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Presenças Africanas na cultura Brasileira “Presenças Africanas na Cultura Brasileira”, pertence ao primeiro capítulo do livro, cujo título é: “Diversidade Cultural e currículos escolares”. PEREIRA, Edimilson de Almeida. Malungos na escola: questões sobre culturas afrodescendentes e educação. São Paulo: Paulinas, 2007.

Presenças africanas

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Presenças Africanas na cultura Brasileira

“Presenças Africanas na Cultura Brasileira”,pertence ao primeiro capítulo do livro, cujo títuloé: “Diversidade Cultural e currículos escolares”.

PEREIRA, Edimilson de Almeida. Malungos na escola:questões sobre culturas afrodescendentes e educação.São Paulo: Paulinas, 2007.

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Presenças Africanas na cultura Brasileira

Segundo dados reconhecidos por diversos estudiosos, o Brasil recebeu cerca de

quarenta por cento dos quase dez milhões de africanos que foram transportados para as

Américas no período compreendido entre os séculos XVI e XIX. Esses números, por si só,

indicam as estreitas ligações que, ao longo do tempo, foram tecidas entre o Brasil e o

continente africano. Pensar o brasil a partir desse fato significa dar atenção a uma gama

de elementos culturais relacionados à diáspora africana que se tornaram parte de nossa

percepção do mundo e de nossas práticas cotidianas.

Apesar disso, o tratamento que a sociedade brasileira dispensou aos africanos e

aos seus descendentes foi marcado, em geral, pelo preconceito e pela violência. A partir

da implantação do regime escravista, aos olhos das elites brasileiras os aspectos referentes

às culturas africanas passaram a representar o exótico e o estranho, não sendo levados em

conta como um fator, entre outros, de formação de nossas identidades. Essa maneira de

perceber os africanos e a África foi acolhida por outros segmentos de nossa população,

não obstante o papel decisivo que os africanos e os afro-brasileiros desempenhavam,

juntamente com outros grupos, na formação de nossa sociedade.

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No Século XIX (quando o Brasil se afastava de Portugal, rumo à sua

independência) nossos escritores e artistas elegeram a figura do índio e o esplendor da

natureza como símbolos de nossa nacionalidade. Isso ocorreu na medida em que o

português foi sendo identificado como a figura do ex-colonizador e o negro africano,

por sua vez, com a imagem do atraso e da ignorância. A idealização do índio na

literatura romântica produzida no Brasil e a rejeição dos demais grupos étnicos do País

caracterizam-se como um procedimento reducionista. Ou seja, esse modo de ver e

afirmar a identidade nacional baseou-se na fixação de valores que ora idealizam um

grupo, ora idealizavam outro.

Reconhecer as especificidades dos diferentes contingentes culturais que dão

forma à nação brasileira é uma condição fundamental para construirmos uma

sociedade justa e solidária, que tenha no diálogo e no respeito ao outro o ponto de

partida para a promoção do bem comum. No presente tópico faremos um recorte no

mosaico cultural brasileiro, procurando apreender as práticas culturais e os valores de

procedência africana que ajudaram a construí-lo. Espera-se que esse exercício

contribua para entendermos as nossas próprias fronteiras culturais, estreitando, a partir

daí, nossos gestos de cooperação e interação.

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Essa presença africana, como salienta Roberto Benjamim (2004), mostra-se de

maneira concreta quando, por exemplo, em viagens através do País nos deliciamos com o

acarajé (bolo de feijão temperado e moído com camarão seco, cebola e sal, frito no azeite-de-

dendê), o vatapá (papa de farinha de mandioca temperada com azeite-de-dendê e pimenta),

o abará (bolo de feijão e azeite-de-dendê, enrolado em folha de bananeira), o munguzá (feito

com milho em grão, podendo ser servido salgado ou doce), o cuscuz (bolo de farinha de milho,

arroz ou mandioca cozido no vapor). Os modos de preparar os alimentos demonstram como

nossos antepassados africanos investiram na inserção de seus hábitos em nosso cotidiano. O

gosto por determinados ingredientes e a sua introdução na cozinha brasileira revelam, de

alguma maneira, a necessidade que os africanos tinham de interagir com a realidade que lhes

era apresentada. Nesse caso, a troca de sabores representava também uma troca de saberes

entre os diferentes grupos da sociedade brasileira.

