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PROPONENTE: Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega. Mestre e Doutora em Direito pela PUC SP, Pos Doc. Universidade de Coimbra, Professora Titular na Universidade Federal de Goiás e Professora na Universidade de Ribeirão Preto. EIXO TEMÁTICO DIREITO PÚBLICO E DIREITO PRIVADO O SUJEITO PÚBLICO PARA ALÉM DO SUJEITO DO DIREITO PRIVADO NO CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO LATINO AMERICANO. RESUMO Propõe-se refletir sobre os direitos humanos numa perspectiva de distribuição de justiça pública-social e coletiva, para além do conceito de direito como atributo do sujeito e do conceito de sujeito de direito privado originário do pensamento liberal. A proposta constitucional democrática latinoamericana, que pressupõe o fortalecimento da América Latina nas suas relações internacionais, em virtude de ter por fundamentos o multiculturalismo e a pluralidade de povos, nações e direitos, exige, na sua concreção, muito mais do que oferece o atual modelo de realizar dos direitos no plano do homem indivíduo, no modelo contemporâneo de distribuição de justiça do direito privado fundado e servindo ao liberalismo econômico. A humanidade deve estar para além do plano individual (Benjamin), no plano coletivo, para que no plano do direito o estranho não seja não presente e, portanto, excluído do acesso à justiça. O direito não há de ser atributo de sujeito privado, oponível contra todos, na sua existência contra os demais. Impõe-se a ideia de direito enquanto manifestação do justo social, público-coletivo, comunitário e político- a que todos -sujeitos e não sujeitos- tenham acesso, não apenas os lembrados ou reconhecidos pela ordem vigente. Palavras chave: Novo constitucionalismo democrático latino-americano, sujeito de direito, cidadania.

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PROPONENTE:

Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega. Mestre e Doutora em Direito pela PUC SP,

Pos Doc. Universidade de Coimbra, Professora Titular na Universidade Federal de

Goiás e Professora na Universidade de Ribeirão Preto.

EIXO TEMÁTICO DIREITO PÚBLICO E DIREITO PRIVADO

O SUJEITO PÚBLICO PARA ALÉM DO SUJEITO DO DIREITO PRIVADO

NO CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO LATINO AMERICANO.

RESUMO

Propõe-se refletir sobre os direitos humanos numa perspectiva de distribuição de

justiça pública-social e coletiva, para além do conceito de direito como atributo do

sujeito e do conceito de sujeito de direito privado originário do pensamento liberal. A

proposta constitucional democrática latinoamericana, que pressupõe o fortalecimento

da América Latina nas suas relações internacionais, em virtude de ter por

fundamentos o multiculturalismo e a pluralidade de povos, nações e direitos, exige,

na sua concreção, muito mais do que oferece o atual modelo de realizar dos direitos

no plano do homem indivíduo, no modelo contemporâneo de distribuição de justiça

do direito privado fundado e servindo ao liberalismo econômico. A humanidade deve

estar para além do plano individual (Benjamin), no plano coletivo, para que no plano

do direito o estranho não seja não presente e, portanto, excluído do acesso à justiça.

O direito não há de ser atributo de sujeito privado, oponível contra todos, na sua

existência contra os demais. Impõe-se a ideia de direito enquanto manifestação do

justo social, público-coletivo, comunitário e político- a que todos -sujeitos e não

sujeitos- tenham acesso, não apenas os lembrados ou reconhecidos pela ordem

vigente.

Palavras chave: Novo constitucionalismo democrático latino-americano, sujeito de

direito, cidadania.

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INTRODUÇÃO

Revisitar o conceito o sujeito de direito para instituir um sujeito público que

supere a noção privatística dessa figura jurídica, a partir de uma nova teoria do direito

constitucional, buscando as perspectivas de distribuição de justiça pública-social e

coletiva, demanda a compreensão do processo histórico de construção desse conceito

(de sujeito de direito) e os avanços trazidos pelo Novo constitucionalismo

democrático latino americano, no plano das subjetividades e titularidades jurídicas.

O modelo constitucional latino-americano, que se inaugura na década de

noventa, introduziu novos titulares de direito e criou subjetividades não afirmadas até

então, ao instituir direitos da natureza, direitos coletivos, sociais, étnicos. Colocou em

questão a figura de um sujeito de direito nos moldes do direito moderno, liberal, ao

promover a igualdade material complexa, includente do reconhecimento das

diferenças. A partir daí, torna-se impossível a subsunção dessas novas subjetividades

públicas ao modelo hermético de sujeito de direito privado.

As constituiçõeslatinoamericanas das últimas décadas, em que se

destacam a do Equador e da Bolívia, identificam titularidades jurídicas que surgem

para além do modelo de direito liberal e resgatam os esquecidos pela história e pelo

direito, os marginalizados, enquadrados em universalidades negadoras do

reconhecimento das peculiaridades, como os muitos povos que são englobados na

noção de indígenas. Essas constituições caracterizam-se por se abrir a inclusão

permanente de direitos e a atualização perene de reconhecimentos.

