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A gata do dalai lama e a arte de ronronar david michie

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AntesdepartirparaumaturnêdeensinamentosnasAméricas,oDalaiLamadá um desa7io para sua amada felina, GSS (a gata de Sua Santidade):descobrir a verdadeira causa da felicidade. Mal sabia ela em que tipo deaventuraessedesa7ioalevaria!UmaperseguiçãodearrepiarospelospelasruasdeMcLeodGanj levaparaumarevelação inesperadasobreosperigosdaauto-obsessão.Umencontrocom o mítico Iogue Tarchen inspira uma descoberta marcante sobre seupassado — descoberta com implicações dramáticas para todos nós.Conversasentreouvidasdepsicólogos,altos lamaseescritoresfamososquesereúnemnoCafé&LivrariadoHimalaiaaajudamaexploraraconvergênciaentreciênciaebudismonoassuntovitaldafelicidade.Comsabedoria,demodocalorosoecomumtoquedeousadia,AgatadoDalaiLamaeaartederonronaréumcharmoso lembretedeporqueGSSestásetornandoumadasmaisamadasgatasdetodoomundo.Então qual é a verdadeira causa do ronronar? ODalai Lama sussurra essesegredoemseu retorno—apenasparaosouvidosdeGSSedaquelas comquemelatemumaboaconexãocármica.Isso,queridoleitor,querdizervocê!

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Erraréhumano,ronronaréfelino.RobertByrne,escritor

PRÓLOGOAh, que bom! Até que enfim você voltou! Se me permite dizer, você

demorou! Sabe, caro leitor, tenho um recado para você. Não um recadocorriqueiro, e, certamente, nãode umapessoa comum.E, alémdisso, dizrespeitoàsua felicidademaisprofundaepessoal.Nãoadiantaolharparatrásenemparaoslados…Esterecadoérealmenteparavocê.Não é todo mundo que pode ler estas palavras — somente uma

pequeníssimaminoriadehumanostemesseprivilégio.Você tambémnãodevepensarqueestaéalgumaespéciedeobradoacaso,quefezcomquevocêlesseessaslinhasnesteexatomomentodasuavida.Somenteaquelesentre vocês com um carma bem específico irão um dia descobrir o queestou prestes a dizer — leitores que possuem uma conexão especialcomigo.Oudevodizerconosco.Sabe,eusouaGatadoDalaiLama,eorecadoquetenhoparavocêvem

deninguémmais,ninguémmenos,queSuaSantidade.Comoeupossofazerumaalegaçãotãoestapafúrdia?Seráqueestouforadomeujuízoperfeito?Semepermiteenroscar-meemseucolometafórico,eupossoexplicar.

=

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Emalgummomentoda vida, quase todosos apaixonadospor gatos sedeparamcomumdilema:comodizeraoseufelinoquevocêvaideixá-lo?Enãosetrataapenasdeumfimdesemanaprolongado.A maneira exata de como os humanos dão a notícia de sua ausência

iminenteéumassuntodegrandepreocupaçãoparaosgatos.Algunsdenósgostamosdeseradvertidoscomantecedênciae inúmerasvezes,paraquepossamosnosprepararmentalmenteparaasmudançasemnossasrotinas.Outrospreferemqueanotíciacaiadoscéussempréviaproclamaçãodosarautos,comoummelrozangadoemépocadenidificação:quandovocêsedercontadoqueestáporacontecer,jáaconteceu.Curiosamente, os membros da nossa equipe parecem ter um sexto

sentido para esse tipo de coisa e agemde acordo com a situação, algunsbajulam seus bichanos por semanas antes da partida, outros exibem atemidagaioladegatossaídadedentrodoarmáriosemavisoprévio.Quantoamim,estouentreosmaisafortunadosdosgatos,poisquandoo

DalaiLamaviaja,arotinadomésticaemNamgyalépraticamenteamesma.Continuopassandopartedodianopeitorildajaneladoprimeiroandar,umponto de observação estratégico, de onde posso manter a máximavigilânciacomomínimodeesforço,assimcomonamaioriadosdiaspassoalgum tempo no escritório dos assistentes de Sua Santidade.Há tambémminha caminhada habitual pelos agradáveis arredores até as deliciosastentaçõesdoCafé&LivrariadoHimalaia.Mesmo assim, quando Sua Santidade não está aqui, a vida não é a

mesma.ComopoderiadescreveroqueéestarnapresençadoDalaiLama?Ésimplesmenteextraordinário.Apartirdomomentoemqueeleentraemumambiente, todososseresalipresentessãotocadosporsuaenergiadefelicidade sincera. Qualquer outra coisa que porventura estiveracontecendoemsuavida,sejaqualforatragédiaouperdaquevocêpossaestarenfrentando,duranteotempoemqueestivercomSuaSantidade,teráasensaçãodeque,nofundo,estátudobem.

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Se nunca teve esta experiência, é como ser despertado para umadimensão de você mesmo que sempre esteve ali, fluindo como um riosubterrâneo, mas que até agora passava despercebida. Uma vezreconectado a esta fonte, você não só vivencia uma paz profunda e umanascente no centro do seu ser, como pode também, por um momento,vislumbrar sua própria consciência radiante, sem limites e imbuída deamor.ODalaiLamanosvêcomorealmentesomoserefleteanossaverdadeira

natureza. É por isso que tantas pessoas simplesmente derretem em suapresença.Jávihomensimportantesdeternosescuroschoraremsóporqueforam tocados por ele. Os líderes religiososmais importantes domundofazem fila para conhecê-lo, e depois voltam para a fila para seremapresentados a ele uma segunda vez. Já vi cadeirantes chorarem defelicidadequandoeleseembrenhoupelamultidãoparasegurar-lhesamão.SuaSantidadenosfazlembrardomelhorquepodemosser.Hádommaiorqueesse?Entãovocêentenderá,caroleitor,queemboraeucontinueaaproveitar

umavidadeprivilégioeconfortoquandooDalaiLamaviaja,aindaprefiroquandoeleestáemcasa.SuaSantidadesabedisso,assimcomosabequeeusouumagataquegostadeseravisadaquandoelevaiviajar.Sequalquerumde seus assistentes—o jovemChogyal, omonge rechonchudoqueoajuda comasquestõesdomonastério, ouTenzin, odiplomataexperientequeoajudacomassuntos laicos—lheapresentaumpedidoqueenvolveviagem, ele levanta os olhos e diz algo como “Dois dias emNovaDeli nofinaldapróximasemana”.ElespodempensarqueoDalaiLamaestáapenasconfirmandoavisita.

Na realidade, ele está dizendo isso visando especificamente ao meubenefício.Nos dias que antecedem uma estada mais longa, ele me lembra da

viagemvisualizandoonúmerodedormidas—istoé,noites—quepassará

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fora. E, na última noite antes de sua partida, sempre arruma tempo dequalidade para ficar comigo, só nós dois. Nestes poucos minutos,comungamos da maneira mais profunda possível entre gatos e seushumanos.IssometrazdevoltaaorecadoqueSuaSantidadepediuqueeudessea

você.EleomencionounanoiteanterioràsuapartidaparaumaviagemdeensinamentodesetesemanasaosEstadosUnidoseàEuropa—operíodomaislongoquejápassamosseparados.EnquantoocrepúsculocaíasobreoVale de Kangra, ele se levantou de sua escrivaninha, caminhou até oparapeitoondeeudescansavaeajoelhou-seaomeulado:— Tenho que partir amanhã, minha pequena Leoa da Neve— disse,

olhandobemdentrodosmeusolhosazuis,enquantomechamavapelomeuapelido carinhoso favorito. É o que mais me encanta, uma vez que ostibetanosconsideramqueosleõesdanevesãoserescelestiais,símbolosdebeleza,coragemealegria.—Setesemanasémais tempodoquecostumomeausentar. Seiquegostademe terporperto,masháoutros seresqueprecisamdemimtambém.Levantei-me de onde descansava, esticandominhas patas dianteiras, e

deiumaboaespreguiçadaantesdebocejarcomvontade.—Que boquinha rosamais linda— disse Sua Santidade, sorrindo.—

Estoufelizemverqueseusdentesegengivasestãosaudáveis.Aproximei-meedei-lheumacabeçadacarinhosa.—Ah,vocêmefazrir!—disse.Permanecemos assim, testa com testa, enquanto ele passava os dedos

pelomeupescoço.—Ficareiforaporumtempo,masasuafelicidadenãodevedependerda

minhapresença.Mesmosozinhavocêpodesermuitofeliz.Com a ponta dos dedos, ele massageou a parte de trás das minhas

orelhas,dojeitoqueeugosto.—Talvezvocêachequeafelicidadevemdofatodeestarcomigoouda

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comidaqueteoferecemnoCafé.SuaSantidadenão tinha ilusõesquantoaosmotivosqueme levavama

serumafrequentadoratãoassíduadoCafé&LivrariadoHimalaia.—Mas,duranteaspróximassetesemanas,tentedescobrirporsimesma

averdadeiracausadafelicidade.Quandoeuvoltar,vocêpodemecontaroqueencontrou.Comprofundo amor, oDalai Lamamepegouno colo gentilmente e se

levantou,observandoavistadoValedeKangrapelajanela.Eraumavisãomagnífica:ovaleverdejanteesinuoso,asondulaçõesverdesdasflorestas.Aolonge,asmontanhasnevadasdoHimalaiabrilhavamcomosoldatarde.Abrisasuavequesopravapelajanelainundavaasalacomoaromafrescodepinho,rododendroecarvalho;umarcheiodeencantamento.—Vou lhecontarasverdadeirascausasda felicidade—sussurrouem

meuouvido.—Umrecadoespecial somenteparavocê—eparaaquelescomquemvocêpossuiumaconexãocármica.Comeceiaronronar,oquelogosetransformouemumsomprofundoe

constante,comoomotordeumbarcoemminiatura.—Sim,minhapequenaLeoadaNeve—disseoDalaiLama—,gostaria

queinvestigasseaartederonronar.

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CAPÍTULO1Querido leitor, você alguma vez já se maravilhou com a forma como

algumas decisões aparentemente triviais podem levar a mudançasimportantesnavida?Você fazoqueacredita serumaescolharotineiraemonótona, e ela acaba por ter resultados tão dramáticos quantoimprevisíveis.Foiexatamenteissooqueaconteceunatardedesegunda-feiraquando,

aosairdoCafé&LivrariadoHimalaia,emvezdeirdiretoparacasa,resolvipegar a suposta estrada panorâmica. Não era uma estrada por onde eupassasse com frequência pela simples razão de que não é lá muitopanorâmica—nemmesmoéumaestrada. ÉmaisumbecohumildequepassaatrásdoCaféeadjacências.Por ser um caminhomais longo, sabia que levaria uns dezminutos a

maisdoqueoscincohabituaisparachegaraNamgyal.Mas,comopasseiatarde dormindo na estante de revistas do Café, sentia necessidade dealongarminhaspernas.Então,aoinvésdeviraràdireita,vireiàesquerda.Atravesseiaportalateral,vireinovamenteàesquerdaecaminheipelobecoestreitousadoparacolocaraslatasdelixoabarrotadasderestosdecomidade aromas irresistíveis. Seguimeu caminho, cambaleandoumpouco, porcontadafraquezanasminhaspatastraseirasquemeacompanhadesdequeeu era filhote. Interrompiminha caminhada para explorar um intriganteobjeto prata emarrom alojado embaixo do portão dos fundos do Café edescobri que era apenas uma rolha de champanhe que de alguma formaficarapresanagrade.Foiquandoestavamepreparandoparavirarnovamenteàesquerdaque

tive consciência do perigo pela primeira vez. A uns vinte metros de

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distância,avistei,naruaprincipal,doiscãesdosmaisferozesquejáhaviavisto.Nãoeramdaquelaregião.Asuapresençaeramuitoameaçadora—paradosnarua,comosfocinhosdilatadoseseuslongospelosonduladosnabrisadatarde.Eopiordetudo,estavamsemcoleira.Pela experiência, oqueeudeveria ter feitonaquelahoraerabater em

retiradaevoltarparaobeco,entrarpeloportãodosfundosdoCafé,ondeestaria em segurança, atrásdas gradesque eram largas o suficienteparaque eu pudesse passar, mas estreitas o suficiente para deter aquelesmonstros.Exatamenteenquantomeperguntava seeleshaviammevisto, elesme

viram,edemaneirainstantâneaaperseguiçãocomeçou.Oinstintomefezvirar à direita e correr tão rápido quanto minhas pernas claudicantespuderam me levar. Com o coração acelerado e os pelos eriçados, corridesesperadamenteembuscadeumrefúgio.Naquelespoucosmomentosdedescarga de adrenalina,me senti capaz de ir a qualquer lugar e de fazerqualquercoisa—fossesubirnamaisaltaárvoreoumeespremerporentreabrechamaisestreita.Masnãohaviaumarotadefuganemumterrenoseguro.Olatidocruel

doscãesestavacadavezmaisaltoàmedidaqueelesseaproximavam.Em pânico absoluto, sem ter para onde ir, corri para uma loja de

especiarias, pensando que poderia encontrar algum lugar que pudesseescalar e ficar em segurança, ou pelo menos despistar os cães do meucheiro.Apequenalojaestavarepletadecaixasdemadeiracontendotigelasde

bronzecuidadosamentearrumadas,cheiasdeespeciarias.Váriassenhorasque moíam grãos com pilões em seus colos soltaram gritos assustadosquando passei por entre seus tornozelos, seguidos de berros indignadosquandooscães,sedentosporsangue,seguiramomeurastro.Ouvi um estrondo de metal no concreto quando as tigelas caíram.

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Nuvensde pó explodiramno ar. Correndopara o fundoda loja, procureiuma prateleira em que pudesse pular, mas encontrei apenas uma portafirmementefechada.Haviaumabrechaentredoisbaús,grandeosuficientepara eu me enfiar. Atrás dela, no lugar de uma parede, uma folha deplástico rasgado dava para uma ruela deserta. Empurrando os baús comsuas cabeças enormes, os cães ladravam freneticamente. Aterrorizada,examineiavaletaàspressas:eraumbecosemsaída.Aúnicaviaretornavaparaaestrada.Dedentrodalojadeespeciariasdavaparaouvirosganidoslamentosos

doscães,enquantoasmulheresfuriosasapreendiamosdoisbrutamontes.Com meu pelo branco, geralmente lustroso, salpicado de especiarias detodas as cores, avancei pela valeta até chegar à estrada e corri o maisrápidoqueminhas frágeispernas traseiras conseguiram.Erauma subidaleve,mas,aindaassim,difícil.Mesmo forçandocadamúsculodomeuser,meus esforços não foram suficientes. Lutando parame afastar omáximopossível dos cães, procurei algum lugar, qualquer lugar que oferecesseproteção.Mastudooqueviaeramvitrines,paredesdeconcretoeportõesdeferroimpenetráveis.Atrásdemim,oslatidosescandalososcontinuavam,acompanhadosdos

gritos furiosos dasmulheres da loja de especiarias. Virei-me para vê-lasenxotando os cães para fora, batendo-lhes nos flancos. Com olhosesbugalhadossalivandoprofusamentecomsuaslínguasparafora,asduasferasseaproximavampelacalçada,enquantoeucontinuavameesforçandona subida, torcendo para que o fluxo constante de pedestres e carroscamuflasseaminhalocalização.Nãohouveescapatória.Poucos instantes depois, as duas bestas sentiram o meu cheiro e

retomaram a perseguição. Rosnados ferozes me encheram de medo. Euhaviaganhadoterreno,masnãoosuficiente.Empoucotempoasduasferasme alcançariam. Ao me aproximar de uma propriedade cercada por um

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murobrancomuitoalto,avisteiumatreliçademadeiraafixadaaomuro,doladodeumportãopretodeferro.Nuncaantesnavidahaviafeitooquefizemseguida,masqueescolhaeutinha?Apenassegundosantesdeoscãesme alcançarem, pulei na treliça e comecei a subir, tão rápido quantominhaspeludaspernascinzaseramcapazes.Comgrandessaltos,subicadavezmaisalto,pataapóspata.Tinhaacabadodechegaraotopoquandoasferasmeencurralaram.Em

meio a um frenesi de latidos, atiravam-se à treliça. Houve um estalo demadeiraquebrandoeatreliçaserompeu.Apartesuperiorficoupenduradabalançandoem frenteaomuro.Seeuaindaaestivesseescalando,estariaagoradentrodabocaescancaradadeumdoscães.Empésobreomuro,olheiparaseusdentesarreganhadosláembaixoe

estremeci, sentindo o sangue gelar com seus grunhidos. Era como olhardiretamenteparaafacedecriaturasvindasdoreinodoinferno.Ofrenesimaníacodelatidoscontinuouatéqueoscãessedistraíramcom

outro cachorro que lambia algo da calçada mais adiante. Enquanto operseguiam,asferasforaminterrompidasporumhomemaltocompaletótweed, que as agarrou pelo pescoço e colocou-lhes a coleira, puxando-aspor uma guia. Enquanto o homem se debruçava sobre os cães, escutei aobservaçãodeumtranseunte:—Quelindoslabradores!— São Golden Retrievers — corrigiu o homem, acariciando-os

afetusamente.—Jovenseeufóricos,porémadoráveis.Adoráveis?Seráqueomundoenlouqueceu?

=Demoroumuitoatéminhafrequênciacardíacavoltaraalgopróximodo

normal, e somente então a realidadedaminha situação ficou clara.Olheiemvoltaenãoencontreigalho,saliência,ourotadefugadequalquertipo.

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Omuropossuíaumportãoemumapontaeumprecipícionaoutra.Estavaprestes a levar minha pata à boca para dar à minha cara manchada deespeciariasumaboaetranquilizantelavadaquandosentialufadaacrequeme fez parar nomesmo instante. Só uma lambida e eu sabia queminhaboca estaria em chamas. Isso foi o bastante. Lá estava eu, presa em ummuroaltoedesconhecido,sempodersequercuidardemimmesma!Não tive escolha, só podia continuar onde estava e esperar que algo

acontecesse.Emcontrastecomtodaaagitaçãoqueeusentia,apropriedadedo ladodedentrodomuro era aprópria imagemda serenidade, comoaTerraPuradosBudas,daqualeuescutavaosmongesfalarem.Atravésdasárvores, pude ver uma construção imponente, cercada de relva e jardinsfloridos.Ansiavaporestarnaqueles jardinsourondandopelavaranda—parecia o lugar ideal paramim. Se alguém de dentro daquela linda casavisse a LeoadaNevepresano altodomuro, teria a compaixãode vir aomeusocorro?Apesardetodaaatividadequeacontecianaportadeentradadoprédio

principal, ninguém entrava ou saía pelo portão de pedestres próximo deondeeuestava.Eomuroeratãoaltoqueaspessoasmalpodiammever.Aspoucas que se viravam emminha direção não pareciam perceberminhapresença.Otempofoipassandoeosolcomeçouadeslizarpelohorizonte,epercebi que ficaria ali a noite toda caso ninguém viesse ao meu auxílio.Deixeiescaparummiadomelancólico,mascontido: sabiamuitobemquealgumas pessoas não gostam de gatos, e chamar a atenção delas só iriapioraraminhasituação.Não precisaria ter me preocupado em chamar atenção, pois isso não

aconteceu.NoCafé&LivrariadoHimalaiaeupodiaserreverenciadacomoa GSS (minha designação oficial, a abreviação para a Gata de SuaSantidade),masaqui fora—polvilhadadeespeciariasedesconhecida—,estavasendocompletamenteignorada.

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=Queridoleitor,voupoupá-lodosdetalhesdashorasquepasseinomuro

etambémdosolharesindiferentesedossorrisosincompreensivosquetivede suportar, juntamente com as pedras atiradas por dois malandrinhosentediados que voltavam da escola. Acabara de anoitecer e eu estavaexaustaquandopercebi umamulherque andavadooutro ladoda rua.Aprincípio não a reconheci, mas havia alguma coisa nela que me deu asensaçãodequepoderiamesalvar.Miei suplicantemente. Ela atravessou a rua. À medida que se

aproximava, vi que se tratavade SerenaTrinci, a filhada senhoraTrinci,chefVIPdeSuaSantidadeeminhamaisardenteadmiradoraemNamgyal.Serena, recentemente designada como a gerente do Café & Livraria doHimalaia, tinhauns trintaepoucosanos.Esbelta,vestiaroupasde ioga,eseuslongoscabelosescurosestavampresosemumrabodecavalo.—Rinpoche!—exclamouela,parecendohorrorizada.—Oquevocêestá

fazendoaíemcima?HavíamosnosvistoapenasduasvezesnoCafé—portanto,quandoela

me reconheceu,meu alívio foi inefável. Em alguns instantes, ela arrastouumalatadelixopróximaatéomuroesubiuatéondeeuestava.Pegando-me em seus braços, não pode deixar de notar o estado do meu pelo,salpicadodeespeciarias.— Coitadinha, o que houve? — perguntou, absorvendo os aromas

pungentes e as manchas multicoloridas, enquanto me segurava em seucolo.—Vocêdevetersemetidoemalgumaencrenca.QuandoSerenaaconchegoumeu rosto emseupeito, senti a fragrância

quentedesuapeleeabatidatranquilizadoradoseucoração.Passoapasso,enquanto caminhávamos para casa, meu alívio se transformava em algomuitomaisforteeprofundo:umapoderosasensaçãodeconexão.

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=DepoisdeterpassadoamaiorpartesuavidaadultanaEuropa,Serena

chegaraaMcLeodGanj—apartedeDharamsalaondeviveoDalaiLama—somente há algumas semanas. Serena crescera em uma casa dedicada àarteculinária.Aosairdaescola,entrouparaumafaculdadedegastronomiana Itália e, depois disso, trabalhou como chef, galgando postos nosmelhoresrestaurantesdaEuropa.Recentemente,SerenahaviadeixadoseuempregocomochefnoaclamadohotelDanieli,emVeneza,paratrabalharàfrentedeumdosmaisbadaladosrestaurantesemMayfair,árealuxuosadeLondres.Como sabia que Serena era ambiciosa, dinâmica e extremamente

talentosa, escutei quando ela explicou ao Franc, proprietário do Café &Livraria do Himalaia, sua necessidade de dar um tempo em sua rotinaenlouquecida de trabalho em restaurantes. Estava exausta do estressediário, e já era hora de descansar e recarregar as baterias, pois quandoretornasseaLondres,dentrodeseismeses,assumiriaumdostrabalhosdemaiorprestígiodacidade.MalsabiaelaquesuachegadacoincidiriacomomomentoemqueFranc

precisavadealguémquetomassecontadoCafé.EleestavavoltandoaSãoFranciscoparacuidardeseupaidoente.EstaràfrentedequalquertipodeempresadosetorgastronômicoduranteasfériasnãofaziapartedosplanosdeSerena,contudo,comparadoaoqueelaestavaacostumada,tomarcontadoCafé&LivrariadoHimalaiaeracomotrabalharmeioexpediente.OCafésó abria para o jantar de quinta a sábado; e com o maître Kusalisupervisionando o serviço durante o dia, as obrigações de Serena nãoseriamtãograndes.Seriadivertido,Francassegurou,eelateriaalgoparafazer.OmaisimportanteparaFranceraencontraralguémquetomasseconta

deseusdoiscachorros.Marcel,obuldoguefrancês,eKyiKyi,oLhasaApso,

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eramos outros doishabituésnão humanos do Café, e passavam amaiorpartedodiacochilandoemsuascestasdevimesobobalcãodarecepção.Emduassemanas,apresençadeSerenanoCaféjádeixarasuamarca;ao

conhecê-la, as pessoas se sentiam imediatamente enfeitiçadaspor ela.Osclientes do Café não conseguiam ficar indiferentes à sua vivacidade: elasabia exatamente como transformar uma noite comum em algoinesquecível.ÀmedidaqueflutuavapeloCafé,suaafetuosidadeesimpatiaconquistaramosgarçons,queempoucotempofaziamdetudoparaagradá-la. Sam, o gerente da livraria, estava completamente encantado, e Kusali,alto e sagaz—o própriomordomo inglês,mas, neste caso, indiano—, aacolheudebaixodesuasasas.Estavaeudescansandoemmeulugarcostumeiro—aprateleiradecima

daestantede revistas,nomeiodasúltimasediçõesdaVogue edaVanityFair — quando Franc me apresentou a Serena como Rinpoche.Pronunciado rin-po-chê, significa preciosa em tibetano, e é um títulohonorífico dado aos professores do Budismo. Serena respondeu àapresentaçãoacariciandomeurosto.—Elaéabsolutamenteadorável!—Foitudooquedisse.Meusolhoslápis-lazúliseencontraramcomseusintensosolhosnegrose

houveummomentodereconhecimento.Tomeiconsciênciadealgomuitoimportanteparanós,felinos:estavadiantedeumaapaixonadaporgatos.

=Agora,depoisdepassadaaconfusãocomoscãesealojadeespeciarias,

com a ajuda de Kusali e de alguns panos quentes e úmidos, Serena foicuidadosamente removendo o pó das especiarias incrustado em minhapelagem espessa. Estávamos na lavanderia do restaurante, um pequenocômodoatrásdacozinha.—AscoisasnãoestãomuitoboasparaaRinpoche—disseela,enquanto

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limpava delicadamente uma mancha escura de uma das minhas patascinzas.—Mas eu simplesmente amo o aromadessas especiarias. Elemetransporta de volta à cozinha da minha casa na minha infância: canela,cominho,cardamomo,cravo—ossaboresmaravilhososdogarammasala1,quenósusávamosnagalinhaaocurryeemoutrospratos.— A senhorita preparava curries, senhorita Serena? — Kusali estava

surpreso.—Foiassimquecomeceinacozinha—respondeuela.—Esseseramos

saboresdaminhainfância.EagoraaRinpocheosestátrazendodevolta.— Nossos estimados clientes sempre nos perguntam se temos pratos

indianosnomenu,senhorita.—É,eusei.Játiveváriospedidos.Não era por falta de quiosques, barraquinhas e mais restaurantes

formaisemDharamsala.Porém,comoKusaliobservou:—Aspessoasprocuramumfornecedorconfiável.—Você tem razão— concordou Serena. Então, depois de uma pausa,

acrescentou:—MasoFrancfoibemclarosobreserfielaocardápio.—EdevemosrespeitaravontadedeleduranteasnoitesemqueoCafé

habitualmenteabre—enfatizouKusali.HouveumapausaenquantoSerenaremoviaváriosgrãosdepimentaque

sealojaramemmeurabofelpudoeKusalitentavaretirarumrespingodepápricadomeupeito.QuandoSerenavoltouafalar,haviaumsorrisoemseuslábios.—Kusali,vocêestásugerindooqueeuestoupensando?—Desculpe-mesenhorita,nãoestouentendendo.— Você está dizendo que poderíamos abrir na quarta-feira para

experimentaralgunspratosaocurry?KusaliencontrouoolhardeSerenacomumaexpressãodeespantoeum

largosorriso.—Masqueexcelenteideia,senhorita!

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Nós gatos, não somosmuito fãs de água, e um gato úmido é um gatoinfeliz.Serenasabiadisso,entãodepoisqueelaeKusali limparamomeupelo até que ficasse impecável, secou-me com uma toalha felpuda,escolhidaespecialmenteporcausadesuamaciez,antesdepediraKusaliquetrouxessealgunspedaçosdepeitodefrangoparamedistrairatéahoraemqueelamelevariaparacasa,emJokhang.Comoeraumasegunda-feiraànoite,orestauranteestavafechado,mas

Kusaliencontroupedaçosdefrangoapetitososnageladeiraeosesquentouantes de os servir em uma pequena tigela de porcelana reservadaespecialmente paramim. Por força do hábito, ele levou a tigela atémeulugardecostumenapartedetrásdoCafé,eSerenaoseguiu,comigoemseucolo.

=Embora o Café estivesse na penumbra, Sam Goldberg, o gerente da

livraria, estava recepcionando uma reunião do clube de leitura naquelanoite. Deixando-me a sós com meu jantar, o qual ataquei com prazer,SerenaeKusali foramparaa seçãoda livrariaque ficavadentrodoCafé,onde umas vinte pessoas estavam sentadas em fileiras, assistindo a umaapresentaçãodeslides.—Istoéumailustraçãodofuturodeumlivrodofinaldosanos1950—

dizia uma voz masculina. A cabeça raspada, os óculos com armação demetaleocavanhaqueconferiamaointerlocutorumaratrevido,etambémumacertamalícia.Euoreconhecideimediato.Sam havia pendurado um pôster dele na loja há algumas semanas,

juntamente com uma frase da revista PsychologyToday, que descrevia ohomem — um famoso psicólogo — como “um dos principais líderesintelectuaisdonossotempo”.Foi então que notei Sam em pé, na parte de trás, cumprimentando os

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retardatários.Samerabonito,jovem,comumatestaalta,cabeloscastanhosencaracolados,olhosdamesmacor,queportrásdosseusóculosdenerdtransmitia uma inteligência luminosa, além de uma curiosa falta deautoconfiança.Assim como Serena, Sam estava trabalhando no Café & Livraria do

Himalaiahápoucotempo,emboraoempregodelefossepermanente.Samjá era cliente assíduo do Café havia vários meses e quando Franc ointerrogou sobre os livros e downloads que pareciam atrair sua atenção,Samexplicouquehaviatrabalhadoemumadasmaioresredesde livrariade Los Angeles até seu recente fechamento. Essa informação captouinstantaneamenteaatençãodeFranc.Eleestavapensandoemaproveitarumespaço que não estava sendo utilizado no Café Franc, comoo Café&LivrariadoHimalaiaeraconhecidoanteriormente,etransformá-loemumalivraria,masprecisavadealguémcomexperiêncianoramoparacolocaroplanoemprática.Sealgumavezhouveacoincidênciadeserapessoacerta,nolugarcerto,nahoracerta,foinessamesmo.Masfoiprecisoumpoucodepersuasão.SamaindaestavaserecuperandodobaquedetersidodemitidoquandoalivrariadeLosAngelesfechouenãosesentiacapazparaessetipode trabalho. Franc teve de usar todo o seu charme— com a ajuda dosconsideráveis poderes de persuasãode seu lama, GesheWangpo—paraconvencerSamatomarcontadalivrariadoCafé.—Tendo emvistaque estaperspectivade futuro aconteceu em1950,

essefuturoéagora—oconvidadodeSamcontinuoucomsuapalestra.—Alguémgostariadecomentaraprecisãodavisãodoautor?Houve risada na plateia. A figura na tela mostrava uma dona de casa

tirandopódosmóveis,enquantoomarido,doladodefora,estacionavaseucarro antigravidade depois de ter descido de um céu cheio de carrosvoadoresepessoascommochilasajatonascostas.— O penteado à Lucille Ball, do seriado I love Lucy, não é muito

futurístico— umamulher na plateia observou, o que causou aindamais

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risadas.—Asroupas—outrapessoadisse,causandomaisgargalhadas.A mulher com sua saia armada e o marido com aquelas calças justas

certamentenãopareciamcomninguémnosdiasdehoje.—Eaquelasmochilasajato?—contribuiuoutroouvinte.—Émesmo—concordouopalestrante.—Aindaestamosesperandoporelas.Elemostroumaisalgumasimagens.—Elasmostramcomoaspessoasem1950imaginavamofuturo.Oque

torna estas imagens tão encantadoramente erradas não é só o quemostram. É também o que não mostram. Digam-me o que está faltandonestaaqui—disseele,pausandoaapresentaçãonaimagemdeumartistaque retratava uma paisagem urbana em 2020, com esteiras rolantestransportandopessoas.Mesmocompletamenteabsortaemmeujantar,nãopudedeixardeachar

surreal a imagem mostrada na tela, por razões que eu não conseguiaidentificar.Houveumapausaantesquealguémobservasse:—Nãohátelefonescelulares.—Nãohámulheresexecutivas—comentououtro.—Nãohánegros—retrucoumaisum.—Nãohátatuagens—acrescentouumquartoespectador,enquantoa

plateiacomeçouarepararnaimagemcadavezmais.Opalestrantedeixouqueaplateiaseaprofundassenasimagensporum

instante.—Pode-sedizerqueadiferençaentreamaneiracomoascoisaseram

em1950 e omodo como as pessoas imaginavam o futuro se resumia àscoisasnasquaiselasfocavam—carrosantigravidadeouesteirasrolantes.Elasimaginavamquetodoorestocontinuariaigual.Houveumapausaenquantoaplateiadigeriaoqueeleacabaradedizer.— Essa,meus amigos, é a razão pela qual é tão difícil para todos nós

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adivinharmos o nosso sentimento em relação a certas coisas no futuro,sobretudoemrelaçãoaoqueprovavelmentenosfaráfeliz.Épor issoqueimaginamosquetudoemnossasvidaspermanecerádomesmojeito,excetopelaúnicacoisanaqualestamosfocados.—Unschamamdepresentismoatendênciadepensarqueofuturoserá

igualaopresente,comapenasumadiferença.Quandoimaginamosofuturo,nossamente fazumótimo trabalhoao imaginaro todoepreencher cadalacuna, exceto por essa diferença em particular. O material que usamosparapreencheraslacunaséohoje,comomostramessasimagens.Continuando,opalestranteafirmou:— Pesquisas mostram que quando fazemos previsões sobre como

iremos nos sentir em relação a eventos futuros, não percebemos quenossasmentesjánospregaramapeçado“preenchimento”.Issoépartedomotivopeloqualachamosqueconseguiraqueleempregocomoescritóriode janelasamplasnosdaráumasensaçãodesucessoerealização,ouquedirigir um carro caro será uma fonte de grande alegria. Achamos quenossas vidas serão as mesmas de agora, exceto por aquele detalhediferente.Masarealidade,comovimos—eleapontouparaatela—,ébemmaiscomplicada.Nósnãoimaginamos,porexemplo,aimensamudançanoequilíbrioentrevidaetrabalhoquevemcomoemprego,comoescritóriode janelas amplas, ou o medo de ter arranhões e amassados no carronovinhoelustroso,semcontarasdolorosasprestaçõesmensais.Eupoderiaterescutadoapalestrapormaistempo,masSerenaqueriair

paracasa,eelairiamelevardevoltaaJokhangemsegurança.Carregando-meemseusbraços,saiupelaportadetrásdoCaféepegouoatalhoparaaestrada.EmNamgyal,atravessamosopátiodaresidênciadeSuaSantidade,ondeSerenamecolocounochão,comoseeufosseumaporcelanadelicada,nosdegrausdaportaprincipal.— Espero que esteja se sentindo melhor, pequena Rinpoche —

murmurou,aocorrerosdedosemmeupelo,jáquaseseco.Adoravasentir

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suas unhas longas massageando a minha pele. Aproximando-me, passeiminhalínguaásperaemsuaperna,eelariu:—Oh,minhapequena,tambémteamo!

=Chogyal,umdosassistentesdeSuaSantidade,deixaraomeu jantarno

lugardesemprenoandardecima,mas,comojáhaviacomidonoCafé,nãoestava com muita fome. Após algumas lambidas no leite sem lactose,caminheiatéosaposentosquedividiacomSuaSantidade.Oquartoondeeupassava a maior parte do tempo estava silencioso e iluminado somentepelo luar.Fuiatéomeu lugarprediletonoparapeitoda janela.EmboraoDalai Lama estivesse amuitasmilhas de distância, na América doNorte,sentiasuapresençacomoseestivesseali,bemaomeulado.Talvezfosseofeitiço do luar, que banhava todos os objetos do quarto com umaluminosidadeetérea,masporqualquerquetenhasidoomotivo,sentiumaprofunda sensação de paz. Era o mesmo sentimento de bem-estar quesentia toda vez que estava em suapresença.Achoque, antes de viajar, oDalaiLamativeraaintençãodemedizerquequalquerumpodeseconectaraestefluxodeserenidadeebenevolência.Sóéprecisoseaquietar.Comeceialamberminhaspatasealimparmeurostopelaprimeiravez

desde os acontecimentos horríveis da tarde. Ainda podia ver os cãesmeperseguindo, mas agora parecia que estava vendo coisas que tinhamacontecidocomoutragata.Oquepareceratãoavassaladoretraumáticonahoraagoranãopassavadeumalembrança,natranquilidadedeNamgyal.Lembrei-me do psicólogo no Café, descrevendo como as pessoas

geralmente têm apenas uma pequena ideia do que as fará felizes. Suasilustrações eram intrigantes e, enquanto falava, algo mais meimpressionou:soavamuitofamiliarporqueoDalaiLamacostumavadizeramesma coisa. Ele não usava expressões como presentismo, mas o

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significadodesuaspalavraseraidêntico.SuaSantidadetambémobservavacomo dizemos a nós mesmos que a nossa felicidade depende de certassituações, relacionamentos ou realizações. Como achamos que seremosinfelizessenãoconseguirmosoquequeremos.Exatamentecomoquandoopsicólogo salientou o paradoxo de que, muitas vezes, mesmo quandoconseguimos o que queremos, não conseguimos alcançar a felicidade queesperávamos.Acomodada emmeuparapeito,mirei a noite. Os quadrados luminosos

dosquartosdosmonges cintilavamnaescuridão.Aromas flutuavampeloprimeiro andar, insinuando que o jantar estava sendo preparado nacozinha do mosteiro. Escutava o cântico grave dos monges mais velhosenquantoencerravamasessãodemeditaçãovespertinanotemplo.Apesardas experiências traumáticas da tarde, e de voltar para um lar vazio eescuro,aosentarnoparapeitodajanelacomminhaspatassobmeucorpo,sentiocontentamentomaisprofundoquepoderiateralgumdiaimaginado.

=OsdiasseguintesforamumturbilhãodeatividadesnoCafé&Livrariado

Himalaia. Além da correria de costume, Serena desenvolvia rapidamentesuasideiasparaanoitedocurry.ElaconsultouoschefsdoCafé,osirmãosnepaleses JigmeeNgawangDragpa,queestavammuito felizesemdividirsuas receitas de família favoritas. Ela também vasculhou a internet embuscadetesourosrarosparaacrescentaraoseulivrodereceitas,járepletocomassuaspreferidas.Numa segunda-feira à noite, Serena convidou um grupo de amigos de

infância de McLeod Ganj para provar os pratos ao curry que haviaredescoberto ou reinventado. Da cozinha, uma profusão de aromas deespeciariasdeliciosas,nuncaantescombinadasnoCafé,invadiaoambiente—coentroegengibre fresco,pápricadoceepimentachili,garammasala,

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sementesdemostardaamarelaenozmoscada.TrabalhandonacozinhapelaprimeiravezdesdequevoltaradaEuropa,

Serena sentia-se em casa. Enquanto preparava samosas vegetarianascrocantes,retiravagenerosasporçõesdenaan—pãoindiano—dofornoedecorava as tigelas de latão de Madras Curry2 com espirais de iogurte.Lembrou-sedaalegriapuradecriar,dapaixãoqueafezsetornarumachef.Havia quinze anos que não se aventurava a fazer experiências com umapaletadesaborestãovasta.Seus amigos ficaram agradecidos, mas fizeram críticas construtivas. O

entusiasmo era tamanho que quando o último kulfi3 de pistache ecardamomoeaúltimachávenadechaiforamservidos,aideiadefazerumanoitedocurryjáhaviasetransformadoemalgomuitomaisextravagante:umverdadeirobanqueteindiano.

=Da prateleira de cima, fui testemunha do banquete inaugural que

aconteceu em menos de duas semanas. Sendo eu uma presençapermanente noCafé& Livraria doHimalaia, comopoderia ser diferente?Alémdomais,Serenameprometeraumagenerosaporçãodoseudeliciosopeixeaocurry.Orestaurantenuncaestivera tãocheio.Oevento foi tãodisputadoque

foram necessários mesas extras na área da livraria e dois garçonsadicionaisparaajudarnaquelanoite.Unindo-seaosmoradoresquejáeramclientes habituais do Café, estavam os familiares e amigos de Serena,muitosdosquaisaconheciamdesdecriança.AmãedeSerenapareciaestarencenando uma ópera, em seu xale indiano multicolorido, com suaspulseirasdouradasquechacoalhavamaoredordeseusbraçoseseusolhoscordemelbrilhandodeorgulhoenquantoobservavaafilhacoreografaranoite.

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Comosefosseparacompensarobrioitaliano,havia,namesaaoladodasenhora Trinci, um grupo mais calmo, do escritório do Dalai Lama,incluindoosassistentesdeSuaSantidade,ChogyaleTenzin,estecomsuaesposaSusan,eotradutordeSuaSantidade,Lobsang.Chogyal,decoraçãocalorosoemãosmacias,eraomeumongefavorito

depoisdoDalaiLama.Comumasabedoriaque iaalémdesua idadeparalidar com questões geralmente complicadas do mosteiro, era de grandeajuda para Sua Santidade. Era o responsável pela minha alimentaçãoquando o Dalai Lama se ausentava, uma tarefa que ele cumpria comperfeição. Tinha sido Chogyal quem um ano antes havia se voluntariadopara me levar para sua casa durante a reforma dos aposentos do DalaiLama.Depoisdeatacá-lopelaaudáciadetermearrancadodetudooquemeera familiar, passei trêsdiasdemauhumordebaixodeumedredom,para então descobrir que estava perdendo todo um mundo novo eexcitante, habitado por um magnífico gato tigrado que mais tarde setornariaopaidosmeusgatinhos.Durantetodasessasaventuras,Chogyalpermaneceraumamigopacienteedevotado.Na mesa em frente à sua, no escritório dos assistentes, sentava-se

Tenzin,umdiplomatagentilcujasmãossempreexalavamumfortecheirode sabonete antisséptico. Educadona Inglaterra, era comele, na hora doalmoço,nasaladeprimeirossocorros,escutandoaBBCWorldService,queaprendimuitodoqueseisobreaculturaeuropeia.NãoconheciaSusan,amulherdeTenzin,masconheciabemLobsang,o

tradutor de Sua Santidade. Um monge jovem, profundamente sereno.Lobsang e Serena se conheciam havia bastante tempo, pois cresceramjuntosemMcLeodGanj.MembrodafamíliarealdoButão,LobsangeraummongenoviçoestudandoemNamgyalquandoasenhoraTrinciprecisoudesous-chefs extras na cozinha. Ele e Serena foram convocados, nascendoentão uma linda amizade, motivo pelo qual Lobsang também estavapresentenobanquete.

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Naquelanoite,SerenahaviatransformadooCaféemumasuntuosasalade jantar, decorada com toalhas de mesa ricamente bordadas comlantejoulas, onde colocou potes cravejados com requinte, cheios decondimentos.Comocentrodemesa,pequenasvelasreluziamemcastiçaisdelatãoemformatodeflordelótus.Umamúsica trance indiana soava hipnoticamente ao fundo, enquanto

um desfile de pratos emergia da cozinha. Das pakoras4 de legumes aofrango com manga, cada um dos pratos era recebido com entusiasmo.Quantoaopeixeaocurry,pudeatestarpessoalmente.Opeixeestavaleveesuculento, omolho deliciosamente cremoso, comuma pitada de coentro,gengibreecominhonamedidacertaparadaraopratoumtoqueespecial.Em poucos minutos, comi minha porção e lambi o pires até deixá-lobrilhando.Nocentrodetudo,Serenacomandavacommaestria.Elahaviasevestido

especialmenteparaaocasião.Usavaumsárivermelhovivo,kajalnosolhos,brincoschandeliereumcolarcintilante.Àmedidaqueanoiteavançava,elaiademesaemmesa,enãopudedeixardenotarcomoseucoraçãobondosotocavaaspessoas.EnquantoSerenaconversavacomelas,faziacomquesesentissem o centro do universo. Ela, por sua vez, se emocionava com aefusãodeafetoquerecebia.—Étãobomtê-ladevolta,querida—disseumasenhoraidosaamigada

família.—Adoramosassuasideiaseasuaenergia.— Estávamos mesmo precisando de alguém como você aqui em

Dharamsala— uma velha amiga da escola afirmou.—Todas as pessoastalentosas parecem ir embora, então, quando alguémvolta, damosmuitovalor.Váriasvezesduranteanoiteviquandoseuslábiostremeramdeemoção,

enquanto levava o lenço ao canto dos olhos para secá-los. Algo muitoespecial estava acontecendo no Café, algo que ia além daquele banqueteindiano — por mais suntuoso que fosse —, e era algo de grande

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importânciapessoal.Apistaparaomistérioapareceuváriasnoitesdepois.

