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mm^f» Convite à Filosofia e à História da Filosofia

Mário ferreira dos santos convite à filosofia e à historia da filosofia

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Convite à Filosofia

e à

História da Filosofia

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ADVERTÊNCIA AO LEITOR

Sem dúvida, para a Filosofia, o vocabulário é de máxima importância e, sobretudo, o elemento etimoló-gico da composição dos termos. Como, na ortografia atual, são dispensadas certas consoantes (mudas, entretanto, na linguagem de hoje), nós as conservamos apenas quando contribuem para apontar étimos que facilitem a melhor compreensão da formação histórica do termo empregado, e apenas quando julgamos conveniente chamar a atenção do leitor para eles. Fazemos esta observação aumente para evitar a estranheza que possa causar a conservação de tal grafia.

MARIO-FERREIRA DOS SANTOS

ENCICLOPÉDIA DE CONHECIMENTOS FUNDAMENTAIS

C o n v i t e à Filosofia

e à

História da Filosofia DE

o*-

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

5." edição

Livraria e Editora LOGOS Ltda. Rua Marconi, 107 — 6.° andar — Fones: 33-3892 e 35-6080

SAO PAULO

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5.» edição

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Biblioteca Municipal Prcf. Fento Munhoz da Rocha líetto

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TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

Este livro foi composto e impresso para a Livraria e Editora LOGOS Ltda., na Gráfica e Editora MINOX Ltda., à Av. Eng. Armando de

Arruda Pereira, 665 — Jabaquara — SAO PAULO

Í N D I C E

Convite à Filosofia 13 Introdução 15 O Fato 19 Os Juízos 28 Do Fato ao Juízo 30 Definição 33 A Ordem do Pensamento e a Ordem da Natureza 36 A Idéia para Hegel 42 >S O Saber Filosófico 45 A Comparação 47 Abstrato e Concreto 51 Os Pólos da Realidade 53 Análise e Síntese 57

* Gnosiologia ou Teoria do Conhecimento 59 -~— O Tema dos Valores 64 As Três Correntes Axiológicas 65 Os Grandes Temas da Filosofia 67 A Intensidade e a Extensidade 69 As Grandes Correntes da Filosofia 75 A Filosofia da Condicionalidade e os Relativistas 80 Posição Teológica _^3&* Dualismo Antinômico — Razão e Intuição 85 A Razão e o Conceito 87 Gênero e Espécie 88 A Definição 90 Princípio de Causalidade 9 1 « ^ História Sucinta do Pensamento Filosófico 97 Origens da Filosofia Grega — Os Pré-Socráticos 99 A Fase Cosmológica 102 Homero e Hesíodo 103

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O Predomínio do Problema Cosmológico: Os Jònicos — Tales de Mileto 105

A naximandro !09 Heráclito 111 Os Eleatas 117 Empédocles 120 Anaxágoras 122 Leucipo e Demócrito 125 Fase Antropológica — Os Sofistas — Protágoras e Górgias . . 129 Protágoras 130 Sócrates 131 As Escolas Socráticas Menores 135 Os Grandes Sistemas — Platão 137 Aristóteles JflS Academia Platônica 148 O Predomínio do Problema Ético 146 Predomínio do Problema Religioso 153 Os Neoplatônicos — Plotino 155 A Filosofia do Cristianismo — A Patrística 158 Origens da Escolástica 160 Os Árabes . . . . . 161 Período de Fluxo da Escolástica — São Boaventura 166 Tomás de Aquino 167 O Renascimento — Exaltação do Homem 169 A Filosofia Moderna — O Iluminismo (Ilustração) 175 Os Racionalistas 179 A Filosofia do Empirismo 183 * Análise do Iluminismo 186 Kant 187-**" Os Ideólogos x<è%jfc O Idealismo Alemão — Fichte 197 Os Positivistas — Transformismo e Evolucionismo — Socia-

T / a s — Pragmatistas 202 A Filosofia Contemporânea — Metafísicos •— Espiritualistas

Modernos — Idealistas — Realistas •— Vitalistas — «•» Existencialistas 207

Escola de Marburgo e a Escola de Baden 211 A Fenomenologia 212

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CONVITE À FILOSOFIA

Em suas longas e demoradas especulações através dos séculos, tem o homem constantemente perguntado. K as respostas às magnas e mais importantes perguntas, levaram-no a formular outras que se algumas vezes sa-lisfizeram a alguns, não satisfizeram a todos e, por sua vez, provocaram novas perguntas.

Perguntou o homem, sobre si mesmo: Quem sou? De onde vim? A Antropologia procura responder-lhe essa pergunta. E a Cosmologia, que estuda a ordem do cosmos, procura responder-lhe sobre a origem deste, de onde veio, qual o primeiro princípio. E vem a Teologia, ciência das coisas divinas, para discutir as razões e motivos a favor ou a desfavor da crença de Deus, o ser criador.

E se Deus existe, por que o Bem e o Mal? Por que não é diferente o mundo? E dessas perguntas, outra disciplina, a Teodicéia (de Theos, Deus, e dikê, justiça, em grego) é a quem cabe responder se há ou não justiça no mundo.

E como sabemos? E vem a Gnosiologia para explicar-nos o conhecimento.

Como se dá o saber culto? E eis a Epistemologia, que estuda o saber das diversas ciências.

E como formou o homem a sua inteligência? E eis a Psicogènese, que lhe ensinará e discutirá os problemas referentes à formação do psiquismo humano. E o espírito humano, que é criador, como surgiu? E sobre esse espírito criador surge outra disciplina, a Noogênese, que estuda a gênese do nous, o espírito, e, finalmente a No-ologia, a ciência do espírito.

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E como funciona esse psiquismo? E eis a Psicologia que se encarrega de propor respostas às perguntas formuladas aqui.

Mas, significam as coisas algo, dizem mais do que o fenomênico? E eis a Simbólica, que examina as significações das coisas.

E há algo mais oculto, que possamos penetrar mais profundamente? E eis a Mística, que quer responder a essas perguntas.

E as coisas são belas, apresentam em si mesmas algo que lhes dê outro valor. E então é a Estética que estudará esse ponto.

E o transcendente? Poderemos alcançar o que está além de nds, além da nossa experiência? E eis a Metafísica Geral, a Ontologia, para responder-lhe a tais perguntas.

E como se dão os fatos no universo? E temos a Ciência, que procura explicar o nexo do acontecer dentro de si mesmo, em sua imanência, no que mana em, dentro de si, nas coisas experimentáveis.

E como medir os fatos e contá-los? E surge a Matemática.

E como compreender o homem em suas relações com os outros? E a Ética, a Moral, o Direito, a História e a Sociologia propõem-lhes respostas.

E como compreender o nexo dos pensamentos e usá--los da melhor maneira para atingir uma iluminação, que nos mostre mais nitidamente os fatos? E eis a Lógica e a Dialética.

E como explicar tudo isso, dar o nexo a tudo, juntar todo conhecimento humano, e analisá-lo num grande corpo, num grande saber, que seja o saber de tudo, que seja o saber dos saberes, e

eis a Filosofia.

É para ela, leitor, que este livro é um convite.

INTRODUÇÃO

Pode-se remontar a Filosofia, assim como a entendemos no Ocidente, aos pitagóricos, pois razões bastantes v, justas têm estes em considerar Pitágoras como o fun-clador daquela, e não apenas quem lhe deu nome, ao chamar-se humildemente de filósofo, palavra proveniente do «rogo philoô, que significa amar e sophia, que significa saber, intitulando-se um amante do saber.

Considerava Pitágoras haver uma ciência, um saber que independe do homem, independe do seu investigar e da sua especulação. Na ordem do ser universal, já rstn esse saber efetivo, dado de toda eternidade, essa ciência suprema e positiva, essa positividade, thesis, do pensamento, man, de onde vem o termo Mathesis, saber positivo, pensamento positivo. O homem é apenas um ser perplexo ante os acontecimentos do seu mundo e que não se satisfaz em apenas construir conceitos empíricos da sua experiência sobre as coisas. Êle deseja conexio-nar e conexiona, busca as relações que ultrapassam aos sentidos, os nexos que unem, portanto, os fatos do mundo. Êle é um eterno viandante pelos caminhos do mundo em busca dessa Mathesis Suprema, que deseja conhe-c.er essa ciência superior e perfeita que já está dada e que a sua limitação e os meios imperfeitos que dispõe, tmo lhe permitem uma intuição direta e imediata, como :i que os seus sentidos oferecem.

Conhecer as coisas, através dos sentidos, é uma visão ;unda desordenada e caótica do mundo que o cerca, no qual está imerso. Coordenar esses conhecimentos, cone-xioná-los, descobrir os nexos que os unem, conhecer as i azoes de seu existir e de seu não existir, constituem,

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para êle, um conhecimento que as intuições sensíveis não oferecem.

Resta-nos um recurso apenas: investigá-los com um instrumento, o único que possui para essa busca que é o pensamento. O homem, que apenas dispõe do pensamento para investigar o que escapa aos sentidos, o que não se vê com os olhos do corpo nem se ouve com os ouvidos desse mesmo corpo, é o investigador de um saber que ultrapassa a mera experiência sensível. Esse homem ávido de conhecer, que ordena o caótico dos acontecimentos díspares, que os classifica em ordens diversas, que busca o que os conexiona, que os teoriza, é, em suma, o filósofo. Essa palavra teoria, que vem do grego theoria, significa em sua forma etimológica visão. Mas também os gregos chamavam theoria as longas filas dos íiéis que vinham de todos os quadrantes da Grécia ao Templo de Delfos para prestar homenagens aos deuses. E como traziam festões de flores, que os ligavam entre si, aproveitaram-se desse termo os sábios para com êle indicar tudo quanto conexiona uma série de fatos. Ora, o saber filosófico não é o saber comum, o saber empírico, mas um saber teórico. Desse modo, a Filosofia é um saber teórico, que conexiona, que busca as relações, que unem as coisas e as razões, primeiras e últimas, que as explicam e que as justificam.

É evidente que esse enunciado não diz tudo quanto é a Filosofia, mas ajuda a compreendê-la em suas linhas gerais.

Vê-se, desde logo, que todos nós, sem que o saibamos, em muitos momentos de nossa vida, filosofamos muitas vezes sem sequer perceber que o fazemos.

Perplexos ante os acontecimentos que nos rodeiam, investigamos as razões, os porquês dos acontecimentos, e também o que os conexiona. Ora, a Filosofia é essa atividade em conexionar e buscar os porquês de todas as coisas. E é onde ela se distingue da ciência no sentido atual, que se refere mais às ciências naturais e sociais. Estas procuram saber como se dão os fatos, rae-

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dindo-os, comparando-os, classificando-os. Mas a Filosofia quer saber mais, quer saber por que são assim e não de outro modo, por que se dão ou não se dão, e busca as razões primeiras e últimas que os explicam.

Como naturalmente essas razões escapam ao campo da nossa experiência, a Ciência trabalha mais com conceitos empíricos, enquanto a Filosofia trabalha mais com conceitos abstratos. O cientista apenas comprova o que se dá; o filósofo quer saber por que se dá.

Quando o cientista penetra no porquê das coisas, penetra no âmbito da Filosofia e esta é a razão pela qual é difícil estabelecer fronteiras nítidas entre uma e outra. Na verdade, há um ponto comum, um ponto de encontro em que ambas se confundem. Aqueles que pretendem separá-las, criando um abismo entre ambas, cometem um grave erro e não auxiliam o progresso do saber humano.

A Filosofia carece do auxílio da ciência, como esta carece daquela. O sábio investigador dos fatos naturais, que não tem base filosófica, termina apenas num colecionador de acontecimentos, como o filósofo, que prescinde da ciência, está sujeito a cair num pensamento abstrato vicioso.

Do emprego comedido e inteligente de ambos saberes só pode surgir um benefício para o progresso humano. E como esse ideal já se realizou nos homens de cérebro mais potente que a humanidade conheceu, só podemos desejar que êle prossiga e influa em muitos mais.

Mas, como será possível alcançar esse desideratum sem que se inicie o conhecimento da Filosofia? É mister conhecê-la e amá-la. Só então, depois de percorrer os seus caminhos, está o estudioso apto a saber qual a essência da Filosofia. E quando alcançá-la, verificará que o divórcio, pregado por muitos, entre ela e a Ciência, provém mais da ignorância e da deficiência mental que da proficiência e do saber.

Sigamos, pois, primeiramente, palmilhando o terreno filosófico para que alcancemos, afinal, uma visão global

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e nítida da Filosofia, através do filosofar, porque é filosofando, é na ação do filosofar, que aos poucos se evidenciará o conceito nítido dessa disciplina, inegavelmente a mais alta a que atingiu o ser humano (1).

(1) Como tivemos oportunidade de dizer, esse conceito é ainda muito elementar c apenas fundamental, porque a Filosofia, sendo o caminho que leva à Mathcsis Suprema, deve, necessariamente, ser fundada em juízos de máximo rigor e validez; ou seja, juízos apo-díticos (necessariamente válidos e para todos) como os da matemática. Enquanto o filósofo não é capaz de os alcançar, está apenas a meio caminho e imerso na opinião apenas. Se o homem pode atingir tais juízos ou não, é ainda tema de Filosofia, e sua prova é uma justificação. Assim como há os que julgam que podemos apenas permanecer no caminho, há outros que buscam afanosamente alcançar os pontos mais próximos do termo da viagem. Em nossa «Filosofia Concreta» e nas obras que seguem as normas desse filosofar, fazemos a justificação da nossa posição.

