofDarwin’sTheory.Cambridge:CambridgeUniversityPress,1993.92OartigodeC.Lyellfoipublicadonaedição1665,de24desetembrode1859,dojornalliterárioTheAthenaeum,p.403-404.

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93TheAthenaeum:1673,19nov.1859,p.659-660.94Afrase“Lightwillbethrownontheoriginofmanandhishistory”estáestampadaàpágina488daediçãooriginalde1859.Elaserefere

aosprogressosdapsicologiaedaspossibilidadesdeexplicaçãodaaquisição“necessariamenteprogressiva”dasfaculdadeseaptidõesmentaishumanas.

95HUXLEY,T.H.Man’sPlaceinNature.TheUn.AnnHarbor:MichiganPress,1961[1863],p.31.96IssonãosignificaqueWallacetivesseacumuladoevidênciasdamesmaformaqueDarwin,quejátinhaescritodoisensaiosexpondosua

teoria(em1842e1844)eestavaterminandoaredaçãodeseu“BigSpeciesBook”,depoisresumidoemOriginofSpecies(1859).97HUXLEY,T.H.Man’sPlaceinNature.TheUn.AnnHarbor:MichiganPress,1961[1863],p.10.Huxleycitacomofonte:“Regnum

Congo:hocestveradescriptioregniafricaniquodtamabincolislusitanscongusappellatur,perPhiluppumPigafettam,olimexEdoardoLopezacroamatislinguaItalicaexcerpta,numLatiosermonedonateabAugust.Cassiod.Reinio.Iconibusetimaginibusrerummemorabiumquasivivis,operaetindustriaJoan.TheodorietJoan.IsraelisdeBry,fratrumexornata.Francofurti,MDXCVIII”.JáaEncyclopaediaBritannicacitaDuarteLopez,queteriavividonoCongoentre1578e1587eposteriormentesidomandadoaRoma,ondeteriacontadosuahistóriaaFelipePigafetta(nãoconfundircomAntonioPigafetta,ofamosovicentinoquesobreviveuàprimeiracircunavegaçãodoglobo),oqualteriapublicadoseurelato“DescriçãodoreinodoCongo”em1591.ComoHuxleytranscreveudiversaspartesdolivro,épossívelquesetratedeediçõesdiferentesequeapesquisahistóricadeHuxleytenhasido,defato,acurada.

98Naverdade,osdoisfranceses,quandoprofessoresnoMuseudeHistóriaNaturaldeParis,escreveramcincomemóriassobrevertebradosem1795,umadelasintituladaHistoiredesMakis,ousingesdeMadagascar.

99HUXLEY,1961[1863],p.59,citaotrabalhododr.ThomasN.Savageereproduzlongotrechodele,identificando-ocomo“NoticeoftheexternalcharactersandhabitsofTroglodytesGorilla.BostonJournalofNaturalHistory,1847”.

100Pertenceuadiversassociedadescientíficas,comoaLinneanSociety,produziuilustraçõesparacientistascomoCharlesDarwinereconstruiudinossaurosparaaprimeiraexposiçãopúblicadessesanimais,emLondres,em1852.

101Porexemplo,àpágina91,estãoreproduzidososossosdabaciadoserhumano,dogorilaedogibão“reducedfromdrawingsmadefromnature,ofthesameabsolutelenght”.

102Asúltimaspáginasdasegundaparteforamseparadascomoumapêndicesobreapolêmicaqueenvolviaadiscussãodassimilaridadesanatômicasdocérebrodoserhumanoeodosmacacos,comumavigorosacríticaaosmétodoseresultadosdodr.RichardOwen,doMuseuBritânico,decertamaneiraestendendoadiscussãoiniciadacomWilberforceemjunhode1860.

103V.HENDERICKX,L.Philippe-CharlesSchmerling(1790-1836)revealstheantiquityofmanthankstoantediluviandepositsoftheLiègecaves.ActaPsychiatrBelg,1994,94(4-6):183-212.

104OcrâniodescritonacavernadeEngisestavamuitodanificadoeSchmerlingconcluiuquesetratavadeumcrâniodeumapessoacom“limitadasfaculdadesintelectuaisebaixograudecivilização:umadeduçãoqueemergedocontrasteentreacapacidadedaregiãofrontalcomaoccipital”,concluía(HUXLEY,1961,[1863],p.143).

105Trechotraduzidodiretamentedasp.87-88docap.IV,“NaturalSelection”,da1aediçãodeOriginofSpecies,disponívelem:http://darwin-online.org.uk.Acessoem:15nov.2011.

