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Chicos 44

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Chicos

Outubro 2015

e-zine de literatura e ideias

de Cataguases – MG

Capa

Editores Emerson Teixeira Cardoso José Antonio Pereira

Fotografia

Vicente Costa

Ilustrações

Altamir Soares

Colaboradores desta edição Antônio Jaime Soares Antônio Perin Fernando Abritta Flausina Márcia da Silva Iacyr Anderson Freitas Luiz Ruffato Ronaldo Cagiano

Fale conosco em:

[email protected]

Visite-nos em:

http://chicoscataletras.blogspot.com/

Um dedo de prosa

Esta, é a nossa edição 44.

Este é um ano, até aqui, de muita violência, muita gritaria sem rumo, vereadores imbecis e iletrados atacando Simone de Beauvoir. Paris aparece nas TVs como cenário de filmes daquele moço fortão austro-americano que virou governador da Califórnia, e já no seu segundo fil-me era o capanga do gângster Augustine em O Perigoso Adeus. O cri-minoso vazamento da Samarco arrasa Bento Rodrigues, distrito de Mariana, repetindo numa escala infinitamente maior - de lama - o ocorrido aqui pertinho de nós, em Miraí. Ano para não ser esqueci-do pelas nossas incompetências. Para nós é o Ano Asnático.

Luiz Ruffato mantém um blog chamado Lendo os Clássicos, onde es-creve sobre os mesmos. Nos permitiu republicar aqui suas reflexões. Publicamos o texto de estréia do blog.

Quem esteve, a convite do Rogério Torres, em Cataguases foi o poeta Iacyr Anderson Freitas, tivemos uma bela tarde de ótima conversa e muita poesia. Poeta a gente homenageia mostrando sua poesia.

Ronaldo Cagiano, além da resenha sobre o livro de Caco Ishak , tra-duz o poeta argentino Osvaldo Picardo.

Fernando Abritta participou da “{+ POIESIS} – Exposição Internacio-nal de Arte Postal” com os poemas visuais que estão nesta edição.

Emerson tirou da estante uma preciosidade de Manuel Bandeira e apresentamos para vocês uma crônica do livro Flauta de papel.

O Antônio Jaime nos autorizou compartilhar com vocês um dos rela-tos de viagens mais interessantes que já lemos.

Em Clips - Publicamos notas, que consideramos importantes e que pretendemos em edições futuras retomar.

Agradecemos ao Antônio Jaime Soares a trabalhosa revisão desta edi-ção.

Divirtam-se!

Os Chicos

18.11.1930 - 20.08.2014

N. 44

Sumário

IACYR ANDERSON FREITAS

Regresso e outros poemas 04

FERNANDO ABRITTA

Poemas Visuais 17

FLAUSINA MÁRCIA DA SILVA

Tango 21

ANTÔNIO PERIN

Fragmentos amorosos 24

OSVALDO PICARDO

Vida de poesia e outros poemas 26

MANUEL BANDEIRA

José de Abreu Albano 29

JOSÉ ANTONIO PEREIRA

O Noviço 31

EMERSON TEIXEIRA CARDOSO

Diários de navegação 33

LUIZ RUFFATO

Lendo os clássicos 34

JOSÉ ANTONIO PEREIRA

A ponte que falava latim. . 35

RONALDO CAGIANO

Geografia do caos numa prosa dilacerante 36

ANTÔNIO JAIME SOARES

Europoraí 38

CLIPS

Algumas notas 50

Chicos 44

Iacyr Anderson Freitas

Nasceu em Patrocínio do Muriaé - MG. Mora em Juiz de Fora - MG.

Mestre em Teoria Literária pela UFJF. Publicou vários livros de poe-

sia, ensaio literário e prosa, com vários prêmios no Brasil e no exteri-

or. Sua obra encontra-se publicada em várias línguas e países como

Argentina, Chile, Colômbia, Espanha, Estados Unidos, França, Itá-

lia, Portugal, Venezuela e outros. Publicou, em poesia, entre outros,

Verso e palavra (1982), Pedra-Minas (1984) Colagem de bordo & ou-

tros poemas (1986), Outurvo (1987)

R e g r e s s o

E r a p r e c i s o e s t a r a q u i

p a r a t o c a r

o q u e r e s t a a i n d a d e s t a t a r d e ,

c o m s e u s q u i n t a i s , s u a s c a s a s ,

e a m e s m a e s e m p r e i n ú t i l

r e v e l a ç ã o .

L e m b r a s s e o a n o , o m i n u t o

q u e , v i s t o a g o r a d e s t e s c a m p o s ,

i n u n d a o c h ã o d a s a l a , i n u m e r á v e l ?

S o b t a i s a r c a d a s , n e s t e s f l a n c o s

d e p e d r a e c a l , e r g u e r a m u m c a s a r i o , u m a e s t a ç ã o

q u e e x s u r g e d o c a s c a l h o

c o m o c o i s a v i v a , q u e t o c a d a f o s s e

p e l o s o l h o s , n u m a s s o m o .

E m b a r c a d o u r o s d e c a f é

( e s c o a n d o m a i s q u e o s u m o ,

m a i s q u e a v e r t i g e m , m a i s q u e o s o s s o s

r e s s e q u i d o s d e a s s o m b r o e p ó ,

a t é u m p o r t o

j á p e r d i d o d e s e u p o s t o ) e m b a r c a m a g o r a

a p á t i n a

i n t u m e s c i d a d e s t a t a r d e .

Chicos 44

Chicos 44

F o i - m e i n ú t i l e s t a r a q u i

n e s t e q u i n t a l ,

d i a n t e

d e c o i s a s m o r t a s h á m u i t o

– h á m u i t o i n t o l e r á v e i s .

I n ú t i l p a l a v r a , i n ú t i l a l e t r a

q u e a t r a v e s s a

e s t e a l q u e i r e m í n i m o d o t e m p o

p a r a f u n d a r o u t r a i n s t â n c i a , l u m e

q u e t a m b é m e s g o t a - s e d e f l o r i r

e n o u t r o e m b a r c a d o u r o

s e a r r e m e s s a .

E sobre o deserto

c o n d e n a ç ã o p r i m e i r a : c a r r e g a r

o s d e s p o j o s d e s t a t a r d e , a r r a s t á - l a

p a r a f o r a d o t e m p o ,

e n t e r r á - l a o n d e n ã o h a j a e s c a p e .

c o m o o s q u e b u s c a m n o a l f o r j e ,

e n t r e s e r p e s , o a l i m e n t o d e s e u s m o r t o s ,

t a m b é m o f e r t a r e i m e u c o r p o

à s f i g u r a ç õ e s d a c h u v a e d o t r ó p i c o ,

t a m b é m p o d e r e i u n g i r

a s c a r t i l a g e n s n u l a s d e s e u n o m e .

e s o b r e o d e s e r t o

e s o b r e o s d e s p o j o s d e t u d o

o q u e r e s t o u d a t a r d e e m s e u t r a n s p o r t e

p e r m a n e c e a m e s m a b u s c a ,

i n c e s s a n t e , d e u m a t e r r a m a i s

p r o f u n d a e g a s t a , c a d a d i a m a i s d i s t a n t e .

Chicos 44

Décimo Mirante

M e d i r e m t u d o , d o c h ã o q u e s e a l a r g a ,

o b o s q u e e o m u r o , o q u i n t a l s e m a l a r d e ,

a l e m b r a n ç a n a b o c a , e t ã o a m a r g a ,

t ã o t e r r í v e l , q u e d e l a o s o l n ã o g u a r d e

r a s t r o o u n o t í c i a . O n e g r u m e , a á r i a

d e p r i v a ç õ e s e a u s ê n c i a s q u e m e i n v a d e .

A p a i x ã o m a i o r , e m a i s o r d i n á r i a ,

q u e a r m a e m m i m t a m a n h a b r u t a l i d a d e .

M e d i r e m t u d o o v e r ã o q u e m e e n f a d a :

s e u s c e l e i r o s , s e u s m o i n h o s , s e u s b o i s .

U m a h i s t ó r i a v i v i d a e n ã o c o n t a d a .

H á d o i s c a m i n h o s , t ã o - s o m e n t e d o i s .

A g o r a u r g e a m a r a v i d a , e m a i s n a d a .

T u d o o q u e d e s c o n h e ç o v e m d e p o i s .

Chicos 44

João Cabral e os rios

S o u b e s t e q u e u m l e i t o s e c o d e r i o

d e t o d o n u n c a s e e n c o n t r a v a z i o ,

q u e h á n e s s e l e i t o a n u d e z , t u d i s s e s t e ,

q u e s e a u m e n t a q u a n d o o v e r ã o a v e s t e ,

q u e u m r i o s ó e s t á v a z i o q u a n d o

d e s i m e s m o , e s t a n q u e , e l e f o r s e c a n d o ,

q u e u m r i o s e r á s e m p r e g r a n d e e m n ó s ,

q u a n d o o s o u b e r m o s s e m n a s c e n t e o u f o z .

S ó t u c o m p r e e n d e s t e , a m i g o , q u e u m r i o ,

e m b o r a s e c o , n u n c a e s t á v a z i o .

Chicos 44

U m t o d o p o r t á t i l

A F e r n a n d o F i o r e s e

D e M i n a s h e r d a m o s o q u e n ã o s e o f e r e c e

e m t e s t a m e n t o , u n s m i n é r i o s q u e s ã o m i m o s

a o c o n t r á r i o , t o d a a l i ç ã o , m u d a d a e m p r e c e ,

d o i n t e r d i t o q u e n o s a l c a n ç a o n d e f u g i m o s .

D e M i n a s h e r d a m o s a l g o q u e n ã o e x i s t e .

U m a c a s a p r o i b i d a , u m d o m i n g o d e R a m o s

e n t r e m u r o s , o r i s c o d e u m a n o i t e e m r i s t e .

A l g o q u e n u n c a é b a g a g e m , q u a n d o v i a j a m o s .

Chicos 44

M e m o r a b l i a – P o e m a n º 1 4

v o n t a d e d e c h a m a r m i n h a i n f â n c i a

e o t r e m q u e p e r d i

n a e s t a ç ã o d e c a i a p ó

b a d a l a r o v e l h o s i n o

e c o n v o c a r a p a r e n t a l h a

a g o r a p a r e m d e e s c o n d e - e s c o n d e

o t r e m c o m g r a n d e e s t a l o

m e u a v ô f e r r o v i á r i o s u a

m u l h e r d o n a d i v a

o s t i o s t o d o s e m f e s t a

§ v o n t a d e m a i s s e m t a m a n h o e s s a

d e s e g u r a r

o q u e n ã o c e s s a

Chicos 44

E n t r e v e r o j á v i s t o

C i d a d e s n ã o s e f a z e m

c o m n e n h u m i m p r o v i s o .

O q u e p a r e c e v a g o

t e v e t r a ç o p r e c i s o .

N ã o e x i s t e s u r p r e s a ,

a c a s o o u a c i d e n t e .

S ó a j u s t a m e d i d a ,

m e l h o r s e i n c o n s c i e n t e .

S ó o f l u x o , a r o t i n a

d e e n t r e v e r o j á v i s t o

e d e l e r e t i r a r

a t é o ú l t i m o c i s t o .

A s p e s s o a s n ã o f u n d a m

a s c i d a d e s q u e a l i n h a m :

f a z e m - n a s c o m o b a r r o

q u e e l a s m e s m a s c o n t i n h a m .

Chicos 44

N o r e t r a t o

T o d a a f a m í l i a s e e s p r e m e

n o r e t r a t o

a o l a d o d o o r a t ó r i o .

A n i n h a e s t á d e v e s t i d o n o v o

e l a ç o d e f i t a n o c a b e l o .

J o s é s u r g e d a t r e v a ,

e n f i m l ú c i d o e b a r b e a d o .

F i l i n t o c o n t i n u a b ê b a d o .

L a n i n h a , e s s a n i n g u é m c o n v e n c e ,

p e r m a n e c e d e m a l c o m a v i d a ,

c o m o s e m p r e .

V ô C h i c o n ã o p e r d e a e s p e r a n ç a

d e f a z e r a s p a z e s c o m a b e n g a l a .

D e q u e b r a , s e m q u e o v e j a m o s ,

l i m p a o c o l d r e c o m a f l a n e l a .

J o ã o n ã o e s c o n d e

s u a d í v i d a c o m o f a r m a c ê u t i c o .

Z u l e i c a p a r e c e a i n d a m a i s m a g r a ,

d e c o q u e a l t o

e l u v a s m u i t o b r a n c a s .

O s n e t o s f a z e m e s f o r ç o

p a r a q u e o r e t r a t o n ã o a t r a p a l h e

a f e s t a . B i l i c o j á e s t a v a m o r t o

a n t e s q u e e n t r a s s e n a f o t o

o s e u r á d i o d e e s t i m a ç ã o .

M a n o l o n ã o q u i s s a b e r d e p o s t e r i d a d e .

A c o n t r a g o s t o , c o m p a r e c e c o m a b a n q u e t a

f e i t a e m s u a o f i c i n a

n o s t e m p o s d a g r a n d e g u e r r a .

Chicos 44

D o n a C o t a t a m b é m f u g i u p e l a p o r t a d o s f u n -

d o s ,

m a s a r r u m o u b e m a r r u m a d o

o j a r r o d e f l o r e s

e p o r i s s o e s t á n o r e t r a t o .

A n d r é d e u m ã o d e c a l n a p a r e d e

e L i c o , v e r n i z b r i l h a n t e

n a c r i s t a l e i r a .

É d e C a t i t a a m a r i n h a

q u e s e v ê à e s q u e r d a ( d e l a ,

q u e m o r r e u a f o g a d a , u n h a s f e r i n d o

d e c r u p e o c r u c i f i x o ,

s e m n u n c a t e r v i s t o

u m a r é s t i a q u a l q u e r d e m a r ) .

À e s q u e r d a , c o m m o l d u r a d o A n d r a d a ,

e s s e m e s m o

q u e a l e g o u c r i s e d e a s m a

e f u g i u c o m a c o s t u r e i r a .

S o l a n a r e p e t e o c o l a r d e p é r o l a s ,

a g o r a n o c o l o

d a f i l h a m a i s m o ç a .

H e r m e n g a r d a b o r d o u a c o r t i n a d e o r g a n d i .

T o d a a f a m í l i a e s t á n o r e t r a t o .

A t é o A r l i n d o , a q u e l e s o n s o ,

q u e c o l o u a p o r c e l a n a

q u e s e v ê a o c e n t r o .

M e s m o o s q u e n ã o q u i s e r a m o u n ã o p u d e r a m

c o m p a r e c e r

e s t ã o a l i , t o d o s , n o s t r i n q u e s , f o t o g r a f a -

d o s .

S e j a d e e s g u e l h a o u d e e s t a l o .

P o r i s s o

é d e l e i

n e s t a c a s a

r e v e r e n c i á - l o .

Chicos 44

Chicos 44

Dona Bertália

M u l h e r a s s i m n u n c a s e v i u

d e t ã o r i c a .

E r a a d o n a d o l u g a r .

M a n d a v a e d e s m a n d a v a

c o m l u v a s d e p e l i c a .

M a r c a v a a t é a h o r a d a m i s s a

e d a b o t i c a .

Q u e e r a s e m p r e a h o r a

i n c e r t a

e m q u e p e l a i g r e j a e l a a d e n t r a v a .

F r a n z i n a m a s e r e t a

c o m s e u c a s a c o d e p e l e

g a n h o d u m a e s l a v a .

O p r o b l e m a e r a o c a l o r

q u e n ã o p a u s a v a .

C a l o r d o s d i a b o s

q u e p o u c o o b e d e c i a

e m t e r r a o n d e s ó e l a m a n d a v a

e q u e a c a b a v a m a r c a n d o t a m b é m

a h o r a e m q u e

t o d a m i s s a e m p a c a v a .

H o r a d e l e v a r D o n a B e r t á l i a

p r a c a s a

j á m u i t o p á l i d a d e t r a n s p i r a r

s o b o c a s a c o e m b r a s a .