A dança e música brasileira ressoam numa variedade de estilos as heranças

africanas, seja na intensidade dos batuques, seja no ritmo sincopado do samba. Os batuques

foram praticados em diversas regiões, principalmente naquelas onde a escravidão atuou como

impulsionadora das atividades econômicas e sociais. Sob várias denominações, os batuques

permitiam aos africanos e aos seus descendentes reafirmar seus laços de pertencimento ao

grupo, bem como comentar fatos do cotidiano. Em sua forma mais conhecida, o batuque

consiste numa dança em que os participantes se colocam de frente uns para os outros. O ponto

alto ocorre quando homens e mulheres se aproximam para o gesto da umbigada.

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No conjunto das celebrações em que o canto e a dança remetem aos

ancestrais africanos e aos santos católicos, há que se destacar o Jongo (Rio de Janeiro,

São Paulo) e o Candombe (Minas Gerais). Ambos consistiam em canto e dança

acompanhados pelos toques dos tambores. No Jongo os instrumentos são chamados de

tambu (tambor maior) e candongueiro (tambor menor), além da inguaia (chocalho). No

Candombe, os tambores recebem nomes diferentes nas várias localidades; uma

sequência possível de nomes é Santana, Santaninha, jeremia mais o guaia (chocalho) e

a puitá (cuíca).

O samba, tal como o Blues, apresenta questões que indicam a complexidade

de sua formação, desenvolvimento e transformação. A “pequena África”, nome que se

dava à casa de Tia Ciata, situada no centro do Rio de Janeiro antigo, funcionou como

um lugar de reunião de afro-brasileiros. Desses encontros nasceram atividades que

marcaram, passo a passo, a inserção do samba nos grandes centros urbanos. Essa

linhagem do samba, entranhada nas vias da cidade, forneceu elementos que ajudaram

a configurar o carnaval das grandes escolas e dos desfiles públicos.

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Na vivência religiosa dos brasileiros, as presenças africanas ~soa profundas e complexas.

Por um lado, temos o Candoblé, religião de origem africana ou, como também é chamada, a religião

dos orixás. Os orixás, de procedência ioruba, segundo os preceitos sagrados, cuidam de partes

específicas do mundo e da natureza. Há orixás que zelam pela colheita, pelo raio, pela chuva, pelo

mar, pela afetividade, etc. Entre os mais conhecidos, estão Exu (mensageiro e guardião das

encruzilhadas), Ogum (deus da guerra, do ferro e da tecnologia), Xangô (deus da justiça e do trovão),

Iemanjá (deusa da maternidade, do mar) Iansã (deusa das tempestades, dos raios, dos ventos), Oxum

(deusa da fertilidade, do amor) Nanã (deusa da lama, da terra), Oxalá (deus da criação). Nas sessões

de Candomblé, os orixás se manifestam através da incorporação, atuando como intermediários entre

os seres humanos e a natureza. Por isso, eles estão inseridos em nossa vida social, atendendo às

expectativas de brasileiros e estrangeiros em relação ao sagrado.

Por outra parte, temos o Congado, que aproxima heranças africanas de origem banto,

aspectos sagrados do catolicismo e, em algumas regiões, aspectos de culturas indígenas. No

Congado, os devotos cantam e dançam, ao som dos tambores, para louvar os antepassados, os

deuses Zambi e Calunga (divindades do panteão banto) e os santos católicos (entre eles, Nossa

Senhora do Rosário, são Benedito, santa Efigênia, são João e são Jorge, etc.). Uma das características

do Congado é o cortejo dos ternos ou guardas, que percorrem as ruas, visitam igrejas, cantando e

dançando ao som de músicas sagradas. O Congado e Candomblé constituem vivências religiosas nas

quais muitos brasileiros de diferentes origens étnicas encontram os valores para se relacionar com o

mundo. Como práticas religiosas, o Congado e o Candomblé apresentam uma série de preceitos que,

uma vez conhecidos, ajudam os devotos a fazer suas escolhas pessoais e firmar alianças com seus

semelhantes. Além disso, essas práticas os situam dentro de uma ordem social que tem nas heranças

africanas a base para o diálogo com as demais matrizes culturais da sociedade brasileira.