106V.PRICHARD.J.C.ResearchesintothePhysicalHistoryofMankind.Londres:JohnandArthurArch,1826,p.569-571,volii.107Pricharderaummilitanteopositordocomérciodeescravos(v.DESMOND,A.;MOORE,J.Darwin’sSacredCause.Londres:Allen

Lane,2009).108Idem,p.574-575.109Emboranasegundaediçãodesuaobra(1826)essaafirmaçãonãoapareçaclaramenteestampada,elapodeserinferida,dadaa

metodologiautilizadaparadiscutiradistribuiçãodostiposdecordepelenoglobo.Noentanto,naterceiraedição,publicadapostumamenteem1851,aafirmaçãofoiexplicitamenteintroduzida.EstaeraprecisamenteaediçãoqueCharlesDarwinpossuía(v.DESMOND,A.;MOORE,J.Darwin’sSacredCause.Londres:AllenLane,2009,p.54-55).

110O“longomanuscrito”foipublicadoemSTAUFFER,R.C.CharlesDarwin’sNaturalSelection.Cambridge:CambridgeUniversityPress,1975.

111GÄRTNER,F.C.VersucheundBeobachtungenüberdieBastarderzeugungimPflanzenreiche.Stuttgart:K.F.Herring,1849(“Experimentoseobservaçõessobreaproduçãodehíbridosnoreinovegetal”).

112STAUFFER,1975[Darwin,1856],p.49.113Oquati(Nasua)naverdadetemampladistribuiçãogeográfica,queseestendeporboapartedoterritórioflorestaldaAméricadoSul,até

onortedaArgentina.Suacriaçãoemcativeiroseuropeusprovavelmentefoidificultadapeloinvernorigoroso.114STAUFFER,1975[Darwin,1856],p.83.115Ibidem.116DARWIN,C.VariationsofAnimalsandPlantsUnderDomestication.Londres:J.Murray[1868],1885,v.2,p.35.

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117DARWIN,op.cit.,p.36.118DarwincitaemnotaderodapéotrabalhodeNaudin,comareferência“NouvellesArchivesDuMuseum,tom1,p.137”(ibidem,p.46).119Ibidem,p.46.120A“leiválidaparaPisum”(ervilhas)nãotinhasidoconfirmadaporMendelcomoutrasespécies,daípensarqueelafossseválidasomente

paraaservilhas.121DARWIN.Op.cit.,p.390.122FREIRE-MAIA,N.GregorMendel:vidaeobra.SãoPaulo:T.A.Queirós;eEdusp,1995,p.32.123FREIRE-MAIA,1995[Mendel,1866],p.87.124MAYR,E.TheGrowthofBiologicalThought.Cambridge(Mass.):HarvardUniversityPress,1982.125Eminglês,ostermosoriginaissão“hardinheritance”e“softinheritance”.126MÜLLER-WILLE,S.;Orel,V.FromLinnaeanSpeciestoMendelianFactors:ElementsofHybridism,1751-1870’.AnnalsofScience,

2007,64(2):171-215.127Assumem-senesteensaio,comosinônimos,osvocábulosingleses“hibridism”e“mongrelism”,conquantoemsuaformaoriginalse

referissem,respectivamente,ahíbridosvegetaiseanimais(“mulas”).128V.MAYR,E.JosephGottliebKölreuter’sContributionstoBiology.Bruges:Osiris,2ªsérie,1986,v.2,p.135-176.129GASKING,E.B.WhywasMendel’sworkignored?JournaloftheHistoryofIdeas,Pensilvânia:1959,20:60-84.130GOSS,John.Onthevariationinthecolourofpeas,occasionedbycrossimpregnation.[Read15October1822.]Transactionsofthe

HorticulturalSocietyofLondon,1824.ApudGASKING,1959,5:234-237.131GASKING,1959,p.62.132V.MAYR,E.JosephGottliebKölreuter’sContributionstoBiology.Bruges:Osiris,1986,2ªsérie,v.2,p.135-176.133OLBY,R.C.Mendel,noMendelian?HistoryofScience,1979,17:53-72.134V.BIZZO,N.M.V.&EL-HANI,C.N.DarwinandMendel:evolutionandgenetics.JournalofBiologicalEducation,2009,v.43,p.

108-114.135V.Porexemplo,SOKAL,A.;BRICMONTJ.Imposturasintelectuais.RiodeJaneiro:Record,2006.136ZIMAN.J.Op.cit.,p.82.137FísicoteóricodaUniversitéCatholiquedeLouvain,quetemtrabalhosnaáreadefilosofiadaciênciaeobrasemconjuntocomNoam

ChomskyeAlanD.Sokal.EstevenoBrasilem1999,quandoparticipoudediversoseventos,umdelescomoáudiogravado(BienaldoLivro).

138JeanBricmontfezquestãoderessaltarqueosmesmosconteúdossãovistosapenasemnívelsuperiornosEstadosUnidos,e,mesmoassim,apenasemcertascarreiras.