Essa abertura se verifica de maneira diversa em cada texto constitucional.

Tem sido apontada como a mais avançada, segundo os estudiosos do tema, aquela

inserida na Constituição do Equador, com a inclusão da noção de “buenvivir”

(“SumakKawsay”, em língua do povo Quíchua), na qual se integram e podem se

incluir os diferentes perfis da propalada dignidade humana, como o direito à

alimentação, à agua, ao ambiente são, à comunicação e informação, ao respeito à

identidade cultural, à educação, à morada segura, à saúde, ao trabalho, à seguridade

social. Tudo a exigir um revisitar da restrita teoria que nos oferece possibilidades

limitadas do conceito de sujeito de direito.

Pensar possibilidades teóricaspara atender propostas jurídico-constitucionais

que suportem o reconhecimento de direitos às coletividades,e nesse reconhecimento

o alargar das subjetividades, é refletir para além do conceito de sujeito forjado na

perspectiva do liberalismo econômico e às luzes do racionalismo individualista

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moderno. É desbravar um mundo de possibilidades que revelam a hipocrisia contida

na afirmação dos direitos humanos.

A noção moderna de sujeito de direito se esgota frente ao instituir-se o

ordenamento plural, confronta e recusa os primados da revolução francesa da

igualdade e da liberdade, reconhecendo-os como primados de um modelo econômico

capitalista..

2. O SURGIMENTO DE UM NOVO CONSTITUCIONALISMO

A América Latina a partir de propostas de reorganização política, muitas

de cunho popular, inaugurou um movimento de revisão dos modelos democráticos até

então praticados, a que se tem denominado, numa leitura teórica posterior, Novo

Constitucionalismo Democrático Latino-americano. Num período de duas ou três

décadas, e em vários países, foram elaboradas constituições com um perfil

diferenciado das anteriores e que apontam para mudanças na forma e no conteúdo do

direito que conhecemos. As constituições surgidas desses movimentos são os

documentos básicos para o estudo desse constitucionalismo associado a ativismos em

favor da implantação das “novas” democracias. Isso se desenvolve em vários países,

como Brasil, Bolívia, Venezuela, Equador, entre outros, e tem fomentado elaboração

teórica e diferentes práticas políticas.

A América Latina é marcada por uma realidade de origem colonialista

dependente dos modelos hegemônicos do hemisfério norte. As estruturas social,

econômica e política, implementadas nesses territórios a partir de um modelo

capitalista, liberal e positivista pré-independência formal, são preservadas até muito

recentemente, garantindo-se conservar a dominação cultural, política e social. Esse

processo de dominação cultural colonial se dá no pensamento jurídico e nas suas

referências jusfilosóficas.

O direito nacional dos países latinoamericanos, e a prestação da tutela

jurisdicional consequente dele, reproduziu os modelos trazidos da Europa, sem

considerar as diferenças dos contextos locais. O mesmo modelo de sujeito de direito

europeu se impõe na América colonizada.

Nos países latino-americanos, oideário constitucional moderno europeu serviu

apenas para consagrar privilégios a elites, não logrando sequer a universalizaçãodos

direitos e o princípio da soberania, suas principais bandeiras. Isso se agrava no limiar

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do século XXI, com a sujeição ao neoliberalismo, que fortaleceu as mazelas sociais ao

buscar reduzir o caráter protetivo do estado, revogar direitos sociais e impor medidas

econômicas que não atendiam ao interesse dos povos locais, repetindo o modelo de

absorção cultural colonialista, de incorporar, no âmbito interno, as mudanças

ocorridas na Europa e nos Estados Unidos da América. Isso dizimou culturas e

destruiu a natureza, em muitos locais.

Numa perspectiva teórica, percebe-se uma cisão entre o pensar

constitucional e a prática política, o que dificulta uma percepção da América Latina.

Vários autores, precedidos por Boaventura de Sousa Santos, entendem que isso

ocorre, em primeiro lugar, porque a teoria política foi desenvolvida no norte global,

com a pretensão de modelo teórico universal, aplicável a todas as sociedades. Seus

conceitos muitas vezes são incompatíveis com nossas sociedades latino-americanas.

Em segundo lugar, considera-se que a transformação social proposta pela teoria

política tem uma perspectiva nortenha, distante das grandes práticas transformadoras

dos últimos trinta anos, vindas do Sul e marginalizadas pelos teóricos tradicionais.

Por fim, destaca-se o caráter monocultural da teoria política, de base eurocêntrica, de

difícil adaptação a culturas e religiões não ocidentais, como as culturas indígenas.

Pondera-se, outrossim, a resultante da ignorância do caráter colonialista

pela teoria política e pelas ciências sociais, que tomaram a independência formal dos

países da América Latina, como material, de natureza efetivamente emancipatória. A

antropologia e a sociologia jurídicas relegaram à história as questões referentes ao

colonialismo social ou colonialismo interno (SANTOS, 2007, p. 12-13).