Chicos 44

Equação

Para Luiz Ruffato

a q u e s t ã o :

s e r o u n ã o

s e r

f e l i z

e m d e m a n d a

d e s s e c á l c u l o

m e f i z

c o n t a s e c o n t a s

s o m a t ó r i o s

v i s

a t é d e s i s t i r

d o i n a c e s s í v e l

x

Chicos 44

Chicos 44

Fernando Abritta

Nasceu em Cataguases - MG, nativo de Cataguarino, Cataguases - MG,

em 1950. Reside em Juiz de Fora - MG. Tem dois livros publicados

pela Lei Murilo Mendes de Juiz de fora - umÁrvore e O Caso da Menina

que Perdeu a Voz, e Uma Verde História pela Lei Ascânio Lopes de Ca-

taguases em parceria com Joaquim Branco, um e-book - Relâmpago. E

os inéditos MulaSemCabeça e A Árvore do Esquecimento.

Outras participações: Grupo 13–RJ (1971); Expoética–RJ (1973); TO-

TEM (1975 a 1977); Jornal DE FATO (1977); Jornal TABU (1977);

Expoética–Natal-RN ( 1977); Arte de Rua-Brusque–SC (1978); jornal

A REPÚBLICA-Natal–RN (1978); Expoética–80-Cataguases-MG

(1980); Cataguases-Cartazes (2014)

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Chicos 44

“{+ POIESIS} – Exposição Internacional de Arte Postal” é constituída de obras de 72 au-tores de 19 países, que apresentam seus poemas visuais no sistema da Arte Postal e integra a programação do XXIII Congresso Brasileiro de Poesia, que neste 2015 comemora seu ju-bileu de 25 anos, consolidando-se como um dos mais significativos eventos de poesia em território brasileiro. A curadoria da mostra conta com a supervisão de Ademir Antônio Bacca, coordenador geral do congresso, e de Artur Gomes, coordenador de Literatura. Na mostra, serão homenageados o poetaAlmandrade (BA), por sua trajetória nacional e inter-nacional com a Poesia Visual e a Arte Postal, além do sarau Um Brinde à Poesia (RJ), que tem oportunizado a apresentação da poesia visual contemporânea. Após o período exposi-tivo a mostra terá uma versão na Internet. De acordo com o curador da mostra, o escritor e artista visual brasileiro Tchello d’Barros, a exposição “é um projeto que visa reunir duas vertentes instigantes da chamada poesia experimental, promovendo o encontro dos poe-mas visuais com o sistema da Arte Postal”.

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“{+ POIESIS} – Exposição Internacional de Arte Postal”

INTERFACES DA POESIA VISUAL COM A ARTE POSTAL

por Tchello d’Barros*

’’Poesia é... brincar com as palavras’’

José Paulo Paes

{+ POIESIS} apresenta o possível diálogo entre a linguagem da Poesia Visual e o sistema da Arte Postal, estabelecendo um espaço específico - o Car-tão Postal - como acesso ao leitor/visualizador dos poemas visuais. Esse hibridismo, essa interação, são características que sempre estiveram presentes tanto na tradição da Poesia Visual quanto nas in-ventivas redes de trocas de Cartões Postais, supor-te que tem abrigado criações visuais nas mais vari-adas técnicas e conceitos. Não será exagero lem-brar que muitos(as) autores(as) transitam nestes dois segmentos que ora se tocam, ora se (com)fundem. Qual o lugar ideal da Poesia Visual na contem-poraneidade? Podemos apontar os livros, jornais culturais, exposições, Internet e mídias digitais, além dos hibridismos nas Artes Visuais e outras linguagens, mas antes de tudo talvez possamos considerar que possa ser o lugar de qualquer (bom) poema: onde possa causar reações estéticas, onde possa comunicar. O poema visual é um sobre-vivente de nossa turbulenta passagem para a pós-modernidade, abriu seu espaço na era digital, cru-zou a linha do novo milênio, chegou aos nossos di-as reinventando-se sempre mais, transgressor, crí-tico e político. E não veio apenas para ficar, mas para ampliar seu arco temático, seja pelo viés do humor, seja pela crítica mordaz nas abordagens dos grandes temas da humanidade, desde tensões geopolíticas, desníveis socioeconômicos, as rela-ções humanas, até aspectos inusitados do cotidia-no. A Arte Postal – Arte Correo, Mail Art - por sua vez amplia suas redes de trocas simbólicas para to-dos os continentes, aumentando cada vez mais seus adeptos, e, para além das mostras coletivas, potencializa seus públicos de forma exponencial nos meios virtuais. De uma forma estrutural, ou de sistema, percebemos a Arte Postal, mais viva do que nunca, ampliando suas relações de troca de es-tesias e tráfico de alumbramentos em redes cada vez mais amplas, em nossa sociedade global, num intercâmbio de obras livres das amarras acadêmi-cas, das demandas de mercado e do engessamento institucional.

Atenderam ao Chamado desta {+POIESIS} 72 artistas de 19 países, apresentando propostas de veiculação de suas criações em Poesia Visual, no suporte da Arte Postal, ou seja, Cartões Postais contendo poemas visuais de tema livre, com técni-cas variadas, como desenho, pintura, colagem, in-fogravura, fotografia, reprografia, origamis, cali-grafia, técnicas mistas, selos autorais e carimbos personalizados. E a diversificação se amplia nos es-tilos das imagens bem como nas temáticas dessas obras em que cada Cartão Postal possui elementos de manufatura que os tornam únicos, em contra-ponto com a cultura de massa em que nossa socie-dade está inserida. Provocar relações entre a Poesia Visual e a Ar-te Postal no cenário brasileiro e internacional; esti-mular a presença dessas linguagens e suportes nos meios culturais; e tensionar aspectos conceituais para uma possível reflexão ou debate, são alguns pontos de partida desta mostra {+ POIESIS}. E, ainda que se possa pensar também no aspecto da

difusão de ambas as categorias em território brasi-leiro, é também uma forma de oportunizar mais opções, seja para quem quer adentrar esse sistema com suas criações, seja apenas para quem ama a poesia em todas as suas vertentes. Rio de Janeiro (RJ), Brasil - setembro 2015

*Tchello d’Barros é Escritor, Artista Visual e Curador

Artistas: ALEMANHA: HORST TRESS – MALTE SONNENFELD | ARGENTINA: ADRIAN DORADO – ANA VERÓNICA SU-ÁREZ – CLAUDIA LIGORRIA - MARIA FERNANDA DE BROUSSAIS – CLAUDIO MANGIFESTA – MADO RESNIK – MARCELA PERAL – MATIAS YGIELKA – OMAROMAR – RAQUEL GOCIOL – SILVIA RAQUEL BONDER | AUS-TRÁLIA: ANNEKE BAETEN | BÉLGICA: LUC FIERENS - RENAAT RAMON - SVEN STAELENS | BRA-SIL: ALEXANDRE DACOSTA – ALMANDRADE – BRU-NA BERGER – CARMEM SALAZAR – CONSTANÇA LU-CAS – FERNANDO ABRITTA – GIL JORGE – GLÓRIA W. OLIVEIRA DE SOUZA – GUSTAVO JERONIMO – HUGO PONTES – JOAQUIM BRANCO – KAILA LIPP – MARGA MONTEIRO – TCHELLO D'BARROS – TEREZA YA-MASHITA – YAN BRAZ | CANADÁ: KATYE O'BRIEN | COLÔMBIA: TULIO RESTREPO | DINAMAR-CA: MARINA SALMASO - VICTOR VIDAL | ESPA-NHA: CORPORACIÓN SEMIÓTICA GALEGA – FERRAN DESTEMPLE - JOSÉ L. CAMPAL – PIERRE D. LA | EUA: ARAM SAROYAN – JOHN BENNET – REID WOOD – STEVE DALACHINSKY | HUNGRIA: MÁRTON KOP-PÁNY | ITÁLIA: ANGELA CAPORASO – CINZIA FARINA – CRISTIANO CAGGIULA - FRANCESCO APRILE – GUI-DO CAPUANO – JIMMY RIVOLTELLA – MASSIMO CON-CU – MAYA LOPEZ MURO – ORONZO LIUZZI – ROSSA-NA BUCCI – VIRGÍNIA MILICI | JAPÃO: ANÔNIMO – KEICHI NAKAMURA – NICHOLA ORLICK | MÉXI-CO: JOSÉ LUIS ALCALDE SOBERANES | POLÔ-NIA: MIRON TEE | PORTUGAL: AVELINO ROCHA – BRUNO MINISTRO – MARIA JOSÉ SILVA, MIZÉ - MÁ-RIO LISBOA DUARTE – NUNO MIGUEL NEVES | SUÍ-ÇA: BRUNO SCHLATTER – DARKO VULIC | TURQUIA: MERAL AGAR – TURKAN ELÇI | URUGUAI: CLEMENTE PADIN

Chicos 44

Flausina Márcia

Nasceu em Cataguases - MG, mora em Belo Horizonte– MG, onde tra-

balhou na Secretaria de Cultura de Minas Gerais. Publicou, entre ou-

tros: Vagalume (2002), Sua Casa Minha Cruz (2003) e Poemas Decli-

ves (2014).

T a n g o

Cartórios não registram legados tais como, deixo minha dor, deixo meu amor, deixo minha ale-gria. Nisso pensa Natália, ensimesmada, com um sorriso leve de rosto inteiro, incapacitado de se defun-tar.

Em vez de alô, diz meus pêsames ao serviço de ofertas bancárias por telefone, corrigidos, educa-damente, para o corriqueiro dessas ocasiões: não estou interessada.

Interrupções, eis a vida! Saboreia Natália seu achado filosófico.

Agora, sem saber em que ponto está da vida, ela quer tirar véus, descobrir o segredo da loucura, de outros legados vinda.

“É como se a mente saísse de série”, diz Estaphanie Montoya, em seus nove anos de idade, no livro Casa das Estrelas, de Javier Naranjo.

Pronto, o mundo está pronto para ela, pode ser encontrada nas falhas. Nem sempre, diria seu irmão Haroldo.

- Muita gente estudiosa conversou com ela e desgostou dela.

Eu mesmo, com trinta e três anos de uma vida sem grandes aventuras, pois nem crucificado fo-ra, sabia das coisas caídas em esquecimento. Sofria de invalidez, mas via a invalidez dos outros também.

Encontrei, certa vez, um poema dela e achei a pior coisa do mundo.

Natália acredita que pior coisa do mundo já é alguma coisa, pois anda meio sem mundo. Quando se diz que os jovens têm o mundo pela frente, pode-se concluir que os velhos têm o mundo para traz.

Dentro do mundo, com o mundo dentro, quem¿ Dançarinos talvez, de todas as idades.

Sinto decepcioná-los, caros leitores, esses dois não chegam a um encontro ou desencontro com as devi-das personificações de uma história. São um pretexto apenas para dançar com a palavra amor.

Do amor, pouco tenho

são contas de um colar

topázio único, guardado

minha caixa de belezas.

Do amor, tenho quase nada

foi tanta gente, tudo, tudo

indecifrável, incoerente

tanto, tanto, tanto carne.

Do amor, quase nada

faltou-me, sobrou gente

do meu amor.

Chicos 44

Cataguases

S ã o o s o i t i s ,

s e r á o r i o , s e r á

a p o n t e v e l h a

o o l h o m á g i c o

H u m b e r t o ¿

S ã o o s p o e t a s

s e r á a a r t e , s e r á

m i n h a f a m í l i a

a v o z a t e n t a

R o s á r i o ¿

S ã o o s s o r r i s o s

t r a n s e u n t e s

i n d e f i n i d o s

a p a i s a g e m

p a r a l e l e p í p e d o s ¿

S ã o a s p e s s o a s

s e r á a f a l a , s e r á

o q u i a b o r u i m

c a r o , s e m q u e b r a

E l a d i s s e ¿

O u v i s i m , é

p r o x i m i d a d e

d a s g e n t e s .

S e t e é u m a z a r

D e n t r o e f o r a d e l a

D o m i n g o

F u t e b o l n o r á d i o

M i s s a d a t a r d e

A n o i t e c e c o m

V ã s e g u n d a - f e i r a

P a r a o u t r o d o m i n g o

É d i a m e l a n c ó l i c o

N ã o m a t a a u l a , n e m

T r a b a l h o , c r i s t o m e u

Q u e s e m a n a m a i s i n g l e s a .

M i n h a s e m a n a t e m q u e t e r

V a g a b u n d a g e m n a s e g u n d a

Te r ç a d e l a m e n t a r t a r e f a s

Q u a r t a d e f i c a r a t ô n i t a

Q u i n t a d e t o r c e r p r o g a l o

S e x t a d e j á g a n h o u e

S á b a d o .

Chicos 44

Chicos 44

Existência -1985 - Manabu Mabe

Antônio Perin

Baiano, nasceu em Itaobim - MG, cresceu nas franjas do Meia - Pata-

ca ouvindo sapateiros, costureiras, roceiros, tecelões contarem seus

casos e suas histórias de trabalho. Se encantava com folias de reis e

embriagados calangueiros em seus desafios pelos becos da infância.

Em casa escutava as alucinantes histórias paterna, ouvia a avó negra

cantando benditos em latim enquanto costurava, estranhava a emo-

ção materna entre novelas radiofônicas e os afazeres domésticos.

O repentista me disse:

N ã o b o r d o v e r s o s

r a b i s c o s a l m a s r e b u s c a d a s

N ã o c a n t o a l e g r i a s

a a l e g r i a s e v i v ê n c i a

C h o r o o s o l u ç o d o s e m u d e c i d o s

E c o o u o s i l ê n c i o d o s s u r d o s

S o u a l a g r i m a d o c e g o d i a n t e d a l u z

S o n h o o p e s a d e l o d o m o r i b u n d o .

Fragmento amoroso 1

N a l i n h a t o r t a d a v i d a

u m v e r s o e s c r e v i

c â n t i c o q u e n t e e t e r n o

c a l o r f e b r i l d e p a i x ã o

l e v e z a d e c o r p o n a n q u i m

e r a o a b r i r d a s a l m a s

a c a s a l a d a s n o i n v e r n o

p i e g a s , c o m o m i n h a f é

M a s a i n d a a s s i m u m v e r s o .

Chicos 44

Fragmento amoroso - 2

L i - t e u m v e r s o

d e p r o n o m e ú n i c o

l i n h a d e q u e m d e c a i

v e r m e l h o p a s s i o n a l

s a n g r a d e d o r

e x p l o d e d e a m o r .

F i z - t e u m v e r s o

d e v e r b o ú n i c o

v e l h o e s u r r a d o

b r a n c o e m o c i o n a l

e s t a n c a a d o r

e m b r i a g a o a m o r

T e a m o !

Fragmento amoroso - 3

O p e i t o a r d e , a c a b e ç a e x p l o d e

O f í g a d o i m p l o d e o c o r a ç ã o

A h c o r a ç ã o ! N ã o c i c a t r i z a n u n c a .

B a n g b o o m b a n g A t o p o é t i c o ?

S e m v i d a o a m o r é i n d o l o r .

Chicos 44

Osvaldo Picardo

Nasceu em Mar del Plata em 1955, professor de literatura na Univer-

sidade Nacional de Mar del Plata. Editor da revista La Pecera e dire-

tor da Eudem Editora, é poeta, crítico, ensaísta e tradutor. Entre suas

obras, destacam-se: Apenas en el mundo (1988), Dejar sin ventanas la

verdad (1993), Quis, quid, ubi – Poemas de Quintiliano (1997), Una

complicidad que sobrevive (2001), Pasiones de la línea (Poemas de Nico-

lás de Cusa, 2008), Mar del Plata seguido de Otros Lugares y Viajes

(2012) e 21 gramos (2014). Organizou a coletânea Primer mapa de poe-

sia argentina (2000) e traduziu em parceria com F. Scelzo e E. Moore

The love poemas, de James Laughin (2001).

