8

Click here to load reader

SAÚDE MENTAL E ECONOMIA SOLIDÁRIA: ANÁLISE DAS RELAÇÕES DE TRABALHO EM UMA COOPERATIVA DE CONFECÇÃO DE PORTO ALEGRE

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: SAÚDE MENTAL E ECONOMIA SOLIDÁRIA: ANÁLISE DAS RELAÇÕES DE TRABALHO EM UMA COOPERATIVA DE CONFECÇÃO DE PORTO ALEGRE

Barfknecht, K.; Merlo, Á.R.C.; Nardi, H.C. “Saúde mental e economia solidária...”

54

SAÚDE MENTAL E ECONOMIA SOLIDÁRIA:ANÁLISE D AS RELAÇÕES DE TRABALHO EM UMA

COOPERATIVA DE CONFECÇÃO DE PORTO ALEGREKátia Salete Barfknecht

Álvaro Roberto Crespo MerloHenrique Caetano Nardi

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

RESUMO: Este artigo aborda as vinculações entre o prazer, sofrimento e a organização do trabalho no cotidiano dostrabalhadores de uma cooperativa inserida no movimento da Economia Solidária. Como proposta do estudo, articu-lamos uma interpretação macro social do contexto socioeconômico, com uma análise micro social baseada na perspec-tiva da Psicodinâmica do Trabalho. Analisamos, em conjunto com os trabalhadores, as atividades de corte, costura eserigrafia desenvolvidas no empreendimento solidário. Os resultados apontaram para a identificação dos trabalhadorescom o cooperativismo, bem como com a possibilidade das relações solidárias e do gerenciamento, transformando osofrimento em prazer, favorecendo a saúde mental através da rediscussão constante da organização do trabalho e dacriação de novos modos de viver o trabalho.

PALAVRAS-CHAVE: trabalho; saúde mental; economia solidária.

MENTAL HEALTH AND SOLIDARITY ECONOMY: ANALYSIS OF LABORRELATIONS IN A MANUFACTURE CO-OPERATIVE IN PORTO ALEGRE

ABSTRACT: This article focuses on the links of pleasure, distress, and work organization in the everyday lif e ofworkers of a cooperative associated with the social economy movement. Our research proposal seeks to articulate amacro-social interpretation of the socioeconomic context with a micro-social analysis based on the Work Psycho-dynamic theory. We have analyzed, with the workers, cutting, sewing, and silk-screen activities developed in thesolidarity enterprise. The results have pointed out workers’ identification with co-operativism, as well as with thepossibility of the solidarity relations and management converting distress into pleasure, promoting the mental healththrough the continuous re-discussion of work organization and the creation of new ways of experiencing work.

KEYWORDS: work; mental health; solidarity economy.

Historicamente, as relações dos homens e das mu-lheres com o trabalho sofreram transformações relacio-nadas aos diversos modos de produção. O modo de produ-ção capitalista sustenta uma lógica de competição, deindividualismo e de busca do lucro, elementos esses queforam enfatizados e intensificados através da propostade Taylor, a partir do desenvolvimento da OrganizaçãoCientífica do Trabalho (OCT), no início do século XX.Desde sua origem, a OCT buscou organizar o processo detrabalho, dividindo-o em concepção e execução, indivi-dualizando as tarefas e retirando do trabalhador o direitode conceber e criar. Segundo Dejours, Abdoucheli e Jayet(1994), Taylor tinha a intenção de instituir um modooperatório único, padronizando e generalizando todosos aspectos da organização do trabalho, anulando qual-quer possibilidade de expressão e de desejo do trabalha-dor, limitando a satisfação à recompensa monetária. Hoje,a reestruturação produtiva introduziu novos modos ope-ratórios mais flexíveis, mas, ao mesmo tempo, expul-sou do mercado uma parcela da força de trabalho quenão preenche os pré-requisitos exigidos aos trabalhado-res para os postos de trabalho de boa qualidade.

No Brasil, convivem, atualmente, modalidades deorganização e de gestão do processo produtivo com mo-delos de trabalho taylorizados, associados à reestrutura-ção flexível. Tal junção pode ser chamada de modelo“Frankenstein” (Merlo, 2000), onde convivem as antigasagressões à saúde originadas nos precários e insalubresambientes de trabalho, com as novas formas de sofri-mento ligadas às exigências produzidas por ritmos de-senfreados e pela redução drástica dos postos de traba-lho. Esses modelos de organização do trabalho se asso-ciam à precariedade das trocas sociais, ao incremento doindividualismo, à alienação e à flexibilização de relaçõestrabalhistas, que, juntas, retiram as garantias e proteçõeshistoricamente conquistadas pelos trabalhadores assala-riados. Essas transformações produzem efeitos sociaisnefastos. O capitalismo globalizado em moldes neoliberaistraz inúmeras conseqüências, entre elas o aumento damiséria e da marginalização econômica e social.