=Ao longo das últimas semanas, uma intrigante relação profissional se

estabeleceuentreSerenaeSam.A vivacidade de Serena era o complemento perfeito para a timidez de

Sam.AmentefantasiosadeSamequilibravaomundodoaquieagorafeitode comidas e vinhos em que ela vivia. A consciência de que ela era agerentequevoltariaparaaEuropadentrodealgunsmesesconferiaumaefemeridadeagridoceaotempoqueelespassavamjuntos.ElesdesenvolveramohábitodeterminarasnoitesemqueoCaféabria

parao jantaremumdeterminadocantoda livraria.Umsofádispostoemcadaladodeumamesinhadecentroeraolugarperfeitoparaacompanharos últimos clientes do restaurante e falar sobre qualquer coisa que lhesviesseàcabeça.Já não eramais preciso fazer nenhum pedido aomaitre Kusali. Pouco

depois que eles se sentavam, Kusali trazia uma bandeja com doischocolatesquentesbelgas,umcommarshmallowsparaSerena,eoutrocombiscottiparaSam.Abandejatambémtrariaumpirescomquatrobiscoitosde cachorro e, se eu ainda estivesse por lá, uma jarrinha de leite semlactose.OsuavetilintardopratosobreamesinhaeraadeixaparaMarceleKyi

Kyi, que haviam obedientemente permanecido no cesto sob o balcão derecepção durante todo o serviço do jantar. Os dois cachorros seatropelavam para sair do cesto em disparada e atravessar o restaurantepara subir as escadas, e sentar à mesinha de centro, onde apoiavam osfocinhos com olhares suplicantes. A sua ansiedade sempre trazia umsorriso ao rosto de seus companheiros humanos, que os observavam

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devorarosbiscoitosefungartodasasmigalhasdochão.Quantoamim,chegariademaneiramaiselegante,meespreguiçandoum

poucoantesdepulardaprateleiradecimadaestantederevistasparamejuntaraosoutros.Depoisdereceberemosbiscoitos,oscachorrospulavamnosofáaolado

de Sam, virando de barriga para cima, ansiosos por receber uma boacoçada. Eume aconchegava no colo de Serena, amassando o vestido queestivesseusandoenquantodemonstravaminhagratidãocomumronronar.—Játemosumaenxurradadereservasparaonossopróximobanquete

— Serena disse a Sam naquela noite, depois que nós cinco estávamosacomodados.— Isso é ótimo— ele respondeu contemplativo, enquanto sorvia seu

chocolatequente.—V-vocêjáresolveuquandoirácontaraFranc?Serena ainda não havia decidido. Franc, que ainda estava em São

Francisco, não sabia de coisa alguma sobre a experiência do banqueteindianodaúltimaquarta-feira.Serenaestavaseapoiandonasabedoriadequeàsvezesémelhorimplorarporperdãodoquepedirpermissão.—Penseiemdeixarquetivesseumaagradávelsurpresaaoconferiras

contasmensais—disseela.— Ele com certeza terá uma surpresa— Sam concordou—, o maior

faturamento de uma noite desde que o Café abriu. E tudomudou desdeentão.Olugarcomoumtodoficoumaisvibrante.Hátodoessealvoroçonoar.—Tambémpensoassim—disseSerena—,masacheiquefossesóuma

coisaminha.— Não, o Café mudou — insistiu Sam, mirando seus olhos por dois

segundos completos, antes de desviar o olhar e dizer: — Você tambémmudou.—É?—disseelacomumsorriso.—Como?

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—Vocêestácomessa...energia.Essaj-joiedev-vivre.Serenaassentiu.—Mesintomesmodiferente.Estivepensandoemcomo,durante todo

esse tempogerenciandoos restaurantesmais luxuososdaEuropa, nuncamediverti tanto comonanoitedaúltimaquarta-feira.Nuncapoderia teracreditadoqueseriatãogratificante!Samrefletiuporummomento,antesdeobservar:—Assimcomoaquelepsicólogodisseoutrodia,àsvezesédifícilprever

oquenosfaráfelizes.—Exatamente.Estoucomeçandoameperguntarseserchefemumdos

melhoresrestaurantesdeLondresrealmenteéoqueeuquerofazer.EuestavaolhandoparaSamquandoeladisseisso,eobserveiamudança

emsuaexpressão.Haviaumbrilhoemseusolhos.— Se eu voltar a fazer a mesma coisa — continuou Serena —, isso

provavelmenteproduziráomesmoresultado.—Maisestresseeesgotamento?Elaassentiu.—Hárecompensastambém,claro.Massãomuitodiferentesdasquetive

aqui.—Vocêachaquecozinharparaafamíliaeosamigosfezadiferença?—

Samsugeriu.Depoislançandoumolharmalicioso,acrescentou:—Ouseráquefoiodespertardoseuvindaloo5interior?Serenariu.— Ambos. Eu adoro molhos com curry. Embora saiba que nunca

chegarãoafazerpartedaculináriadealtonível,euadoroprepará-losporcausadosmuitossabores,eelessãotãonutritivos.Mas,alémdisso,achoqueanoitedequarta-feirapassadafoiespecialparaaspessoas.—Concordo—disseSam.—Estelugarestavacomumastralincrível.— Émuito gratificante quando você faz o que realmente gosta e isso

aindaéapreciadoportodos.

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Sam parecia pensativo antes de colocar sua caneca na mesinha e selevantarparairatéaestante.Eleretornoucomumexemplardolivro“Embusca de sentido”, do psiquiatra austríaco e sobrevivente do Holocausto,ViktorFrankl.—Oquevocêacaboudedizermefezlembrardealgo—disseSam,ao

abriro livronoprefácio.—“Nãoprocuremosucesso”—leu.—“Quantomais o procurarem e o transformarem num alvo, mais vocês vão sofrer.Porque o sucesso, como a felicidade, não pode ser perseguido; ele deveacontecer... como efeito colateral de uma dedicação pessoal a uma causamaiorqueapessoa.”Serenaassentiu:—Deumamaneirasutil,achoqueé issooqueestoudescobrindo.Por

ummomento,seusolharesseencontraram.—Edomodomaisestranho.Samsemostroucurioso:—Comoassim?—Bem,essahistória todade fazerumbanquete indianosóaconteceu

por causa de uma conversa que tive por acaso com o Kusali. E aquelaconversasóaconteceuporqueencontreiapequenaRinpocheemapuros.Samsabiasobreaquelatardeemquefiqueipresanomuro.Houvemuita

especulaçãosobrecomoeuacabaraindopararláemcima,nenhumadelascorreta.— Pode-se dizer que tudo isso aconteceu por causa da Rinpoche —

constatou Serena, olhando para mim com adoração enquanto meacariciava.—Rinpoche,acatalisadora—observouSam.—Oumelhor,gatalisadora.Enquanto os dois riam, pensei em como alguém poderia imaginar o

efeito dominó que fora desencadeado pela minha decisão de virar àesquerda em vez de à direita naquela tarde de segunda-feira quandodeixara o Café.Nenhumdenós poderia acreditar o que ainda estavaporacontecer.Oquehaviaacontecidoatéagoraerasóoiníciodeumahistória

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muitomaior—ahistóriademuitasdimensõesdefelicidadequeestavamporemergircomoefeitocolateraleextremamentegratificante.Imprevisível?Certamente.Esclarecedor?Semamenordúvida!

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1 Mistura de temperos tipicamente indiana (do hindi garam, significa “quente” e masala,“mistura”)(N.T.)

2 Ou curry de Madras. Trata-se da mistura de temperos com origem na Índia, onde cadacozinheirotemasuaprópriareceita.OcurryempótalcomooconhecemosfoiumainvençãoinglesaafimdepadronizarecomercializarumadasmisturasencontradasnaÍndiaduranteacolonização.Amisturaéinternacionalmenteconhecidacomo“MadrasCurry”.(N.R.T.)

3Espéciedesorvetetradicionalindiano.(N.T)4Típicosdaculináriaindiana,osPakorassãopequenosbolinhosde legumesfritosempanados

comumpolmefeitoàbasedefarinhadegrão-de-bico.(N.R.T.)5Molhoutilizadonaculináriaindianaeanglo-indiana,feitocomvinagre,açúcar,gengibrefresco,

curryeoutrasespeciarias.(N.R.T.)

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CAPÍTULO2Oquefazvocêronronar?Detodasasperguntasnomundo,estaéamaisimportante.Eétambém

umgrandenivelador.Porquenãoimportasevocêéumgatinhobrincalhãoouumidososedentário,ummagriceladacomunidadeouumapatricinha,não importam as circunstâncias, tudo o que você quer é ser feliz. Nãoaquelafelicidadequevemevai,comoumalatadeatumempedaços,masaque dura. Aquela felicidade profunda que te faz ronronar do fundo docoração.Poucosdiasdepoisdobanquete indiano, fizumadescoberta intrigante

sobrea felicidade.NomeiodeumamanhãgloriosanoHimalaia—o céuazul,ocantodospássaros,aessênciarevigorantedepinho—ouviumsomestranhovindodoquarto.Saltandodomeuparapeito,fuiinvestigar.Chogyal estava inspecionando a limpeza de primavera durante a

ausência do Dalai Lama. Meu segundo monge favorito estava em pé nomeiodoquartosupervisionandooencarregadonaescada,queretiravaascortinas, enquanto o outro, sentado em um banquinho, dava uma boalimpadanasluminárias.MinharelaçãocomChogyalpassavaporumamudançasutiltodavezque

SuaSantidadeviajava.Demanhã,quandochegavaaotrabalho,elevinhaatéos aposentos do Dalai Lama só para me ver. Passava alguns minutosescovandoomeupelocomaminhaescovaespecial,enquantoconversavacomigo sobre os eventos do dia, ummomento tranquilizador do qual euprecisavaapóspassaranoitesozinha.Ànoite,amesmacoisa.Antesde irparacasa,Chogyalcertificava-sede

queminha tigela debiscoitos estivesse cheia eminha água, reabastecida.

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Depois,passavaumtempomeacariciandoparamelembrardoquantoeueraamada,nãosóporSuaSantidade,mastambémportodosnacasa.Sabiaque estava tentando compensar a ausência doDalai Lama, e seu coraçãobondosofezcomqueeupassasseaamá-loeadmirá-loaindamais.Naquelamanhã, fiquei alarmada com o que ele estava fazendo com o

nosso aposento. Um de seus encarregados recolhia peças para lavar,quandoChogyalapontouparameucobertordelãbege,queestavanochão,embaixodeumacadeira.—Aquelealinãoélavadohámeses—disse.Não,nãoera.Masdeliberadamente!EnãoserialavadoseSuaSantidade

estivessenocomando.Mieimelancolicamente.Chogyalsevirouparaondeeuestavasentadapertodaporta,comuma

expressãodesúplicaemmeusolhos.Noentanto,apesardetodaabondadedo seu coração, em se tratando de gatos, Chogyal não era lá muitoperceptivo. Diferentemente do Dalai Lama, que saberia exatamente omotivopeloqualestavatriste,eleachouquemeumiadofosseporcontadeumaangústiageneralizada.Aninhando-meemseusbraços,começouameacariciar.—Nãosepreocupe,GSS—,noexatomomentoemqueoencarregado

pegavaocobertorefugiacomeleemdireçãoàlavanderia.—Tudoestarádevolta,perfeitamentelimpo,maisrápidodoquevocêimagina.Seráqueelenãoviaqueoproblemaeraexatamenteesse?Conseguime

desvencilharde seusbraços, atémostreiminhasgarrasparadeixar claroquenãoestavadebrincadeira.Apósalgunsmomentosdesagradáveis, elemecolocounochão.—Gatos!—disseChogyal,aobalançarsuacabeçaeesboçarumsorriso

confuso, como se eu tivesse desdenhado de seu carinho sem nenhummotivo.Voltei paraoparapeitoda janela,minha caudapendurada em sinal de

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desânimo,repareicomoodiasetornaradesagradavelmenteclaro.Láfora,os pássaros piavam alto e o cheiro de pinho era tão forte quantodesinfetante de banheiro. Como Chogyal podia não ver o que estavafazendo?Comopodianãoperceberquehaviaacabadodedecretarofimdaúltima ligação que eu mantinha com a gatinha mais fofa que já existiu,minhafilhotinhadaneve?

=Quatromeses antes, como resultadodeumnamorico comumbonitão

rústico,emúltimaanálise,uminadequadogatoderua,euderaàluzquatromaravilhosos filhotinhos. Os três primeiros a nascer eram iguais ao pai:escuros,robustosemachos.Naverdade,houvecertoespantoemperceberqueespécimes tãovigorososdegato tigrado,que logoostentariam largaslistras, pudessem sair domeu corpo tão petit e refinado, para não dizerdelicadamentemacio.Oquartoeúltimofilhoteera,noentanto,exatamenteigualàmãe.AúltimaacairsobreocobertornacamadeSuaSantidade,nasprimeiras horas de uma manhã, era tão pequenina que caberia comfacilidade em uma colher de sopa. A princípio, temíamos que nãosobrevivesse,eatéhojeestouconvencidadequefoigraçasaoDalaiLamaqueelaconseguiu.Para os budistas tibetanos, Sua Santidade é tido como a emanação de

Chenrezig,obudadacompaixão.Comovivianapresençadasuacompaixãoo tempo todo, nunca a tinha sentido tão fortemente direcionada comodurante nossas horas de necessidade. Enquanto meu bebezinho— umapequenabolinharosaenrugadacomalguns fiaposbrancos— lutavapelavida, Sua Santidadenosobservava aomesmo tempoemque recitavaummantra.Comsuaatençãofocadaemnósatéqueapequenaserecuperassedo seu processo de nascimento, era como se nada de mau pudesse nosacontecer.Estávamosbanhadaspeloamorebem-estardetodososbudas.

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Quando finalmente ela conseguiu se aproximar e começou amamar, eracomosetivéssemosatravessadoumatempestade.GraçasàproteçãodeSuaSantidade,tudoficariabem.Duranteasváriassemanasqueprecederamonascimentodosfilhotes,a

notícia da minha gravidez havia se espalhado, e o escritório de SuaSantidade recebera vários suplicantes interessados em adotar os meusbebês, desde monges do outro lado do pátio no Mosteiro Namgyal atéamigoscolaboradoresdeváriaspartesdaÍndiaedosHimalaias,etambémde lugares mais distantes, como Madri, Los Angeles e até Sidney. Se eutivessedado à luzumnúmero suficientede filhotes,minhadescendênciaestariavivendoagoraemtodososcontinentesdoplaneta.Duranteasprimeirassemanas,meusbebêseramfrágeisedependentes.

Depois de ummês,meus três filhotes bagunceiros estavamprontos paraexperimentar comidinha de gato enlatada, embora eu ainda tivesse quecuidardaminhapequena,bemmenorqueosoutros.Emoitosemanas,osgarotos já corriam pela casa — subiam pelas cortinas, destruíam osaposentos de Sua Santidade e saltavam para atacar as canelas detranseuntesdesavisados.Antes que qualquer visitante VIP chegasse, os indícios dos filhotes

tinhamdesertotalmenteapagados.Chogyal,emboraaltamenteinteligente,não era o mais organizado dos humanos, e se atrapalhava todo,engatinhando pelo chão, tropeçando em seu próprio robe, enquantoperseguiaumdosmeusesquivos filhotes.Tenzin,maisvelho,maisalto,emais experiente, tirava sua jaqueta com uma certa cerimônia antes deadotar uma abordagem estratégica, criando uma distração para atrair osfilhotesdeondeelesestivessemescondidos, e capturá-losquandomenosesperassem.A virada aconteceu com a chegada de certa visita. Como gata de Sua

Santidade, aprendi a ser um modelo de discrição quando se tratava decelebridades.Longedemimpronunciaronomedeumavisita tão ilustre.

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Permita-me dizer apenas que esse visitante em particular era bemconhecido,umatordecinema,umfisiculturistanascidonaÁustriaquenãosó se tornou um dos maiores astros de Hollywood, mas também ogovernadordaCalifórnia.Pronto.Issoétudoqueestoudispostaadizer.Nadamais,poisentregaria

ojogo.Natardeemqueelechegou,nobancodetrásdeumalustrosaSUVpreta,Chogyal eTenzinestavamàsvoltas comsua rotinade inspeçãodegatinhos,segurandotrêsdelesnasaladosfuncionários.Oupelomenoseraoquepensavam.Imagine, se puder, a seguinte cena. O distinto visitante chegando —

bonito, carismático, aquela figura alta elevando-se sobre o Dalai Lama.Comomandaatradiçãotibetana,aoconhecerumlamadaaltahierarquiaovisitantefezumareverênciaepresenteouSuaSantidadecomumaecharpebranca chamada kata, que, em resposta, foi colocada ao redor do seupescoço.ComosempreocorriacomoDalaiLama,tudoestavaindobem,demaneiracalmaatranquila.Ovisitanteentãoseposicionouao ladodeseuanfitriãoparaafotooficial.Emumafraçãodesegundos,antesqueofotógrafodisparasseacâmera,

meus três filhotes deram início ao que só poderia ser descrito como umataquefrontal.Doispularamsobreumapoltronae foramdiretoatacaraspernas do visitante, enquanto o terceiro cravava unhas e dentes em suacanelaesquerda.O convidado se contorceu com o choque e a dor. O fotógrafo gritou

alarmado.Poralgunsmomentos,pareciaqueotempohaviaparado.Então,osdoisprimeirossoltaramaspernasdovisitanteVIP,enquantooterceirosaiucorrendo,semaomenosumhastalavista,baby.Sua Santidade, o únicoqueparecianão estar surpreso como lapsona

segurança dos felinos, se desculpou efusivamente. Após recuperar seuequilíbrio,ovisitantepareciaterachadotudomuitoengraçado.Achoquenuncaesquecereioqueaconteceuemseguida:oDalaiLama

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gesticulava na direção dos gatinhos safados, enquanto um dos heróis deação mais famosos do mundo, deitado de bruços, tentava resgatar ospequenospestinhasdeseuesconderijodebaixodosofá.Sim, mais tarde, todos concordaram, seria necessário encontrar lares

mais adequados para os filhotes. E quanto à pequenina, doce e delicadaminiatura de sua mãe Himalaia? Em seus corações, acho que ninguémqueriapensaremsuapartida.Porenquanto,elaestariaasalvo.Como muitos felinos, tenho diversos nomes. No Café & Livraria do

Himalaia,fuibatizadadeRinpoche.NoscírculosoficiaisemJoghang,ondesereferemaSuaSantidadecomoSSDL,recebiotítuloformaldeGSS,aGatadeSuaSantidade.Minhameninalogoseguiuospassosdamãe,recebendooapelidooficial deFGSS—FilhotedaGatade Sua Santidade.MasonomemaisimportantefoidadopelopróprioDalaiLama.Unsdoisdiasdepoisquemeusmeninos partiram, ele pegou omeubebê em seus braços,mirandodentrodeseusolhoscomaqueleolhardepuroamorquefazcomquetodoseuserseilumine.— Tão linda, igual a mãe! — murmurou, ao acariciar seu pequeno

rostinhocomseuindicador.—Nãoé,PequenaFilhotedaNeve?Nassemanasqueseseguiram,éramossónóstrês:SuaSantidade,eu,Sua

Leoa da Neve, e minha filha, Filhote da Neve. Quando eu acordava demanhã cedo, parame aconchegar ao ladode Sua Santidade enquanto elemeditava,FilhotedaNevetambémselevantavaeseaninhavaaocalordomeu corpo. Quando ia para o escritório dos assistentes, ela ia comigo emiavaatéquealgumdelesapegasseeacolocasseemumadesuasmesas,onde adorava empurrar as canetas até a beirada para depois jogá-las nochão.Emumaocasião,Tenzin,quesentavaemfrenteaChogyaleadoravachá verde, saiu, deixando em sua mesa um copo de chá. Ao retornar,encontrou FGSS tentando lamber o conteúdo de seu copo. Ela não parounemmesmoquandoele se aproximou,oumesmoquando sentouemsuacadeira, colocando os cotovelos sobre a mesa para observá-la mais de

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perto.—Suponhoqueeunãotenhamuitachancedetomarumpoucodechá,

nãoé,FGSS?—Chogyalperguntousecamente.FGSS o encarou com os olhos arregalados, com uma expressão de

espanto.ComoassimnãoeratudosóparasuadiversãoemJokghan?Então, chegou o dia em que Lobsang, o tradutor de Sua Santidade,

lembrouaoDalaiLamadeumacordoquehaviafeito.— A rainha do Butão me pediu que transmitisse suas mais calorosas

saudações, Sua Santidade — disse ao Dalai Lama em uma tarde, apósterminaremumatranscrição.SuaSantidadesorriu:—Muitobom.Gosteimuitodesuavisita.Porfavor,transmitaaelameus

melhoresvotos.Lobsangassentiu:—ElatambémperguntousobreGSS.—Ah,sim.Lembro-medaminhapequenaLeoadaNevesentadaemseu

colo. Muito incomum. — Ele se virou para me ver aconchegada com aFilhote da Neve sobre o cobertor bege que havia colocado no parapeitodepoisdachegadadosfilhotes.—SuaSantidadedeveselembrardoseupedidoparaadotarumfilhote

sealgumdiaGSStivessealgum—murmurouLobsang.O Dalai Lama parou por alguns instantes, antes que seus olhos

encontrassemosdeLobsang.—Foi issomesmo.Achoqueelaestavaàesperadeumfilhotecomo…

Comosediz?—Pedigreeadequado?—SugeriuLobsang.SuaSantidadeassentiu.—NósnuncaconseguimosrastrearasorigensdeGSS.AfamíliaemNova

Deliàqualsuamãepertenciasemudou.Equantoaopaidosseusfilhotes…Osdoishomenssorriram.

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—Mas— continuou Sua Santidade gentilmente, seguindo o olhar deLobsang, que mirava aquela forma minúscula ao meu lado — minhaPequenaFilhotedaNeveparecemesmomuitocomsuamãe.Epromessaédívida.Lobsang levou Filhote deNeve uma semana depois, quando foi visitar

suafamílianoButão.Paramim,asatisfaçãodesaberqueelaforaparaumadasmelhores casas imagináveis compensou a tristeza que senti com suapartida,arealidadedeficarmaisumavezsozinhanoparapeito.Comsuahabitualcompaixão,SuaSantidadetrouxeocobertorbegeeo

colocou debaixo de uma cadeira em nosso quarto, para que eu não melembrassedaminhaperda toda vezquepulassenoparapeito.Mas aindapodiameaconchegarneledebaixoda cadeira e sentir o cheirodaminhaFilhote da Neve e seus irmãos, ver alguns fiapos dos seus pelos —pequenos fios brancos entrelaçados com fiosmarrons. Algumasmanhãs,emvezdesentaraoladodeSuaSantidadeparameditar,caminhavaatéocobertoreme instalavaemcimadele, absortaemminhas lembrançasdopassado.Emoutrosmomentosdodia,quandonãohavianadamaisemquepensar,voltavaaocobertoreàsminhaslembrançasagridoces.Agora,comalimpezadeprimaveraatodovapor,atéocobertormefora

tirado.

=Um ou dois dias depois da limpeza de primavera de Chogyal, decidi

seguirSerenaaosairdoCafé.Elarepetiaomesmocaminhotodososdias.Às17h30,desapareciaparadentrodoescritóriodagerência,umpequenocômodo ao lado da cozinha, ressurgindo dez minutos depois em suasroupas de ioga — preta, de algodão orgânico, comprada em feira deartesanato—erabodecavalo.Emvezdesairpelaportadafrente,cruzavaacozinhaesaíapelaporta

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de trás, passando pelo beco atrás do restaurante e subindo aquela ruasinuosaqueeuconheciatãobem.De vez emquando, falava sobre suas aulas de ioga emum tom solene

querevelavaoquantoeramimportantesparaela;suapresençanasaulastodasasnoiteserainegociável.DesdequevoltouàÍndia,seuobjetivoeraalcançar um equilíbrio cada vez maior em sua vida e, por isso, haviaembarcadoemumajornadadeautoconhecimentoque incluíanãoapenasbanquetesindianos,mastambémquestõesmuitomaisimportantesligadasaoquequeriafazerdasuavidaeonde.Pelofatodepossuiracuriosidadenatural dos felinos, e tambémpor ter tempo livre à noite agora que SuaSantidade estava fora, eu queria descobrir o que fazia a prática da iogaproduzirefeitostãopoderosos.Seráqueaiogaeraapenasumnomequeoshumanos davam para uma variedade de contorcionismos corporais quetentavamexecutardeformamuitoinferioraoqueeraalcançadosemmuitoesforçopornós,gatos?AcompanharopassodeSerenaenquantoelaseaproximavadoaltoda

colinanãoeraumatarefafácilparaumagatacompernasinstáveiscomoasminhas. Mas o que me faltava em força física, eu compensava comdeterminação. Pouco tempo depois, Serena entrou em um bangalô deaparência modesta, com bandeiras tibetanas de oração um poucodesbotadaspresasnascalhas.Fuiatrásdela.Aportada frente estava aberta e levava aumpequeno corredoronde

haviaumagrandesapateiraqueestavapraticamentevaziaeumperfumeinebriantedecalçadodecouro,suoreincensoNagchampa.Umacortinadecontasseparavaocorredordasaladeioga.Naentrada,

havia uma placa com o nome Escola de Ioga Downward Dog, em letrasapagadas. Passando pela cortina de contas,me deparei com uma grandesala.Naoutraponta,haviaumhomememumaposeque,maistardevimasaber, era Virabhadrasana II, a Postura do Guerreiro. Com os braçosesticados na altura dos ombros, sua majestosa silhueta se destacava da

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vistapanorâmicadosHimalaias ao fundoque se via atravésdos janelõesque iamdochãoao teto.Ospicosnevados refletiamosolpoente,queoscoroavacomraiosdourados.—Parecequetemosvisita—disseohomemnaPosturadoGuerreiro,

com uma voz suave e um leve sotaque alemão. Seu cabelo branco eracortado rente à cabeça e, apesar da sua idade aparente, ele era muitoflexível.Seurostotinhaobronzeadoemdiaeseusolhoseramdeumazulvibrante.Estavaimaginandocomoelesabiaqueeuestavanasala,atéverqueumaparedeeracobertadeespelho,epercebiqueelehaviamevistoentrarporentreacortinadecontas.Davaranda,Serenavirou-seemeviu.—Ah,Rinpoche,vocêmeseguiu!Aproximando-sedeondeeuestava,eladisseaohomemnaPosturado

Guerreiro:—EstapequenapassaboapartedotemponoCafé.Provavelmentevocê

nãopermitegatosnasaladeprática,nãoé?Houveumapausaantesqueelerespondesse:—Nãoéumaregra.Massintoquesuaamigaéumtantoespecial.Nãotinhaideiaexatamentedecomoelepercebeuisso,masestavafeliz

eminterpretaraquilocomoumapermissãoparaficar.Semmaisdelongas,saltei sobre um banquinho de madeira perto de uma estante comcobertores no fundo da sala. Era o lugar perfeito para observar sem serobservada.Olhandoaoredor,repareiemumafotografiaempretoebrancodeum

cachorroque estavapenduradanaparede. EraumLhasaApso, amesmaraça de Kyi Kyi. Muito popular entre os tibetanos, os Lhasa Apsostradicionalmente serviam de sentinelas dos mosteiros, alertando osmonges sobre presença de intrusos. Será que o nome da escola de ioga,DownwardDogeraporcausadaqueleLhasaApso?Outras pessoas começaram a chegar para a prática. A maioria

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estrangeiros,algunsindianos,umamisturadehomensemulheresnafaixadostrintaanosoumais.Caminhavamcomcertaconsciência,certapostura.Espalharamseus colchonetesde ioga, almofadase cobertorespela sala, edeitaramdecostas,comosolhosfechadosepernasesticadas,oquemefezlembrarasfilasdegalinhasamarradasqueeucostumavavernomercado.Depoisdealgumtempo,oinstrutor,queaspessoaschamavamdeLudo,

levantou-see,ficandodefrenteparaaturma,falouparaosvinteepoucosalunoscomsuavozgentil,porémfirme.—Iogaévidya,queemsânscritosignificaestarcomavidacomoelaé,e

nãocomonósgostaríamosqueelafosse.Nãoavidado“Ah,seapenasissofosse diferente”, ou do “Ah, se apenas eu pudesse fazer tal coisa”. Então,como começamos a ioga? Saindo de nossas cabeças e mergulhando nomomento presente. O únicomomento que realmente existe é o aqui e oagora.Pelosjanelõesabertos,ouviam-seosgritosagudosdosandorinhõesque

subiamedesciamnocéudofinaldetarde.Acordessoltosdemúsicahindieobarulhodepanelassubiamdascasasdabasedamontanha, juntamentecomoaromadasrefeiçõessendopreparadas.— Ao permanecermos no aqui e agora — Ludo continuou —,

reconhecemosquenodesenrolardecadaacontecimento,tudosecompleta.Tudo está conectado. Mas não conseguimos experimentar essa sensaçãodiretamente até libertar o pensamento e simplesmente relaxar, até quetomemosconsciênciaquechegamosaestemomento,aquieagora,apenasporquetodoorestoédojeitoqueé.Relaxeecontinueconsciente—disseLudoaosalunos.—Aunificaçãodavida.Aiogaéisso.

=Ludo conduziu a aula com uma sequência de asanas ou posturas,

algumas de pé, outras sentadas, umas dinâmicas, outras em repouso.

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Percebi que ioga não servia somente para desenvolver a flexibilidade docorpo.Eramuitomaisqueisso.Juntocomasinstruçõesdecomoseinclinarealongar,Ludoofereciaensinamentospreciososqueapontavamparaumpropósitomuitomaior.—Não podemos trabalhar com o corpo se não trabalharmos também

com amente. Quando nos deparamos com constrições— obstáculos emnossaprática—descobrimosquea fisiologiaéumespelhodapsicologia.Mente e corpo podem ficar presos a hábitos que causam desconforto,estresseetensão.Quandoumdosalunoscomentouquenãoconseguiaabaixarotroncoe

tocar as palmas dasmãos no chão porque seus tendões estavam tensos,Ludoobservou:—Tensões.Sim.Paraalguns,esteéodesafio.Paraoutros,odesafioéser

capazdedobrarocorpo,ousimplesmentesentarcomaspernascruzadasconfortavelmente.Asinsatisfaçõesdavidasemanifestamdemuitasformasdiferentes.Omodocomoseexpressaméúnicoparacadaumdenós.Masaioganosofereceespaçoparasermoslivres.Enquanto caminhava por entre os alunos, ajustando sutilmente suas

posturas,Ludocontinuou:—Emvezdedarvoltasemaisvoltas,aprofundandoosmesmoshábitos

do corpo edamente, use a sua consciência.Não tente escaparda tensãoforçando uma postura; em vez disso, respire enquanto permanece nela.Não com força, mas com sabedoria. Use a sua respiração para criarabertura.Acadarespiração,umamudançasutilacontece.Cadarespiraçãoéumpassoparaatransformação.Acompanhei a aula do meu banquinho na parte de trás da sala com

grande interesse, agradecida por ter permanecido despercebida. MasquandoLudoinstruiuosalunosarealizarumatorçãosentada,derepentevinte cabeças se viraram e me viram. No mesmo instante, sorrisos erisadinhasencheramasala.

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—Ah,sim.Aconvidadaespecialdehoje—disseLudo.—Essepelobranco!—alguémexclamou.—Osolhosazuis!—disseoutro.Então,comotodososvinteparesdeolhosestavamfixadosemmim,um

homemcomentou:—DeveserumaSwami.6

O comentário provocou risadas porque as pessoas se lembraram dosábiolocal,cujaimagemapareciaempôsteresportodaacidade.Fiqueialiviadaquandoatorçãoterminou,maslogodepois,viqueestava

sendo observada mais uma vez, quando todos se viraram para mim nadireçãooposta.Ao final da prática, enquanto estavam todos deitados em seus

colchonetesemShavasana,aposturadocadáver,Ludodisseaosalunos:—Decerta forma,estaéaposturamaisdesafiadoradetodas.Ocorpo

calmo,amentecalma.Tentenãoseenvolvercomopensamento,aceite-o,edeixe-o ir embora. Podemos descobrir muito mais no espaço entre umpensamentoeoutrodoquequando ficamosabsortosemumaelaboraçãoconceitual.Naquietude,descobrimosqueháoutrasmaneirasdesaberdascoisasalémdeatravésdointelecto.

=Apósaprática,enquantoosalunosguardavamseuscobertores,blocose

almofadas, alguns pararam para falar comigo. Alguns se dirigiram aocorredorparacolocarossapatose irembora,masamaioriasereuniunavaranda,depoisdasportasdecorrer.Cadeirascomalmofadascoloridasealgunspufesestavamdispostossobreumtapeteindianoquecobriatodaaextensão da varanda. Ao lado damesa guarnecida com canecas e copos,alguémseserviadeáguaecháverde,enquantoosalunosseacomodavamnoqueera,evidentemente,umarotinaconfortávelapósaprática.

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Nós,gatos,nãogostamosdemuitobarulhooumovimento.Entãoespereiaté que todos estivessem sentados antes de deslizar silenciosamente dobancoemeencaminharatéavarandaparaficaraoladodeSerena.Osúltimosraiosdosolpoentecobriamamontanhacomumvermelho

coralreluzente.—Tentarrespiraremmeioaodesconfortoenquantopraticamosaiogaé

umacoisa—comentouumamulherdevozgrossachamadaMerrilee.Elahaviasejuntadoaosoutrosquasenofimdaprática,comosetivessevindoapenas para participar da socialização depois da aula. Teria sidoimaginaçãomesmo, ou elade fato furtivamentederramara algodo cantilquecarregavaemvoltadacinturaemseucopo?—Equandonãoestamospraticandoiogaetemosdelidarcomnossosproblemas?—elaperguntou.—Tudoéioga—Ludorespondeu.—Geralmente,reagimosaosdesafios

da maneira que estamos habituados, com raiva ou evasão. Quandorespiramosemmeioaodesafio,podemosterumarespostamaisútil.— A raiva e a evasão não são, às vezes, reações úteis?— perguntou

Ewing, um americanomais velho que vivia hámuito tempo emMcLeodGanj.Devezemquando, elevisitavaoCafé&LivrariadoHimalaia, ondediziamquehavia fugidoparaa Índiadepoisdealgumatragédiaqueteriasofridoemseupaís.Pormuitosanos,ele tocarapianono lobby doGrandHotelNovaDéli.— Uma reação é algo automático, habitual — disse Ludo. — Uma

resposta é algopensado.Aí estáadiferença.O importanteé criarespaço,nos abrirmos para possibilidades além das habituais, que raramente nosajudam.Araivanuncaéumarespostailuminada.Podemosficariradosaobrigar com uma criança que está prestes a chegar perto do fogo, porexemplo,masissoémuitodiferentederealmenteestarcomraiva.—Oproblema—observouumindianoalto,sentadoaoladodeSerena

—équeficamospresosànossazonadeconforto,mesmoquandoelanãoestálámuitoconfortável.

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—Nosapegamosaoqueéfamiliar—concordouSerena—àscoisasquecostumavamnostrazerfelicidade,masnãotrazemmais.Perplexa, olhei para ela enquanto proferia essas palavras. Pensei no

cobertor de lã bege no quarto e em como as lembranças dos muitosmomentos felizes que passei nele com minha Pequena Filhote de Neveestavamagoraligadosàtristeza.—Shantideva,osábiobudistaindiano, falasobrelamberomelsobreo

fiodalâmina—disseLudo.—Nãoimportaoquantosejadoce,opreçoquesepagaémuitoalto.—Então,comovamossaberquandoalgoquejáfoipositivonopassado

perdeusuautilidade?—perguntouSerenaLudoolhouparaelacomolhostãoclarosquemaispareciamdeprata.—Quandonosfazsofrer—respondeuelesimplesmente.—Sofrervem

dapalavra latinaque significacarregar.7 E, embora,porvezes, ador sejainevitável, o sofrimento não é. Por exemplo, podemos ter uma relaçãomuitofelizcomalguém,eentãoperdemosessapessoa.Sentimosdor,claro,é natural. Mas quando continuamos a carregar esta dor, nos sentimosconstantementedesolados,istoésofrimento.Houveumapausaenquantotodosabsorviamoqueacabaradeserdito.

No crepúsculo profundo, as montanhas se destacavam na distânciarefletindo sombras de um rosa vívido, como o glacê dos cupcakes dasenhoraTrinci.—Àsvezesachoqueopassadoéumlugarperigosoparaseiràprocura

dafelicidade—disseoindianosentadoaoladodaSerena.—Vocêtemrazão,Sid—concordouLudo.—Aúnicaoportunidadeem

quepodemosvivenciarafelicidadeénestemomento,aquieagora.

=Maistarde,osalunoscomeçaramasedispersar.Serenafoiemboracom

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algumaspessoas,eeuaseguiatéocorredor.— Vejo que a pequena Swami está com você — observou uma das

mulheres,enquantocalçavaseussapatos.—Sim.Nósnosconhecemosmuitobem.Elapassaboapartedotempo

noCafé.Voudara elaumacaronadevoltaagora—Serenadisse, aomepegarnocolo.—Qualéoseuverdadeironome?—perguntouumaoutramulher.—Ah,elaéumagatademuitosnomes.Emtodolugarqueelavai,parece

adquirirmaisum.— Então hoje não foi uma exceção — disse Sid. Tirando algumas

margaridasamarelasdeumvasonocorredor,eleastransformouemumaguirlandaecolocouaoredordomeupescoço.—Eumeprostroaseuspés,pequenaSwami—disseele,juntandosuas

mãos cuidadas e macias em frente ao coração. Ao olhar dentro de seusolhos,pudeverumagrandeternura.Então,eleabriuaportaparaSerena,ecomeçamosadesceracolina,de

voltaparacasa.— Temos tanta sorte de ter um professor tão maravilhoso — disse

Serena.—Sim—concordouSid.—OLudvig(Ludo)éexcepcional.—MinhamãedizqueeleestáemMcLeodGnjdesdequeeunasci.Sidbalançouacabeçaafirmativamente:—Desdeocomeçodosanos60.EleveioapedidodeHeinrichHarrer.—DofamosoSeteanosnoTibete?OtutordoDalaiLama?— Issomesmo.Heinrich o apresentou aoDalai Lamapoucodepois de

Ludo chegar a McLeod Ganj. Dizem que Sua Santidade e ele são bonsamigos.De fato, foi SuaSantidadequeo incentivouamontaraEscoladeIoga.— Não sabia disso — disse Serena. Olhando de relance para Sid, de

repente percebeu o quanto ele sabia sobre os assuntos locais. Depois de

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alguns momentos, Serena resolveu testar seus conhecimentos um poucomais.—Temumcaraandandoatrásdenós,comumajaquetaescuraeboné

defeltro—Serena sussurrou.—Alguémmedissequeele éoMarajádeHimachalPradesh,éverdade?Eles continuaram descendo a colina um pouco mais até que Sid

discretamentedeuumaolhadaporsobreoombro.—Ouvidizeramesmacoisa—respondeu.—Sempreovejoporaqui—disseSerena.—Eu também. Talvez ele tenha o hábito de sair para caminhar nesse

horário?—Podeser—refletiuSerena.

=Nodiaseguinte,enquantoeucaminhavapelocorredordaalaexecutiva,

Lobsangmechamou:—GSS!Venhaaqui,minhapequena!Temumacoisaqueachoquevocê

vaiquererver!Euoignorei,claro.Nós,gatos,nãonossubmetemosaqualquersúplica,

clamor, oumesmoumhumildepedido feito pelos humanos.O quehádebom nisso? Vocês ficam tão mais agradecidos quando, por fim, lhesjogamos um osso — perdoe o cheiro de cachorro desta metáfora emparticular.Contudo,Lobsangnãoestavadispostoadesistire,momentosdepois,eu

estavasendocarregadaparaoescritórioecolocadaemsuamesa.—EstounoSkypecomoButão—elemedisse.—Evialguémquevocê

gostariadever.Ateladoseucomputadorrevelavaumquartosuntuosamentedecorado

e,emumdos lados,haviaumacadeirapertoda janela,naqualumagata

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himalaiaestavadeitadadecostas,pegandosolnabarriguinha.Suacabeçaestava jogada para trás, seus olhos fechados, suas pernas e rabo peludoespalhadosemumaposequeLudodescreveriacomo“aPosturadaEstreladoMar”.Paraosgatos,estaéaposiçãomaisentregue,confianteesatisfeitadetodas.Demorouumpoucoatéquepercebi…Seráqueeraissomesmo?Sim,era!

Mascomoelacresceu!—Seunomeoficial é GSAR—disse Lobsang—, aGata de SuaAlteza

Real.UmaletraamaisqueGSS.Emedisseramqueéadoradanopaláciodelá,assimcomovocêaquiemNamgyal.ObservavaabarriguinhadeFilhotedeNevesubiredescerenquantoela

descansava ao sol, lembrando de comome senti triste há apenas algunsdias,quandoChogyalretirouocobertorbegedoquarto,edecomoaquilomeprivoudasdoceslembrançasdaminhamenina.Oupelomenosfoioquepenseinahora.Desde então, aprendi que minha infelicidade me foi infligida não por

Chogyal, mas, sem querer, por mim mesma. Ao chafurdar em minhaslembranças nostálgicas, gastando tanto tempopensando emuma relaçãoque havia mudado e seguido em frente, eu havia sustentado uma dordesnecessária.Umsofrimento.Enquantoisso,FilhotedeNevehaviacrescidoparaumanovavida,como

agataadoradadopaláciodarainhadoButão.Oquemaisumamãepoderiaquerer?Virando-me, chegueimaispertodeondeLobsangestava sentadoeme

inclineiparamassagearseusdedoscomomeurosto.—GSS!—exclamouele.—Vocênuncafezissoantes!Elerespondeuacariciandoomeupescoço,eeufecheiosolhosecomecei

a ronronar. Ludo tinha razão. A felicidade não é para ser encontrada nopassado.Nemna tentativa de reviver as lembranças, embora isso pareçasedutor.

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Sópodeservivenciadanestemomento,aquieagora.

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6 Termo em sânscrito que significa “aquele que sabe e domina a si mesmo”. Refere-se a umindivíduoaltamenterespeitadoereverenciado.Otítuloindicaconhecimentoedomíniodaioga.(N.R.T.)

7Sufferreéformadodesub-(sob,embaixo)eferre(levar,transportar).Significa,portanto,levaralgosobresi,estandoembaixodacoisatransportada.Comocarregarcoisas–especialmentepesadas–nãoétarefadasmaisagradáveis,sufferrelogopassouaterosentidode“padecer”.(N.T.)

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CAPÍTULO3Querido leitor, oqueaconteceria se vocêestivesseprestes a realizaro

sonho da sua vida? Se estivesse a ponto de alcançar o seu objetivomaisambicioso,muitoalémdesuasexpectativasmaisextravagantes?Não há mal algum em imaginar essa felicidade, há? Imagine, por

exemplo,abriraportadafrentedasualindacasaeencontrarasuafamíliacomoumafotoderevista,todosfelizesecontentes,umaromadeliciosodecomidavindodacozinhaeninguémbrigandopelocontroledaTV.Ou,nomeucaso,seaventurarnadispensadacozinhadoandardebaixo

e encontrar dez mil porções do fígado de galinha da senhora Trinciguardadascuidadosamente,esperandopelomeudeleite.Quevisãoencantadora!Queimagemsedutora!Mal sabíamosque lánoCafé&LivrariadoHimalaia alguémquehavia

alcançado algo igualmentemaravilhoso estavaprestes a entrar emnossomeio.Aprincípio,malo reconhecemos. Suaprimeira aparição coincidiu com

umadasminhas chegadas ao final damanhã. Era poucodepois das onzequando saí de Jokhang e desci a estrada nomomento exato em que elecaminhava emdireção ao Café. Era umhomemdemeia idade, aparênciarude, cabelos castanho-avermelhados que estavam ficando grisalhos nastêmporas, rosto marcado por sulcos profundos, sobrancelhas espessas eolhos curiosos. Havia um contraste marcante entre aquele rostoenvelhecidoemarcadoesuasroupascaras—casacodelinhocreme,calçasdamesmacor,relógiodeouroreluzente.Seuandareramaisrápidodoqueo passeio descompromissado damaioria dos turistas, e carregava váriosguiasturísticossobreonoroestedaÍndia.