Vida de poesia

N ã o é s e n ã o u m e x a g e r o p e l o q u e m e n t i m o s e m u m a b i o g r a f i a , “ u m t e r r e m o t o c o n t í n u o o u u m a f e b r e e t e r n a ” . Q u e m p o d e r i a e m t a l e s t a d o , p o r e x e m p l o , a m a r r a r o s c a d a r ç o s d o s s a p a t o s , l a v a r o â n u s t a n t o c o m o o r o s t o e c u s p i r n a m á c o n s c i ê n c i a c o m a q u a l s e e s c r e v e a i n j u s t i ç a ? O s p e r s o n a g e n s d a p o e s i a n ã o e s t ã o n o s p o e m a s q u e t e m o s f e i t o . S ã o o p o e t a d e s e s s e n t a a n o s q u e , s e g u n d o G i a n u z z i , “ i n c o r p o r a a é p o c a d e s u a i n j ú r i a ” m a s t a m b é m a s l o u q u i n h a s a n g u s t i a d a s q u e t e a c o r d a m n a m a d r u g a d a ; e o d e l i c a d o S u f e r n o a o q u a l C a t u l o c r i t i c a v a c o m u m a r a r a c o m p a i x ã o . S e m f a l a r d o s b ê b a d o s d e A l e x a n d e r B l o x q u e “ a c r e d i t a m q u e d e u s o t r o u x e a q u i p a r a b e i j a r o v e n t o e a n e v e … ” N ã o b a s t a a b r i r o L i v r o d a P o e s i a e l e r e m p ú b l i c o . A l u z n ã o é s u f i c i e n t e . E s t á e m o u t r a p a r t e , e n o s a b a n d o n a n a m e s a , d i a n t e d e u m a v e r d a d e i l e g í v e l . .

Tradução: Ronaldo Cagiano

Chicos 44

A mão de Deus

D i e s t r o a q u e l e n v o l v e r c o n d i e s t r a p l a n t a l a p e l o t a q u e h u y e , c o m p e n s a n d o c o n l o s p i e s e l o f i c i o d e l a s m a n o s … ( A s t r o n o m i c o n d e M a n i l i o A n t í o c o , c i r c a s . I d . C )

A b o l a e s c a p a c o m a p o u c a e l e g â n c i a d e u m a c a b e ç a d e c a p i t a d a , r o m p e c o m a s l e i s d a t r a n q u i l i d a d e e c o m o s b o n s m o d o s . P o d e r i a s e r u m d o m i n g o , à t a r d e c o m r u a s v a z i a s e s i l ê n c i o s d e p á s s a r o s . P o d e r i a s e r e m q u a l q u e r p a r t e , e m q u a l q u e r t e m p o , e v e n t o p á t r i o e / o u c i r c o r o m a n o . M a s s ó f o i e m u m l u g a r e e m u m m o m e n t o . A c o i s a é q u e o s a l t o a i n d a e s t á n o a r , n a e x a u s t ã o f i n a l d e u m m ú s c u l o c o n t r a í d o p o r u m a g u e r r a e u m a d e r r o t a . N o s e x t o m i n u t o n a s c e u , d e u m e m p a t e n o s e g u n d o t e m p o . e n a o v a ç ã o s i l e n c i a d a , M a r a d o n a s e e l e v a s o b r e o i n g l ê s . D e p o i s f o i o u t r o d i a , a p e n a s s a i u o s o l e s e f a l o u d a f r a u d e e a t é d e d e u s .

Tradução: Ronaldo Cagiano

Chicos 44

México, Junho de 1986

P e r d o n a m e , e s t a b a n m u y r i c a s , t a n d u l c e s y t a n f r i a . W i l l i a m C . W i l l i a m

E s t e g o s t o n a b o c a e n t r e á c i d o e a l g o d o c e d e u m a a m e i x a n ã o f o i i g u a l a o d e h á m a i s d e t r ê s m i l a n o s ? U m n ã o s a b e c o m o e x p l i c a r f i n a l m e n t e o q u e r e s t a d o i n c h a d o a r r e d o n d a m e n t o c o m q u e p r e e n c h e u s u a m ã o n e m e s s e d u r o d e s e j o d e d u r a r q u e r e s i s t e n a c ó p i a d e s u a c a r n e p o d r e . U m a a m e i x a r o x a , q u a s e n e g r a N ã o é c a p a z d e c o n t e r o u n i v e r s o . N ã o p o d e r á f a z e r c o m q u e n a d a m u d e . E s s e g o s t o é u m a c o n t í n u a p a u s a e m q u e t r o p e ç a m a c u l p a e o p e r d ã o .

Tradução: Ronaldo Cagiano

Chicos 44

Haroldo de Campos, poeta da “transcriação”

Manuel Bandeira

Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho nasceu em Reci-

fe, 19.04.1986 e faleceu no Rio de Janeiro, 13.10.1968. Poeta, crítico

literário e de arte, professor de literatura e tradutor brasileiro.

Tem-se que Bandeira faça parte da geração de 1922 da literatura mo-

derna brasileira, sendo seu poema Os Sapos o abre-alas da Semana de

Arte Moderna de 1922. Com escritores como João Cabral de Melo Ne-

to, Paulo Freire, Gilberto Freyre, Clarice Lispector (ucraniana que se

dizia pernambucana, por ter morado em Recife) e Joaquim Nabuco,

entre outros, representa o melhor da produção literária do Estado

de Pernambuco.

U m a n o i t e d e s t a s , c o n v e r s a v a e u c o m o m e u a m i g o L u í s A n í b a l e n ã o m e l e m b r o m a i s c o m o a c o n v e r s a r e c a i u e m J o s é d e A b r e u A l b a n o . P o u c a g e n t e c o n h e c e r á ê s s e n o m e . F o i u m h o m e m e s t r a n h o , t o c a d o d e l o u c u r a , q u e d e i x o u u n s p o u c o s p o e m a s d e i n s p i r a ç ã o d o c e m e n t e m e l a n c ó l i c a e g r a n d e p e r f e i ç ã o d e f o r m a . E r a p a r a ê l e u m p o n t o d e h o n r a s ó e s c r e v e r e m l i n g u a g e m q u i n h e n t i s t a , p o i s a d o s e u t e m p o l h e a p r e c i a d e u m a v u l g a r i d a d e i n d i g n a d a p o e s i a .

L e m b r o - m e d e o t e r v i s t o v á r i a s v e z e s n a L i v r a r i a G a r n i e r : b a i x o , m e i o g o r d o , b a r b a n e g r a c e r r a d a , m o n ó c u l o , o l h a r p e n e t r a n t e , a n d a v a s e m p r e m e t i d o n u m a s o b r e c a s a c a p r e t a e c h a p é u d e f e l t r o m o l e . L e m b r o - m e d e o t e r v i s t o u m a t a r d e c o n t e s t a r o q u e l h e d i z i a J o ã o R i b e i r o : – “ N ã o d i g a t o l i c e s , J o ã o R i b e i r o ! N ã o d i g a t o l i c e s ! ” F i q u e i e s t u p e f a t o c o m a l i b e r d a d e d a q u e l a s p a l a v r a s , p o r q u e J o ã o R i b e i r o , q u e e r a m e u m e s t r e n o P e d r o I I , m e e n t u p i a d e r e s p e i t o .

O r a , L u í s A n í b a l p r i v a r a c o m o p o e t a e m P a r i s , o n d e J o s é A l b a n o v i v e u l o n g o s a n o s . A f a m í l i a m a n d a v a r e g u l a r m e n t e u m a b o a m e s a d a a o e x p a t r i a d o . M a s ê s t e e s b a n j a v a o d i n h e i r o e m p o u c o s d i a s e p a s s a v a o r e s t o d o m ê s e m q u a s e m i s é r i a . L á j á n ã o u s a v a a s o b r e c a s a c a : a d o t o u u m a e s p é c i e d e b l u s a d e v e l u d o c ô r d e c a s t a n h a e n ã o d i s p e n s a v a a s l u v a s , q u e e r a m p r e t a s e d e t ã o s u r r a d a s d e i x a v a m p a s s a r a s p o n t a s d o s d e d o s .

C o m o s e a r r a n j a v a A l b a n o p a r a v i v e r d e p o i s d e a c a b a d a a m e s a d a ? P r o c u r a v a o s p a t r í c i o s r e c é m - c h e g a d o s e p r o p u n h a - l h e s ( n ã o p e d i a , n ã o e r a m e n d i g o ! ) s u b s c r e v e s s e m a p r ó x i m a e d i ç ã o d e s u a s o b r a s p o é t i c a s c o m p l e t a s .

– Q u a n t o é ? I n d a g a v a o n o v o s u b s c r i t o r , i m p r e s s i o n a d o p e l o a s p e c t o i n s ó l i t o d o v i s i t a n t e .

– T r e z e n t o s f r a n c o s !

N a q u e l e t e m p o e r a u m s ô c o n a b ô c a d o e s t ô m a g o . M a s A l b a n o a c u d i a c o m a a r n i c a : – N ã o é n e c e s s á r i o p a g a r d e s d e l o g o t ô d a a

i m p o r t â n c i a : o s r . D á u m a p a r c e l a p o r c o n t a e e u v o l t a r e i a p r o c u r á - l o à m e d i d a q u e a

i m p r e s s ã o d o l i v r o p r o g r i d a .

A l b a n o s a í a c o m u m a n o t a d e c i n q u e n t a f r a n c o s e i a j a n t a r e m r e s t a u r a n t e c a r o . N o d i a s e g u i n t e e s t a v a d e n o v o e m a p e r t o s .

– P o r q u e f a z i s s o ? P e r g u n t o u - l h e u m a v e z G r a ç a A r a n h a . A o q u e o p o e t a r e s p o n d e u c o m i m e n s a d i g n i d a d e :

– N u m a s o c i e d a d e b e m o r g a n i z a d a o s p o e t a s t e r i a m d i r e i t o a o n é c t a r !

D e u m a f e i t a c h e g o u a P a r i s u m p a u l i s t a m u i t o r i c o c h a m a d o C o n c e i ç ã o . A l b a n o i n d a g o u d e L u í s A n í b a l : – Ê s s e s r . C o n c e i ç ã o

c o m p r e e n d e p o e s i a ?

O m e u a m i g o , q u e v i a o e s t a d o d e p e n ú r i a d o p o e t a , e n ã o p o d i a n o m o m e n t o s o c o r r ê - l o , n ã o t e v e d ú v i d a e m a f i r m a r q u e s i m . O p a u l i s t a s e h o s p e d a r a n o m e l h o r h o t e l d e P a r i s n a q u e l e t e m p o , o C l a r i d g e . A l b a n o d i r i g i u - s e p a r a l á e d e c l a r o u c o m ê n f a s e a o p o r t e i r o : - V e n h o v i s i t a r o s r . C o n c e i ç ã o . O h o m e m o l h o u - o d e s c o n f i a d o e t e l e f o n o u p a r a o a p a r t a m e n t o d o h ó s p e d e . A n u n c i o u “ m r A l b a n ô ” . S u c e d i a q u e o c o r r e s p o n d e n t e d o s r . C o n c e i ç ã o e m P a r i s e r a u m f r a n c ê s d e n o m e A l b a n e l . E o r i c a ç o r e s p o n d e u c o m e f u s ã o a o p o r t e i r o q u e f i z e s s e s u b i r i m e d i a t a m e n t e o v i s i t a n t e . I m a g i n e m a g o r a a s u r p r ê s a d o s r . C o n c e i ç ã o q u a n d o l h e e n t r o u p e l o q u a r t o n ã o a l b a n e l ,

m a s A l b a n o , o n o s s o J o s é d e A b r e u A l b a n o , p r o p o n d o - l h e a s u b s c r i ç ã o d e s u a s o b r a s p o é t i c a s c o m p l e t a s , p r e ç o t r e z e n t o s f r a n c o s ! M a i o r , p o r é m , f o i a s u r p r ê s a d o p r ó p r i o p o e t a a o r e c e b e r d o b o m C o n c e i ç ã o a i m p o r t â n c i a i n t e g r a l , c o i s a q u e n u n c a d a n t e s l h e h a v i a a c o n t e c i d o !

D e s t a v e z o p o e t a f o i p a s s a r d o i s d i a s e m D e a u v i l l e , a p r a i a m a i s e l e g a n t e d e F r a n ç a : o s p o e t a s t ê m d i r e i t o a o n é t a r !

M a s e u n ã o e s t o u b a t e n d o a m á q u i n a e s t a c r ô n i c a p a r a c o n t a r o s e x p e d i e n t e s d e J o s é A l b a n o e m p a r i s , e x p e d i e n t e s e m q u e n ã o h a v i a – é p r e c i s o q u e s e n o t e – n e n h u m e s p í r i t o d e t r a p a ç a : o p o e t a e r a u m h o m e m d i g n o e a l t i v o : a c r e d i t a v a c â n d i d a m e n t e n a f u t u r a e d i ç ã o d e s e u s p o e m a s . E s t o u e s c r e v e n d o s ô b r e e l e p o r q u e L u í s A n í b a l m e r e v e l o u t e r e n t r e o s s e u s p a p é i s u m p o e m a d e A l b a n o q u e j u l g a v a i n é d i t o . L i o s v e r s o s e m e p a r e c e r a m d e u m a g r a n d e b e l e z a .

José de Abreu Albano

Chicos 44

A m é r i c o F a c ó , q u e e r a a m i g o d o p o e t a , é q u e p o d e r á d i z e r s e s ã o r e a l m e n t e i n é d i t o s . I n t i t u l a m - s e “ T r i u n f o ” e s ó p o r a í j á s e p o d e a d v i n h a r a f e i ç ã o e s a b o r p e t r a r q u i s t a d ê l e s . D e s c r e v e A l b a n o e m t e r c e t o s p r i m o r o s o s – o s m a i s p u r o s

q u e e s c r e v e u – a v i s ã o d e u m c o r t e j o d e V ê n u s , o n d e l h e a p a r e c e a b e m - a m a d a , a q u e m f a l a :

A h n ã o m e d e i x e s n u n c a a n d a r s ò z i n h o

M a s d á - m e s e m p r e , e m a f l i ç ã o t a m a n h a ,

U m p o u c o d e c o n s ô l o e d e c a r i n h o .

Ó m e u s o n h o d e a m o r , t u m e a c o m p a n h a

P o r e s t a v i d a , à s v ê z e s t ã o e s c u r a ,

P o r e s t a v i d a , à s v ê z e s t ã o e s t r a n h a .

A q u i n ã o p o s s o d e i x a r d e p a r a r u m p o u c o , p o r q u e j á e s t o u o u v i n d o A u g u s t o F r e d e r i c o S c h m i d t d i z e r c o m o v i d o : – Q u e b e l e z a ! ( R e a l m e n t e , q u e p r o f u n -d i d a d e d e m i s t é r i o e s e n t i m e n t o n e s t e s i m p l e s v e r s o : “ P o r e s t a v i d a , à s v ê z e s t ã o e s t r a n h a ” ! )

A m u s a c o n s o l a o p o e t a n a m e s m a m a r a v i l h o s a t e r z a r i m a e s ã o e s t a s a s s u a s ú l t i m a s p a l a v r a s :

E e m b o r a a g e n t e h u m a n a t e n ã o l o u v e ,

H á s d e v i v e r c o n t e n t e , c o n h e c e n d o

Q u e P o l í m n i a t e i n s p i r a e A p o l o t e o u v e .

E o p o e m a a c a b a :

‘ A s s i m f a l o u a f l a m a e m q u e m e a c e n d o

D e n t r o d o C o r a ç ã o i a a u m e n t a n d o

E n q u a n t o a d o c e v o z i a g e m e n d o .

E e l a q u e d e C u p i d o s e g u e o m a n d o ,

C o r t o u n o b o s q u e o s r a m o s d u r a d o u r o s

E c o ’ u m s o r r i s o m i l a g r o s o e b r a n d o

M e c o r o o u d e m i r t o s e d e l o u r o s . ”

H á q u e m d i g a f a l a n d o d o p o e t a : – P o b r e A l b a n o !