Esse desajustamento, os conflitos nele gerados e a organização de setores

populares em torno de partidos de esquerda fez florescer um novo constitucionalismo,

refundando um direito que se pretende articulado a um projeto político, que parte da

realidade social específica da América Latina, rumo a um direito democrático,

autêntico, que promova a justiça social e pretende apontar soluções para os problemas

sociais e ambientais. Nessa perspectivas, surgem novas subjetividades jurídicas

exigindo das pessoas responsabilidade nos planos político, comunitário e coletivo. E

aí a necessidade de revisitar o conceito de sujeito de direito e a ideia de que os direitos

são atributos de sujeitos.

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3. A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DA NOÇÃO DE SUJEITO DE DIREITO

... Então, há um primeiro princípio de incerteza, que seria o

seguinte: eu falo, mas, quando falo, quem fala? Sou “Eu” só

quem fala? Será que, por intermédio do meu “eu”, é um

“nós” que fala (a coletividade calorosa, o grupo, a pátria, o

partido a que pertenço)? Será um “pronome indefinido” que

fala (a coletividade fria, a organização social, a organização

cultural que dita meu pensamento, sem que eu saiba, por

meio de seus paradigmas, seus princípios de controle do

discurso que aceito inconscientemente)? Ou é um “isso”,

uma máquina anônima infrapessoal, que fala e me dá a ilusão

de que fala de mim mesmo? Nunca se sabe até que ponto

“Eu” falo, até que ponto “Eu” faço um discurso pessoal e

autônomo, ou até que ponto, sob a aparência que acredito ser

pessoal e autônoma, não faço mais que repetir ideias

impressas em mim ...

A noção de sujeito

Edgar Morin (1999)

A noção de sujeito-pessoa é construída no decurso da história, mas sua marca

na modernidade é a fundação do indivíduo e nesse momento centraliza as questões

jurídicas. Com a Revolução Francesa e a consagração do princípio da igualdade e a

imposição da liberdade e da fraternidade, o sujeito de direito torna-se o centro da

normatividade- uma preocupação concreta do direito. É portanto, no seio do

liberalismo que é deflagrada a noção de sujeito de direito-pessoa-indivíduo.

Até a idade média, ainda que sem a equânime distribuição de justiça, o status

determina os particularismos da sujeição da pessoa ao direito, o coletivo e a noção de

pertencimentos obstaculizam e tornam o direito insuscetível do questionamento do

seu atribuir-se a subjetividades individualizadas. Também não há uma visão

suficientemente antropocêntrica que permita centralizar o indivíduo pessoa - sujeito

de direito- no campo do conhecimento jurídico e da normatividade .

Não se nega que nesse período se reconheçam direitos às pessoas, mesmo

direitos personalíssimos, mas a pessoa homem sujeito indivíduo não é o núcleo de

preocupação determinante. É a dimensão direito enquanto campo específico da

justiça, que se realiza.

Tratando desse período Mario Reis Marques afirma

...a multiplicidade subjectiva, faz transparecer a ausência de

unificação do sujeito de direito. Assim, ao invés de tratar todos de

forma idêntica, a ordem jurídica distingue, diferenciando as regras do

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agir jurídico de acordo com o status dos diversos sujeitos jurídicos.

(2012,p.234).

A modernidade, que se consagra intensamente nos primados da Revolução

Francesa muda esse modelo fragmentário e estamental. Generaliza, uniformiza,

objetiviza.A norma é universal, geral- para sujeitos igualmente gerais e universais. A

universalização de normas para todos os sujeitos reclama a configuraçãodesse sujeito

subsumível ao indivíduo igual a todos. Pela noção de liberdade impõe-se um

protótipo de sujeito capaz da sua autodeterminação. Esse sujeito terá que dispor de

sua esfera de interesses, de deliberar por si, de contratar, de manifestar sua vontade

no campo econômico. O postulado da fraternidade, por sua vez invoca um sujeito

indivíduo a se por frente a frente ao outro, exige-lhe estar na relação com outro, ou

ainda como terceiro. Portanto, exige-se o indivíduo!

A proposta jurídica da modernidade pela de codificação alimenta esse modelo

universalista. O código moderno é a generalização, a universalização, a unificação do

tratamento jurídico dos temas e das pessoas. Antes das codificações, nos modelos de

multiplicidades de ordens normativas, os sistemas jurídicos consagram as diferenças

de tratamento e portanto a desigualdade dos sujeitos perante a lei. A complexidade

dos sistemas jurídicos vários, a multiplicidade e a sobreposição de fontes somada a

variedade subjetiva, instalada numa sociedade por ordens, que funciona por meio de

um sistema de privilégios, impondo isso ao direito, impede que se identifique um

sujeito de direito.

Esse sujeito aparece inicialmente, no plano teórico da racionalidade

jusnaturalista, quando se afirmam os direitos inatos do homem. Surge aí a noção de

direito individual e o sujeito floresce no âmago das especulações do direito. É

também no âmbito dessa corrente filosófica que o sujeito de direito passa a ser

identificado como pessoa. É a semente da ideia de direito enquanto atributo de

sujeitos.

