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1 Textos Informativos Complementares Expressões Português 12.° ano EXP12 © Porto Editora SEQUÊNCIA 4 O memorial ou da história profana como história santa A música é um rosário profano de sons, mãe nossa que na terra estais. Memorial este povo que tanto espera do céu, olha pouco para o alto onde se diz que o céu é. Memorial Há um momento, no coro polifónico das vozes através das quais se vão inventando os desti- nos diversamente predestinados de Baltasar e Blimunda, em que a inicial e omnisciente voz que abre o texto do Memorial se interioriza, se distancia do seu tom irónico, adequado à representação de um mundo de artifício, de ignorância ou de superstição, para se assumir como contraponto livre, ponto de fuga de uma aventura tão intensamente humana que só as palavras reservadas ao divino a podem evocar. E mesmo estas ficam aquém daquilo que nessa nova voz se revela como sendo a essência misteriosa dessa aventura. Esse é o momento em que vindo, não por acaso, de um outro mundo, Scarlatti, ou antes, a sua música, entra em cena e vem interferir nas vidas pro- fanas dos protagonistas, mas mais ainda nas do narrador que, evocando-as, as cria descobrindo no milagre da criação que está levando a cabo a mesma emoção e quase o mesmo pânico de quem inventou o fogo. Nesta altura da sua “construção”, paralela e antitética de que um rei magnânimo por fora e impotente como criador de si mesmo, deseja levar a cabo, o narrador-autor sabe que a sua invenção literária, a sua nau de palavras e de sonho metodicamente controlados está já em pleno alto mar, que de algum modo se escapou de suas mãos, que é um rosário de sons com o mesmo condão que o dos acordes surgidos como da mesma vida, dos dedos de Scarlatti. Na cena que mostra o grande músico inventando, como quem respira, qualquer coisa que tem o dom de encantar, novo Orfeu, quem o ouve, mesmo os mais rústicos ouvidos, José Saramago pode, com a mesma sensação de magia de Scarlatti, expor a poética do seu romance ou da sua escrita como instrumento de transfiguração e resgate de toda a experiência humana. “O italiano dedilhou o cravo, primeiro sem destino, depois como se estivesse à procura de um tema ou quisesse emen- dar os ecos, e de repente pareceu fechado dentro da música que tocava, corriam-lhe as mãos sobre o teclado como uma barca florida na corrente, demorando aqui e além pelos ramos que das mar- gens se inclinam, logo velocíssima, depois pairando nas águas dilatadas de um lago profundo, baía luminosa de Nápoles, secretos e sonoros canais de Veneza, luz refulgente e nova de Lisboa.” Metáfora e espelho da sua própria experiência de romancista, com o seu modo particular de dar tempo ao tempo da evocação e da escrita, de a concentrar ou deixar que ela o arraste para divagações que jamais perdem de vista o movimento que as inspira, a música, mais do que a arte universal por excelência, é a invenção humana que confunde numa só realidade aqueles mundos que, por cegueira ou excesso de subtileza, chamamos “mundo profano” e “mundo divino”, céu e terra. O que a música parece incarnar como um dom natural – ou dom celeste – mas que é fruto da vigília, do saber, de uma fantástica vontade de resumir o sentido ou o enigma do universo numa harmonia sem cessar diferida, é da mesma ordem que a aventura histórica dos homens para se tornar totalmente humanos descobrindo pouco a pouco que não há outra harmonia, outro céu que aqueles que eles inventam humanizando tudo o que tocam, arrancando ao mundo da

Sagrado e profano no «Memorial»

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1Textos Informativos ComplementaresExpressões • Português • 12.° ano

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Por

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dito

raSEQUÊNCIA 4

O memorial ou da história profana como história santa

A música é um rosário profano de sons, mãe nossa que na terra estais.

Memorial

este povo que tanto espera do céu, olhapouco para o alto onde se diz que o céu é.

Memorial

Há um momento, no coro polifónico das vozes através das quais se vão inventando os desti-nos diversamente predestinados de Baltasar e Blimunda, em que a inicial e omnisciente voz que abre o texto do Memorial se interioriza, se distancia do seu tom irónico, adequado à representação de um mundo de artifício, de ignorância ou de superstição, para se assumir como contraponto livre, ponto de fuga de uma aventura tão intensamente humana que só as palavras reservadas ao divino a podem evocar. E mesmo estas ficam aquém daquilo que nessa nova voz se revela como sendo a essência misteriosa dessa aventura. Esse é o momento em que vindo, não por acaso, de um outro mundo, Scarlatti, ou antes, a sua música, entra em cena e vem interferir nas vidas pro-fanas dos protagonistas, mas mais ainda nas do narrador que, evocando-as, as cria descobrindo no milagre da criação que está levando a cabo a mesma emoção e quase o mesmo pânico de quem inventou o fogo. Nesta altura da sua “construção”, paralela e antitética de que um rei magnânimo por fora e impotente como criador de si mesmo, deseja levar a cabo, o narrador-autor sabe que a sua invenção literária, a sua nau de palavras e de sonho metodicamente controlados está já em pleno alto mar, que de algum modo se escapou de suas mãos, que é um rosário de sons com o mesmo condão que o dos acordes surgidos como da mesma vida, dos dedos de Scarlatti. Na cena que mostra o grande músico inventando, como quem respira, qualquer coisa que tem o dom de encantar, novo Orfeu, quem o ouve, mesmo os mais rústicos ouvidos, José Saramago pode, com a mesma sensação de magia de Scarlatti, expor a poética do seu romance ou da sua escrita como instrumento de transfiguração e resgate de toda a experiência humana. “O italiano dedilhou o cravo, primeiro sem destino, depois como se estivesse à procura de um tema ou quisesse emen-dar os ecos, e de repente pareceu fechado dentro da música que tocava, corriam-lhe as mãos sobre o teclado como uma barca florida na corrente, demorando aqui e além pelos ramos que das mar-gens se inclinam, logo velocíssima, depois pairando nas águas dilatadas de um lago profundo, baía luminosa de Nápoles, secretos e sonoros canais de Veneza, luz refulgente e nova de Lisboa.”