E u n ã o d i g o . P o b r e , c o i s a n e n h u m a ! J o s é d e A b r e u A l b a n o f o i u m a l t í s s i m o p o e t a , e s c r e v e u u m d o s m a i s b e l o s s o n e t o s d a l í n g u a p o r t u g u ê s a e d e t ô d a s a s l í n g u a s , v i v e u p e r f e i t a m e n t e f e l i z d e n t r o d o s e u s o n h o , n a l o u c u r a q u e D e u s l h e d e u e n a m i s é r i a q u e f o i a c r i a ç ã o d e s u a p r ó p r i a m ã o p e r d u l á r i a .

E m F l a u t a d e P a p e l *

* L i v r o d e c r ô n i c a s d e 1 9 5 7 , o n d e M a n u e l B a n d e i r a n a p á g i n a 7 a d v e r t e : “ A s m i n h a s C r ô n i c a s d a P r o v í n c i a d o B r a s i l , c u j a e d i ç ã o , q u e é d e 1 9 3 6 , s e a c h a v a d e h á m u i t o e s g o t a d a , n ã o m e r e c e r i a m r e i m p r e s s ã o : a l g u m a c o i s a d e l a s f o i a p r o v e i t a d a e m o u t r o s l i v r o s , c o m o , p o r e x e m p l o , o q u e s e r e f e r i a a O u r o P r e t o e a o A l e i j a d i n h o ; m u i t a o u t r a p e r d e u a o p o r t u n i d a d e . D e c i d i , p o i s , r e e d i t a r a p e n a s o q u e n e l a s m e p a r e c e u m e n o s c a d u c o , j u n t a n d o - l h e n u m e r o s a s c r ô n i c a s e s c r i t a s p o s t e r i o r m e n t e , a m a i o r i a p a r a o J o r n a l d o B r a s i l . . . . ”

Chicos 44

José Antonio Pereira

Nasceu em Cataguases - MG, é coautor de A casa da Rua Alferes e outras crônicas (2006) e autor de Fantasias de Meia-Pataca (2013).

O noviço

I b r a h i m c h e g o u n a q u e l e l u g a r e j o m e i o a c o n t r a g o s t o ; s o n h a r a d e s e n -v o l v e r s u a c a r r e i r a n u m a c i d a d e m e -d i a n a , m a i s c o n t e m p o r â n e a , m a i s a b e r t a à s s u a s i d e i a s d e j o v e m q u e t i n h a u m a c e r t a a d m i r a ç ã o p e l a r e -v o l u ç ã o d e c o s t u m e s e m p r e e n d i d a p e l o s d e s u a g e r a ç ã o . A f i n a l , g o s t a -v a d e r o c k , d o s c a b e l o s c o m p r i d o s h i p p i e s , d a s i d e i a s d e S a r t r e e S i -m o n e d e B e a u v o i r , à s e s c o n d i d a s l e -r a a t r i l o g i a r o s a - c r u c i f i c a ç ã o d e H e n r i M i l l e r , e m p r e s t a d a d e a l g u n s a m i g o s , t i d o s p e l a s u a f a m í l i a c o m o m á s c o m p a n h i a s . C a i r n u m a c i d a -d e p e q u e n a e c o n s e r v a d o r a a t é o ú l -t i m o f i o d e c a b e l o , n ã o e s t a v a e m s e u s p l a n o s . N ã o t i n h a j e i t o , a h i e -r a r q u i a e r a r í g i d a e q u e m f i z e r a a o p ç ã o p e l a c a r r e i r a f o r a e l e . R e c l a -m a r , n e m c o m o b i s p o a d i a n t a r i a . L á s e f o i . A i n d a n a r u a a o i n d a g a r s o b r e a l o c a l i z a ç ã o d a i g r e j a e s t r a -n h a v a a s r e s p o s t a s , - C ê é o n o v o a j u d a n t e d o O e s p a n h o l ? N o s s a , v o -c ê é t ã o d i f e r e n t e d o O e s p a n h o l . D e d u z i u l o g o e m q u e e m p r e i t a d a e s -t a v a s e m e t e n d o . A p r e s e n t o u - s e a o s e u n o v o l í d e r o C ô n e g o J a v i e r . O i m p r e s s i o n o u f o r t e m e n t e o p o b r e h o m e m . E n t r e a s m u i t a s i n f o r m a -ç õ e s q u e j á o b t i v e r a , s o b r e o p a d r e , o l u g a r e j o e s e u s m o r a d o r e s , s a b i a q u e , a p e s a r d o s o b r e n o m e e s p a n h o l , o c ô n e g o e r a u m g a l e g o q u e n a s c e r a p o r t u g u ê s . Ó r f ã o a o s d o i s a n o s , m i -g r o u c o m o s t i o s p a r a B r a s i l . A l -g u n s , q u e r e n d o p a r e c e r m a i s í n t i -m o s o c h a m a v a m p e l o p r i m e i r o n o -m e , o u t r o s s e r e f e r i a m a e l e c o m o

G a l e g ã o , s e m n e m s a b e r e m p o r q u ê . M a s a m a i o r i a s i m p l e s m e n t e o t r a t a -v a , n a s u r d i n a , d e O e s p a n h o l . N i n -g u é m t i n h a o t o p e t e d e d i r i g i r - s e a e l e n e s t e s t e r m o s . F i g u r a s o t u r n a , a r q u e a d o p e l a i d a d e , o r e l h a s d e a b a n o , r o s t o t r a n s f i g u r a d o p e l a s e s -p i n h a s , c r a v o s d a a d o l e s c ê n c i a e a c o r r o s i v a a ç ã o d o t e m p o . N o m e i o d a c a r a g o r d a , u m n a r i z e n o r m e e a v e r m e l h a d o , a q u e l a s o l h e i r a s n e -g r a s v i n c a d a s p o r p á l p e b r a s c a í d a s f o r m a v a m u m a i m a g e m d e i n q u i s i -d o r m e d i e v a l . E x a l a v a u m c h e i r o e m q u e p a r e c i a m m i s t u r a r - s e v e l a , i n -c e n s o , g u a r d a - r o u p a v e l h o e u m a p i -t a d a d e n a f t a l i n a . A q u e l a f i g u r a t o d a n e g r a c o x e a v a p e l a s r u a s a b a -f a d a s d a c i d a d e ; s o b r e a c a b e ç a u m c h a p é u d e f e l t r o c o m a b a l a r g a p r e -t o , a r r a s t a n d o u m g r a n d e g u a r d a -c h u v a p r e t o c o m u m g r o s s o c a b o d e p i n h o - d e - r i g a , q u e a s v e z e s u s a v a c o m o e s c o r a d o c o r p o , u m a f r á g i l b e n g a l a p a r a c o r p o t ã o p e s a d o . N o p r i m e i r o c o n t a t o , a p r i m e i r a t r o m b a d a . – R a p a z , e s t e s s ã o m o d o s d e s e a p r e s e n t a r ? – C o m o a s s i m , s e -n h o r ? – E s t a s r o u p a s , o r a p o i s ! – M a s f o r a d o c o n t e x t o d e m i n h a s o b r i g a ç õ e s , s e m p r e m e v e s t i a s s i m . – A q u i n ã o ! T e r á s d e s e v e s t i r c o m d i s t i n ç ã o . – S e m p r e u s e i c a m i s e t a s e j e a n s . – E t e m m a i s , e s s a s p o r -c a r i a s q u e u s a s n o s p é s , n e m p e n -s a r . U s a r á s s a p a t o s p r e t o s e b e m e n g r a x a d o s . – M a s n ã o o s t e n h o , m e u s e n h o r ! U s o f r a n c i s c a n a s s a n -d á l i a s , n ã o u s o s a p a t o s . – S i m p l e s , c o m p r e - o s .

Chicos 44

N e s t a r u a , q u e d e s c e a q u i e m f r e n -t e d a i g r e j a , t e m u m a s a p a t a r i a . A S a p a t a r i a d o S e u T e l ê , p r o c u r e - o e m m e u n o m e , e l e t e c o n s e g u i r á u m p a r u s a d o , p o r u m b o m p r e ç o . E l á s e f o i O e s p a n h o l a r r a s t a n d o s u a r a b u g i c e p e l a c a s a a f o r a , l a r -g a n d o o r e c é m - c h e g a d o s o z i n h o n a p o r t a d a s a l a . S e m p r e c i o s a m e n t e c o n t r o l a d o p e l o O e s p a n h o l , t i n h a m e d o d e p e r d e r o c o n t r o l e s o b r e s e u s f i é i s , o n o v i ç o i n i c i a s e u t r a -b a l h o n a p a r o q u i a . R e s i d i n d o c o m o c h e f e , n a c a s a p a r o q u i a l , n ã o s e s e n t i a n e m u m p o u c o à v o n t a d e , n a q u e l a c a s a s o t u r n a . A p ó s a l g u n s d i a s , a q u e l e a r p e s a d o e c o n s e r v a -d o r d a c a s a c o m e ç o u a i n c o m o d á -l o . O e s p a n h o l r a l h a v a p o r q u a l -q u e r c o i s a . O t r a b a l h o p a s t o r a l e r a o u t r a c h a t i c e . S e n t i a - s e c o n s t r a n -g i d o e m s e n t a r n u m c o n f e s s i o n á r i o , o u v i r a q u e l e m o n t e d e p e c a d i l h o s , t o d o s p e q u e n o s e i n g ê n u o s d e s l i -z e s , c o i s a s p e r f e i t a m e n t e n o r m a i s e n a t u r a i s n o e n t r e c h o q u e s d a s r e -l a ç õ e s h u m a n a s . M a s , o q u e i n c o -m o d a v a m u i t o e r a m a l g u n s a t o s d e v i o l ê n c i a . N ã o s e s e n t i a n a d a b e m , t e n t a v a c o n v e n c e r o p e c a d o r a b u s -c a r a s a u t o r i d a d e s . C o n s i d e r a v a a q u i l o m u i t o a l é m d e u m p e c a d o c o n t r a a f é , m a s u m c r i m e c o n t r a d i r e i t o s b á s i c o s d o s e r h u m a n o . C o i s a i n a c e i t á v e l p a r a q u e m s e d i -z i a c r i s t ã o . A t é o d i a e m q u e a t e n d e u u m c i r -c u n s p e c t o c i d a d ã o . E s t e c o n f e s s o u u m a e s p é c i e d e f e t i c h e q u e p r o v o -c a v a i m e n s o p r a z e r , m a s s u b m e t i a s u a e s p o s a a d o r e a d e i x a v a b a s -t a n t e d e p r i m i d a . – S a b e c o m o é ! E l a é m i n h a e s p o s a , t e m q u e c u m -p r i r s u a s o b r i g a ç õ e s d e m u l h e r . – O s e n h o r n ã o p r e c i s a d e u m a c o n -f i s s ã o . P r e c i s a d e u m m é d i c o . I s t o é d o e n ç a ! A r e s p o s t a p r o v o c o u a i r a d o c i d a d ã o q u e a b r u p t a m e n t e l e -v a n t o u d o c o n f e s s i o n á r i o e f o i à p r o c u r a d e O e s p a n h o l . O p e q u e n o p o t e n t a d o , f a z e n d e i r o , c o m e r c i a n t e d o n o d o a r m a z é m , v i a c a d e r n e t a d e f i a d o c o n t r o l a v a q u a s e t o d a a p o -p u l a ç ã o , b a t e u à p o r t a d e J a v i e r r e -c l a m a n d o a c i n t o s a m e n t e d o n o v i ç o , s e u s m o d o s e a p e t u l â n c i a d e m a n -d á - l o p r o c u r a r u m m é d i c o . – O n d e j á s e v i u u m m o l e q u e d e s t e s m e d e s r e s p e i t a r d e s t a f o r m a . O s e -n h o r , D o m A n t ô n i o , t e m q u e e n q u a -d r a r e s t e p i r r a l h o . M e l h o r a i n d a , m a n d e - o e m b o r a d a q u i . A s s u n t o s d e a l c o v a , p a d r e J a v i e r , é n o m á x i -

m o u m p e c a d o . N u n c a , m a s n u n c a m e s m o é u m a d o e n ç a . P a d r e J a v i -e r j á p e r c e b i a q u e o s v e n t o s d a m o -d e r n i d a d e t r a z i d o p e l o j o v e m c h o -c a v a m - s e c o m a q u e l a u r d i d u r a q u e e l e t e c e r a a o l o n g o d o t e m p o . E l e e r a c o n s e l h e i r o d o s h o m e n s p a r a t o d o s o s a s s u n t o s ; c o n t r o l a v a t o d o s o s m o r a d o r e s a o d e t e r , v i a c o n f i s -s õ e s , o s s e g r e d o s d e t o d o s . E x e r c i a e s t e p o d e r s o b r e t o d o s s e m n e n h u m c o n s t r a n g i m e n t o . V i r o u - s e p a r a o c o m e r c i a n t e e d i s p a r o u : – O l h a a q u i , ô J o a q u i m ! V o c ê s a b e m u i t o b e m q u e o q u e v o c ê f a z é p e r v e r s ã o p u r a . E u a n d o p a s s a n d o d o s l i m i t e s d a t o l e r â n c i a r e l i g i o s a p a r a r e m i r t e u s p e c a d o s . V o u c o n v e r s a r c o m o I b r a h i m , m a s v o c ê t e m q u e t o m a r j e i t o . – N u n c a m a i s c o n f e s s o c o m e l e ! A l i á s , e l e n e m a q u i v a i f i c a r . D a n d o d e o m b r o s o d o n o d o a r m a -z é m d e s p e d e - s e d o O e s p a n h o l . S e d i r i g e p a r a a p o r t a . – P a s s a l á e m c a s a p r a u m c a f é ? L a n ç a u m c í n i c o o l h a r p a r a o v e l h o p a d r e , c o n h e c e -d o r q u e é d e s u a s f r a q u e z a s e , m a -q u i a v é l i c o , c o n t i n u a . – V á l á q u e t e c o n t o c o m o é a m u l h e r d o f a r m a -c ê u t i c o . S a í c o m e l a ! O d e s t i n o d e I b r a h i m j á e s t á s e l a -d o . O e s p a n h o l s ó v a i e s p e r a r a m e l h o r o p o r t u n i d a d e p a r a a n u n c i á -l o .

Chicos 44

Emerson Teixeira Cardoso

Nasceu em Cataguases - MG, é autor de Símiles (2001) poesia, coautor de A casa da Rua Alferes e outras crônicas (2006). Traduziu O retorno do nativo de Thomas Herdy. Sempre ativo em publicações literárias. Iniciou-se em Esti-lete (1967), mimeografado, editor/fundador do Delirium Tremens (1983) e Trem Azul (1997).