Diante do desemprego crescente dos últimos anos,verificou-se que um significativo número de trabalha-dores expulsos do mercado formal de trabalho passou abuscar uma reinserção através de experiências econô-

Page 2: SAÚDE MENTAL E ECONOMIA SOLIDÁRIA: ANÁLISE DAS RELAÇÕES DE TRABALHO EM UMA COOPERATIVA DE CONFECÇÃO DE PORTO ALEGRE

Psicologia & Sociedade; 18 (2): 54-61; mai./ago. 2006

55

micas de caráter solidário. Os saberes populares e soli-dários acumulados ao longo do tempo, no campo da pro-dução e do trabalho, são suportes dessas experiências deformas associativas. Muitas dessas experiências busca-ram constituir-se com base em concepções e relações decontrole dos trabalhadores sobre o processo produtivo.Segundo Singer (1998), desde o século XIX, os traba-lhadores vêm constituindo, por iniciativa própria, coope-rativas e outras formas produtivas de tipo familiar,associativo e mesmo microempresarial. A partir da déca-da de 1980, com o aumento do desemprego e da pobre-za, vem aumentado o número de experiências de au-togestão. Conforme o mesmo autor, no trabalho as-sociativo, a efetivação dos princípios solidários só é possí-vel através do exercício de novas formas de organizaçãode trabalho e de relação com a produção. Além disso,esses empreendimentos dependem de instrumentos defortalecimento do poder popular e da viabilidade econô-mica. Somente se atingidos estes objetivos, a economiasolidária deixará de ser uma economia marginal e tornar-se-á uma organização econômica, construindo novas for-mas de relações com a saúde e o trabalho que possibilitemuma organização do trabalho controlada pelos trabalhado-res. Segundo pesquisa do Centro de Assessoria Multi-profissional – CAMP (2002), existe, hoje, uma parce-la expressiva da população inserida no movimento deeconomia solidária, indicando o quanto este é um temacom possibilidades de mobilização e organização. Entre-tanto, estudos que enfoquem a saúde mental nos em-preendimentos solidários ainda são raros. Assim, o pro-pósito do presente artigo é buscar suprir uma lacuna dapesquisa neste novo campo de estudos sobre o trabalho.

Diante deste quadro, nos interessa estudar comoas formas de organização do trabalho presentes na eco-nomia solidária se relacionam com a saúde mental dostrabalhadores, uma vez que as condições e a organiza-ção do trabalho atuam no funcionamento psíquico, deses-tabilizando ou favorecendo essa mesma saúde mental.A relação entre saúde mental e trabalho, segundoDejours et al. (1994), referem-se, centralmente, à or-ganização do trabalho, ou seja, à divisão das tarefas, aoseu conteúdo e à divisão dos trabalhadores no espaço detrabalho (funções, competências e relacionamentos). Adivisão de tarefas promove o interesse e o sentido dotrabalho através do modo operatório, enquanto a divisãode trabalhadores se refere às relações entre os sujeitos, aosinvestimentos afetivos, ao amor, ódio, amizade, solida-riedade, confiança. Ainda segundo os autores acima, osofrimento e o prazer são inerentes à história deenfrentamento dos trabalhadores com os riscos e pressõespresentes no trabalho, agindo intensamente na dinâmicapsíquica própria às relações de trabalho. O desafio é de-finir como os trabalhadores fazem seu trabalho, quais asações suscetíveis de modificar o destino do sofrimento e

como esse sofrimento pode ser transformado em cria-tividade e, assim, tornar-se um fator que favoreça a saúde.

Assim, ao investigarmos a relação saúde mental e otrabalho na economia solidária, tivemos como objetivocompreender se a organização do trabalho em um empreen-dimento identificado com os princípios solidários pode-ria, por basear-se na autogestão e na valorização da con-tribuição de cada trabalhador para o trabalho coletivo, fa-vorecer a saúde mental desses mesmos trabalhadores.Ao explorarmos esta hipótese, tivemos sempre claroque, por estarem inseridos em relações de mercadohegemonicamente capitalistas, os empreendimentos so-lidários não estão livres da influência dos fatores gerado-res de prazer e sofrimento presentes nas formas de ges-tão características do capitalismo contemporâneo.

Método

A pesquisa buscou entender a dinâmica da organiza-ção do trabalho através da observação de campo e dosrelatos dos trabalhadores a respeito dos aspectos que fa-vorecem ou desfavorecem a saúde mental. Foram utili-zadas duas estratégias metodológicas. Inicialmente, fo-ram realizadas entrevistas semi-estruturadas para co-nhecer as trajetórias de vida e profissionais dos trabalha-dores que compõem a cooperativa e, após, foi utilizada aPsicodinâmica do Trabalho (Dejours, 1988), buscandocompreender a conformação do sofrimento psíquico apartir da percepção dos próprios trabalhadores. Estudou-se as vinculações entre o sofrimento e a organização dotrabalho à qual estão submetidos os trabalhadores, exa-minando também as dinâmicas de constituição de siste-mas coletivos, as formas de exploração do sofrimentopsíquico e as defesas coletivas. Refletiu-se sobre a orga-nização do trabalho dentro da cooperativa e quais as suasrepercussões na saúde mental dos trabalhadores, e evi-denciou-se diversos aspectos a partir dos quais emergemas vivências de prazer e sofrimento.

O empreendimento escolhido foi a Cooperativa deCostureiras Unidas Venceremos (UNIVENS), localizadano bairro Sarandi, em Porto Alegre, RS. A escolha daUNIVENS ocorreu pelo fato da cooperativa estar nomercado de trabalho há nove anos e estar consolidadadentro do movimento de economia solidária, sendo suatrajetória reconhecida como exemplar pelos demais em-preendimentos.

Como tinha-se como referência a estrutura e organi-zação do trabalho taylorista, buscou-se observar como essaestrutura poderia “contaminar” essa outra forma de orga-nizar o trabalho. Assim, as categorias analisadas foram:divisão do trabalho e divisão dos trabalhadores, relaçãoentre os trabalhadores e o cotidiano do trabalho, tempo eritmo de trabalho e sentidos e afetos relacionados ao fatode ser cooperativado na economia solidária.