O FATO

Que é um fato? Um fato não se define, intui-se. A palavra fato vem do latim factum, que significa feito, ato, coisa ou ação feita, acontecimento. "É uma palavra para nós familiar.

Embora todos saibam o que é um fato, não é fácil dizer o que é, em que consiste realmente. Fato é o que se nos apresenta aqui e agora, num lugar, num momento determinado; quer dizer, condicionado pelas noções de espaço e tempo. Estar no tempo e no espaço é o que se chama existir. Nós não atribuímos, não emprestamos existência ao fato; êle possui existência. Quando os fatos existem no espaço, eles são chamados corpos. Há outros que existem no tempo e são, por exemplo, os fatos psíquicos, os estados de alma, etc. Os fatos atuais constituem a nossa própria existência e o âmbito no qual vivemos e atuamos. Os fatos transcorridos constituem os elementos da biografia ou da história.

Podemos dizer que quando os fatos são corpos, nós os intuímos por intermédio dos sentidos. Quando são estados de alma, nós os percebemos imediatamente, isto é, diretamente. Denominamos intuição essa capacidade de darmos conta dos fatos espaciais e temporais. Intuímos o sensível. Também se usa o termo intuição em acepção figurada, que é aplicada à visão ideal. Assim se fala em intuição intelectuais, poéticas e místicas.

Ao examinarmos um fato, atribuímos unidade e estabilidade e o separamos do contorno. Mas a unidade é relativa. Exemplo: um rebanho, que é formado de numerosos indivíduos. Nós buscamos a unidade dos fatos, por exemplo: o átomo é a unidade para a matéria inorgânica, a célula, para a matéria orgânica, a sensação, como

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pensam alguns, para os atos psíquicos. A ciência hoje não atribui a essa unidade um total isolamento. A absoluta estabilidade do fato é uma ficção, porque eles surgem e desaparecem, num constante "vir-a-ser" (devir), transformam-se, não havendo, portanto, imutabilidade. O isolamento e a delimitação totais são artificiosos, pois não há fatos absolutamente isolados, pois há um entrosamen-to entre eles.

A unificação, a estabilização e a distinção são operações mentais, que usamos para conhecer o mundo real. Por que procede deste modo a razão humana? A razão, desta forma, procura dar ordem ao que intuímos, por isso é que enumeramos, separamos e denominamos, damos nomes aos fatos particulares. Agora perguntamos: como procede a razão para dominar esse caos de acontecimentos? Como atua para ordenar esse caudal de fatos? Qual o instrumento que usa para alcançar esse domínio? O CONCEITO, eis o instrumento. Uma série indefinida de fatos semelhantes, que nos parecem idênticos — embora na realidade não existam fatos idênticos — e que são coexistentes, damos-lhe uma denominação comum: É O CONCEITO.

Se observarmos bem as palavras, vemos que elas expressam conceitos: casa, cadeira, livro, estante, etc. Para distinguir os conceitos são necessárias notas que os individualize. Não devemos confundir o conceito com a palavra que o expressa. O conceito é uma operação mental; a palavra apenas o seu enunciado. Por isso, devemos evitar cair no verbalismo, que consiste no emprego exagerado de palavras sem conteúdo preciso. Assim como não devemos confundir o conceito com o seu enunciado verbal, não se deve também confundi-lo com o fato. Não há dúvida de que os conceitos decorrem dos fatos, mas, no conceito, há uma abstração do fato.

No conceito, já despojamos alguns elementos do fato, fazemos uma abstração mental. O fato tem existência no tempo e no espaço; o conceito só existe quando pensamos. Intuímos o fato; pensamos o conceito. Na prática, poucos percebem isso. Não notam que, quando pronunciam a palavra árvore, por exemplo, tal objeto

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não existe aqui e agora. É uma abstração. É o hábito que nos faz tomar os conceitos por fatos. O processo de abstração do conceito consiste em retirarmos atributos reais, até ficar um só, o mais amplo, ou os mais amplos.

Dissemos que o homem, para dominar o caos dos acontecimentos, necessitava dar-lhe uma ordem, uma ordem que permitisse ver claro nesse caudal de fatos. E o instrumento de que usou para alcançar essa ordenação íoi precisamente o conceito. Analisemos a sua gênese: Se a realidade do mundo que nos cerca fosse uniforme e homogênea, se tudo nos parecesse igual, sem qualquer nota de distinção, de diferenciação, não poderíamos nunca chegar a conhecer os fatos, porque o acontecer seria apenas um grande fato. Mas sucede que a realidade aparece-nos heterogêneamente, diversa, diferente e diversificada. Se a côr dos fatos (corpóreos) fosse a mesma, impossível seria chegar a compreender que há cores, de dar um nome a uma côr que percebemos, que é distinta de outra côr. Certas partes da realidade visível dão aos olhos uma impressão de outro gênero de outras partes da realidade. Por isso, percebem-se as cores diferentes.

Pelas razões expostas, podemos comparar a côr de um objeto com a côr de outro objeto, e pode-se verificar se se parecem, e perceber também se há diferenças, pois que nunca se poderia chegar a perceber que alguma coisa se pareça na côr, por exemplo, a outra coisa, se não existissem objetos de cores que se assemelham, ou diferem. Logo, a compreensão do semelhante, do parecido, é contemporânea da do diferente, pois, também não se pode compreender o diferente, o diverso, se não fôr possível, contemporâneamente, comparar com o semelhante, o parecido.

Uma pergunta é possível aqui: é a comparação anterior à diversidade? Para alguns filósofos a percepção do semelhante é anterior no homem e nos animais, à percepção das diferenças, como por exemplo afirma Maine de Biran (1766-1824), filósofo francês, e Bergson. Nossa sensação é acompanhada da memória, e uma sensação evoca outra, passada, que se lhe assemelha. A comparação é uma associação. David Hume, filósofo inglês, salien-

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ta que as associações por semelhança são mais importantes e numerosas que as outras, além de serem mais fáceis e mais de acordo com a nossa natural preguiça mental. A criança, por exemplo, apreende antes as semelhanças do que as diferenças. É desta forma mais primitiva o sentimento das semelhanças do que o das diferenças. Não há comparação onde não há semelhança. (O verbo comparar, do verbo latino comparare, vem do adjetivo par, que significa parelho, igual, semelhante, significando, portanto, pôr um ao lado do outro, para captar a semelhança). Além disso, para comparar, não precisamos do diferente, o qual é dispensável, pois só podemos comparar duas partes da realidade que são semelhantes, não permitindo nunca que comparemos partes da realidade absolutamente diferentes.

Por muito sólidos que nos pareçam esses argumentos, que acima alinhamos, permanecemos, contudo, firmes na nossa posição da contemporaneidade, pelas razões seguintes: em primeiro lugar, a percepção da parte de um ser vivo, de uma parte da realidade, já é um ato de diferenciação, pois o ato de perceber exige e implica uma diferença entre o que conhece e o conhecido. E como o campo que nos interessa é o da filosofia, e portanto, o do homem, este só percebe o mundo exterior, porque êle é heterogêneo, logo, diferente. Não poderia o homem delinear a separação de um fato corpóreo de uma parte da realidade do resto da realidade, se essa não apresentasse uma diferença e essa diferença só poderia ser, por seu turno, patenteada, se nessa realidade pudesse perceber que em algo ela se assemelhava à outra parte. Nem o ato de comparação poder-se-ia dar, por exigir êle uma condição fundamental, que é a ocupação de lugares diferentes dos corpos comparados. É preciso subsistirem, coexistirem um ao lado do outro, tendo necessariamente de intermédio algo que os diferenciasse, pois, do contrário, seriam percebidos como uma unidade. Além disso, a idéia de comparação não implica a de identidade. Comparamos uma parte da realidade com outra, embora percebendo que há intensidades diferentes.

Ao compararmos a folha de uma árvore à outra, nós já encontramos nela alguma coisa de semelhante, e vamos

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verificar essa semelhança. O próprio ato de desejar e querer comparar exige um diferente implicado, pois só comparamos para ver se existem semelhanças, como também para verificar se existem diferenças. Nunca poderia nascer no homem o interesse em comparar se já não conhecesse êle a diferença, pois por que compararia êle o que não poderia ser diferente ou poderia ser semelhante? Desta forma, há contemporaneidade entre a noção do semelhante e a do diferente. E a elaboração do conceito nos provará esse aspecto dialético.

O diferente é a característica do individual. As coisas individuais são distinguidas porque diferem, pois se tudo fosse homogêneamente igual não haveria o conhecimento dos corpos. Ora, o semelhante não é uma categoria do idêntico. Pois dizemos que alguma coisa é idêntica, quando é absolutamente igual a si mesma.

Analisemos este ponto de magna importância e interesse para a compreensão de futuros temas a serem examinados. No início, dissemos: "em face de uma série definida de fatos semelhantes que nos parecem idênticos (pois na realidade não há fatos idênticos), damos-lhe uma denominação comum; eis o conceito". Não podemos prosseguir na análise deste ponto, em que estudemos o que é idêntico e o que é identidade. Dizem alguns filósofos que dois fatos são idênticos, quando não há entre eles nenhuma diferença.

Alegam outros filósofos que não podemos compreender, que é impensável a diferença pura. Há, assim, uma antinomia fundamental entre o diferente e o idêntico. (Antinomia, no sentido clássico, é a oposição entre dois termos que parecem verdadeiros). Desprezamos, aqui, outras acepções dadas ao termo idêntico, preferindo, por ora apenas a que demos acima.

Leibnitz nega a identidade das substâncias, fundando--se no princípio dos indiscerníveis, pois, segundo êle, dois objetos reais não podem ser indiscerníveis, sem se confundirem rigorosamente. Assim, metafisicamente, só o Absoluto é idêntico a si mesmo. Tudo o mais, metafisicamente também considerado, não conhece a identidade, ou seja, não há seres idênticos uns aos outros. Desta for-

Li:

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ma, só podemos concluir rigorosamente que ou há identidade ou não há identidade. O próprio conceito de identidade não pode admitir maior ou menor identidade, pois este conceito não admite graus. Eis por que afirmamos que o semelhante não é um grau do idêntico.

Duas coisas, por serem semelhantes, não quer dizer, que são mais ou menos idênticas. Poder-se-ia dizer que existe uma identidade quantitativa e uma identidade qualitativa? Não é uma gota d'água idêntica a outra gota d'água? Não é um quilo disto ou daquilo idêntico a um quilo disto ou daquilo? Antes de darmos nossa opinião, ouçamos o que diz Egger: "As duas gotas d'água" da locução popular não são idênticas a não ser que se exija apenas serem gotas d'água. Todos os objetos de nossa experiência estão no mesmo caso, às vezes idênticos por uma experiência rápida e superficial: isto é, idênticos em aparência, idênticos no poderem receber a mesma denominação, mas somente semelhantes se forem considerados atentativamente. A identidade quantitativa é pois uma concepção simplesmente sugerida pela experiência". Lalande define a identidade qualitativa com estas palavras: "caráter de dois objetos de pensamento, distintos no tempo ou no espaço, mas que apresentariam todas as mesmas qualidades. Assim, quando alguém diz que um quilo de feijão, é, em peso, idêntico a um quilo de açúcar, como exemplo de identidade quantitativa, está usando o termo identidade no sentido da matemática, que considera como identidade uma igualdade entre quantidades conhecidas, como por exemplo: 2/4 = 1/2. Quando alguém diz que as vitaminas de um determinado alimento são idênticas às vitaminas de outro alimento, está apenas julgando que há uma identidade qualitativa, quando na realidade é lima igualdade como a anterior.

Só há identificação consigo mesmo quando se trata de mesma coisa. (Veremos em breve que essa identidade consiste no caráter de um indivíduo ou de uma coisa, de ser a mesma nos diferentes momentos de sua existência, pois essa mesa ou este livro não permanecem sempre os mesmos, estàticamente os mesmos).

Muito bem: qualquer parte da realidade só pode ser considerada idêntica a si mesma, no sentido de que não é

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outra. Só neste sentido. Noutro sentido, ela é diferente de outra coisa, assim como este livro é diferente de outro livro do mesmo título e edição igual. Singularmente considerados, ambos são diferentes. No entanto, há algo que os assemelha, pois tanto um como outro, embora distintos no tempo e no espaço, pois um ocupa um lugar diferente do outro, ambos apresentam as mesmas qualidades. Que nos sugere tudo isto? Está resolvido o problema? Absolutamente não. Examinemos mais: o homem em face da realidade percebe que esta não é homogêneamente igual. Ela apresenta diferenças, como já estudamos no início deste artigo. Mas essas diferenças são intensivamente maiores ou menores, pois uma pedra e outra pedra apresentam menores diferenças que uma pedra e um rio.

Estudam os psicólogos uma lei que eles chamam de "lei de semelhança" ou também "lei da similaridade", nome que dão à disposição geral do espírito que consiste em evocar um objeto percebido ou rememorado, ante a idéia de um objeto semelhante. Analisemos: o que há na natureza, o que se apresenta ao homem, tem caracteres que se assemelham. Como poderia viver o homem, se cada experiência fosse sempre uma nova experiência? Como poderia êle manter a sua existência se tivesse que experimentar cada fato como algo novo? Bergson exemplificava, imaginando um homem que houvesse perdido totalmente a memória, e que não tivesse qualquer memória. Quando êle praticava um ato, esquecia-o totalmente logo após à prática, e o ato seguinte era-lhe inteiramente novo, sem qualquer ligação com os atos anteriores. Esse homem não poderia viver, se entregue a si mesmo, pois não lhe guiaria memória nenhuma de seus atos. Poder-se-ia queimar no fogo tantas vezes quantas dele se aproximasse; morreria de fome, pois não guardaria a memória dos alimentos para satisfazer aquela necessidade imperiosa.