Diários de Navegação

D i z - n o s u m c r í t i c o n a d a i n g ê n u o d e n o s s a n a c i o n a l i d a d e q u e n e n h u m d e n o s s o s a u t o r e s p o d e s e r a p r e c i a d o s e m r e s e r v a s , e q u e n e -n h u m d e l e s p o d e s e c o m p a r a r a u m F l a u b e r t o u D i c k e n s . N ã o h á a í n e -n h u m e x a g e r o s e p e n s a r m o s q u e n e -n h u m d e n o s s o s p e r í o d o s l i t e r á r i o s s e c o m p a r a m a o R e n a s c i m e n t o n a I t á l i a o u a o R o m a n t i s m o n a F r a n ç a . A l g u é m p o d e r i a c o n t e s t a r i s t o ? M a s , n o a l h e a m e n t o à g l ó r i a , n o d e s p r e n d i m e n t o , e s s e m e s m o c r í t i c o n o s m o s t r a q u e n o p r i m i t i m i s m o d e n o s s a s l e t r a s e s s e s n o s s o s e s c r i t o -r e s b u r o c r a t a s t i v e r a m l a m p e j o s d e g r a n d e s p o e t a s . I s s o , m e i o s é c u l o a n t e s d e n o s s o c é l e b r e j e s u í t a e s c r e -v e r n a a r e i a o s v e r s o s à v i r g e m : “ c o r d e i r i n h a m a n s a ” [ . . . ] O u t r o s p o d e r i a m a f i r m a r q u e e s -s e s a u t o r e s , é c l a r o q u e m e r e f i r o a o s v i a j a n t e s e m s e u s f a m o s o s d i á -r i o s d e n a v e g a ç ã o , s e n d o o m a i s n o -t á v e l d e l e s P e r o V a z d e C a m i n h a , n ã o e r a m b r a s i l e i r o s , m a s é i n e g á v e l q u e t a i s o b r a s n a s c e r a m e m n o s s a s á g u a s e v e r s a v a m s o b r e n o s s a s c o i -s a s e n o s s a g e n t e . C o m p o r m e n o r e s t o p o g r á f i c o s e n o t a s d e h u m o r p r e c e d e u a e s t e , o u -t r o i n c i p i e n t e h i s t o r i a d o r P e r o L o -p e s d e S o u s a . S e u s u c e s s o r r e s p o n d e p o r t e r s i d o t a m b é m a l é m d e p o e t a o m a i s a n t i g o p r e c u r s o r d e n o s s o t e a -t r o c o m s e u s a u t o s m o r a l i z a d o r e s . M a n o e l d e N ó b r e g a f o i o u t r o j e -s u í t a q u e r e l a t o u d a d o s b a s t a n t e p i -t o r e s c o s s o b r e “ o g e n t i o d o s e r t ã o ” , “ o s d e g r e d a d o s ” , “ a s p r e g a ç õ e s ” e b a t i s m o s . G a r a t u j a d o s à s p r e s s a s , s e m p r e m e d i t a ç ã o d e e s t i l o e r a m h o -m e n s d e l e t r a s q u e d e s c o n h e c i a m a s d e f o r m a ç õ e s p r o f i s s i o n a i s d a “ g r a n d e l e t t r e r i e ” . E n a d a m a i s c a t i v a n t e q u e e s s a i n g e n u i d a d e , e s s a s i m p l i c i d a d e p a r a q u e m a l i t e r a t u r a n ã o c o n s t i t u í a u m m e i o e n ã o u m f i m . N o q u e s i t o e p i s t o l a r , a s r i c a s c a r t a s d e d o c u m e n t o s f o l c l ó r i c o s e m b o r a d e s t i t u í d a s d e p a t e n t e s t i -n h a m o s o l h o s b e m a b e r t o s p a r a q u e h a v i a a o r e d o r d e s i . F i n a l m e n t e G a n d a v o , q u e f o i a m i g o d e C a m õ e s , c o m q u a l i d a d e s d e n a t u r a l i s t a e g r a d a ç õ e s d e r e c e n s e a -d o r , l o u v o u o n o s s o c l i m a , n o s s a f a u n a d e s p e r t a n d o e m o ç õ e s p a n t e í s -t a s .

A í n o s f i n a i s d o p r i m e i r o q u a r t e l d o s é c u l o X V I I o u v i u - s e a p r i m e i r a v o z a u t e n t i c a m e n t e n o s s a . V o z b r a -s i l e i r a e b e m r e p r e s e n t a t i v a d o s f i -l h o s d e s t a t e r r a : F r e i V i c e n t e d e S a l v a d o r . S u a m í m i c a é v i v a z c o m o a d e u m “ c a n t a s t o r i e ” n a p o l i t a n o : d i z o c é l e -b r e c r í t i c o e h i s t o r i a d o r . A n t e s d e p ô r o p o n t o f i n a l n e s t a s m a l a l i n h a v a d a s l i n h a s d e v o d i z e r q u e e s t e s c o n c e i t o s a p r e s e n t a d o s a q u i e m C h i c o s p o r e s t e m o d e s t o e s -c r i b a e s t ã o e m E v o l u ç ã o d a P r o s a B r a s i l e i r a , e d i t a d a l á n o s a n o s t r i n -t a . S e u a u t o r é o e x c e l e n t e , A g r i p i -n o G r i e c o .

N o t a d a R e d a ç ã o

A g r i p i n o G r i e c o

n a s c e u e m P a r a í b a d o

S u l - R J e m o r r e u n o

R i o d e J a n e i r o - R J

1 9 7 3 . C r í t i c o l i t e r á r i o ,

p o e t a , c o n t i s t a , t r a d u -

t o r , j o r n a l i s t a . F i l h o

d o s i t a l i a n o s P a s c o a l

G r i e c o e R o s a C o v e l l o

G r i e c o , p r o v e n i e n t e s d e

B a s i l i c a t a . E m 1 9 0 6 ,

m u d a - s e p a r a o R i o d e

J a n e i r o e c o m e ç a a c a r -

r e i r a d e f u n c i o n á r i o p ú -

b l i c o n a C e n t r a l d o B r a -

s i l . E s t r é i a n a l i t e r a t u -

r a c o m u m a o b r a d e p o -

e s i a , Â n f o r a s , e m 1 9 1 0 ,

e t r ê s a n o s d e p o i s c o m

u m c o n j u n t o d e c o n t o s

i n t i t u l a d o E s t á t u a s M u t i l a d a s . D e 1 9 1 3 a t é 1 9 2 0 d e d i c a -

s e i n t e i r a m e n t e à l e i t u r a d e a u t o r e s c l á s s i c o s e r o m â n t i -

c o s s e m n a d a p u b l i c a r . A p a r t i r d e e n t ã o e s c r e v e c o l u -

n a s l i t e r á r i a s e m p e q u e n o s j o r n a i s e r e v i s t a s a t é s e r

c o n v i d a d o p e l o c r í t i c o T r i s t ã o d e A t a í d e a s u b s t i t u í - l o

e m O J o r n a l , e m q u e e s t r é i a c o m a r t i g o s o b r e o p o e -

t a G r e g ó r i o d e M a t o s . E e s s e s s e u s p r i m e i r o s a r t i g o s

s ã o r e u n i d o s e m F e t i c h e s e F a n t o c h e s , d e 1 9 2 1 ,

e C a ç a d o r d e S í m b o l o s , d e 1 9 2 3 . E m s u a s c o l u n a s t o r n a -

s e t a m b é m g r a n d e d e f e n s o r d a o b r a d o p o e t a C a s t r o A l -

v e s . S u a i m p o r t â n c i a n o m e i o l i t e r á r i o , d o i n í c i o d a d é -

c a d a d e 1 9 2 0 à d é c a d a d e 1 9 5 0 , e s t á d i r e t a m e n t e l i g a d a

a o f a t o d e p e r m a n e c e r t o d o e s s e t e m p o e s c r e v e n d o d i a r i -

a m e n t e e m i m p o r t a n t e s j o r n a i s , c o m s u a s c o l u n a s c a r a c -

t e r i z a d a s p e l o e c l e t i s m o e p e l o t o m p o l ê m i c o e s a t í r i c o ,

t r a t a n d o d e e s c r i t o r e s b r a s i l e i r o s , e s t r a n g e i r o s e l a n ç a -

m e n t o s . E m c o m e m o r a ç ã o a o c e n t e n á r i o d e s e u n a s c i -

m e n t o , e m 1 9 8 8 , é l a n ç a d o o v o l u m e G r a l h a s e P a v õ e s ,

c o m o r g a n i z a ç ã o d o f i l h o D o n a t e l l o G r i e c o , q u e t r a z

a p o n t a m e n t o s i n é d i t o s e s c r i t o s e m p e q u e n a s t i r a s d e p a -

p e l e e n c o n t r a d o s e m c a i x a s d e s a p a t o .

Chicos 44

Luiz Ruffato

Nasceu em Cataguases - MG, reside em São Paulo - SP. Entre tantas obras de sua autoria destacam-se: Eles eram muitos cavalos, de 2001, ganhou o Troféu APCA oferecido pela Associação Paulista de Críticos de Arte e o Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional. Esse livro o tornou um escritor reconhecido no país. Em 2011 concluiu o proje-to Inferno Provisório, com a publicação do romance Domingos Sem Deus, iniciado com Mamma, son tanto Felice em 2005, composto por cinco livros sobre o operariado brasileiro.

Lendo os Clássicos

Este, que é o único romance de

Poe, mostra a poderosa imaginação do au-

tor. Escrito em primeira pessoa, trata -se de

uma mescla de aventura e terror, gêneros

que, embora já existissem antes, ganharam

com ele roupagem nova. Filho de comerci-

antes de Nantucket, importante porto bale-

eiro situado na costa leste dos Estados Uni-

dos, Pym é um jovem entediado em sua ci-

dade, desejoso de ganhar os mares. Sua

sorte muda quando embarca clandestina-

mente no barco do capitão Barnard, pai de

seu amigo Augustus. O que deveria ser

uma expedição de pesca à baleia transfor-

ma-se em um relato que vai do mais extre-

mado realismo ao mais desvairado fantásti-

co. Ao longo da narrativa, Pym descreve

motins, rebeliões, pirataria, e até uma cena

terrível de canibalismo. Após uma série pe-

ripécias, ele e um marujo chamado Peters,

únicos sobreviventes de um naufrágio, são

reembarcados no navio Jane Guy, que ul-

trapassa todas as fronteiras conhecidas dos

Mares do Sul, para além do Círculo Polar

Antártico, onde sobrevivem tribos selva-

gens em mundos primitivos. Poe inova ter-

minando a narrativa de Pym in media res -

ou seja, abruptamente. O ponto fraco do

livro é o uso exagerado da linguagem técni-

ca marítima, que serve para provocar a

sensação de verossimilhança, mas torna a

leitura arrastada.

Avaliação: Bom

Julho de 2015

h t t p : / / l e n d o o s c l a s s i c o s l u i z r u f f a t o . b l o g s p o t . c o m . b r /

A nar rativa de Ar thur de Gordon Pym (1838)

Edgar A l lan Poe (1809 - 1849)

Tradução de José Marcos Mar iani de Macedo

São Paulo : Cosac Nai fy, 2010 , 312 pág inas

Chicos 44

José Antonio Pereira

Nasceu em Cataguases - MG, é coautor de A casa da Rua Alferes e outras crôni-cas (2006) e Fantasias de Meia-Pataca (2013).

A ponte que falava latim

“Toda ponte é passagem, mas foi também trampolim

para muitos rapazes, moças não, darem mergulho no

rio, exibir façanhas e lavar a alma.

"Ícones" não contam uma história, nós contamos.”

Flausina Márcia da Silva

A ponte, do meu ir e vir, era a Ponte

Nova. Um horror arquitetônico malcuidado;

feia, suja, desprezada, mesmo assim, intensa-

mente utilizada por todos para quase tudo. Era

por ela, que ônibus lotados de operários os con-

duziam rumo aos seus empregos de menor va-

lia; por ela corria-se, de todas as formas, com os

doentes em suas dores e sofrimentos. Era uma

estrutura de concreto ligando uma barranca a

outra do Rio Pomba, que me conduzia ao mundo

para além do mundo dos mortos.

Ao cruzar a Ponte Nova, rumo aos muitos mun-

dos por onde andei, sempre lançava um olhar

desconfiado para a imponente silhueta metálica

cruzando o rio mais acima. A Ponte Velha era no

meu imaginário, desde a infância, uma espécie

de Portal que ligava dois mundos, de um lado o

mundo dos vivos do outro o dos mortos e sepa-

rando os dois, as águas do rio.

Ainda no colo de minha mãe, crescia acompa-

nhando procissões e enterros em que analfabe-

tos (eu também era) pranteavam: Salve, Regina,

mater misericordiae, vita, dulcedo, et spes nos-

tra, salve. Ad te clamamus, exsules filii Evae.

Ad te suspiramus, gementes et flentes in hac la-

crimarum valle. Eu nem falar sabia, mas o la-

tim rondava meus ouvidos.

A primeira vez que atravessei a velha ponte,

com certeza foi num cortejo fúnebre. Acho que

foi no enterro do velho Antônio Vicente, meu

avô. Provavelmente, no colo do meu pai, já que

minha mãe deveria estar dividindo seus prantos

com os de minha avó. Nem poderia me dar con-

ta do diálogo da ponte com meu avô: Revertere

ad me suscipiam te.

Cruzei a Ponte Velha, pela última vez num corte-

jo fúnebre, já adulto. Era o enterro do meu pai,

outro Antônio. Já não havia mais ladainhas nem

o Credo in unum Deum, Patem onipotentem fac-

torem... do funeral do meu avô, não se usava

mais. Apenas o murmúrio de conhecidos e ami-

gos da família que detalhavam, para os recém-

chegados, como ocorrera o seu falecimento; ou-

tros lamentavam a queda do preço da arroba de

boi... Distante disto, eu no meio da ponte imagi-

nava que as águas que corriam sob o corpo dele,

eram as águas do rio Lete. Doravante ele esque-

cerá a hipocrisia de alguns que o acompanham.

Esquecerá Cataguases, Itaobim, o rio Jequiti-

nhonha, o rio Meia-Pataca... Tudo ficará do lado

de lá. Acabamos de cruzar a ponte, ergo a cabeça

e olho para trás.

A ponte tenta um último diálogo: Pacifisucne est

ingressus tuus?

Chicos 44

Ronaldo Cagiano

Nasceu nem Cataguases - MG e reside em São Paulo - SP.

Publica, regularmente, artigos e criticas literárias em diversos jornais e revis-tas do país e do exterior. Entre os vários já publicados destacam-se: Palavra Engajada (poesia 1989) Exílio (poesia 1990) Palavracesa (poesia 1994) Canção dentro da noite (poesia 1999) Dezembro indigesto (contos 2001) Concerto para arra-nha-céus (contos 2004) Dicionário de pequenas solidões (contos 2006) O sol nas feri-das (poesia 2011) Moenda de silêncios (novela em parceria com Whisner Fraga 2012).

E m l i t e r a t u r a , o b o m - m o c i s m o e o p o l í t i c a ( o u s e r i a l i t e r a r i a m e n -t e ? ) c o r r e t o n ã o c o n v e n c e m e c o s t u -m a m r e v e l a r e s c r i t o r e s q u e t r a z e m à b a i l a s e m p r e o m a i s d o m e s m o , c o n -v e r t i d o à s b e n e s s e s d o m e r c a d o e d i t o -r i a l . A v e r d a d e i r a l i t e r a t u r a , p a r a m i m , é a q u e l a q u e p r o v o -c a i m p a c t o . Q u e n ã o s e j a a p e n a s c a u d a t á r i a o u e m u l a ç ã o d e u m a r u p t u r a f o r m a l q u e , m u i t a s v e z e s r e d u n d a n o v a z i o e n a f a l -t a d e c o n t e ú d o , m a s , p r i -m o r d i a l m e n t e , a q u e s e f i r m a n o q u e a n a r r a t i v a t e m d e v i s c e r a l e i n q u i e -t a n t e , t a n t o n o p l a n o t e -m á t i c o q u a n t o n a c o n s -t r u ç ã o d a p r ó p r i a a t m o s -f e r a .

É n e s s e p a t a -m a r – o d a n e g a ç ã o d a s c o n v e n ç õ e s e d a p r ó p r i a a f e t a ç ã o , m o d i s m o s e r o -t u l a ç õ e s d e q u a l q u e r n a -t u r e z a – q u e s i t u o o n o v o l i v r o d e C a c o I s h a k , “ E u c o w b o y ” ( E d . O i t o e M e i o , R i o , 2 0 1 5 ) . A m e u v e r , e s -s a o b r a a n d a n a c o n t r a -m ã o d e t u d o o q u e v e m s e n d o p u b l i c a d o a t u a l -m e n t e n o B r a s i l e m t e r -m o s d e f i c ç ã o e q u e m u i -t a s v e z e s j á c h e g a c o m o p a c o t e s a c r a -l i z a d o p o r c e r t a c r í t i c a d e e n c o m e n -d a , r e c e b e n d o o i n c e n s o d o c o n s e n s o , m a s q u e , n o f r i g i r d o s o v o s , v a m o s p e r c e b e r q u e n ã o r e s i s t e a u m e s c r u -t í n i o , a u m m e r g u l h o m a i s p r o f u n d o d o l e i t o r e a t é d a c r í t i c a s i n c e r a .