Page 3: SAÚDE MENTAL E ECONOMIA SOLIDÁRIA: ANÁLISE DAS RELAÇÕES DE TRABALHO EM UMA COOPERATIVA DE CONFECÇÃO DE PORTO ALEGRE

Barfknecht, K.; Merlo, Á.R.C.; Nardi, H.C. “Saúde mental e economia solidária...”

56

Histórico da UNIVENSA cooperativa constituiu-se formalmente no ano de

1996, como iniciativa de propriedade e gestão coletiva.Desde 2002 é uma cooperativa associada à CooperativaCentral de Crédito e Economia Solidária – Central Únicados Trabalhadores (ECOSOL/CUT), que tem como obje-tivo central a cooperação, e não o lucro.

A cooperativa surgiu como alternativa de trabalho erenda em um momento de grande desemprego na região.As cooperativadas relataram que pensaram em criar umlocal para trabalhar, onde as decisões seriam tomadas emconjunto. Trinta e cinco mulheres reuniram-se em 1995,para criar uma cooperativa. Elas tinham entre 19 e 72anos, muitas sabiam costurar, cuidavam dos filhos e preci-savam gerar renda. Diziam, também, que precisavam deuma alternativa para dar sentido à vida. Elas estavam forado mercado de trabalho por diferentes motivos: idadeavançada, aposentadoria, doenças, filhos pequenos, esco-laridade baixa e pouca qualificação. A partir da coopera-tiva, algumas trabalhadoras relataram que tiveram váriasmudanças na vida, voltaram a estudar e passear: “Me sintomais gente na sociedade”.

A UNIVENS é uma referência de cooperativa que con-segue gerar trabalho e renda, dentro do movimento daeconomia solidária de Porto Alegre. O grupo, neste seupercurso, recebeu apoio técnico e financeiro de diversasinstituições (SMIC/PMPA, ECOSOL, CÁRITAS, etc.).A cooperativa, atualmente, é constituída por 22 trabalha-dores, sendo nove sócias fundadoras, que continuam nacooperativa. Em janeiro de 2005, encerrou-se um processode incubação de nove anos promovido pela Secretaria daIndústria e Comércio de Porto Alegre e a cooperativa trans-feriu-se para um prédio próprio.

Os sócios da cooperativa participam ativamente dosfóruns de economia solidária, orçamento participativo,eventos de economia solidária (encontros, seminários,feiras, cursos), produzem tanto por encomenda, como traba-lham em lojas e feiras, vendendo as camisetas produzidaspela cooperativa.

Os sujeitos da pesquisaNove trabalhadores foram entrevistados: duas costu-

reiras que trabalhavam dentro do espaço da cooperativa,duas costureiras que trabalhavam no próprio domicílio,uma cooperativada que realiza a atividade de corte e recep-ção do cliente e quatro integrantes da serigrafia. Nesta es-colha, buscou-se abarcar todos os setores e atividadesda cooperativa.

O grupo que participou da pesquisa foi constituído desete mulheres e dois homens com idades entre 22 e 59anos. Destes, a maioria tinham filhos pequenos, eram casa-dos e necessitavam da renda para o sustento da casa. Aescolaridade média restringia-se ao ensino fundamental e

com pouca qualificação profissional formal. Outras habi-lidades e competências foram aprendidas na cooperativacom as trocas de experiências.

Além das entrevistas, realizou-se observação das ati-vidades e permaneceu-se no campo de maio a novembrode 2005. Os resultados das análises foram discutidos comos integrantes da cooperativa, buscando, desta maneira,refletir sobre as nossas conclusões em conjunto com ostrabalhadores, buscando, assim, além de partilhar o co-nhecimento produzido, adicionar maior consistência à aná-lise. Cabe ressaltar, ainda, que todos os participantes assi-naram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Resultados

Na análise da relação entre a organização do trabalhoe a saúde mental dos trabalhadores da UNIVENS, con-forme perspectiva deles mesmos, apontaram-se algunsaspectos centrais já mencionados anteriormente, ou seja: adivisão do trabalho e a divisão dos trabalhadores; relaçõesentre os trabalhadores e o cotidiano do trabalho; o tempoe o ritmo de trabalho e os sentidos e afetos relacionados aofato de ser cooperativado na economia solidária. Partiu-se desses itens, para interpretar os resultados.

O tempo de participação desses trabalhadores naUNIVENS era variável, desde integrantes que esta-vam no projeto de formação da cooperativa há nove anos,até os que estavam somente há três meses. Todos tive-ram experiências anteriores no mercado de trabalho.Nos relatos referiram sobre o percurso, a organização, aatividade que exerceram e que sentimentos tinham emrelação ao trabalho na cooperativa.

A divisão do trabalho e a divisãodos trabalhadores

Na cooperativa, os sócios dividem-se nas atividades de cor-te, costura e serigrafia. A produção de uma camiseta, porexemplo, é um produto que passa por todos esses setores.

O setor do corte é composto por quatro sócias, três delassão fundadoras da cooperativa. A atividade de corte antecedeà costura, nela se recebem os tecidos e se faz o corte das peças,conforme a encomenda do cliente. Esta atividade é dividi-da em várias etapas, que são realizadas por todas as inte-grantes do setor. A renda da produção é partilhada de manei-ra igual entre as sócias do grupo. As cooperativadas recepcio-nam os clientes e encaminham as peças cortadas para ascostureiras e a serigrafia, e, após, entregam o produto aca-bado aos clientes. Este setor centraliza as atividades da coo-perativa e tem um significado primordial para a costura. Se-gundo as cooperativadas, esta atividade “é a base da costura”.