Notamos que, na natureza, os corpos ocupam um lugar e têm uma dimensão. Que esses corpos são mais brandos ou mais duros; isto é, oferecem maior ou menor resistência ao tato. Uns. ao receberem a luz, emitem cores, ou seja, vibrações luminosas, mais ou menos intensas. Assim, as árvores emitem raios luminosos verdes

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mais ou menos intensos. A memória tem graus diferentes, como veremos. Mas verificamos que existe entre a côr verde de uma árvore e a côr verde de outra árvore, menor diferença que entre ela e a da côr cinzenta de um animal. Assim, verificou logo o homem que entre a côr de uma árvore ou melhor entre a árvore-esta e a árvore-aquela, havia um quê que se assemelhava, isto é, ambas participavam de uma semelhança maior que a da árvore, como a do animal. Os graus de diferença foram permitindo ao homem perceber as semelhanças. Ora, era um imperativo vital para o homem, como o é para os animais superiores, simplificar a experiência, classificar a experiência isto é, reunir os semelhantes ou os menos diferentes entre si e excluir os mais diferentes. Vejamos como se processou esse trabalho de diferenciação. O homem comparou uma árvore a outra árvore. Elas não eram totalmente iguais, quer dizer, uma não podia identificar-se com a outra. No entanto, nessa comparação, verificou êle que a côr de uma se assemelhava à côr de outra. Se as duas árvores eram diferentes, havia entre elas um ponto em que parecia à outra. O que era dado pelo parecido, o homem retirou, separou de uma e de outra, ou seja, abstraiu, que significa, separar, do verbo latino abstrahere.

Essa função de comparação necessária para a vida do homem, criou no seu espírito o que poderíamos chamar de "órgão", aproveitando o termo da fisiologia para a filosofia, num sentido porém, um tanto rude. Esse órgão, essa função de comparação do espírito, é que gera posteriormente, no homem, a razão. A razão é algo de posterior, no homem, como podemos observar nas crianças. Em face da natureza, o homem primitivo intuía os fatos. Mas esses fatos mostravam conter algo que parecia idêntico. É a razão já desenvolvida que abstrai esse "idêntico" e lhe vai dar um nome, uma denominação comum, que é o conceito.

Em face do fato verde da árvore tal e do fato verde da árvore tal-outra e de muitas outras árvores, a razão abstrai o que há de semelhante numa árvore, que é o verde. Essa denominação comum da côr de uma árvore, de outra, é que forma aquele conceito. Na sua forma, esta árvore era semelhante àquela outra árvore e à mais

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outra. Abstraiu-se de uma árvore, de outra e de outra, um fato comum nelas, que consistia no ser um corpo enraizado na terra, com troncos, galhos, folhas etc, e denominou-se de árvore. Eis, portanto, o conceito da árvore. E assim quanto aos galhos, quanto aos troncos, quanto às folhas.

Não é difícil verificarmos ainda hoje, entre nós, que cada dia surgem novos conceitos de fatos específicos que antes não tinham um nome. Por exemplo: descobre-se um fato novo e logo sentimos a necessidade de lhe dar um nome. É que já tendo surgido o conceito, que é uma operação mental, precisamos uma palavra que o enuncie, que é o termo correspondente. É fácil verificar-se que certos conceitos, que até então eram gerais, alargaram-se em novos conceitos especiais. É que a busca da semelhança é cada vez mais exigente. Por exemplo: no conceito de animal, encerramos todos os seres vivos que a zoologia considera animais, mas entre esses estão outros, como os vertebrados e os invertebrados. Estes dois conceitos já não são gerais como o de animal: são mais específicos.

A característica do nosso espírito ao se desdobrar em duas funções: a que procura o semelhante e a que recebe o diferente, como dissemos permite fundamentar o processo da razão e da intuição. Enquanto a primeira função, a de comparar para apreender o semelhante, é a que melhor corresponde à natureza do homem, por simplificar e assegurar uma economia ao trabalho mental, a segunda, a de apreender o diferente, o individual, é-lhe mais cansativa. Por isso, a racionalidade do homem é constante. Mas, por essa racionalização, penetra o homem no terreno das abstrações, pois, como veremos, a razão trabalha com abstrações e tende para o parecido e daí para a identidade. A razão, por uma exigência do semelhante, cada vez maior, chega à idéia da identidade. O movimento, a fluidez, a transformação constante das coisas, que nos revela a intuição, choca-se com a tendência a estatificar, a parar, a homogenizar, da razão. A razão funciona com o parecido e a intuição com o diferente, por isso cada uma forma, a posteriori, seus próprios conceitos, como veremos.

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OS JUÍZOS

Por que digo que este fato é um copo dágua? Ao ter a intuição sensível deste objeto capto nele,

certas notas que repetem as notas de um esquema já construído, que é o conceito de copo. Todos os fatos, que tiveram tais notas imprescindíveis, podem ser classificados na série copo, e se este fato, realmente, corresponde a tal série, logo é um copo.

Que sucedeu aqui?

Se com termos digo: "este fato é um copo", a frase que pronunciei revela cinco palavras agrupadas num todo: este, fato, é, um, copo. Tais palavras aqui, nesta frase, ocupam um lugar, uma ordem, que permite dar um sentido, porque se dissesse: um este é copo fato, já o sentido não ficaria claro.

Que fiz, então? Verifiquei que o que tenho à minha frente é um fato, um acontecimento. Mas, à minha frente, há outros fatos diversos. Mas quis me referir ao que aponto com o dedo: este. Ao dizer este fato, já delimitei, separei, distingui um fato dos outros.

Mas dizendo apenas fato, em nada o distinguiria dos outros, que são, no entanto, diferentes. Mas sucede que este apresenta notas que o permitem incluir na série copo. Então disse: este fato é um copo, quer dizer: juntei o conceito copo ao conceito fato, e a ligação o fiz através do verbo ser, que realizou o papel de unir, de fazer a ligação (cópula) entre ambos. Por isso, quando o verbo ser representa esse papel de ligador, diz-se que é copulativo, porque une, liga.

Mas ao dizer que "este fato é um copo", não disse que era apenas copo, mas um entre muitos; determinei, restringi ainda mais a esse fato, apenas.

C O N V I T E À F I L O S O F I A 29

Pois bem: toda a atividade do meu espírito, que até aqui realizei, foi uma atividade afirmativa. Afirmei que esse fato pode ser classificado como copo. Então, atribuí ao conceito fato o conceito copo, restringindo-o da série tão grande que é fato, para uma série menor copo, que está naturalmente incluída naquela. Livro também é fato. E tudo o que acontece é fato; logo, no conceito lato, incluo tudo o que acontece.

Mas o livro é um fato que se dá aqui e agora. Posso localizá-lo neste lugar, seguro-o em minhas mãos. Este copo está aqui e agora. Eu estou aqui e agora. Mas eu penso sobre o livro, e sobre o copo. O pensamento está em mim; não está, porém, aqui, mas se dá agora, em mim. Posso dizer que este livro tem tantos centímetros, foi realizado o ano passado, tem, portanto, um ano de existência mais ou menos. Mas o pensamento não tem tamanho nem um tempo de existência, porque não posso dizer que o conceito livro tem a idade d e . . . , nem o tamanho d e . . .

Assim, os filósofos distinguem os fatos.

que se dão aqui e agora; isto é, no espaço e no

v»tn* t e m p o ;

r d l u a que se dão apenas no tempo, embora com referência a um ser espacial.

Os primeiros chamam-se corpos, têm corporeidade; os segundos são incorpóreos, como o pensamento, que não tem, enquanto tal corporeidade, embora também seja um fato.

Quando disse que esse fato é um corpo, disse (em latim dicere) algo que ajuntei ao fato, prediquei algo do fato. Então temos o que os filósofos chamam predicado. E quem recebeu esse predicado, a quem se atirou, jectou ide jectare, em latim, e daí jectum, jecto) estava sub, pois o jecto lhe foi aplicado, é o sub-jectum, o sujeito.

Então temos:

1) Este fato = sujeito.

2) é um copo = predicado.

Prediquei o segundo do primeiro.

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DO FATO AO JUÍZO

Procedi mais: ao dizer que este fato é um copo, fiz um julgamento desse fato, pronunciei uma sentença sobre este fato, realizei um juízo, e este é um juízo afirmativo, porque ajunto ao sujeito o predicado como realmente pertence ao sujeito. Mas se relutasse que é, se dissesse: este livro não é copo, estaria rejeitando (re-jecto) o predicado ao sujeito, estaria recusando predicado ao sujeito, e neste caso teria feito um juízo negativo. Então temos:

T , [afirmativos Juízos { n e g a t i v o s

Mas se dissesse: todos os corpos são fatos, não estaria universalizando, dando uma (uni) versão (versum) só, a todos os corpos? Seria um juízo positivo, mas diferente do juízo que expressasse "alguns homens são corajosos", porque, aqui, já não dava uma só versão a todos os homens, mas a alguns. E o mesmo poderia proceder com os juízos negativos.

Então, temos juízos positivos ou afirmativos universais, ou que se referem a apenas parte, particulares.

Juízos

negativos f universais (.particulares

j . . ,. f universais afirmativos p a r t i c u l a r e s

Já vimos que um conceito pode estar incluído em outro, como no caso dos fatos. Um é mais geral e daí vem gênero, e outro mais especial e daí vem espécie. Então temos gêneros e espécies. As espécies estão incluídas no gênero, o gênero inclui as espécies.

C O N V I T E À F I L O S O F I A 31

Quando tomamos um pedaço de pano, e o dobramos para coser, diz-se que se faz uma prega. Essa palavra vem de plicare, latina, pregar. E quando um conceito está plicado em outro, embrulhado em outro, temos um conceito implicado em outro. E temos, então, o termo implicado, na Filosofia.

Então os conceitos estão implicados em outros, e essa característica de serem tal é a implicância. Mas, às vezes, mais de um conceito estão implicados em outro, estão complicados, temos a complicância.

Assim, como sucede com os conceitos, sucede com os juízos. Um juízo pode estar implicado em outro. Assim, quando digo que "todos os homens são mortais", tenho implicado "alguns homens são mortais", como também o "este homem é mortal".

Então, de um juízo universal, que inclui todos, posso tirar alguns que já estão implicados, como também um, que também está implicado.

A DEDUÇÃO

Quando faço tal, eu deduzo, eu tiro, (de ducere, latim, conduzir, daí duce, o guia, condutor).

Quando deduzo, tiro um juízo de outro; eu deduzi. E chama-se dedução essa atividade do espírito que consiste em tirar de um juízo universal um juízo particular.

Mas posso proceder de maneira inversa (numa versão in, contrário). Posso partir de particularidades para chegar a uma generalidade. Vejamos como procede o espírito humano.

Se eu soltar este livro aqui no ar, êle cai. É um corpo pesado, e cai. E cai também este copo, este cinzeiro. E verifico ainda mais, que todos os corpos pesados, soltos no espaço, caem. E assim o verificaram todos os homens. Posso, então, desses fatos particulares, formar o juízo universal de que todos os corpos pesados, soltos no espaço, caem.

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32 MARIO FERREIRA DOS SANTOS

Então que fiz: deduzi? Não, eu duzi in, para, pois o termo in em latim também significa para; eu conduzi para, eu induzi, e temos a indução.

OS MÉTODOS

São, pois, dois métodos (meth'odos que quer dizer oaminho, caminho real, verdadeiro, bom, daí método, o bom caminho para chegar a alguma coisa):

dedutivo — que parte do geral para o par-. ticular.

Método indutivo — que parte do particular para o geral.

A Filosofia é, em geral, dedutiva; a Ciência, por exemplo, é mais indutiva. A Ciência parte dos fatos particulares para estabelecer juízos universais, dos quais depois deduz outros particulares: é indutivo-dedutivo.

A Filosofia, em geral, deduz, e muitos julgam até que sua única atividade é dedutiva, enquanto outros defendem também o método indutivo-dedutivo e o dedutivo-in-dutivo.

DEFINIÇÃO

Quando construímos um juízo (e já tivemos ocasião de ver como se processa) esse juízo indica, aponta um conteúdo ao qual se refere. E quando esse juízo perfeitamente se ajusta, como esta gaveta se ajusta a esta escrivaninha, quando o conteúdo cabe bem no juízo, como ao dizer eu que "este fato é um copo", e este juízo se ade-qúa perfeitamente ao fato de que me refiro, estou, em face de uma verdade de fato e de uma verdade lógica. A verdade de fato é que realmente há aqui um copo, e a lógica está na adequação do juízo por mim pronunciado com o fato ao qual se refere.

Dirão que essa verdade é relativa, pois esse fato é copo, porque chamamos copo a tais fatos. Mas se bem observamos, veremos que há, aí, mais.

Despojemos primeiramente o termo copo, que aponta o conceito copo, e enquanto conceito é um só que pode ser assinalado por palavras diferentes, segundo as línguas.