“ E u , c o w b o y ” t r a n s i t a n u m u n i v e r s o e m q u e a r u p t u r a s e d á , r e p i t o , n ã o p e l a d e m o l i ç ã o d a f o r m a , m a s p e l a p u n g ê n c i a d e u m a a g u d a c a -t a r s e e x i s t e n c i a l q u e i r r o m p e v u l c â -n i c a d a s v o z e s d e u m n a r r a d o r t ã o c a -ó t i c o , q u e c o a b i t a c o m I s h a k /K a d d i s h , o t e m p ( l ) o d o s p e r d e d o r e s . B i f u r c a d o s , a t a l h a d o s s e m s e u s d i l e -m a s í n t i m o s e m e t a f í s i c o s , p e r d i d o s n o l a b i r i n t o d e s e u s q u e s t i o n a m e n t o s

f i l o s ó f i c o s e o u t r a s i n f l e x õ e s c é t i c a s , o q u e l e m o s é s o b r e v i d a ( s ) t r a n s c o r -r e n d o e n t r e o d i l a c e r a m e n t o e a f r u s -t r a ç ã o . É o r o m a n c e s o c o - n o -e s t ô m a g o , a q u e l e q u e n ã o n o s d e i x a s a i r i n d i f e r e n t e s c o m o l e i t o r e s , m u i -t o m e n o s i l e s o s c o m o c r i a t u r a .

N ã o s e d e v e c r e d i -t a r e s s e r e b u l i ç o à l i n g u a -g e m , p o r q u e C a c o I s h a k n ã o é u m a u t o r a f e i t o à s e s t r i p u l i a s v e r b a i s , p o i s s u a n a r r a t i v a n ã o p r e s c i n -d e d e q u a l q u e r a p e l o à v a n g u a r d i c e o u i n v e n c i o n i -c e s . M e s m o n a l i n e a r i d a d e c o m q u e e s c r e v e , o a u t o r i n s u f l a u m a d i c ç ã o p r e d o -m i n a n t e m e n t e f r a g m e n t á -r i a n a q u i l o q u e é p e r c e b i -d o c o m o i n t e r s e ç ã o d e v á -r i o s m o d o s d e o l h a r , p e n -s a r , d i s c o r r e r & d i a l o g a r s o b r e o c a o s e a a r i d e z q u e n o s r o d e i a m , p o n t o c r u c i a l e d e i n s u r g ê n c i a d e u m n a r r a d o r e m p e r m a n e n t e e s t a d o d e d e s a s s o s s e g o . I s h a k d i a l o g a c o m a m o d e r n i d a d e e a t r a d i -ç ã o , s e u t e x t o h í b r i d o e s t á p o v o a d o d e r e f e r e n c i a i s e s t é t i c o s , e m q u e o f l e r t e c o m í c o n e s d a c u l t u r a p o p e / o u u n i v e r s a l g e r a u m

d i s c u r s o q u e n ã o a t e n u a n o s s a s d ú v i -d a s , p e l o c o n t r á r i o a s a t u a l i z a e s u -g e r e r e f l e x ã o c r í t i c a s o b r e o q u o t i d i -a n o e o d e s m a n t e l a m e n t o d a c i v i l i z a -ç ã o a r b i t r á r i a d o c o n s u m o e d a m a s s m e d i a . U m n e c e s s á r i o v ô m i t o l i t e r á -r i o e c o n c e i t u a l c o n t r a e s s e m u n d o f e t i c h i z a d o p e l o d e u s m e r c a d o , q u a n -d o t u d o n ã o p a s s a d e v e r n i z e e t i q u e -t a c o i s i f i c a n d o t u d o e t o d o s .

N a a b e r t u r a d o r o m a n c e , o n a r r a d o r C a r l o s K a d d i s h ( a q u i a r e -f e r ê n c i a b e a t n i k n ã o é a l e a t ó r i a , m a s a f i r m a ç ã o d o p r o j e t o d o a u t o r n a c o n -f i g u r a ç ã o d e s e u e s t i l o m a r c a n t e e q u e b e b e n a s f o n t e s d o i n c o n f o r m i s -m o ) , n o s d á a s p i s t a s p a r a o n d e q u e r l e v a r o l e i t o r .

Geografia do caos numa prosa dilacerante

Chicos 44

N o c a u t e a n d o - n o s c o m u m a p r o -s a a o m e s m o t e m p o r a d i c a l , m a s d e u m a p o é t i c a c o n t u n d ê n c i a , s i n a l i z a q u e , a p e s a r d o s e s c o m b r o s e c i n z a s d e u m a r e a l i d a d e f í s i c a , g e o g r á f i c a o u p s i c o l ó g i c a e x t r e m a d a n o s 2 7 c a p í t u l o s d o l i v r o , a i n d a p o d e m o s s a i r d a e s c u r i d ã o d o t ú n e l r e v e l a d o “ n a e s p e r a n ç a d e o d i a r u m p o u c o m e n o s a h u m a n i d a d e ” .

“ E u , c o w b o y ” é u m l i v r o o u s a d o e i n o v a d o r , p o r é m r e n o v a d o e m s e u s a s p e c t o s , p e c u l i a r i d a d e s e s u -t i l e z a s d e n t r o d a p r ó p r i a t r a d i ç ã o n a r r a t i v a , c h a c o a l h a n d o o r o m a n c e b u r g u ê s o c i d e n t a l , p o r i s s o m a n t é m- s e a t u a l , c o n t e m p o r â n e o e c o m g a -n a s d e m a r c a r s e u e s p a ç o n e s s e c e -n á r i o d e l i t e r a t u r a r e p e t i t i v a e m o -n o c ó r d i c a q u e t e m v i c e j a d o p o r a í . N e s s a e x p e r i ê n c i a c r i a t i v a , o a u t o r t r a t o u d e d i l e m a s q u e c o m p õ e m o c a l e i d o s c ó p i c o v i v e n c i a l d e q u a l -q u e r s e r e h á u m f l e r t e c o m a m e t a -l i n g u a g e m e a i n t e r t e x t u a l i d a d e m u i t o f o r t e s , c o n f e r i n d o à o b r a u m a p a r t i c u l a r i d a d e p o l i f ô n i c a .

V a m o s e n c o n t r a r n e s s a g e o g r a -f i a d e n s a , t e n s a , c a ó t i c a e d i l a c e -r a n t e u m n a r r a d o r p e r d i d o , m a s e m b u s c a d e u m s e n t i d o o u d e u m a d i -r e ç ã o . T u d o i s s o a p a r t i r d a v i s ã o a l u c i n a d a e r e f l e x i v a d e K a d d i s h q u e , d e s e u p r o m o n t ó r i o , o b s e r v a n -d o o m i c r o c o s m o d e B e l é m , r e g u r -g i t a a l e m b r a n ç a d a i n f â n c i a e a m e m ó r i a d e o u t r o s t e m p o s , p a r a e x o r c i z a r s e u s f a n t a s m a s n a m e d i -d a e m q u e t o c a e m s e n t i m e n t o s , p a -r a d o x o s e c o n f l i t o s . D a í o c a r á t e r h u m a n o e a t e m p o r a l d e s s a s d e a m -b u l a ç õ e s , p o r q u e s ã o p e n s a m e n t o s e s e n t i m e n t o s e n c o n t r a d i ç o s e m q u a l q u e r l u g a r e é p o c a n o m u n d o . E s e n ã o h á u m f i o c o n d u t o r o u u m l i a m e , o q u e j u n t a a s p o n t a s d e s s e n o v e l o s ã o o s e l e m e n t o s q u e d e t e r -m i n a m a s f r a t u r a s d e s s a s v i d a s : c r i s e d e i d a d e , v i a g e n s i n t e r r o m p i -d a s , p a t e r n i d a d e a c i d e n t a l e o a m o r e v i d a q u e p o d e r i a m t e r s i d o e n ã o f o r a m . O s a t a l h o s d o p e r c u r -s o e a s g u e r r a s s i l e n c i o s a s d e c a d a u m n e s s e s t r a j e t o s q u e g u a r d a m a n a l o g i a c o m o b r a s p a r a d i g m á t i c a s ( c o m o “ O n t h e R o a d ” , “ P e r g u n t e a o p ó ” e “ O a p a n h a d o r n o s c a m p o s d e c e n t e i o ” ) , a m a l g a m a d o p o r u m e s -p e c t r o b u k o w s k i a n o q u e d á o t o m e s c a t o l ó g i c o a u m a h i s t ó r i a q u e a s -s i m i l a t a m b é m u m a c e r t a r i q u e z a i m a g é t i c a e d e r e s i s t ê n c i a t í p i c a d e u m a c e n o g r a f i a p a s o l i n i a n a .

E s t a m o s m e s m o d i a n t e d e u m r o m a n c e - d e p o i m e n t o , d e u m a n a r -r a t i v a - t e s t e m u n h o , d e c o n f i s s õ e s g e r a c i o n a i s , c o m o u m r i o f r e n é t i c o e i n v e n c í v e l q u e c a r r e g a o s a t r i t o s e d e t r i t o s d a s m a i s r e c ô n d i t a s n a -v e g a ç õ e s d o s e r n a c o n t r a c o r r e n t e d e s e u s p r ó p r i o s d e l í r i o s .

E i s a o b r a r e v e r b e r a n d o a s i d i -o s s i n c r a s i a s e p e r p l e x i d a d e s d e u m p e r s o n a g e m ( e t a m b é m d e u m a u -t o r ) q u e l e v a a o p a r o x i s m o t a n t o a l i n g u a g e m q u a n t o o s e u d e s a l e n t o d i a n t e d a s t r u c a g e n s d e s s e m o n d o c a n e q u e a í e s t á :

“ S e m p r e m e s e n t i u m f o r a s t e i -

r o . A p r e n d i a m e c o m p o r t a r c o m o u m . A m e s a f a r c o m o u m . N e m s o t a -q u e e u t i n h a . M a i s f á c i l p a r a m i m . N ã o e s c o l h e r . ( . . . ) C o n t i n u o a n -d a n d o c o m o s m e s m o s f r u s t r a d o s d e s e m p r e e s ó p o r q u e e u m e s i n t o b e m a o l a d o d e l e s . O p r a z e r d e e m -p u r r a r p o r e m p u r r a r . E u t a m b é m , u m f r u s t r a d o . ( . . . ) C o n d e n a d o s à l i b e r d a d e , a c a b a m o s t o d o s j u n t o s e p e r d i d o s , p r e s o s n o m e s m o b a r c o . N ã o d á p r a s i m p l e s m e n t e e s t a c i o -n a r u m b a r c o n o a c o s t a m e n t o e e s -p e r a r a t e m p e s t a d e p a s s a r . O c u r s o s e g u e . O f l u x o s e g u e . A v i d a d e v e s e g u i r . T o d o s j u n t o s e p e r d i d o s , p r e s o s n o m e s m o b a r c o . E u , l o s e r d e s d e o p a r t o . U m m o l e q u e b r a n c o a g u a d o , c r i a d o a l e i t e c o m p e r a , t u d o p r a d a r c e r t o n a v i d a s e g u n d o e s s e m u n d i n h o m a c h i s t a d e m e r d a , m a s c a l h e i d e s e r l o s e r . B r a n c o . E h o m e m . S ó m a i s u m f r a c a s s a d o . ”

C a c o I s h a k c o n s t r u i u u m a s e n -

s í v e l , p o r é m a v a s s a l a d o r a m e t á f o r a d a i n s u l a r i d a d e q u e m u i t a s v e z e s é s i n t o m a d a r e a l i d a d e c o n t e m p o r â -n e a , t ã o v i r t u a l e i s e n t a d o “ s e r ” , i m p o n d o a t r a g é d i a i n d i v i d u a l ( o u c o l e t i v a ) d e s s a d e s c o n f o r t a n t e c e r -t e z a d e n o s s e n t i r m o s s e m p r e d e s -l o c a d o s , p e r d e d o r e s o u f o r a s t e i r o s , e s t r a n g e i r o s d e n ó s m e s m o s .

E u c o w b o y ” n ã o é m a i s u m l i v r o

n o c e n á r i o r e q u e n t a d o d a f i c ç ã o n a c i o n a l , é o b r a p r o v o c a t i v a e q u e i n s t a u r a u m s e n t i d o n ã o a p e n a s e s -t é t i c o , m a s u m a p r e o c u p a ç ã o é t i c a c o m o d e s t i n o d o p r ó p r i o s e r . C o -m o d i s s s e K a f k a n u m a c a r t a a u m a m i g o , ' ' S e o l i v r o q u e e s t a m o s l e n -d o n ã o n o s d e s p e r t a c o m o u m p u -n h o q u e m a r t e l a n o s s o c r â n i o , p a r a q u e l ê - l o ? ' ' N e c e s s á r i o s , d i z e l e , s ã o ' ' o s l i v r o s q u e s e a b a t e m s o b r e n ó s c o m o a d e s g r a ç a , c o m o a m o r t e d e a l g u é m q u e a m a m o s m a i s d o q u e a n ó s m e s m o s ' ' . A s s i m n o s f a z s e n -t i r e s s e l i v r o h e c a t o m b e d e C a c o I s h a k

E s c r i t o r , t r a d u t o r e j o r n a l i s t a , m e s t r e e m e p i s t e m o l o g i a d a C o m u -n i c a ç ã o p e l a U S P , C a c o I s h a k n a s -c e u e m G o i â n i a , m u d o u - s e a o s c i n -c o a n o s p a r a B e l é m e r e s i d e a t u a l -m e n t e e m S ã o P a u l o . É a u t o r d e “ D o s v e r s o s f a n d a n g o s o u a m á r e -p u t a ç ã o d e u m e s t u l t o e m p o l v o r o -s a ” ( 2 0 0 6 ) e “ N ã o p r e c i s a d i z e r e u t a m b é m ” ( E d . 7 L e t r a s ) , 2 0 1 3 ) , t e m p u b l i c a d o e m d i v e r s o s j o r n a i s , s u -p l e m e n t o s , p l a t a f o r m a s e r e v i s t a s , e n t r e o s q u a i s “ P o e s i a S e m -p r e ” ( B i b l i o t e c a N a c i o n a l ) ; “ L e t r a s n a R e d e ” ( c u r a d o r i a d e H e l o í s a B u -a r q u e d e H o l l a n d a , B r u n a B e b e r e O m a r S a l o m ã o ) ; “ R u í d o e L i t e r a t u -r a ” , “ N a T á b u a ” e “ O r q u e s t r a L i t e -r á r i a ” , t e n d o a i n d a o r g a n i z a d o c o m A n d r é C z a r n o b a i a p r i m e i r a g a l e r i a v i r t u a l b r a s i l e i r a , b a i x o . c a l ã o ( 2 0 0 7 - 2 0 1 0 ) , v o l t a d a à a r t e u r b a n a e a o l o w b r o w .

Chicos 44

Antônio Jaime Soares

Nasceu em Cataguases - MG, lá na Chave.

Já foi redator de publicidade. Poeta e cronista publicou Pedra que não

quebra (2011)

€uroporaí

Parte 1: Espanha; Parte 2: Itália; Parte 3: Inglaterra e França

Entusiasmei-me como um imbecil.

Jean-Paul Sartre

Entrei em Paris a pé. Se alguém duvidar, que aguarde a terceira parte deste diário de um pas-sageiro de primeira viagem (maio-junho/1985). Bem sei que é jeca falar de lugar onde só se esteve uma vez, entanto, José Antonio Pereira quis veicular na Chicos, e justificou: “Acho legal publicar o teu relato. Tem a sinceridade e a honestidade da primeira viagem, não arrota sabedoria”. Foram apenas dez cidades, em qua-tro países e aquilo é muito mais do que digo e pode não ser bem assim, mas é por aí. Europoraí. Há uma possibilidade de voltar lá e isso também é jeca, no entender de pessoas que vão à hora que bem entendem. Não obstante, dizem que a primeira impressão é a que fica. Fique o registro.

Antônio Jaime Soares

Chicos 44

Madri − Toledo

...voz métrica de pedra

tal como, cristalizada,

surge Madri a quem chega.

João Cabral de Melo Neto pode estar se referin-

do a uns prédios marrom-avermelhados, velhinhos em

folha, que vou lambendo com os olhos. O ônibus lo-

go chega ao terminal, encimado por um espelho d’á-

gua caindo pros lados. Moderno, sem adornos, na Pla-

za de Colón, belo contraste com os prédios antigos.