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PasseipeloCafé,parandopararoçarnarizescomMarceleKyiKyiqueestavamnacestaembaixodobalcãodarecepção.ComasaídadoFranceachegadadaSerenaedoSam,eracomosenós,habitantesnãohumanosdoCafé, estivéssemos ligados por um fio invisível que nos tornava maispróximos.Ofatodetermospassadojuntosportodasasmudançasnosdeuumasensaçãodeexperiênciapartilhada,umaligaçãoemcomum.Nãoqueisso significasse ir além de um roçar de narizes ou um cumprimentoeducado. Você não esperaria que eu entrasse na cesta com eles, não é?Queridoleitor,nãosouessetipodegata,ecertamenteestenãoéessetipodelivro!Da minha posição habitual na estante de revistas, observei nosso

elegante visitante, enquanto ele se acomodava em uma das confortáveiscadeirasdoCafé.Chamandoogarçomcomumaceno imperioso,ele faloucomumsotaqueescocês:—Vocêsjáestãoservindoalmoço?Sanjay,umjovemgarçomcomuniformebrancoimpecável,assentiu.— Vou querer uma taça do seu Sémillon Sauvignon Blanc— disse o

visitante.Espalhandoseusguiasnamesaàsuafrente,ovisitantetirouumtelefone

celular do bolso e, em pouco tempo, já parecia ocupado, pesquisandoplanosdeviagem,checandodetalhesemumlivroeoutro,digitandotudonocelular.Quando sua taça de vinho foi servida, ele deu o primeiro gole e

bochechou o líquido com uma expressão de quem busca alguma coisa.Depoisdisso,elebebeutãorápidoquepareceuinalarovinho.Quatrogolese,poucosminutosdepois,ataçaestavavazia.OfatonãopassoudespercebidopelomaîtreKusali,cujaonisciênciaera

notória. Ele despachou Sanjay com a garrafa do SSB para reabastecer ovisitantecommaisvinho.Umaterceirataça,edepoisumaquarta,antesqueovisitantepedisseaconta,guardasseseuslivrosesaísse.

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Havia se passado meia hora quando os acontecimentos tomaram umrumo incomum.Desviandooolhardomeuquitutedahoradoalmoço—umadeliciosaporçãodesalmãodefumadocortadaemtirinhas—quemeuvejo na entrada do Café? Ele mesmo, o homem, que agora estavaacompanhadodesuaesposa.Umasenhoraencorpada,de rostoamávele sapatosortopédicos,olhou

aoredordoCafécomumaexpressãodeadmiração,àqualnósjáestávamosbemacostumados.MuitosocidentaisquechegavamàMcLeodGanjvindosdeNovaDélijáhaviamsesurpreendidobastantecomaÍndia,comocaos,amultidão,apobreza,otrânsitoeavibraçãochocante.Porém,nomomentoemquechegavamaoCafé&LivrariadoHimalaia,seviamemumambienteestético totalmente diferente. À direita do ornamentado balcão derecepção,haviaumasuavidadeclássicacomastoalhasdemesabrancas,ascadeiras de bambu e uma grande máquina de bronze de café espresso.Tapeçarias do budismo tibetano ricamente bordadas, conhecidas comothangkas, enfeitavam as paredes. À esquerda do balcão, subindo algunsdegraus,estavaaseçãoda livraria,comsuasprateleirasbemabastecidas,intercaladas com cartões ilustrados com suntuosas gravuras, artefatoshimalaios e outras lembranças. Era uma fusão exótica do estilo casualchiqueeuropeuedomisticismobudista.Muitosvisitantes,aosedepararemcomessavisão,suspiravamaliviados.

=Aesposadovisitantenãofoitãoenfática.Enquantoolhavaansiosapara

o marido, parecia estar torcendo para que o Café o agradasse, o queaconteceu.Demaneiraeminente!Kusalideuumpassoà frenteparacumprimentá-lose levá-losatéuma

mesapróximaàjanela,ondeomaridoestudouomenueacartadevinhoscomosefosseaprimeiravezantesdepedirexatamenteamesmagarrafa.

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Destavez,elefoiumpoucomaiscontidoaosorverseuSSB.Porém,duranteo curso do almoço, tragou sem esforço quase toda a garrafa, com ajudamínimadesuaesposa.Observando-os a distância, percebi algo estranho namaneira como se

comportavam juntos. Havia longas pausas na conversa, quando olhavamparatudo,menosumparaooutro—pausasqueeramseguidasdetrocasdeolharesquelogoseesgotavam.

=A maioria dos visitantes ocidentais tinha um roteiro de viagem tão

intensoqueapenasvisitavaoCaféumaouduasvezesdurantesuasbrevesestadas. Esse não era o caso do nosso elegante amigo e sua esposa. Namanhãseguinte,àsonzehoras,nomomentosagradoemquesecomeçavaaservirbebidaalcoólica,elechegouaoCafé,andouatésuacadeiraepediuuma taça de SSB. Prevendo uma repetição dos acontecimentos do diaanterior, Kusali fez uma graciosa aparição e serviu o visitantepessoalmente,antesdesugerir:—Gostariaqueeutrouxesseumbaldecomgeloparaamesa,senhor?Ovisitantedecidiuqueseriamelhor.Enchendoataçaenquantofolheava

ospanfletosdeviagemcommenos interessedoquenodiaanterior, logoesvaziouoconteúdodagarrafa.Umavezmais,meiahoradepoisdesair,reapareceunaentradadoCafé

comsuaesposa,destavezdizendoaKusali,nobalcãodarecepção,queelestinhamgostadomuitodavisitadodiaanterioreentãodecidiramretornar.O sempre diplomático Kusali sorriu educadamente quando essa versãooficial,umpoucoeditadadosacontecimentos,ficouestabelecida.Querido leitor, você acreditaria se eu lhe dissesse que a mesma

encenaçãodeFeitiçodoTempoaconteceunamanhãseguinte?Bem,talveznão exatamente igual. No terceiro dia, o visitante se encaminhou

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diretamente para a “sua” cadeira às onze horas, quando Kusali já haviapedido a um garçom que levasse seu vinho predileto em um balde comgelo.Serena,quepassouosdiasanterioresemNovaDéliparaencomendarequipamentos de cozinha, assistiu àquilo e, mais tarde, aproximou-se deKusali,sobrancelhasarqueadas.Duranteotête-à-tête,enquantoovisitanteolhava fixamente para seu telefone celular comuma expressão um tantoabatida,KusaliindicouaSerenaqueelapodiaolharparaovisitante.Nominuto em que olhou em sua direção, Serena congelou. Terminou

rapidamente sua conversa com Kusali e foi em direção à livraria. Poucotempo depois, lá estava ela, ao lado de Sam, que estava sentado aocomputador.—Possousarumminuto?—elaperguntoucomurgência.— Claro — disse Sam enquanto deslizava do banquinho. Serena

rapidamenteabriuumaferramentadeprocura.GordonFinlay.Samleuonomequeeladigitavanacaixadepesquisa.—Vocêoconhece?—Serenasussurrou.Sambalançouacabeça.—Achoqueeleestábemali—disseela,inclinandoacabeçanadireção

dacadeira.—BagpipeBurgers.OrostodeSamseiluminou.—Éele?OsdoisolharamparaoartigodaWikipédiaquemostravaumafotografia

dofundadordoBagpipeBurgers.— “Começou como uma lanchonete que servia hambúrgueres em

Invernes,naEscócia”—leuSam.—“Agoraéumadasmaioresfranquiasdomundo.”Rolandoapáginaparabaixo,eleleuasinformaçõesdestacadas:— “estimada em meio bilhão de dólares”; “presente nos principais

mercados”; “famoso uniforme xadrez”; “criadores do Burger Gourmet”;“compromissocomaqualidade.”—Éele?—Serenainsistiu.

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Samestudoua fotografia à sua frente antesdeolharparao clientedorestaurante.—Nossocaraparecemenos...queixudo.Serenaestalouosdedos.—Dr.Bisturi.— Você está sabendo da bebedeira desses últimos dias? — Sam

perguntouaela.—Riscoocupacionalemnossalinhadetrabalho.Samolhoufixamenteemseusolhos.—MasoqueeleestáfazendoemMcLeodGanj?—Éoqueeuestou...—Serenaaproximou-sedeSamparadigitaralgo

mais no teclado, balançando a cabeça enquanto outra página se abria natela.— Sim. Aconteceu quando eu estava me mudando de Londres. Ele

vendeusuaempresaporquinhentosmilhõesdedólares.—Aquelecaraali?—Samsussurrou,comosolhosarregalados.— Exatamente. — Serena apertou seu braço antes de se afastar do

balcãoparadarmaisumaolhadadiscreta.Elaassentiu:—AspessoasemLondresnãoparavamdefalarsobreisso.Éosonhode

todo empresário e, para o mercado gastronômico, é uma quantiainimaginável.Aspessoasoamamouoodeiam.—Dequeladovocêestá?—Euoadmiro,claro!Oqueele fezé incrível.Eleentrouemumsetor

associadoàmáqualidadeecrioualgogenuinamentediferente.Aspessoasgostarameonegóciodecolou.Elefezmuitodinheiro,masfoiprecisovinteanosdetrabalhoduro.—Masocaraéesquisito—disseSam,balançandoacabeça.—Vocêserefereàsinúmerasvisitas?—Nãoésóisso.Sabe,elepassahorasnalanhousedescendoarua.

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Agora foi a vezdeSerenaparecer surpresa.A lanhousequeatendia aumaclientelaquasetodalocalerasuja,superlotadaepoucoiluminada.— Eu o vejo entrar lá todas as manhãs. — Sam morava em um

apartamentoemcimadoCafé,comjanelasdefrenteparaarua.—Eleficaládesdeasoitohorasdamanhã.Depois,vemparacá.

=Na semana seguinte, Gordon Finlay já era figurinha fácil no Café &

LivrariadoHimalaia.Nasduasmanhãsemquenãoapareceu,acadeiranapartedo fundodoCafépermaneceucuriosamentevazia.Naprimeiravez,eleesuaesposaforamvistosentrandoemumavandeturismoquelevavaos visitantes em excursões que duravam o dia todo na zona rural dosarredores. Na outra ocasião, um garçom contou que o vira conversandocom Amrit, um dos vendedores que montavam suas barracas sob oemaranhadodefiostelefônicosaolongodarua.Detodososvendedores,omaltrapilhoAmriteraomaisnovoetambém

omenospopular, lutandoparachamaraatençãodos transeuntescomosbolinhos fritosqueele retiravadeuma frigideiradeaparência imunda.OqueGordonFinlayviade interessantenosempredesconsoladoAmriteradifícildeentender.Mas,nasduasvezesemqueFinlayseausentara,tantonahoradovinhoaperitivoquantonahoradoseualmoço,KusaliolhouparaforadajanelaereparouqueAmritnãoestavaemsuabarraca.Omistério foi desvendado no dia seguinte, quando Amrit foi visto de

voltaaoseuposto,emmacacãoebonéamareloevermelhovivo,apanelaenegrecidasubstituídaporumkitwokdepratabrilhanteparachurrasco,ecombandeirinhasalegresqueseagitavamaoredordeumaplacaondeseliaFrangoFeliz.Enquantofritavafilésdepeitodefrangoparaumafilacadavez maior de clientes, Gordon Finlay ficava atrás dele com seu casacocreme,suamarcaregistrada,dandoinstruções.

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Àsonzeemponto,láestavaFinlaynovamentenoCafé.

=O que Gordon Finlay estava fazendo exatamente em McLeod Ganj se

tornourapidamentemotivodecrescentesconjecturas.TeriaescolhidoestapequenaemodestacidadeaospésdasmontanhasdoHimalaiacomopontodepartidaparasuanovacadeiaglobalderestaurantesfastfood?Porquesedariaaotrabalhodeviraquiapenasparapassartantotempobebendo?Será que outros lugares na Itália, ou no sul da França, não seriammaisagradáveis para isso? E todo aquele tempo que passava na lan housequando poderia facilmente ir para o conforto do seu hotel e acessar ainternetdelá?Querido leitor, estou feliz em reivindicar uma grande parcela de

responsabilidadenadescobertadasrespostasparaessaseoutrasquestõesemaberto.Assimcomoamaioriadosacontecimentosmais intrigantesdavida, esse não surgiu como resultado de uma ação deliberada de minhaparte.Minha simples e, se for admissíveldizer, irresistívelpresença foi osuficienteparaliberaromaisinesperadofluxodeemoçãoreprimida.Nomeu lugardesemprenoCafé, euestavaemumaposiçãoqueLudo

poderiaterchamadodeposturadeMaeWest,deitadadelado,comminhacabeçaapoiadanaminhapatadianteiradireita.OhorárioemqueGordonFinlay faziaaprimeiradasduasapariçõesdiáriasnoCaféseaproximava.Eu começara a cuidar do asseio daminha peluda barriga branca quandoapareceuàportaninguémmenosqueasenhoraFinlay.Percorreucomumolhar ansioso o restaurante antes de se dirigir à livraria. Nunca havia seaventurado tão longe antes. Ela e seu marido geralmente ocupavam amesmamesapertodaentrada.EstavaquasechegandoàestantederevistasquandoSerenaseaproximou.— Estou procurando o meu marido — disse a senhora Finlay. —

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Estivemosaquialgumasvezes.Serenaassentiucomumsorriso.—Estese tornouseu lugar favoritoemDharamsala, epenseique…—

seulábioinferiortremia,eelarespiroufundoparaserecompor.—Penseiquetalvezopudesseencontraraqui.—Não o vimos hoje— disse Serena.—Mas a senhora émuito bem-

vinda se quiser esperar. Serena indicou a cadeira na parte de trás, ondeGordonFinlaycostumavadegustarsuagarrafadevinhomatutina,quandoa senhora Finlay olhou para a prateleira onde eu me lambia. Com asensaçãodeestarsendoobservada,olheidiretamenteparaela.—Oh, Deus do céu!—A compostura já fragilizada da senhora Finlay

pareceuameaçadaoutravez.—IgualànossapequenaSafira.Aproximando-sedemim,estendeuamãoparaacariciaromeupescoço.

Olheidentrodeseusolhosavermelhadoseronronei.— Esta é Rinpoche— disse Serena, mas a senhora Finlay não estava

escutando. Primeiro uma lágrima e depois outra começarama rolar peloseurosto.Mordendoolábioparaconterofluxo,elaenfiouamãonabolsaàprocuradeumlenço.Masjáeratarde.Empoucosinstantes,elasoltouumgrande soluço de emoção. Serena colocou seus braços ao redor dela egentilmentealevouparaumacadeira.Durantealgum tempo,a senhoraFinlay choroubaixinhoemseu lenço.

SerenagesticulouparaKusalitrazerumcopodeágua.—Sintomuito—elasedesculpou.—Estou...Serenaasilenciou.— Tivemos uma pequena igual a ela — disse a senhora Finlay,

apontandoparamim.—Lembreiopassado.Anosatrás,naEscócia,aSafirafoimuitoespecialparanós.Elacostumavadormiremnossacamatodasasnoites— disse engolindo o choro.— As coisas eram diferentes naquelaépoca.UmgarçomseaproximoucomocopodeáguaeasenhoraFinlaybebeu

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umpouco.—Elessãomuitoespeciais—concordouSerena,olhandoparamim.Mas a senhoraFinlaynãoprestou atenção.Olhava atentamentepara a

mesaenquantocolocavaocoposobreela.Pareciaestarparalisada.Atéque,poralgummotivo,sentiu-seconfortávelparaconfessar:— Gordon, meu marido, está detestando estar aqui— disse como se

estivesserevelandoumsegredoterrível.Serenadeixouquesepassasseuminstante,antesdefalarnovamente.—Sabe,estanãoéumareação incomum.Paraosvisitantesocidentais

quevêmaqui,semteracertezadoquevãoencontrar,aÍndiapodeserumgrandechoque.AsenhoraFinlaybalançouacabeça.—Não,nãoéisso.NósdoisconhecemosbemaÍndia.Pelaprimeiravez,seusolhosencontraramosdeSerena.—Gordonjáesteveaquimuitasvezesaolongodosanos.Éporissoque

escolheu este lugar para passarmos o primeiro mês de nossaaposentadoria.Sóque...nãoestádandocerto.ElapareciaestarsugandoforçasdapresençacompassivadeSerena,sua

vozpareciamaisforteàmedidaquecontinuava.— Ele acabou de fazer um grande negócio, ao vender sua empresa

depois de tantos anos de trabalho. Gordon é muito trabalhador.Determinado. Você nem pode imaginar os sacrifícios que ele fez. Anos eanostrabalhandodezoitohoraspordia.Semférias.Sempretendodesairmaiscedodasfestasdeaniversário,jantaresecelebraçõesfamiliares.“Vaivaler a pena” —, era o que sempre dizia. “Vou me aposentar cedo eaproveitaremos a vida.” Ele sempre acreditou nisso. E eu também. Nãoimportava a quantas coisas tínhamos de renunciar. Nós seríamos felizesquando...—Porummomento,pareciapensativa,depoisrecomeçou:—Foibomduranteasprimeirassemanas.Eleestavamudado, livreparafazeroque bem entendesse. Mas não durou muito. De repente, não havia mais

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ligações, nem mensagens, nem reuniões. Tampouco decisões a seremtomadas.Ninguémesperandoparasaberoqueeleachava.Eracomoseumelásticotivessesidoesticadoatéo limitee,derepente,alguémosoltasse.Enquanto ele trabalhava freneticamente a ideia de ter todo o tempo domundo parecia o paraíso. Mas agora, ele está achando que é um fardoterrível. Elenão trouxeo seu laptop.É algoque fazparteda sua vidadeantes.Mas,quandosaidemanhã, aindaqueeledigaqueéparadarumavolta,tenhocertezadequeestáindoparaalgumalanhouse.AsenhoraFinlayolhavaparaSerena,cujaexpressãonãodavaomenor

sinaldequesoubessequeassuassuspeitaseramverdadeiras.—Eeleandabebendo.Elenuncaagiuassimantes,bebendoduranteo

dia. Eu sei que é porque está entediado e triste, e não sabe o que fazerconsigomesmo.Eledisseissohojepelamanhã,aosairdohotel.Nuncaovitãoinfeliz.Como as lágrimas começaram a brotar novamente, Serena estendeu a

mãoeapertou-lheobraço.—Issotambémvaipassar—murmurouela.Semaconfiançaparafalar,asenhoraFinlayassentiucomacabeça.

=Pouco tempo depois, a senhora Finlay deixou o Café, e o casal não

apareceu para o almoço naquele dia. Só o tempo iria dizer exatamentecomo ela e seu marido poderiam resolver essa inesperada decepção;contudo,oassuntodopobrehomemricoveioàtonamaistardenoCafé.Eram quase onze da noite e ainda havia meia dúzia de clientes

saboreando suas sobremesas e seus cafés. Serena olhou para onde Samestava sentado, no banquinho atrás do balcão da livraria, e chamou suaatençãocomumgestointerrogativo.Elerespondeu,levantandoopolegar.Sóhaviaumclientenalivraria:umpardecanelaseabarradorobedeum

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mongeapareciampordebaixodeumadaspartiçõesdaloja.Serenasedirigiuàlivrariaparaoseuritualdofinaldodia.Duascabeças

se levantaram da cesta de vime debaixo do balcão. Marcel e Kyi KyiestavamfocadosnadireçãopromissoradaspegadasdeSerena.Elachegouaopequeno lancedeescadasquedavaparaa livrarianamesmahoraemqueoúltimoclienteestavasaindo.—Lobsang!—Elao cumprimentouafetuosamente,dandoumpassoà

frenteparaabraçá-lo.Lobsang havia se tornado um cliente assíduo da livraria, onde

encontravanasprateleirasumagrandevariedadedetítulosbudistasedenão ficção recentes que eram fascinantes comparados aos disponíveisanteriormente em Dharamsala. E, graças ao fato de ele e Serena seconhecerem havia muito tempo, ela insistira que recebesse o maisgenerosodosdescontos.Desde a época da adolescência, quando ambos se conheceram ao

trabalharem juntos na cozinha supervisionada pela senhora Trinci, suasvidas tomaram trajetórias muito diferentes. Enquanto Serena foi para aEuropa,Lobsang,cujointelectoehabilidadelinguísticaespetaculareseramevidentes desde cedo, ganhou uma bolsa para estudar semiótica naUniversidadedeYale.AoretornaràÍndiaparatrabalharcomotradutordoDalai Lama, ele também evoluiu de outras maneiras. Em especialdesenvolvendo a sua presença tranquilizadora, à qual as pessoas semprereagiam.Àsvezesa reaçãoeravisível, aspessoas recostavam-seemsuascadeiraserelaxavamseusombros,ouabriamumsorriso.— Sam e eu vamos tomar um chocolate quente. Gostaria de nos

acompanhar?—perguntouSerena.MesmocomtodaatranquilidadedeLobsang,repareiquehaviaalgoem

Serena que o fazia mudar. Ele parecia encontrar grande prazer em suacompanhia.— Seria ótimo— respondeu com entusiasmo, enquanto a seguia em

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direçãoaosdoissofás.Algum tempo depois, Kusali chegou com o chocolate quente dos

humanoseopirescomosbiscoitoscaninos,quesegurouacimadamesadevidro, causando suspense e incitando a desesperada expectativa doscachorros, antes de o depositar na mesa com um tinido pavloviano quedesencadeouacorridafrenéticadoscãesparaalivraria.Quanto a mim, saltei da prateleira e alonguei minhas patas traseiras,

colocandoparaforaumagarradepoisdaoutra,antesdecruzarasalaedarumpuloágilparacimadosofá,aterrissandoentreSerenaeLobsang,queencaravaSam.—AGSS temmuitasortede tervocês—observouLobsang,enquanto

Serena se inclinava para a frente para encher omeu pires com leite.—PrincipalmentenaausênciadeSuaSantidade.—Nóstemossorteemtê-la—disseSerena,enquantomeacariciava.—

Nãoé,Rinpoche?Ela ainda não havia colocado o pires no chão, então subi namesa de

centroecomeceiabebermeuleite.—Vocêspermitemgatossobreamesa?—perguntouLobsang,surpreso

comaminhaaudácia.—Não é uma regra— respondeu Serena, olhando paramim comum

sorrisoindulgente.Durante algum tempo, os três humanos observaram em silêncio,

enquanto eu sorvia o leite com um ronronar vigoroso. Não sabia se eratelepatiafelinaouapenasaminhaimaginação,mastiveasensaçãodequeSamnãoestavamuitocontentecomapresençadeLobsangnoseuritualdefimdodiacomSerena.Serenaquis saber sobreoprojetonoqualLobsangestava trabalhando

ultimamente, e elemencionouum texto esotéricodoPabongkaRinpocheque estava ajudando a traduzir. Em seguida, a conversa contemplou osacontecimentos do dia. Serena contou a eles sobre seu encontro com a

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senhoraFinlay,etambémsobrecomoavisãodosenhorFinlay,focadanaaposentadoriaprecoce,haviasetornadoumaamargadecepção.Lobsangouviuahistóriae,comsimpatiapermeandosuaimensacalma,

disse:—Hápoucosdenós,acho,quenãocometemomesmoerro.Acreditar

quevai ser feliz quando seaposentar.Quando tiver esse tantodedinheiro.Quandoconseguiratingiresseobjetivo.—Lobsangfezumapausa,sorrindoaopensarnoabsurdodaquilo.—Nóscriamosnossasprópriassuperstiçõesedepoisnospersuadimosaacreditarnelas.—Superstições?—desafiouSam.Lobsangassentiu.— Inventamos uma relação entre duas coisas que não têm conexão,

comoumespelhoquebradoemásorte,ouumgatopretoeboasorte,emalgumas culturas. — Levantei minha cabeça do pires e olhei para elenaqueleexatomomento.Ostrêsriram.—Ouumgatohimalaio—colaborouSerena—eextremaboasorte.Retorneiaomeuleite.Lobsangcontinuou.—Começamosaacreditarqueanossa felicidadedependedeumcerto

resultado, de determinada pessoa, ou de um certo estilo de vida. Isto ésuperstição.—Maseutenhoprateleirasemaisprateleirasaqui—Samapontoupara

trás — cheias de livros sobre estabelecer objetivos, ter pensamentospositivos e manifestar abundância. Você está dizendo que estão todoserrados?Lobsangdeuumarisadinha.—Não,nãoé issooqueeuquerodizer.Traçarobjetivospodeserútil.

Terumpropósito.Masnãodevemosnuncaacreditarqueanossafelicidadedependedealcançá-los.Sãocoisasmuitodistintas.Houve um silêncio enquanto Sam e Serena digeriam o que Lobsang

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dissera,quebradoapenaspelosomdasminhas lambidasedo farejardoscachorrosembuscademigalhasdebaixodamesa.— Se algum objeto, realização ou relacionamento fosse a verdadeira

causa da felicidade, então quem quer que tivesse determinada coisadeveria ser feliz. Mas essa coisa nunca foi encontrada — continuouLobsang.—Omaistristeéqueacreditamosqueanossafelicidadedependedealgoqueaindanãotemos,entãonãopodemosserfelizesaquieagora.Porém o aqui e agora é o único tempo em que podemos ser felizes. Nãopodemosserfelizesnofuturo,eleaindanãoexiste.—Equandoofuturochega—refletiuSerena—,descobrimosqueoque

quer que acreditávamos que iria nos trazer felicidade, não nos deixa tãofelizescomoachávamos.OlhesóGordonFinlay.—Exatamente—disseLobsang.Samestavasemexendoemseuassento:—Publicaramumestudodaneurociênciasobreissohápouco.Achoque

o nome é “A decepção do sucesso”. Fala sobre a relação entre realizaçãopré-objetivo versus realização pós-objetivo. Realização pré-objetivo é asensaçãopositivaqueaspessoastêmaotrabalharparaumobjetivo.Émaisintensaeduradouraemtermosdeatividadecerebraldoquearealizaçãopós-objetivo,aqualprovocaumasensaçãocurtadealívio.—Seguidadapergunta,Ésóisso?—sugeriuSerena.—Acaminhadaémaisimportantequeodestino—confirmouLobsang.—OquemefazpensaraindamaissobrevoltarounãoparaaEuropa—

disseSerena.—Podeserquevocêfique?—Lobsangperguntou,comavozcheiade

esperança.Quandoelaoencarou,Lobsangsustentouamirada,nãoporumoudoisminutos,masatéqueeladesviasseoolhar.— A noite do banquete indiano foi o começo — Serena explicou. —

Naquelanoite,percebioquantoémaisgratificantetrabalharparapessoasquerealmenteapreciamoqueestoufazendo,emvezdepessoasquesaem

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apenas para serem vistas nos lugares certos. Para que passar por todoaquele estresse?Vejaoqueaconteceu comGordonFinlay.Ele éumadashistóriasdemaiorsucessodadécadanomundogastronômico.Seusucessoéaoquedezenasdemilharesdepessoasaspiram.Masissoofezficartãoviciado no trabalho que ele simplesmente não consegue parar. De queservetertodoosucessodomundoseapessoanãotempazinterior?Sob as palavras de Serena detectei outras preocupações tácitas. No

decorrerdasúltimassemanas,euaviracumprimentandovelhasamigasdeescolaquevinhamvisitá-lacomseusmaridosefilhos.Acadavez,pareciaqueelaestavasendoatraídaparaumadireçãomuitodiferente.

=Na manhã seguinte, Gordon Finlay chegou ao Café às 10h30. No

momentoemqueentrou,pareciaumhomemaliviado.Encaminhou-separasuacadeira,pediuumespressoepegoudaestanteumexemplardarevistaTheTimesofIndia.Apósfolheararevistaeterminarseucafé,elelevantoueseaproximoudobalcão,ondeSerenaestava.—Minhamulhermedissequeveioaquiontemevocê foimuitogentil

comela—elecomeçouafalarcomseusotaqueescocês.—Sóqueriaquesoubesse que soumuito grato por isso. Assim como sou grato pela sua...discrição.—Ah!Nãohádequê.—Este lugar foiumoásisparamim—elecontinuou,olhandoparaas

thangkasbudistaspenduradasnasparedes.—Decidimosvoltarparacasa.Não tenho ideia doque vou fazer,masnãoposso ficar sentado, bebendoduasgarrafasdevinhopordia.Meufígadonãoaguentaria.— Sinto muito que as coisas não tenham acontecido do jeito que o

senhorplanejou—disseSerena.Eemseguida,quasecomoumareflexãotardia,acrescentou:—EncontroualgonaÍndiadequetenhagostado?

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GordonFinlayficoupensativoporuminstante,antesdeassentir:—Engraçado,oquemevemàcabeçafoiterajudadoaquelemeninolá

embaixonaruaaseorganizar.Serenariu.—OFrangoFeliz?—Eleestáfaturando—disseFinlay.—Osenhoréumacionista?—Não.Masfiqueimuitofelizemprepará-lo.Elemefezlembrarmuito

de mim mesmo quando estava começando: sem dinheiro, rodeado porconcorrentes e sem um produto diferenciado. Bastaram umas duzentaslibraseumpoucodetreinamento.Agoraeleestácraque!Enquanto falava, Gordon Finlay parecia ficar mais alto e ereto. Pela

primeiravez,podia-sevislumbraropresidentedeempresaquehaviasidoatérecentemente.— Talvez o senhor tenha acabado de descrever o que vai fazer daqui

parafrente—sugeriuSerena.—Nãoseriacapazderesgatartodovendedorderuadomundo!—Não.Maspoderiamudaravidadaquelesqueresgatasse.Obviamente

o senhor teve uma grande satisfação ajudando apenas um. Imagine asatisfaçãoemajudarmuitos!Gordon Finlay olhou para ela durante um longo tempo, um brilho

iluminouseusolhosescuroseobservadores.Entãodisse:—Sabe,podeserquevocêtenharazão.

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CAPÍTULO4Tédio.Afliçãoterrível,nãoémesmo,queridoleitor?E,atéondeeusei,é

quaseuniversal.Todososdias,háotédiodeestarondeestamoseexecutarastarefasquetemospelafrente,sejavocêumexecutivocomumadúziaderelatóriosmaçantesparaprepararatéofinaldomês,ouumagataemcimadeumarquivocomumamanhãinteiraparacochilarantesqueosgoujonsde truta deliciosos e crocantes— talvez guarnecidos com um pouco declottedcream—sejamservidosnoalmoçodoCafé.Quantasvezesescutoosturistasdizerem“Malpossoesperarparavoltar

à civilização” — os mesmos turistas que, imagino eu, passaram váriosmeses riscandoosdiasnos seus calendáriosna intensaexpectativaantesdaviagemdesuasvidasàÍndia.Umaoutravariaçãoparaomesmotemaé“Queria que hoje fosse sexta”, como se, de alguma forma, nósprecisássemosaguentarcincodiasdeumtédioopressivoporaquelesdoisdiaspreciososnosquaisrealmentepodemosnosdivertir.O problema ainda vaimais fundo. Quando levantamos nossas cabeças

dessapilhaderelatóriosdefinaldemês,oudessamanhãvaziaemcimadoarquivo,epensamosnasoutrasmanhãsounosoutrosrelatóriosqueaindaestão por vir, nosso tédio se transforma em um profundo desesperoexistencial. Para que tudo isso? Podemos nos perguntar, Para que sepreocupar? Quem se importa? A vida pode parecer um exercício defutilidadesombrioesemfim.ParaaquelesseresquepossuemumaperspectivamaisampladoPlaneta

Terra,o tédioé,àsvezes,acompanhadodealgomaissombrio—aculpa.Sabemos que, comparada amuitas outras, nossas vidas são, na verdade,bemconfortáveis.Nósnãovivemosemumazonadeguerraouemextrema

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pobreza;não temosdevivernas sombrasporcausadonossosexooudenossasopiniões religiosas. Somos livrespara comer, vestir, viver e andarcomo quisermos, estamos muito bem, obrigada. Mas, mesmo assim, nossentimosmuitoentediados.Nomeu caso, se for possível alegar circunstâncias atenuantes, o Dalai

Lamaestavaausentehaviaalgunsdias.NãoseviaoalvoroçodasatividadesdesemprenemasvisitasextravagantesdasenhoraTrinci,comtodaaquelacomida e todo aquele carinho. E, acima de tudo, faltava a energiareconfortanteeoamorqueeusentiasimplesmenteporestarnapresençadeSuaSantidade.Então,emumamanhã,fuiemdireçãoaoCafécomocoraçãopesadoeas

patas lentas. Minha preguiça costumeira estava ainda mais morosa; osimplesfatodemoverminhaspatastraseiraseraumesforçohercúleo.Porqueeuaindaestavafazendoissomesmo?Meperguntei.Pormaisdeliciosoque fosse o almoço, comer já me tomaria cincominutos, e depois aindaseriaumalongaesperaatéojantar.Malsabiaeudoseventosqueestavamprestesamesacudirdaminhaletargia.Tudo começou com a estranha urgência no comportamento de Sam,

pulandodoseubanconalivrariaecorrendoescadaabaixoparaoCafé:—Serena!—sussurrouparachamarsuaatenção.—ÉoFranc!—Sam

apontou para a tela de seu computador. Franc tinha o hábito de usar oSkypepara saber como andavamos negócios,mas suas ligações eramàssegundas-feiras,sempreàsdezdamanhã,quandooCaféestavatranquilo,enãonocomeçodatarde,noaugedomovimento.Serenacorreuparaobalcãodalivraria.Samligouoauto-falanteeabriu

a tela, que mostrava Franc em uma sala de estar. Havia várias pessoassentadasemumsofáepoltronasatrásdele.Suaexpressãoeratensa:—Meupaimorreuontemànoite—Francanunciousempreâmbulos.—

Achei melhor eu mesmo contar a vocês antes que soubessem por outrapessoa.

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SerenaeSamofereceramsuascondolências.—Emborafosseinevitável,aindaéumchoque—disseele.UmamulherselevantoudosofáatrásdeSameseaproximoudatela.—Nãoseioquevamosfazersemele!—lamentou.—Estaéminhairmã,Beryle—disseFranc.—Nóstodosoamávamosmuito—soluçouBeryle.—Étãodifícilperdê-

lo!Aspessoasaofundomurmuravam,concordando.—Foi bom eu ter estado com ele no final—disse Franc, procurando

recuperarocontroledaconversa.Mesmoqueasuarelaçãocomopaitivessesidodifícil,seuretornoàcasa

foi uma insistência de seu lama mal-humorado, Geshe Wangpo. Um doslamasmaisantigosdoMosteiroNamgyal,GesheWangpoera inflexívelnoqueserefereàimportânciadasaçõessobreaspalavrasedosoutrossobrenósmesmos.— Estou feliz que Geshe Wangpo tenha me persuadido — Franc

continuou.—Meupaieeuconseguimosresolver…—Estamostendoumgrandefuneral—interrompeuumavozatrásde

Franc.—Muito grande, mesmo — opinou alguém realmente impressionado

comadimensãodoevento.— Mais de duzentas pessoas vieram dizer adeus — complementou

Beryle,aparecendonatelanovamente.—Éomais importanteagora,nãoé?Todosnósprecisamosdeumencerramento,todosnós.—Encerramento—fez-seumcoroatrásdela.— Papai queria algo muito simples no crematório — disse Franc. —

Beryleserecusouaaceitaraquilo.—Funeraissãoparaosqueficam—eladeclarou.—Somosumafamília

católica.Bem...—ElaolhoudiretamenteparaFranc.—Amaioriadenósé.—Nadadaquelenegóciodeenterrocelestial8—declarouamesmavoz

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masculinaáspera.Francbalançouacabeça.—Eununcasugeri…— É nisso que vocês budistas acreditam, não é? — disse uma figura

esmirrada de cabelos brancos, olhos vermelhos e alguns dentes faltando,que encarava o computador.— Cortar as pessoas em pequenos pedaçosparaalimentarosabutres?Nãosenhor.—EsseéotioMick—disseFranc.TioMickexaminouateladocomputadorporlongosinstantes,antesde

concluir.—Elesnãosãoindianos!—Eununcadissequeeram—Francprotestougentilmente,masMickjá

haviaviradoascostasesaído,arrastandoospés.Francergueuassobrancelhassugestivamente,antesdedizer:—Pretendosairamanhãparaalimentarospássarosnoparque.Budistasacreditamqueosatosdegenerosidadebeneficiamaquelesque

morreram, quando feitosporpessoasquepossuíamuma ligação cármicapróximacomomorto.—Pássaros?—Beryleestavaincrédula.—Equantoanós?Equantoà

suaprópria carne e sangue?Temmuito tempopara esse tipode sandicedepoisdofuneral.— Émelhor eu ir agora— disse Franc rapidamente.— Ligo de novo

quandoestiversozinho.EnquantoSerenaeSamdiziamadeus,avozdotioMickselevantou.—Pássaros?Eusabia!Nãohaveránenhumenterrocelestialenquantoeu

estiverporperto!

=Depois que a ligação terminou, Same Serena se viraramumde frente

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paraooutro:—Parecequeelevaipassarpormausbocados—disseSerena.Samassentiu.—Pelomenossabequefezacoisacertavoltandoparacasa.Masagora,

podeserqueelevoltemuitoantesdoquetodospensavam—acrescentouSampensativo.—Quemsabe?—Serenapassouseusdedospeloscabelos.—Seeletiver

delidarcomoinventário,podeserquefiqueláporumbomtempoainda.Sentindoummovimento,elaolhouparabaixoeviuMarcelaseuspés,o

buldoguefrancêsdoFranc.—Comoelesoube?—Serenaseperguntou,sorrindoparaSam.—Seráqueescutouavozdele?—Debaixodobalcão?—Elaolhouparaacestadoscachorros.Parecia

improvávelqueosomdavozdeFranctivessechegadotãolonge.—Não—disseSerena,ajoelhando-separaacariciarMarcel.—Achoque

oscachorrossentemessascoisas.Nãoé,amiguinho?

=Logodepois,umanotíciaalarmantebemmaispróximodecasachegou,

umanotíciaqueatingiuocoraçãodeNamgyal—maisespecificamente,oescritóriodeondeeusupervisionavaasatividadesdosassistentesdoDalaiLama. Sempre havia algo acontecendo lá dentro. Eu podia observar tudoemcimado arquivo atrásdeTenzin—quemeproporcionavaumavistapanorâmica, não só do escritório,mas tambémde todos que entravam esaíamdosaposentosdeSuaSantidade.Consequentemente,quandooDalaiLamaestavafora,eupassavamuitosdosmeusdiasnoescritório,assistindoaovaivémemJokhang.ChogyaleTenzintentavamtirarfériasduranteasausênciasprolongadas

deSuaSantidadee,nessa,ocasião,eraavezdeChogyal.Háváriosdias,ele

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tinhaidovisitarsuafamíliaemLadakh.Mas,doisdiasatrás,ChogyalentrouemcontatocomTenzincomumrecadourgenteparaGesheWangpo.Comaeficiênciadesempre,Tenzinimediatamenteconvocoudoismongesnoviçosque limpavam o corredor. Eu conhecia Tashi e Sashi desde os meusprimeiros dias no mundo, quando os dois dispensaram a mim umtratamento desprezível, para dizer o mínimo. Desde então, eles seesforçavambastanteparaseredimireagorasemostravamfervorosamentepreocupadoscommeubem-estar:—Tenho um recado urgente para vocês entregarem a uma pessoa—

disseTenzinaeles,quandoentraramnoescritório.—Sim,senhor!—responderamemuníssono.—ÉimprescindívelqueentreguemissoaGesheWangpopessoalmente

—enfatizouTenzin,entregandoumenvelopeseladoaomeninoTashi,dedezanos,omaisvelhodosirmãos.—Sim,senhor!—Tashirepetiu.—Sematrasosnemdiversão—disseTenzin,comarsevero.—Mesmo

se vocês forem chamados por ummongemais velho. Este é um assuntooficialdoescritóriodeSuaSantidade.—Sim,senhor—responderamosmeninos,juntos,suasfacesbrilhando

comaimportânciadamissãoinesperada.—Agora,vão—Tenzinexclamou.Elesviraramumdefrenteparaooutro,antesdeTashidizer,comuma

vozaguda:—Sóumapergunta,senhor.Tenzinarqueouassobrancelhas.—ComoestáaGSS,senhor?Tenzinsevoltouparaondeeuestavaesparramadaemcimadoarquivo.

Pisqueiapenasumavez.— Como vocês podem ver, ainda está viva. — Seu tom de voz era

divertido.—Agora,vão!Depressa!

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=Tão logovolteidoCafénaquela tardee subinoarquivo, onde limpava

rapidamente minhas orelhas cor de chumbo, o próprio Geshe Wangpoapareceunoescritório.GesheWangponãoerasomenteumdoslamasmaisreverenciados do Mosteiro de Namgyal, era também um dos maisintimidantes.UmGeshe—títuloqueserefereaomaisaltograuacadêmicodosmongesbudistas—davelhaguarda,comseussetentaepoucosanos,estudara no Tibete antes da invasão chinesa. Sua constituição físicaarredondada e musculosa era típica dos tibetanos, assim como suainteligênciapenetranteesuapouca tolerânciaparaa indolênciadocorpoou damente. Era também ummonge com imensa compaixão, cujo amorporseusalunosnãodeixavaamenordúvida.Apresença físicadeGesheWangpoera tão forteque,nomomentoem

que apareceu na porta, Tenzin levantou-se de sua cadeira paracumprimentá-lo.—Geshe-la!Olamafezumgestoparaqueelesesentasse.—Obrigadopeloseurecadodoisdiasatrás—disseGesheWangpocom

umaexpressãograve.—Chogyalestavaseriamentedoente.—Ouvidizer—disseTenzin.—Eleestavabemquandosaiudeférias.

Talveztenhacontraídoalgonoônibus?GesheWangpobalançouacabeça.—Foiocoração.Elenãodeumaisdetalhes.—Suasaúdesedeterioroudanoiteparaodia.Estavamuitofraco,mas

consciente. Quando fui vê-lo hoje pela manhã, ele não conseguia falar,estavaquasemorto.Infelizmente,paranós,suahorachegou.Elenãopodiasemexer,masconseguiuescutaraminhavoz.Suamortefísicaaconteceuàsnovehoras,maspermaneceuemclaraluzpormaisdecincohoras.

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Demoroumuito tempoparaqueTenzineeu—digeríssemosanotícia.Chogyal, o nosso Chogyal, morto? Há três dias ele estava aqui nesteescritório,andandoparaláeparacá.Eaindatãonovo:nãodeviatermaisdetrintaecincoanos.—Eleteveumamortemuitoboa—disseGesheWangpo.—Podemostercertezaqueseucontinuumtomouumadireçãopositiva.

Mesmoassim,haveráoraçõesespeciaisnotemplohojeànoite,etalvezsejabomfazeroferendas.Tenzinassentiu:—Claro.Enquanto Geshe Wangpo olhava para Tenzin, depois para mim, e

novamente para Tenzin, seu comportamento geralmente inflexívelsuavizou-se,assumindoumaexpressãodegrandeternura:—Énatural sentir tristezaepesarquandoperdemosalguémdequem

gostamos. Chogyal era um homem muito, muito gentil. Mas vocês nãoprecisamsentirpenadele.Suavidafoiboa.Emborasuamortetenhasidoinesperada, ele não tinha nada a temer. Sua morte foi boa também. Eledeixouumbomexemploparatodosnós.Com isso,GesheWangposeviroue saiudoescritório.Emsuacadeira,

Tenzinseinclinouparaafrenteefechouosolhosporummomento,depoisselevantou,dirigiu-seaoarquivoeestendeuamãoparameacariciar.— Difícil de acreditar, não é, GSS? — Seus olhos se encheram de

lágrimas.—QueridoebondosoChogyal.Poucotempodepois,Lobsangapareceu.Atravessouoescritórioatéonde

Tenzinaindameacariciava.—Geshe-laacaboudemedaranotícia—disseele.—Sintomuito.Osdoishomensseabraçaram,LobsangemseurobedemongeeTenzin

emseuternoescuro.Quandoseafastaram,Lobsangdisse:—Cincohorasemclaraluz!—Sim,foioqueGeshe-ladisse.