Abramos um dicionário e vejamos que diz êle sobre copo. Encontramos lá essa definição:

"Copo — vaso para beber, comumente sem asa, e de forma cilíndrica ou alargada para as hordas."

Copo, genericamente, é um vaso, não é, porém, qualquer vaso, porque há vasos que não servem para beber; e copo é para beber. Então se vaso é mais genérico, para beber é o que diferencia copo de outros vasos.

Pois bem, temos aí a definição. A definição define, de-fine, dá fins, limita, contorna. E nós, para de-finirmos alguma coisa, temos que dizer primeiramente o que é ela, isto é, a que ordem pertence, mas precisamos, depois ver também o que a diferencia. E o gênero mais próximo de copo é vaso, porque fato também é um gênero, porém

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mais distante. Para darmos contornos mais definidos, procuramos o gênero mais próximo vaso, e a diferença que o especifica: para beber. Os outros aspetos, como ter asa ou não, ser alongado ou não, variam de um copo para outro, mas ser vaso, o servir para beber pertence a todos os copos.

Mas é verdade que também se pode usar por semelhança com os copos essa palavra para referir ao copo da flor, ao copo das esporas, e tc , porém não se refere à espécie, copo que está aqui.

Já sabemos o que é uma definição, e cabe à Lógica estudá-la. Este fato é copo porque tem tudo quanto é necessário ao conceito copo. Dessa forma, quando digo que é copo, o juízo que traduzo por palavras na minha língua, é adequado perfeitamente ao fato, e é logicamente verdadeiro.

Há outras verdades, como a metafísica, a verdade absoluta, das quais falaremos mais adiante.

Até aqui pensamos juntos, falamos em pensamentos, juízo, não dissemos, porém, o que sejam.

Ora, se ponho a olhar esta sala com tudo quanto está dentro dela, vejo que há paredes, quadros, mesas, poltronas, livros sobre a mesa, livros azuis, verdes, encadernados e em brochura, cinzeiro, caneta, lápis, etc. E vejo que uns objetos estão mais próximos ou mais distantes de outros, etc. Vejo que posso pensar sobre muitos aspectos. Mas os mesmos aspectos podem ser pensados por outra pessoa. Assim, quando digo que: "este fato é um copo", também outra pessoa o pode dizer.

Posso eu e outra pessoa ter o mesmo pensamento, embora esse pensamento seja pensado em mim e em outra pessoa, em dois atos diferentes: o meu e o dela. Então vemos que os pensamentos podem ser iguais, mas o ato de pensar é diferente. E se penso novamente sobre o mesmo copo, penso outro ato de pensar, embora o pensamento seja sempre o mesmo.

Que decorre daí? Decorre que os pensamentos estão em tudo, mas o

ato de pensar é que os capta. Então devemos distinguir

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pensamento, quando é aspecto, relação, e tc , dos fatos, e pensamento quando ato de pensar. Enquanto aquele pode ser o mesmo, este é sempre diferente.

E têm razão aquelas pessoas quando dizem: "Você teve o mesmo pensamento que eu". O pensamento era o mesmo, mas o ato de pensar era diferente.

Distinguir bem esses dois tipos de pensamento nos ajudaria a compreender muitos aspectos, e muitas dificuldades desaparecem.

Tudo é pensamento, tudo pode ser pensado. Os nossos pensamentos captados, quando adequados com os pen-samentos-fatos, realizam uma verdade.

Pode dizer-se que mentamos pensamentos. Mente vem de man, radical indo-germânico, que indica medir, pesar, daí man, homem man, em inglês, Mann em alemão, o ser que avalia, mede, valora. (Mente, menção, mentar, comentar são palavras derivadas). A palavra pensamento vem daí, e indica o que é medido, pesado, valorado. Tudo o que pode ser medido, pesado, valorado pela mente, órgão que mede, é pensamento (pensare, em latim, pensar, daí compensar).

A natureza está cheia de pensamentos que o homem pode mentar, por isso a Filosofia, sob o seu aspecto dinâmico, é esse invadir a Natureza na cata dos pensamentos que estão nela, buscando-lhe os porquês, os nexos, as relações, e t c . . .

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A ORDEM DO PENSAMENTO E A ORDEM DA NATUREZA

Antes de tudo, precisamos saber o que é ordem.

Ordem é a relação entre as partes de um todo, deste com as partes, e destas entre si. Este copo forma um todo, totalidade em que há uma relação entre as partes entre si e o todo, o que lhe dá uma coerência, uma coesão.

Mas há ordem, e há ordem. Quer dizer, há ordem em que as partes se conexionam, íntima e rigorosamente, e ordem onde as partes são acidentalmente componentes de um todo, sem um nexo rigoroso a ligá-las.

E se observarmos a natureza, veremos que uma árvore forma uma totalidade, com sua ordem, com o relacionamento de cada parte a servir ao todo, mas necessita a árvore ainda do ar, da terra, da água, que surja da semente e se torne o que é.

Dessa forma, além da ordem que tem e pertence, necessita ela de outra ordem, que com ela se ordena, isto é, se co-ordenam, coordenadas que fatoram, (de factor, fazedor), que permitam que ela aconteça como tal.

Além dessas coordenadas ambientais, está ela cone-xionada (de nexo, do latim nexus, atadura) com todas as coordenadas que formam o nosso planeta, como este os está com o resto do sistema solar, e assim por diante.

Dessa forma, falar em árvore é, por conexões, possível falar demais, porque, para que a árvore se dê aqui, se impõe a presença de coordenadas que permitam tornar em ato essa possibilidade.

Que queremos dizer com estas palavras? A árvore vem de uma semente. Digamos que a se

mente era de pereira. Certamente, já sabemos, surgirá xtma pereira. A semente não nos irá dar cachorrinhqs, o

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que seria estranhamente maravilhoso, nem, muito menos maravilhoso seria se nos desse maçãs. Há uma ordem que se desenvolve, uma conexão, em que um fato sucede a outro, mas sempre cumprindo a mesma ordem.

Mas sucede que a semente da árvore é de pereira, mas, enquanto semente, ainda não é a pereira, embora contenha virtualmente aquela, que pode vir-a-ser.

Pode-se ver então que os fatos mostram possibilidades, isto é, um poder de vir a-ser. Este fósforo tem o poder de vir-a ser chama, e acender o meu cachimbo.

Assim como este lápis tem o poder de riscar este papel, tenho eu o poder de beber este copo dágua, e esta água o de ser bebida por mim.

Vê-se que estamos aqui em face de dois tipos de poder. Um poder sofrer, um poder fazer.

A POTÊNCIA

Chama-se, na Filosofia, potência, essa possibilidade de vir-a-ser; potência passiva, a de sofrer, e ativa, a de fazer.

. . . í ativa potência ( p a s s l v &

Mas, o que tem possibilidade de vir-a-ser, já é. Este copo pode ser quebrado, mas o copo já é, está aqui, atua aqui na minha frente. Êle é ato, mas também é potência, porque o ato copo me revela a potência copo. Todo ato tem potência, e esta, quando se realiza, se atualiza, se torna ato, que, por sua vez, revela possibilidades, que ao se atualizarem, se tornam ato, e assim sucessivamente.

Essa passagem da potência para o ato é o que os latinos chamam fieri, os alemães werden, os ingleses be-coming, os franceses devenir, os portugueses devir, os italianos divenire.

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Neste caso, tudo está em devir, todos os fatos cor-póreos, pelo menos, estão em devir; mesmo até as pedras que parecem eternas também estão em devir.

Para os gregos, sobretudo com Aristóteles, havia a seguinte classificação:

dynamis = potência e energéia = ato

Mas uma pergunta surge logo à nossa mente. Se tudo está em devir, tudo passa de um estado de possibilidade para um de ato. Mas, como não podemos conceber a possibilidade sem um ato que a contenha, há sempre um ato que antecede todos os outros, há sempre ato no universo, em tudo; e esse ato é primordial.

E para que esse raciocínio fique claro, façamos previamente os seguintes:

O universo existe; é uma certeza que não pomos em dúvida, mas por mais que duvidássemos, chegaríamos a uma certeza: algo existe, pois algo duvida, e, neste caso, seria o leitor ou eu quem teria essa íntima certeza.

Prossigamos em nossos raciocínios: algo existe, algo está em ato. Se nós observamos que um ato vem de outro, onde estava em potência, o ato, pensado apenas como ato, é sempre ato, sempre êle mesmo.

Ora, esse ato não poderia ter vindo do nada. Que concebemos como nada? Concebemos a absoluta privação de qualquer ato, porque se houvesse ato deixaria de ger nada para ser alguma coisa. Do nada, nada poderia vir, porque se o nada pudesse tornar-se alguma coisa, nesse caso o nada seria eficaz, poderia fazer alguma coisa, e então deixaria de ser nada para ser alguma-coisa-que-po-de-fazer-alguma-coisa.

Dessa forma, o que há é produto de um ato, e este ato, que o produziu e de onde vem tudo, é um ato que tinha em si a possibilidade de ser tudo quanto existe, existiu e existirá, não porém como possibilidade não determinada em ato para nós, mas como possibilidade já, dando--se no ato, e que, para nós, se atualizaria, depois, dentro das nossas coordenadas, que formam o relacionamento do

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nosso universo de conhecimento. Quer dizer que esse ato, de onde vêm todos os fatos, tinha em si o poder de fazer tudo, porque não podemos deixar de reconhecer o que se dá hoje, deu-se ontem e vai dar-se amanhã, eram possibilidades que se atualizam, porque se não fossem possíveis não se teriam atualizado.

Neste caso, tudo, quanto sucede, tudo quanto sucedeu, tudo quanto sucederá não pode negar a ordem já existente, porque, do contrário, viria do nada e não do ato anterior a tudo, o que seria transformar o nada, de nada, em ato, e transformá-lo em ser, o que seria a anulação do nada e dizer que se diz quando se diz nada, porque admitir eficacidade do nada é negar totalmente o nada.

Portanto, tudo quanto se atualiza, atualizou e se atualizará já estava contido no poder do que era antes de tudo, e estará contido no poder do que será antes de tudo. O ato, então, primeiro e antecedente de todos os atos sucessivos, é sempre o mesmo nos atos que sucedem e sucederão. Pois se os atos, que ora sucedem e sucederão, não forem o mesmo ato, viriam do nada, o que já vimos não podemos admitir, pois do contrário o nada, tendo poder, não era nada, mas ato.

O SER QUE É, FOI E SERÁ

Desta forma, o ato que é e foi, será sempre o mesmo. E esse ser que é, foi e será sempre o mesmo, como já contém tudo e é sempre êle mesmo, pois ser outro, seria ser o nada, o que não é, e porque é, é êle imutável, apesar das mutações que surgem, pois para mudar do que é teria de ser o que não é, que seria, nesse caso, o nada, o que é absurdo, pois como poderia o ser deixar de ser? Se o ser pudesse deixar de ser, o ser seria fraco e não poderia ser, o que é absurdo, pois já admitimos que o ser é; portanto, se é, é agora, foi e será.

Assim, o ato primeiro de tudo, e que em tudo se manifesta, é um ato puro, quer dizer, não misturado de outro, porque outro seria nada, e não ser.

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E esse ato puro que é, foi e será, chamavam os antigos judeus de Moisés, de Je-ho-vá, que, em hebraico, quer dizer é, foi, será, Jehová, o Deus dos Judeus.

É esse ato puro que os cristãos chamam Deus, onipotente criador de todas as coisas.

No ato do existir, do nosso existir, da nossa ordem, essas possibilidades se manifestam sucessivamente aos nossos olhos.

(Surgiriam aqui, no leitor, muitas perguntas, tais como as seguintes: por que é assim e não de outra maneira? Por que não somos ato puro? Por que o ato puro nos criou e não nos deixou permanecer nele? Tais perguntas já revelam a necessidade do estudo da Filosofia, porque sem conhecê-la, como respondê-las? E depois que nos adiantaria apenas ficarmos numa posição de indiferença e dizer: bem, que me importa tudo isso! E os que desejarem permanecer nessa atitude, podem ficar natu-lalmente conscientes do que fazem, mas, os outros, que querem enfrentar os problemas e que não se acovardam ante as interrogações, prosseguirão o seu caminho, e sabem o que fazem, não por uma necessidade profunda do homem apenas, mas também por algo que significa muito para a dignidade humana: a coragem de enfrentar o mistério, o que está oculto.

Nosso universo nos revela, no entanto, à nossa intuição sensível, a mutação constante das coisas. Há um nexo dos fenômenos (e fenômenos, vem de phaos, em grego, luz, fenômeno, o que aparece); uns estão ligados a outros, uns decorrem de outros, uns são fatorados por outros, e, para o serem, dependem da coordenação de outros.

A LEI DA CAUSALIDADE

Há, assim, uma lei da causalidade, que nos mostra uma relação de causa e efeito. A causa é o ato anterior que tinha uma possibilidade e ao atualizar essa possibilidade, tornando-a ato, esta é feita dela, é e-feita (de ex-fectum, feitio ex, de; daí exfectum, que dá efeito, em português).

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Não basta, porém, apenas o ato anterior para que se dê o efeito, é necessário também que as coordenadas não o impeçam.

Dessa forma é preciso distinguir. E vamos fazê-lo, volvendo à semente de pereira.

Tem ela a potência de ser pereira; isto é, poderá atualizar-se em pereira.