Na atividade de costura são realizados diversos pro-dutos de confecção: camisetas, moletons com a marca dacooperativa, camisetas, guarda-pós, aventais, moletons eabrigos para clientes facção.1 Além destas peças, são cri-

Page 4: SAÚDE MENTAL E ECONOMIA SOLIDÁRIA: ANÁLISE DAS RELAÇÕES DE TRABALHO EM UMA COOPERATIVA DE CONFECÇÃO DE PORTO ALEGRE

Psicologia & Sociedade; 18 (2): 54-61; mai./ago. 2006

57

adas roupas com retalhos coloridos para uso próprio. Aatividade de costura recebe do corte as peças e, algumasvezes, da serigrafia. O grupo da costura é constituído pordoze trabalhadoras, sendo que quatro trabalham no espa-ço da cooperativa e oito em suas casas.

No início, os cooperativados não tinham espaço cole-tivo, então criou-se a possibilidade de trabalhar indivi-dualmente em casa. Atualmente, algumas costureiras ale-gam diferentes motivos para trabalhar em casa, apesar dacooperativa, no momento da pesquisa, ocupar três salasda Incubadora da Zona Norte. O espaço e o horário detrabalho se confundem com as atividades domésticas, ge-rando diversas dificuldades em relação ao espaço e à orga-nização do trabalho:

Costuro e tenho compromissos com a minha casa emeus filhos, vou até tarde da noite costurando, nãotenho hora para nada. Faço todo o trabalho de casa etenho o compromisso de entregar a costura em dia.

Percebe-se que as costureiras que trabalham em casanão têm horário definido e a costura toma conta da vida.Algumas costureiras, além de irem diariamente à coope-rativa, recebem costura em casa. As costureiras “de fora”2

buscam e trazem a produção em sacolas. As colegas le-vam mais trabalho para elas, se necessário, após o finaldo expediente.

Algumas conseguem impor limites às demandas deprodução, outras não. No conjunto dos setores são as costu-reiras que sofrem mais pressões, talvez porque não sejamorganizadas (no mesmo espaço). Observa-se que o traba-lho toma conta dos horários de lazer, como se não hou-vesse mais nada para fazer, além de trabalhar.

Todas as quatro costureiras trabalhavam com pro-dução individualizada, e utilizam uma caderneta para mar-car a produção e ganham pelo que produzem. A organi-zação individual entre as costureiras impede uma comu-nicação efetiva entre as trabalhadoras em relação aogerenciamento da organização coletiva do trabalho. Oque prevalece é a visão individualista, dentro de um sis-tema cooperativado. A existência de um espaço compar-tilhado com as demais colegas de trabalho promove umconviver coletivo, a experimentação de formas de pro-duzir, as trocas de saberes, enfim as trocas sociais, quesão de muita importância para os trabalhadores.

A atividade de serigrafia iniciou há seis anos, e os inte-grantes atuais ingressaram posteriormente. O setor daserigrafia é constituído por quatro cooperativados que tra-balham coletivamente. Todos fizeram curso preparatórioao entrar e após, “os integrantes foram passando o ensi-namento, um para o outro”. Os sócios relataram que apren-deram solidariamente todas as etapas, mas as dividemporque cada integrante tem uma preferência específicapor determinada atividade. A renda da produção édivi-dida de maneira igual para os cooperativados do

grupo, mesmo para quem tenha faltado ao trabalhopor motivo justificado.

Relações entre os trabalhadorese o cotidiano do trabalho

A UNIVENS foi criada por um grupo de mulheres quese conheciam, algumas tinham uma relação muito próximade amizade, outras se aproximaram através de amigas.Assim, definiu-se uma relação de solidariedade, de par-ceria, que tinha como pano de fundo as relações afetivas eum conhecimento profissional específico:

As colegas são minhas amigas pessoais. Fizemospasseios e festa juntos. Todo mundo participa davida do outro, como família, alguns bem próximos,outros não, mas todo mundo se dando.

Muitas relações de amizade surgiram na cooperativa eoutras já existiam. Todos os 22 cooperativados residem nasproximidades e/ou no mesmo bairro. Atualmente, gran-de parte dos trabalhadores tem laços de parentesco: “Épraticamente a minha família, minha irmã, prima”.

O aprendizado e as trocas sociais e afetivas fazem partedessas relações cotidianas na cooperativa. Segundo Dejours(1999), trabalhar não é apenas exercer atividades produ-tivas, mas conviver com os colegas de trabalho para chegara uma composição, aprender, opinar, dar parecer e deli-berar coletivamente.

Essa solidariedade na aprendizagem e gestão coletivaé evidente no relato dos cooperativados sobre como apren-deram a especificidade técnica e como adquiriram novosmodos de trabalhar ouvindo as colegas e/ou organizandoum jeito próprio de exercer a atividade com a experiência:“Adoro costurar, faço o que gosto e me sinto livre. Muitasatividades de costura aprendi com as colegas de trabalho”.

O discurso da solidariedade e das trocas de saberesestá presente também no relato das costureiras:

Eu consegui ouvir a H., que tem experiência, apren-di com ela. Antes a minha costura na manga nãoficava bonita. Esse jeito que aprendi com a H. deixaa manga bonita e facilita a costura. Eu já tentei pas-sar para as outras, mas nem todas se propõem a apren-der com as colegas.