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Oprocessodamorteéobjetodeumadetalhadapreparaçãonobudismotibetano. Muitas vezes, escuto Sua Santidade falar sobre clara luz comosendo o estado natural de nossasmentes, quando estão livres de todo opensamento. Por ser um estado impossível de conceituar, as palavrasconseguem apenas apontar a sua experiência, mas não conseguemdescrever o indescritível. As palavras que são às vezes utilizadas parasugerir este estado são ilimitado, radiante,bemaventurado. É um estadoimbuídodeamorecompaixão.Praticantesdemeditaçãoexperientespodemsentiraclaraluzemvida,

de modo que, quando a morte chega, em vez de temer a perda de suasidentidades pessoais, eles conseguem permanecer nesse estado de bem-aventurança e não dualidade. Com esse tipo de controle, é possíveldirecionaramenteparaoqueaconteceemseguida,emvezdeserimpelidopelaforçadaatividadementalhabitual,pelocarma.Mesmo que uma pessoa tenha sido declaradamorta sob um ponto de

vistamédico,enquantopermaneceremumestadodeclara luz,seucorpopermaneceflexívelesuacoloração,saudável.Nãoháputrefaçãodocorponem perda de fluidos. Para os outros, parece que a pessoa estásimplesmente adormecida. Grandes iogues são conhecidos por teremficadoemestadodeclaraluzporváriosdias,atésemanas.AogarantirqueChogyal foi capazdepermaneceremclara luz,Gueshe

Wangpo deu uma notícia de grande importância. Sua vida pode ter sidocurta,masoqueelefezcomelaiamuitoalém:eleseriacapazdeassumiralgumcontrolesobreoseudestino.Tenzinpegouseutelefonecelulardedentrodesuagavetaeocolocouno

bolso—sempreumprenúnciodequeiriasairdoescritório.—Voualimentarospássaros—disseaLobsang.—Boaideia—disseLobsang.—Voucomvocê,sepuder.Osdoishomenscaminharamatéaporta.— É a coisa mais importante agora, não é? — observou Lobsang. —

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Fazerqualquercoisaquepudermosparaajudarquemnosdeixou.Tenzinassentiu:—Emesmoque não precisemuito da nossa ajuda, é bom ter algo de

positivoemquepensar.—Exatamente—concordouLobsang.—Algoanãosernósmesmos.O som de suas vozes foi sumindo quando saíram pelo corredor. Fui

deixada sozinha no arquivo, pensando sobre o fato de nunca mais verChogyalnovamente.Elenuncamaisiriaentrarpelaporta,sentarnacadeiraem frente a Tenzin e pegar o marca-texto amarelo que fingia ser umacaneta para marcar documentos, mas eu sabia que era apenas umbrinquedoqueelepodiajogarnotapete.PenseitambémnaúltimavezemqueChogyalhaviameseguradoeenfiei

minhas garras em seus braços. Sentia-me infeliz por ele ter tirado ocobertordelãbegedemime,comele,aúltimaevidênciadaminhafilha.Euhaviasidomuitomá.Essanãoeraaúltimalembrançaqueeuqueriaqueeletivessedemim,masagoraeratardedemaisparamudarisso.Sópodiameconsolarsabendoqueamaiorpartedotempoquepassamosjuntosfoidefelicidade.Quandoocarmanosunisseemumaoutravida,assimcomonosuniunessa,aenergiaentrenósseriapositiva.

=Naquelanoite,observeidoparapeitoosmongesdeNamgyalcruzaremo

pátioaoladodafilademoradoresdacidadequeiaemdireçãoaosportõesdo mosteiro. Não sabia que as orações em intenção a Chogyal seriamabertas ao público, ou o quanto ele era conhecido e querido pelacomunidade. Enquanto cada vez mais pessoas chegavam, decidi que eutambémiria.Desciasescadas,atravesseiopátioeempoucotempoestavasubindoosdegrausdotemplocomumgrupodemonjasidosas.Há algo demágico no templo à noite. E naquela noite em especial, as

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grandesestátuasdeBudanaentrada,comseus lindosrostospintadosdeouro, estavam iluminadas por um mar de lamparinas cintilantes, todasdedicadasaChogyaleatodososseresvivos.Outrasoferendastradicionais— comida, incenso, perfume e flores — eram parte da mesma festa desentidosquefaziameusbigodesformigaremdesatisfação.Olheiemvoltaparaasgrandes thangkaspenduradasnasparedes,com

suas vívidas representações de divindades como o Maitreya, o Buda dofuturo;Manjushri,oBudadasabedoria;TaraVerde;Mahakhala,oprotetordo Darma; o Buda da Medicina; e o reverenciado professor, LamaTsongkhapa.Natênueiluminaçãonoturna,asfiguraspareciammaispróximasdenós

que durante o dia, presenças aladas que olhavam para baixo dos seustronosdelótus.Raramenteseviamtantaspessoasnotemplocomonaquelanoite.Desde

lamasmaisvelhoserinpoches,quesesentavamnafrente,aoutrosmonges,monjas e moradores da cidade, que se acomodavam mais atrás, elestomavam todos os lugares disponíveis. Uma das monjas que chegaramcomigoencontrouumlugarparamimemumaprateleirabaixanapartedetrásdotemplo,daqualeupodiaobservartudooqueacontecia.Aspessoasacendiamlamparinas,juntavamasmãosempreceefalavamemvozbaixaumascomasoutras,conferindoànoiteumsentidoespecial.Sim,haviaumsentimentodeperda,éclaro,eumaprofundatristeza,mastambémhaviaum sentimento oculto bem diferente. A notícia de que Chogyalpermanecera em clara luz obviamente se espalhou e, emmeio à tristeza,havia um orgulho silencioso, atémesmo uma celebração por ele ter tidoumamortetãoboa.GesheWangpofoi imediatamenterecebidocomumsilênciorespeitoso.

Ele tomou seu lugar no trono do ensinamento— o assentomais alto nafrentedo templo—econduziuospresentesemumcânticoantesdenoslevaraumabrevemeditação.Otemploficouemsilêncio,masnãoparado.

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Emvezdisso,umacuriosaenergiapareciapermearo lugar.Seráqueeraapenas minha sensibilidade felina que sentia o poder de centenas dementesfocadasnobem-estardeChogyal?Seráqueaintençãocoletivadetantospraticanteshábeisdemeditação,

que conheciamChogyal tão bem, era capaz de beneficiá-lo naquele exatomomento?GesheWangpo terminou a meditação com um suave badalar de sino.

Depois de ler uma breve mensagem do Dalai Lama, que enviara suascondolênciasebênçãosespeciaisdosEstadosUnidos,elecomentousobreChogyalnomodotibetanotradicional,falandosobresuafamíliaemKham,uma província no Tibete Oriental, e os estudosmonásticos que começouainda criança.Depois recitoualgunsdos ensinamentos fundamentaisqueChogyalrecebera.Geshe Wangpo era sempre muito escrupuloso quanto às tradições.

Tambémsabiacomoalcançaropúblico,emuitasdaspessoasalinãoerammonges,massimpleschefesdefamílias.—Chogyal tinhaapenas35anosquandomorreu—dissesuavemente.

— Se temos de aprender alguma coisa com a sua morte, e não tenhodúvidasdequeelegostariaqueaprendêssemos,équedevemosentenderqueamortepodeatingiraqualquerumdenós,aqualquermomento.Namaioriadasvezes,nãoqueremospensarnisso.Aceitamosqueamortevaiacontecer, claro,maspensamosnela comoalgoque irá acontecer emumfuturomuitodistante.Estamaneiradepensar—GesheWangpo fezumapausaparaênfase—élamentável.OpróprioBudadissequeameditaçãomaisimportantedetodasésobreamorte.Nãoémórbidonemdeprimentecontemplar a própria morte. É justamente o contrário! Somente quandoencaramos a realidadedanossaprópriamorte é que realmente sabemoscomoviver.Vivercomosefosseparasempreéumtrágicodesperdício—continuou. — Uma aluna minha, uma senhora com câncer em estágioquatro,chegoumuitopertodamortenoanopassado.Quandofuivisitá-la

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nohospital,nãopassavadeumasombrafrágilnacama,ligadaatodotipode tubos e equipamentos. Felizmente, ela venceu sua batalha contra adoença. E recentementemedisse algomuito interessante: a doença foi omelhorpresenteque járecebeu.Pelaprimeiravezelarealmenteencarousua própria morte — e somente então percebeu o quanto é precioso osimplesfatodeestarvivo.Geshe Wangpo fez uma pausa para que as pessoas absorvessem a

mensagem.— Agora ela acorda todos os dias com um sentimento de profunda

gratidãoporestaraqui,livredadoença.Paraela,cadadiaéumbônus.Estámaiscontenteeempazconsigomesma.Nãosepreocupatantocomcoisasmateriais,poissabequesãoapenasvalores limitadosedecurtaduração.Tornou-se uma entusiasta na prática da meditação porque sabe porexperiênciaprópriaquesejaláoqueaconteçacomseucorpo,aconsciênciapermanece.—Aspráticas quenos são oferecidas através doDarmanos ajudama

controlaranossaconsciência.Emvezdesermosvítimasdaagitaçãomentale dos padrões habituais de pensamento, podemos ter uma preciosaoportunidadedenoslibertarmoseentendermosaverdadeiranaturezadanossamente.Issopodemoslevarconosco.Nãonossosamigos,nossosentesqueridos,nossasposses.Masodespertardarealidadedeumaconsciênciasemlimites,radiante,equevaialémdamorte,éumaconquistaduradoura.E comessedespertar, entendemosquenão temosque temeramorte.—Umsorrisomaliciosoapareceuemseurosto.—Descobrimosqueamorte,comotudonavida,éapenasumconceito.GesheWangpolevantouumadasmãosnaalturadocoração:—Gostariaquetodososmeusalunoschegassemàbeiradamorte.Não

há jeito melhor de despertar para a vida. Talvez alguns alunos, comoChogyal, não precisem disso. Ele era um praticante aplicado, de coraçãocalorosoeumcarma incrivelmentebom,para trabalhar tãopertodeSua

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Santidadeportodosessesanos.AquelesdenósquetêmoprivilégiodetercontatocomSuaSantidadenãodevemsubestimarisso.Eu me perguntava se aquele último comentário de Geshe-la fora

endereçado a mim. Às vezes, quando o escutava no gonpa, o mosteiro,pareciaquemuitodoqueelediziaeradirecionadoespecialmenteamim.Comoeraeuquempassavaamaiorpartedo tempocomoDalaiLama,oqueissodiziasobreomeucarma?—ContinuaremosalembrardeChogyalemnossasprecesemeditações,

especialmentepelaspróximassetesemanas.—GesheWangpocontinuou,referindo-seaoperíodomáximoemqueaconsciênciapodepermanecernobardo,estadoentreofimdeumaexistênciaeocomeçodeoutra.—Devemosagradecê-lo,emnossoscorações,porternoslembradoque

a vida é frágil e pode acabar a qualquer momento — enfatizou GesheWangpo.—NoDarma, temos o termo realização. Realização é quando o nosso

entendimentosobrealgumacoisaseaprofundaapontodemudaranossaatitude.EsperoqueamortedeChogyalnosajudeachegaràrealizaçãodeque nós também iremos morrer. E que essa realização nos ajude a nosdesapegarmos um pouco, a vivenciarmos uma profunda gratidão, atémesmo uma admiração, simplesmente por estarmos vivos. Não podemosadiaranossapráticadoDarma:otempoépreciosoedevemosusá-locomsabedoria. Nós, aqui, esta noite, somos algumas das pessoas maisafortunadasdomundoporqueconhecemosaspráticasquepodemajudaratransformaranossaconsciênciaeanossaprópriaexperiênciadamorte.SeformostãodedicadosquantoChogyal,quandoamortechegarnãoteremosnadaatemer.Eenquantoestivermosvivos…quemaravilha!

=Namanhãseguinte,sentadanoparapeitoda janela,repareiemTenzin,

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enquanto atravessava o pátiomeia hora antes do habitual. Em vez de irdireto para o escritório como sempre fazia, ele se dirigiu para o templo,ondecomeçouodiacomumasessãodemeditação.Outras mudanças se seguiram. Um dia, ele chegou no trabalho

carregando uma estranha caixa que colocou encostada à parede atrás dacadeira emqueChogyal costumava sentar.Dei uma cheirada curiosa,meperguntandooquepoderiaestardentrodela.Eramaiorqueumacaixadelaptop,emaisestreitaqueumapasta,etinhaumaprotuberânciapeculiaremumdoslados.Nahoradoalmoço,Tenzinsedirigiuàsaladeprimeirossocorros,onde

geralmentecomiaumsanduícheenquantoescutavaaBBCWorldService.Nessedia,porém,umaprofusãodebufadas,chiadosesoprosvinhampordetrásdaporta.Maistarde,ouviTenzindizeraumcuriosoLobsang:—Esse saxofone estava jogado lá em casa há vinte anos. Semprequis

aprendera tocar.Umacoisaqueaprendi comChogyal…—Ele inclinouacabeçaemdireçãoàcadeiraemqueChogyalcostumavasentar.—Nãohátempomelhorqueopresente—concordouLobsang.—Carpe

diem!

=Equantoamim,queridoleitor?Semaspiraçõesdetocarosaxofoneou

mesmo o flautim, não planejava desistir das minhas visitas ao Café &LivrariadoHimalaianahoradoalmoço.MasamortedeChogyaltinhasidoumavisoe tanto: a vidaé finita; cadadia éprecioso.Eo simples fatodeacordar com saúde é realmente umabênção, porque a doença e amortepodemnosatingiraqualquermomento.Mesmo já sabendo disso antes — afinal, era um tema do qual Sua

Santidadesemprefalava—,háumagrandediferençaentreaceitaraideiaemudar de atitude. Eu havia sido complacente antes, mas agora entendia

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que cada dia com boa saúde e liberdade era mais um dia para criar ascausasecondiçõesparaumfuturomaisfeliz.Tédio? Letargia? Parecem tão irrelevantes quando lembramos como o

tempopassadepressa.Compreendicomtotalclarezaqueparaseterumavida realmente feliz e significativa, eraprecisoprimeiroencarar amorte.Nãoapenascomouma ideia,masverdadeiramente.Porqueantesdisso,ocrepúsculonuncaforatãoresplandecente,ocheirodoincensonuncaforatão hipnotizante, nem as porções de salmão defumado guarnecidas commolhoDijonnaise do Café foram tão deliciosamente capazes deme fazerlamberosbeiçosesentirmeusbigodescomicharem.

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8Sky-burialéumapráticafuneráriatibetanaqueconsisteemcolocarocadávernoaltodeumamontanhaparaquesejadecompostoesirvadealimentoadiversosseres.

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CAPÍTULO5Haviasepassadotrintaecincodasquarentaenovenoitesprevistasem

queSuaSantidadeestariafora,quandopercebiquealgotinhadesaparecidodaminhavida.Aconteceudemodo tãogradualquenãomedei contaatéquehouvessedesaparecidoporcompleto:euhaviaparadoderonronar.

=Ainda ronronava quando Tenzin desviava sua atenção das

correspondências quase insignificantes dos líderesmundiais que ficavamguardadas no arquivo, para um ser muito mais significativo deitado emcima dele. E eu tambémnão deixava de sinalizar aminha gratidão pelasdeliciosasrefeiçõesservidasnoCafé&LivrariadoHimalaia.Mas, a não ser por essas esporádicas ronronadas, permaneci calada

durantequasetodaasemanaanterior.E issonãoestavamefazendobem—fatoquemetrazdevoltaàperguntacentraldasminhas investigações:porqueosgatosronronam?Arespostapodeparecerextremamenteóbvia,mas,comoamaioriadas

atividades felinas, é muito mais complexa do que parece. Sim, nósronronamosporqueestamosfelizes.Ocalordeumalareira,aintimidadedeumcolo, apromessadeumpiresde leite— tudo issopode fazernossosmúsculosdalaringevibrarememumritmoimpressionante.Mas o contentamento não é a única razão. Assim como os humanos

podemsorrirquandoestãonervosos,ouporquequeremapelarparaoseuponto fraco, os gatos podem ronronar.Uma visita ao veterinário ou umaviagem de carro são capazes de nos fazer ronronar para nos

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tranquilizarmos.Casoseuspassosnacozinhaolevemparapertodoúnicoarmário de interesse felino, você pode muito bem escutar um ronronarprofundoenquantoenrolamossugestivamentenossacaudaemsuaperna,oudamosumsussurromaisimperativoporentreseustornozelos.Pesquisadores da bioacústica nos dizem outra coisa fascinante: a

frequênciadoronronardeumgatoéaterapiaidealparaoalíviodador,acicatrização de feridas e o crescimento dos ossos. Nós, gatos, geramosondassonorasdecuradomesmomodoqueaestimulaçãoelétrica,queécadavezmaisusadanamedicina, sóque fazemos isso espontaneamente,em benefício próprio. (Aviso aos aficionados por gatos: se o seu queridofelinoestiverronronandomaisdoqueonormal,talvezestejanahoradeirao veterinário. Seu gatinhopode saber algo sobre suaprópria saúdequevocênemdesconfia.)Mas,alémdessasrazõespararonronar,háoutra—semdúvida,arazão

mais importantede todas.Sónãosabiaoquantoera importanteatéSamGoldbergdeixarsuaportaabertasemquerer.

=Poucascoisassãomaisintrigantesparaumgatodoqueadescobertade

uma porta aberta, até então resolutamente fechada. A oportunidade deexplorar odesconhecido, atémesmoum territórioproibido, é algo a quenãopodemosresistir—motivopeloqualarmeiumaemboscadanumfimde tarde, no caminho de volta para Jokhang. Saltando da estante derevistas, percebi que a porta atrás do balcão da livraria estava aberta e,então,revimeusplanos.Sabiaqueaquelaportalevavaaoandardecima,aoapartamento do Sam. Quando Franc contratou Sam para montar egerenciaralivraria,oacordoincluíaoapartamentoqueSampoderiausar,ondeantesficavaoestoque.Sempensarduasvezes,escorregueipelafrestadaportaquedavadireto

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paraumlancedeescadas.Osdegrauseramaltoseestreitos,cobertosporum carpete mofado. Iria demorar até que eu chegasse ao topo. Mas,ignorandoarigidezdemeusquadris,prosseguiemdireçãoàluzquevinhada porta do segundo andar. Também entreaberta, a porta levava aoapartamentodoSam.Muitas vezesme perguntava o que ele fazia quando subia as escadas,

porque, do meu ponto de vista, sua vida profissional parecia um poucomaçante. Enquanto passava parte do seu dia conversando com clientes,pedindonovasremessasde livrosàseditoras,ouarrumandoos livrosnomostruário,namaiorpartedo tempopermaneciaatrásdobalcão, coladoem seu computador. No que exatamente ele estava trabalhando era ummistério. Quando falava com Serena, às vezes usava termos comogerenciamento de estoque, catálogos de editoras, e pacotes contábeis. Elegeralmente faziapiadassobreserumnerdassimquesesentavaatrásdoteclado.Maspor todas aquelashoras?Todososdias?Aquilomedeixavaainda

maiscuriosasobreoqueiriadescobriraofinaldaescada.NãohaviadúvidasdequeSamtinhaumamenteinteressante.Aspessoas

o consideravam um incrível pensador depois de uma conversa na qualdiscutiamassuntoscomoamanifestaçãoespontâneadesímbolostibetanosnas paredes das cavernas, ou as similaridades entre as biografias e osensinamentosdeJesuseBuda.Eumeperguntavaseseuapartamentoseriaigualmenteenvolvente.Ainda estava pensando sobre as possibilidades quando finalmente

cheguei ao topo da escada. Percebendo que minha aparição seriainesperada,prosseguicomcuidado.Meespremientreaportaeobatente,eentreiemumasalaamplaepoucomobiliada.Asparedesbrancasestavamvazias,desprovidasdequadros.Noladoesquerdo,haviaumacamadecasalcobertacomumedredomazuldesbotado.Naparededoladodireito,duasjanelas com venezianas de madeira. Na parede oposta à porta, uma

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escrivaninhaamparavatrêsgrandesmonitoresdecomputador.Samestavasentado na cadeira de costas para mim. No chão à sua volta, umemaranhadodecabosecomponentesdecomputador.EntãoeraassimqueoSampassavasuasnoites?Trocandoacadeiraem

frente a um computadorno andar debaixopor outra no andar de cima?Havia um pufe em um dos cantos do apartamento. Mas, a julgar pelaaparência das coisas, Sam passava amaior parte do tempo em frente aocomputador. Naquele exato momento, estava envolvido em umavideoconferência — nos monitores, imagens em miniatura dos outrosparticipantes. Já o havia escutado falar para Serena que essa era umamaneira de se manter atualizado com os autores, às vezes tentandopersuadir os que estivessem viajando pela Índia a visitar a livraria paraumaconversaouumasessãodeautógrafos.ComSamabsortonavideoconferência,olheiemvoltanoquarto.Minha

atençãofoiatraídaparaummontinhodeobjetosredondoseamarelosquelogoreconhecidosprogramasdeesportenaTV:bolasdegolfe!Apoiadoaoladodaporta,estavaotaco.Furtivamente,me aproximei das bolas. Quando estava a uma pequena

distância,agachei-meassumindoumaposiçãodeferaselvagemelancei-mesobreelas,fazendoumaescorregarcomoumskatecruzandoasalaemaltavelocidade. A bola atingiu o rodapé na parede oposta com uma fortepancada. Sam rodou na cadeira e me pegou com as patas enroladas emoutrabola,eminhabocaaberta,prontaparaumamordida.— Rinpoche! — gritou ele, olhando para mim e depois para a porta

aberta.Solteiabolaecorripelasalaemfrenesi,antesdepularemcimadacama.Elesorriu.—Oqueestáacontecendo?—veioumavozdosalto-falantes.Samfocouacâmeraemmimporalgunsmomentos.—Visitainesperada.

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Umcorodeohhhseahhhsvindosdomundointeiroencheuasala.—Nãosabiaquevocêgostavadegatos—disseumhomemcomsotaque

americano.Sambalançouacabeça:—Geralmentenão,masessaémeioespecial.Sabe,elaéaGatadoDalai

Lama.— E ela visita você em sua casa? — perguntou alguém, com voz

incrédula.—Quebacana!—exclamououtrapessoa.—Elaéadorável!—balbuciououtraainda.Por alguns momentos, houve uma grande excitação, enquanto todos

tentavamdigeriraquelanotíciaglobalmenterelevante.Quandoaconversanormal foi retomada, voltei para as bolas de golfe. Não tinha percebidocomo eram reconfortantes. E como eram leves! Agora entendia como osjogadoresdegolfeconseguiamarremessá-lastãolonge.Joguei uma outra bola pelo chão, na direção de um copo de plástico

preto. A bola ultrapassou o alvo, bateu no rodapé, e foi arremessada devolta paramim. Assustada, pulei para o lado antes que elame atingisse.Nuncahaviaimaginadoquegolfepoderiaserumesportetãoimprevisíveleperigoso.Entediada com o golfe, segui pelo corredor até chegar na cozinha.

Diferentemente das cozinhas em Jokhang, constantemente em uso e deonde sempre vinha uma miscelânea de aromas, a cozinha do Sam eraestéril e desinteressante, provavelmente porque ele sempre fazia suasrefeiçõesláembaixo.Repareiemalgumaslatasvaziasdecervejaeemumaembalagemdesorvetenalixeira.Nadadeinteressanteporali.Estavaperambulandopeloapartamentoembuscademaiscômodos—

não havia mais nenhum — enquanto alguém na chamada devideoconferênciadizia:—Apsicologia ainda éuma ciêncianova.Hápoucomaisde cemanos

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Freud cunhou o termo psicanálise. Desde então, o foco maior tem sidoajudarpessoascomsériosproblemasmentais.Recentemente temosvistotendênciascomoapsicologiapositiva,emqueofoconãoéirdemenosdezparazero,esimdezeroparadez.—Maximizaronossopotencial—opinoualguém.—Umestadodemaiorprosperidade—disseoutro.— O que eu não entendo — Sam dizia — é que depois de tantas

pesquisasnasúltimasdécadas,pareceaindanãohaverumafórmulaparaafelicidade.Parei.Fórmulaparaafelicidade?AquiloeraumjeitotãoSamdeser,com

seusprogramasecódigosealgoritmos!Comosea felicidadepudesseserreduzidaaumacoleçãodedadoscientíficos.—Háumaequação—disseumhomemnocentrodatela.—Mas,como

amaioriadasfórmulas,precisadealgumaexplicação.Sério?NãotinhacertezaseoDalaiLamasabiadessafórmula,massóa

ideiadequealgumacoisaassimpudesseexistirmefezlevantarasorelhas.—AfórmulaéFéigualaPmaisCmaisV—disseohomem,enquantoa

digitavaparaqueaparecessenatela:F=P+C+V.—Felicidadeéigualaoseupontobiológicopredeterminado,ouP,maisas

condiçõesdasuavida,C,maissuasatividadesvoluntárias,V.Deacordocomessa teoria, cada indivíduo possui um nível médio de felicidadepredeterminada.Algumaspessoassãonaturalmenteotimistasealegres,oque as coloca em uma ponta da curva do sino. Outras possuemtemperamentosombrioeselocalizamnaoutraponta.Agrandemaioriadenós ficanomeio.Estepontoéopadrãopessoal,oníveldebasedobem-estarparaoqualtendemosaretornardepoisdostriunfosedastragédiasedosobeedescedonossodiaadia.Ganharnaloteriapodefazê-lofelizporalgumtempo,masessapesquisamostraque,nofinal,éprovávelquevocêretorneaoseupontopredeterminado.— É possível mudar esse ponto predeterminado? — perguntou uma

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jovemcomsotaquebritânico.—Ouestamospresosaele?Pulei do chãopara a cama, e da camapara a escrivaninha, parapoder

acompanharmelhoradiscussão.— A meditação — disse um homem com a careca reluzente e pele

brilhante—temumimpactomuitoforte.Estudosmostramqueospontospredeterminadosdepraticantesdemeditaçãoexperientesestãobemacimadaescala.Sim,pensei,SuaSantidadesabedisso!— Voltando para as condições, C — continuou o homem que estava

explicandoateoriadopontopredeterminado.—Hácertascoisassobreasnossas condições que não podemos controlar, como sexo, idade, raça eorientaçãosexual.Dependendodolugarondevocênasceunomundo,taisfatores podem ou não ter grande impacto no seu provável nível defelicidade. Quanto ao V, a variável voluntária, este inclui atividades quevocê escolhe, como exercícios, meditação, aprender a tocar piano ouenvolver-seemumacausa.Essasatividadesexigemumaatençãocontínua,o que significa que você não se habitua a elas do modo como você sehabituaaumcarronovo,porexemplo,ouumanamoradanova,eperdeointeressequandoissodeixadesernovidade.Ocomentáriocausouumarisadageralnomundotodo.Elecontinuou:—Quandovocêpegaafórmulaparaafelicidadenogeral,percebeque,

enquanto há certas coisas que não podem ser mudadas, há outras quepodem.O focoprincipal deve estarnas coisasquepodemsermudadas equeterãoumimpactonasuasensaçãodebem-estar.Odistanterepiquedoscímbaloseaexplosãodeumatrombetatibetana

me lembraram da cerimônia que estava sendo realizada noMosteiro deNamgyal naquele dia. Todos os monges participavam da refeição decelebraçãoemhomenagemaváriosrecém-graduadosGeshesquehaviamconcluídocomsucessoseusquatorzeanosdeestudo.Nopassado,descobri

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que ficarpertoda cozinhadomosteirodurante essas ocasiões eramuitogratificante.AosaltardaescrivaninhadoSameiremdireçãoàsescadas,refletisobre

a fórmula da felicidade. Era uma perspectiva interessante e não muitodiferente do que Sua Santidade costumava dizer. As pesquisascontemporâneas do ocidente e a sabedoria milenar do oriente pareciamestarchegandoaomesmolugar.

=Vários dias depois, Bronnie Wellenksy chegou ao Café com um novo

cartazparacolocarnoquadrodeavisos.Bronnie,coordenadoracanadensede uma instituição de caridade para a educação, usava o quadro do Cafépara afixar cartazes para turistas, anunciando atividades como visitas aocentro de artesanato e shows de artistas locais. Ela era espalhafatosa ealegre, estava sempre às voltas comalguma coisa. Seus cabelosna alturados ombros viviam despenteados. Apesar de estar em Dharamsala háapenasseismeses,jáeraextremamentebemconectada.— Este é perfeito para você— disse para Sam, enquanto colocava o

cartaznoquadrodeavisos.Samdesviouosolhosdatela:—Oqueéisso?—Precisamosdeprofessoresvoluntáriosparaasaulasdetreinamento

básicoemcomputaçãoparaosadolescentesdacomunidade.Issoaumentaaempregabilidadedeles.—Eujátenhoumemprego—respondeuSam.—Acargahoráriaémuitopequena—disseBronnie.—Algoemtorno

deduasnoitesporsemana.Atémesmoumanoiteseriaótimo.Depoisdecolocarocartazemumlugarprivilegiado,elaseaproximoudo

balcãodalivraria.

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—N-nuncaensineicoisaalguma—Samdisseaela.—Querdizer,nãosouqualificadoparaisso.Nãosaberiaporondecomeçar.—Do começo— replicouBronnie, comuma expressão de incerteza e

umsorrisodeslumbrante.—Nãoimportasenuncaensinou.Essascriançasnãosabemnada.Suasfamíliasnãopossuemcomputadoremcasa.Qualquercoisa quevocêpudesse fazer, seria, tipo, incrível.Desculpe,não sei o seunome—disseela,estendendoamãoporsobreobalcão.—MeunomeéBronnie.—Sam.EnquantoSamapertavasuamão,parecianotá-lapelaprimeiravez.—Sempretevejotrabalhandonocomputador—disseela.Samlevantouosbraçosemumarendiçãosimulada.—Umgeek.—Nãoquisdizerdessamaneira—disseela,alegremente.—Maséverdade—Samrespondeu,encolhendoosombros.Sustentandoseuolhar,Bronniefalou:—Nãotemideiadoquantopoderiaajudaressascrianças.Atémesmoas

coisasquevocêachaquesãoóbviasseriamumarevelaçãoparaelas.Eu sabia a causa mais provável da relutância do Sam. No passado, já

disseratantoaFrancquantoaGesheWangpo,elenãogostavadelidarcompessoas.E láestavaBronnie,pedindoqueele ficasseempédiantedeumgrupoeensinasse.Bronnienãotiraraseusolhosdosdele,eaindasorriacalorosamente.—Detodasasatividadesvoluntáriasquevocêpoderiafazer,énestaque

usariaassuashabilidadesdamelhorforma.Foi a palavra comV que o fez tomar a decisão.Voluntárias. Mal sabia

Bronnie que havia acertado em uma das variáveis da fórmula para afelicidade.—Euajudariatambém,éclaro—elaofereceu.Seráqueelaestavavendosuaresistênciasequebrar?

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— O pessoal da internet do outro lado da rua está cedendo suasinstalações—explicou.—Seria sóumahora, ao finalda tarde.CursodeWordbásico,talvezplanilhas,essetipodecoisa.Samestavabalançandoacabeça.—Ah,porfavor,digaquesim!—implorouBronnie.UmsorrisoseformounocantodabocadeSam.—Ok,ok!—disseele,olhandoparabaixo.—Eutopo.

=Samlevousuaresponsabilidadedeprofessormuitoasério.Jáhaviafeito

o download de alguns tutoriais para iniciantes, assistido a alguns vídeossobreestratégiasbásicasde ensinoe começadoa fazer anotações.Váriasvezes, durante os momentos calmos no Café, escutei Sam perguntar aosgarçons sobre essa palavra ou aquele conceito: seria algo que osadolescentesindianosentenderiam?Nãoseiquandoaconteceuaprimeiraauladecomputação.Devetersido

emumatardequandoeujáhaviavoltadoparaJokhang.MaslogosepodiaperceberumamudançaemSam.Elepassavamenostempoatrásdobalcãoda livraria e mais tempo conversando com os clientes. Algo tambémmudaraemsuapostura.Dealgumaforma,elepareciamaisalto.Suasprimeirasaulastinhamsidoboasobastanteparaquecontinuasse.

Sabia disso por conta de um comentário feito por Bronnie quando veiovisitá-lonoCaféumamanhã:—Vocêestavaincrívelontemànoite—dissecomosolhosbrilhando.—Ah,foisó…—Duashorasdeperguntas!—disseBronnie,rindo.—Nuncaviisso.—Todospareciamestarsedivertindo.—Incluindoonerdquenãosabedaraulas?—Atéele.

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—Especialmenteele,eudiria.—Debruçando-senobalcão,elapegouasmãosdeSamedissealgoqueofezexplodiremumarisada.Sim,Sam—rirde ficar sem ar. Não teria acreditado se não tivesse visto com meusprópriosolhosdesafira.Algumacoisaestavaacontecendo,queridoleitor.Algoquecomeçoucom

V,masquenãoterminouaí.Nãoseminhaintuiçãofelinaestivessecerta.

=Foi na tradicional sessão de chocolate quente do fimdo dia quemeus

instintosseconfirmaram.AcontecequeLobsangtambémestavanalivrarianaquelanoite.Serenaoconvidouparajuntar-seaelaeSam,eeleaceitouoconvite.AoobservarLobsangeSerenasentaremladoa ladonosofá,Samabriu a porta que dava para o seu apartamento e subiu as escadasestrondosamente. Vozes abafadas vinham do segundo andar e depois, osomdeseuspassosdescendoasescadas,juntamentecomoutrapessoa.Olhei para Bronnie, fascinada. Era a primeira vez que a via com os

cabelospenteadosesedosos,eorostomaquiado.Elavestiaumacalçajeansjustaeumablusabonita.— Essa é a Bronnie— disse Sam, apresentando-a para Lobsang. Não

havianecessidadedeapresentá-laaSerena,poisjáseconheciam.—Minhanamorada—acrescentou.Bronnie olhou para ele com uma expressão de adoração. Sam sorriu.

Lobsang juntou asmãos à frente do coração, inclinando-se para a frente.Serenasorriu.—Estoumuitofelizporvocês!Depois que todos se acomodaram, Kusali deu início ao ritual do

chocolate quente do fim do dia, com biscoitos para os cachorros e meupratinhodeleite.LobsangolhouparaBronnieedepoisparaSamcomumsorrisosereno:

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—Então,ondevocêsseconheceram?— Eu precisava de voluntários para o programa das aulas de

computação—respondeuBronnie.—Estamos tentandoprepararalgunsadolescentesdaquiparaomercadodetrabalho,eSamofereceuajuda.Samsorriueacrescentou:—Éumjeitodecontar.Elanãoaceitavaum“não”comoresposta.—Vocêpodepararquandoquiser—elaprovocou.Depois,olhandopara

SerenaeLobsang,disse:—Elenãovaiparar.Éumexcelenteprofessor,eascriançassimplesmenteoadoram.Samolhouparaochão.—Elasatéderamumnomeparaele.—Pare!—disseSam.—Nasegunda,oufoinaterceiranoiteemqueestavalá…—Bronnie!—Elesdecidiramchamá-lodeSuper-Geek.Comomaiorcarinho,éclaro.Serenadeuumarisada.—Claro.Bronniefoiimplacável:—Eletemumjeitotãomaravilhosodepassarascoisas.Dáparaveras

lâmpadas da sabedoria se acendendo num piscar de olhos — disse ela,estalandoosdedos.—Sóestouseguindoalgumassugestõesdocursoonlineaqueassisti—

protestou Sam. Ele sentiu necessidade de moderar o entusiasmo deBronnie, embora, ao se recostar no sofá, parecesse estar gostando daatenção.—Mais importante que a técnica— continuou ela, estendendo amão

parapegaradele—,vocêdeuaelesconfiança.Osentimentodeque,sejaláoquenãosouberem,elespodemaprender.Issonãotempreço.—Entãovocêdescobriuumaverdadeiravocação—observouLobsang.Samassentiu.

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—Descobri.Querdizer,euamooslivros,masachoquegostodeensinartambém.Écomoseumanovadimensãotivesseseaberto,graçasàBronnie.—Vocêquerdizer,graçasàFórmula—disseelaironicamente.—Fórmula?—perguntouSerena.— Sam diz que ele só começou por causa da minha insistência —

Bronniedisse.—Mas,depois,admitiuqueaatividadevoluntáriaerapartedafórmulaparaafelicidade.—Issoémuitointeressante—disseLobsang.—Porfavor,conte-nosa

respeito,Sam.Samcomeçouaexplicarsobreasvariáveis,ospontospredeterminados,

as condições, e as atividades voluntárias. Terminei omeu leite, limpei omeurostoesubinocolodeSerena,amassandoumpoucosuaroupaantesdemeacomodar.Depois que o Sam terminou sua explicação — com uma autoridade

muitomaiordoquetinhanopassado—,Lobsangdisse:—Então,paravocê,seuV—suasatividadesvoluntárias—éajudaros

alunosaconseguirememprego?Samassentiu.—Exatamente.—Nósjáconseguimosumaempresaquevaificarcomostrêsmelhores

alunos—disseBronnie.—Esseéumexemplomaravilhoso!—exclamouLobsang, juntandoas

mãos em alegria.—Gosto do fato de que, ao beneficiar outros, vocês—disse, apontando para Sam e Bronnie como um casal — também sebeneficiam!Conheçoumversoqueparecerelevante.Ésobreotrabalhosetransformaremamorvisível.Elecomeçouarecitar:

Éteceropanocomfiostiradosdovossocoração,comosevossobemamadofosseusaraquelepano.Éconstruirumacasacomafeição,

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comosevossobemamadofossevivernaquelacasa.Ésemearecolhercomcarinho,comosevossobemamadofossecomeraquelasfrutas.

—Quelindo,Lobsang—disseSerena,olhandoparaelecomafeição.—Milarepa?—perguntou,citandoumsábiobudistafamosoporseusversos.Lobsangbalançouacabeça.—KahlilGibran.Amosuapoesia.—Umolhardistanteseapoderoude

seus olhos enquanto contemplava as palavras transcendentes que haviaacabadoderecitar.—Éumdemeusfavoritostambém—concordouSam.—Umaescolha

interessante para um monge budista. — Respondendo às expressõesintrigadasaoredordamesa,Samacrescentou:—MuitodaobradeGibranéromântica,sensual.—Sim—Lobsangrefletiu.Depoisdeumapausa, falou:—Àsvezeseu

mepercoemsuaspoesiaseesqueçoquesou issoouaquilo.Ao final, ficopensandoquetalvezsermongenãosejanecessário.Suaspalavrasvieramcomoumaconfissãoinesperada.Pelaprimeiravez

elepareciacuriosamentevulnerável.Serenaestendeuamãoeapertouadele.Deseucolo,olheiparaLobsangecomeceiaronronar.

=Sim, querido leitor, essa é outra razão para um gato ronronar.

Indiscutivelmente,amaisimportante:fazervocêfeliz.RonronarénossoV—nossomodode lembrá-lodeque você é especial e amado, enunca seesquecer do que sentimos por você, especialmente quando se sentevulnerável.Além do mais, ronronar é a nossa forma de garantir sua boa saúde.

Estudosmostramqueterumacompanhiafelinareduzoestresseebaixaa

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pressão arterial nos humanos. Donos de gatos são significativamentemenospropensosaterataquesdocoraçãodoqueaspessoasquevivememummundosemgatos.Sequiser,podechamarissodeciênciadoronronar.Emboraciênciaeartepareçamnãotermuitoaverumacomaoutra,nessecaso,ambasconvergemparaumamelhoriadevida.EnquantopermanecianocolodeSerena,emeuronronadoaumentava,

lembreidaspalavrasdeKahlilGibran.Seráqueograndepoetahaviatidoumacompanhiafelina?Seessefoiocaso,oqueteriaescritosobrearazãomais importantedonosso ronronarem?Teria sidoalgumacoisaparecidacomaslinhasaseguir?

Éparacurarocorpo,acalmaramenteedaralegriaaocoração,Porqueénocolodoseuseramadoquevocêestásentado.

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CAPÍTULO6Fui despertada da minha siesta por uma voz familiar e seu

acompanhamento de sempre, o chacoalhar de uma dúzia de pulseiras. AsenhoraTrinciestavavisitandooCaféetraziaumanotíciaemocionante:—Elesaiudoretiro!ElaeSerenaestavamempépertodemim,aoladodaestantederevistas.—Depois de dez anos?—A expressãode Serena era umamisturade

espantoealegria.—Doze—corrigiusuamãe.—Aúltimavezemqueovi—disseSerenaolhandoparacima,tentando

ativaramemória—foiantesdeeuirparaaEuropa.—Sí—suamãeconcordou.—Quemtecontou?—Serenaperguntou.— Dorothy Cartwright. Fui visitá-la hoje pela manhã. Ela está até o

pescoçocomaspreparações.—Entãoelevaificarcom…?—Sí,comosCartwrights!—OsolhosdasenhoraTrincibrilharam.—Equandoelevai...?—Hoje!—AsbochechasdasenhoraTrinciestavamcoradas.—Eleestá

vindodeManaliagoramesmo!Afiguranocentrodetodaessaexcitação,descobrimaistarde,eraIogue

Tarchin. Iogue não é um título oficial, mas informal, que é adquirido aolongo dos anos, quando o talento como mestre de meditação éprimeiramentefirmadoe,depois,cadavezmaisreverenciado.AinclinaçãodoIogueparaumavidademeditaçãojáeraevidentedesdequandoaindaeraummeninodecincoouseisanos,crescendonaprovínciadeAmdo,no

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Tibete. Em vez de correr pelos campos com os outros meninos de suaidade, ou brincar com os bonecos de madeira que seu pai fazia, ele serecolhia emuma cavernanasmontanhas atrás de sua casa e sentava emumapedra,recitandomantras.Haviafeitoseuprimeirogranderetirocomvinteepoucosanos,ficandoisoladodomundopeloperíodotradicionaldetrês anos, trêsmeses e três dias. Desde então, havia feitomuitos outrosretiros. Ele também havia enfrentado uma grande tragédia pessoal, aoperder suamulher e seusdois filhospoucoantesde ele completar trintaanos, quando o ônibus em que viajavam caiu de um penhasco, matandotodosospassageiros.OpatrocinadordosretirosdeIogueTarchineraafamíliaCartwrightde

McLeod Ganj, cuja filha, Helen, era amiga de Serena. Encontrar IogueTarchinaosdezanosde idade, enquantoempurravaumcarrinhode chá,fezcomqueSerenasesentisseimediatamenteatraídapelohomemleveequaseembaraçosamentemodesto.Emboraseuinglêsnaquelaépocafossemuitolimitado,forasuapresençaqueafetaraSerena,comoamuitasoutraspessoas.Nãoerasimplesmenteocalordosseusolhoscastanhos,masumsentimento de atemporalidade que ele transmitia, muito difícil deexpressar empalavras. Perto dele, tínhamos a sensaçãode que omundocomonós o conhecemos é ilusório, comonuvens quepassampelo céu, eque por trás dessa aparência está uma realidade radiante tão expansivaque nos deixa sem ar. Era para essa realidade que Iogue Tarchin nosofereciaumaponte.PorcausadagrandeamizadeentreasfamíliasCartwrighteTrinci,Iogue

Tarchin tinha sido recebidopela famíliaTrinci em casa.Na voltade seuslongos períodos em Ladakh, no Butão, ou na Mongólia, ele semprearrumavaumtempoparaverafamíliaTrinci,mesmoquandosuaposiçãode mestre em meditação se tornou cada vez mais alta e longas filas demonges e praticantes leigos domundo inteiro, que vinham à procura deinstruçãooubênçãos,seformavamemfrenteàsuacasa.