Mas a semente de pereira, apesar de ter a potência de tornar-se pereira, para tal tornar-se, precisa de terra, de ar, de sol, de água (os quatro famosos elementos dos antigos). Sem elas, a pereira não surgirá.

Vemos, assim, a presença de duas ordens: 1) a ordem interna na semente, que se exteriorizará

na pereira; 2) a ordem das coordenadas, necessárias para que a

semente se torne pereira. A primeira causa vem da semente da pereira, vem à

margem, à tona, emerge da semente. Chama-se por isso causa emergente.

A segunda é dada pela disposição das coordenadas que pre-param o ambiente e os elementos necessários para que a semente se torne pereira, isto é, pre-dispõe. Chamam-se causas predisponentes.

Assim, se observarmos bem, todos os fatos, que sucedem, precisam de causas predisponentes para que se atualizem.

Vê-se, assim, que tudo está condicionado a tudo; isto é, por ter conexão com o resto é condição para que algo suceda, o que mostra o condicionamento de tudo com tudo, o nexo de tudo com tudo, o relacionamento que nos ievela a ordem do universo.

Os fatos estão, portanto, conexionados. E essa conexão dos fatos chama-se realidade.

Mas, como já vimos, quando falamos do conceito, os fatos do mundo da realidade podem ser conceituados, e os conceitos, como já vimos, também estão conexionados, encaixados uns em outros.

O nexo dos conceitos, e também estes são o objeto ée estudo da Lógica.

Li

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A IDÉIA PARA HEGEL

Hegel um grande filósofo alemão, chamava idéia a síntese (syn, em grego quer dizer, com, e thesis, posição: composição) do conceito com o fato, que lhe serve de conteúdo. Tenho uma idéia do copo dágua, porque sei que este corpo aqui é um copo dágua, a idéia me é revelada, e a tenho na conjugação, na composição do fato corpóreo com o seu conceito. Dessa forma Hegel distin-guia:

1) idéia como representação subjetiva (isto é, como apresentação de novo de imagens mentadas pelo homem);

2) a idéia concreta, que é este copo, que, como fato corpóreo, é, ao mesmo tempo, concretamente, o conceito copo. (Con-creto vem de crescior, em latim, ser crescido, concreto, o que cresce junto).

Para Hegel, só tem concreção o que é considerado dentro de suas coordenadas que, com o fato, se conexio-nam. (É possível que o leitor leia em muitos livros que falam sobre Hegel coisa muit^-diferente, mas isso é culpa dos que não o leram, e o cita£m\de ouvido, o que é muito comum).

Por que o homem construiu o conceito de árvore, como o de copo, e tc? Por que o homem pode dizer que este objeto aqui é livro, e este também é livro? E no entanto este livro é diferente daquele. Mas ambos têm em comum um número de notas, que nos permitem classificar no esquema abstrato livro, como já vimos.

Mas as coisas vivas, não criadas pelo homem, revelam também um número de notas, mas revelam mais: uma ordem, que é a mesma em todas. Essa ordem é o que as forma, desta e não daquela maneira. A semente de

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pereira tem uma ordem que não admitirá que ela se transforme numa macieira, e sim numa pereira.

Essa ordem lhe dá a forma de pereira e não macieira. E essa forma não é apenas a forma externa, que os olhos vêem, porque as pereiras são diferentes umas das outras, mas uma forma interna, que nela penetramos por intuição, através das diferenças exteriores; mas essa intuição não nos é dada pelos sentidos, mas pela inteligência. Captamos, na pereira, a pereira, a forma da ordem pereira, e essa forma não a temos nos olhos do corpo, mas nos olhos da inteligência, como temos nos olhos da inteligência a forma livro, que não é a forma exterior, nem deste nem daquele livro.

A forma deste livro é uma forma do fato livro, é fáctica, é figrura.

A forma do livro é uma forma ideal do livro, é uma forma eidética (de eidos, que em grego significa idéia).

Dispomos de uma intuição capaz de captar a forma eidética, através da intuição sensível. Chama-se a essa intuição de intuição eidética.

Um outro exemplo nos esclarecerá tudo definitivamente.

Se vamos a um jardim zoológico, e nos mostram um animal, e nos dizem que é um camelo, toda vez que encontrarmos um animal semelhante, já sabemos que é camelo. Somos capazes de, apenas com um exemplar, captar aquilo que depois se generaliza em muitos outros animais, que se chamam camelo. Essa capacidade do homem revela já um estágio superior, avançado, porque a criança, por exemplo, nos primeiros anos, não o tem, nem o deveria ter o homem primitivo.

A REALIDADE E A IDEALIDADE

As idéias formam também um nexo, umas com as outras, e esse nexo chama-se idealidade.

Então temos dois nexos:

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1) o nexo da realidade — o dos fatos;

2) o nexo da idealidade — o das idéias.

O nexo dos fatos e das idéias inão são totalmente separados, e podemos dizer, portanto, que há:

1) uma realidade na idealidade;

2) uma idealidade na realidade.

E estamos agora entrando na dialética.

Que é dialética?

Dialética vem de diá e logos, palavras gregas. Diá, quer dizer, através de, daí diafano, que vem de dia e phaos, luz, a luz através d e . . . Dialética significa através das razões, logoi, plural de logos. Dialegeyn, verbo grego, significa afanar-se por esclarecer através das razões, raciocínios. Diálogo é uma palavra que revela o clareamento através da discussão entre aspectos diferentes.

A Dialética quer esclarecer através do nexo, não só da idealidade como da realidade. Como a Lógica Formal, apenas quer esclarecer através do nexo dos conceitos, a Dialética, modernamente, quer esclarecer através do nexo da realidade como da idealidade, procurando a realidade na idealidade e a idealidade na realidade.

Esse nexo entre a idealidade e a realidade é um dos grandes temas da Filosofia.

Vê-se desde logo que a Filosofia não é apenas uma composição de palavras abstratas, como dizem muitos. Mas a verdadeira e honesta filosofia é esta.

Poderíamos, então, sem dar uma definição, mas um enunciado esclarecedor, dizer que a Filosofia é a ciência que busca o nexo da idealidade e da realidade e também do valor de tudo quanto há.

Por isso é a Filosofia a suprema ciência, e inclui o estudo de todo o saber humano mais elevado.

SABER FILOSÓFICO

De tudo quanto até agora estudamos, já podemos fazer uma síntese esclarecedora que nos sirva de ponto de partida para novas investigações.

O ser humano, em face da variedade heterogênea dos fatos do acontecer cósmico, para dar-lhe uma ordem, viu--se forçado a construir esquemas abstratos, por meio dos quais classifica esse mesmo acontecer. E não satisfeito com isso, procurou descobrir-lhes o nexo.

E o que já examinamos nos favorece para que possamos ampliar o enunciado do que seja a Filosofia.

E para descobrir esse nexo, tendo como instrumento o pensar como ato de captação de pensamentos, e os conceitos, como esquemas abstratos, não podia o homem obter êxito em sua atividade se não procedesse pelo método da comparação. E não poderemos compreender a comparação sem que previamente estudemos as relações.

Todos usam o termo relação, e nunca se usou tanto como hoje, onde já se forjaram palavras como relativis-mo, relacionismo, e outras.

Etimològicamente, vem ela do verbo fero, cujo parti-cipio passado dá latum (fero, tulo, latum, ferre, como o tem que decorar os que estudam latim). A partícula re em latim tem o sentido de movimento, de volta, de retrocesso, de repetição também. Re-latus, indicaria, o relato, fazer uma relação, narrar alguma coisa. Relatus como adjetivo, indica o tornado a trazer, o referido, o proposto, por exemplo.

Relatio é a relação, o que se relata, a narrativa. Relação é o pôr-se ou o estar de uma coisa levada a outra, ou que está em face de outra.

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Dessa forma, todas as coisas estão em relação, porque todas estão em face de outras. Mas< podemos pela mente, relacionar as coisas com outras, as presentes com a imagem das ausentes, e quando relacionamos conceitos com conceitos, quando refletimos, (de re-flectum vem re~ ííexio, ação de voltar, torcer, reflexão) voltamos os pensamentos e os pomos em relação uns com os outros. Temos, então, o que psicologicamente se chama reflexão.

Ora, as relações nos mostram, no entanto, aspectos muito interessantes. É que há fatos que se relacionam acidentalmente com outros, como a relação que pode haver entre mim e a paisagem, que se desdobra além da minha janela, mas revela que nessa relação eu nada influi na paisagem, embora ela em muito, durante sobretudo es manhãs claras, influa sobre mim. Vemos, então, que as coisas relacionadas umas às outras podem exercer influências que provoquem modificações. Há relações meramente fortuitas, sem influência maior entre as partes relacionadas, e outras em que essas influências podem levar a profundas modificações.

Posto uma coisa em face de outra, ou um conceito em face de outro, ou um juízo em face de outro, verificamos facilmente ou não, que entre eles há aspectos que se repetem, que ambos têm, em comum, como o azul deste livro com o azul daquele livro, entre mim e o leitor também, mas logo captamos aspectos que são diferentes, que estão num e não no outro, como este livro, sendo igual a este, é também diferente, porque, se ambos são azuis, este é mais grosso que o outro.

A COMPARAÇÃO

E como pomos um em par do outro essa ação de pôr em par um com o outro, esse emparelhamento, permite-nos fazer uma com-par-ação, comparação.

E ao comparar um fato com outro, ou um conceito ou um juízo com outro conceito e com outro juízo, podemos ver o que se repete e o que não se repete, o que nos permite, portanto, notar as diferenças, o que é o resultado principal da comparação.

Na verdade, todas as coisas estão em par das outras, mas a ação de realizar a comparação exige um ser inteligente, isto é, que capte entre as notas (inter e lec) as semelhanças e as diferenças.

Ora, já vimos que as semelhanças e as diferenças, que são captadas pela nossa intuição intelectual, permitem classificar os fatos em conceitos, e nos conceitos consideramos apenas as notas que se repetem, que os fatos têm em comum.

Desse modo, o nosso espírito, ao funcionar intelectualmente, se desdobra em duas atividades: a que capta intuicionalmente diferenças e semelhanças, e a que classifica as semelhanças em séries para com elas poder socializar a experiência humana, transmitir aos outros, e dar ordem ao caos de acontecimentos. E essa função é a Razão, função do nosso espírito, que já trabalha com conceitos.

Como os conceitos são generalidades, como já vimos, a razão trabalha com generalidades. É ela uma função classificadora em ordens.

A razão nos dá uma ordem ao universo, permite que pensemos sobre generalidades, que racionalizemos o universo, e que sobre êle raciocinemos. E outra coisa não

HHfHli. 11

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é o livro de contabilidade que se chama razão, no qual se universalizam e se generalizam os títulos, e embora para muitos pareça estranho, foi desse conceito contabilista de razão, que surgiu a palavra Ratio, razão, pois a contabilidade, e bem o sabemos hoje, já existia há mais de seis mil anos atrás.

Os conceitos são sempre generalizações que nós construímos, e todas as palavras se referem a conceitos portanto, a generalizações.

Pela empíria, obtivera o homem um saber empírico, de experiência, através da observação dos fatos. Mas um outro saber do mundo obteve, através dos conceitos das generalidades. Ao ver um fato comparava-o ao conceito ao qual pertencia, e os conceitos comparava-os entre si.

Como a vida e todo existir decorrem, seguindo os fatos a outros fatos, não se pode buscar o já acontecido para comparar a um fato presente, nem podemos trazer uma árvore que vimos lá para comparar com esta, para saber se, entre elas, há ou não, igualdade. Mas podemos, graças à memória, saber que esta árvore tem semelhanças com aquela, e pelo conceito classificar ambas na série árvore. E quando se tratava de comparar conceitos com conceitos, podemos correr daqui para ali, passar de um para outro, ir e voltar, ora comparar com este, ora com aquele, podemos dis-correr, e daí discurso, e daí saber discursivo, que é o saber que construímos através dessas corridas que fazemos de um conceito para outro, a fim de notar as diferenças entre um e outro, e de onde resulta um novo conceito, um novo saber. E o mesmo podemos dizer com os juízos, etc.

Havia, assim, ao lado de um saber empírico, um saber discursivo, um saber culto, porque já exigia outros sa-beres, um saber que refletia, reflexivo, e que também reproduzia os conceitos como um espelho reproduz o rosto, e este refletir do espelho, em latim speculum, permitiu que se falassem num saber especulativo.

E eis que a Filosofia se apresenta, entre os gregos sobretudo, como um saber especulativo, como um saber das

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"imagens" que refletem os fatos (as idéias) e que se separa do saber empírico.

Mas obtém outra característica também importante: é que esse saber especulativo, como era realizado por pessoas que não tinham propriamente necessidade de trabalhar para viver, pois os escravos trabalhavam para êles,-toi construído não para ser aplicado, como o é um saber prático, como o do agricultor, mas um saber que se satisfazia apenas em si mesmo; isto é, quem o procurava não o buscava para dominar as coisas, mas para satisfazer apenas seu desejo de conhecer, de ilustrar-se. Dai chamarem-no de desinteressado.

E esse saber, como descobriu o nexo dos conceitos, passou a ser chamado de saber teórico, em oposição ao saber prático do homem comum.