A ponta desse fio condutor está na sociedade estamental, em que o homem

conformado ao seu status, balisado por uma série de condicionantes que o

determinam, é considerado um sujeito. Ainda não como elemento central de um

sistema, mas já sujeito. Sujeito que se configura pelas suas condições de existência. E

nelas tem definida a sua capacidade ( a capacidade de cada sujeito), capacidade

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mesma que será, posteriormente, o aspecto central da jurisdição na era dos códigos. (é

a semente).

Com a Revolução Francesa há a unificação do sujeito de direito que, enquanto

indivíduo, ocupa o vértice da questão jurídica. A noção de personalidade avança em

autonomia . A noção de direito jusnaturalista, individualista, fortalece a formação

deste conceito. “É este um período marcado por uma clara acentuação da tendência

para a «subjetivação dos direitos e para o reforço dos direitos individuais face ao

Estado».

O espírito burguês manifesta-se por meio de um individualismo

anticorporativo que postula o cidadão como célula autônoma da humanidade, como

centro de imputação de direitos subjetivos” (MARQUES,2010, p.101).É nesse

contexto que o homem passa a condição de sujeito de direito, que se determina que a

personalidade é igual para todos os cidadãos e que a capacidade jurídica, já afastada

dos estamentos, deve ser a medida da personalidade. O homem-pessoa será o sujeito

de direito dos códigos.

Todos dotados de personalidade, mas com possíveis diferentes capacidades,

mais ou menos reconhecidas, como as mulheres e os menores. Esses menos

capacitados não são o alvo de preocupação do direito. São as excepcionalidades. “O

sujeito jurídico pressuposto é o homem adulto proprietário”.(MARQUES, 2010,p.

104) É o sujeito que vai promover a circulação de riquezas numa perspectiva

liberal.É esse sujeito de direito- o homem dotado de personalidade cuja capacidade

conferir-lhe-á as dimensões- que vai ser o objetivo último da normatividade. O

homem dotado de capacidade econômica plena e de autodeterminação, numa

perspectiva liberal.

E o sujeito de direito então passa a ser anterior à normatividade (e talvez seja

isso que tenhamos que questionar). Se antes a normatividade definia quem era o

sujeito, a que ordem ele pertencia, hoje a normatividade vai em direção ao sujeito

preexistente.

O sujeito na ordem liberal, na era das codificações, já não mais se define a

partir da normatividade, como nas sociedades por ordens, mas é anterior a ela. Isso

fica muito evidente, e uma simples leitura dos nossos códigos revela tal. A ordem

contida no texto normativo posto como “Matar alguém”, “Ofender a integridade física

de alguém” revela que nosso direito se estrutura em enunciados descritivos de ações

em direção a um sujeito preexistente.Eclode aí a relação público privado e a ampla

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sujeição do direito ao estado, o que para alguns é o crepúsculo do direito. A perfeita

sujeição do direito a política. Paolo Grossi afirma como ponto essencial que distingue

a modernidade jurídica é a estatalidade do direito.

a juridicidade vinculada à estatalidade, o Estado como único

sujeito histórico capaz de transformar em jurídica uma vaga regra

social; o direito se manifesta unicamente na voz do Estado, ou seja,

na lei, a qual se- se não é formalmente a única fonte- o é

materialmente, porque está no vértice de uma hierarquia

intransponível; o velho pluralismo jurídico é em um golpe eliminado

e o absolutismo jurídico toma sempre mais espaço na civilização do

máximo liberalismo econômico; ciência jurídica e laboriosidade dos

juízes são expulsas do processo criativo do direito, reduzidas a um

papel ancilar do legislador, enquanto a sua interpretação- velho

motor propulsivo da experiência medieval- é contraída e minimizada

ao não papel de exegese, isto é, de repetição banal e servil da vontade

que o legislador encerrou na lei. (2006, p.53)

Superar a modernidade, com as injustiças consagradas pela redutiva igualação

e elitização de direitos erefigurar esse sujeito de direito liberal, buscando consolidar

os valores do novo constitucionalismo democrático latino americano exige pensar as

subjetividades sob novas perspectivas teóricas e permear-se a introdução de outros

elementos para a identificação dos sujeitos.

É tentar encontrar instrumentos de identificação abertos. A busca pelo sujeito

de direito procede-se por ações de identificação em que são acolhidos valores e em

que irrompem capacidades e responsabilidades. Não é uma procura aberta. A procura

da identificação é uma procura por um sujeito capaz.

4. A BUSCA PELO SUJEITO CAPAZ-SUJEITO DE DIREITO PÚBLICO

O que se vê na modernidade é a capacidade dimensionando a personalidade.

Nessa perspectiva, a superação das incoerências e injustiças da modernidade exige,

nessa busca, a inclusão de valores para além da capacidade econômica do liberalismo.

Como diz Ricoeur (2008,21):“Examinando as formas mais fundamentais da pergunta

quem? Somos obrigados a conferir sentido plenos a noção de sujeito capaz”.