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AshistóriassobreIogueTarchineramlendárias.Haviaumaemqueeleapareceu para um de seus alunos em um sonho, e insistiu tanto que omonge visitasse sua mãe idosa imediatamente que, no dia seguinte, omongecomeçousuajornadadedoisdiasatéAssam.Aochegarlá,elenãoencontrou nada de errado— sua mãe gozava de boa saúde e se sentiaconfortável com sua rotina. Mas, no segundo dia da visita, uma terríveltempestade atacou toda a região, causando inundações e um grandedesmoronamento de terra. A casa de sua mãe, seguramente agarrada àencostapormeioséculo,derepentesedescolouecomeçouadeslizarparauma catástrofe. Se omonge não estivesse por perto para protegê-la, suamãecertamenteteriamorrido.Umaoutrahistóriaenvolviaumalunoqueestavaemumretirosolitário

de trêsmeses emuma caverna emLadakh.Depoisque ele voltou ao seumosteiro, perguntaram quem o havia alimentado durante o retiro. IogueTarchin,omongehaviarespondidoduranteasinstruçõesdepraxe.Aquilopareceusemimportância,atéqueoutrosmongeslhedisseramqueduranteaqueles trêsmeses IogueTarchinnãohavia faltadoanenhumasessãodemeditação no mosteiro, que ficava a cinquenta milhas de distância dacaverna. Sem estradas ou transportes, a única forma pela qual IogueTarchinpoderiaterpercorridoadistânciaatéoretiroeraatravésdalung-gom-pa, umapráticanaqual os adeptosmaishabilidosos são capazesdecobrir grandes distâncias em velocidades super-humanas sem qualqueresforço.Tambémhaviaaqueladofilantropoamericanoquearrecadavadoações

para uma escola no Tibete que Iogue Tarchin estava ajudando areconstruir.ObenfeitorqueriaentregaraoIogueasdoaçõespessoalmentequando visitasse a Índia emquatromeses; IogueTarchin disse a ele queconvertesse a soma em dólares australianos. Surpreendido pelasinstruções,massabendoqueeramelhornãoquestioná-las,obenfeitorasseguiu rigorosamente. Nos três meses seguintes, a moeda australiana

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valorizou em quinze por cento, quando Iogue Tarchin enviou-lhe umamensagem para que o dinheiro fosse trocado por rúpias indianas. Afacilidade do Iogue, não só para o câmbio, mas também para línguas,comércioeoutrasatividadesmundanasnasquaiseleescolheseenvolver,énotória.Elepodenão terpassadomuito temponomundocomum,masoentendiaperfeitamente.Como leigo, às vezes conhecido comoumchefede família nobudismo

tibetano, Iogue Tarchin precisava se sustentar, e, no passado, já haviatrabalhadoocasionalmenteemescritórios,entreumretiroeoutro.Masseufoco principal continuava sendo a meditação, mais recentemente, emquatroretirosdetrêsanossucessivos,duranteosquaissuasnecessidadesmodestas foram cobertas pela família Cartwright. Ninguém havia vistoIoguepormaisdedozeanos.Seelejáeracapazdasmaissurpreendentesfaçanhasantesdesseperíodo,oquemaiselepoderiafazeraofinaldessesdozeanos?Serena não era a única a fazer tais conjecturas, conforme descobri ao

voltar para Jokhang. No escritório dos assistentes, Tenzin e Lobsangtambém falavam sobre IogueTarchin. Elesnão sabiamquanto tempoelepretendiaficaremMcLeodGanj,masiriamenviarumacartapedindoqueficassepelomenosatéoretornodoDalaiLama.CertamenteSuaSantidadeiriagostardeencontrá-looutravez.Na manhã seguinte, no templo, sentei-me ao sol enquanto os monges

chegavamparaasessãodemeditaçãodofinaldamanhã.Porváriasvezesouvi o nome de Iogue Tarchin sendo mencionado, juntamente comhistórias sobre seus incríveis poderes. Foi quando decidi que iria meencontrarcomoIoguepormimmesma.Boatoserelatosdesegundamãosãomuitobons,masnãohánadacomoaexperiênciapropriamenteditadese sentar no colo de uma pessoa para entender como ela realmente é.Serenahaviamarcadoumaaudiênciacomessafiguramística.Durantesuainfância,elaeramuitopróximatantodeIogueTarchincomodoBudismo.

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Mas o tempo que passou na Europa a enchera de dúvidas, que setransformaramemobstáculosparasuaprática.Semmencionarasquestõespessoaisparaasquaiselagostariadeconselhos.EfoiassimquevimpararnacasadosCartwrightsdoisdiasdepois.Não

muitolongedoMosteirodeNamgyal,acasaeraumaantigaestância,comtelhadodeestanhoechãodemadeirapolida,cobertocomtapetesindianoscomtramasintrincadas.DorothyCartwrighteeuhavíamosnosencontradováriasvezesdurantessuasvisitasaoCafé&LivrariadoHimalaia,e,emboraela parecesse surpresa ao me ver ali, seguindo de perto os passos deSerena,nãoiriafecharaportanaminhacara,assimcomonãoproibiriaaentradadopróprioDalaiLama.Pouco tempo depois, Serena já estava tirando seus sapatos e batendo

suavemente na porta de madeira. Reparei que suas mãos tremiam umpouco. Ao escutar o chamado de Iogue Tarchin, ela girou amaçaneta debronzeeentrouemumasalaquepareciadeoutraera.Amplaeespaçosa,estava iluminadaapenaspela luminosidadequevinhados trêspainéisdejanelasestreitasquecintilavamcomobarrasdeouro, lançandoumbrilhoetéreo no sofá-cama baixo onde Iogue Tarchin sentava com as pernascruzadas.Elevestiaumacamisavermelhadesbotada,cujocolarinhoestilonehru chamava a atenção para um rosto tranquilo que não mostrava aidade.QuandoseusolhoscastanhosescurosencontraramosdeSerena,seusemblanteseiluminoucomtamanhaafetuosidadequeoarnasalapareciadançardealegria.Ajoelhando-se no tapete em frente a Iogue Tarchin, Serena trouxe as

mãosemfrenteaocoraçãoeinclinou-seemumaprofundareverência.Eleestendeusuasmãos,segurandoasdelaentreassuas,etocandosua

testa na de Serena. Eles permaneceram assim por um longo tempo, osombrosdeSerenabalançavameaslágrimasdesciampeloseurosto.Finalmenteelaseendireitoueencontrouseuolhardepuracompaixão.

Não havia a necessidade de palavras durante o tempo em que

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permaneceramsentados.Conversastriviaispareciamsupérfluasenquantoseabraçavamnovamente,emumnívelmaisprofundo.Então,IogueTarchinfalou:—MinhacaraSerena,vocêtrouxealguémcomvocê.Elasevirou,olhandonadireçãoondeeuestavasentada,pertodaporta.—Achoqueelaquerteconhecer.Eleassentiu.—Elaémuitoespecial—disseSerenaaele.—Possover.—ElaéaGatadeSuaSantidade—explicouSerena.—Mastempassado

muitotempoconoscoenquantoeleestáviajando.—Serenafezumapausa.—Vocêspermitem...?—Emregra,não—disseele.—Masvendoqueelaésuairmãzinha…Irmãzinha? Diziam que Iogue Tarchin, assim como outros mestres

iluminados, era clarividente. Ou será que ele estava falandometaforicamente?Sejacomofor,nãopreciseidemaisconvites.Lançando-mesobreele,puleiemseusofá-camaecheireisuacamisa.Tinhaaromadecedro,talvezcomalgumtoquedecouro,comosetivesseficadopenduradanoarmárioporumlongotempo.O simples fato de ficar fisicamente perto de Iogue Tarchin era uma

experiênciaextraordinária.AssimcomoSuaSantidade,elepareciaemanarumaenergiaúnica.Juntocomumsentimentodepazoceânica,eletambémtransmitiaumaatemporalidade,comoseesseestadodesabedoriaexaltadasempretivesseexistido,talcomoexistiaagora,ecomosempreexistiria.EnquantoeleperguntavasobreamãedeSerena,decidiqueseucoloera

umnoqualeugostariademesentar.Acomodei-menocobertorqueestavaesticadosobresuaspernas,eelemeacariciougentilmente.Asensaçãodesuas mãos em meu pelo me causou um arrepio de contentamento quepercorreutodoomeucorpo.—Dozeanoséum tempo tão longo—dizia Serena.—Quatro retiros

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seguidos.Possoperguntarporquevocêresolveucontinuar?Umrelógiocucosooupeloardatarde.— Porque eu pude— respondeu Iogue Tarchin simplesmente. Então,

vendoaexpressãoperplexadeSerena,acrescentou:—Foiaoportunidademais preciosa. Quem sabe quando eu poderei encontrar as mesmascircunstânciasnovamente?Elaassentiu.Serenaestavaconsiderandoasimplicaçõesdepassardoze

anos sem contatohumano, semTV, rádio, jornais, ou internet; doze anossemjantarfora,semdiversão,semfestasdeaniversário,Natal,DiadeAçãodeGraçasououtras festividades.Amaioriadaspessoasconsideraria issoumaprivaçãodossentidos,umaformadetortura.MasIogueTarchintinhafeitoissodebomgrado,eoefeitotranscendentalneleerapalpável.Masumacorrentecontrária,maisnegativa,estavaperturbandoSerena.— Suponho que, para um praticante avançado de meditação — ela

reverenciou IogueTarchin—, esse treinamento sejamuitoútil.Masparaalguém como eu… — Era como se ela não conseguisse expressar suasreservas.Sorrindo,IogueTarchininclinou-separaafrenteetocousuamão.—Oqueémelhor—eleperguntou—,ummédicoouumsocorrista?Serenapareciasurpresacomapergunta.—Ummédico—respondeu imediatamente,masdepoishesitou.—Se

alguémsóprecisassedeumatendimentosimples…—Osdoissãonecessários—eleconfirmou.Serenaassentiu.—Um treinamento de primeiros socorros leva quanto tempo? Alguns

dias?Maseparasetornarummédico?—Seteanos.Atémais,comespecialização—disseSerena.—Nãoéumaperdadetempo?Seteanos,quandoelesjápoderiamestar

ajudandopessoascomumtreinamentodealgunsdias?HouveumapausaenquantoSerenaabsorviaoverdadeirosignificadodo

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queeleestavadizendo.—Todosessespraticantesdemeditação—disseele,comumgestoque

abrangiatodaaregiãodoHimalaiaearredores.—Porqueelesnãoestãotrabalhando na caridade? É assim que algumas pessoas pensam. Seriamuitomelhorsedistribuíssemcomidaeconstruíssemabrigosparaossem-teto,emvezdeficaremcomsuasbundassentadasodiatodo.SerenadeuumarisadinhacomaformadiretadefalardeIogueTarchin.—Émuitobomajudar aspessoas e os animais atravésda caridade. É

muito útil, assim como os primeiros socorros. Mas uma soluçãopermanente para o sofrimento exige algo diferente: a transformação damente. Ajudar outros a entender que primeiro é preciso retirar o queobscureceanossaprópriamente.Então,comoomédico,nossacapacidadedeajudarpassaasermuitomaior.— Algumas pessoas diriam que isso é conversa fiada — murmurou

Serena.Elapareciafelizcomaoportunidadedediscutirsuasreservascomfranqueza.— Diriam que a consciência é apenas o cérebro trabalhando,entãoaideiadetransformaçãoatravésdasváriasvidas…IogueTarchinassentiu,comolhosbrilhando.—Sim,sim.Asuperstiçãodomaterialismo.Mascomoalgopodechegara

terumaqualidadequenãopossui?Serenafranziuocenho:—Nãoestouentendendo.—Umapedrapodecriarmúsica?Umcomputadorpodesentirtristeza?—Não—Serenareconheceu.Eleassentiuumavez.—Acarneeoossopodemproduzirconsciência?Elarefletiusobreaquiloporumtempo.—Seocérebronãoproduzaconsciência—disseela—,porquequando

océrebroédanificado,amentetambéméafetada?IogueTarchinabriuumsorrisoesebalançouemsuaalmofadaporum

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instante.—Muitobom!Muitobomquevocêesteja fazendoperguntas!Diga-me,

seasua televisãoestiverquebrada,evocênãoconseguirvernada,anãoserumatelaescura,issoquerdizerquenãohámaistelevisão?Quando viu o sorriso de Serena se abrir, ele não esperou por uma

resposta:—Claroquenão!Claro,seoseucérebroestiverdanificado,vaiafetara

experiênciadeconsciência.Talvezaconsciêncianempossaservivenciada.Masocérebroécomoumreceptor,umaparelhodetelevisão.Élamentávelconfundirosdois...Sealgumaveztedisserem“Ah,amenteésócérebro”,pergunte a eles onde ficam armazenadas suas memórias. Eles terão deadmitir que não sabemos. Apesar dos muitos anos de pesquisa e deinvestimento,oscientistasnuncadescobriramondeocérebroarmazenaasmemórias. Nunca irão descobrir, porque elas não são armazenadasfisicamente!Oscientistas fizeramexperiênciascomanimais,destruindoapartedeseuscérebrosondeachavamqueamemóriaeracontida.Masosanimaisaindapodiamselembrar.Neurocientistas,psicólogos,filósofos—todos eles têm ideias a respeito damente.Mas uma ideia é apenas umaideia,apenasumconceito.Nãoéacoisapropriamentedita.Sequisermossaberoque amente éde verdade, devemos experimentá-la emprimeiramão.Diretamente.—Emmeditação?—Certamente.Algumaspessoastêmmedodefazerisso.Tememque,se

experimentarem uma mente livre, de alguma forma, deixarão de existir.Irão desaparecer em uma nuvem de fumaça! — Ele sorriu. — Maspensamentossãoapenaspensamentos.Elesaparecem,persistemepassam.Quando somos capazes de permanecer em consciência pura, livre dopensamento que acabou de ir embora e do outro que virá, podemos vernossasmentespornósmesmos.Vivenciamossuasqualidades.Sóporqueédifícildescreveressasqualidadesnãosignificaqueamentenãoaspossua.

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Serenapareciaintrigada.—Comoassim?— Você realmente pode descrever as qualidades do chocolate? Você

pode dizer que é doce e que derrete na boca e que vem em diferentessabores,mas tudo isso sãoapenas ideias—, conceitosqueapontamparaalgo que não tem natureza conceitual. Da mesma forma, podemosdescrever a mente como ilimitada, radiante, serena, que tudo sabe,amorosa e de natureza compassiva. Mas outra vez — ele encolheu osombros—sãomeraspalavras.Ficçãoverbal.—Acreditoqueamaioriadenóspensanocorpoenamentecomosendo

sóisso—disseSerena,apontandoparasuafiguracorporal.IogueTarchinassentiu.— Sim. É um trágico mal-entendido possuir essas crenças de

autolimitação,pensarquevocênãoénadaalémdeumsacodeossos,emvezdeserumaconsciênciailimitada.Acreditarqueamorteéumfim,enãouma transição.Piorde tudoénãoperceber como todaaçãodo corpo,dafalaedamenteafetaasuafuturaexperiênciadarealidade,atémesmoparaalém desse tempo e dessa vida. Crenças como essas fazem as pessoasdesperdiçarem as oportunidades da nossa vida humana preciosa. Nossasmentessãomuitomaioresdoqueisso!—Onisciência?—Serenaperguntou.—Nóstemosessepotencial.—Clarividência?Eledeudeombros— Alguns fazem um estardalhaço com isso. Mas a clarividência vem

naturalmenteemumamentedesobstruída.—Eossonhos?—Emumamenteagitada,nãotreinada,umsonhoéapenasumsonho—

anãoserque você tenhaa sortede terumprofessorcapazde transmitiratravésdessaagitação.

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Porummomento,eleparoudemeacariciar.Vireiaminhacabeçaeolheiparaeleatéquerecomeçasse.— O sonho pode ser uma oportunidade fantástica se você for uma

pessoa treinada. Saberque você está sonhandoquando estiver sonhandopermitequevocêcontroleosonho.Podemosprojetaranossaconsciênciaemdiferentesesferasdaexperiência.IogueTarchin refletiu sobre as questões subjacentes nas perguntas de

Serena,antesdeperguntar:—Porqueasperguntassobreclarividênciaeestadosdosonho?Elaolhouparabaixo,parasuasmãosapoiadasemseucolo.—Talvezhajaalgomais?—acrescentouele.ViasbochechasdeSerenacoraremquandoolhoubrevementeparaele.—Achoquesim…IogueTarchinpermaneceuemsilêncioecompletamenteimóvel.Oúnico

movimento na sala era uma fita prata de fumaça que oscilavapreguiçosamentesobreoincensoquequeimavanajanela.—VolteidaEuropaháunsdoismeses—Serenacomeçou.— Sim, sim — ele confirmou, como se soubesse, pedindo para ela

continuar.—Meuplanoeravirparacasaporpoucotempo.Mas,agoraqueestou

aqui,comeceiaquestionarasminhasrazõesparaquerervoltaràEuropa.Achoqueseriamelhor,eeuficariamaisfeliz,seficasseaqui.—Seusolhosencontraramosdele.—Muitobom—disseIogueTarchin,parecendoconfirmaradecisão.—Masnãotenhocerteza.Sabe,sousolteira.NãoseiseDharamsalaéo

melhorlugar.Vocênãoconheceaquiotipodepessoa…— Entendo — disse ele gentilmente, depois que suas palavras se

dissiparam.Derepente,umafaíscademalíciacruzouoseurosto.—Querqueeuleiaseufuturo?OsorrisodeSerenaeratriste.Juntandoasmãosnafrentedocoração,ela

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disse:—Vocêtemessashabilidades…—Essa prostração—ele balançou o indicador—não é necessária. O

quesurgeparavocêdependedassuasações,docarmaedascondiçõesquevocêcria.—Ah...—Serenaestavadesapontada.—Penseiquevocêpudessevera

vidadosoutros.IogueTarchinrespondeuaoseudesapontamento.—Vocênãotemmotivosparasepreocupar—disseaela.Serenaoolhou,suplicante.— Você vê filhos no meu futuro? Estou começando a pensar em um

mododevidadiferente…Suas palavras ficaram suspensas no calor da tarde, antes de Iogue

Tarchinlhedizer:—Vocêcriouascausasparamuitafelicidade.Semmais uma palavra, ele lhe passou uma profunda sensação de que

tudoficariabem.Serenarecostou-se,relaxandoascostas.Por alguns instantes, a conversa girou em tornodoCafé&Livrariado

Himalaia e dos planos de IogueTarchin de permanecer emMcLeodGanjpor algunsmeses e compartilhar seus ensinamentos. Depois, a conversaterminou.EnquantoSerenaagradeciaaTarchinpelotempoquepassaramjuntos, ele pegou suas mãos e lhe agradeceu por ter reestabelecido aconexãoentreeles.Pulei do seu colo quando Serena se levantou, e a segui quando ela

percorreuotapete.Ailuminaçãodasalaestavaaindamaissuaveagora—os três painéis dourados transformaram-se em prateados— mas a salaestavarepletadeenergia.Serenadeixouasalacomumsentimentodeque,nofundo,tudoestavaesempreestariabem.IogueTarchinacompanhouSerenaatéaportaeaobservoucaminhando

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pelo corredor, enquanto eu vinha patinando logo atrás, com meu rabopeludo levantado. Serena estava quase dobrando a esquina no final docorredor,quandoelerevelou:—Talvezvocêjáoconheça.Elaparou,virando-separatrás.—VocêquerdizeraquiemDharamsala?Eleassentiu.—Estoupensando.

=Mais tarde,durantea tradicionalsessãodechocolatequentedo fimdo

dia,SerenadisseaSam:—QueriatantoquetodosconhecessemIogueTarchin.Oualguémcomo

ele.ComoBronnieestavaemaula,éramossónóstrêseoscachorros.Serena estava descrevendo seu encontro com Iogue Tarchin e sua

conversa.Nãoopedaço sobre suasperspectivas românticas, claro,masoqueeleshaviamdiscutidosobreamente.—Nãosãosóasexplicações—disseela.—Éasensaçãoquevocêtem

na presença dele. Uma vibração. Não consigo descrever ao certo, masquando você está com ele, você sente algo diferente, de uma maneirapositiva.Samassentiu.— Ele é a prova viva do que acontece quando nos damos conta do

potencialdanossamente—disseSerena,comosolhosbrilhando.—IogueTarchin afirma que tudo é possível. Vai muito além, até de coisas comoclarividência e telepatia, que ocorrem naturalmente em uma mentedesobstruída.—Mesmoasmentescomunssãocapazesdessetipodecoisa,muitomais

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doqueamaioriadaspessoasacredita—disseSam.Serenaergueuassobrancelhas.—Amaioriadaspessoasvivenciaatelepatiaouaprecogniçãoemalgum

momento,masachaquesãoacontecimentosfortuitos—continuouele.—Coincidências. A maioria dos cientistas nemmesmo busca evidências dePES9poracreditaremquesãobobagens.Ironicamente,essaéumaatitudenada científica, porque a maioria deles estigmatiza o problema sem aomenosdaratençãoàsevidências—Samdeuumarisada.—Interessantecomo,atravésdotempo,quandoaspessoasmostravampoderesmísticos,ou eram veneradas ou maltratadas. Uma reação muito mais sensata,poderíamosimaginar,seriaseperguntar:comoeupossodesenvolveressespoderestambém?—Exatamente.— Estamos intrinsecamente ligados a eles— Sam afirmou com tanta

convicção,queSerenalevantouumasobrancelha.Colocandosuacanecasobreamesa,eleselevantou,caminhouatéuma

dasprateleiras,pegouumlivroeretornouaosofá.—Hámuitosestudossobreissoaqui,ensaiosclínicosadequados,feitos

por cientistas que estão preparados para investigar as coisasobjetivamente. Eles mostram que a chamada paranormalidade é, naverdade, normal. Um teste que eu gosto, e que já foi realizado inúmerasvezes, ligapessoas adetectoresdementira enquantoelasobservamumasequência de imagens em um computador, que variam desde imagensemocionalmente calmas, como paisagens, até imagens chocantes, comocadáveres retalhados para autópsia. Um computador selecionaaleatoriamente as imagens para que ninguém, nem mesmo ospesquisadores,saibamseapróximaseráumaimagemcalmaouchocante.Oquevocêachaqueacontece?—Oponteirododetectorficaloucotodavezqueumaimagemchocante

émostradaàspessoas?

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Elebalançouacabeça.— Três segundos antes que a imagem chocante seja mostrada. Antes

mesmo do computador fazer a seleção. É precognição. E são apenaspessoascomunssendotestadas.Serena se recostou no sofá com um sorriso. Como havia terminado o

meuleite,tomeiocolodisponívelcomoumconvite.—Amentenãoéapenasumcomputadorfeitodecarne—disseSam.—Enósnãosomosapenassereshumanoscapazesdeterexperiências

espirituais — acrescentou Serena —, mas também seres espirituaiscapazesdeterexperiênciashumanas.Ao amassar suas pernas, estendi minhas garras através de sua roupa

apenasporuminstante.Elafezumacaretaantesdeacrescentar:—Ouexperiênciasfelinas.—Naturalmente—brincouSam.

=Naquela noite, enquanto eume aconchegava na cama que geralmente

dividiacomoDalaiLama,contempleitodasasextraordináriaspercepçõessobre a mente reveladas por Iogue Tarchin. E percebi que a verdadeirafelicidadesóépossívelatravésdeumentendimentomaisamplodamente.Umavisãolimitadadeumsacodeossossópoderiaproduzirumafelicidadelimitada — passando prazeres sensoriais, satisfação temporária,experiências que resplandecem apenas por pequenos gloriosos instantesantes de desfalecer. Mas a sensação de profundo bem-estar em pessoascomoIogueTarchineSuaSantidadeeratãofortequevocêpodiaatésenti-lo.Enãotinhanadaavercomprazerestemporários:IogueTarchinnãooshaviatidonaquelesdozeanos!Não,essasensaçãoeraoceânica,duradoura,profunda—felicidadedeumaordemmuitodiferente.

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=HáumclimadeperigoiminentequandoSuaSantidaderetornaaoquarto.

Ele é um jovem de vinte e poucos anos. Em sua companhia, uma senhoratibetanamaisvelha,derostoamável,masdestemido.Seuxalebrocadoestápresoaseupescoçoporumbrocheazulturquesa.Suaposturaéderainha.Seguindoosdois,váriosmongesserventessemovimentamrapidamentede

um lado para outro no cômodo. Eles juntam papéis, empacotam itenspessoais,enrolamtapetescomtramasintrincadas.ReconheçoumdelescomosendoojovemGesheWangpo.Elesestãocommuitapressa.Deitada no parapeito, observava o Palácio de Potala, do outro lado de

Lhasa, para ondeasmontanhas subiamdo outro ladodo vale. Enquanto oDalaiLamaentranoquarto,levantominhacabeçaparaver.Sentindo uma ligeira coceira, levanto minha pata traseira direita e me

coço várias vezes. Olhando para baixo, vejo que minha perna é curta ecoberta por um pelo desgrenhado. Meu rabo também é curto, com umapluma felpuda. Em vez de garras retráteis, minhas unhas são largas egrosseiras.SuaSantidadeseaproximademimemepeganocolo.— Este é o dia que todos temíamos— ele sussurrou baixinho em meu

ouvido.—OExércitoVermelhoestáinvadindooTibete.Adecisãofoitomada,eprecisodeixarLhasaoquantoantes.Meudestacamentoavançadonãopodelevar você conosco pelas montanhas. Não seria justo com ninguém. MasKhandro-lairátomarcontadevocêaquinoTibete.Elacuidarádevocê,comosevocêfosseeu.Agoraeuseiporqueasenhoracomobrocheazulturquesaestavalá.Há

ummomentodeintensatristeza.SeráqueemanadoDalaiLamaoudemim?Afastando-se,demodoquesónósdoisolhássemosovalepelajanela,Sua

Santidadesussurra:—Não sei quanto tempo terei de ficar fora. Mas prometo te encontrar

novamente,minhapequena.—Háumapausaantesdecontinuar.—Mesmo

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quenãonestavida,definitivamenteemumavidafutura.

=Enquanto issoacontecia,seiquemeusonhoéumsonho.Sóquenãoé.

Tambémestousendoagraciadacomumbreveedesobstruídovislumbredomeupassado.Comocachorro.

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9Percepçãoextra-sensorial.(N.T.)

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CAPÍTULO7Eu?!?!

=Querido leitor, não vou fingir que não fiquei absolutamente

impressionada com o sonho. Contudo, depois do encontro com IogueTarchin,nãotivedúvidasdequeoquetinhavistoeraverdade.Poralgunsmomentosextraordinários,fuicapazdesintonizarumaexperiênciapréviadeconsciência.Depois,desapareceu.Ao acordar, cedo na manhã seguinte, lembrei-me de Iogue Tarchin

dizendoalgosobre“asortedeterumprofessorcapazdetransmitiratravésdessaagitação”.Esabiaque,emqualquerlugardomundoqueoDalaiLamaestivesse,osonhotinhasidoumpresente.Umaconfirmaçãodaligaçãoquenosconectava,ligaçãoessa,fiqueisurpresaemdescobrir,queremontavaaumaoutravida.Talvez eu não devesse ficar tão surpresa. Não era um ensinamento

convencionaldoBudismo,segundooqualaleidecausaeefeito,oucarma,seestendepormuitasvidas?Arazãopelaqualboascoisasacontecemcomseres ruins, e coisas ruins acontecem com seres bons, não énecessariamente o resultado das causas que eles criaram nesta mesmavida.Assimcomoeuacabaradevivenciar,éumvéumuitofrágil,oquenosimpedederever,comperfeitaclareza,momentospassadosdeconsciência.Eoque era apassagemdeumasdécadasno contextodeum tempo seminício, senãoum saltodeum lugarparaooutro?Mesmoassim, o sonho

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haviaabertoaportaparapossibilidadesqueeununcahaviaconsiderado,comoquemeutinhasidoemoutrasvidas.Eoquê!PareciaserumLhasaApsoem1959,quandooDalaiLamafoiforçadoao

exílio.A ideia de que eu havia sido um cachorro era profundamente

desconcertante. Isso certamente lançava umanova luz sobre as questõesqueeutinhaarespeitodaminhalinhagemhimalaiaimpecável—aindaquesemdocumentoscomprobatórios.Ascendência,pedigreeecoisasdogêneroderepentepareciamperderaimportância,quandocomparadosaquestõesmuitomais importantes sobre para ondeminha consciência tinha ido, oque tinha experimentado, o que tinha feito, os efeitos pelos quais estavapassando no aqui, agora. Por mais que eu, como outros felinos, julgassenossaespécie superioraos cães,umacoisaqueeunãopodianegareraofato de que os cães têm consciência. Como os gatos e os humanos, elesentram na categoria dos sem chens, expressão tibetana para seres quepossuemumamente.Do modo curioso como vários acontecimentos aparentemente sem

relação entre si podem, às vezes, ocorrer aomesmo tempo em sua vida,apontando-lheumaverdadeúnicae inconfundível,poucosdiasdepoisdosonho, lá estava eu, escutando uma conversa muito curiosa no Café &Livraria doHimalaia. A pessoa que conduzia a conversa não era um dospalestrantesdoclubedolivrodoSam,emborafossetãoconhecidoquantoosmelhoresdeles.Biólogodeumadasmelhoresuniversidadesinglesas,eleera um pesquisador cujos estudos sobre a memória e a consciência jáhaviam sido publicados e virado best-sellers no mundo todo. Estavavisitando McLeod Ganj, quando passou pelo Café. Eram dez horas damanhã, e ele sentiuvontadede tomarumaxícarade café.Aoentrar, nãopôde deixar de perceber um grande pôster dele mesmo pendurado emcimadeumapilha aindamaiorde exemplaresde seu livromais recente.

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Vestindo exatamente omesmo paletó de tweed, a camisa verde escuro ecalças de veludo da foto, ele parou para olhar o pôster e percebeu que,atrásdobalcão,Samolhavaparaele,paraopôster,enovamenteparaele.Seusolharesseencontrarameosdoisriram.EntãoSamdesceuosdegrauseestendeuamão.—Éumagrandehonratê-loaquinaloja—disseele.—Seeusoubesse…—Euestavaapenaspassando—obiólogodisseaele,comumsotaque

inglêscortante.—Nãosabiadestelugar.— Estou certo que o senhor deve escutar isso sempre, mas sou um

grandefãdoseutrabalho!—disseSam.—Tenhoacompanhadoháanosassuas pesquisas. Temos todos os seus livros. — Ele apontou para asprateleirasatrásdele.—Seimportariadeautografaralguns?—Seriaumprazer—disseovisitante.Samoconduziuatéobalcão,parandonomeiodocaminhoparapegar

algunslivroseofereceuumacanetaaobiólogo.—SesoubessequeestavavindoparaDharamsala,euteriaconvidado-o

parafazerumapalestraemnossoclubedolivro.—Éumavisitamuitorápida—disseocientista.Sampressionouumpoucomais.—Tantaspessoasaquiiriamficarfascinadasemconhecê-lo…Enquantooautorautografavaoslivros,Samteveumaideia:— O senhor não estaria livre para o almoço hoje, estaria? Poderia

convidaralgumaspessoas.—Tenhoumcompromissoàsonzeeesperoquenãodemoremaisque

umahora—obiólogodisse.—Depoisdisso,tenhoumtempolivre.

=Quandoocientistavoltou,haviadezpessoassentadasàmesapertoda

livraria, esperando para almoçar com ele. Além de Serena e Bronnie, o

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grupoincluíaLudoealgunsalunosdeioga,LobsangqueveiodeJokhang,eoutraspessoasquereconhecidoclubedolivro.Comosempre,aatmosferano Café estava animada e otimista, e quando o convidado chegou, foirecebido como um amigo muito honrado. Os pedidos foram feitos, osdrinques servidos, e, enquanto todos aguardavam o almoço ser servido,Samvirou-separaobiólogoeperguntou:—Osenhorpoderianoscontarqualéapesquisaqueestárealizandono

momento?— Certamente — disse ele. — Uma linha de pesquisa que estou

explorando há muitos anos é a sensciência dos animais —, o que aconsciênciasignificanosseresnãohumanosecomodiferedanossa.— Como os cachorros podem perceber sons agudos e nós não? —

perguntoualguémdoclubedolivro.— Diferenças de percepção fazem parte da pesquisa — explicou o

convidado.—Eéinteressantecomoosanimaisestãosendocadavezmaisusados pelas suas habilidades perceptivas. Estamos todos bemacostumados comos cães guiasparaos cegos,mas agora estamos vendooutrasaplicaçõesmaisamplas,comooscãesparadiabéticos,quealertamaspessoasparaahipoglicemiaatravésdamudançadeodoremseuhálito.— E depois — continuou —, há também a melhora considerável já

relatadaempacientescomparalisiacerebral,autismoesíndromedeDowndepois do contato direto com golfinhos. O que há nessas criaturas emparticularquepodegerarmudançastãodramáticas?Foicomprovadoqueaconsciênciaperceptivadosgolfinhosé,emalgunsaspectos,bemsuperioràdoshumanos.Alémdomais,oscetáceossãoosúnicosmamíferos,alémdoshumanos, que demonstram um claro aprendizado vocal. Através de umamelhor compreensão dos poderes perceptivos e de comunicação dosgolfinhosnóspodemosdesenvolverdiferentesmodalidadesdetratamentoparapacientescomparalisiacerebral.Sukie,dogrupodeioga,nãoconseguiuseconter.

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—Ouviahistóriadeumamulherqueteveaexperiênciadenadarcomosgolfinhos. Havia um que a cutucava o tempo todo na barriga, então, derepente,eleajogouparaoalto,eamulhercaiudecostasnaágua.Apesardeterperdidoofôlego,estavabem.Mesmoassim,resolveramlevá-laparaa emergência do hospital por precaução. Quando a examinaram,descobriram um tumor em seu estômago, exatamente no local onde ogolfinhoacutucava.Felizmente,haviatratamento.Obiólogoassentiu.—Hátantashistórias,e,partedomeutrabalhoestáemrecolheresses

dadoseinvestigá-losdemaneiraadequada.Comovocêestásugerindo,hámuitos aspectos da sensciência não humana que vão além da nossacompreensãoatual,masquepodemserextraordinariamenteúteis.—Aprecogniçãoanimalébastantecomprovada.—apontouocientista

— Desde os tempos mais remotos, as pessoas têm registrado ocomportamento animal antes de um terremoto. Animais domésticos eselvagensficamansiososoutemerosos,cachorrosuivam,pássarosrevoam.Um exemplo fascinante foi registrado por um biólogo ao estudar ocomportamento dos sapos durante o acasalamento em San Rufino, nocentrodaItália.Eledescobriuqueonúmerodesaposmachosnumacolôniadereproduçãocaiudenoventa,paraquasenenhumemapenasalgunsdias.Em seguida, houve um terremoto de magnitude 6.4, seguido de váriostremores de terra. Os sapos só voltaram após dez dias. Parece que, comdias de antecedência, eles haviam detectado o que estava prestes aacontecer.—Tremoresdeterra.Talvezporqueossapostêmpatasespecialmente

sensíveis?—alguémsugeriu.— Se fosse assim, você pensaria que os sismógrafos detectariam a

mesma coisa—disse o cientista.—Talvez tivesse havidoumamudançasutilnocampoelétricoqueelesforamcapazesdesentir.Mas,sabe,nãosãosóossaposquepossuemessahabilidade.Ograndetsunamiqueatingiua

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Ásiaemdezembrode2004foiprevistopormuitasespécies.Houverelatossobre os elefantes em Sri Lanka e em Sumatra que se deslocaram paraterrasmaisaltasmuitoantesdasondaschegarem,debúfalosquefizeramalgoparecido.Donosdecachorrosperceberamqueseuscãesnãoqueriamseaproximardapraiaparaosseuspasseiosmatinaisdecostume.— Um sistema de alerta de tsunami poderia ser criado usando os

animais—propôsLudo.—Eujásugeriisso—obiólogodisse.— E se a habilidade de prever terremotos não tiver nada a ver com

sismógrafosecamposelétricos?—perguntouBronnie.—Eseforalgumaconsciênciaqueosanimaispossuem?— Quer dizer, como uma coisa de sobrevivência? — Ludo entrou na

conversa.ObiólogosevirouparaBronnie:—Você podemuito bem estar certa.Há evidências de que os animais

possuemahabilidadededetectarcoisasdeummodoquealgumaspessoasdescreveriam como paranormal. Como o fenômeno dos cachorros quesabemahoraqueseusdonosestãochegandoemcasa.—Osenhorescreveuumlivrosobreisso—observouSam.— Isso mesmo. Há pouquíssimas dúvidas de que alguns animais são

capazes de detectar esse tipo de coisa, como a hora em que seus donosestãosaindodotrabalhoparairparacasa.HácircuitosinternosdeTVquemostramoscãesselevantandoesentandopertodaportadafrente,oudeuma janela,nomomentoexatoemqueseusdonossaemdotrabalho,nãoimportaquehoraseja.Emalgunscasos,oscachorrosficamanimadoscoma chegada eminente de alguém que estava fora de casa por dias ousemanas.Houveumoficialdamarinhamercantequenuncadiziaàesposaquandoestariadevoltaemcasa,porreceiodeseatrasar,maselasempresabia,porqueocachorrodizia.—Sempreacheiqueoscãeseramespeciais—anunciouumparticipante

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doclubedolivro.Deitadanaestante,meuspelos seeriçaram.Entãome lembreidomeu

sonhoeelesjánãoseeriçaramtantoassim.—Assimcomohárelatosdegatosquefazemamesmacoisa—disseo

cientista —, há também uma história maravilhosa de um casal que foivelejar por váriosmeses e deixou o vizinho encarregado de alimentar ogato.Nemelesmesmossabiamquandovoltariamparacasa.Mas,quandovoltaram,encontrarampãofrescoemcimadamesaeumajarradeleitenageladeira esperandopor eles.Os vizinhosos esperavamde volta, porquepela primeira vez desde que haviam partido, o gato deles havia saído eficadono estacionamento em frente ao prédio, ondepassou o dia inteiroolhandoparaofimdarua.Houvesorrisosaoredordamesa.— Alguém poderia argumentar que saber de onde vem sua próxima

refeição éumelementode sobrevivência importante—disse o cientista,olhando para Ludo.— Da mesma forma, há uma grande quantidade dedadosquemostramquemuitosanimais,especialmenteaquelescommaiorriscodepredadores,podemsentirquandoestãosendoobservados,oquepodesercriticamenteimportanteparasuasobrevivência.—Eleescreveuumlivrosobreissotambém—anunciouSam.Oautorriu.—Háoutros elementos sobre a sensciênciados animais que vãomais

além.Vejamos,porexemplo,otrabalhodadra.IrenePepperbergcomumpapagaio cinzento africano chamado Alex, descrito em um livro que nãoescrevi—elesorriuparaSam—,masqueinspirououtrospesquisadores.Sabe-sequeospapagaios têma capacidadenão sódeaprenderpalavras,mas também de usá-las com sentido. Eles sabem a diferença entrevermelho e verde, quadrado e círculo, e assim por diante. Tambémentendemepodemcomunicaradiferençaentrepresenteeausente.Uma outra pesquisadora que tinha um papagaio-cinzento africano

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descobriuqueopássaropareciaperceberseuspensamentos.Umavez,elapegou o telefone para ligar para sua amiga Rob e o papagaio disseespontaneamente: “Oi,Rob!”Outravez,elaestavaolhandoparaa fotodeumcarroroxo,eopássaro,queestavanosegundoandar,disse:“Olhaqueroxo bonito.” O mais intrigante foi quando a dona do pássaro teve umsonhoemqueusavaumgravadordefita-cassete.Opapagaio,quedormiapertodela,dissealto:“Vocêprecisaapertarobotão”,nomomentoemqueelaestavafazendoissoemseusonho.Eleaacordou!—Lendopensamentos?—perguntouBronnie.— O papagaio foi rigorosamente testado. Estou simplificando demais,

mas as respostas do pássaro foram registradas enquanto ele tentavaidentificarasimagensquesuadonavianaoutrasala.Asimagenseramdeobjetoscomoumagarrafa,umaflor,umlivro,atémesmoumcorponu.Opássaro acertou a imagem do corpo nu, a propósito. Em setenta e umensaioseleacertou,emmédia,vinteetrêsvezes,muitomaisqueoacaso.—Oquetudoissonosmostra—afirmouobiólogo—équeseresnão

humanosnãoapenascompartilhamelementosdeconsciênciaconosco,mastambémpossuemhabilidadesperceptivas,que,emalgunscasos,podemsermaissutisqueasnossas.—Maissofisticadas—alguémsugeriu.— Issoéum juízodevalor—disseobiólogo comumsorriso.—Mas

alguns concordam. Não podemos esquecer, contudo, que há muita coisaquenãosabemossobreaconsciênciahumana.Durante todo o tempo em que o biólogo falava, Lobsang escutou com

atenção, uma presença tranquila em seu robe vermelho. Por fim,perguntou:—ÉaconsciênciahumanaqueotrazaMcLeodGanj?Ocientistaassentiu.—Obudismotemmuitoaensinaraomundosobreanaturezadamente:

o que é, o que não é e como as teorias criam divisões em nosso

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entendimentodaconsciênciaque,naverdade,nãoexistem.—Amentetranscendeomundodospensamentos—disseLobsang.ObiólogoolhouLobsangcomprofundoreconhecimento.— Exatamente. E essa verdade simples, mas profunda, é algo que os

humanosachamdifícildeentender.

=Naquelanoite,fuiàauladeiogacomSerena.Nasúltimasduassemanas,

havia me tornado uma frequentadora assídua. Em vez de ficar sentada,sozinhaemumapartamentovazio,preferiamuitomaismeempoleirarnobanco demadeira na sala de prática, escutando Ludo e observando seusalunos trabalharem a sequência deasanas que se tornava cada vezmaisfamiliar para mim. Gostava especialmente das discussões na varandadepois das aulas, quando eu me sentava próxima a Serena e sentia seucalor.Enquantoisso,elaeosoutrosseacomodavamnotapeteetomavamcháverde,easmontanhasencenavamseupróprioritualnoturno,comseustopos gelados lentamente aprofundando sua coloração, do branco paraouro polido e depois para o tom cereja, e o sol poente fazia sua própriasaudação.

=A aula dessa noite seguiu seu curso normal, os alunos trabalharam os

asanas em pé, antes de se acomodarem em seus colchonetes para astorções sentadas. Vestindo calças largas e camiseta, Ludo caminhavadescalço pela sala, fazendo um ajuste aqui, uma sugestão ali, enquantoobservavaatentamenteaposturadecadaum.FoiquandoLudoestavaempé, de costas para a varanda, instruindo os alunos sobre a posição deMarichyasana III, a Postura do Sábio, que eu percebi um movimento

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repentino.Nasacadadavaranda,atrásdeLudo,umgranderatoapareceuvindodo

nadaeparouemcimadaecharpequeSerenacostumavadeixaraliantesdaaula.Não vou fingir que a localização do rato me fez reagir daquele jeito,

porém sabia o quanto aquela echarpe significava para Serena. Apesar dedesbotada e muito usada, a echarpe amarela com flores de hibiscobordadastinhaumgrandevalorsentimental,poiseraoúnicopresentedeseupaiqueelaaindapossuía.Escuteiasuahistóriasobreanoiteemquereceberaessepresente,navarandadecasa,quandotinhadozeanos.Avisãoindesejadadeumroedordoladodeforaprovocouumsomque

eunemsabiasercapazdeemitir.Graveeforte,eraosinaldeumpresságiotãoterrívelquepudeverofrionosolhosdeLudoaoolharparamim,antesdesevirareolharparafora.Quandoofez,oratojátinhaidoembora.Ludofoiatéavaranda,parandoporummomentoantesdevoltarrapidamenteparadentrodasala.— Por favor, todos vocês, levantem-se calmamente, recolham seus

sapatosesaiam.Háumincêndionacasaaolado!Olhandoparaoindianojovemealtonasegundafila,Ludoperguntou:—Sid,vocêpoderiausaroextintordavaranda?Sidassentiu.—Voupegarooutronacozinhaevoltarportrás.Todososoutrosseapressaramparacolocarseussapatosesairdacasa.