A "THEORIA"

Por que teórico? Ora, a palavra theos, de onde vem Deus, e quer dizer o ser que vê, nos dá theoria, que em grego quer dizer visão. E como os gregos, quando iam às suas festas religiosas aos templos, faziam longas filas, que vinham do horizonte e podiam ser vistas à distância, isto é, ter delas uma visão, chamaram-nas de theoria. E como essas filas tinham um nexo, porque todos que as formavam tendiam para o templo, significou também o que se vê como nexo, não pelos olhos do corpo, mas pelos olhos do espírito. E a palavra, que era de uso corrente, serviu, metaforicamente, de termo para a Filosofia. E não é a teoria um conjunto de raciocínios, que dão o nexo, fundados em fatos ou suposições, ou revelam o nexo de um conjunto de fatos, e serve para explicá-los?

Pois o saber especulativo, culto, é um saber teórico, porque procura o nexo que liga os fatos uns aos outros, ou as idéias umas às outras. E assim surgem diversas teorias que, por sua vez, coordenadas por um nexo que as estruture, coordenam numa teoria todas as teorias a ela subordinadas, e torna-se, finalmente, num sistema, que

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vem de systhema, em grego, que significa reunião, ajun-tar.

Cabe, como sempre se diz, aos gregos a construção desse saber teórico, como também o nome da Filosofia, que vem de philos e sophia, duas palavras, que significam amante e sabedoria, ou seja, amante da sabedoria, palavra que se atribui a Pitágoras, embora os gregos já tivessem o verbo philosopheyn, que significa afanar-se por saber alguma coisa.

E realmente a Filosofia é um afanar-se por saber, porque é aquela ativa, e se não o fôr poderá cair em formas mortas e abstratas.

Eis que nos surge mais uma vez a palavra abstração, que tantas vezes já usamos, mas que não cabe agora explicar, para que possamos prosseguir em outras investigações que nos mostrem como realmente merece que sejamos convidados para a Filosofia.

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ABSTRATO E CONCRETO

Não seria agora difícil compreender a diferença entre abstrato e concreto, em face do que já tivemos ocasião de tratar. Vimos até que a palavra .concreto jsignifica o

JJg§~ çrescejunto. Realmente, o mundo Cresce junto, e nós crescemos, rios formamos, juntos com todas as outras coisas. Mas seria impossível ao homem, quando tivesse que pensar sobre uma coisa, pensar simultaneamente em tudo quanto cresce junto com ela.

Imaginemos que alguém deseja medir uma árvore. Precisa apenas medir a árvore, e, para tanto, tem que deixar de interessar-se pela largura do campo onde a árvore cresceu, e também pela altura das árvores vizinhas, pela da montanha, etc. Tem que separar a árvore, mentalmente, e medi-la separadamente.

Essa ação de separar (de interessar-se à parte) uma coisa chamou-se, freqüentemente, de abstração, palavra formada do latim abs. . . trahere, trazer ab, para o lado, pôr de lado. Quando se abstrai uma coisa, separa-se, mentalmente para o lado.

Mas, e é aqui que muitos fazem confusão, o ato de abstrair, que realizamos mentalmente, apenas separa mentalmente.

Ao medir a árvore, não a separamos da realidade à que pertence, como não separamos a realidade à qual pertence o homem quando sobre êle tensamos. Separamo-í -Io apenas mentalmente. E o perigo das abstrações e do| abstracionismo filosófico, onde muitos se perdem em locubrações puramente verbais, está em que tais separações, que são apenas mentais, e que fazemos no intuito de analisá-las, não as devolvemos, depois, à realidade, à concreção a que pertence, e consideramos como se tivessem uma existência de per si e em si, o que os leva a

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hipostasiar as abstrações <hipo, em baixo, statis, de estar) dar-lhes uma base real em si, como se, na verdade, a tivessem. Assim o homem dá muitas vezes, às abstrações, que êle apenas separou mentalmente da concreção, uma base real, como se realmente tivessem elas uma realidade independente; eles as hipostasiam.

Então, em suma: abstrair é separar mentalmente o que na realidade não se separa. A separação de um fato de outro, como separar este copo do pires, onde está, não é uma abstração, porque esta é meramente realizada pela mente.

Portanto, todo conhecimento meramente abstrato é aquele que se funda no conhecimento de algo que se separou, sem se conhecer que faz parte de um todo concreto, com o qual nasce, e que o conhecimento não encerra tudo quanto tem ou oferece o conhecimento.

Entramos, aqui, num ponto importante e fundamental da Filosofia. É que esse conhecimento exige um cog-noscente, e este se chama, na Filosofia, o sujeito, o que conhece, e o conhecido chama-se objeto.

OS PÓLOS DA REALIDADE

Dessa forma a realidade é desdobrada em dois pólos:

cognoscente cognitum SUJEITO OBJETO

O primeiro é quem recebe o jecto (sub), o segundo que jecta ob, que se jecta ante, diante, contra. Nós ainda usamos esta palavra, neste sentido, quando dizemos: objetar as idéias de alguém, o que quer dizer opor-se, ou opor razões às idéias de alguém.

Pois o objeto ob-põe-se ao sujeito. E esse antagonismo entre ambos levou a muitos filósofos falarem em dualismo antagônico, expressão que afirma ângulos (go-nos) opostos entre ambos, mas que, como todo antagonismo, é este também solucionável.

Mas deixemos tais aspectos para depois, e prossiga-mos em nossas análises:

O sujeito, e neste caso convém que se distinga, pode ter considerado como sujeito da gramática ou da lógica, e como sujeito da psicologia. Simplificadamente, é o sujeito o que recebe o jecto, o que capta o jecto; neste caso, é um conceito que recebe outro, de quem se predica outro, e temos o sujeito da Lógica, ou é um ser vivo, que tem consciência, como o sujeito da Psicologia.

O primeiro é estudado na Lógica e o segundo em todas as ciências do homem, e é deste que nos vamos preocupar, porque o primeiro apenas é um recebedor de jec-tos, e este é diferente, porque este também conhece.

E em que consistiria esse conhecimento?

Consistiria na captação de notas do objeto por parte do sujeito.

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Em suma, seria isso; mas, com^ s e dá. quais os limites dessa captação, etc, é o que nc?s levará agora a uma análise.

Consideremos o ser humano como cognoscente; neste caso, o homem conhece os fatos do mundo exterior e conhece a si mesmo como fato, tanto o seu corpo, como os seus próprios pensamentos.

Então o sujeito, no homem, só pode ficar reduzido ao Eu que conhece, e o restante qt16 n ã o é ê s t e E u c n a -mam-no os filósofos de Não-eu. #ntão temos:

Eu + Não-eií-

Eu, é o sujeito, o que conhece; píão-eu, o objeto, o cog-nitum, o conhecido. E o ato de conhecer chama-se conhecimento.

Ante o mundo exterior, o Eu (sujeito) dispõe de instrumentos, de órgãos de conhecim0nt°. Que ° ligam, que o põe em contato com este mundo.

São os órgãos dos sentidos: a visão, o tato, o olfato, o sabor e o ouvido. Os dois primeiros. e ° último são os mais importantes órgãos de que dispõe o homem, sobretudo o primeiro e o último.

Ora, sabemos nós que os noss°s órgãos do conhecimento não nos dão o objeto, pois este continua onde está, apesar de conhecido. Não sofre nenhuma modificação por isso, em si mesmo.

Vejo esse copo dágua, e pelo simples fato de vê-lo, não deixa êle de permanecer Ond0 e s t á e n ã o s o f r e ne" nhuma modificação.

Ao conhecê-lo, não o incorporo ao meu corpo, mas apenas tenho dele, dentro de mim (ií1»)* "ma imagem (ima-go, dentro, no fundo de nós), numa imagem luminosa, que é dada pela forma exterior do copo- C o m o conhecimento sensível, os objetos do munao e*terior permanecem no mundo exterior.

Mas sabemos que nossos sentidos não captam todas as notas do objeto, pois sabemos Q.ue nossos olhos ape-

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nas vêem uma gama muito pequena das vibrações ele-tro-magnéticas, como, os nossos ouvidos, apenas parte das vibrações das moléculas do ar. Há sons que não ouvimos, desde que ultrapassem a um número de mais ou menos 30.000 vibrações por segundo, ou menos de 16 vibrações.

Dessa forma, o que nos aparece luminosamente, como forma exterior, o objeto conhecido, está limitado ao alcance dos nossos sentidos. O nosso conhecimento apenas separa parte do que pode conhecer, isto é, separa para si, sem separar da coisa, onde concretamente continua, o que nos leva a compreender que o nosso conhecimento é naturalmente abstrator.

Nossos órgãos de conhecimento são funcionalmente abstratores. Mas podemos conhecer mais dos objetos, mais do que eles nos oferecem à primeira vista. Não nos revelam os microscópios que podemos ver seres pequeníssimos invisíveis a olho nu? Na verdade, é assim. Mas que faz o microscópio? O microscópio amplia o tamanho dos seres a dimensões que se encaixem dentro do campo da nossa visão, e dos seus limites. Então, através dos microscópios, na verdade, conhecemos esses seres não como o são no seu real tamanho, mas como o são ampliados para nós. Dessa forma, estamos sempre limitados aos nossos sentidos, e só podemos conhecer, quando reduzimos o conhecido aos limites dos nossos meios de conhecer.

Mas vejamos o que seria então o conhecimento (conhecer, vem de cognoscere, em latim, por sua vez gnosis» em grego cujo g indica com, e nosis, daí noesis, conhecer, de nous, espírito, inteligência). Dessa forma, conhecimento é a captação pelo nosso espírito do objeto.

Mas essa captação se faz através de imagens quando se trata de objetos do mundo exterior, se faz de idéias, quando de pensamentos, e se faz de afetos, quando afetiva.

Ora, em todo conhecimento é imprescindível, portanto, um sujeito e um objeto. Só há objeto onde há sujeito, só há sujeito onde há objeto. Um não se dá separado do outro.

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Portanto, é preciso distinguir: mundo exterior é o mundo como êle é, e mundo objetivo, o mundo como o homem o conhece.

Ora, é o mundo objetivo do homem o mesmo que o mundo exterior?

Se os nossos meios de conhecimento são abstrato-res, o mundo do objeto tem de~ser de algum modo distinto do mundo exterior.

ANALISE E SÍNTESE

Se o homem apenas conhece parte, só parte do mundo exterior lhe é revelado. Então, de qualquer forma, o conhecimento é sempre abstrato. Tais perguntas surgem ao filósofo e exigem respostas porque a Filosofia é uma disciplina que se criou não só para perguntar, mas também para responder, e foi no intuito dessas respostas que satisfazem ou não, que ela se afana em suas análises e sínteses.

Há uma distinção entre análise e síntese que convém desde já fazer.

Os nossos sentidos são analisadores. Em grego análise (analysis) significa dissolver. O químico analisa um corpo ao dissolvê-lo, ao decompô-lo em partes, nas partes que o compõe. E síntese (synthesis, com e posição em grego) é composição. O químico sintetiza, quando compõe as partes separadas, formando outra vez o todo.

Pois nosso conhecimento também procede por análises e sínteses. Com o sentido tomamos os fatos ana-liticamente. Olho este copo e vejo que é transparente, que é largo na parte superior, estreito na inferior, capto as partes que o compõe. Mas capto também, como um todo, quando o vejo. Então poderíamos dizer que os nossos sentidos são analisadores-sintetizadores.

Dessa forma, há sempre a presença das duas atividades do nosso espírito, que não se dão separadas, mas conjuntamente, porque a razão também analisa como a intuição também sintetiza.

Na intuição sensível, prepondera a análise sobre a síntese, ou seja:

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ANALISE maior que a síntese

Quando, porém, reduzo o analisado, pelas notas captadas, a uma série, a um todo, que expresso pelo conceito, então o sintetizo num todo. Neste caso, a

SÍNTESE é maior que a análise.

Então temos:

no ato intuitivo análise > síntese

no ato racional síntese > análise

Há, assim:

conhecimento

intuitivo — capta a individualidade deste fato, o copo aqui, por exemplo;

racional — capta, no copo, a generalidade a que pertence o copo.

Uma é supinamente analítico-sintética, outra é supi-namente sintético-analítica.

GNOSIOLOGIA OU TEORIA DO CONHECIMENTO

Embora o homem muitas vezes tivesse posto em dúvida a validez do seu conhecimento, foi entre os gregos, no Ocidente, que propriamente se colocou o problema do saber humano, quando, no período já de decadência daquele povo, os sofistas (palavra vinda de sophos, em grego, sábio) puseram-se a discutir sobre tudo, tomando diversas posições, e inclusive sobre a validez das nossas cognições, sobre as quais puseram dúvidas.

Chama-se, na Filosofia, "Teoria do Conhecimento" essa disciplina que estuda a parte gnosiológica, o alcance do conhecimento, as suas possibilidades, os seus limites e a sua validez. (Gnosis, em grego, conhecimento).

-S É tal a importância dessa disciplina, que muitos filósofos afirmam que por ela se deve iniciar o estudo da Filosofia, enquanto outros julgam que se deve começar pelo estudo da história; isto é, pelo desenvolvimento histórico da Filosofia. Ambas posições pecam por um erro no ponto de partida. A primeira, por começar a discutir o conhecimento antes de ter algum conhecimento, e a segunda, por querer estudar a evolução das idéias filosóficas, sem se ter, antes, uma idéia dos temas filosóficos. Pecam ainda, a primeira por colocar-se num ponto de vista meramente lógico, que exigiria, para conhecer, saber conhecer, e, a segunda, por um ponto de vista histórico, que o conhecimento deve repetir a mesma cronologia da história.