Dadas as suas origens, no modelo contemporâneo de direito, a capacidade é,

como atributo fundamental da personalidade, o núcleo de toda jurisdição. O Código

Civil diz em seu artigo 1º “ Toda pessoa é capaz de direito e obrigações na esfera

civil” ( grifo nosso). Mas a ideia de capacidade por si só não constrói o direito. À

ideia de capacidade está agregada o reconhecimento e o respeito ao homem, ainda que

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em virtude desta mesma capacidade. Esta operação levada adiante pela tradição

liberal é imprescindível para darmos sentido ao direito moderno.

Mas não é somente o reconhecimento e o respeito ao homem que está

agregado a noção de capacidade. À capacidade designa também atribuição. A

identificação de um agente significa atribuir a alguém uma ação, e aqui se encontra o

possível diferencial da perspectiva liberal. Porque nessa seara se integram valores

alheios à universalização do modelo codificado.

Isso passa pelo reconhecimento do Quando um sujeito age, ele cria uma

polaridade, cria uma relação “eu-tu’. Os atos de fala são os melhores exemplos dessa

ligação. Quando alguém fala, ele fala para alguém. O falar sozinho não carece de

sentido, ou só tem sentido psicológico”.

Explica Martin Buber que a relação com o tu é imediata.

Entre o Eu e o Tunão se interpõenenhumjogo de conceitos,

nenhumesquema, nenhuma fantasia; e a própriamemória se

transforma no momentoemquepassa dos detalhes à totalidade. Entre

Eu e Tunãoháfimalgum, nenhumaavidezouantecipação; e a

própriaaspiração se transforma no momentoemquepassa do sonho à

realidade. Todomeio é

obstáculo.Somentenamedidaemquetodososmeiossãoabolidos,

acontece o encontro.(2009, p.49)

Essa interação “eu-tu” torna-se uma relação capaz de criar sujeitos de direito

quando o eu se vê no tu, quando acontece o que Ricoeur chama de “eu mesmo como

outro”. Nessa relação “eu-tu” deve vir inserida em um contexto de veracidade, de

sinceridade. Eu só posso me ver no outro se acreditar que o outro é sincero.

Mas a relação interpessoal não é suficiente para per si descrever o surgimento

do sujeito de direito. Outros elementos haverão de ser revelados, numa perspectiva

contextual coletiva e comunitária. Nas relações de fala aparece sempre um terceiro,

que é o referente ou a materialização do eu mesmo como o outro. Um exemplo claro

do surgimento do terceiro acontece nos atos de promessa. Na promessa a minha

capacidade de agir de acordo com minha intenção cria um pacto que se estende para o

futuro. Essa distensão para além do eu e tu presentes ultrapassa o face-a-face e gera

expectativa para toda a comunidade.

Essa capacidade de a promessa criar uma relação triádica já fora explorada por

Nietsche no século XIX. Na segunda dissertação da Genealogia da Moral ele diz

(NIETZSCHE,1999.47): “ Criar um animal que pode fazer promessas - não é esta a

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tarefa paradoxal que a natureza se impôs, com relação ao homem? Não é este o

verdadeiro problema do homem?”

Esse embrião jurídico que nasce pela promessa mostra a dificuldade de se

desprezar a noção de sujeito de direito, que se revela fundamental para a filosofia

jurídica contemporânea e também para a teoria do direito.A promessa liga eu-tu-

comunidade. Depois dela todo âmbito jurídico está ligado. Após a promessa, o sujeito

de direito está devidamente criado. O sujeito capaz se inseriu na espera pública como

sujeito de direito. Mas ressalte-se, um sujeito capaz inserido na esfera pública. Um

sujeito responsável publicamente.

Isso nos leva a crer que todo problema jurídico é também um problema

político. “ O poder político, através de todos os níveis de poder considerados,

apresenta-se em continuidade como o poder por meio da qual caracterizamos o

homem capaz” (RICOEUR, 2008, p.29).

Como elemento político a noção de sujeito capaz foi fundamental para o

florescimento do liberalismo. Pela negação da responsabilidade política do sujeito

capaz. O liberalismo isolou o sujeito de direito do contexto da esfera pública e

recolocou em um espaço de contrato fundacional e apolítico. É como se no momento

em que pactua, o homem se isola de toda comunidade para decidir o futuro dessa

comunidade. Numa relação paradoxal, um sujeito de direito dado pelo jogo

comunitário se torna sujeito de direito apartado da sociedade. E nesse sentido em

Hobbes o sujeito que pactua em ceder parte de sua liberdade para o estado é um

sujeito que entrou no jogo contratual plenamente capacitado como sujeito de direito.

(RICOEUR, 2008, p.31)

A ideia de surgimento de terceiro pela promessa é aquela de sujeito de direito

que pactua encobriu a relação primordial eu-tu. “Ora quem é o defrontante da justiça?

Não o tu identificado pelo teu rosto, mas cada um na qualidade de terceiro” (2008,

p.30).