Metáfora e espelho da sua própria experiência de romancista, com o seu modo particular de dar tempo ao tempo da evocação e da escrita, de a concentrar ou deixar que ela o arraste para divagações que jamais perdem de vista o movimento que as inspira, a música, mais do que a arte universal por excelência, é a invenção humana que confunde numa só realidade aqueles mundos que, por cegueira ou excesso de subtileza, chamamos “mundo profano” e “mundo divino”, céu e terra. O que a música parece incarnar como um dom natural – ou dom celeste – mas que é fruto da vigília, do saber, de uma fantástica vontade de resumir o sentido ou o enigma do universo numa harmonia sem cessar diferida, é da mesma ordem que a aventura histórica dos homens para se tornar totalmente humanos descobrindo pouco a pouco que não há outra harmonia, outro céu que aqueles que eles inventam humanizando tudo o que tocam, arrancando ao mundo da

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2 Expressões • Português • 12.° ano Textos Informativos Complementares

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Porto Editoranecessidade, da opressão, do arbítrio de que são feitos a liberdade que não lhes é dada senão como recompensa atrasada dos seus combates sempre duvidosos e fatais. Não espanta que esta evocação do “dom” de Scarlatti, humano e supra-humano ao mesmo tempo, remate com uma fórmula, toda penetrada dos ecos da palavra sacra, cientemente profanizada, alguns poderão pensar profanada, mas esses falharão o que é, segundo creio, não só a intenção profunda do autor, mas aquilo que dá ao Memorial a sua amplitude histórico-metafísica e mesmo, em sentido pró-prio, religiosa: “a música é um rosário profano de sons, Mãe nossa que na terra estais”.

Se no Memorial se tratasse apenas de uma mera sátira de um comportamento histórico, social, ideológico, típico de uma cultura e um século particulares – a primeira metade do século XVIII português com o seu poder sacralizado e vazio, os ritos infantis e cruéis de um catolicismo com-pletamente desfasado do movimento geral do espírito europeu –, sátira conduzida a partir de uma visão da História e da sociedade como futuramente imunes de tais estreitezas e opressões, a fábula que une numa aventura comum um homem da Igreja, o sábio inspirado e temerário, a uma criatura de inumana-humana clarividência como Blimunda e um homem que não possui como arma senão o seu destemor, a força tranquila do seu trabalho ingrato e doloroso iluminado pela confiança no sonho alheio e pela paixão, pelo mistério feito mulher, o romance não perderia o seu encanto propriamente romanesco, fascínio que exerce como máquina de viajar com um guia um pouco indiscreto num outro espaço e num outro tempo que são alegoria, como sempre, em Saramago, daqueles que são ainda os nossos. Mas o Memorial é menos essa sátira – que o objeto próprio, embalsamado pela História, até poderia tornar inócua – do que a tentativa coroada de sucesso, de dar corpo visível a uma leitura global da aventura humana como aventura redentora, mas não no sentido iluminista de um Voltaire que conhece o santo e a senha da História e por isso a podia dessacralizar, torná-la profana ao ponto de a separar de todo o seu mistério e todo o seu enigma, enquanto, mistério e enigma indissoluvelmente ligados à nossa condição. A aventura humana, quer seja a irrisória de um rei e de um reino imersos numa espécie de antissonho, inves-tindo o sentido de uma vida e de um povo na cópia mimética ou megalomânica de sonhos alheios, quer a do sonhador de olhos abertos, como Bartolomeu de Gusmão ou as de Blimunda e Baltasar preservando a liberdade de amar e de ver para além das aparências, não é medida pela simples lucidez incarnada por um conhecimento racional capaz de separar a História da anti-História. À parte a vida dos “eleitos” como Blimunda, cuja eleição tem o mais elevado dos preços, “elei-ção” contrária ao mundo, aos seus poderes, evidências, glórias, toda a condição humana, toda a racionalização possível e precária da sociedade e da História, procede menos de qualquer dom soberano da inteligência ou da razão, que do esforço tenaz e obscuro de construir pedra a pedra, acaso um edifício que como o convento mítico nem agrada ao Deus a quem é consagrado, nem aos homens que são forçados a construí-lo, mas que, apesar da sua monstruosa massa de algum modo ascende para um céu que não tem outro sentido nem outro conteúdo que o sofrimento, mas também a humilde ciência, o insano trabalho dos que o construíram. O Convento não é só a antipassarola, a anti-História, totalmente negativa e privada de qualquer sentido humanizável, é uma obra humana não pela vontade super-humana e arbitrária que a decidiu, mas como ato sacrificial – um dos muitos que a humanidade sempre dedicou a si mesma através do qual “o inumano” não fica confinado no puro desespero ou deceção sem resgate da aventura coletiva da humanidade. Apesar das aparências em contrário, a construção do convento enquanto história do esforço humano não deixa de ilustrar a intuição central da visão de Saramago – e não apenas no seu livro mítico – da história profana dos homens como história santa.