É natural que não iremos fazer aqui um estudo da gnosiologia, incluindo todas as suas possibilidades, mas apenas dar sintética e esquemàticamente os pontos principais, para poder construir-se, desde já, uma visão geral do que é mais importante.

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Não tinham os gregos a Gnosiologia como disciplina estruturada. Foi um filósofo inglês, John Locke, em 1690, com sua obra "Ensaio sobre o entendimento humano", que o problema do conhecimento foi novamente pôs-to sobre a mesa, e de tal forma, que permitiu estruturar--se uma nova disciplina, a "Teoria do Conhecimento".

Hessen, fazendo uma síntese dos grandes temas da gnosiologia, oferece a classificação dos cinco problemas fundamentais:

1) Possibilidade do conhecimento humano, que se caracteriza pela pergunta: pode o sujeito realmente apreender o objeto?

2) A origem do conhecimento, que se pode sintetizar na pergunta: qual a fonte e a base do conhecimento?

3) Essência do conhecimento humano, que pergun- / / ta: É o sujeito que determina o objeto ou este que deter- C, ; mina o sujeito? — Quem lhe dá as características? !

4) Formas do conhecimento, que respondem à pergunta: Há, além do conhecimento discursivo, racional, j um conhecimento intuitivo?

5) Critério do conhecimento. E a pergunta é: há um conhecimento verdadeiro, e, se há, como podemos conhecer e saber quanto vale essa verdade?

Vejamos a seguir como se procurou responder a essas perguntas:

A POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO

Podem ser tomadas, quanto à resposta, 5 posições:

1) A resposta dogmática: É o dogmatismo a posição mais antiga da Filosofia."" Esta não põe em dúvida a possibilidade do conhecimento (dogma, em grego quer dizer decreto, ordem). Os dogmáticos decretam que há a possibilidade do conhecimento. Quando surgem os solistas, essa possibilidade é posta em dúvida.

2) A resposta céptica (a palavra céptico vem de skepsis, em grego, daí slTeptikós, o que examina, o que

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duvida). Os cépticos duvidam dessa possibilidade e argumentam que nossos meios de conhecimento são parciais e, portanto, que tem este de ser parcial, duvidoso.

Os cépticos se dividem em sistemáticos, que transformam a dúvida num sistema (fechado, portanto) e reconhecem a impossibilidade de conhecer; e cépticos metódicos, que usam o cepticismo como método; são cépticos, duvidam, quando conhecem, até atingir a um ponto onde não haja dúvida, e sobre essa certeza reconstruir o conhecimento.

3) A resposta subjetivista e a relativa. Para estas, o conhecimento tem uma validez limitada. O subjetivis-mo limita-o ao sujeito, porque depende deste o conhecimento, e o relativismo considera-o apenas relativo, dependendo do meio, da cultura, das condições históricas, de classe, etc, que o modelam.

4) . A resposta pragmatista (pragma, em grego, significa "negócio, atividade utilitária). A corrente prag^ matista, que tem esse nome dado por William James, psi-' \-cólogo americano, parte do ponto de vista que o homem é um ser prático, um ser de vontade e de ação, e o valor do conhecimento está na sua conveniência ou não para a vida. Dessa forma, o conhecimento apenas corresponde a essa conveniência do homem.

5) jji. resposta criticista. É a posição de Kant. Aceita a possibilidade do conhecimento, mas modelado pelas nossas condições. É um conhecimento apenas parcial, não total, pois divide a coisa em dois aspectos: a coisa como se nos aparece (fenômeno), e a coisa em si (noumeno). Conhecemos apenas o fenômeno, o que nos aparece e segundo nossas condições, mas a coisa em si, isto é, como ela é, tal nos escapa ao conhecimento.

A ORIGEM DO CONHECIMENTO

Quanto à origem são estas as respostas: 1) A resposta racionalista. É a razão, para estes,

a fonte do conhecimento, e só ela pode dar uma validez; é a razão que dá garantia ao conhecimento. Só o captado pela razão é verdadeiramente conhecimento.

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2) A resposta empirista. Para esses, a razão não é a origem do conhecimento, mas a experiência, a empí-ria. A razão é uma construção posterior do homem, que não nasce com ela; portanto, é a experiência que é a origem do conhecimento.

3) A resposta intelectualista. Afirma que essas duas respostas anteriores são extremadas. Realmente, a experiência e a razão formam os extremos do conhecimento. É da experiência que surgem os conceitos, mas estes, depois de formados, exercem uma ação sobre as novas intuições sensíveis.

A ESSÊNCIA DO CONHECIMENTO

São cinco as respostas:

1) A resposta do objetivismo: o objeto determina, dá término, dá limites, modela o sujeito. Este apenas copia o objeto por meio de imagens.

2) A resposta do subjetivismo: os objetos não se dão independentemente da consciência. Esta os modela e lhes dá uma existência real, determina-os, forma-os, modela-os.

3) A resposta realista. Há coisas reais independentes da consciência, e elas se revelam como são, e não modeladas pelo sujeito.

4) A resposta idealista. O mundo exterior é independente do conhecimento, mas o mundo obietivo é criação do sujeito. A realidade objetiva é criação do sujeito.

5) A resposta fenomenalista. Para esta, nós não conhecemos as coisas como elas são, mas apenas como nos aparecem, como fenômenos. Afirma o realismo das coisas, e aceita o idealismo ao limitar o conhecimento à consciência.

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AS ESPÉCIES DE CONHECIMENTO

Surgem aqui apenas duas respostas:

1) Conhecimento discursivo (teórico mediato). Quem conhece é apenas a razão. Das coisas apenas apreendemos a sua generalidade. Quanto à individualidade, só as apreendemos por redução ao geral.

2) O conhecimento intuitivo (mediato). Na verdade, nós conhecemos a singularidade e depois reduzimo-la a generalidades.

As duas posições podem ser conjuntamente afirmadas como conhecimento do geral, o da razão; e conhecimento do singular, o da intuição. Mas os filósofos polemizam aqui de todas as maneiras, cada um para o seu lado. Os racionalistas afirmam apenas o valor do primeiro conhecimento; os irracionalistas e intuicionistas, o valor do segundo.

CRITÉRIO DO CONHECIMENTO

Chama-se Criteriologia a disciplina que procura responder às perguntas: quando é verdadeiro ou falso um juízo? Como podemos saber se é verdadeiro ou falso? Qual a validez dos nossos conhecimentos? O que é verdade? Até onde alcançamos uma verdade? Ora, tais temas já penetram no setor da Metafísica, e pelas classificações que demos até agora, já se vê que muitas podem ser as posições quanto ao critério dos nossos conhecimentos.

Será uma das matérias na qual os que penetrarem no terreno da Filosofia encontrarão maior soma de problemas e de argumentos, e onde as idéias humanas encontraram um verdadeiro campo de batalha, do qual muitas saí-ram completamente derrotadas, enquanto outras, ainda na liça, esgrimam com entusiasmo suas armas, à espera de sempre renovados combatentes que desejam derrota--Ias.

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O TEMA DOS VALORES

Ao ver este copo, que está sobre a mesa, noto que é redondo, de forma cilíndrica, de base menor que a parte superior, que é de vidro transparente, que contém água, que tem, desenhado em sua parte exterior, diversas linhas curvas e retas. Tudo isso está no copo. Mas, quando o acho belo, cheio de graça na sua forma, o belo e a graça não estão no copo. Se lhe tirar a forma, êle deixa de ser o que é. Posso tirar todas as qualidades que nele noto, e sem elas este copo deixaria de ser o que é. Mas se deixasse de considerá-lo belo, gracioso, o copo não deixaria de ser o que é.

Propriamente, esse modo de se apresentarem as coisas, o valor das coisas, é um dos temas mais importantes da Filosofia, sobretudo em nossos dias.

E nunca o homem se interessou tanto por tal tema, pois, para que se tenha uma idéia de quanto impressiona as consciências modernas, basta que se diga que só no quadriênio de 1927-1930, houve quem nele catalogasse mais de mil e trezentas obras publicadas, nesse período, que tratavam do valor.

E de tanto exame desse tema surgiu uma nova disciplina filosófica, que se chama Axiologia (de axiós, em grego, valor). E hoje já se esboça, nessa mesma disciplina, a formação de outra, que aos poucos se autonomi-za, que é a Timologia (de timós, valor em sentido extrín-seco, valor por exemplo, da economia, que ainda encontramos em palavras como estima, estimar, etc).

Em que consistem os valores? São eles seres como é a forma deste copo e a matéria da qual é feito? Ou são outros modos de ser? Essas perguntas, que a Axiologia procura responder, receberam diversas respostas. E sobretudo, há uma pergunta importante: têm os valores uma existência em si, ou existem„em nós? São algo que valem de per si, ou só valem segundo as nossas apreciações?

AS TRÊS CORRENTES AXIOLÓGICAS

As respostas variadas podem ser sintetizadas em três grandes correntes:

1) a realista-glatônica, como a costumam classificar. Segundo esta, os valores são entes ideais, que existiriam em si, e que as coisas, por imitá-los, teriam mais ou. menos valor. Assim há um valor do Bem, que é perfeito, e as coisas que o imitam mais ou menos são melhores ou não.

2) A tendência nominalista diz que os valores são apenas nomes que damos às nossas apreciações, que são apenas subjetivas. Damos valor, uns, a isto, e outros, não, que, por sua vez, ao que dão valor, podemos não dar. Dessa forma, o valor seria apenas o resultado de uma apreciação subjetiva.

3) A posição realista moderada declara que tanto uma como outra das anteriores expressam algo de verdadeiro. Pois não seria razoável, por exemplo, que considerássemos os valores apenas subjetivos, porque nesse caso não se poderia discutir sobre eles, e as opiniões seriam apenas pessoas. Ora, na verdade, encontramos, nas coisas, uma base material, que nos mostra por que têm valor. Se digo que este quadro tem valor, posso nele mostrar o que lhe dá valor, o que há nele de estético, de belo. Dessa forma, há uma base material dos valores, embora seja o valor valorizado pela atividade subjetiva, que o pode valorizar ou não. Ambos teriam razão, só que, separadamente, não teriam toda a razão.

Entre essas três posições, há divisões numerosíssimas, que são estudadas na Axiologia (1).

V.- .IÍM-O.AV.

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66 MARIO FERREIRA DOS SANTOS

Perguntaríamos agora: por que pôs o homem sobre a mesa o tema do valor?

Sempre que o homem perde alguma coisa ou está às vésperas de perdê-la, tem dela mais consciência? Quando os homens sentiram que perdiam a crença em Deus, puseram-se a discutir mais do que nunca sobre êle. Quando todos sentem Deus naturalmente não discutem sobre a sua existência. A vida moderna, os regimes sociais totalitários que temos conhecido, a falta de respeito à dignidade humana, levaram o homem a pensar sobre a dignidade do homem, e natural e conseqüentemente, teve de pensar no que valia o valor, em que consistia o valor.

Os valores apresentam diversas características importantes:

a) são polares — a um valor corresponde outro valor contrário, que se lhe opõe — Bem x Mal;

b) os valores apresentam gradatividade — um valor pode valer mais ou menos;

c) os valores apresentam hierarquia — um valor, de uma ordem, pode valer mais que o valor de outra ordem.

Sobre esses três pontos estão todos os filósofos de acordo, só não o estão quanto à hierarquia, como também não o estão as culturas, as classes e até os indivíduos. Pois, se uns dão mais valor aos religiosos, porque são pessoas religiosas, outros dão aos valores utilitários (como vantajoso, desvantajoso), e outros aos vitais (como saúda vel-doentio).

Um artista poderia dar mais valor aos valores estéticos (belo-feio) e um lógico aos lógicos (verdadeiro-falso).

Cada pessoa oferece uma escala de valores e assim como não se encontram dois indivíduos iguais, dificilmente se encontrariam dois indivíduos que apresentassem sempre a mesma escala de valores.

OS GRANDES TEMAS DA FILOSOFIA

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A INTENSIDADE E A EXTENSIDADE

Aproveitando os temas tratados até aqui, estamos agora habilitados a considerar uma seqüência de outros dos mais importantes, que através dos séculos têm despertado a maior atenção da parte dos filósofos, os quais provocaram grandes debates. Procuraremos apresentá--los esquemàticamente, dentro da maior simplicidade possível.

Se observarmos este copo, vemos que êle ocupa um lugar no espaço, como se dá agora, no tempo. Mas esse copo nos mostra o que podemos distinguir como quantidade e o que podemos distinguir como qualidade.

Posso medi-lo, e dizer que tem 12 centímetros de altura, e poderei também medir o diâmetro da base ou o diâmetro da sua boca. Mas posso também captar o que é qualitativo nele, que não posso medir por centímetros. Não poderia dizer que tem tantos centímetros de diafanei-dade, por exemplo. A quantidade e a qualidade se distinguem uma da outra. Mas essa distinção tem aparecido aos filósofos como uma das maiores dificuldades da Filosofia.

Graças à física moderna, podemos apresentar dois termos que encerram duas grandes distinções em todos os seres.