Além das falas que remetem às trocas coletivas,também aparecem as tensões entre os setores, devidoà necessidade de manter um ritmo de produção nocotidiano de trabalho:

Em relação ao trabalho da costura e da serigrafia, àsvezes temos dificuldades de acertar o tempo paraprodução de um ou de outro. Isso é uma relação notrabalho do dia-a-dia.

O envolvimento da equipe de coordenação com osdistintos setores, através de um misto de afeto, responsa-

Page 5: SAÚDE MENTAL E ECONOMIA SOLIDÁRIA: ANÁLISE DAS RELAÇÕES DE TRABALHO EM UMA COOPERATIVA DE CONFECÇÃO DE PORTO ALEGRE

Barfknecht, K.; Merlo, Á.R.C.; Nardi, H.C. “Saúde mental e economia solidária...”

58

bilidade e controle, exerce um papel importante na co-operativa e no movimento de economia solidária. Essesfatores permitem que a cooperativa se mantenha em mo-vimento e busque a construção de uma solidariedadeampliada, para além do empreendimento em si. Entre-tanto, a relação da coordenação com os integrantes nãoé tranqüila. Na fala dos trabalhadores, são expressascríticas sobre a necessidade de valorização igualitáriade todos os entrevistados, a dificuldade de compreender oenvolvimento da coordenadora no movimento esta-dual e nacional de economia solidária e, ao mesmotempo, reconhecer o seu papel na inserção bem-suce-dida da UNIVENS no mercado: “Todo grupo grandeprecisa de líder, a nossa tem garra, batalha, todos sa-bem que ela é líder, não devemos trocar. Mas outras de-vem ser valorizadas”.

Percebe-se que o conflito de idéias é mal visto e, por-tanto, pouco explicitado. Os trabalhadores têm receio doconfronto. Sentem o conflito como um rompimento e nãocomo uma possibilidade de transformar ou criar novosconceitos. Percebem e relatam as dificuldades, mas nãoconseguem se organizar para levar os assuntos para a dis-cussão nas assembléias: “Confronto existe quando não seconcorda, surgem atritos. Então tu tem que ter muita calmae paciência para falar cada assunto”.

“Precisamos discutir sem medo de falar, pois se conti-nuar um só falando, muita gente vai sair daqui. Tem quemudar”. Esta tensão não explicitada leva a momentos decompetição na cooperativa. Essa competição é abafadapelos trabalhadores sob o manto da solidariedade ecomo forma de evitar conflitos e discussões construídaspelo grupo.

O tempo e o ritmo de trabalhoNa cooperativa, o tempo e o ritmo de trabalho são fle-

xíveis, os trabalhadores, na maioria das vezes, conse-guem impor tempo e ritmo próprios na produção. Nogrupo, somente as costureiras organizam individual-mente o horário de trabalho. Nos setores de corte e deserigrafia, a combinação dos horários é coletiva.

Conforme a percepção dos cooperativados, o tempoe o ritmo de trabalho aumentam quando há mais enco-mendas, com menor prazo para a entrega e/ou se um dossetores tem problemas e atrasa:

O trabalho é calmo, o ritmo aumenta se chega traba-lho que é para ser entregue muito rápido. Isso acon-tece, às vezes, tem pouco trabalho, e se não tem,saímos mais cedo, todos, ou um ou outro.

No setor de corte e de serigrafia, existe liberdade paraorganizar o horário de trabalho, contar com os colegasquando é necessário, afastar-se por breves períodos ounão ir trabalhar por diferentes motivos. Esta combina-ção de horários acontece em todos os setores desde a

formação da cooperativa. O trabalhador tem sua ne-cessidade reconhecida pelos colegas e estes realizam oseu trabalho de forma solidária. Todos os entrevista-dos afirmaram a importância desta conquista propor-cionada pela gestão solidária:

Na cooperativa dá para fazer o horário que quiser,pode-se marcar compromissos durante o horário detrabalho, mas é importante avisar que não virá, é aresponsabilidade e a solidariedade juntas.

Os cooperativados sentem a diferença de tempo e ritmoem relação aos seus trabalhos anteriores. Eles já vivenciaramexperiências de pressão intensa relacionada ao horário fixo,tempo exíguo, ritmo acelerado da produção e à dificuldadede realizar pausas (ir ao banheiro, fumar).

O tempo e o ritmo em que cada setor deve desenvolversuas atividades e encaminhar a sua produção para outrosetor eram partes muito importantes do trabalho na co-operativa. E, se no interior de cada setor a relação é tran-qüila, não podemos dizer o mesmo da relação entre ossetores. Escutamos muitas queixas referentes à organiza-ção da dinâmica entre os setores, principalmente com rela-ção aos atrasos da produção, que fazem com que o próxi-mo grupo tenha que estabelecer um tempo e um ritmoalgumas vezes excessivo para entregar uma produção noprazo combinado com o cliente.

A produção das atividades na cooperativa é uma deci-são coletiva; a presidente socializa a demanda da produçãocom os grupos separadamente ou na assembléia mensal.Os trabalhadores aceitam a produção, mas queixam-se deque, inúmeras vezes, sentem pressão no trabalho refe-rente ao tempo e ritmo, o que gera sofrimento.