Assim, a ideia de justiça surgida no liberalismo é fundamentada no elemento

terceiro e não na relação binária “ eu-tu” Essa justiça universal, a justiça de terceiro

atingiu seu apogeu em Kant. Com uma justiça baseada no imperativo categórico, do

“faça como se tua ação fosse uma máxima de ação universal”

Richard Rorty aponta esse esquecimento da relação pessoal para a construção

da justiça. Em Justiça como lealdade ampliada, Rorty faz uma importante descrição

pragmática da justiça. A partir de um cenário em que temos um familiar nosso

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procurado pela justiça, não temos pudor ao escondê-lo da polícia. Aparece aí a

lealdade. Mas se esse ato de lealdade preocupar alguém, podemos nos sentir

balançados entre o contar e o esconder. Quando maior a identificação com o

prejudicado maior será o dilema. Será que nesse momento existe um conflito entre

lealdade ou justiça, ou será esse um conflito entre lealdade com grupos amplos e

lealdade com grupos pequenos.A substituição de justiça por lealdade é a própria ética

pragmática, que abdicar-se de usar conceitos universais.

Rorty relata que a tradição filosófica, notadamente em Platão e Kant,

associam lealdade a sentimentos e justiça a racionalidade. Não existe nada, entretanto,

que diga que essa ligação é validade e que, o certo é sempre estar ao lado da razão.

Não há um tribunal da razão, que atua como última estância de julgamento de nossas

ações.

O filósofo americano diz que a lealdade, ou a relação eu-tu na terminologia de

Ricoeur” é importante para a construção da justiça. Não é somente por imperativos

universais que iremos resolver nos dilemas éticos e morais. O terceiro elemento que

surge da relação interpessoal é inevitável, mas isso não que dizer que devemos

construir uma justiça pautada exclusivamente nesse elemento. A noção de sujeito de

direito é fundamental para a sustentação de nossa justiça. A partir dela, a relação

dever e responsabilidade é posta em espaço público. Usar dessa noção de sujeito de

direito para construir uma justiça excessivamente universalista talvez não seja o

melhor caminho para resolvermos nossos problemas jurídicos. Temos que ter sempre

em mente que o sujeito de direito advém do sujeito capaz. E um sujeito capaz é aquele

que tem deveres e responsabilidades. O esquecimento do sujeito capaz é o

esquecimento de nossas responsabilidades e dos nossos jurídicos. Trazer de novo a

cena, esses dois elementos nos colocará melhor capacitados para resolver questões

jurídicas.

4. O SUJEITO CAPAZ NO ESPAÇO PÚBLICO NA PERSPECTIVA

RICOEURIANA

Devemos considerar que a noção de sujeito capaz, ou seja- o sujeito dotado de

direito de deveres, é insuficiente para a ideia sujeito de direito. Um sujeito de direito é

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aquele que está inserido em um contexto público, que está inserido em um contexto

político e comunitário. E responde de acordo com esses contextos.

Paul Ricoeur diz então que um sujeito de direito é aquele que está mediado

continuamente por formas interpessoais de alteridade e formas institucionais de

associação.

Os fundamentos originais dessa ideia comportam uma contradição. Temos que

ponderar que, como elemento político a noção de sujeito capaz foi fundamental para o

florescimento do liberalismo. Mas o liberalismo isolou o sujeito de direito do contexto

da esfera pública e recolocou em um espaço de contrato fundacional e apolítico. É

como se no momento em que pactua, o homem se isolasse de toda comunidade para

decidir o futuro dessa comunidade. É uma relação paradoxal em que um sujeito de

direito dado pelo jogo comunitário se torna sujeito de direito apartado da sociedade. É

isso que se tem que vencer.

A noção de sujeito de direito, construída nos moldes do liberalismo

florescente, precisa ser refigurada para sustentar a ideia de justiça (mais ampla),

porque é fundamental para isso. A partir dessa concepção de sujeito de direito, a

relação dever e responsabilidade deve ser posta em espaço público. Para a própria

superação dela.

Usar da noção de sujeito de direito capaz para construir uma justiça

excessivamente universalista, para promover a hierarquização, a dominação dos

sujeitos, é negar os valores do constitucionalismo latinoamericano. Basta

considerarmos os frutos gerados pela constituição do conceito de sujeito de direito e

pela proposta da universalização do sujeito, na Revolução Francesa.

Uma proposta para contemplar esses novos valores constitucionais é avançar

da noção de sujeito de direito advinda do sujeito capaz liberal, para a noção de

homem capaz( no pensamento de Ricoeur). A noção de l’hommecapable é o fio

condutor da filosofia ricoeuriana. O problema da capacidade humana está além dos

limites impostos nos códigos da idade moderna, referentes à possiblidade de

apropriação de bens e autodeterminação de sua disposição. Mais que isso, estabelece

o link entre o ação e o sofrimento humano . Nossas capacidades se entrelaçam com as

vulnerabilidades e a pessoa capaz é aquela que está apta a realizar e ser responsável.

Somente dessa proposição é que se pode pensar os sujeitos de direitos nas

coletividades numa perspectiva emancipatória. Somente no entrelaçamento com as

vulnerabilidades é que podemos pensar a pacha mama como sujeito de direito.