139V.otextobaseadonaConferênciaMundialsobreCiência,SantoDomingo(10-12mar.1999),enaDeclaraçãosobreCiênciaseaUtilizaçãodoConhecimentoCientífico,Budapeste,1999,em:AciênciaparaoséculoXXI:Umanovavisãoeumabasedeação.Brasília:Unesco;ABIPTI,2003,72p.

140V.BIZZO,N.MetodologiadeensinodaBiologiaeestágiosupervisionado.SãoPaulo:Ática,2012.141ROGOFF,B.Anaturezaculturaldodesenvolvimentohumano.PortoAlegre:Artmed,2005.142DUSCHL,R.A.etal.(eds.)TakingSciencetoSchool:learningandteachingscienceinGradesK-8.Washington:TheNational

AcademiesPress,2007.143BIZZO,N.Maisciêncianoensinofundamental.SãoPaulo:EditoradoBrasil,2010,p.16-17.144Cf.MACHADO,J.P.Dicionárioetimológicodalínguaportuguesa.3ed.Lisboa,Livros:Horizonte,v.IV,p.122.145Ibidem,p.116.146Trata-sedadefiniçãodaprofessoraLuiginaMortari(“concezioneformularistica”).(MORTARI,L.Ricercareerifletere:laformazionedel

docenteprofessionista.Roma:CarocciEditore,2009,p.43-44.)147Umaboadiscussãosobrea“históriadométodo”podeserencontradaemDOLL,J.;DACOSTA,R.Metodologiadeensinoemfoco,

práticasereflexões.PortoAlegre:EditoradaUFRGS,2004.Emespecialocapítulo“Ametodologiatemhistória”,deJohannesDolleRusselTeresinhaDutradaCosta,p.25-39.

148V.ERDURAN,S.ReflexionsontheProceedingsfromHPSSTConferences:aprofileofpapersonchemistryeducation.Calgary:ProceedingsoftheHPSSTConference,1997.

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149V.BIZZO,N.PesquisasemensinodeBiologia,FísicaeQuímica:consideraçõessobreseuvalorheurísticorelativoeimplicaçõesparaahistóriadaciência.AtasdoIEncontroNacionaldePesquisaemEnsinodeCiências.ÁguasdeLindoia(SP):CNPq/UFRGS,1997.

150V.REDONDI,P.Galileuherético.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1991.Emborasejaresultadodeumtrabalhoinvestigativomuitosério,atesecentraldeRedondi,dequeGalileunãofoicondenadopordefenderCopérnico,questionaraexegesebíblicaedevidoàsdivergênciaspessoaiscomaaltahierarquiacatólica,maspordefenderastesesatomistasdeLeucipo,quecolocariamemdúvidaabasedaliturgiacristã,nãoconvenceuacomunidadedehistoriadoresdaciência.Asatasde22dejunhode1633,nacondenaçãodeGalileunoSantoOfício,estãobempreservadas,bemcomoosinterrogatóriosaquesesubmeteu,nosquaisnãohámençãoaquestõesoutras(comosuacrençaatomista).

151V.porexemplo:BAJEMA,Carl.CharlesDarwinonManinthefirsteditionoftheOriginofSpecies.JournaloftheHistoryofBiology,1988,21(3):403-410;BOWLER,P.J.DarwinonManintheOriginofSpecies:AreplytoCarlBajema.JournaloftheHistoryofBiology,1989,22(3):497-500;COOKE,K.J.DarwinonManintheOriginofSpecies:anaddendumtotheBajema-Bowlerdebate.JournaloftheHistoryofBiology,1989,23(3):517-521.

152V.BIZZO,N.M.V.DarwinonManintheOriginofSpecies:furtherfactorsconsidered.JournaloftheHistoryofBiology,1992,25(1):137-147.

153AexpressãoédeJamesMoore,que,juntocomAdrianDesmond,éautordeumaimponenteobrasobreDarwin.AmigodeBowler,ambosresidememCambridge,eassimdefiniuoamigoemsuaconferênciaem2010nareuniãoanualdaAssociaçãoBrasileiradeFilosofiaeHistóriadaBiologia(SãoPaulo,SP).

154AAssociaçãoBrasileiradeFilosofiaeHistóriadaBiologia(SãoPaulo,SP)mantémpublicaçõesregulares,comoumboletimeumarevistaarbitrada(FilosofiaeHistóriadaBiologia),disponíveisemhttp://www.abfhib.org

155ALLCHIN,D.PseudohistoryandPseudoscience.Science&Education,2004,13:179-195.156V.LEDERMAN,N.G.Synthaxofnatureofsciencewithininquiryandscienceinstruction.In:FLICK,L.B.&LEDERMAN,N.G.

(eds.).ScientificInquiryandNatureofScience.Dordrecht:Kluwer,2004,p.301-307.157V.GALILEI,Galileu.Oensaiador.SãoPaulo:NovaCultural,2000.(ColeçãoOsPensadores).EmespecialaintroduçãodeJosé

AméricoMottaPessanha(p.5-9).

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