Sentidos e afetos relacionados ao fato de sercooperativado na economia solidária: prazere sofrimento

Apesar dos entrevistados considerarem que a co-operativa estava consolidada, um contexto social de dú-vidas, incertezas e questionamentos marcava aindaa vida desses trabalhadores. Guiados por necessidadesimediatas de trabalho e renda, eles romperam com a mi-séria econômica e viveram o desafio de exercer ativi-dades dentro de um empreendimento solidário. A maio-ria dos cooperativados “carregavam” e “acreditavam”no discurso solidário e eram reconhecidos e respeita-dos pelos grupos do movimento de economia solidá-ria. Esse reconhecimento dos integrantes do movi-mento e do público que compra os bens produzidos naeconomia solidária, nos vários eventos nacionais e in-ternacionais, tem um efeito positivo em relação à suaidentificação como “trabalhadores solidários”, reforçan-do o investimento subjetivo e produzindo uma valorizaçãoreferente ao trabalho e à posição que ocupam na sociedade.

Page 6: SAÚDE MENTAL E ECONOMIA SOLIDÁRIA: ANÁLISE DAS RELAÇÕES DE TRABALHO EM UMA COOPERATIVA DE CONFECÇÃO DE PORTO ALEGRE

Psicologia & Sociedade; 18 (2): 54-61; mai./ago. 2006

59

Dejours et al. (1994) afirmam que o sofrimento é ine-vitável na história do sujeito. O desafio é definir quais sãoas ações suscetíveis de modificar o destino do sofrimento,ou seja, como o sofrimento é transformado em cria-tividade e como pode, desta forma, trazer benefícios àidentidade do trabalhador, em relação ao seu fazer. Comesta perspectiva, entendeu-se o sofrimento não comouma debilidade orgânica, proveniente de uma doençaou de condições péssimas de trabalho, mas como sofri-mento diante da insatisfação originada por uma organi-zação rígida e imutável. A questão colocou-se no “senti-do” ou na “significação” do sofrimento e da doença, de-pendendo de como o sujeito estava engajado nas relaçõesque estabelecia com seu trabalho e com o social.

Para os trabalhadores da economia solidária, a orga-nização do trabalho proposta possibilitava o exercíciodas funções de trabalhador e de gestor do empreendi-mento no cotidiano da cooperativa. Mas, significava tam-bém poder entrar e permanecer em um mercado de con-sumo envolvido pelo sistema social hegemônico marca-do pelos valores do capitalismo.

Neste contexto, o sofrimento se expressava nas pres-sões do trabalho coletivo, nas exigências de produção, nosmodos de viver o trabalho e, principalmente, no desafiode construir a autogestão na cooperativa. O sofrimentovivido por esses trabalhadores se manifestava nas dificul-dades de comunicação, nas trocas e debates do trabalhocoletivo, em relação à sensação de incapacidade para ge-renciar o empreendimento, na ausência das garantias tra-balhistas associadas ao mercado formal (carteira assina-da, salário, férias, fundo de garantia, etc.) e nas dúvidassobre a saúde e o futuro. Na cooperativa, estavam presen-tes o estresse, as dores no corpo, a culpa e as incapacidadesconsideradas como aspectos “normais” para quem trabalha.

As estratégias defensivas necessárias à proteção dasaúde mental têm o objetivo de proteger o sujeito contra aspressões provenientes do trabalho, mas, conforme Dejours(1999), também contribuem para estabilizar a relaçãodesse sujeito com o trabalho, dificultando qualquerpossibilidade de mudanças, funcionando como umaarmadilha que insensibiliza quanto ao que o faz sofrer.Torna aceitável para o trabalhador aquilo que nãodeveria ser. Em alguns momentos, as estratégias defensi-vas se tornam tão importantes para os trabalhadores que,quando esforçam-se para enfrentar as pressões dotrabalho, acabam transformando as estratégias de defesaem objetivos para si.

Neste contexto, percebeu-se as lutas entre fatorespatogênicos da organização do trabalho e as condutasdefensivas elaboradas pelos próprios trabalhadores nacooperativa, as quais se relacionavam com a forma comoos trabalhadores viviam as relações que estabeleciamcom seu trabalho, como reconstruiram as lógicas das pres-sões que os faziam sofrer e como constituiam as estra-

tégias defensivas. Desta forma, as lutas desses trabalha-dores podem ser entendidas como expressões de espe-rança e desejo em relação à UNIVENS. Os trabalhadoresencontraram significados criativos. Conforme Dejours(1994), este poder de ação, de grande fecundidade, navisão da produtividade, da segurança, da qualidade eda transformação da organização do trabalho, teste-munha justamente aquilo que seriam os ganhos da eman-cipação diretamente investidos no trabalho e nas relaçõessociais.

Discussão

Na sociedade capitalista e, mais especificamente,no Brasil, o fato de ser trabalhador de um empreendi-mento autogestionável, é andar por outra via, é parti-cipar de “outra economia”, uma economia marginal evulnerável do ponto de vista dos valores dominantes,assim como do ponto de vista da inserção no merca-do. A proposta do movimento de economia solidáriatem como objetivo reverter e superar a economia ca-pitalista individualista e competitiva, na qual o capi-tal e o mercado determinam a conduta e a vida dostrabalhadores. Trata-se de tentar construir um exercíciode poder compartilhado, de relações sociais e decooperação entre os trabalhadores, privilegiando otrabalho em detrimento do capital; enfim, vivenciaroutra forma de organização do trabalho e de sociedade.

Na cooperativa, a organização do trabalho é um de-safio a ser enfrentado todos os dias. Alguns trabalhado-res percebem e constroem a experiência de um espaçode aprendizado, trocas sociais, novas formas de relaçãocom o trabalho e com a produção. Outros vêem a coo-perativa como um espaço passageiro, única e imediataalternativa para gerar renda, sem comprometimento coma autogestão.

