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Virgínia
vai à escola
com os rapazes
Elizabeth Fitzgerald Howard
E. B. Lewis (ilustrações)
A Virgínia estava sempre a pedir para ir à escola
connosco. Passou todo o verão a insistir que queria
ir para a escola.
— A escola é muito longe — dizia o Nelson.
— Demora-se muito a chegar à escola —
concordava o Will.
— A escola é muito difícil — afirmava o George.
— E tu és muito pequena — acrescentava o Val.
— Diz-lhes C.C, que já sou crescida!
E a Virgínia virava-se para mim.
— Virgínia, és pouco maior do que um rato de
campo — continuava o Val. — E a escola fica a 11
km daqui. É uma longa caminhada…
— E além disso — insistia o Nelson — temos de
ficar na escola durante toda a semana. Não ias
aguentar. Acabavas por chorar pela mamã.
— Não chorava nada, Nelson.
E a Virgínia batia com o pé no chão.
— Em todo o caso — continuava o Nelson — são
raras as raparigas que vão. As raparigas não
precisam de ir à escola.
— Não é bem assim, Nelson — respondia a
Virgínia. — As raparigas também precisam de ler,
escrever e fazer contas, tal como os rapazes.
Mas ainda não vos falei da nossa escola.
Durante dois anos nós, os rapazes — quero dizer o
George, o Will, o Nelson, o Val e eu, o C.C. —
frequentámos uma escola fundada pelos Quakers,
que abriram uma escola para negros depois de o
presidente Lincoln ter declarado que éramos
iguais.
Comecei então a interrogar-me: “E a Virgínia? Ela
também é livre. Não podia também ir à escola connosco,
com os rapazes?”
O verão foi passando, semana após semana, e a Virgínia
não cessava de pedir para ir à escola… Quando apanhava
os feijões, ou pesava grão para o nosso pai… Quando
costurava a orla das mantas, ou mexia a sopa para a
nossa mãe…. insistia sempre…
— Também posso ir, papá? Mamã?
— Virgínia, ficavas exausta só para chegares lá — dizia o
Will.
— O Cabeça Dura e o Ossos Sangrentos podem apanhar-
-te na floresta a caminho da escola — avisava o Nelson.
— Comiam-te toda.
Mas a Virgínia nem pestanejava. Mantinha-se direita e
continuava a pedir. Até que um dia, durante o trabalho no
campo, o nosso pai chamou-nos a nós e à Virgínia.
— A vossa mãe e eu temos andado a pensar. Todas as pessoas
livres precisam de aprender — velhos, novos… e as … e as
raparigas também. Por isso, Virgínia, na próxima estação
podes ir à escola. Podes ir à escola com os rapazes.
O verão chegou ao fim. Começaram as colheitas. Tinha
chegado o tempo da escola!
Domingo à noite estava tudo pronto. Um par de cuecas limpas
para cada um de nós. Uma camisa extra também. E comida
para toda a semana. Estava tudo pronto, mas o Nelson andava
preocupado.
— A Virgínia é muito pequena — disse.
Segunda-feira de manhã, a nossa mãe preparou-nos tigelas
com cereais. Também cozeu ovos. O nosso pai fez as
orações connosco. Pedindo por uma caminhada segura. Por
mentes lúcidas. E agradecemos pela nossa escola.
— Tomai conta da Virgínia — disse o papá — e tomai conta
de vós.
O George tomou a dianteira, dando instruções.
— Não andem tão depressa. Mantenham-se em fila.
Passámos ao lado do nosso celeiro e do moinho, e cortámos
pelo campo do Sr. McKinney.
— Virgínia, continua! — disse o Val.
Passámos a quinta do velho Sr. Smith e contornámos o lago
de Dickson.
— Cuidado, Virgínia! — exclamou o Will. — Essa hera é
venenosa.
Colina acima, colina abaixo, até ao ribeiro. Tirámos os sapatos, enrolámos as calças e prestámos atenção
onde púnhamos os pés, cansados e quentes. A água fria despertou-os. A Virgínia segurou a saia com uma
mão e, na outra, segurou os sapatos e o balde. Então, de repente, escorregou e caiu.
— Cuidado, Virgínia! — gritei, tentando agarrá-la, mas … splash! Caiu no ribeiro.
— Agora vai chorar — resmungou o Nelson.
Mas ela não chorou. A Virgínia ria-se!
— Está um dia quente — disse. — A minha saia vai secar.
A Virgínia tinha razão, pensei.
— Vamos embora — disse o George.
— Despachem-se — disse o Will. — Parece que vai chover.
Precisamente quando chegávamos ao bosque.
É cerrado o bosque… e escuro, mesmo quando o sol brilha. E
muito silencioso, mas isto não é o pior… Ainda não vos falei
deles? Do Cabeça Dura e do Ossos Sangrentos? Apanham-
-vos se não se portarem bem, dizem as pessoas. Apanham-
-vos de qualquer maneira.
— Não te assustes, Virgínia — disse-lhe.
— Não estou assustada, respondeu, mas segurou a minha
mão com força.
Ninguém falava. Apenas caminhávamos.
Silêncio absoluto. Exceto alguns ramos que partiam à
nossa passagem.
As árvores inclinavam-se sobre nós. As sombras
cresciam. Um ramo agarrou-se à minha camisa e o
meu coração desatou a bater descompassadamente.
Foi então que a Virgínia murmurou:
— Vamos cantar.
— É mesmo de rapariga, disse o Nelson.
Mas não demorou muito e também ele cantava “Go
down Moses”, “Oh Freedom”, “Eyes have seen the
glory”, e todas as canções de que conseguíamos
lembrar-nos. A caminhada decorreu muito mais
rapidamente. E nem parecia tão escuro. Em breve
deixámos a floresta e estávamos a léguas do Cabeça
Dura e do Ossos Sangrentos.
Atravessámos um campo e outro.
— Estamos quase lá, Virgínia. Estamos a chegar à vila.
Seguindo pela Rua Principal, passámos ao lado da
estalagem e do tribunal, das igrejas e das lojas, até ao
cimo da colina.
— Consegues vê-la, Virgínia? Consegues?
Estávamos quase todos aos gritos.
Grande.
De tijolo vermelho.
Com janelas altas e a porta aberta de par em par.
A nossa escola.
O diretor da escola, o Sr. Warner, saiu para
nos cumprimentar.
— Bem-vindos, rapazes. Estou feliz por vos ver
de novo – George, William, Valentine, Nelson,
Cornelius (sou eu, o C.C.). E quem é esta linda
menina? A vossa irmã?
— Sim, é a Virgínia, respondeu o George. —
Virgínia, fala com o Sr. Warner.
— Bom dia — disse a Virgínia.
— A Virgínia é uma rapariga muito esperta, Sr.
Warner — disse o Nelson.
O Nelson a dizer aquilo!
— Anda ver, Virgínia — disse eu
empurrando-a para dentro. — Vês as
carteiras? Vês os livros?
Virgínia reparava em tudo. Sobretudo na
estante repleta de livros.
— Tantos livros, exclamou!
Suavemente tocou num com a mão.
— Um dia hei de conseguir ler todos estes livros.
Virgínia já parecia mais crescida.
— Quando regressarmos na sexta-feira, C.C.,
contaremos à mamã e ao papá tudo o que
aprendemos — disse a Virgínia. — Assim vai
parecer que também eles estiveram na
escola.
—A aprender a ser livres. Como nós.