Serename pegou no caminho. Em instantes, nos juntamos ao grupo queestavadooutro ladodarua,atordoadocomoqueestavaacontecendonacasaaolado.As chamas saltavam da janela dianteira da casa. Uma fumaça escura

subiapeloarjuntocomocheirodeóleo.Ascalhasjáestavamemchamas.OespaçoentreascalhasemfogoeasdacasadeLudoeramuitoestreito.Segurando-mecomumadasmãos,Serenausouaoutraparaligarparao

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CorpodeBombeirosdeDharamsala.Váriosoutrosalunoscorreramparaascasasvizinhasparaveroquepoderiaserfeitodelá.Outrossedispersaramàprocurademangueirasebaldescomágua.Docantodavaranda,Siddisparavaoextintordeincêndionascalhasda

casadeLudo, antesde se concentrarnas chamasque saíamda janeladacozinhadacasavizinha.Ludosaiupelaportadafrentedasuacasacomumsegundoextintor,exatamentenahoraemqueumabolade fogoexplodiupelo teto da cozinha da casa ao lado. Ludo disparou uma rajada sobre oteto, desencadeando uma forte explosão de espuma, fazendo as chamasrecuaremcompletamente,paraexplodirem, instantesdepois,aumacurtadistância.SukieeMerrileeapareceram, carregandoo finaldeumamangueirade

jardimdeumacasaaolongodarua.—Nãoseaproximemdacozinha!—Ludogritouporcimadoombro.—

Provavelmente é o óleo que está pegando fogo. Usem amangueira paraumedecerasparedesdacasa!A mulher e os seus três filhos que moravam ali se encolhiam,

desamparados, no meio-fio. Com permissão dela, Ludo entrou na casa,procurandoofocodoincêndio.Asjanelasestavamcomumtomdelaranjaflamejante.Depoisdasduasrajadasdoextintor,o laranjase transformouempreto.Davaranda,umSidsujode fumaça lutavacontrao fogonascalhas.As

chamasreluziamperigosamentepertodo telhadodacasadeLudo,e,pormaisqueeledisparasseoextintor,reapareciam.Quantomaiselelutava,maisfracaficavaarajadadoextintor.Atéparar

porcompleto.Aschamassubiram,ganhandoterrenopelascalhasdacasaaolado,pulandofacilmenteparaacasadeLudo.Gritosdealertavinhamdogrupodoladodefora.DisseramaSerenaqueosbombeiroschegariamemvinteminutos.Mas

até lá a casa de Ludo e a sala de prática já estariam completamente

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tomadaspelaschamas.Siddesapareceudavaranda,reaparecendodepoispelaportadafrente.—Precisamosdemaisextintores!—gritou,olhandoruaabaixo.—Os outros estão pedindo para os vizinhos— respondeu Serena.—

Duaspessoasestãoindoparaalojadeferragens.Depoisdeumaexplosãoensurdecedoranacasaaolado,asbolasdefogo

quesurgiramdasjanelasdacozinhasubirampelacasadeLudo.OsesforçosdeLudopareciamestar fracassando também.Elesaiupela

portadafrente,balançandooextintor.—Vazio!—elegritou,atravessandoaruarapidamente.Porummomento,LudoeSidficaramempé,olhandoofogo.Tinhasefirmadonascalhasenotelhadodacasaaoladoeespalhara-se

para a varanda de Ludo. Os alunos jogavam água nas paredes das duascasas, lutandoemvão contrao fogo.Empouco tempo, todoo telhadodacasavizinhaestavaemchamas,eacasadeLudoseriaapróxima.Uma multidão de curiosos havia se formado, vizinhos e transeuntes

estavam atordoados, ansiosos e hipnotizados pela conflagração. Pareciahaverpassadoanosquando,naverdade,algunsminutosdepoisapareceuum antigo Mercedes branco, rasgando a rua em nossa direção, parandobruscamente em frente à casa em chamas. Antes de o carro pararcompletamente, homens com uniformes brancos impecáveis e quepesvermelhos saíram pelas duas portas traseiras. Seguravam extintoressignificativamentemaioresqueosdoisusadosporLudoeSid.Umafiguraconhecidasaiupelaportadomotoristausandoumajaqueta

escuraeumboné cinza.EraninguémmenosqueopróprioMarajá. Sid eLudocorreramparaoseulado.Eleestavaabrindooporta-malasdocarro,de onde tirou mais dois grandes extintores. Reabastecido, Ludo levou aequipeparadentrodacasavizinha,enquantoSideoMarajáentravamnacasadeLudo.Doisalunospegaramosextintoresrestanteseosseguiram.Em menos de um minuto, tudo o que restou do incêndio foram rios

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espumososdelíquidonegro,queescorriampelosladosdasduascasasatéarua,eocheiroacredefumaçaegasesquímicos.Àdistânciapodíamosouvirassirenes,enquantoocorpodebombeirosseaproximava.

=DepoisqueoMarajáe seusdoisassistentes foramembora,o corpode

bombeiros avaliou os danos. Várias pilastras haviam sido gravementequeimadase,atéquefossemsubstituídas,avarandanãoestariasegura.Omobiliáriotinhadeslizadoparaolado,ondeochãopareciaestarprestesaceder.Olhandoaoredordoprédioquehaviasidosuacasaeseuestúdiodeioga por tantas décadas, Ludo parecia aliviado por não ter sidocompletamente destruído. Apesar dos danos, disse que poderia ter sidomuito,muitopior.— Se não fosse o Marajá— observou Serena, ajustando sua echarpe

favorita em volta dos ombros —, quem sabe como as coisas poderiamterminar?As pessoasmurmuraram, concordando. Ludo e Sid trocaramumolhar

significativo.Osalunosentraramnoprédio,sejuntandocomoemnoitespassadas,só

que,dessavez,doladodedentro.Serena havia feito um pedido para o Café & Livraria do Himalaia, e

grandesembalagensdepizzapassavamporentreospresentes, juntocomumagarrafadevinhotintoparaacalmarosnervos.—Oqueestoutentandoentender—refletiuSukie—écomooMarajá

ficousabendodoincêndio.—Talvezalguémtenhaligadoparaele—sugeriuEwing.—Dizemqueelesepreocupamuitocomacomunidade—alguémdisse.—Escutei issotambém—concordouSerena.—Eparecequecaminha

poressaruaànoite.Talvezeleprópriotenhavistoofogo.

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—Sejacomofor,nãoseicomosereicapazdeagradecê-loportersalvadoaminhacasa—disseLudo.— Ele não quis ficar para uma taça de vinho?— perguntouMerrilee,

comsuavozdefumante,reabastecendosuaprópriataça.—Provavelmentenãobebe—disseSid.—Eleémuitoreservado.Não

gostadetumulto.— Vou ter demarcar um encontro para agradecê-lo pessoalmente—

propôsLudo.— Muito melhor — concordou Sid. — Mas acho que você está

esquecendoaverdadeiraheroínadanoite,semaqualo fogo iria ter feitoum estrago muito maior, antes que alguém soubesse o que estavaacontecendo.Houveumapausaantesquetodosolhassemparamim.—Swami!— Você está certo — disse Ludo, levantando de sua cadeira e se

aproximandodeondeeuestava sentadaao ladodeSerena.Parecia fazerumareverênciaquandoseajoelhounotapeteàminhafrente.—Achoquenuncavouesquecerosomquevocêfez—disse,enquanto

meacariciavacomgratidão.—Dearrepiar—comentouMerrilee,estremecendo.—Chegouamedarcalafrios—disseSukie.—Agenteficaimaginandocomoelessabem—refletiuCarlos,ajustando

suamarcaregistrada,abandana.—Ah,essagatasabemaisdoquenóspodemosimaginar—disseLudo.

—Muitomaisdoquenósreconhecemos.UmmomentosepassouantesdeSerenadizer:—ComodiscutíamosmaiscedonoCafé.Ludo,Sid,eváriosoutrosassentiram,concordando.Para o benefício dos que não estavam presentes no almoço, Serena

repetiuoqueoeminentebiólogodisserasobreaconsciênciadosanimais:

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—Elenosdissequeosanimaispossuemahabilidadedepercebercertascoisasquesãoimperceptíveisaoshumanos.Aparentemente, somos senscientes de maneira que a maioria das

pessoasnuncasedáconta.—Umavezouviumahistóriasobreumporquinhodeestimação—disse

Ewing—queacordouseusdonosaopuxarsuascobertasumanoite.Acasaestava pegando fogo enquanto estavam dormindo. Eles acreditam que oporquinhotenhasalvadosuasvidas.—ExatamentecomoaSwaminosajudoua salvaroestúdioeaminha

casa—observouLudo.—Vocêachaqueelapercebeuocheirodofogo?—perguntouumIogue

chamadoJordan.—Cheiro?—Outalveztenhavistoafumaça—sugeriualguém.— Sexto sentido — disse Carlos, oferecendo uma explicação mais

lisonjeira.Lembrei-medoimensoratoqueapareceudonadaedomeuchoqueao

vê-lo,seguidodouivoinvoluntárioquesuaapariçãoprovocou.—Elacertamentesoubecomonosalertar!—disseMerrilee.Ludoolhouparamimcomumaexpressãodegratidão:— Por isso, Swami será sempre uma convidada de honra em nosso

estúdio.

=Foisomentemaistarde,quandoestávamosdeixandoacasaeaspessoas

colocavamseussapatosnocorredor,queMerrileereparounaecharpedeSerena.— Você teve sorte — disse, segurando a ponta da echarpe entre o

polegareodedoindicador.—Vocênormalmentedeixaisso…

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—Navaranda—completouSerena.—Teriaviradofumaça.—Masnãoestanoite?—Issoqueéestranho.Poderiaterjuradoqueeuatinhacolocadoláfora.

Mas,aparentemente,estavaaqui,naminhabolsa,otempotodo.—Vocênãoacha...?—Merrileecomeçouadizer.—Aquiestáela!—exclamouSid,acariciandomeurostocomaspontas

macias de seus dedos, enquanto Serename segurava no colo.—Um sermuitoespecial.O que me fazia sentir tão próxima daquele indiano alto de olhos

brilhantes?—Aquela—continuou—quesabemuitoedizpouco.OlheiparaSid,lembrando-medoratosobreaecharpe.Seeusabiamuito

ediziapouco,oquepoderíamosdizerdele?

=Mais tarde, naquela noite, enrosquei-me no cobertor de lã que Sua

Santidadecolocavaemsuacamaexclusivamenteparameuuso.Enquantopairavaemumestadoleveesonolento,entreavigíliaeosono,imagensdosonho da noite passada e do incêndio dessa noite apareciam em minhamente, e pensei sobre o que o biólogo dissera sobre a sensciência dosanimais.Ocorreu-mequeumdosfatosmaisóbviosenegligenciadossobrea felicidade é que todos nós semchens— humanos, felinos, até ratos—somosiguaisemnossodesejodealcançá-la.Secadaumdenóstivessesidoalgum outro tipo de sem chen em uma vida anterior, e pudesse sernovamente no futuro, então a felicidade de todos os seres viventes, sejaqualfosseaespécie,seriaoúnicoobjetivoquevaleriaapena.

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CAPÍTULO8Minha exploração na arte de ronronar havia tomado rumos mais

intrigantes do que eu algum dia poderia imaginar. Mas, querido leitor,apesarda sabedoria que tinha adquiridonasúltimas semanashaviaumaquestãobastantebásicasobreafelicidadequeaindameincomodava:comoé possível eu sair por aí, cuidando da minha própria vida, quando, derepente, sem nenhuma razão, uma sensação de descontentamento seapoderademim?Umamanhãprodutivademeditação,limpezaíntimaeumrecitaldevioloncelo—comonós,gatos,nosreferimosàquelapartemaisíntima da nossa higiene — poderia inexplicavelmente se tornar fria esombria.Ouuma tarde lánoCafé&LivrariadoHimalaia,quecomeçassecomamaravilhosaepromissorachegadadeumpratodetrutasmarinhasescaldadas,derepentepoderiaesboçarumdesfecho letárgicoequeixoso.Nada emespecial precisaria ter acontecidopara causar essamudançadehumor.Seeutivessesidoenxotadadoparapeito,sealgumacriançalevadativessepuxadoomeurabo,ouseeutivessesidoacordadacomumcutucãoparatirarumafotoforçada—éopreçodafama—,minhaimpertinênciaseriaperfeitamentecompreensível.Mas,nãoeraesseocaso.Eaindanãoé.A sabedoria que recebera, sentada no colo do Dalai Lama, tinha me

tornado muito mais consciente do que se passava pela minha mente emuitomenospropensaaessesaltosebaixosinvisíveis.Mesmoassim,nãotinhacomonegarquesentimentosbonsecalorosospoderiamsutilmentedarlugaraumhumormaissombrio.Eentão,emumamanhã,semnenhumesforçodaminhaparte,averdadefoireveladaemtodasuaperfeitaclareza.ComeçouquandoTenzinseaproximoudeondeeuestava,esparramada

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emcimadoarquivodemadeira.—Vocêpodeestarinteressadaemsaber,GSS,quesuapessoafavoritano

mundotodoestáchegandoestamanhã.O Dalai Lama? Pelasminhas contas, ainda faltavam nove dormidas—

semcontarassonecasdegato.— Em duas semanas, Sua Santidade estará de volta entre nós —

continuou Tenzin. — Assim que ele voltar, terá uma agenda bem cheia.Muitosconvidadosparareceber.RazãopelaqualnossachefVIPestávindoparaorganizaroestoque.Elaquer tudonamaisperfeitaordemantesdaSuachegada.A senhora Trinci estava a caminho! A rainha da cozinha de Jokhang e

minhabenfeitoramaisgenerosa!EnquantoTenzinacariciavaminhabochecha,mordisqueiseuindicador,

segurando-oporalgunsinstantes,antesdelamberostraçoscarbólicos.Tenzindeuumarisada.—Ah, Pequena LeoadaNeve, você émuito engraçada.Mas a senhora

Trinci não vai cozinhar nada hoje, então não espere receber nenhumagradonacozinha.Meu olhar azul mais imperioso cruzou com sua expressão de cautela.

Paraumdiplomataexperiente,Tenzin conseguia serbastanteobtuso.Elerealmente acha que a senhora Trinci poderia resistir a mim, aindamaisdepoisdeumaausênciatãogrande?Bastavamosmeusdocesolhosazuis.Talvez uma enroscada de cauda por entre suas pernas. No máximo, ummiado suplicante, e achef VIP de Jokhang estaria esquentando ummimoparaomeudeleite,maisrápidodoquevocêconseguedizer“picadinhodefígadodegalinha”.Com o balanço dos meus passos reconhecidamente irregulares, em

poucotempoestavamedirigindoparaoandarinferior.Cheguei na cozinha e encontrei a senhora Trinci com seu avental de

costume,segurandoumapranchetaeumacaneta,ditandoositensdalista,

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enquanto Lobsang e Serena respondiam da câmara frigorífica e dadespensa,respectivamente:—Dezlitrosdeiogurtegregonatural?—Sim—respondeuLobsang.—Vencemquando?—Finaldomêsquevem.—Todos?Houveumapausa.—Sim.—Ameixassemcaroço?Deveterquatrolatasgrandes.—Sótemtrês—respondeuSerena.— Oh, porca miseria! Que droga! Agora eu me lembro. Uma delas

enferrujou.Tivemosdejogarfora.Percebendoummovimentonocantodoseuolho,elasevirouparame

verchegar,cambaleandoemsuadireção.—DolceMio!—Emum instante, seu tomde voz se alterouparauma

adoração tãoefusivaqueaté euacheidifícil de acreditarqueera a razãodaquilo.—Comoestáminhapequenabella,minhalindinha?—Elamepegouno

colo,meencheudebeijosemecolocouemcimadobalcão.—Sentitantoasuafalta!Vocêsentiusaudadesdemim?Quandopassouosdedoscheiosdeanéisemmeupeloespesso,ronronei

de satisfação. Tive certeza de que aquele foi um prelúdiomaravilhoso efamiliardeumaexperiênciaaindamaisdeliciosa.—Terminamosaqui?—Lobsanggritoudacâmarafrigorífica.—Porora,sim—respondeuasenhoraTrincidistraidamente.—Pausaparaochá!Mergulhandoumadasmãosemsuabolsa,elaretirouumpoteplásticoe

abriuatampa.— Guardei um pouquinho do goulash de ontem à noite para você—

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disse, olhando paramim.— Esquentei antes de vir. Espero que esteja àalturadoseupaladarrefinado.OgoulashhúngarodasenhoraTrinciestavadeliciosamentesuculentoe

omolhotãosublimequefaziaformigaremosmeusbigodes.—Ah, tesorino, meu pequeno tesouro!— ela exclamou, enquanto me

estudava de perto, através de seus olhos cor de âmbar maquiados comrímel.Abaixei-meparadevorarogoulashcomsatisfaçãobarulhenta.—Você é realmente— ela pronunciou sem fôlego— a CriaturaMais

BelaQueJáExistiu.

=Um pouco mais tarde, a senhora Trinci estava sentada com Serena e

Lobsangnosbancosdacozinha,tomandocháebeliscandoaslascasdecocoqueelatrouxera.—Obrigado,senhoraTrinci—disseLobsang,segurandoalascadecoco

que estava comendo, com um largo sorriso. — Que bom que a senhoralembrou.O coco fatiado da senhora Trinci era uma de suas coisas favoritas da

infância.Todosriram.—Comonosvelhostempos—disseSerena.—Ah, sim— a senhora Trinci suspirou alegremente.—Quando foi a

últimavezquenóstrêstrabalhamosjuntosaqui?Fazunsdozeanos?Depoisdeumapausa,Lobsangdisse:—Achoquequatorze.—Quempoderiaimaginarquemeusdoisajudantesdecozinhairiamse

sair tãobemnavida,hein?O tradutordoDalaiLama.Achef europeiadealtonível.Tudomuda.

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—Impermanência—concordouLobsang.—Bem,nemtudomudou—disseSerena.—Estamos todosumpouco

mais velhos; vimos um pouco do mundo. Mas, ainda somos as mesmaspessoas. Principalmente com relação às coisas importantes.— Ela olhouparaLobsang.—Issonãomudou.Lobsangficoupensativoporalgunsinstantes,antesderesponder.—Verdade.Aindaachoqueaslascasdecocodasuamãesãomelhores

quetodososconfeitos.Enquantoriam,elepercebeuumbrilhonosolhosdeSerena.—Porexemplo—disse.—Porexemplo—elarepetiu.—Suponhoqueporissoétãodifícil—suaexpressãotornou-sesériade

repente—mudaradireçãoquenosprogramamosaseguir.—AauradetranquilidadequegeralmenteemanavadeLobsang tinhasidosubstituídapelaincerteza.A senhora Trinci lançou um olhar significativo para Serena. As duas

evidentemente já haviamdiscutido qualquer que fosse o assunto ao qualLobsang se referia. Incapaz de lidar com a sua mudança de humor, asenhoraTrinciselevantoudoseubanquinho,foiatéondeeleestavae,comumchacoalhardepulseiras,oenvolveuemseusbraços.—Claro, esses são temposdifíceisparavocê,meuqueridoLobsang—

eladisse.—Masqueroque saibaque, sejaqual foradecisãoque tomar,terásempreomeuapoio!

=Apenas alguns instantes depois houve uma batida educada à porta, e

então o Lama Tsering entrou. Alto,magro e de expressão extremamenteaustera, Lama Tsering era o disciplinador do Mosteiro de Namgyal— oresponsávelporsupervisionarocomportamentodosmongesnosserviços

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dotemploeenquantoelesestivessemenvolvidoscomoutraspráticas.Assimque o Lama apareceu, Lobsang ficoude pé, largou sua caneca e

juntouasmãosdiantedocoração.LamaTseringfezumareverência.—Bomdiaparavocês.— Bom dia, Lama! — A senhora Trinci parecia perturbada com sua

presença.—Tenzinmedissequeasenhoraestariaaquihoje—disseele,olhando

paraelacomumaexpressãoséria.—Vimpedirumconselho.—Meuconselho?—AsenhoraTrincideuumsorrisonervoso.—Sobrenutrição—elecontinuou.—MammaMia!Penseiquetivessefeitoalgoerrado!LamaTseringinclinouacabeçae,comamaisínfimapitadadehumorno

cantodaboca,perguntou:—Porqueasenhorapensariaisso?AsenhoraTrincibalançouacabeçavigorosamente,antesdepassarpara

eleabandejacomaslascasdecoco.—Comauma—ofereceu.—Chá?LamaTseringestudouabandeja.—Parecemuitobom—ele observou.—Mas, primeiro, preciso saber

umacoisa.Tirandoumpequenocadernodobolsodeseurobe,abriunapáginaem

queestavatomandonotas.— Isso — o Lama consultou suas anotações — é de baixo índice

glicêmico?Ébaixo?—Bembaixo—assegurouela.—Mãe!— Serena a repreendeu, enquanto Lama Tsering pegava uma

fatia.AsenhoraTrinciencolheuosombros:—Tudoérelativo!

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LamaTseringdeuumamordidaparaexperimentar,antesdeobservar:—Talvezmoderadamentebaixo,então?—Paraextremamentealto—sugeriuSerena,antesdetodos, inclusive

LamaTsering,desataremarir.— Por que o interesse em índice glicêmico? — a senhora Trinci

perguntouaoLama,apósummomento.— Como disciplinador domosteiro— ele respondeu—, émeu dever

assegurar que todos os monges estejam praticando bem, exercitando oautocontrolee,acimadetudo,estejamfelizes.—Eledeupalmadinhasemseu coração. — Mas só descobri recentemente como a nutrição éimportanteparaisso.—Umadietabalanceada—comentouSerena.—Glicose,principalmente—LamaTseringdissecomtantaautoridade

queeraevidentequehaviaestudadoa respeito, assimcomo tambémeraevidente para Lama Tsering que nós nunca havíamos sequer pensado arespeitodisso.—Nossosmongesprecisamdeduascoisasparadesfrutararealizaçãoe

o sucesso: inteligência e autocontrole. Dos dois, não existe métodoconhecido para aumentar a inteligência. Mas o autocontrole— força devontade — é diferente. Até mesmo no Ocidente, cientistas estãodescobrindoaimportânciadainteligênciaemocional.Lobsangassentiu.Eleconheciabastanteo trabalhodeDanielGoleman,

que havia passado muito tempo com Sua Santidade e cujos livros sobreinteligênciaemocionaleramconhecidonomundotodo.— O experimento dos marshmallows na Universidade de Stanford—

disseLobsang.— Um preditivo de sucesso extremamente eficaz — confirmou Lama

Tsering. Então, vendo a expressão de perplexidade nos semblantes dasenhoraTrinciedeSerena,elecontinuou:—Nadécadade1960,criançasbem jovens foram uma de cada vez colocadas em um cômodo e

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pesquisadores fizeram um acordo com elas. A cada criança foi dado ummarshmallow e dito que poderiam comê-los logo se quisessem. Mas, seesperassem até que os pesquisadores voltassem, depois de saírem docômodo por um breve período, elas poderiam ganhar mais ummarshmallow.Ospesquisadoresdeixaramo cômodoporquinzeminutos.Algumascriançascomeramodoceimediatamente,outrasforamcapazesdese conter e ganharamdoismarshmallows. As crianças que apresentarammaior autocontrole, tiveram, ao longo da vida, notas mais altas, menosproblemascomálcooledrogasemelhorcondiçãofinanceira.Oscientistasmostraram que autocontrole é um melhor indicador de sucesso que ainteligência.— Ai, ai — murmurou a senhora Trinci. — Eu teria comido o

marshmallownamesmahora!LamaTseringignorouocomentário.—Amesma coisa foi observadapormuitos anos comnossosmonges.

Nemsempreéomaisinteligentequeadquirearealização.Masaquelesqueestãodispostosaseaplicar.—Ecomoaglicoseafetaisso?—perguntouSerena.— Aprendi recentemente que um dos principais fatores que afetam a

forçadevontadeéaquantidadedeaçúcarquetemosemnossoorganismo— Lama Tsering disse.— Baixos níveis de glicose acarretam uma baixaautorregulamentação,menos habilidade de controlar os pensamentos, asemoções,osimpulsoseocomportamento.Aopassarlongosperíodossemcomer, a maioria das pessoas fica estressada e não consegue pensarclaramente.— Sim, já ouvi falar sobre isso — Lobsang disse, animado com a

lembrança.—Um estudo sobre a concessão da liberdade condicional dealgunsprisioneiros.AsenhoraTrincieSerenaolharamparaelecominteresse.—No final—Lobsang contou—, não tinha nada a ver como tipo de

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crimeque eles haviam cometido, com seu comportamentona cadeia, suaraça, ou qualquer outra variável de que possamos suspeitar. Tinha a vercomahoradodiaemqueelesapareciamdiantedoconselhodeliberdadecondicionaledocansaçooudafomequeosmembrosdoconselhosentiam.Quanto mais perto do café da manhã ou do almoço, era maior aprobabilidadedeosprisioneirosconseguiremaliberdadecondicional.Masàmedidaemqueamanhãouatardepassava,eosmembrosdoconselhoiam ficandomais cansados ou commais fome ficavammais propensos anegarodireitoaosprisioneiros.—Esteexemploémuitobom—LamaTseringdisse,tomandonota.—E

acho que todos nós já o vivenciamos. Quando estamos cansados, ou comfome,tudosetransformaemumesforçoenorme.—Queéexatamentearazãopelaqualestamosapreciandoessaslascas

decoco.—AsenhoraTrincientrounaconversa.—Etambémporqueeusempre faço questão de que a Pequena Leoa da Neve de Sua Santidadenuncasofrade...—elaparou,àprocuradotermocerto.—Fadigadadecisão?—sugeriuLobsang.Contantoqueminhabarrigaestivessecheiadegoulash,elepoderiafazer

quantas piadas quisesse ao meu respeito, pensei, lambendo os últimosvestígiosdoricomolhonatigela.—Então,senhoraTrinci—LamaTseringdisse,balançandoumfeixede

folhasnamãodireita.—Tenhoaquicomigoomenuoficialdascozinhasdomosteiro.Gostariadoseuconselhoparamelhorá-lo.—Parafazeracomidacombaixoíndiceglicêmico?—elaperguntou.—Exatamente.—Precisamosdarprioridadeaosalimentosdecozimentolento—disse

ela,estendendoamãoparapegarospapéis.—Grãos, legumes,verduras,frutasfrescas,queijo,óleoeoutrasgordurasboas.Alimentosquelevamaum melhor equilíbrio do açúcar no sangue. — Examinando a lista, elacomeçouabalançaracabeça.—Arrozbranco?Pãobranco?Tododia?Não,

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não,issoédemais!LamaTseringaobservavacomardeaprovaçãoenquantoexaminavaa

lista.— Será interessante observar a diferença que algumas mudanças

simplesnacozinhapodemfazer.

=Novos itensnomenudoCafé&LivrariadoHimalaia tambémestavam

sendoentusiasticamentediscutidos.SobretudoanovaoportunidadequeseapresentavadesdeobanqueteindianoinauguraldeSerena.Com a proximidade da data do segundo banquete, o fluxo de reservas

era constante, de moradores locais que haviam participado do primeirobanquete a amigos que ouviram seus elogios, e tambémdos gerentes dehotéis cujos hóspedes poderiam ter a garantia de uma noitememorável.Sem a necessidade de nada mais que um cartaz na janela, uma semanaantes do segundo banquete indiano as reservas já haviam se esgotado.Além disso, alguns dos que haviam participado do primeiro banquetepediram para Serena, como favor especial, a receita de seus pratosfavoritos.Paraalguns,haviasidoaspakorasdelegumes.Paraoutros,peixede Malabar ao curry. Sempre generosa, Serena doou alegremente asreceitasqueelaeosirmãosDragpahaviampassadotantotemporefinando,ajustandoeaperfeiçoando.Masnãoadiantou.HelenCartwright,amigadeescoladeSerena,foiaprimeiraareclamar.

Ela e Serena estavam tomando um cappuccino no meio de uma manhã,maisoumenosumasemanaapósSerenaterdadoaelaareceitadefrangocom manga. Da estante de revistas, escutei Helen dizendo que tinhadecidido prepará-la como um presente especial para a família, só queacabousendoumaimitaçãosemgraçadotriunfogastronômicodeSerena.

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Seráqueelahaviaseguidoasinstruçõespassoapasso,quissaberumaSerena confusa. O frango tinha sido marinado? E por quanto tempo?Somente após algumas conversas identificou o verdadeiro motivo dodescontentamentodeHelen.Aquela conversa foi seguida de uma outramuito parecida alguns dias

depois. Merrilee, da aula de ioga, havia tentado preparar a receita deSerenaderoganjosh10comresultadosigualmenteinsossos.Nessa ocasião, Serena foi diretamente ao âmago da questão. Merrilee

incluíra todas as especiarias da lista? Be-e-em, a maioria deles, Merrileedisse a ela. Em alguns casos, quando não tinha a especiaria correta —afinal,haviatantas—Merrileetentaraumsubstituto.Seráqueasespeciariasestavamfrescas,Serenaquissaber.Merrilee foi forçada a confessar que pelo menos uma das especiarias

estavaemsuaprateleiradetemperosháquasedezanos.Talvezmais.Depois de Serena apontar a razão óbvia do seu insucesso culinário,

Merrileepareceuenvergonhadaporummomento, antesdepropor—sóumpoucodebrincadeira—queSerenadesseaelanãosóa receita,mastambém amistura correta de ingredientes frescos. Dessa forma ela seriaumsucessogarantidonacozinha.Uma pessoamenos compassiva poderia ter ignorado esse pedido sem

pensarduasvezes.Mas,ao lembrardodesapontamentodesuasamigasedaimprobabilidadedeteremfácilacessoàvariedadedeespeciariasfrescasde qualidade que elamantinha na despensa, Serena decidiu ceder. A seupedido,osirmãosDragpafizeramsachêscomumamisturadeespeciariasparaasreceitasdefrangocommangaederoganjosh.SerenadeuumparaHeleneoutroparaMerrilee.Ela não precisou esperar muito pela resposta. Dentro de poucos dias,

elasretornaramextasiadascomasdeliciosasrefeiçõeseoselogiosdesuasfamílias e amigos. Ambas também confessaram a sensação indigna dolouvorquetiveram.Helenresumiuassim:

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—Naverdade,eunãofiznada.Qualquerumconseguesalpicartemperosemumpedaçodefrangoparacolocá-lonagrelhameiahoradepois.Sãoasespeciariasquefazemoprato.FoiMerrileequemsugeriuumângulomaiscomercial.— Por que você não vende asmisturas de tempero?—propôs.— Eu

seriasuaprimeiracliente.Serena acatou sua sugestão, combinando sachês de especiarias com

arrozegrãos,paraqueaúnicacoisaacomprarfosseolegumefresco,ouacarne. Usando seu computador, Sam criou e imprimiu a receita em umpapelcordeâmbarcomologodoCafé&LivrariadoHimalaia.Empoucotempo,ossachêsdeespeciariasestavamvoandoportaafora

para os amigos de Serena, os clientes assíduos do Café e os alunos doestúdiodeIoga.Quandoanotíciaseespalhou,apequenavitrinetevedesersubstituídapor outramaior.Nodia seguinte emque Samavisou a todospresentesnoprimeirobanqueteindianosobreossachêsdeespeciarias,ospedidoschegaramaultrapassaroestoqueemdezvezes.Haviaatépedidosdelonge,comodeSeul,Cracóvia,MiamiePraga,deviajantesquecomeramnoCafédurantesuasvisitasaDharamsala.Aspessoasestavamdispostasapagarpela conveniênciadepoder fazeruma refeição surpreendente compoucoesforçoetempodepreparo.

=Depois da primeira onda de entusiasmo, o interesse nos sachês de

especiarias não mostrava sinais de que iria diminuir. Os resultadosdeliciososqueproporcionavamgarantiamqueaspessoascomprassemumsachêdepoisdooutro.Váriosaté.Detodosossabores.Longedeserapenasumamodapassageira,ossachêsdeespeciariascresceramempopularidadenamedida em que, a cada semana, novos clientes apareciam no Café ouatravésdenovospedidosonline.

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=Foiemumdostradicionaisrituaisdechocolatequentedofimdodiaque

Samfezsuaextraordináriarevelação:—ComoestãoindoascoisascomBhadrak?—Sobrinhoadolescentedos

chefs,Bhadrakforacontratadoparatrabalharmeioexpedientecomoúnicoobjetivodeconfeccionarossachês, sobosvigilantesolharesdeseus tios,quandoatarefaficouextensademaisparaqueosdoispudessemdarcontadela.—Parecequeestáindobem—disseSerena.—Eleélento,muitolento,

masmeticuloso.Prefiroassimaocontrário.—Controledequalidade—concordouSam.—Seus tios colocaramo temordosdeusesnele sobreesseassunto—

disseSerena.—Qualdeus,especificamente?—Samperguntou.—Todos!—exclamouSerena, rindo. Embora tenha crescidona Índia,

elaaindaachavaavariedadededivindadesbastantedesconcertante.—Estavamedivertindocomumaplanilha...—Samapontouparaumas

folhasemcimadamesaentreeles.—Essafraseétãovocê!—Sério!Achoqueatévocê vai achar interessante—protestouele.—

Durante a última semana, descobri uma nova tendência de sachês deespeciarias.Fazendoumaretrospectiva,suponhoqueissofosseprevisível,masmesurpreendeu.Serenaergueuassobrancelhas.—Clientesporreferência.Enãoestoufalandosódosmoradoreslocais.

Nós temosatendidopedidosdeamigosdaspessoasquevisitaramoCafé.Umdos casoséumadelicatessenemPortland,noestadodoOregon,queencomendouvintesachêsdetodosostipos.—Bhadrakvaificarmuitoocupado—disseSerena.

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SampercebeuqueSerenaaindanãoviaoqueestavatãoclaroparaele.—Achoquepodeirmaislongequeisso.Todoesseinteressedepoisde

umsimplesbanquete indiano,esempromoçãoonline.Nósnemtemosossachêsdeespeciariasentreosprodutoslistadosemnossosite.—Provavelmenteésófogodepalha—disseSerena,dandodeombros.

—Emalgunsmesesanovidadevaipassareaí…— Ou pode acontecer o contrário. — O novo, ousado Sam não tinha

dificuldadesemverbalizarumcontra-argumento.—Osegundobanquetepoderiaaproveitaro impulsodoprimeiro.Vocêpoderia incluirumsachêdeespeciariasparacadaprato,oprimeiroédegraça.Maispessoasaindairiamexperimentarecomprar.—Pegandoospapéisdecimadamesa,eletirou uma folha de projeções e a entregou para Serena. — Veja o queacontece se as vendas seguirem omesmo padrão de depois do primeirobanquete.—Oqueé istoaquiàesquerda?—Serenaperguntou,apontandopara

umdosgráficos.—Vendasemdólaresamericanos.Serenapareceusurpresa—Eovermelho?—Elaindicouumalinhaquesubiabruscamente.—Issoébaseadoemumaprojeçãoconservadoradoqueiráacontecerse

nóspromovermosossachêsparatodasaspessoasnobancodedados.—Incrível!—OsolhosdeSerenasearregalaram.— Ainda nem fiz a fatoração em outras coisas que podem acontecer.

Tipo, se você fosse fazer alguma propaganda. Promoção online. TalvezrepetiropedidodaquelalojaemPortland,ououtrasiguais.Serenaendireitou-senosofá.—Essesnúmeros…Elabalançavaacabeçacomespanto.—Agoravocêconsegueentenderporqueeudissequeeradivertido?—

brincouSam.

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Serenaassentiu,sorrindo.—Maisquedivertido—eleemendou.—Ograndelancedissoéquenos

levaamultiplicarosnegócios.Os turistasvêmvisitaroCaféduasou trêsvezes,nomáximo.Elespodemcompraruns livrosouunspresentes,esó.Masoquevocêcrioudáaelesaoportunidadede,literalmente,sentiremosabordesuasfériasrepetidamente.—Mantémorelacionamentoemdia—acrescentouSerena.—Exatamente!—Os olhos de Sambrilhavam.—Emais do que isso.

Olhasóosnúmeros.—Estouvendo.Comessevolumetodo,precisaríamosdemuitomaisque

umBhadraktrabalhandomeioexpedienteealgumasvisitasaomercado.Euprecisaria encontrar uma fonte para garantir o nosso suprimento deespeciarias.—Problemasquevaleapenaresolver—disseSam,apressando-apara

quevirasseaúltimapágina,quemostravaa receitadoCaféeda livraria,maisareceitaprojetadadossachêsdeespeciarias.—Olhaaúltimalinha.—Uau!—Elaolhouosnúmeros.Depoisdeumapausa,Samdisse:—Éumoutrotipodenegócio,Serena.Ambos estudaram os números por um longo tempo, Serena brilhava

diantedaspossibilidades.Então,suaexpressãosetornouséria.—Francdissealgumacoisasobreacontabilidade?—elaperguntou.Aperguntatinhamaissignificadodoqueparecia.PorcausadetudoqueFrancestavapassandoporcontadamortedeseu

pai, Serena e Sam decidiram não fazer muito alarde sobre o primeirobanqueteindiano.Maselesmostraramareceitadobanquetecomosefosseum itemseparadonas contasquemandavamparaFranc todomês, juntocomumabreveexplicaçãodecadaum.A linhaseparadaparaobanquetemostrava um registro de retirada alta em uma noite em que o Cafégeralmenteestavafechado.Entãoelesperguntaramparaele:Gostou?

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VendoaexpressãodeSerena,Samnegoucomacabeça.—Atésabermos…Samjuntouospapéiseoscolocouemumapilhasobreamesa.—Achoquesim—disseele.Por algum tempo, os dois permaneceram sentados, acariciando seus

amigos semchen, os cachorros, que rolavam suas cabeças nas almofadascomprazer,eeu,quedemonstravameucontentamentocomumronronarsuave.— Falando em comida— Serena refletiu depois de algum tempo—,

escuteicoisasinteressanteshojesobrenutriçãoeautocontrole.EladescreveuavisitadodisciplinadordoMosteirodeNamgyal.—Eumeperguntosetambéméassimcomessespequeninos—disse,

olhandoparamimeparaoscachorros.—Achoqueanutriçãopodeterumefeitosobreoquesentememummomentoespecíficododia.Sam olhou para cima momentaneamente, procurando algo em sua

memóriaenciclopédica.—Eume lembrodeter lidoemalgumlugarqueadieta idealparaum

gatoadultoédequatorzeporçõesdotamanhodeumcamundongopordia.—Quatorze?!—exclamouSerena.Samencolheuosombros.— Se você tirar ossos e pelo, um camundongo médio não é muito

calórico.—Achoquenão—Serenaponderou.— Provavelmente há paralelos com a nutrição humana. Todos os

animaisprecisamdoequilíbriocertodeágua,proteínasevitaminas.— Incrível pensar em como o que comemos afeta o nosso humor—

Serenarefletiu.—Afelicidadeéumareaçãoquímica—disseSam.Serenapareceuduvidar.—Talveznãoexclusivamente.Masaquímicatemdeestarlá.

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—Éumfator.—Umfatorimportante—elacompletou.—Ah,pequenaRinpoche—disse ela, inclinando-separa a frentepara

beijarminhacabeçaefusivamente—,sóesperoquevocêsejaumapequenaLeoadaNevequimicamentecontente!“Sim”,pensei.Depoisdeumaporçãodotamanhodeumcamundongode

leitezerolactose,comcertezaera.E,juntocomasapetitosasrefeiçõesquehavia comido— o deliciosogoulash da senhora Trinci foi, sem dúvida oponto alto—, eu também tinha chegado a uma conclusão surpreendentesobre a felicidade, conclusão que poderia ter permanecido um mistérioprofundo.Descobria razãopelaqualeupoderiamesentir,de repente, irritadae

entediada em uma manhã absolutamente maravilhosa. A razão, queridoleitor,éacomida.Paraoshumanos,umadietabaixaemglicosepareceseramelhor maneira de afastar os sentimentos de tédio e tristeza, e apossibilidadedetersua liberdadecondicionalnegada.Paranós, felinos,oquepoderiaconsertaromundodemodomaisconfiávelqueumlanchinhodotamanhodeumcamundongo?

=Passaram-sedoisdiasatéqueSamintimasseSerenaairatélivraria.Ao

se aproximar, ela percebeu sua expressão sombria, sentado em frente aocomputador.— Acabei de ter notícias do Franc sobre a contabilidade— ele disse.

Serena nem precisou olhar para a tela do computador para saber oresultado.Mas,quandoolhou,viuarespostadeFrancparaaperguntaqueeles fizeram, “Gostou?”. No final da página, em letras garrafais, ele haviaescrito,EUNÃOGOSTEI!Atésublinhouaspalavrasparadarmaisênfase.Sambalançavaacabeça.

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—Eusimplesmentenãoentendo.— Não estou inteiramente surpresa — disse Serena, afastando-se do

computador.—AvisãodeFranc em relação aoCafé sempre foi a deumoásisocidental,umenclaveretiradodomundoláfora.—Mesmoquandonossosclientesestãomostrandoestarsatisfeitos?Serenaencolheuosombros,masnãohaviadúvidasdadecepçãoemseu

rosto. Toda aquela ideia de um futuro banquete indiano, os sachês deespeciarias e as promoções online desapareceu no mesmo instante. Edepois,veioasensaçãodemaupresságiosobreoqueestariaporacontecercomoCafé&LivrariadoHimalaia:navegávamosemmaresdesconhecidos.

10Cordeirocomiogurte.(N.T.)

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CAPÍTULO9Nãodevehavermuitascoisasmaisdesagradáveisdoquedescobrirum

homemcomcarademacacotomandoolugardeumamigoquerido.Bem,talvezhajaumaouduascoisas,comoserperseguidaatéummuro

altopordoislabradoresbabões,oudescobrirquevocêjáfoiumcachorroem uma vida passada. Ainda assim, você pode entender a minhaconsternação na manhã em que entrei furtivamente no escritório dosassistentesexecutivos,cercadeumasemanaantesdachegadaprevistadoDalai Lama, e, emvezde encontrar amesa oposta à deTenzin vazia, elaestavaocupadaporumpequenoeretorcidomonge.Fiqueitãochocadaquequando vi seu rosto enrugado quase caí para trás. Ele tinha uma bocamiúda,dentesde coelhoe simplesmentenão tinhaqueixo. Suaexpressãopareciaserumaeternacareta.Considerei se aquilo realmente estava acontecendo, ou se eu estava

tendo um daqueles sonhos malucos e intermitentes da madrugada. Masnão, todo o resto parecia estar como devia. Tenzin estava sentadotranquilamente, escrevendo uma carta para o presidente da França. Dooutroladodopátio,ouvia-seosomdosmongesentoandoseuscânticos.Ocheiro do incensoNagChampa misturado com o de cafémoído flutuavapelo corredor. Era só mais um dia no escritório — exceto por aquelaapariçãoestranha.Tenzinmecumprimentoucomsuaformalidadedesempre:—Bomdia,GSS.Deialgunspassosemsuadireçãoedepoisolheiporcimadoombro.— A gata do Dalai Lama— ele explicou para o outro homem.— Ela

gostadeficaremcimadomóveldoarquivo.

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Omongegrunhiuumreconhecimento,dandoomaisbrevedosolharesemminhadireçãoecontinuouatrabalharnocomputadordeChogyal.Querido leitor, estou acostumada amuitas reações diferentes àminha

aparência, desde serperseguidapelos cãesdo reinodos infernos, até serreverenciadapelosmongesdeNamgyal.Umacoisacomaqualeunãoestouacostumada é a simplesmente ser ignorada. Agachando-me por uminstante,lancei-menoarparaaterrissarcomumbaqueinstávelnamesadeChogyal.“Bem,”pensei,“oVenerávelCaradeMacaconãovaiconseguirmeignoraragora.”Mas ele conseguiu! Houve um momento de incerteza inicial, quando

olhoupara aminha forma suntuosamentemacia e—para amaioriadaspessoas— irresistível, empoleirada em um texto antigo. Então, virou-seabruptamentedevoltaparaoseucomputadorcomose,aofingirqueaquilonãoestavaacontecendo,pudessefazercomquedesaparecesse.Eu estava atraindomuitomais a atenção de Tenzin, que seguia meus

movimentos com sua inescrutabilidade diplomática usual. Mas eu oconhecia bem o suficiente para perceber que muita coisa estavaacontecendo por trás daquela sua cara de paisagem. Se eu não estivesseenganada, ele pareceu achar minha aparição fora de hora bastantedivertida.Depois de longos minutos durante os quais o monge continuou a me

ignorar, seus olhos colados na tela do computador como se sua vidadependesse daquilo, percebi que não ganharia nada sentada ali em suamesa.Então,troteiparacimadamesadeTenzin,tendocuidadoparadeixaramarcadaminhapatanoelegantepapeltimbradodoPaláciodoEliseuqueestavaemcimadamesa,antesderoçarminhacaudapeludapeloseupulso.Eraomeujeitodedizer:—Vamos,vamos,queridoTenzin,nósdoissabemosquetemalgumacoisaerradaporaqui.Então,subinoarquivoatrásdelee,depoisdeuma lavagemsuperficial,acomodei-meparaaminhasonecadamanhã.

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Mas o sono não vinha. Enquanto ficava ali como uma esfinge, patasdevidamentedobradassobocorpo,eolhavaemvoltapeloescritório,meuspensamentos se voltavam para o Cara de Macaco. Parecia que estavatrabalhandosobasupervisãodeTenzin.Masporquantotempo?Seráqueiriaemboranofimdamanhã?Dodia?