Um mero estacionamento de ônibus, feito obra de ar-

te. Táxi pro centro e o motorista pergunta: “És brisilai-

ro?”. Portuga, ele, claro. Digo que sim, apenas, fingin-

do naturalidade. Razão: carrego todo o meu rico di-

nheirinho, passagem e passaporte; sem eles, estarei

mais perdido que cachorro que cai de caminhão de

mudança.

E mais prédios antigos e modernos no Paseo de

Recoletos, monumental avenida. Os modernos, acredi-

to, substituem os que foram bombardeados nas úl­

timas guerras, da mesma altura, obedecendo ao gaba­

rito, palavra esquecida no Brasil, vítima, como quase

todos os países, do complexo de Manhattan; voltarei

ao assunto. Logo, logo, a Gran Vía, danada de bonita,

com aquele jeitão de cartão postal, o coração bate mais

forte, mal acreditando no que o rodeia.

E, cheio de expectativa, entra na cidade velha

propriamente dita, velha tinindo de nova, pois bem

cuidada. A Puerta del Sol, conhecida desde meu pri­

meiro livro de geografia. O hotel a mim reservado é

logo atrás. “Señor Suarez?” – pergunta o recepcio­

nista. Será que sou eu mesmo? – indago ao espelho,

beliscando as bochechas pra ter certeza de que é real

essa coisa toda. É sim. Venezianas, maçanetas, abajur,

tipo hotel da Lapa, uma Lapa passada a limpo. E vou

correr atrás.

Puerta del Sol e marquise, na Gran Vía

Chicos 44

Pelo jeito, toda a população tomou conta das ruas,

em plena tarde de sábado, momento em que o centro

das cidades brasileiras vira um deserto. Gente alegre,

bem vestida e bem nutrida. A música estrangeira da fa-

la. As mulheres (europeias, em geral) usam saias, o que

as faz mais femininas e elegantes. Os homens, meio

atarracadinhos, bundinha estufada de toureiro. Tam-

bém uns tipos meio anões, que remetem a certas pintu­

ras, que verei depois, no Museu do Prado.

Mil fantasias na cabeça, Espanha de óperas e ope-

retas, castelos e castanholas, entanto, Madri não é por

aí, é mais de carne e osso, portanto, melhor. Lojas mui

sofisticadas e entro na maior, El Corte Inglés, dez anda-

res que vendem de um tudo, pra comprar gêneros de

primeira necessidade: uísque, presunto, queijo, pão e vi

­nho. Comer no hotel, enquanto não me familiarizo

com a cidade. E volto a ela.

Subo a Calle de Preciados até a Gran Vía, teatros e

cinemas, a Broadwayzinha deles, fantástica. Ruelas

aconchegantes em volta, barzinhos nos trinques, bem

como alguns casais e seus drinques. Cada esquina ace-

na com outra mais bonita, os restaurantes exalando

cheiro de comida feita com aceite de olivo. Numa des­

sas, sinto que existe algo por detrás dos prédios, atra­

vesso uma arcada e dou de cara com o, até agora, pra

mim, maior espetáculo da Terra, a Plaza Mayor.

Arcada e prédio da Plaza Mayor

Plaza Mayor: “... um belo conjunto de edifícios

com telhados em ardósia, arcos, lustres, sacadas e jane-

las cuja atmosfera teatral tem uma personalidade muito

castelhana. Tudo acontecia aqui na Madri antiga: toura-

das, execuções, cortejos e julgamentos da Inquisição Es-

panhola e seus criativos espetáculos de tortura”. Criati-

vos espetáculos de tortura, é inconcebível, pô! Em nome

de Deus. Ou Deu$. E é numa igreja antiquíssima que

entro a seguir. Missa ao som de órgão, esculturas de an-

jos “voando” pra cúpula, puro alumbramento, mas não

perdoo seu passado torturante. Que não passou, por

exemplo, ao não admitir o uso prudente de uma simples

camisinha.

Volto à Puerta, nove horas da tarde, o sol ainda bem al-

to. Eu, porém, down, down, down, pois não dormi du-

rante a viagem (receio de pisar pela primeira vez, sozi-

nho, em terra estrangeira. Fuso horário também conta).

Depois do jantar, vi o filme de bordo e ouvi duas vezes

Carmen, a ópera, completa. Lá pelas tantas vi uma bola

de fogo num mar de areia, o sol brotando no Saara. De-

pois, plantações de oliveiras, encarreiradinhas, feito pés

de café, montanhas cobertas de gelo, tudo novidade pro

zé mané aqui. No aeroporto, seguindo dica de Carlos

Torres Moura, troquei dólares e comprei passagem pro

ônibus. Aqui, porém, somos honestos até prova em con-

trário: não tem roleta nem trocador, eu teria que enfiar o

ticket numa maquininha, mas não sabia e viajei de gra-

ça. Se um fiscal me pegasse... O ônibus, a estrada, multi-

nacionais ajardinadas dos dois lados, tudo bem leve e

suave.

No rádio do hotel, Mania de você, de Rita Lee, instru-

mental. No gênero pop, neste momento, seria melhor

Spanish Harlem, com The Mamas and The Papas.

Chicos 44

Dormi duas noites em uma e, por ser do-

mingo, o Prado fecha ao meio-dia e só reabre

na terça. Pois bem, fico até quarta, sem Prado é

que não fico. Bebo vinho em jejum, feito um

europeu de boa cepa. Chove adoidado e ainda

assim vou bater pernas. Entro numa cafeteria e

peço apenas café, guardando o apetite pra da-

qui a pouco e cair de boca na grande variedade,

sobretudo, de frutos do mar. Tudo em cima do

balcão, a descoberto, sem mosquitos, e a vigi-

lância é cerrada. Conversam, riem, brincam

com os fregueses, mas só depois de deixarem

impecavelmente limpos o último prato, talher

ou taça (não usam copos “americanos” como os

nossos), enxugando com um pano branco e con­

ferindo a limpeza contra a luz.

A gente se encanta e ao mesmo tempo, se

espanta. Por exemplo, numa capa de revista,

Marisol, garota prodígio do cinema água com

açúcar do tempo da ditadura, e já deve ser avó.

Em outra, María del Carmen, filha do

“Generalissimo Franco, caudillo de España, por

la gracia de Dios”, ele se dizia. Nada a ver com

a Espanha atual. Fosse tudo assim, seria o caso

lembrar Caetano Veloso: “...nem a sanha arra-

nha o carro, nem o sarro arranha a Espanha”.

Também automóveis cujo forro dos bancos imi-

ta pele de zebra, cobra, tigre, leopardo e outros

bichos. Mais brega, um “oscar” nas vitrines,

Para la mejor madre , por estar perto o dia das

mães. Compro o Guía del ócio, revista de bolso

com a programação cultural da semana. Desta­

que pra casas de flamenco, dançarinas trepando

nas tamancas, bem como samba, feijoada, caipi-

rinha e mulatas. Anúncio de show com Caetano

e Bethânia.

Volto à cafeteria e peço um conhaque, pra

esquentar o peito, espalhar o sangue. E um pra-

tinho de polvo, lula, camarão, acompanhados

de pão e azeitonas pretas enormes, nadando em

azeite. Com vinho. Não servem a taça direta­

mente sobre o balcão, mas numa toalhinha fel­

puda, pra não pingar na roupa do freguês, as-

sim como não nos entregam o troco na mão,

sim, num pratinho. Requintes que, no Rio, só

vi em lugares tipo Antonio’s (capaz de reunir,

em mesas separadas, por exemplo, Martha Ro-

cha, Walther Moreira Salles e Mick Jaeger),

aqui, descem ao nível do povão, entre o qual

me incluo. Satisfeito, solto uma mineirice:

“Ê vida triste, amargurada, desgraçada de

boa!”.

E vou me esgueirando por entre as bagas

da chuva, guiado pelo Guía del ócio. Passo pelo

Teatro de la Opera, que mal vejo, até a Plaza de

Oriente: enorme, bonita, jardins antológicos e

abriga o Palacio Real, antigua residencia de los

reies de España . Aberto à visitação, mas reser-

vado, em parte, pra hospedar Ronald e Nancy

Reagan, polícia em tudo que é canto, vou lá,

não. Gosto de ir descobrindo tudo por mim

mesmo, em longas caminhadas, porém, debaixo

de chuva, o jeito é entrar numa excursão: largas

avenidas, a Cidade Universitária, sem maior in-

teresse, Casa do Campo, vasto bosque, que per-

mite observar a flora e alguma fauna.

À chuva, de outros pássaros,

então revela os traços:

de pássaro da Europa

ganha então a cor nódoa,

cor galinácea, suja...

João Cabral acertou na mosca, tem pa-

pagaiada aqui, não, a natureza é tímida, ainda

que tudo florido, posto que é primavera, e as

árvores parecem desenhadas numa prancheta.

O atual palácio dos reis, de aparência mais mo-

desta, rio Manzanares, Calle de Segovia,

“típica del Madrid viejo, el Madrid del 600”,

diz o motorista. Paseo del Prado, o Prado, Par-

que del Retiro, estádio do Real Madrid, Plaza

de Toros, em estilo mourisco, vista e revista em

filmes como Sangue e areia . Hoje tem tourada,

mas nem se me pagarem quero ver um bovi­

cídio. Já vi assassinarem boi, porco, cabrito, ga-

linha, tatu, porém, pra comer, sem requintes de

sadismo. Uma mosca, das grandes, no ônibus,

primeiro inseto que vejo aqui.

Chicos 44

O clima pede bebida e será pra já, na varanda de um

bar, espiando o gramado da Puerta, um capim que só

vi antes numa pracinha na plataforma da estação de

Cataguases (cadê a nossa?). Esfria e mudo pra outro,

um boteco, tocado pelo casal de proprietários-garçons-

faxineiros, pois empregado aqui ganha o que merece e

patrão tem que pegar no pesado, se não for rico. Pu-

xam conversa, perguntam se estou gostando. Cito o

slogan atual da cidade: “Madrid, claro que sí”. A mul-

tidão voltou às ruas. No rádio, Tom Jobim, ao piano:

“Vou te contar...”.

Início da Gran Vía e jardins do Prado

Excursão a Toledo, a 70 quilômetros de Madri. Cidade, aqui, acabou, acabou (cristalizada), sem aquele cinturão de miséria em volta. Portanto, saímos da urbe e caímos no campo. A região é Castela, na meseta, o planal-to central deles. Uma ou outra aldeia na ampli-dão expondo produtos, em geral, cerâmica, plantações de oliveiras, árvores isoladas ou em pequenos bosques. Vazio panorâmico.

É uma paisagem em largura,

de qualquer lado infinita .

João Cabral, de novo. E a Idade Média, em Toledo, que tem origens visigodas, romanas, judias, mouras e cristãs. As últimas três “aprenderam” a conviver com tolerância, diz um livro. Entanto, estive numa sinagoga que foi muçulmana e hoje é católica. O pai de Feli-pe II teria lhe dito que pra preservar o poder, mantivesse a capital em Toledo; pra expandi-lo, mudasse pra Lisboa; e se quisesse perdê-lo, fos-se pra Madrid. Não deu outra. Nas lojas, elmos, armaduras, lanças e espadas, pra quem qui­ser se fantasiar de Dom Quixote. A metalurgia é uma tradição, cidade guerreira, amuralhada, “Glória de Espanha”, disse Miguel de Cer-vantes. Praticamente, parou no tempo e vive mais em função do turismo.

Rua típica de Toledo , interior da catedral e muralhas milenares

Chicos 44

Catedral, aqueduto romano e monastério

Sobe e desce ladeira até a catedral e aí,

um valor mais alto se alevanta: o gótico é o

esplendor em pedra. Hostes angelicais convi-

dando a entrar e hordas de demônios (gárgu­

las) fugindo ante a “magnificência do verbo

divino”. Por dentro, belas combinações de luz

e sombra, tudo bordado em pedra. Na sacris-

tia, salão de reuniões, bancos com marcas de

bumbuns de tanto os padres se sentarem ali,

eternas confabulações. Num pátio interno,

verdura de folhas enormes, cheiro agradável

de mato molhado. A sala dos tesouros, relí-

quias em ouro e pedras preciosas, de valor in-

calculável. Depois, monastério de San Juan de

los Reyes, todo forrado, rendilhado, floreado

em mármore, do teto ao chão. Entanto, serviu

como estrebaria pros cavalos do exército inva-

sor de Napoleão Bonaparte.

No burburinho das ladeiras apinhadas

de turistas, línguas diversas, uma toledana,

mantilha preta nos ombros, “quentando” sol,

tranquila feito gente da roça. Em outra igreja,

O enterro do conde de Orgaz , painel de El Gre-

co, o pintor de Toledo. Comecei a

“desfigurar” meu gosto em pintura através

dele, com um ensaio de Aldous Huxley. Em-

bora mantivesse da Grécia o bidimensionalis-

mo, e talvez por isso, seus quadros têm um

quê de arte moderna, a partir de Cézanne. Em

excursão de meio-dia, só metade da cidade, e

vemos o Alcazar de longe. Em compensação,

perdemos um tempão numa oficina de damas-

quinos, joias de ouro incrustadas de pedras,

técnica que os ibéricos aprenderam com os fe-

nícios, executadas à vista do freguês. Joia, po-

rém, não faz meus olhos brilharem.

Fico espiando a meseta. O Tejo, transpa-

rente, aqui ainda estreito, vai dar aquele rio-

zão que deságua em Lisboa. Vontade de ir lá,

mas Portugal não está no roteiro, infelizmen-

te. Pego no chão uma pedrinha pra levar de

lembrança e um cão de guarda vem e lambe

minha mão, até que desisto dela. Os turistas

saem, finalmente. Céu limpíssimo, poluído

num trecho pela feia fumaça que sobe de uma

siderúrgica. Logo em seguida, um baita arco-

íris, o maior e mais colorido que já vi, devido

à amplidão, sem aqueles morros de Minas e

Rio, bonitos, mas opressivos. E a classe média

só fotografa e volta ao blá-blá-blá. Um casal

jovem, brasileiro, ao meu lado, só carícias.

Entramos em Madri por outra estrada, é bom

variar.

Ao Banco de España, trocar dólares, já fe-

chou. O comércio, também, la hora de la si­

esta, até por volta de las cinco de la tarde. Por

isso, varam a noite nas ruas. Meu calo de esti-

mação (todo ano, nesta época, volta a in­

comodar) me leva a uma farmácia que me leva

à infância, o cheiro das farmácias de antanho,

manipulação de remédios, nem tudo aqui é

imposto pelas multinacionais. Lembro Seu

Nestor da farmácia dizer que era do tempo em

que todas tinham horta, pra preparação de

medicamentos. Outras voltas à infância: o ca-

sario, letreiros, objetos, mobiliário, vidro de

tinta Parker Quinck igual ao que eu usava,

vontade de comprar. O cheiro da tinta era gos-

toso, como o de goma arábica, que também

dever ter aqui.

Chicos 44

O Prado, tão esp’rado. Começo pelo térreo e

me empapuço de Goya, grande, mas há maiores

na própria Espanha, não fosse a pintura uma

das marcas do país, tanto que o rei leva uma ex-

posição aonde quer que vá. E Murillo, e Zurba-

rán, e Ribera. Deste, gosto especialmente quan-

do pinta crianças pobres, uma delas aleijada, e

rindo. Acima de todos, Diego Velázquez, inclu-

sive, Las meninas, sua obra-prima. João Cabral

dizia que toda a pintura italiana não vale um

bom Velázquez. Entendo, observando o seu Ba-

co (foto ao centro, abaixo), andrógino, quase

uma criança. O toque “espanhol” são os campo-

neses, rudes e sem glamour.