Os princípios da economia solidária, solidariedade,trabalho coletivo e autogestão, estão presentes nos relatosde todos os cooperativados, porém, alguns identificam-se totalmente com estes princípios e outros parcialmente,pois remetem para a coordenação a responsabilidadede dar conta da efetivação destes valores guias no em-preendimento. A centralização do setor do corte, com-posto por três sócias fundadoras da UNIVENS e inte-grantes da coordenação, reflete um gerenciamento queparece ser necessário para a cooperativa e para os sóci-os. O envolvimento da coordenação é consideradoafetivo, de liderança, de autoridade e também cen-tralizador. Essa centralização do poder, em princípio, seopõe à proposta de autogestão da economia solidária.Segundo Albuquerque (2003), o exercício do podercompartilhado propicia a autonomia do coletivo de traba-lhadores e qualifica as relações sociais de cooperação. Ostrabalhadores da cooperativa, entretanto, afirmam que a

Page 7: SAÚDE MENTAL E ECONOMIA SOLIDÁRIA: ANÁLISE DAS RELAÇÕES DE TRABALHO EM UMA COOPERATIVA DE CONFECÇÃO DE PORTO ALEGRE

Barfknecht, K.; Merlo, Á.R.C.; Nardi, H.C. “Saúde mental e economia solidária...”

60

centralização do trabalho é positiva, importante, pois facilita otrabalho, mas também percebem seu lado negativo em rela-ção à centralização do poder e à necessidade de socializar ascompetências para a gestão. É algo dúbio, que explicita umadificuldade central do trabalho na gestão solidária, cuja ten-dência é de delegar o gerenciamento ao outro.

Para ser cooperativado na economia solidária é neces-sário um investimento subjetivo importante para aprendera relacionar-se no coletivo. Embora se perceba que naUNIVENS o trabalho não é sempre coletivo (no sentidode executado em um mesmo espaço e decidido em con-junto), uma vez que a serigrafia e o corte têm atividadescompartilhadas e a costura é individual, percebemos quea cooperativa caminha na direção da afirmação da gestãocoletiva. Entretanto, esta só se efetiva mediante o investi-mento pessoal de cada membro. Um investimento dessetipo, para Dejours (1999), quando não é percebido, causasofrimento patogênico, o que é ameaça à saúde mental.Quando o trabalho é compartilhado e reconhecido peloscolegas, o sentido do sofrimento transforma-se em prazerno trabalho (o sofrimento criativo).

A organização do trabalho em relação ao espaço é umaspecto de análise, pois os setores de corte, de serigrafiae seis costureiras trabalhavam no espaço da cooperativa,e oito costureiras usavam as suas casas como espaço detrabalho. As costureiras possuiam uma organização detrabalho individual, mesmo sendo cooperativadas. Se-gundo Schmidt e Perius (2003), entre os princípios coo-perativos não existe consideração negativa em relação àproposta do trabalho em espaços fora da cooperativa, po-rém as decisões devem ser coletivas, democráticas. Naproposta da economia solidária, as trocas durante o tra-balho e o trabalho coletivo são considerados primordiaispara promover as relações de solidariedade. Entretanto,no caso em análise, vislumbrou-se que na relação detrabalho e renda existem duas realidades na cooperati-va. As falas das costureiras as aproximam de uma visãoindividualista inserida em um sistema cooperativo.

Outra perspectiva é percebida nas falas dos trabalha-dores dos setores de corte e de serigrafia, onde estes assu-mem a produção, dividem a renda, organizam o tempo eritmo de trabalho coletivamente. Eles reconhecem as dife-renças da organização de trabalho que se estabelece nacooperativa em relação à experiência com a organizaçãodos trabalhos anteriores, com os horários rígidos, hierar-quia fixa e produção por metas diárias, etc. O trabalho nacooperativa é diferente de uma empresa capitalista em re-lação aos horários e às decisões. A flexibilidade discutidacom os colegas no corte e na serigrafia demonstra umaoutra relação de trabalho que promove o “coleguismo” ea solidariedade. Os trabalhadores constroem outros mo-dos de trabalhar, outros acessos a espaços sociais e outrosvínculos importantes, como a ampliação do tempo dedi-cado à vida doméstica.

Na cooperativa, os trabalhadores falam da importânciadas relações familiares e comunitárias. Este aspecto é re-forçado pelo fato de que integrantes de muitas famíliastrabalham na UNIVENS e residem no bairro. Os relatosexplicitam a centralidade das trocas afetivas e da solida-riedade. Identificamos que existem as relações de traba-lho associadas com às relações familiares, nas quais édifícil separar a geração de renda (negócios) das trocasafetivas. As relações próximas e familiares nos empreen-dimentos de economia solidária podem trazer à tona adimensão da economia da dádiva, expressão da solida-riedade que promove a criação e reconstrução de laçossociais. A solidariedade é o laço social que une trabalha-dores em torno de um ideal. Entretanto, também pode-seapontar que as relações de afeto e a dificuldade de separarfamília e trabalho podem se constituir em um fator delimitação do debate e da explicitação do conflito.