Foiquandoumnovopensamentomealarmou: e se ele estivesse ali paraficar no lugar de Chogyal? Será que sua nomeação era para horáriointegral? Só a ideia já parecia um horror! Lá estava ele, sentado, umapequenanuvemdeintensidaderuminante—emnadaseparecendocomorechonchudo e benevolenteChogyal, de coração caloroso. Se oVenerávelCara deMacaco fosse virar parte damobília, o escritório dos assistentesnãoseriamaisum lugarondeeu iriaquererpassaromeu tempo.Deumsantuário aconchegante, convenientemente perto da suíte que eucompartilhava com Sua Santidade, aquela sala se tornaria um lugarproibido, a ser meticulosamente evitado. Que terrível reviravolta deacontecimentos! Onde passaria o meu tempo enquanto o Dalai Lamaestivessefora?Comoissopoderiaestaracontecendocomigo,aGSS?OmongeaindaestavaláquandosaíparaoalmoçonoCafé&Livrariado

Himalaia,mas, felizmente,havia idoemboraquandovoltei.Estavaparadanaporta,olhandoparaondeTenzinseocupavaarquivandoalgunspapéis,quando Lobsang chegou. Depois de se inclinar para me acariciar váriasvezes, ele entrou no escritório, colocou as mãos atrás das costas, e seapoiounaparede.— Então, como foi com o primeiro da sua curta lista?—perguntou a

Tenzin,lançandoumolharparaondeomongehaviapassadoodiasentado.—Eleémuitodiligente.Inteligênciaafiada.—Aham.—Fazotrabalhoassim—disseTenzin,estalandoosdedos.Estava acompanhando a conversa de perto, olhandopara ume para o

outro.

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—Altamenteconceituadopelosabadesdosnossosprincipaismosteiros—disseLobsang.Tenzinassentiu.—Importante.—Decisivo.HouveumapausaantesdeLobsangsugerir:—Estousentindoummas…Tenzinretribuiuoolhar.— Se ele tivesse de lidar somente com os abades, era uma coisa.Mas

quem quer que assuma o cargo, terá de interagir com uma grandevariedadedepessoas—olhandoparamim,elerapidamentesecorrigiu—,oudeseres.Lobsangseguiu seuolhar. Incapazde se conter, aproximou-sedemim,

mepegounocoloemesegurouemseusbraços.—Faltaumpoucodehabilidadeinterpessoal,não?— Muito tímido — Tenzin. — Ele é bom nos assuntos referentes às

escrituras.Sente-semuitoconfortávelnessaárea.Masosmaioresdesafiosdafunçãosãosempreosproblemascomaspessoas.—Resoluçãodeconflitos.—Oferecerajudaaquemprecisa.—Exatamente.AlgoqueChogyalfaziamuitobem.Eletinhaumjeitode

fazer as pessoas acreditarem que as suas ideias eram delas, e de apelarparaascausasmaisnobres.—Umtalentoraro.Tenzinassentiu.—Alguémdifícildesuceder.Lobsangestavamassageandoaminhatestacomapontadeseusdedos,

exatamentecomoeugostava.—EntendiqueelenãoagradouàGSS?—Parecianãosabercomoreagir.Eracomoseelativessevindodeum

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outroplaneta.Lobsangdeuumsorriso.—Então,oqueelefez?—Simplesmenteaignorou.— Ignorou? Como pôde fazer isso com você? — Lobsang olhou para

baixo,bemdentrodosmeusolhosazuis.—Elenãopercebeuqueévocêquemtomaadecisãofinal?— Exatamente. Entender quem realmente dá as ordens é uma outra

exigênciadocargo.—Eaautoridadenemsemprevemdeondevocêimagina,nãoé,GSS?

=Dois dias depois, entrei no escritório para encontrar a cadeira de

Chogyalocupadaporummongeenorme,comumacabeçagigantesca,eosbraçosmaislongosqueeujávira.—Ah,sim.Equeméessa?—AntesquealguémpudessedizerOmmani

padmehum, omonge jáhaviameagarradopelo cangote eme levantado,deixando que eu ficasse suspensa no ar, me estrangulando lentamente,comoseeufosseumaintrusacaradepau.—Esta—Tenzinexplicourapidamente—éAGatadeSuaSantidade,a

GSS.Elagostadeficarnomóveldoarquivo.—Entendi.—Ogiganteficouempé,agarrou-mecomaoutramãoeme

levouparaoarquivo,ondemejogoucomumsolavancotãofortequesentiumadorsacudirmeusquadrismacios.— Ela é uma beleza, não é? — observou, enquanto me esmagava ao

corrersuamãopelaminhaespinha.Mieiqueixosamente.—Elaémuitodelicada—observouTenzin.—Emuitoamada.Enquanto omonge retornava para sua cadeira, trêmula, inspecionei o

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escritório. Nunca havia sido tratada de maneira tão rude em Jokhang.Nuncafuiagarradapelopescoçodeummodotãodescuidadoeobservadacomosefossealgumtipodeexposiçãozoológica.Pelaprimeiraveznavida,sentimedodeestarali.Omonstronemsabiaaforçaquetinha.Seiquenãoteve a intenção de me machucar. Quando me colocou no arquivo,provavelmente pensou que estivesse me poupando o esforço de ter depularnele sozinha.Mas tudooque conseguiapensar agoraera emcomoescapardoescritóriooquantoantes,semqueelemetocassenovamente.Fiquei ali sentada, esperando ansiosamente pelo meu momento.

Enquanto Tenzin trabalhava nas recomendações da proposta da CruzVermelha, na mesa em frente à sua, o Estrangulador de Gatos era umturbilhão de atividade. Elaborando e-mails, lendo documentos,grampeandonelesseusfichamentos—tudocommuitaenergia.Fechavaasgavetas com força, socava o telefone de volta no gancho. Até o ar doescritórioestavaematividade.Acertaaltura,quandoTenzinfezumapiadae o grandemonstro riu, de sua barriga saíram grandes rajadas de ventohilariantequefizeramochãodoescritórioreverberar.Quandoanunciouque iria tomarumaxícaradecaféeseofereceupara

trazerumaparaTenzin,descidoarquivosorrateiramenteefugi.Enquantocorria para o Café & Livraria do Himalaia, muito mais cedo do que decostume,mepegueipensandoemcomo,nacomparação,oVenerávelCarade Macaco era infinitamente preferível. Ele havia ferido os meussentimentosaomeignorar,maspercebiqueaquiloeraumproblemadele,nãomeu.Poroutrolado,ogigantedorobevermelhoeraumaameaçafísica.SeelefosseescolhidocomoosucessordeChogyal,muitodaminhavidaemJokhangseresumiriaàtentativadeevitá-lo.Equetipodevidaseriaessa?Chiando, desci a rua emdireção aos arredores reconfortantes doCafé.

Com o fluxo constante de clientes do restaurante e da livraria, haviasempremuitomovimento,maseumesentiaseguraali.Certamentenunca

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haviasidomaltratadaporumgigantederobevermelhooualgoparecido.Somentequandoestavanomeiodocaminhodomeulugarhabitual,na

últimaprateleiradaestantederevistas,équemedeicontaquehaviaalgodiferente acontecendo no canto da livraria, onde geralmente nosreuníamosparaosnossostradicionaismimosdofimdodia.Serena e Sam estavam em pé, a uma pequena distância um do outro,

sussurrandodemodourgenteeconfidencial.—Q-q-quemdisse?—Samestavaperguntando.— A amiga de Helen Cartwright conhece sua irmã, Beryle, em São

Francisco.—Equando?— Em breve, muito em breve. — Os olhos de Serena estavam

arregalados.—Tipo,naspróximasduassemanas.Sambalançouacabeça.—Issonãopodeestarcerto.—Porquenão?—Eleterianosdito.Mandadoume-mail,algumacoisa.—Elenãotemessaobrigação.—Serenamordeuolábio.—Podevoltar

quandoquiser.Durantealgumtempo,osdoisolharamparaochão.Finalmente,Serena

disse:—Issomeioquefazagentepensarmelhorsobreolancedossachêsde

especiarias. Não interessa o que o Franc acha se eu nem estivertrabalhandoaqui.—Vocêaindan-n-nãosabe.—AautoridadedeSamoabandonara.—Esse foi o trato. Sou apenas uma gerente. Um tapa-buraco. Quando

fizemosoacordo,euplanejavavoltarparaaEuropa.—Porquenãoligamosparaele?Elabalançouacabeça.—Éumdireitodele,Sam.Onegócioédele.Achoqueissoiriaacontecer.

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—Talvezpudéssemosperguntarporaí.Podeserapenasboato.Quandoaconversadelesterminou,continueinaprateleira,acomodada

naposturadecroissant.Emboranãoestivessealihámuitotempo,Serenahaviatrazidoumcalor

eumavibraçãoparaoCaféqueotornavaaindamaisespecial.Ofatodequepoderiairemboraeraalgoqueeunãoqueriacontemplar,aindamaiscomtudooqueestavaacontecendoláemcimadacolina.

=No dia seguinte, eu estava novamente cedo no Café, após ter saído de

fininho de Jokhang, caso o Estrangulador de Gatos retornasse. QuandoSerenachegouparacomeçaratrabalhar,pudeverqueasnotíciasnãoeramboas.ElaseaproximoudeSam,quecolocavanaprateleiraumaremessadelivrosrecém-chegada,edisseaeleoquetinhaacontecidonaauladeiogananoiteanterior.Seu colega de prática, Reg Goel, um dos agentes imobiliários mais

conhecidos de McLeod Ganj, estava tomando conta da casa de Francenquanto ele estava fora. Ao guardarem seus materiais depois da aula,SerenaperguntouaRegsetinhanotíciasdeFranc.Ah, sim, ele respondera, despreocupadamente. Estivera em sua casa

naquelamanhãparainspecionaralimpezadasmobílias,avoltadasplantasaos seus lugares e o reabastecimento da despensa e da geladeira. Franchavia ligadopara elena semanaanterior e estavaparavoltar aqualquermomento.Serenahavia ficado tão chocadaquemal sabiaoquedizer.Nãosentiu

vontadedeficarparaasessãodechádepoisdaprática.ComoSidestavanocorredor namesma hora, vendo a expressão em seu rosto, perguntou sehaviaalgumacoisaerrada.Para seu constrangimento, Serena começou a chorar. Sid a protegeu

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discretamenteantesquemaisalguémavisse,acompanhando-adevoltaaoCafé.SerenalheexplicouqueotratoquehaviafeitocomFranceraapenastemporárioequesuavoltasignificariaaperdadeseuemprego.

=Na manhã seguinte, pouco depois das dez, Sid chegou ao Café. A

princípionãooreconheci,poissóotinhavistocomsuasroupasdeioga.Empé no vão da porta de entrada, alto e elegante em seu terno escuro,emanavacertoardeequilíbrioquasemajestoso.Serenaseaproximou,surpresaefelizcomsuapresença.—Naverdade,euvimvervocê—Sidexplicou,enquantoalevavaparaa

partede trásdorestaurante,pertodacadeiraprediletadeGordonFinlayemtemposidos.Eraolugarperfeitoparaumaconversaparticular.— Desculpe-me por ter feito papel de idiota ontem à noite — disse

Serena,depoisquejáestavamsentadosehaviampedidooscafésaKusali.—Não fale assim—Siddisse,num tomprotetor.—Qualquerumem

seu lugar teria se sentido da mesma maneira. — Olhou para elaatentamente durante algum tempo, os olhos cheios de preocupação. —Estive pensando em sua situação. Se o pior acontecer, e você ficar sememprego,aindairiaquererficaremMcLeodGanj,certo?Elaassentiu.—Masissopodenãoserpossível,Sid.Euprecisodeumemprego,enão

qualquer emprego. Eu costumava pensar que trabalhar nos melhoresrestaurantes da Europa era tudo o que sempre quis. Mas, conforme otempo foi passando, mais entendi que aquilo não iria me completar.Aprendioutrascoisasquemerecompensaramdeformasmaisimportantes.—Comooscurrieseossachêsdeespeciarias?Eladeudeombros.—Tudomuitohipotéticoagora,não?

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Eleseinclinouparaafrente.—Ounão…Serenapareceuconfusa.—Eumelembrodevocêcontandonogrupodeiogacomoossachêsde

especiarias estavam fazendo sucesso — ele disse. — Você até teve decontrataroutrofuncionáriosóparaseencarregardospedidos.—Eleestáaqui—eladisse,inclinandoacabeçaemdireçãoàcozinha.—

Ontemànoiterecebemosumpedidodeduzentossachês.—Exatamenteoqueestoudizendo.— Mas se eu não estiver trabalhando aqui… — Ela parou de falar,

tentandoentenderondeSidqueriachegar.—VocêtambémdissequeoFrancnãoquercontinuarcomoscurriese

essascoisas.Serenaassentiu.—Oqueestoupensando—disseSid—équeseelevoltarcomogerente

emantiverseumenudesempre,nãohaveriaconflitodeinteressesevocêcontinuasseafazerossachêsdeespeciarias.Seusolhossearregalaram.—Masonde?—Hámuitasinstalaçõesdisponíveisporaqui.—Nãosei,Sid.Dojeitoqueestá,jáestamoscomeçandoaterproblemas

comoabastecimento.—Dasespeciarias?—OsmercadosdeDharamsalaresolvemoproblemaparaquantidades

médias.Mas precisamos garantir a continuidade de grandes quantidadesdeespeciariasdamelhorqualidade.— Isso — disse Sid enfaticamente — é algo que você pode resolver

facilmente.—Como?—Atravésdomeunegócio.Temosacessoaprodutoresdetodaaregião.

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—Pensei que você trabalhasse comTI—disse Serena, cada vezmaisperplexa.Eleconcordou.—Dentreoutrascoisas.Questõescomoocomérciojustodeespeciarias

orgânicas são muito importantes para nossa comunidade, e muitoimportantesparamim.DuranteasconversasdepoisdapráticadeioganavarandadeLudo,Sid

geralmentesereferiaànossacomunidade.Eraumacoisaque,comoSerenacomeçou a perceber, resultava de uma preocupação pessoalprofundamente enraizada.Mas amenção da palavra orgânica fez Serenaficaremalerta.—Eopreço?—Nóscompraríamossemintermediários.Ocustoprovavelmenteseria

menordoquevocêestápagandonomercado.Eledissenós,elareparou,enquantosorviaseucafé.Serenacolocousua

xícaraesuasmãossobreamesa.—Mesmoseeufossemontar,sabe,umnegócioseparado,ossachêssó

deslancharamporcausadoCafé&LivrariadoHimalaia.Sid sorriu, seus olhos brilhando com carinho. Ele estendeu a mão,

colocando-asobreasmãosdeSerenaporummomento.—Serena,oCafé&LivrariadoHimalaiafoiomotivopeloqualvocêteve

asua ideia.Masummodelodenegóciodesucessonãodependedele.Sãoduascoisascompletamenteseparadas.Enquanto Serena olhava para ele, percebeu que o que dissera era

verdade. Claro que o motivo pelo qual as pessoas continuavam fazendonovospedidosdesachêsnãoeraporcausadoCafé&LivrariadoHimalaia,mas sim por causa do gosto, da conveniência e do preço. Porém, omaisimportantepara elanaquelemomentoeraoporquê de Sid estar dizendoisso.Tinha,evidentemente,pensandomuitoarespeitodelaedosdesafiosqueenfrentava—muitomaisdoqueelaprópriahaviapensado.

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Aoconsiderarisso,outrascoisascomeçaramapipocaremsuacabeça.Omodo como Sid geralmente se sentava ao seu ladona varandadepois dapráticade ioga, omodo comohavia ficado feliz quandoela anunciou suaintençãodepermaneceremMcLeodGanjemvezdevoltarparaaEuropa,dasuapreocupaçãoquandomencionouqueFrancperderaopai,tudoissoapontavaparaamesmadireção.AssimcomoSamhaviapermanecidoalheioàBronnieatéodiaemque

ela parou à sua frente, do outro lado do balcão, sacudindo suamão pelaprimeiravez,SerenafinalmentereparouemSid.Elepoderiaterestadoláotempotodo,massomenteagoraelacomeçaraaentender—esorriucomaconstatação.—Equantoàcomercialização?—perguntou,umtantodistraída.—O

bancodedadosdosclientespertenceaoCafé&LivrariadoHimalaia.—Francpareceserumhomemrazoável—disseSid.—Mesmoqueele

nãoquisessecontinuarcomonegóciodossachês,nãohaveriaproblemasempassaronegócioparavocê,talvezcomumroyalty.Serenaassentiu.— Isso com como uma renda complementar. Mas se eu abrisse um

negóciosozinha…—Vocêprecisariadeumadistribuiçãomuitomaior,depreferência,no

exterior.Eháalguémqueprovavelmentepodeteajudar.—Ah,é?—Vocêjáoconhece.Aquelafrasedenovo.—Daqui?—Nãomelembroonomedele,masvocêmencionouqueeleéumdos

empresáriosmaisbem-sucedidosnaindústriadefast-food.GordonFinlay,pensouSerena.—Uau!—disseemvozalta.—Seeleabrisseasportasdeapenasuma

cadeiadevarejo…—Serenabalançoua cabeça.—Nãoacreditoquenão

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penseineleantes.—Àsvezes,émaisfácilquandosevêascoisasdelonge.Duranteumlongotempo,elessustentaramoolharumdooutro.— Isso é... Incrível!— Serena disse, por fim. Dessa vez, foi ela quem

estendeuamãoparaseguraradeleentreassuas.—Obrigada,Sid.Portudo.Eleassentiu,sorrindo.—Vocêtemumcartãodevisitasoualgoassim?—Serenaperguntou.—Nocasodeprecisarmosnosfalarmais?Vocêmeencontranaioga.—Vocêésempretãoconsciencioso—disseela.—Maspodeserqueeu

nãoestejalátodososdiasestasemana.—Eunãovoufaltarnenhumaaula.Houveumapausa,antesqueelapersistisse,curiosa:—Vocêpoderiamedarsóumnúmerodetelefone,oualgoassim?Depoisdeuminstante,etalvezcomalgumarelutância,Sidenfiouamão

nobolsodopaletó,deondetirouumacarteiradecouroepegouumcartão.—Nãotemoseunomeaqui—observouSerena.—Sóumendereçoe

umnúmerodetelefone.—MandechamaroSid.—Elesvãosaberquemvocêé?Siddeuumarisada.—Sim.Todosmeconhecem.

=Serena passou o resto do dia distraída. Havia momentos em que eu

olhava para cima e a via atrás do balcão, fitando o nada— algo que eununcaatinhavistofazerantes.Emcertomomento,elalevouumagarrafadeSauvignonBlanc resfriado da adega para a cozinha, em vez de levá-loparaamesadocliente.Outravez,sedespediudeumclientesemlhedaro

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troco.Serenaestavaexecutandoastarefasdegerente,masseupensamentoestavaevidentementeemoutro lugar.AvisitadeSid tinhasido tantoumchoque, comoumaalegria. Comopodianão terpercebido?Seusprópriossentimentos estavam gravados na felicidade em seu rosto, enquanto Sidestendia os braços para tocá-la. Sentiu-se tão envergonhada quandopercebeuoquantoelehaviapensadocuidadosamentenasuasituação.Masagora que ele não estava mais ali, as dúvidas embasavam seuspensamentos.AnotíciasobreoretornoeminentedeFranc,arevelaçãodointeresse que Sid nutria por ela, sua proposta de negócio ousada eassustadora—eramuitacoisaparaassimilar.Porquetudosempretinhadeacontecerdeumavezsó?Logo após o almoço, um banquete suculento de linguado à belle

meunièreoqualdevoreicomgratidão,escuteiSerenarepetiralgumasdassugestõesdeSidparaSam,porémcomcertareserva.—NãoestoubemcertadequeoFrancestariadispostoamedeixarusar

a mala-direta de clientes — disse ela, confidenciando suas dúvidas. —ParecequeelenãoquerqueoCafétenhaessetipodeassociações.Samestavaquieto.—MesmoseGordonFinlayabrisseasportasparamim—continuouela

—,seráumlongocaminhoatéchegarmosaumfluxodepedidosavarejo.Comoiriapagarasminhascontasenquantoisso?Erauma tardeestranha.OCafé&LivrariadoHimalaiaerageralmente

um lugar agradável para passar o tempo,mas hoje parecia que amúsicafamiliardoCaféestavaforadotom.Nuvensescurasseformavamnocéu,eoventoeratãofrioque,quandobateutrêshorasdatarde,Kusali tevedefecharasportasdevidro.Quantoamim,sófiqueiporqueestavacommedodoqueiriaencontrar

sevoltasseparaJokhangduranteohoráriodetrabalho.Asimplesideiadomongegiganteencostandoemmimjácausavaarrepiosquedesciampelasminhas macias patas cinzentas. Embora a chegada de Sua Santidade

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estivessehápoucosdiasdedistância,aameaçadomongegiganteminavaasminhasexpectativas.ParaSerena,pareciaquetodaaanimaçãoquepoderiatersentidodepois

da visita de Sid estava mais que mitigada pelas suas preocupações comrelaçãoaoretornoiminentedeFranc.E, naquela noite, a tradicional sessão de chocolate quente pareceu

confirmar o modo como as coisas haviam se tornado perigosamenteinstáveis. Depois da habitual troca de sinais entre Serena e Sam, ela sedirigiuparao lugarde sempre, seguidadeKusali. Em suabandeja, haviatrêscanecasdechocolatequente—Bronnietambémhaviasetornadoumahabituée—juntamentecomosbiscoitosdoscachorroseomeuleite.Em pouco tempo, Marcel e Kyi Kyi estavam atacando seus biscoitos

vorazmente,comosefosseaprimeiracomidaquetivessemvistoodiatodo.Concentrei-menomeuleitecomumpoucomaisdedecoro.SamchegoudalivrariaesesentoubruscamenteàfrentedeSerena.—ABronnievaidescer?—Serenaperguntou,apontandoparaaterceira

canecadechocolatenabandeja.—Nãoestanoite—Samdisse,comexpressãocansada.Então,depoisde

umapausa,completou:—Talveznunca.—Oh,Sam!—OrostodeSerenaestavacheiodepreocupação.Ele tomou um longo gole de chocolate antes de olhar para ela

brevemente.—Brigafeia—disseele.—Brigadenamorados?Elebalançousuacabeçatristemente.—Maisqueisso.Serenaficouemsilêncio,eentão,Samfalou:— Disse que sempre quis ir para K-K-Kathmandu. Um trabalho

voluntárioqueapareceuporlá.Elaparecenãoentenderqueeunãopossosimplesmentelargartudoeirjunto.

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Serenaapertouoslábios.—Difícil.Samsuspirouprofundamente.—Oempregoouanamorada.Grandeescolha.Nãohaviamaisninguémna livrarianaquelemomento, e a únicamesa

ainda com clientes estava no Café — quatro frequentadores assíduosocupavam-seociosamentecomosrestosdeseuscrèmebrûléeeseuscafés.ComoKusaliaindaestavatrabalhando,nemSerenanemSamprestavam

muita atenção ao que aconteciamais além damesa onde estavam, razãopela qual foram pegos de surpresa com a chegada de um visitante quepareceusematerializardonada.ComoprofessordoFranceautonomeadoconselheiro do Sam, ele não era uma figura estranha ao Café, mas nãoapareciaalihaviamuitotempo.Essavisitaaconteciaporummotivoespecífico.Sentindoummovimentonasescadasquedavaparaalivraria,Samolhou

paracimaeoviuempé,dooutrodoladodamesa.—GesheWangpo!—exclamou,deolhosarregalados.SameSerenafizerammençãodeselevantar.—Fiquem!—GesheWangpocomandou,palmasdasmãosvoltadaspara

os dois. — Não vou demorar, sim?— Sentou-se no braço do sofá ondeestavaSam.GesheWangpo possuía um tom de comando poderoso e sua presença

era suficiente para condicionar todos os presentes a um estado deobediênciamansa. Enquanto Serena fazia contato visual com Sam, GesheWangpodisseaosdois:— É necessário praticar a equanimidade. Quando a mente passa por

muitosaltosebaixos,nãopodehaver felicidadenempaz.Nãoéútilnempara nósmesmos— ele olhou diretamente para Serena— nem para osoutros.Depois que Serena olhou para baixo, senti a força do olhar de Geshe

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Wangposevirarparamim,comoseeufosseumlivroaberto.PareciasaberexatamentecomoeumesentiaarespeitodoVenerávelCaradeMacacoedoEstranguladordeGatos.DecomoeumerefugieinoCafé,commedodevoltara Jokhang.Decomominhahabitualautoconfiançasem limitehaviamedesertado. Ao retribuir seu olhar, senti que eleme conhecia tão bemquantoeumesma.Sam sentia-se exposto. Assentiu, pesarosamente. Não havia como

esconderaverdadeóbvia.Depoisdeummomento,Serenafalou:—Oproblemaécomo.—Como?—Étãodifícilpermaneceremequilíbrioparapraticaraequanimidade

—Serenadisse—quandohátanta...Coisaacontecendo.— Quatro ferramentas — Geshe Wangpo disse, retribuindo o nosso

olhar.— Primeira: impermanência. Nunca se esqueçam: isto também vaipassar.Aúnicacoisaquesabemoscomcertezaéquesejalácomoascoisasestiverem agora, elas irão mudar. Se você se sente mal agora, não temproblema.Vocêsesentirámelhordepois.Vocêsabequeéverdade.Semprefoiverdade,certo?Eaindaéverdadeagora.Elesassentiram.—Segunda:paraquesepreocupar?Sevocêpuderfazeralgumacoisaa

respeito,faça.Senão,paraquesepreocupar?Desapegue!Cadaminutoquevocêpassasepreocupandosãosessentasegundosqueperdesemserfeliz.Nãopermitaqueseuspensamentossejamcomoladrões,queroubamoseucontentamento.—Terceira:nãojulgue.Aodizer“oqueestáacontecendoéruim”, quantas vezes você está errado? Perder o emprego pode serexatamente o que você precisa para começar uma carreira maisgratificante. O fim de um relacionamento pode trazer possibilidades quevocênempensouquepoderiamexistir.Quandoacontece,vocêpensaqueéruim.Maistardepodepensarquefoiamelhorcoisaquejáaconteceu.Então,nãojulgue,nãoimportaoquantoascoisaspossamparecerruinsnahora.

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Vocêpodeestarcompletamenteenganado.Serena,SameeuolhávamosparaGesheWangpo,paralisados.Naquele momento, ele parecia ser o próprio Buda, materializando-se

entrenósparanosdizeroquemaisprecisávamosouvir.—Quarta:semlodo,nãohálótus.Amaistranscendentaldasfloresnasce

da sujeira dos pântanos. O sofrimento é como um lodo. Se faz com quesejamosmaishumildes,maiscapazesdenossolidarizarmoscomosoutrosenostornarmosmaisabertosaeles,entãonostornamosmaiscapazesdenostransformarmosesermosrealmentebelos,comoaflor-de-lótus.—Claro!—GesheWangpolevantou-sedobraçodosofá,umavezquejá

tinhadadoseurecado.—Falosomentedecoisasqueestãonasuperfíciedooceano,osventose tempestadespelosquais todosnós temosquepassar.Masnuncaseesqueçamque—elese inclinouporsobreamesa, tocandoseu próprio peito com a mão direita — lá no fundo, por debaixo dasuperfície,estátudobem.Amenteésempreclara,desobstruídaeradiante.Quanto mais habitar nesse lugar, mais fácil será lidar com as coisastemporáriasesuperficiais.Geshe Wangpo se comunicava através de coisas que iam além de

palavras. Naquele momento, aquele bem-estar profundo do qual faloupossuía uma realidade palpável. Depois foi embora, da mesma formasilenciosaedespercebidacomoentrara.Porummomento,SerenaeSampermaneceramsentadosemseussofás,

perplexoscomoqueacabaradeacontecer.Samfoioprimeiroafalar:—Issofoi...Muitoincrível.Omodocomoeleapareceudonada.Serenaassentiucomumsorriso.— Parece que sabe exatamente o que está acontecendo em nossas

mentes—Samcontinuou.—Enãosóquandoestamoscomele—Serenaacrescentou.O olhar de Sam encontrou o dela por um tempo, compartilhando seu

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espanto.—Masoqueeledisse é tão certo—disse ela, sorrindo.Parecia estar

reconhecendoqueumanuvemhaviasedissipado.Samassentiu:—Irritantementecerto.Ambosriram.Kusaliabriuaportadafrente,eabrisadanoiteenvolveuoCafé.Perto

dajanela,osclientesdaúltimamesasepreparavamparasair.Refleti sobre o significado do que GesheWangpo dissera. A felicidade

duradoura só era possível através da equanimidade. Enquanto nossafelicidade dependesse das circunstâncias, seria tão fugaz e não confiávelquanto os próprios eventos. Como fios de pelo de gato ao vento, nossasemoçõesseriamjogadasparaláeparacá,porforçasmuitoalémdonossocontrole.Asferramentasparasecultivarequanimidadenãoexigiamnenhumato

defé.ÀmedidaqueGesheWangpoasexplicava,elassetornavamóbvias.Mas, assim como seu coração, a essência da equanimidade era afamiliaridade com a natureza da própria mente, algo que eu sabia quedeveriaserdesenvolvidoatravésdapráticadameditação.GesheWangpohavia,evidentemente,dominadoaprática.Issoeraaparentenomodocomoa mente de outras pessoas se tornava transparente para ele — umaconsequêncianaturaldofatodesuaprópriamenteserdesobstruída.

=PassoualgumtempoatéqueSerenapercebeu.Elaolhourapidamentedo

rostodeSamparaosofá,edepoisparabaixodamesa,e,por fim,paraacestaembaixodobalcão.—Oscachorros!—exclamou.Samsesentoucomumsobressalto,perguntandoansiosamente.

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—Ondeestão?Ambosselevantaramecomeçaramaprocurarpelocaféepelalivraria.EentãoSerenaosviudoladodefora,deitadosnacalçadaemfrenteao

Café. Nunca antes, em nossas sessões do fim do dia, Marcel e Kyi Kyihaviam abandonado o sofá e a possibilidade de uma coçada na barriga.Nuncahaviamsaídonaescuridãodanoite.Eraalgoquesimplesmentenãoacontecia.SerenaeSamseentreolharam.—Elessabem—disseela.

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CAPÍTULO10Esabiammesmo.Poucotempodepois,Serenaestavasomandoosrecibosdanoite,depois

de tersedespedidodosúltimosclientes.Atrásdobalcãoda livraria,Samfazia amesmacoisa.Kusali davaos toques finaisnapreparaçãodo lugarparaocafédamanhãdodiaseguinte.Tendodeixadoaseçãodos livrosemeencaminhadoparaaporta,estavaprestesavoltarparacasa,quandoviumacomoçãodoladodefora.UmgrandetáxibrancoacabaradeestacionaraoladodoCafé.Seusfaróis

brilhavam. Alguém saiu do banco de trás. Marcel e Kyi Kyi latiamloucamente,enquantopulavamnafiguravestindocalçajeanspretaeumablusa demoletom.Mesmo antes de ele se virar, já sabíamos de quem setratava.Ele se abaixou para pegar um cachorro em cada braço. Os latidos

pararam bruscamente e foram substituídos por um frenesi de farejadas,choramingo e lambidasno rosto. Franc jogou a cabeçapara trás e riudealegria.QuandoentrounoCafé,olhouparaSerena,Sam,Kusalieeu.— Vim direto de Nova Déli. Fiz o motorista do táxi passar pelo Café.

Quando vi que as luzes estavam acesas... — Ele não precisava explicar,enquantoseguravaoscachorroscomprazer.Serenafoiaprimeiraaseaproximar.—Bem-vindodevoltaaolar!—disse,beijandosuabochecha.Franc colocou os cachorros no chão, que imediatamente se lançaram

degraus acima, enquanto Sam descia, depois de volta para Franc e emseguidaparaacalçadaeparadentrodoCafé.

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—Quebomvê-lodevolta!—Samocumprimentoucomumapertodemão,seguidodeumabraçoapertado.A uma curta distância, Kusali uniu as mãos diante do coração,

inclinando-se em uma reverência. Franc fez a mesma coisa, enquantomantinhaoolharnomaître.—Namaste,Kusali.—Namaste,senhor.Então, Franc se aproximou de onde eu estava sentada eme pegou no

colo.—PequenaRinpoche—disseaomebeijarnopescoço.—Estoufelizque

vocêtambémestejaaqui.Nãoteriasidoamesmacoisasemvocê.Acomodei-meemseusbraços.Sam olhou para onde os dois cachorros continuavam correndo em

círculosloucamente.—Seiquenãocomentounadasobreaminhavolta—Francdissepara

Sam e Serena. — Mas é porque, por enquanto, quero que continuemfazendooqueestãofazendo.—Vocêachaquevaiconseguir ficar longedaqui?—Serenadissecom

umsorriso,disfarçandoaansiedadequesentia.— Ah, eu venho tomar um café ou almoçar. Mas gerente em tempo

integral?—Nãoestoucomamínimapressa.UmadascoisasqueaprendicomtodaessaexperiênciacomomeupaiéqueeuqueroaproveitarofatodeestaraquiemMcLeodGanjcomtodosessesprofessoresmaravilhosos.Avidaécurta.Nãoqueropassaraminhagerenciandoumrestaurante.Ostrêshumanoseeuescutamoscomatenção.—SenãoestivessevoltandoparaaEuropa—eleolhouparaSerena—,

tentariapersuadi-laaficaraquiedividirotrabalhocomigo.—Éumaideia.—SamolhouparaSerenacomumsorriso.Serenalevantouassobrancelhas.—Vocêconfiarianomeujulgamento?

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Francabriuumsorriso.—Porqueeunãoconfiaria?Nuncaestivemostãobemfinanceiramente

desdequevocêsdoiscomeçaramacomandaroshow.Todosparecemestarmelhorsemmim.Eleinclinouacabeçaparaoscachorros.—Esperoquenemtodos.SerenaeSamtrocaramumolharsignificativo.—Éque...—começouSerenaaomesmotempoemqueSamdisse:—Quandonós…Ambospararam.—Oquê?—Francolhouparaumeparaoutro.—Asnoitesdecurry—Serenaconseguiudizer,algunsinstantesantes

deSammurmurar:—Ossachêsdeespeciarias…—Exatamente!—OsolhosdeFrancbrilharam.—Masnósachamos...—começouSerena.—Seue-maildisse...—continuouSam.—Quevocênãogostoudaideia—Serenaconcluiu.Francfranziuatesta.—Ascontasdomêspassado?Enquantoosdoisassentiam,comexpressõesgraves,eledisse:—Eulembroexatamenteoqueescrevi:EUNÃOGOSTEI.EUAMEI!Samfoirepentinamentetomadodeemoção.—Ofinaldapáginadevetersidocortado!—EleolhouparaSerenacom

umpedidodedesculpas.—Nóspegamossóocomeço.Mas Serena não se importou. Agarrou Franc arrebatadoramente e o

abraçou.—Vocênemimaginaoquantoissomedeixafeliz!

=

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Na manhã seguinte, depois do café, emergi timidamente da suíte quedividia comSua Santidade e desci pelo corredor, passandopela porta doescritóriodosassistentesnapontadospés.Estavapreparadaparavoltarcorrendo aomeu santuário ao primeiro sinal doEstrangulador deGatos.Emvezdisso,ouviTenzineLobsangdiscutindosobreumnovodesenrolardeacontecimentos.Curiosacomosempre,saltiteiparadentrodoescritório.—…completamentedesurpresa—Tenzindizia,antesdemever.Elesmecumprimentaramemuníssono:—Bomdia,GSS.Eumeaproximei,esfregandomeucorpopeludoprimeironaspernasde

LobsangedepoisnasdeTenzin.—O problema é que ele chega daqui a três dias e sua agenda já está

completamentetomadadesdeasuachegada—Tenzindisse,resumindoaconversa.Emseguida,seabaixouparameacariciar.—Ouviuisso,GSS?Daquiatrêsdiasasuapessoafavoritadaequipevai

trazerSuaSantidadedevoltaparanós.Apesardeterarqueadoascostasemretribuiçãoaoseuafeto,anotícia

de que omotorista de Sua Santidade estaria de volta a Jokhang nãomeemocionavanemumpouco.Eumeorgulhavade serumagatademuitosnomes, mas o que me foi outorgado por esse sujeito grosseiro eravergonhoso.Ele escolhera a alcunha no momento em que meus piores instintos

haviamsidoprovocados, e eu levarapara Jokhangumrato emestadodecoma. Querido leitor, você consegue imaginar como ele passou a mechamar?Amim?MousieTung!

=— Sua Santidade sabe da dificuldade que estamos tendo em arrumar

alguém para o cargo — disse Tenzin. — Tivemos alguns problemas de

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habilidadeede temperamentocomosque já foramtestadosatéagora.Éporissoquesugeriuessasoluçãoprovisória.Estavamuitoaliviada.Peloqueentendi,ocargodeChogyalnãoiriaser

preenchidopeloVenerável Cara deMacaco. Tambémnão teria de passarcorrendo pelo escritório todos os dias para não chamar a atenção doEstranguladordeGatos.—Então,quandootemporáriodevechegar?—Lobsangperguntou.Tenzinolhouparaoseurelógio.—Aqualquerminuto.AcabeideenviarTashieSashiparabuscá-lo.Lobsangassentiu.Olhandoparaocomputador,perguntou:—EquantoasuashabilidadesdeTI?Tenzinencolheuosombros.—Nemseiseaomenosjáusouumtelefonecelular.— Por outro lado, ler o pensamento das pessoas é certamente uma

vantagem—observouLobsang.ElesriramantesdeTenzindizer:— Algumas das decisões tomadas por Sua Santidade podem parecer

estranhas. Mas descobri que, muitas vezes, as coisas não são comoparecem.

=Um pouco mais tarde, quando Lobsang retornou ao escritório e eu

ocupavaomeupoleiro em cimado arquivo, escutei umaagitaçãodepésdescalços no corredor, acompanhada por vozes de meninos. Então, semqualquer barulho ou movimento perceptível, Iogue Tarchin apareceu noescritório.Exatamente como na vez em que eu o vira na residência da família

Cartwright. Ele vestia roupas que pareciam ser de uma era distante, seurobe brocado era de um vermelho desbotado. Senti um ar de incenso e

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cedroaoseuredor.Tenzinficoudepé.—Muito obrigado por ter vindo— disse, enquanto inclinava o corpo

paraafrente,emumaprofundareverência.—ÉumprivilégioparamimpoderserviràSuaSantidade—disseIogue

Tarchin, retribuindo a saudação.—Minhas habilidades são poucas, mastenhodisposição.TenzinapontouparaacadeiraondeChogyalcostumavasesentar,antes

devoltarparasuamesa,paraqueelesficassemumdefrenteparaooutro.— Sua Santidade o tem na mais alta estima — Tenzin disse a Iogue

Tarchin. — E valoriza, em especial, sua ajuda com as várias decisõesmonásticasimportantesqueprecisatomarquandoretornar.Eu me lembro do quanto Chogyal costumava achar essas decisões

difíceis. As políticas monásticas podem ser altamente complexas, eassuntoscomoautoria,personalidadeelinhagemdasescriturastinhamdeserprimorosamenteestudados.Mas IogueTarchin apenas sorriu. Era um sorriso queme lembravade

outra pessoa— Sua Santidade! Parecia sugerir que qualquer que seja agravidadedeumasituação,quandovistasobumaperspectivadefelicidadepermanenteedeeternidade,poderiasetornarumfardoleve.—Ah,sim—disseIogueTarchin.—Quandodecisõessãotomadaspelo

bemdetodos,elassetornamfáceis.Massehouverego—ébemdifícil!Sentadoemfrenteaele,Tenzinpareciaresponderàpresençarelaxada

do Iogue. Reparei quando se recostou em sua cadeira de modo maisrelaxadoqueohabitual,comseusombrosmenostensos.— Nós redigimos uma grande quantidade de correspondência no

computador — disse Tenzin, apontando para a tela do computador deChogyal.—Podemospedirparaalguémajudá-locomapartetécnica.— Muito bom — Iogue Tarchin disse, virando a cadeira para que

pudesse ficar de frente para a tela, e depois, pegando o mouse com

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familiaridade,clicoualgumasvezes.—Antesdomeuúltimoretiro,useioMicrosoftOffice.Equemnãotemumacontadee-mail?Mas,foraisso,nãosoumuitohábilcomocomputador.AexpressãodeTenzinfoidesurpresa.Semdúvidas,estavapercebendo

que ninguémdeveria julgar a capacidade de um iogue tão rápido. Afinal,umamente capaz de penetrar as verdadesmais sutis, seriamais do quecapazdecriarumdocumentonoWord.Enquantomeacomodavanoarquivo, IogueTarchinolhoupor cimada

tela.—Ah!Irmãzinha!—exclamou,levantando-sedesuacadeiraevindoem

minhadireçãoparameacariciarcomgrandeternura.—EstaéaGatadoDalaiLama,tambémconhecidacomoGSS—explicou

Tenzin.—Eusei.jánosconhecemos.—PorqueIrmãzinha?— É só um nome. Ela é minha irmãzinha no Dharma— disse Iogue

Tarchin.Nós dois sabíamos que ele estava se referindo à minha relação com

Serena,cujosignificadonãoestavaclaroparamimagora,assimcomonãohavia ficado da primeira vez. Mas parecia que, naquele momento,compartilhávamosumsegredo,umacompreensão,umaverdadequeseriareveladanaplenitudedotempo.Depoisque IogueTarchinvoltouàsuamesa,Tenzinolhouparamime

sorriu.—Achoquevocêssãoamigos—observou.Eleassentiu:—Demuitasvidas.

=

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Reparei a diferença nomomento em que entrei no Café& Livraria doHimalaia:acestasobobalcãoestavavazia.DesdequecomeceiafrequentaroCafé,aquelaeraaprimeiravezemquenãohaviacachorrosporlá.Parei,maisporsurpresadoquequalqueroutracoisa.Pormaisestranhaqueessaconfissãopossaparecer, porummomento fiquei realmentedesapontada.DuranteotempoemqueFrancestevefora,oscachorroseeuhavíamosnostornado bons amigos. Mas, então, me lembrei da chegada inesperada doFrancnanoiteanterior—doquantooscachorrosficaramfelizesemvê-lo—e fiquei feliz.Semdúvida,estavamemcasa juntocomele.Estava tudobem.EfoicomomesentinoCafétambém.AvisitadeFrancnanoiteanterior

pode ter durado apenas dezminutos,mas teve omesmo efeito que umatempestadedeverão.Todaatensãoquevinhacrescendonosúltimosdiasfoidescarregadaemumúnicoe catárticomomento.OspassosdeSerenaestavam mais leves. Sam estava alvoroçado, preparando uma nova epermanente prateleira de sachês de especiarias. Parecia até haver ummurmúrio entre a equipe de garçons. Sem dúvida, as coisas estavam emaltanoCafé&LivrariadoHimalaia.Ehaviaumapessoa,maisquequalqueroutra,comaqualSerenaqueriacompartilharaboanotícia.Por inúmeras vezes, vi Serena se aproximar do telefone no balcão da

recepção, pegar o cartão de Sid e levantar o fone. Em todas as ocasiões,algumaoutracoisaacontecia,exigindosuaatençãoimediata.Emconstanteatividade,arecepçãodoCafénãoeraexatamenteomelhorlugarparaseterumaconversaimportante.Foiquandoopensamentolheocorreu.PegandoocartãodeSidmaisumavez,elaseaproximoudeKusali.— A rua Bougainvillea é essa que passa aqui por trás, não é? — ela

perguntou.—Aqueeupegoparairparaaioga?—Sim,senhorita—Kusaliconfirmou.Entãoolhouparaocartãoedisse:

—Número108.Éacasacomomurobrancoaltoeportãodemetal.— Sério? — Serena olhou em minha direção. — Conheço o lugar. É

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algumtipodeestabelecimentocomercial?Eleassentiu.—Achoquesim.Hásempregenteentrandoesaindodelá.PudeveradireçãoqueospensamentosdeSerenaestavamtomando,e

minha curiosidade ficou instantaneamente aguçada. Lembro-me dogramado ondulante e dos cedros altos no dia em que passei umaeternidade em cima do muro do portão. Pensei nos jardins floridos, decores e fragrância vibrantes, e da construção que parecia imponente esólida, cheia de cantos e recantos que nós, gatos, gostamos tanto deexplorar.Resolviacompanhá-lanavisita.Aomelembrardaextensãodacolinaedodesafiodeseudeclive—quem

poderiaesquecer?—decidi irna frente. SaídoCafé, seguindoa rueladetrás, e, com o alerta contra Retrievers ligado, comecei a subir a ruaBougainvillea em direção à propriedade de muros brancos muito altos.Tomei cuidado para ficar perto dos prédios, olhando para trás a todomomento,prontaparacorrerembuscadeumabrigocasovissequalquerumdosRetrieversouSerenaseaproximando.Sabiaquenãoiriamedeixarsegui-la tão longe do Café. Mas se eu simplesmente aparecesse quandoestivessequaseentrando,queescolhaelateria?Foi por isso que, depois de Serena apertar o interfone do portão de

pedestresnalateraleanunciarsuachegada,euapareci,poracaso,emvoltadeseustornozelos.Quecoincidência!Entramos.Seguimosumpequenocaminhopavimentadoatéacasa.Haviaumlance

deescadasdemármoreparaaentradaprincipal,queficavasobumpórtico.A porta francesa dupla e as maçanetas de bronze polidas conferiam àentradaumardeformalidade.Serenaabriuumadasportas,eentramosemumgrandehallcompainéis

demadeira,tapetesindianoseumamesamuitolongadeaparênciaantigaquecheiravaalustra-móvel.