E pintores e quadros de todo tempo e lu-

gar, de forma que dá pra ficar uma vida no Pra-

do ou qualquer outro grande museu; algumas

horas, contudo, já deixaram minhas pernas em

frangalhos. Largo os quadros pra lá e persigo

uns quadris, um bumbum fenomenal, dentro de

calças de veludo castanho. Ao lado do Prado, a

Academia, onde vejo Guernica, de Picasso, e ou-

tros espanhóis deste século. Vale lembrar que a

Espanha entrou no século vinte com o pé direi-

to, com Picasso, Juan Gris, Dalí, García Lorca,

Buñuel, Manuel de Falla, pra citar os mais co-

nhecidos. Também Rússia e Alemanha. Então,

cada uma teve sua ditadura e todo aquele van-

guardismo virou passadismo, artistas presos,

mortos, expatriados. Décadas perdidas levam

séculos pra se recuperar. Daí a Espanha viver

das glórias de seu “siglo de oro” (1580-1680 + ou

-), que deu Gongora, Cervantes, Lope de Veja,

Tirso de Molina, Quevedo, Alarcón, Calderón,

Gracián, aqueles pintores etc.

Nas ruas, cheiro de flores, que me fazem

espirrar, é pólen, a primavera dando o ar da gra-

ça. Flor de todo jeito, em todo canto e lugar, jar-

dins muito bem cuidados, só falta aparecer Sari-

ta Montiel, cantando La violetera. E acho graça

nenhuma no porteiro de um hotel de luxo, de

fraque e cartola, cor cáqui, e luvas brancas, co-

mo que saído de um livro de história, quiçá, do

baile da Ilha Fiscal.

Chicos 44

Calmamente, observo uma minifeira de li-vros no Paseo de Recoletos, no que passa a ga-lope uma turba ensandecida, vestindo camisas do PCE, gritando slogans e queimando bandei-ras dos Estados Unidos e da Espanha que deco-ram as ruas pra passagem de Reagan. Protesto contra os poderosos, depois de décadas amorda-çados pelo fascista Francisco Franco. Agora, “a sanha arranha o carro”. No metrô, rasgando car-tazes, quebrando vitrines. Na Puerta, derruban-do lixeiras e o que mais encontram de proprie-dade pública, respeitando a privada. Primeira manifestação do gênero que vejo, pois, moran-do em cidade pequena, não assisti nem partici-pei das revoltas estudantis de fins dos anos 60, sobretudo, no centro do Rio.

Outra confusão envolvendo uns africanos, em trajes típicos, que vendem elefantinhos de madeira à porta do El Corte Inglés. Na Gran Vía, uma mulher segura outra pela gola-goela e se esgoela, alegando que roubou sua bolsa, até que vem a polícia. Pode sobrar pra mim, melhor ir me afastando e procurar outra área, rever lu-gares, a Plaza Mayor, por exemplo. Mais tarde, no boteco que já conheço, e me conhecem, a si-tuação também não está muito boa: um cara de-siste de beber o que pediu e diz que não vai pa-gar. A dona se encrespa, feito um galo de briga:

– No quieres pagar porque estás de tontería. Toleré tontería todo el día, no toleraré más. Pe-ro tu pagarás. Sí, a mí tu pagarás. Se no pagares a mí, pagarás en la policía. Javier, llame la poli-cía.

Mulher tem mais força na língua do que boi no cangote – diziam as antigas senhoras minei-ras, tanto que ele despeja o cálice na pia, paga e sai de fininho. Passado o incidente, Javier e a esposa conversam comigo. “Lamentam” que eu me vá amanhã, eu também. Madri me pegou de jeito, até por ser minha primeira namorada eu-ropéia. Devidamente brindada com uma garrafa de xerez na caminhada da tarde, agora, chope, que dilui mais rápido, tendo eu que acordar ce-do, amanhã. De novo, a amolação de arrumar mala, aeroporto etc. e tal. Recolho-me por volta de meia-noite, mas vou deixar todo mudo valo-rizando a madrugada.

De táxi pro aeroporto. Saio da cidade por

um trecho ainda não visto, prédios modernos,

envidraçados, refletindo os raios do sol nascen-

te, o que me traz à memória O sol também se le-

vanta, romance de Ernest Hemingway que ter-

mina a esta hora, aqui mesmo, dentro de um tá-

xi. No filme, quem viaja é Ava Gardner, “o mais

belo animal do mundo”, segundo Jean Cocteau,

e que se identificou por demais com a Espanha,

mais precisamente, com os toureiros espanhóis.

Ave, Ava!

Chicos 44

Barcelona

Dizem que há castelos daqueles de El Cid nesta rota, mas, avião cheio, eu, no meio, nada apriceio. Pego o livro A poesia no Brasil, que trouxe pra ler caso batesse saudade da mi-nha terra, que tem palmeiras onde canta o sa­biá. Neca de saudade, o que não me impede a leitura e desperta uma voz lusitana ao meu la-do: “De que parte do Brasil tu és?” . Trata-se de um português, a cara de Mário Andreazza, morou no Rio e ganhou muito dinheiro lá, vendendo carros importados pro pessoal do Iate Clube. Vem de Lisboa e vai a Barcelona pro salão do automóvel. Convida-me a apare-cer por lá e me desconvido, dizendo que meu interesse por máquinas é apenas de ordem

prática. Ele aponta o livro e diz: “Está-se a veire”.

De trem, pro centro. Uma área industrial-portuária abandonada me deixa péssima im-pressão, imagino, contudo, que aqui será construída a vila olímpica, pois Barcelona se-rá a sede dos jogos em 1992. O hotel fica a um pulo da casa que Gaudí construiu pro seu me-cenas, o conde Güell. Logo na esquina, Las Ramblas, a avenida mais doida que já vi. Lou-ras de cabelo verde, negras de cabelo azul, gaiolas, pássaros, punks, vasos, flores, feira de livros, números de circo, de teatro, dançari-nos, músicos, mímicos, estátuas vivas, até gente como a gente.

Patisserie de 1820, loja de guarda-chuvas, estátua viva e seu esqueleto

Subo até a Plaza de la Catalunya, prédios sextavados nas esquinas (em metade da cida-de, vejo no mapa), volto, pego a beira-mar e entro no Bairro Gótico. O gótico pra valer, que só vi na catedral de Toledo, aqui se esfrega na cara da gente. Procuro a catedral daqui e en-

contro a igreja de Santa María del Mar, mais bonita, fechada pra obras. A outra é perto e, de novo, deparo-me com todo aquele mistério, um bonito pátio interno, chafarizes e, os que pegam sol, cobertos de musgo. Pedras talha-das no tempo dos gregos, fundadores da cida-de, há 3.000 anos.

.

Chicos 44

Mais ruelas até a Plaza Reyal. Espio o famoso e bonito lampadário de Gaudí e, num bar de calçada, uma desfrutável me acena: “Ei, more-no!”. Passo batido, bem que o Andreazza me avisou pra não dar bobeira nesta praça, pois aqui “encontram-se os amigos do alheio”. Vou ver o mar, onde uma estátua de Colombo apon-ta pra América. Faço questão de molhar as mãos no Mediterrâneo, água limpinha, pruma zona portuária. Na cabeça, cantarolo o tempo todo aquela música: “Dolores Sierra vive em Barcelona, à beira do cais, não tem castanhola e só faz companhia a quem lhe der mais...” (na vida real, vivia na Praça Mauá, Rio, fazendo o mesmo que a outra, entanto, sem ter a menor ideia de onde fica Barcelona, muito menos Sa-lamanca, onde “nasceu”, na biografia que lhe inventou Wilson Baptista).

Subo a Montjuich, de teleférico, paisagem não tão bela quanto no filme Passageiro – Pro-fissão: repórter , de Antonioni. Cinema celofa-niza tudo, a realidade é mais cor de terra, en-cardida. Desço a pé, pensando em Jean Genet,

que enterrava os frutos de seus furtos à beira destas ladeiras, e saio exatamente na rua do hotel. Prostrado, me deito no carpete, com as pernas em cima da cama, e “mergulho” na ba-nheira. E logo volto às Ramblas, que são irre-sistíveis, pra beber e jantar.

€ Atravesso o Bairro Gótico até uma larga

avenida e pela primeira vez vejo uma babá e seu bebê. Digo isso porque criança aqui é arti-go de luxo, ninguém quer nada com a cegonha; a raça branca tem até data prevista pra acabar. Vou à Sagrada Família, a catedral de Gaudí, sua sinfonia inacabada. Ele e outros, como Do-menech e Cadafalch, fizeram da arquitetura barcelonesa a mais original que há, ainda que a um passo do kitsch. No Paseig de Grácia, as casas Milá e Batlló, também de Gaudí, sensaci-onais, tudo muito doido e não menos bonito, seguindo a tendência art nouveau da época, co-mo que com a intenção de levá-la ao extremo.

Casas Milá e Batlló, de Gaudí

Por essas e outras, Picasso teria dito que Gaudí é uma aberração. Sim, mas é fenomenal. E me perco por lugares desertos, vejo a fábrica Mirurgya, dos perfumes Promessa, Embrujo de Sevilla e Maderas de Oriente, da minha infância. Já estou bem longe do centro, melhor não bobear. João Cabral, sempre de guia:

Durante essas ruas paris

de Barcelona, tão avenida,

entre uma gente meio Londres...

Chicos 44

Acima, cúpula da Casa Batlló, Palau de la Musica Catalana, depois, Parc Güell

E vou ao Parc Güell, de Gaudí. “Güêll”,

diz o motorista do táxi. Um “condomínio”, em

cada casa um estilo. Construções revestidas

com cacos de louça, por aí. Permito-me dizer

que, com suas mosaicolagens (como as defi-

niu Augusto de Campos), ele inventou a arte

do refugo. Numa aleia, pedras do muro se

confundem com o caule pedrento das palmei-

ras, e me permito cometer uns versos:

a mesma textura

o pé da palmeira

e pedras do muro

nas cores ceras - neutras

de um dos setores do parc güell

neutro - outro parque

porque - nesse trecho

a arte é acaso

ou quase - oculta

em pedra e fibra: lascada - dura

Chicos 44

Museu Picasso, no Bairro Gótico, cerrado para armuerzo. Faço hora, almoço num peque-no restaurante, minipaella e meia garrafa de vinho catalão. Peço outra meia, que já vem aberta e o gosto tem nada a ver, a esperteza dos comerciantes, pois é. Agradam-me, sobre-maneira, as boas maneiras: três caras veem TV, dois jogam videopoquer, uma fala com o dono, outro lê um volume encadernado em vermelho, eu rabisco estas mal-traçadas e nin-guém incomoda ninguém.

Picasso. Aqui pode-se ver desde as “artes” que fazia aos dez anos, quando, se-gundo o próprio, desenhava como Rafael, até a maturidade, então criticado por pintar “feito criança”. Um luxo ver suas versões de Las meninas, de Velázquez, dois dias depois de saborear o original, em Madri. Nas ruas, bandos de adolescentes recolhendo donativos pró-cura do câncer. Nada demais, não fossem garotos e garotas vendendo saúde e beleza, dá gosto ver. Nos postes, cartazes anunciando Maria Bethânia, “A mais grande do Brasil”,

escrito assim mesmo, à lusitana. Grande, em relação a ela, é mais que discutível; não con-sigo ouvi-la, eis a questão.

Deixei de ver muita coisa, pois Barcelona não se resolve em dois dias Não fico mais porque tenho encontro marcado com Moura e Marilene, em Roma, se não comparecer, só os verei de novo no Brasil. Vão pensar que fui assaltado, preso ou matado. Vivinho da silva, bebo vinho, nas Ramblas, em frente ao Teatro del Liceo, onde está se apresentando o Royal Ballet. Penso no centro do Rio que, se de-vidamente preservado, poderia tirar uma on-da de Barcelona, uma das cidades mais visita-das do mundo. O progresso é antropofágico e nem ela escapou, tendo abrigado quatro bair-ros góticos. Um, pelo menos, ficou e o que fi-zeram em volta não agride, agrada, aos olhos. Até demais, em muitos casos. E eu soube que rambla significa riacho, ribeiro, daí Las Ram-blas, os vários veios d’água que canalizaram preu poder ficar me aboletando aqui, sem a menor vontade de ir embora.

De táxi pra estação, o rádio transmi-

tiendo para Cataluña, Barcelona y Baleares

(aquelas ilhas de milionários). Em espa-

nhol, embora o catalão, proibido durante o

franquismo, também seja oficial, aqui, em

Valença, Andorra e Baleares. Dez milhões de

pessoas impedidas de falar a própria língua.

Lembra Chico Buarque: “Como vai proibir

quando o galo insistir em cantar?”. E curti

lances deliciosos em catalão, como L ’Eixam-

ple, Ciutat Vella, Paseig de Grácia, Avinguda

des Corts Catalanes... Barcelona resistiu ao

franquismo e, nos finalmentes, Glauber Ro-

cha a chamou de capital da Espanha livre,

expatriado aqui com García Márquez e ou-

tros da pá virada. Livre, não de todo, pois ti-

nham que ir a Perpignan, logo ali, na Fran-

ça, pra ver filmes proibidos, acá.

No aeroporto, mulher tipo árabe, falan-

do francês, bem desengonçada, roupas es-

quisitonas, compra uma joia e diz pra ven-

dedora ficar com o troco. Esta responde que

ali é proibido aceitar propina, a outra insis-

te, a garota re-recusa, a outra re-insiste e

saio de perto, pra não ser inconveniente.

Vontade de pedir o dinheirim pra mim.

“Adeus, Barcelona, adeus,

adeus Dolores Sierra...”

Chicos 44

Clips

Algumas notas importantes para nós

Chicão

P e r d e m o s m a i s u m d o s

n o s s o s C h i c o s .

D e s t a v e z f o i o C h i c ã o .

F i g u r a b e m - h u m o r a d a e

b o a d e p r o s a . E r a u m

r e s i l i e n t e d o C a r n a v a l

P o p u l a r , q u e é f o g o

m o r t o p o r a q u i . E l e f u n -

d o u e e r a o f a m o s o b l o -

c o d o E u S o z i n h o

Fernando Fiorese no Espaço

Augusto dos Anjos

Parabéns, atingimos a burrice máxima

A “baranga” Simone de Beauvoir e a importância de um li-

vro que ensina a conversar com fascistas.

“A fogueira de Simone de Beauvoir a partir da questão do ENEM mostrou que a burrice se tornou um problema estrutural do Brasil. Se não for enfrentada, não há chance. Hordas e hordas de burros que ocupam espaços institucionais, burros que ocupam bancadas de TV, burros pagos por dinheiro público, burros pagos por dinheiro privado, burros em lugares privilegiados, atacaram a filósofa francesa porque o Exame Nacional de Ensino Médio colo-cou na prova um trecho de uma de suas obras, O Segundo Sexo, começando pela frase célebre: “Uma mulher não nasce mulher, torna-se mulher”. Bastou para os burros levantarem as orelhas e relincharem sua ignorância em volumes constrangedores. Debater com seriedade a burrice nacional é mais urgente do que discutir a crise econômica e o baixo crescimento do país. A burrice está na raiz da crise política mais ampla. A burrice corrompe a vida, a pri-vada e a pública. Dia após dia. ...”

Eliane Brum em El País

Leia o artigo inteiro em: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/11/09/opinion/1447075142_888033.html

Chicos 44

Na reta final do milênio, na déca-

da de 80, em Além Paraíba Minas Ge-

rais , surgiu a Interior Edições.

Sua primeira publicação foi Os pa-

péis de Aspern, de Henry Ja mes, em

1984, seguida de A caça ao turpente ,

de Lewis Carroll, também de 1984. Em

1985, Cantos, de Giacomo Leopa rdi -

primeira tradução integral - bastante

elogiada na ocasião. Finalmente, Tu-

do que restou, de Safo, em 1987. Toda s

obras traduzidas por Álvaro A Antu-

nes. Álvaro nasceu em Além Paraíba,

mora e trabalha no Reino Unido, desde

1989. É tradutor e professor de ciência

da computação na Universidade de

Manchester, publicou, também, uma

tradução do poema The Seafarer

(numa interpretação de Ezra Pound),

no Suplemento Literário de MG.

Todas as artes gráficas são cria-

ções da pintora Regina Fernandes.

Estas quatro edições da Interior

Edições além de primorosas, foram

editadas em sociedade entre Álvaro,

Carlos Moura, Antônio Jaime e do pro-

fessor alemparaibano Clinton Mota.

Interior Edições