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Um sujeito capaz, na perspectiva de l’hommecapable, é aquele que tem

deveres e responsabilidades, não apenas no plano da propriedade, da acumulação das

riquezas, como no liberalismo econômico. É preciso ampliar-lhe as imputações para

seus atos, para as suas atribuições, nos espaços público, comunitário e político. O

esquecimento do sujeito capaz é o esquecimento de nossas responsabilidades e dos

nossos deveres jurídicos, num plano além do econômico. A assunção dessa noção de

sujeito nos colocará melhor capacitados para resolver questões jurídicas dos direitos

da terra, da natureza, das coletividades.

Numa perspectiva dos direitos fundamentais, há que se pensar que a

construção do conceito de sujeito de direito é uma face da afirmação histórica dos

direitos humanos (que em algum momento estarão declinados como direitos

fundamentais já que o novo constitucionalismo democrático se abre para os

documentos internacionais sobre esse tema). Pode-se estabelecer um marco temporal

para refletir sobre isso a partir dos documentos modernos das revoluções, que tiveram

por pressuposto o primado da igualdade. Tanto na Declaração de Independência dos

Estados Unidos da América, quanto na Declaração dos Direitos do Homem e do

Cidadão da Revolução Francesa – firma-se a noção de sujeito- indivíduo, numa

perspectiva de generalização e homogeneização, excludente de diferenças e de

particularidades. Um sujeito indivíduo ahistórico, não comunitário. Sujeito de direito

liberal.

A afirmação histórica dos direitos humanos, sofreu forte influência do ideário

liberal e acompanhou a construção da instituição estatal, pautada nos princípios da

territorialidade, da soberania absoluta do Estado e da liberdade, atrelada, sobretudo,

ao direito de propriedade. Neste processo, há a reafirmação do indivíduo garantido

pelos postulados da liberdade, da igualdade e da fraternidade.

Essa trajetória a que vimos nos referindo, atravessa fases que imprimem a

matriz da construção da noção do sujeito de direito. A primeira delas busca afirmar

os direitos humanos como preceito ideológico universal. Mostra-se, a partir dos

movimentos revolucionários do final do século XVIII, o recrudescimento do

liberalismo econômico no processo de construção do Estado de Direito, sobretudo na

afirmação de que o direito protege o indivíduo contra o Estado. Verifica-se aqui,

como dantes afirmado, o papel desempenhado pelas revoluções e seus documentos

no processo de queda das monarquias absolutistas e no reconhecimento do indivíduo

como sujeito de direito, de forma egoísta e excludente.

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O movimento sequente promove a constitucionalização dos direitos, ou

juridicização das cartas políticas, e a codificação, em âmbito interno, firmando

direitos para o homem-sujeito-pessoa. A Constituição escrita traz a virtude de

incorporar ao ideário jurídico-político nascente a noção de que o ponto de partida para

a construção de uma sociedade liberta das formas tradicionais de dominação é a

afirmação da igualdade formal, se abstendo de enfrentar a questão do reconhecimento

da diversidade. A negligência se repetiu e a constitucionalização dos direitos acabou

por se apresentar como uma ferramenta para a emergência de nacionalismos,

autoritarismos e totalitarismos. Relegou os direitos humanos ao plano interno dos

Estados e com isso, a humanidade conheceu negligencias para com os direitos , o

subjugo da dignidade humana e o estabelecimento de autoritarismos, totalitarismos e

terrorismos de Estado.

Com as mazelas à humanidade originária dos conflitos mundiais surgem as

manifestações do direito internacional dos direitos humanos, já visando a um direito

humanitário e à proteção internacional do trabalho. O sujeito de direito, num plano de

devir internacional, já começa a ser apresentado nos documentos como um sujeito

comunitário e responsável em seu atuar. Esse mesmo direito condena práticas dos

Estados contra coletividades. Também a proteção internacional do trabalho, ao

estabelecer parâmetros referências para a construção de seus aparatos regulatórios das

relações de trabalho, coletiviza sujeitos de direito, ampliando o conceito.

A Segunda Guerra Mundial impõe a noção de coletividades pela exclusão,

pelo extermínio e pela dor, negando cruelmente a igualdade formal. O extermínio

passa a ser política de Estado e a utilização de armas de destruição em massa são

marcas indeléveis deixadas pela Segunda Guerra à humanidade, que nos dizeres de

Hannah Arendt (1999), são um retrato da banalização do mal e da institucionalização

do culto à virtude vazia.

A partir do reconhecimento disso, os direitos humanos ganham novos rumos, e

no âmbito internacional, portando muito mais na esfera política do que jurídica

interna, as comunidades e coletividades são consideradas em suas diferenças e a

noção de sujeito de direito se complexifica. Isso se mostra no processo de codificação

internacional dos direitos do homem, que tem como marco a adoção da Declaração

Universal dos Direitos Humanos (1948) e os Pactos dela decorrentes, quais sejam, o

Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre

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Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos adotados pela Assembleia Geral da

Organização das Nações Unidas em 1966.