A dificuldade de ser cooperativado e viver o trabalhona economia solidária aparece de diferentes maneiras, prin-cipalmente quando os sentimentos em relação aos cuida-dos com a saúde confrontam-se com as demandas coti-dianas de produção e da busca do lucro, necessário paramanter os investimentos na cooperativa, as quais são atra-vessadas pelo individualismo, pela competição, pela pres-são e pelo estresse da produção. As costureiras são asmais vulneráveis, pois trabalham por peça produzida: senão trabalham, não ganham. Os trabalhadores sentiam anecessidade de ajudar as colegas quando essas adoeciam,mas nas assembléias ainda não chegavam a nenhumasolução que pudesse auxiliar o trabalhador doente. Re-latavam que auxiliavam financeiramente as colegas queadoeciam por solidariedade, mas não de forma organi-zada, de acordo com princípios estabelecidos interna-mente no regramento da cooperativa.

A impossibilidade de trabalhar devido à doença ou dorapareceu pouco nos relatos dos integrantes da cooperati-va que participaram da pesquisa e, algumas vezes, fo-ram banalizadas como algo que é “natural” da profis-são. Percebeu-se que, mesmo na cooperativa, onde elespodiam estabelecer o tempo e ritmo de trabalho, o des-gaste se fazia presente na vida dos trabalhadores. A natu-ralização dos riscos ergonômicos parecia se constituir emuma estratégia defensiva, uma vez que estes não eramdiscutidos pelo grupo. É como se o fato de o trabalhoser auto ou coletivamente gerido protegesse o trabalha-dor do risco de adoecer. A cooperativa apresentava umaforma de organização do trabalho que mesclava princípi-os da economia solidária e elementos da organização detrabalho do capitalismo. E este é o modelo da economiasolidária que tem se afirmado, uma vez que os trabalha-dores têm aceitado novos desafios.

A UNIVENS é uma cooperativa da economia solidáriaque está sujeita às pressões do mercado. Percebeu-se con-flitos e questionamentos relativos ao empreendimentoenquanto parte do campo da economia solidária. Os con-

Page 8: SAÚDE MENTAL E ECONOMIA SOLIDÁRIA: ANÁLISE DAS RELAÇÕES DE TRABALHO EM UMA COOPERATIVA DE CONFECÇÃO DE PORTO ALEGRE

Psicologia & Sociedade; 18 (2): 54-61; mai./ago. 2006

61

flitos surgiram quanto à relação do mercado solidário como mercado capitalista. Os pressupostos do sistema coope-rativista enaltecem o coletivo, e o capitalismo promove oindividualismo. Assim, ser autônomo e pagar a Previ-dência Social, dentro de um empreendimento solidário,parecia ser a única alternativa encontrada em relação aomercado de trabalho capitalista no que se refere a umaforma de proteção social mais duradoura e estável.

Para finalizar, pode-se afirmar que, apesar das ten-sões encontradas, a pesquisa evidenciou que a maioria dostrabalhadores se identificava com o cooperativismo,estabelecendo uma prática de reflexão sobre o cotidia-no do trabalho, a solidariedade e o gerenciamento dacooperativa. Percebeu-se, na discussão com os trabalha-dores, que a busca permanente de capacitação e de asses-soria para a instituição era primordial para constituir edesenvolver a gestão solidária, para a autogestão aconte-cer de fato na cooperativa.

Notas

1. Facção é a palavra utilizada na cooperativa para designar peçascortadas, de roupas de marcas (etiquetas da moda), que chegamsomente para costura.

2. Como são chamadas as costureiras que trabalham em casa ebuscam diariamente as peças para costura na cooperativa.

Referências

Albuquerque, P.P. (2003). Autogestão. Em A.D. Cattani (Ed.), Aoutra economia (pp.37-45). Porto Alegre: Vozes; UFRGS.

CAMP – Centro de Assessoria Multiprofissional (2002). PesquisaEconomia Popular Solidária. Pesquisa/Ação Economia Populare Solidária. Porto Alegre: CAMP.

Dejours, C. (1988). A loucura do trabalho – estudo em psicopatologiado trabalho (3ª ed.). São Paulo: Cortez/Oboré.

Dejours, C. (1999). A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro:Fundação Getúlio Vargas.

Dejours, C.; Abdoucheli, E & Jayet, C. (1994). Itinerário teóricoem Psicopatologia do trabalho. São Paulo: Atlas.

Merlo, A.R.C. (2000). Transformações no mundo do trabalho e asaúde. Em A. Jerusalinky, A.C. Merlo & A.L. Giongo et al.(Eds.), O valor simbólico do trabalho: e o sujeito contemporâ-neo (pp. 271-278). Porto Alegre: Artes e Ofícios.

Singer, P. (1998). Uma utopia militante: repensando o socialismo.Petrópolis, RJ: Vozes.

Schmidt, D. & Perius, V. (2003). Cooperativismo e cooperativa. EmA.D. Cattani (Ed.), A outra economia (pp.63-71). Porto Alegre:Vozes; UFRGS.

Kátia Salete Barfknecht é mestre em PsicologiaSocial e Institucional pela Universidade Federal do

Rio Grande do [email protected]

Álvaro R.C. Merlo é doutor e docente do Programa dePós-Graduação em Psicologia Social e Institucionalda Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Rua

Ramiro Barcelos, 2600/sala 401– CEP 90035-003PortoAlegre, [email protected]

Henrique C. Nardi é doutor e docente do Programa dePós-Graduação em Psicologia Social e Institucional

da Universidade Federal do Rio Grande do [email protected]

Saúde mental e economia solidária: análisedas relações de trabalho em uma cooperativade confecção de Porto AlegreKátia Salete Barfknecht, Álvaro Roberto Crespo Merlo& Henrique Caetano NardiRecebido: 20/11/20051ª Revisão: 15/06/2006Aceite final: 07/07/2006