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A presença das culturas africanas em nossa vida social não poderia deixar de se

expressar também no campo da língua que falamos. Pesquisas como a da professora Sônia

Queiroz apontam para a diversidade e a complexidade dessa interferência. Além dos

contatos entre os africanos no Brasil que, num primeiro momento, contribuíram para a

formação dos “falares de emergência” – no dizer da professora Yeda Pessoa de Castro (ver

QUEIROZ, 1998:101) -, há que se considerar os vínculos sociais linguísticos estabelecidos entre

negros e brancos. De acordo com Sônia Queiroz, a intensificação desse contato, “verificada

sobre tudo a partir do período mineratório, quando o negro é utilizado também no trabalho

doméstico, teria gerado novas misturas: o ‘dialeto das minas’, nas vilas de mineração e o

‘dialeto rural’, nas fazendas de gado.

O livro A influência africana no português do Brasil, de Renato Mendonça – embora com

pontos de vista, conclusões e metodologias de pesquisa passíveis de serem criticados e

reinterpretados pelos estudos sociolinguísticos contemporâneos – constitui uma interessante

abordagem da relação entre o português e as diferentes línguas africanas. Além disso, a

obra trabalha com dados que nos permitem dimensionar a interferência dos africanos e de

seus descendentes na língua falada no território brasileiro, de modo particular nas estruturas

fonéticas. Vejamos alguns exemplos:

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ASSIMILAÇÃO

• O fonema j passa para a sibilante z: Jesus > Zesús / José> Zosé.

ROTACIONISMO

• A inexistência do r nas línguas banto originou asubstituição do r forte português pela linguodental l ouseu abrandamento em r fraco: rapaz > lapassi / carro >calo.

REDUÇÃO

• Os dois ditongos ei e ou, por influência africana,reduziram-se na língua popular do Brasil:

• ei > ê – cheiro > chêro / peixe > pêxe / beijo > bêjo[...]

• ou > ô – lavoura > lavôra / couve > côve / louco > lôco (MENDONÇA, 1973: 61-66)

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No entanto, pesquisadores como a professora Yeda Pessoa de Castro (2001 e

2002) demonstraram, recentemente, que as interferências africanas no campo da língua vão

além dos aspectos sintáticos, fonéticos e morfológicos. Ou seja, as relações das línguas

africanas com o português criaram recursos de comunicação que contribuíram para que os

afrodescendentes, mas não apenas eles, expressassem sua visão de mundo, suas

experiências sociais e suas formulações ideológicas, desde que passaram a se entender

como sujeitos pertencentes a uma sociedade multiétnica e multicultural. Ao avanças nessa

perspectiva, que vincula os usos da língua às circunstâncias históricas e sociais, Yeda Pessoa

levanta uma intrigante questão, que considera relevante a descrição do português e das

línguas africanas do grupo banto e Kwa. Segundo ela, o reconhecimento da influência dos

africanos em nossa língua e, diríamos nós, também na articulação de um certo perfil da

sociedade brasileira envolve

a decisão política de admitir a necessidade de trabalhar uma linguística afro-brasileira e

buscar mecanismos para implantar, em programas de iniciação científica e de

pesquisa, cursos de capacitação docente nas áreas de competência em questão, a

fim de legitimar as línguas africanas no Brasil, dando visibilidade aos seus falantes para

que possamos recuperar o passo da história que perdemos, ou seja, admitir que o

africano adquiriu o português como segunda língua e foi o principal responsável pela

difusão da língua portuguesa no território brasileiro (CASTRO, 2001: 78)

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É importante frisar que o inventário aqui apresentado se

abre diante de nós como um mapa social, político e cultural. E como

todo mapa, adquire sentido e, realmente aponta direções, quando nos

dispomos a interpretá-lo. Veja-se, por exemplo, como a interpretação

desse tipo de mapa nos apresenta antigas questões sob novos ângulos

– tal é o caso das línguas africanas e suas relações com o português -,

indicando que a elaboração de sentido para os fatos constitui uma das

mais importantes atividades do sujeito. Por isso, essa tarefa cabe a

todos nós que queremos entender-nos como participantes da

sociedade brasileira. Sendo assim, além de reconhecer esta ou aquela

influência, desse ou daquele grupo cultural, é necessário

compreendermos os modos como essas influências contribuíram – e

continuam contribuindo – para sermos o que somos, como indivíduos e

como sociedade.

PEREIRA, Edimilson de Almeida. Malungos na escola:questões sobre culturas afrodescendentes e educação.São Paulo: Paulinas, 2007. p. 22-27