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Mas,anãoserporisso,ocômodoestavavazio.Ainda não sabíamos em que tipo de prédio estávamos. A entrada não

possuía nem a impessoalidade fria de um escritório nem o aconchegocalorosodeumacasadefamília.Emfrente,umaportaabertalevavaaumcorredor.Havia uma outra, à esquerda, que dava para uma recepção.Doladodireito,umlancedeescada.Enquanto contemplávamos isso tudo, um homem de meia-idade, de

camisaegravata,surgiunocorredoreencaminhou-seemnossadireção.— Posso ajudá-la, senhora? — perguntou a Serena, enquanto olhava

paramim,sentadaaoseulado,comumaexpressãoumtantoalarmada.Serenaassentiu:—OSidestá,porfavor?Elepareciaconfuso.— Sid— Serena repetiu, procurando dissipar sua confusão.— O que

trabalhacomTI?—TI?—ele repetiu, como se fosse aprimeira vezque tivesseouvido

falarnaqueletermo.Lançouumolharpreocupadoparaaescada,antesdeirnaqueladireção.—Vouanunciá-la—disse,enfim.Antesqueohomematravessasseohalldeentrada,escutamosumaporta

seabriratrásdenós.Sidapareceunotopodaescada.Assimcomonooutrodia,elevestiaumternoescuro,parecendodistintoeimportante.—Estavaolhandodajanelahápouco.Imagineiquefossevocê—disse,

surpreso.Satisfeito,também.Haviaaliumacertareserva?— Obrigado, Ajit — disse Sid, dispensando o homem que havia nos

cumprimentado.Ajitfezumabrevereverência,antesdeseafastar.Enquantoeledesciaasescadas,Serenaolhouparamimedisse:—Esperoquenãoseimporte,masparecequefuiseguida.Suponhoque

nãopermitamgatosaqui.Chegandoaopédaescada,Sidabriuosbraços:

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—Claroquesim!Sempre!Umestabelecimentosemgatosnãotemalma.— Tenho novidades que gostaria de compartilhar com você

pessoalmente—Serenadisse a ele. Seusolhosbrilhavam.—Esperoquenãotenhaproblemaeutervindoaoseuescritório.— Nenhum— disse ele, sorrindo.— Vamos para um lugar onde não

seremos perturbados. No entanto, estou esperando um telefonema aqualquermomentoquetereideatender.Sid nos conduziu para um cômodo com sofás, janelas destacadas e

largas, e pinturas commolduras douradas. Uma série de portas de vidrodavamparaavaranda,deondesepodiaobservarogramadoeos jardinsqueeuviraantesdeumaperspectivabemdiferente.Avarandaeraadornadacommóveisdevimeconfortáveis.PorummomentoSerena ficouempé, olhandopara fora, apreciandoa

beleza do lugar. Havia uma entrada para carros que circundava apropriedade,àsombradepinheirosaltos.Ummovimentorápidoporentreasárvoreschamousuaatenção.— Oh, olhe!— disse, apontando para aMercedes branca que subia o

caminholentamente.Atrásdovolante,umafiguradistintacomumcasacoescuroequepecinza.—Eletrabalhaaqui?—Serenaperguntou.—Trabalha—respondeuSid,convidando-aasesentar.—Desejabeberalgumacoisa?—ofereceu.Elabalançouacabeça.—Nãovoumedemorar.Enquanto ele colocava uma cadeira em frente àquela em que Serena

estavasentada,cheireiospésdamobília,quetinhaumaromafortedecera.Em pé sobreminhas patas traseiras, inspecionei o tecido das almofadas,gastas pelo uso. Embora nunca houvesse estado ali antes, senti-meimediatamente à vontade. Pulei em cima de uma das cadeiras perto deSerenaparainspecionaracenaaomeuredor.

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— Franc apareceu de surpresa no Café ontem à noite — Serenacomeçou.—Masjá?Elaassentiu.—Elenãodeuavisoprévioporquenãoquervoltarcomogerente.Não

por enquanto. Na verdade— um sorriso iluminou seu rosto—, ele estáfalandoemdividirotrabalho.QuerpassarmaistempoforadoCafé.Etemmais...—Serena confidenciou.—Aquele negócio de não ter gostadodasnoitesdecurryedossachêsdeespeciariasfoiummal-entendido.—Oquê?—Ummal-entendidoclássico—disseSerena,balançandoacabeça.—

EletinhaescritoNÃOGOSTEI.EUAMEI!nofimdapáginaeoscannernãopegouaúltimalinha.Sidsorriu,suasfeiçõesseiluminandocomaspossibilidades.—Então,emumapequenavisita...?—Tudomudou.Umafortebatidanaportafezosdoisolharemparacima.Um homem de camisa e gravata olhou para Sid e anunciou

apressadamente:—Genebraestánalinha.—Medesculpe!—Sid levantourapidamente.—Vouseromaisbreve

possível.

=Serenaficouali,sentada,olhandoparaosjardins,aproveitandoaluzdo

sol. Seu olhar varreu a folhagemverdejante e depois voltoupara a portaporondeSidhaviasaído.Acuriosidadefoimais forte,eelavoltouparaosalãodeentrada.Precisomesmodizerqueasegui?UmagrandelareiracomumrevestimentodaalturadoombrodeSerena

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cobriaumadasparedes.Emcima,umgrandequadrodemolduradouradaexibia o retrato de um homem indiano vestindo um turbante, terno decolarinhoNehrucombotõesdeouroeumaespadanacintura.Tinhaumaexpressãoaustera—eumasemelhançafamiliareinconfundívelcomoSid.Pendurado em outra parede, um par de espadas curvas cruzadas,

revestidas de couro preto e ouro, junto com vários estandartes de sedabordadoscomfiligranasdeprata.Serenaabsorveuaquilotudo,antesquesua atenção fosse atraída para umamesa de cantomuito lustrada, ondehavia várias fotografias de família à mostra. Algumas em sépia, outracoloridas, as imagensmostravamas geraçõesda família emretratos comumaouváriaspessoas.Haviavárias fotografiasdeSidcomseuspais,queelaestudoucomgrandeinteresse.Um lado da mesa era reservado para as fotografias de uma jovem

mulher. Em algumas ela estava com Sid, e, em outras, estavamacompanhados de umamenina. Havia também fotos damenina sozinha,duranteasváriasfasesdeseucrescimento.Perto de uma janela, um grande quadro enfeitava o ambiente com a

pintura de um palácio com cúpula dourada, cercado de palmeiras e ummuroalto—otipodepalácioqueSerenahaviavistonascapasbrilhantesdos livrosdemesa sobrearquitetura indianaqueSamvendiana livraria.Elaficouempé,olhandoparaapinturaporumlongotempo,atéqueouviuvozesláforaquechamaramsuaatenção.Das janelas que davam para a entrada dos carros, podíamos ver a

Mercedes branca, agora estacionada sob o pórtico. Em pé, ao lado dela,estava o homem de casaco escuro e quepe cinza— que ela pensou quefosseoMarajá.Falandocomele,estavaohomemquechamouSidaotelefone.Embora

nãopudéssemosouvirosdetalhesdaconversaentreosdois,estavaclaroqueohomemdavaordensaosupostoMarajá.Serena os observou, mergulhada em seus pensamentos, tentando

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entendersuasconversasenigmáticascomSid.— Alguém me disse que ele é o Marajá de Himachal Pradesh — ela

disseraaSid,naquelanoiteemquevoltavamdaioga.ESidrespondera:—Ouvidizeramesmacoisa.AgoraSerenapercebiaqueele tinhaconfirmadoterouvidoosmesmos

boatos,masnãotinhaditoqueeramverdade.Depois houve aquela aparição inesperada do suposto Marajá com os

extintoresdeincêndio,nomomentocríticoparasalvaracasadeLudoeoestúdiodeioga.Sealguémotivessechamado,suaapariçãooportunateriafeitomaissentido.Aindaontem,Sidrelutaraemlhedarseucartãodevisitas,e,quandoo

entregou,Serenareparouqueneleconstavamsomenteasinformaçõesdecontato, sem nenhuma identificação que as acompanhasse. Por fim,lembrou-sedareaçãodofuncionáriodesuaequipehápouco,quandodissequeestavaaliparaverSid.Osentimentoquedescobriraquetinhaporeleetodaasuaconsideração

ecompaixãoporelapareciamtãoverdadeiros.Porquetodoomistério?Ouviu-se um barulho de passos descendo as escadas, e então Sid

atravessou o corredor em nossa direção. Ele parou repentinamente aoentrarnosalãodarecepçãoeencontrarSerenaemfrenteàsfotografiasdefamília.—EntãovocêéoMarajá.Seutomeramaisdesurpresaquedeacusação.AexpressãodeSiderasolene,eeleassentiucomacabeça.—Então,porquê...?—Pagueiumpreçomuitoaltoparaaprenderaimportânciadadiscrição.

Planejava te contar pessoalmente, Serena. Não esperava que viesse aquidessamaneira.—Evidentemente.

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Eleapontouparaumacadeira:—Porfavor,deixe-meexplicar.Maisumavez,osdoissesentaramfrenteàfrente,elanacadeiraeeleno

sofá.Maisumavez cheirei ospésdamobília, dessavez examinando comintensacuriosidadeascortinaseostapetesindianosornamentados.Aqui,também,tudopareciaextremamentefamiliar,familiaratédemais.—Meuavôherdouumavastapropriedadequandotinhaaminhaidade

—disse à Serena.—Atémesmopara os padrões opulentos dosmarajásimperiais,eraumhomemmuito,muitorico.Seusdiamanteseramcontadosem quilos, suas pérolas medidas em acres, suas barras de ouro, emtoneladas.— Ele também herdou uma equipe com mais de dez mil pessoas,

incluindoquarenta concubinase seus filhos, emaisdemil guarda-costas.Havia vinte pessoas cuja única ocupação era coletar água potável para afamílianopoçomaispróximo,aalgumasmilhasdedistância.Serena escutava comgrande atenção. Pulei no sofá e escorreguei para

pertodeSid, testandoumadesuaspernascomminhapatadireita.Comoelenãofezobjeção,subiemseucolo,rodeiumpoucoparaacharamelhorposição,eentãomeacomodeiemsuascalçaslistradas.Quandososseguei,elemeacaricioucomtranquilidade.Eracomosejátivéssemosnossentadoassimmuitasvezesnopassado.— Infelizmente — Sid continuou —, ao contrário de nossos

antecessores, meu avô não era um homemmuito astuto. Todos tiraramvantagemdele:seusconselheiros,seusserviçais,atémesmoseussupostosamigos.Aolongodosanos,acabouperdendotodasassuaspropriedadeseseu dinheiro. Lembro-me de quandomeu paime levou para visitá-lo emseu leito de morte. Naquela época, o palácio estava caindo aos pedaços,despojadodamaioriadosobjetosdevalor,mas,mesmoassim,foiinvadidopor pessoas que supostamente estavam ali para prestar suas últimashomenagens.Meupaihaviacontratadoumaempresaprivadadesegurança

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pararevistartodosquesaíamdapropriedade.—Sidbalançouacabeça.—Nemposso descrever as lembrancinhas que tentaram levar.Quandomeupai se tornouoMarajá,o título jánão lheconferiamuita coisa, anãoserumaconstruçãodecadenteaospésdoHimalaia,paraaqualelenuncamaisvoltou. Tinha pouco interesse no comércio e, em vez disso, devotou seutempoàbuscaespiritual.Ele se inclinouparaobudismo, razãopelaqualmedeuonomedeSidarta,emhomenagemaonomedebatismodoBuda.Ronronei.— Talvez pelo fato de ser tão desapegado do mundo, meu pai não

percebeuoqueaperdadafortunadafamíliarealmentesignificava.Aindavivíamos como se tivéssemosdinheiro, e semprehavia credores solícitosporcausadonomedafamília.Meupaiquisqueeuestudasseforaeacabeimeenvolvendocomumagarotaquetambémvivianailusãodequeestavasecasandocomumherdeiro.“Quandooscredoresfinalmenteperderamapaciênciacomomeupaie

começaram a ameaçá-lo, ele teve um enfarto emorreu.Minha namoradamedeixou.Volteiparacasaeencontreiminhamãedelutoeumamontanhade dívidas.” — Sid lançou um olhar penetrante aos olhos de Serena. —Desdeentão, tenhorelutadoemusarumtítuloeumnomedefamíliaquetêmsidotão...Problemáticos.Serenaolhouparaele,compassiva.—Sintomuitoportudo.Devetersidoterrível.— Passou. — Ele balançou a cabeça vigorosamente. — Desde então,

tenho tido algum sucesso nos negócios. Ao contrário dos meusantepassados, tenho focado no benefício da comunidade, assim como nomeu. É por isso que tenho interesse, por exemplo, no comércio justo deespeciarias.Elasorriu.—Vocêestásendomuitomodesto.—Serenafezumgestoqueabrangia

todaaconstruçãoeosjardinsnoentornoecompletou:—Parecequevocê

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temconseguidomuitosucesso.Issodevedeixá-lofeliz.Sidconsiderouoqueeladisseporumtempo,antesdeafirmar:—Achoqueéocontrário.Afelicidadevemprimeiro,depoisosucesso.EnquantoSerenaouviacomatenção,elecontinuou:—QuandovolteiparaaÍndia,enfrenteimuitosdesafiosmas,dentrodo

meu coração, tinha certeza do meu objetivo. Queria conquistar umequilíbrionaminhavida,oequilíbrioquefaltoutantoparameupaiquantoparaomeuavô.Apráticadameditaçãoedaiogaparaobem-estarmentalefísicoe,claro,atividadescomerciaisparagerardinheiro,paramimmesmoe para os outros. Não importava se eu morasse e trabalhasse em umapartamentodedoisquartosemcimadomercado.Eujámesentiapartedacomunidade.De formasmodestas, era capazdeajudar.Quandovocê temesse contentamento interior, atingindoounão seusobjetivos, achoqueosucessosetornamaisprovável.—Oparadoxododesapego—Serenaconcordou.—Nemtodomundoentende.Serenamanteveseuolharporumlongotempo,antesdeapontarparao

quadronaparede.—Essaéacasadasuafamília?Sidassentiu.—Umapinturadaépocadomeuavô.Estáquaseamesmacoisa,mas,

aospoucos,estamosrestaurandoparachegaràsuaantigaglória.—Émagnífico!—OPaláciodosQuatroPavilhões.Emsuaépoca,erasublime.Agora,é

apenashabitável.MinhamãesemudoudeNovaDéliparaláhátrêsanos,comsuafamíliadegatoshimalaios.Iguaisaessaaqui.OlheiparaoSidinterrogativamente.Déli.Ondeeunasci.Dagatadeumafamíliarica,quesemudoulogoapós

meunascimentoeninguémfoicapazderastrear.—Vocêpareceestarbemàvontadecomelaemseucolo.

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—Ah, sim. São criaturasmuito especiais, particularmente sensíveis aohumoreàenergiadaspessoas.Emseguida,apósalgunsinstantes,eleperguntou:— Então, você acha que podemos trabalhar juntos e apresentar os

sachêsdeespeciariasparaomundo?Durante algum tempo, eles falaram sobre distribuição, cadeia de

fornecedores,propagandaonlineeendossodecelebridades.Maseupodiasentirque,sobtudodaquilo,haviaalgomaisacontecendo.Naquela tarde,com os raios de sol atravessando a janela, era como se Sid e Serenaestivessemdançando.Então,chegouahoradeSerenairemboraeseaprontarparaaioga.Ao

sairmosdasala,elaseviroueolhouparaoquadro:—AdorariaveroPaláciodosQuatroPavilhões.Vocême levaria láum

diadesses?Sidabriuumsorriso.—Seriaumgrandeprazer.Nosencaminhamosparaaporta.Dotopodaescada,Sidnosobservava

enquanto andávamos até o portão.Nametade do caminho, Serena olhouporcimadosombros:—Apropósito…Sidarta—disse,protegendoosolhosdosoldatarde—

nanoitedoincêndio:minhaecharpeestavanavaranda,nãoestava?HouveumalongapausaatéqueSidassentiu.Umabrisadefinaldetardetrouxeconsigooaromadedamadanoitee

suapromessa sensual. Serenabeijouapontadosdedose jogouumbeijoparaSid.Comumsorriso,eletrouxeasmãosàfrentedoseucoração.

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CAPÍTULO11OdiadoretornodeSuaSantidadefinalmentehaviachegado!Acordandodomeuquadragésimoquartosonosozinhanocobertordelã,

antesmesmodeabrirosolhos, lembreiqueoDalaiLamaestariaemcasadentrodealgumashoras.Puleidacamacomalegria.Desde cedo, Jokhang inteiro fervilhava com os preparativos. Do

escritóriodeSuaSantidadevinhamossonsdaequipedelimpeza,quedavaao lugarosúltimosretoquescomoaspiradordepó.Quandosaídenossasuíte,apóstomarumpoucodecafédamanhã,floresfrescasestavamsendoentreguesecolocadasnarecepçãoparadarasboas-vindasnãosóaoDalaiLama,mastambémaosmuitosvisitantesqueembrevereceberia.Noescritóriodos assistentes, a cadeiradeTenzinestavavazia.Ele eo

motorista estavam a caminho do aeroporto de Kangra para receber SuaSantidadequandodesembarcasse.Nocaminhodevolta,TenzininformariaaoDalaiLamasobreosassuntosmaisurgenteseimportantesqueexigiamsuaatenção.Do outro lado da mesa, Iogue Tarchin mal acabara de falar com uma

pessoa e já havia outra fazendo solicitações. Longe demostrar qualquersinal de irritação, lidava com tudo de uma maneira leve e até mesmobrincalhona.Umalevezainvadiuoescritório.Lamentavelmente,aquelesentimentonãoestavapresentemaisadiante

no corredor, quando parei na porta do escritório de Lobsang. De modocurioso, sua presença tipicamente serena estava alterada. Por ummomento,observeielearrumarsuasprateleiras,classificandoosarquivospor números e colocando-os ordenadamente em cima de suamesa para,enfim,olharaoredordoescritóriodemododistraído.Demoreiumpouco

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atéperceberoqueelepareciaestarsentindo:apreensão.Tais preocupações não afligiam outras pessoas em Jokhang. Em vez

disso,oqueseviaeraum frissondecelebração.SuaSantidadeembreveestaria de volta entre nós, e com ele todo o nosso propósito de estar alitambémvoltaria.Havia um fluxo intenso de presentes, pacotes e correspondências

importantes.Nasaladaequipe,vozesseelevavamcomurgênciaerisadasecoavampelocorredor.Aspessoasdescobriamumsignificadonovoparaoseu trabalho.Da cozinha vinhamos aromas inconfundíveis da comidadasenhoraTrinci,enquantoelapreparavaoalmoçodosprimeirosvisitantesdeSuaSantidade.Como uma gata de intuição felina bastante desenvolvida, sabia

exatamentequandooDalaiLamachegariaemcasa.Então,emvezdeficardescansandonoarquivodoescritóriodosassistentes,opteipelomeulugarprediletodequandoSuaSantidadeestavaemcasa—oparapeitodajaneladarecepçãoprincipal.Eraaliqueelepassavaamaiorpartedotempo,ondeeuescutavaasconversasmaisinteressantes.E,comomotivodeprioridadefelina, dali podia observar todas as idas e vindas do pátio no andar debaixo.Nãoeramtodasas idasevindasqueeramobservadasdeperto.Afinal,

para que tomar café damanhã se não for para tirar uma soneca depois?Semfalarnodeliciosoefeitosoníferodabrisasuavequesoprapelajanelaaberta. Sendo assim, poucodepois despertei como somde aplausos quevinha do corredor, do lado de fora. A porta da recepção se abriu e osseguranças fizeram uma última verificação. De repente, Sua Santidadeapareceu.Ele entrouna sala e olhoudiretamenteparamim.No instante emque

nossos olhares se encontraram, fui tomada por uma felicidade muitointensa, quase devastadora. Deixando sua comitiva e seus conselheirosparatrás,oDalaiLamaveiodiretamenteatéondeeuestavaemepegouno

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colo.—Comovocêestá,minhaPequenaLeoadaNeve?—murmurou.—Senti

asuafalta!Elesevirouparaquepudéssemosolharparaforadajanelaeapreciaro

Vale de Kangra. Naquela manhã, no Himalaia, parecia que o ar nuncaestivera tão fresco,océu tão limpo,eoaromadecipresteserododendrotãointenso.Olhandoparaocaminhodepedrasabaixo,mecomunicavaemsilêncio

com Sua Santidade. Enquanto ronronava, ele deu uma risadinha suave,relembrando nossa última conversa antes de sua partida. Será que iaperguntarseeuhaviaexploradoaartederonronar?Não,nãoprecisava.Nemeuprecisavadizeraele,porquesabiadasminhasexperiênciascom

umaclarezaeumacompaixãomuitomaioresdoqueasqueeupossuía.ODalai Lama sabia exatamenteoque euhavia aprendidodurante o tempoemqueestevefora.Sabiaque,aoouviraquelepsicólogofamosolánoCafé&Livraria doHimalaia, eu havia percebido o quanto, namaior parte dasvezesnossasexpectativasestãoerradas,apesarde todasasnossas ideiassobreoquenos fará felizes.EletambémconheciaaobservaçãodeViktorFrankl,sobreafelicidadecomoefeitocolateraldadedicaçãodeumapessoaaumacausamaiorqueelamesma,eentendeuoquantoessaobservaçãosignificaraparamim.De Ludo, no estúdio de ioga, aprendi que a felicidade não será

encontrada no passado. Gordon Finlay provou, também, que a felicidadenão deveria ser esperada em algum futuro projetado. E se eu aprendialgumacoisacomamorteprematuradeChogyal,eraqueapenasatravésdo entendimento real da fugacidade da vida eu seria capaz de vivenciarcadadiapeloqueelerealmenteé—ummilagre.Sam Goldberg e sua “Fórmula da Felicidade”me convenceram de que

independentedasnossascircunstânciasoudonosso temperamento, cada

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umdenóspossuiacapacidadedesermaisfelizpormeiodepráticascomoameditação.Semfalarquequandoajudamososoutrossomososprimeirosasermosbeneficiados.Poderiahaverrazãomelhorpararonronar?Com o disciplinador do Mosteiro de Namgyal, entendi como muitas

vezes o humor está ligado à comida. As crises pessoais enfrentadas porSerena e Sam, que suscitaram a intervenção surpresa Geshe Wangpo,serviramdeliçõespráticasdecomocultivaraequanimidade.Sidarta,oMarajádeHimachalPradeshpareciaseraprovavivadequea

relação entre felicidade e sucesso é o inverso do que muitas pessoasassumem.Mas foi IogueTarchinquemme fezenxergarcomoeu tinhaumavisão

limitadadaminhaprópriamenteetambémdomeupotencialdefelicidade.E o biólogo inglêsdeu esperança a todosnós, semchens, ao explicar quetodos os seres senscientes possuem a capacidade de um entendimentomaisamplo.Quemudançamaravilhosaacontecequandoconseguimosnosvercomoconsciênciascapazesdeterexperiênciashumanas,felinasouatémesmo caninas, em vez de pessoas, gatos e cachorros capazes de umaexperiênciaconsciente.

=O Dalai Lama e eu compartilhamos nosso entendimento disso tudo

enquantoapreciávamos juntosaquelamanhãnoHimalaia.E, assimcomoprometera antes de viajar, o momento havia chegado para dividir seuspensamentossobreasverdadeirascausasdafelicidade—paratransmitiramensagem especialmente destinada a mim e àqueles com os quais eupossuo uma ligação cármica. Já que você ficou comigo esse tempo todo,queridoleitor,issoincluivocê!—Háumasabedoriaespecialsobreafelicidade—SuaSantidadedisse

para mim. — Alguns textos a chamam de O Santo Segredo. Como a

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sabedoria,éfácildeexplicar,masdifícildevivenciar.O Santo Segredo é este: se você quer parar com o seu sofrimento,

procurepararcomosofrimentodooutro.Sedesejaafelicidade,procureafelicidade para o outro. Trocar o pensamento do eu pelo pensamento dooutro—esseéomodomaiseficazparaserfeliz.Absorviosignificadodesuaspalavrasjuntocomoarquesopravapela

janelaaberta.Aideiadepensarnooutroquasetantoquantoeupensavaemmim mesma era realmente desafiadora. GSS, Leoa da Neve, Rinpoche,Swami,AMaisBelaCriaturaQueJáExistiu—esseeraocentrodaminhaconsciênciaapartirdomomentoemqueeuacordavaatéahoradedormirosonoprofundodanoite.— Pensarmuito em nósmesmos é a causa demuito sofrimento— o

Dalai Lamadisse.—A ansiedade, a depressão, o ressentimento, omedo.Todossetornambempioresquandohámuitaatençãonoeu.Omantra“eu,eu,eu”nãoémuitobom.ComosegredoreveladoporDalaiLama,percebiqueosmomentosem

quemesentimaisinfelizforamquandomaismepreocupeicomigomesma.QuandofiqueicomraivadeChogyalportermandadoalguémlavaromeucobertor,porexemplo.Naquelemomentonãopenseinafelicidadedemaisninguém—certamentenãonadeChogyal!Em seguida Sua Santidade compartilhou outro ensinamento muito

interessante:—Nãoénecessário terminarcomosofrimentode todososserespara

terminarcomoseupróprio,nemquetodososseremsejamfelizesparaquevocêsejafeliz.Sefosseesseocaso—disseoDalaiLama,dandoumarisada—, então todos os Budas teriam falhado! Podemos aprender a usar essemaravilhosoparadoxo.—Eleolhouparamim,dentrodosmeusolhosazuissafira. — Seja sabiamente egoísta, Pequena Leoa da Neve. Ganhe afelicidade para você oferecendo-a ao outro.— Ele ficou em silêncio poralgunsmomentos,acariciandoomeurostocomgrandeternura.—Vocêjá

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fazisso,euacho,todavezqueronrona.

=AvoltadeSuaSantidade foiumaemoçãomaisque suficienteparaum

dia.Masascoisasaindairiammelhorar.UmaimportantedelegaçãodasNaçõesUnidasiriaficarparaoalmoço,e

eupoderiavisitarasenhoraTrincinacozinha.Assimcomooesperado,elapremiou a minha visita com um lembrete sobre minha belezaincomparável, e também com uma generosa porção de suculentoscamarões, guarnecidos commolhode queijo de cabra. A cremosidadedomolhoestavatãodeliciosaquedemoreiumpoucoparalamberopiresatéqueficasselimpo.Depois,senteisobasombrasalpicadaderaiosdesolvespertinosnolado

de forada cozinha, lavandomeu rosto, saciadae contente. SuaSantidadeestavadevolta.AsenhoraTrinciseria,maisumavez,visitaconstante.Meumundoestavaperfeito.Havia outra coisa pela qual esperar com expectativa: uma pequena

cerimônianaquelanoiteparamarcarareaberturadavarandadaEscoladeIogaDownwardDog.Nosúltimosdias,afrentedacasadoLudofervilhavacompedreirosquesubstituíamasvigasdanificadaspelofogoporsuportesdeaçomais robustos.OuviSerena falarcomentusiasmosobreavarandarecém-reformada,mais forte emaiorquea antiga, ornamentada comumlindo tapete tecido àmão que os alunos deram a Ludo. Como a varandaainda não havia sido usada, Ludo decidiu marcar a ocasião dedicando-aoficialmenteaumconvidadomisterioso.Como frequentadora da alta sociedade, eu sabia, querido leitor,

exatamentequemseriaesseconvidado.E, sendomeuamigo íntimo,achoque você também deve saber quem é. A ocasião iria reunir muitas dasminhas pessoas favoritas sob o mesmo teto. Portanto, decidi que eu, a

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SwamidaEscoladeIogaDownwardDog,tambémdeveriair.ComeceiasubiraruaBougainvilleanofinaldatarde.Passeipelalojade

especiarias, onde há poucas semanas acontecera uma cena de pânico ecaos. Andei pela calçada em que havia me sentido encurralada. Quandoestava me aproximando do muro alto e branco da propriedade de Sid,aconteceu. De novo. Os mesmos dois monstros caninos apareceram donada, vindo direto emminha direção. Só que dessa vez foi diferente. Foipior.Nãohaviaparaondeescapar.Umgatomaisrobustopoderiaterdisparadoruaacima,subidonomuro

e escapado lindamente. Mas eu sabia dasminhas limitações. Estava semsaída.Vireidefrenteparaosmeusperseguidorese,noexatomomentoemque

me alcançaram, sentei. Minha ação pegou os cachorros totalmente desurpresa, pois vieram atrás de mim em busca de uma divertidaperseguição.Frearamcomaspatasdafrente,numaparadaatabalhoada.Aosedebruçaremsobremim,fuienvolvidaporumhálitosulfurosoequente.Comas línguasparaforaeasalivapingandodesuasbocas,começaramamecheirar.Oqueeufiz?Eurosnei.Abrindoaminhabocaaomáximo,sibileicoma

fúria de uma divindade irada mil vezes maior que eles. Meu coraçãotrovejava,meupeloestava todoeriçado.Mas,enquantomostravaminhaspresas e escancaravaminha boca, as duas feras recuaram, inclinando ascabeçasemsurpresa.Essanãoeraarecepçãoqueesperavam.Muitomenosaquegostariam.

Umdosmonstrosavançoucomseufocinhoaumcentímetrodomeurosto.Comoumraio,golpeeiseunarizcomaminhapata.A fera soltou um grito estridente, recuando bruscamente com a dor.

Estávamos em um impasse. Haviam me encurralado — algo que nãotinhamexatamenteplanejado.E,agoraquetinhaacontecido,nãosabiamo

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que fazer. Minha exibição de ferocidade os deixou completamente semação.Naquelemomentoexato,ohomemaltocompaletótweedchegou.— Vamos, vocês dois— chamou com tom jocoso.— Deixem o pobre

gatinhoempaz.Os cães pareciamaliviados ao serem colocados de volta nas coleiras e

levados para longe. Ao observá-los indo embora, descobri, para minhagrande surpresa, que eu estava bem menos traumatizada com esseencontrodoqueesperava.Tinhaenfrentadomeupiorpesadeloedescobriqueconseguia lidarcomele.Eramais fortedoque imaginava.Tinhasidoumteste,maseuconseguimelivrardosdoiscãessalivantes.Segui omeu caminho, lembrando-me de algo que Sua Santidade havia

medito—quepensarmuitoemsimesmoéumacausade sofrimento, equeomedoeaansiedadepioramquandofocamosnoeu.Derepente,mepergunteisehaviaficadosujadeespeciariasepresanomuronãoporcausados cachorros, mas porque eu havia focado apenas em salvar o meuprópriopelo.Seráqueteriamesaídomelhorsetivessemiradodiretamentenosolhosdosmeusperseguidores?Seráquea chamadaautopreservaçãopode,porvezes,sairpelaculatraesetornaraprópriacausadador?Ao vencer a luta com as feras, me senti mais robusta e confiante

enquanto subia a rua. Podia ser uma gata pequena, e de certa formaaleijada,mastinhaocoraçãodeumaLeoadaNeve!Tinhaconfrontadoosmeusfantasmas.EueraaSwami,aConquistadoradosGoldenRetrievers!

=A casa de Ludo estava decorada para a ocasião. A nova coleção de

bandeiras de oração tibetanas de cores vivas balançava presa às calhas,contendo várias orações ao vento. O corredor havia sido redecorado echeiravaàtintafresca.AplacadaEscoladeIogaDownwardDognaentrada

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haviasidoreescrita.Oestúdioestavalotadodegente,omaiornúmerodepessoasquejávira

ali.Todososiogueshabituaisestavamlá,incluindoMerrilee—eseucantil—, Jordan e Ewing. Muitos outros pareciam nunca ter visto a parte dedentro da sala de prática, mas estavam curiosos com a promessa doconvidadomisteriosodeLudo.ReconhecialgunsclientesdoCaféealgunsmoradores de McLeod Ganj que conhecia das ruas — até mesmo osvizinhos de Ludo, da casa onde o fogo começara. Enquanto passava porentreoscolchonetesde iogaparachegaraomeu lugardesempre,minhapresençafoidevidamentenotada.Fiquei feliz em encontrar uma pessoa na fila de trás que, embora

estivesseforadoseucontextohabitual,eramuitofamiliar.Lobsangpareciamais leve. Sentado tranquilo e sozinho, era um monge aliviado. Suaserenidadehaviaretornadoe,quandoseinclinouparameacariciar,repareiemseusolhoscheiosdepaz.Na frenteda sala, asportasde correr estavamabertas, revelandouma

vistaespetaculardasmontanhasdoHimalaia.Anovavarandaestavaatrásdolaçodequatrofitasentrelaçadas—azul,

verde,vermelhoedourado—queseagitavasuavementenofinaldatarde,prontoparasercortadoduranteacerimôniaoficialdeabertura.Houve uma agitação na entrada e, então, Serena chegou. Olhando em

volta,encontrouLobsangsozinhonapartedetrásdasalaeimediatamentecaminhouemsuadireção.— Como foi? — sussurrou ao se sentar, inclinando-se para tocar no

braçodele.Lobsang sorriu e assentiu. Parecia ter dificuldade para encontrar as

palavrascertas.AexpressãodeSerenaeracalorosa.—Vocêestábem?— Não precisei pedir a ele— Lobsang conseguiu dizer.— Quando o

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encontrei, ele passou algunsminutos dizendo o quanto havia gostadodotrabalhoquefiznolivronovo.Depois,olhouparamimedisse“Vocêaindaéumrapaznovo,commuitostalentos.Talvezsejaumaboaideiatentaralgonovo,sequiser”.—Ah,Lobsang—eladisse,virando-separaabraçá-lo.— Termino em seis semanas — ele disse, sua boca contorcida de

emoção.—Depois,estoulivreparaviajar.—Jápensouparaondevai?—SuaSantidademeofereceuumacartadeapresentaçãoendereçadaao

abade de um mosteiro na Tailândia. — Seus olhos brilhavam comentusiasmo.—Achoqueasminhasaventuraspodemcomeçarporlá.Escutei o que Lobsang dizia com uma forte mistura de emoções. Ele

sempreforaumapresençaserenaemJokhang,sempreimagineiquefossepermanecer ali. Entristeceu-me saber de sua partida. Mas, nos últimosmeses, tambémpercebiquehaviaalgumacoisaerrada.Apesardagrandeimportânciadoseutrabalho,elesesentia inquieto,comanecessidadedetomarumanovadireção.Eramaisumlembretedequeaúnicaconstanteéamudança.Momentosdepois,Samapareceuporentreacortinadecontas.Depoisde

darumaolhadapanorâmicanareforma,revistouasalacomavista.Serenaacenoueelesejuntouaela,seguidoporBronnie.Quandosesentaramaoseulado,Serenaosolhoubemdeperto.—Estoufelizemvê-losjuntos—disse.—Temmuitacoisa legalemKatmandu—murmurouBronnie—,mas

nãotemoSam.Serenaassentiu.—EntãovocêvaificarnaÍndia?EnquantoBronniebalançavaacabeça,Saminterrompeu:— O contrato é de três meses. Bronnie ficará sozinha pelos dois

primeirosmeses,depoisvoumejuntaraelaevoltamososdoisparacá.

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—Pareceumbomacordo—Serenadisse.—AssimpoderemosconhecerumpoucomaisdoHimalaia—explicou

Bronnie.—Embora acheque Samestámais interessadonas livrariasdoMosteiroCopam.—Hábitodeumavida—observouSerena.—Umaveznerd...—disseSam.—Supernerd—corrigiuBronnie, inclinando-separasegurarasmãos

donamoradoentreassuas.Ludoapareceuvindodocorredor,encaminhando-separaaportadasala

deprática,mais leoninoe flexívelquenunca.Vestindoumatúnicabrancadealgodãoecalçasdeiogabrancas,estavamaisarrumadoquedecostume,pronto para começar o que seria uma sessão de prática bem suave,destinadaaapresentaraosiniciantesalgunsdosfundamentosdaioga.Foi quando Ludo estava explicandoTadasana, a Postura daMontanha,

que Sid chegou, atipicamente atrasado. Achou Serena na fila de trás e sedirigiuparalá.Semseremsolicitados,SameBronniechegaramparaoladoparaqueSideSerenapudessemsesentarjuntos.Elesestavambemnaminhafrente.Observeienquantosemoviampelas

sequênciasdealongamentos, seequilibrandoemumapernasó,comseusbraçosesticadosparaoteto,seguidosdetorções,primeiroparaadireitaedepoisparaaesquerda.Acertaaltura,Serenavirouparaoladoerradoe,então,elaeSidficaram

de frente um para o outro. Em vez de fixarem o olhar em um ponto nadistância, eles se olharam e mantiveram o olhar durante um minuto deinesperadaeinabaladaintimidade.Ludo guiou a turma por uma série de posturas sentadas. Foi quando

todos estavam acomodados emBalasana, a Postura da Criança, que doissegurançasapareceram.ElesinspecionaramasalaedepoisacenaramparaLudo,quedisseparatodossesentarem.Sorrindo,disse:

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—Seiarazãoverdadeiraporquemuitosdevocêsestãoaquihoje.Eécomgrandeprazerque tenhooprivilégiodechamarnossoconvidadodehonra, Sua Santidade, o décimo quartoDalai LamadoTibete, para quemiremosdedicaronossoEstúdiodeIoga.O comunicado foi recebido com suspiros de felicidade. Quando Sua

Santidadeapareceunaportadeentrada,porrespeito,todoscomeçaramaselevantar,maselegesticulouparaqueficassemcomoestavam.—Por favor, sentem-se— disse, depois juntou as palmas dasmãos à

frentedoseucoraçãoefezumareverência,enquantoolhavaparacadaumnasala.QuandooDalaiLamaseencaminhaparaapartedafrentedeumasala

cheia de gente, ele não anda simplesmente por entre as pessoas, masconversacommuitasnocaminho.Naquelanoite,enquantosedirigiaparaondeLudoestava,apertouoombrodeEwingesorriuaoolharnosolhosdeMerrilee.QuandoSukie juntousuasmãospara reverenciá-lo, gentilmenteesticou os braços e segurou suas mãos por um momento. Uma lágrimadesceupelorostodela.QuandoSua Santidade se aproximoudeLudo, a sala ficou em silêncio.

Todossentiamaenergiaqueemanavacontinuamente,semesforçoalgum.Era uma energia que podia mexer com alguém para além dos limitessensoriais do seu eu, até a consciência de sua natureza sem limites e oconhecimento reconfortante de que está tudo bem. Parado em frente àsportasabertas,oDalaiLamaserendeuàvistaespetacular.Naquelatarde,oselementosdanaturezahaviamconspiradoparaorganizarumpôrdosolespecialmente transcendental. O azul profundodo céu criava um cenárioespetacular para os picos cintilantes de cor dourada. Imenso e imutávelcomooHimalaiageralmentepareciaser,naquelemomentoasmontanhasbrilhavam como se fossem uma visão etérea que poderia se dissolver aqualquermomento.Enquanto Sua Santidade ficava ali empé, apreciando aquela vista, sua

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admiraçãoestavasendopassadaparatodosnasaladeprática.Poralgunsmomentoseternos,estávamosunidos,enfeitiçados.Então,elesevirouparaLudocomumsorriso.Ludo o saudou formalmente, oferecendo ao Dalai Lama uma echarpe

branca,comomandaatradição.QuandoSuaSantidadedevolveuaecharpe,colocando-anosombrosdeLudo,segurousuasmãosedisse:— Meu bom amigo — começou, dando tapinhas nas mãos de Ludo.

Depois, olhando para nós, continuou: — Muitos anos atrás, assim quechegueiemDharamsala,ouvi falardessealemãoquequeriaserprofessordeioga.Issoébom,pensei.Osalemãessãomuitopersistentes!Houvemuitasrisadas.—Aatençãoplenaaocorpoéumapráticafundamental.Émuitoútil.Se

quisermos cultivar a atenção plena, a ioga pode ajudarmuito. É por issoqueeusempredigoaoLudo,“Ensinemaisioga.Irábeneficiaratodosquevierem.”Os olhos do Dalai Lama brilharam por trás de seus óculos, enquanto

inspecionavaogrupoàsuafrente.— O corpo é como uma arca do tesouro. E a mente é o tesouro. A

oportunidade que temos de desenvolver a nossa mente é muito, muitopreciosa.Amaioriadosseresnãopossuiessaoportunidade.Éporissoquedevemos cuidar bem do nosso corpo e prestar atenção à nossa saúde.Aproveiteaomáximoestavidaparabeneficiaroeuebeneficiarooutro.Sua Santidade deu a palavra a Ludo. Depois de dar as boas-vindas ao

Dalai Lama, explicou que o nome da Escola de Ioga não era só umahomenagem à postura que agora era conhecida no mundo inteiro, mastambém a um cachorro do qual ele tomara conta quando chegou emMcLeodGanj.SuaSantidaderefletiuporalgunsinstantes,enquantoolhavaafotografia

doLhasaApsopenduradanaparede.LudofalousobrecomooDalaiLamaoincentivara desde o começo. Agora, várias décadas depois, não poderia

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imaginar a vida sem este propósito tão especial que era ensinar ioga. Oincêndio recente e a restauração da varanda criaram uma oportunidadeparacomeçarumnovocapítuloparaoestúdio,concluiu.Entoando uma oração em tibetano, o Dalai Lama abençoou a sala de

prática e todos os seres ali dentro. Durante aquele breve momento, aatmosferanasalapareceumudar.EnquantoaconsciênciadeSuaSantidadetocavaasnossas,cadaumdenóssentiualgosagradoeprofundo.LudoentregouumatesouraparaSuaSantidadeeoconvidouacortara

fitadanovavaranda.Eeleofez,sobmuitosaplausosemuitaanimação.Então,Ludofalou:—EujáconteiàSuaSantidadeahistóriadoincêndioedecomoascoisas

poderiamtersidomuitopioressenãofossepelapequenaSwami.Elaestáaquiestanoite.—Está?QuandoSideSerenaseafastaramparaolado,todososolharesdasala

repousaramsobremim.ODalaiLamaolhoudiretamenteparamim,comosolhoscheiosdeamor.Então,olhandonovamenteparaafotografiadoLhasaApsopenduradanaparede,virou-separaLudoedisse:—Estoutãofelizporelaterencontradoocaminhodevoltaatévocê.

=Maistarde,naquelanoite,euestavadescansandosobreocobertordelã

aospésdacamadeSuaSantidadeenquantoelelia.Aoolhá-lo,penseisobreocomentárioquefizeraaLudo,sobreafotografianaparedenaEscoladeIoga e sobre o meu sonho. Também me lembrei de Iogue Tarchinchamando-medeIrmãzinhanomomentoemqueviuSerena.EpenseiemcomomesenticonfortávelcomSerenaeSid.Durante as últimas sete semanas, tive de lidar com as mudanças das

minhas percepções sobre a felicidade, mas também descobri que havia

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desvendado outra coisa— algo tão profundo quanto comovente, por sercompletamenteinesperado.Descobri a profundidade da minha ligação com as pessoas mais

próximas a mim, uma ligação que ia muito além da minha imaginação.Haviacompartilhadovidasinteirascomelas,apesardenãoteracessoataislembranças.ODalaiLamaolhouparamimcomumsorriso.Ao fechar o livro, tirou os óculos e os colocou cuidadosamente na

mesinhadecabeceira,eentãoseinclinouparaacariciaromeurosto.— Sim, Pequena Leoa da Neve, o fato de estarmos aqui não é uma

coincidência.Nóscriamosascausasparaestarmosjuntos.Deminhaparte,estoumuito,muitofelizcomisso.Daminha,também,pensei,ronronandodegratidão.SuaSantidadeapagoualuz.

FIM