Não é por acaso que todo o Memorial se joga na interferência de dois planos, ou melhor, de dois textos que, como na improvisação de Scarlatti exteriormente aleatória, se respondem um ao outro, não numa simples inversão, mas num espelhismo que funde numa só a realidade das ações humanas e a sua transcrição transcendente. Não há de um lado o reino de Deus e de outro o dos

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raHomens, este último esforçando-se desesperadamente e em vão por refletir a perfeição imóvel do primeiro. Há um só reino, como há menos um Deus, que uma Unidade. Entre a gaivota que como o espírito bíblico de Deus paira sobre a água mas também sobre a terra, e a alma e o sangue de Bartolomeu que se descobre seu irmão, não há distância mas consubstanciação. Tudo é um único desejo, uma imperiosa vontade de voar, de se levantar do chão para vencer com a naturalidade da gaivota tempo e espaço. Mais enigmático e vertiginoso é pensar que no mundo moral também a divisão, o abismo que separa a humanidade em duas, com a sua face solar e lunar, quer como Blimunda e Baltasar, quer como Jesus e Pilatos, provenha mais da nossa ainda imperfeita visão do mistério cada vez menos opaco da vida e do universo que da essência de uma realidade que se revela “una” à medida que a descobrimos, não por magia, mas viajando nela, apreendendo o lento movimento criador de que é feita. E é menos a viagem que torna possuidores e criadores do caminho que percorrido chamamos História, que o sonho, o sonho de sermos de algum modo os criadores da realidade como o Marinheiro constrói a cidade que vai sonhando para ter uma pátria que não lhe foi dada por ninguém. Nas maravilhosas páginas que precedem o momento supremo em que o sonho se vai converter em realidade, em que a passarola com a sua carga imaterial de vontade e o seu peso terrestre resumem a aventura humana entre risco e conquista, o narrador omnisciente e expectante volve-se Anjo Custódio, medianeiro entre céu e terra porque mestre da ciência dos contrários, Hermes redivivo, sem cuja sabedoria é impossível encontrar o elo que separa e une o material e o espiritual, o sólido e o evanescente. A própria música não basta, embora seja já céu na terra, para essa levitação da aventura humana como aventura divina. “Agora sim, podem partir. O padre Bartolomeu Lourenço olha o espaço celeste descoberto, sem nuvens, o sol que parece uma custódia de ouro.” É a sua visão divinamente terrestre ou terrestre-mente divina. A nova trindade humana, os três B, confundidos num só podem erguer-se do solo, sobrevoar o mundo, a passarola transfigurar-se por antecipação num “ovni” extraterrestre e o seu inventor passear-se no espaço celeste recapitulando em breves instantes as suas dolorosas pere-grinações humanas, longe dos demónios, dos esbirros, dos fantasmas da sua própria audácia. A condição humana é condição não só metafórica mas realmente angélica. Este pensamento é mais vertiginoso que todos os voos, passados e futuros. Terá o seu preço forte, a sua cruz e nela a sua redenção. Ninguém se rirá do homem que queria tocar o céu com as mãos, e levar a exígua vida humana acima de si mesma. Nela voará na companhia dos seus três anjos o narrador ausente, o criador de uma máquina mais fantástica que a passarola, a máquina livre que fará do seu autor um “filho predileto” ou predestinado de Deus, em todo o caso o filho da sua obra miraculosa, nova pomba que voará por cima do nosso espaço caseiro até aos confins do ainda não conhecido. Com ela levará a música das palavras e do sonho com que está tecida. E não seria mau profeta quem imaginasse que um dia, numa hora de repouso mágico do seu voo sem matéria, pousasse na flecha de alguma catedral ou nos telhados de algum templo consagrado ao canto com que os homens transfiguram a sua rude aventura em voo sideral. Poderíamos mesmo imaginar que essa catedral e esse templo fossem os da cidade onde o mais luminosamente barroco dos nossos sonhos crepusculares e futurantes, a obra escrita, se convertesse em Ópera.

LOURENÇO, Eduardo, 1994. O Canto do Signo. Lisboa: Presença