A proteção dos direitos humanos do pós-guerra, consigne sua importância,

reconheceu diferenças e categorias de sujeitos mas não conseguiu mudar a relação

entre indivíduo e Estado, não interferiu suficientemente nos ordenamentos internos

para transformar o sujeito de direito em sujeito capaz, institucional, política e

comunitariamente; tampouco foi capaz de contemplar a violência institucionalizada e

amplamente difundida pelo colonialismo europeu. (E é isso que o Novo

Constitucionalismo democrático latino-americano pretende mudar.)

Ocorre que, embora se reconheça uma ampliação das noções de sujeito nos

documentos internacionais, percebe-se que o modelo adotado, que reproduz a ordem

político-jurídica fundada pelo constitucionalismo de direitos do século XVIII, impede

os avanços. Isso porque ele consagra a assimetria de poder e a falta de um locus

central manifestação. Seus sistemas de monitoramento pouco vão além dos

postulados da revolução francesa, em prol da igualdade e desprezando a diversidade.

Somente nos último vinte anos parece-nos que o direito esteja mais próximo

de abrigar a necessidade de reconhecimento da diferença como uma construção

histórica da humanidade. No processo de ampliação do rol de sujeitos de direitos por

meio da sua especificação, o sistema fundado pelas Nações Unidas passa a levar em

conta o indivíduo não somente na sua generalidade, mas também na sua

especificidade. E aí, com um apelo efetivo as aspectos comunitários e culturais.

A partir da década de 1990, portanto, o reconhecimento formal desses novos

sujeitos de direitos reforça a ideia de que o momento é o do surgimento de novos

direitos, quando na verdade os direitos foram os mesmos, somente foram estendidos a

grupos, minorias e coletividades, tradicionais ou não, até então negligenciadas pelo

aparato regulatório estatal. Entretanto, não se funda um novo pressuposto, que deveria

ser o do sujeito capaz, mas repete o pressuposto da igualdade em detrimento da

diferença, segmenta a sociedade e, consequentemente, hierarquiza os sujeitos de

direito.

O ponto de partida para a compreensão desse modelo é a própria

hierarquização dos sujeitos de direito. A ideia de direitos humanos, sobretudo quando

se fala de direitos econômicos, sociais e culturais, como “devires”, baseia-se em

estamentos. “devires minoritários” enquanto reconhecimento e afirmação de

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categorias de pessoas pertencentes a grupos minoritários que, se tomados juntos,

tornam-se maioria.

Esse modelo, nega o pluralismo, o respeito a diversidade e estamenta a

sociedade em classes sociais e segmenta em minorias étnicas, minorias religiosas,

categorias de trabalhadores, categorias de produtores, categorias de proprietários, e

assim sucessivamente, demonstrando a falibilidade do sistema que institui a igualdade

formal, como resultante de pressupostos éticos e morais universais.

Assim, os direitos das coletividades, fora dos valores do constitucionalismo

democrático latino-americano, nega o sujeito de direito enquanto homem capaz.

Reproduz formas de aprisionamento, hierarquização, segregação e domesticação do

ser humano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pensar os direitos humanos para a realização da justiça pública, social e

coletiva exige um esforço de fundamentação teórica para além da teoria do direito

tradicional, numa superação dos postulados do pensamento liberal, que introduz a

contraposição público-privado e a orientação apolítica dos atores sócias envolvidos no

processo de distribuição da justiça.

O sujeito de direito há de ser um sujeito público, revelado nas muitas possíveis

subjetividades, que afloram da responsabilidade pública- política, comunitária e

coletiva. Na perspectiva dos direitos humanos, isso quer dizer aferir a distribuição de

justiça pública-social e coletiva, para além do conceito de direito como atributo do

sujeito e do conceito de sujeito de direito privado, originário do pensamento liberal.

O novo constitucionalismo latino americano, ao pressupor o fortalecimento da

América Latina nas suas relações internacionais, por meio do reconhecimento do

multiculturalismo e da pluralidade de povos, de nações e no reconhecimento das

mais variadas fontes de direitos, exige responsabilidades públicas de todos os atores,

de todos os sujeitos, de todas as pessoas, de todos os homens e mulheres que se

incluem nas subjetividades reconhecidas e na dignidade que integram.

Invoca, na sua concreção, muito mais do que oferece o atual modelo de

realizar dos direitos no plano do homem indivíduo, no modelo contemporâneo de

distribuição de justiça do direito privado fundado e servindo ao liberalismo

econômico.

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O homem sujeito de direito capaz, insere-se responsavelmente na noção de

humanidade, abrangente do outro e do comunitário. A humanidade deve estar para

além do plano individual (Benjamin), no plano coletivo, para que no plano do direito

o estranho não seja não presente e, portanto, excluído do acesso à justiça. O direito

não há de ser atributo de sujeito privado, oponível contra todos, na sua existência

contra os demais. O direito é a manifestação do justo social, público-coletivo,

comunitário e político- a que todos -sujeitos e não sujeitos- tenham acesso, não

apenas os lembrados ou reconhecidos pela ordem vigente.

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