Levo minha mão até o copo que está parado, inerte aqui. Posso dizer facilmente, sem que tal exija grande dificuldade, que eu, como ser vivo, apresento uma intensidade muito maior em meus movimentos e em meu ser, do que este copo. Observamos nos seres vivos mais intensidade do que nos corpos meramente físicos. E os filósofos, em face da intensidade e da extensidade, que passaremos imediatamente a examinar, encontraram grandes

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70 MARIO FERREIRA DOS SANTOS

EXTENSIDADE

INTENSIDADE

dificuldades, e essas decorrem do fato de nosso espírito oscilar constantemente entre a intensidade e a extensida-de; há sempre um conflito entre ambas, que o nosso espírito procura solucionar, ora pela redução (alternativa) de uma à outra, ora pela SUPRESSÃO de uma ou de outra. Não se dá, porém, a ambas a mesma realidade, nem é concebido esse conflito como IMANENTE à realidade.

Procurou sempre a Filosofia dar um desses termos como aparente, em benefício da realidade emprestada ao outro.

É formado do verbo latino ex-tendere, isto é, ex e tendere, tender para fora. Os prefixos ex e in indicam a direção da tensão, o dinamismo inverso da tensão. De extensão, temos extensivo, extensibi-lidade e extensidade.

Quando empregamos as expressões que decorrem de extensão, sempre queremos indicar o que se prolonga, o que parte para o exterior — é um dinamismo de afastamento, de desdobramento, de alongamento, é uma direção tomada para o objeto, para o que é heterogêneo, mutável, para abrangê--lo, incorporá-lo; é centrífugo.

Vem de intensus que, por sua parte, vem de tendere, in tendere, tender para dentro.

E temos intenso, intensidade, intensivo, intensificar. Quando nos referimos às expressões decorrentes de INTENSO, INTENSIDADE, queremos nos referir a alguma coisa do interior, alguma coisa que vem da heterogeneidade, da sucessão, do movimento de mutações do exterior para dentro, é uma transformação em si mesma, volvida para o interior; é CENTRÍPETA.

C O N V I T E A F I L O S O F I A 71

A EXTENSIDADE leva ao "conceito-objeto", a INTENSIDADE ao "conceito-sujeito"; numa há mais objetividade, noutra, mais subjetividade.

Na extensidade, há um sentido de AFASTAMENTO; na intensidade, de CONCENTRAÇÃO. Enquanto a extensidade tende para assemelhar; a intensidade tende para diferenciar. É fundamental da EXTENSIDADE o CARÁTER SINTÉTICO; da INTENSIDADE, o ANALÍTICO.

Há, na extensidade, um DINAMISMO SINTETIZA-DOR que implica sempre uma grandeza, uma operação desenvolvendo-se em extensão na realidade. A intensidade se DESENVOLVE em si, em separação, em distinção, em ANÁLISE.

SENTIMOS mais a intensidade, mas SABEMOS mais da extensidade; por isso esta é mais definivel que aquela.

Em face do antagonismo entre INTENSIDADE e EXTENSIDADE, existem três posições:

a) A posição dos que reduzem a intensidade à extensidade.

b) Dos que reduzem a extensidade à intensidade.

c) A dos que reduzem ambas a uma terceira entidade, onde esse antagonismo desaparece.

Existe ainda a posição dos que julgam que a extensidade e a intensidade formam duas ordens dinâmicas, an-tinômicas da natureza. É uma posição dialética, que afirma a contemporaneidade de ambas, que podem ser admitidas concretamente como fazendo parte de toda existência e de todo existir finito.

Graças aos conceitos de intensidade e extensidade pode a ciência penetrar em campos inexplorados. A energia é concebida como o produto de dois fatores, um de EXTENSIDADE e outro de INTENSIDADE.

Mas esses dois fatores apresentaram-se apenas como força viva e força de tensão, uma energia atual e uma energia potencial.

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,/

72 MARIO FERREIRA DOS SANTOS

Façamos agora uma análise dos dois termos ATO e POTÊNCIA.

ARISTÓTELES foi quem melhor salientou que as coisas não são apenas o que são, mas também o que podem ser, como já vimos.

Desta forma, toda mutação pode ser:

a) Possível.

b) Em processo de realização.

c) Realizada.

A expressão ato se aplicaria ao momento B, em oposição ao momento A e ao momento C. O momento A seria EM POTÊNCIA (poder, ser) e o C, o ser já realizado, que resulta da mutação. Chamava Aristóteles de:

DYNAMIS, o momento A (potência).

ENÉRGEIA, o momento B (ato).

ENTELÉKHEIA, o momento C (fim, enteléquia).

A palavra ATO, servia para expressar tanto o momento B como o momento C.

Para Aristóteles, a matéria era potência; isto é, tinha a possibilidade de tornar-se isto ou aquilo. Mas transformava-se em ALGO pela FORMA, o ato, que era oposto, que a modelava.

Assim, predominantemente em sua obra, a potência depende, está subordinada ao ato, e por êle toma existência, e determinação, porque o ato é o princípio do ser.

É através do ato que uma possibilidade se transforma em realidade; pois o ato é a realidade de um ser que estava ainda indeterminado.

Assim a potência é passiva, é inerte. O ato (enérgeia, palavra grega, que é formada de

ergon, trabalho, e que significa eficacidade) é quem impulsiona, dá forma à potência.

LEIBNITZ dá a palavra potência o sentido de força ativa, fonte original da ação, consolidada e eficaz.

C O N V I T E A F I L O S O F I A 73

Como se vê, para Leibnitz, o sentido de força é completamente diferente do sentido clássico, e foi aceito depois pela Física.

Cada um dos aspectos da energia pode ser, por seu turno, atual ou potencial. Uma intensidade pode ser atual e uma extensidade pode ser potencial.

Para Ostwald: "A única maneira legítima de compreender as pala

vras energia atual e energia potencial, é olhar como atual uma energia presente no momento considerado e como potencial uma energia que, nas circunstâncias presentes, pode formar-se por intermédio da energia presente.

Assim sendo, a força de tensão ou a energia de distância, que se encontra numa massa elevada acima da terra, é atual, e a energia de movimento, que ela contém, é potencial; depois daquela, é o inverso.

SINTETIZANDO: a intensidade podem ser ou

e a extensidade atual ou potencial

Quando a intensidade se atualiza, a extensidade se potencializa, e vice-versa. Não podem ser atuais ou potenciais no mesmo instante.

O tempo intervém na intensidade; a física moderna, quando trata de intensidades, necessita do tempo para os seus cálculos; enquanto para o processo extensivo, é necessário o espaço.

Para distinguir a intensidade da extensidade, analisemos este quadro de Ostwald. Energias VOLUME Forma (elasticidade) Peso (ou gravita-

ção) Energia de Movi

mento Eletricidade Energia química Energia térmica

Extensidades

VOLUME

Deslocamento

vetorial

Peso

Massa Carga elétrica Massa Entropia

Intensidades Pressão Força correspondente Potencial de gravi-

tação Velocidade do qua

drado Potencial elétrico 'Afinidade Temperatura

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74 MARIO FERREIRA DOS SANTOS

A existência real é assim constituída de dois fatores contrários. Quando um deles cresce, o outro diminui, como a entropia e a temperatura, extensidade e intensidade da energia térmica.

Nos fenômenos macrofísicos, há predomínio da extensidade, sobre a intensidade. Nos fenômenos microfí-sicos (física atômica) dá-se o inverso.

Nos fatos psicológicos, há também maior predominância da intensidade sobre a extensidade.

Tratando da extensidade e da intensidade, encontramo-nos em face do "mesmo" (do semelhante, do parecido), e do "diverso" (do diferente).

Eis os dois aspectos da realidade que a razão e a intuição vão apreender diversamente. A extensidade é o campo da razão; a intensidade, o da intuição.

Há transformação na natureza porque há intensidade.

Essas duas expressões se completam; uma necessita da outra, uma é incompreensível sem a outra. Não há extensidade sem intensidade, nem intensidade sem extensidade no acontecer, nos fatos naturais. Nada é homo-gêneamente puro, nem heterogêneamente puro.

LUPASCO oferece um quadro dessas direções dinâmicas do existir. Ei-lo:

EXTENSIDADE Identidade — homogenei

dade Materialidade — espacia-

lidade Simultaneidade Permanência e conserva

ção Invariabilidade, "invarian-

te" Extendimento objetivo,

Exteriorização Síntese Causalidade e determinis

mo Afirmação

INTENSIDADE Não identidade — hete-

rogeneidade Temporalidade

Sucessão Desaparecimento, destrui

ção Variabilidade, "variante"

Desenvolvimento subjetivo, interiorização

Análise Incausalidade e indetermi-

nismo Negação

AS GRANDES CORRENTES DA FILOSOFIA

Ante o espetáculo do mundo, o homem observa que uma coisa consiste em ser feita de outra, e essa outra de outra, e assim sucessivamente, mas conclui que deve haver uma que não seja feita de outra; isto é que componha ou realize as outras coisas, mas que seja ela mesma, e não outra, que não se possa decompor em partes, una e simples, e a primeira, idêntica a si mesma.

Esse algo é a arque (arkhê, palavra grega, que significa princípio, começo), que os filósofos buscam, isto é, o princípio idêntico de todas as coisas, uma razão suficiente de tudo quanto existe, um princípio de onde tudo decorre.

Há, na Filosofia, um interesse constante — o de encontrar uma certeza.

Entre os antigos gregos, Homero dava o Oceano como progenitor de todos os deuses; era êle a arque. Esse mito encontra-se também nas civilizações orientais (Babilônia, Egito, Fenícia, índia, e t c ) .

Para Hesíodo, o ser primordial era o Caos, e a força motora e geradora, Eros.

Para os órficos, os primeiros seres foram a Noite, o Caos, o negro Érebo e o profundo Tártaro.

Para Jerônimo e Helânio, as matérias primordiais eram Cronos (o tempo) e a Anankê (a necessidade).

Com os jônicos, inicia-se na Grécia, a investigação científica e filosófica.

Tales considerou a água o princípio; todas as coisas seriam dela derivadas.

Reporta-se, assim, ao princípio úmido dos asiáticos.

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76 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

Para Anaxímenes era o ar, um princípio aeriforme. Com Empédocles, surgiram como arque, quatro ele

mentos: A água (elemento úmido) O ar (elemento aeriforme) A terra (elemento sólido) O fogo (elemento fluídico).

Para Anaximandro, esse princípio era indefinido, apesar de material; era uma proto-coisa, que êle chamava de ápeiron (ilimitado).

Não era água, nem ar, nem terra, nem fogo, mas tinha a possibilidade de se tornar qualquer dessas coisas.

Era infinito, não tinha limites, nem contornos, nem forma.

Para Heráclito de Éfeso, as coisas não são nunca, em nenhum momento, o que são no momento anterior ou no momento posterior; estão constantemente mudando. Quando queremos fixar uma coisa e dizer em que ela consiste, já ela não é mais o que era no momento em que formulamos a pergunta.

Era, assim, para Heráclito, a realidade um constante fluir, um constante vir-a-ser.

O ser das coisas não é estático, mas dinâmico, e elas não são, mas se tornam. Assim o existir é um perpétuo mudar, um constante estar sendo e não sendo, um devir.

A contradição lógica desta teoria foi provada por Parmênides de Eléia.

Dizia: para Heráclito o ser não é, e o que é, não é, pois o que é neste momento, já não é neste momento, pois passa a ser outra coisa.

Portanto, o que caracteriza os seres é o não ser. Eis o absurdo; pois como pode alguém entender que o que é, não é, e o que não é, é?

Logo essa idéia não é inteligível.

Por isso Parmênides estabeleceu este princípio:

O SER É;

O NÃO-SER NÃO É.

C O N V I T E Ã F I L O S O F I A 77

Assim Parmênides estabelece o princípio fundamental do pensamento lógico, que, posteriormente, será chamado de "princípio de identidade".

Deste conceito decorre uma série de atributos do ser. Vejamos:

O ser é único e uno;

é eterno (se não fosse teria princípio e teria fim);

é imutável (toda a mudança implicaria a admissão do

ser ao não-ser);

é ilimitado, infinito;

é imóvel.

A teoria que estuda o ser, é o que se chama em Fi

losofia

ONTOLOGIA

A ontologia É A TEORIA DO SER

. . . ia teoria do s A gnosiologia e J d o c o n h e c e i .

responde às perguntas:

que é o ser? quem é o ser?

fa teoria do saber e

A teoria da arque leva os filósofos a se colocarem sobre três pontos de vista:

1) que realmente existe esse princípio supremo — é a filosofia do incondicionado;

2) que esse absoluto é mera ficção — é a filosofia do condicionado;

3) que há uma relatividade entre as coisas — é a filosofia da relatividade.

Page 38: Mário ferreira dos santos   convite à filosofia e à historia da filosofia

78 MARIO F E R R E I R A DOS S A N T O S

A arque, o prin- l é apresentado como único e idêntico; cípio supremo \ t e m ° atributo da incondicionalídade;

Jexiste por si mesmo.

Esses são os caracteres do absoluto. Assim é Deus, para os monoteístas.

Comte, Littré, Holbach, Hamilton, Vaihinger, apresentaram a filosofia do condicionado, que nega o absoluto, e classifica-o como mera ficção.

--$ Protágoras iniciou a filosofia da relatividade que tam

bém nega o absoluto, e afirma a relatividade entre as coisas, a relatividade do conhecimento, a relatividade moral, etc. Para êle "O homem é a medida de todas as coisas".

Grandes polêmicas se têm travado entre incondicio-nalistas e condicionalistas, e até estes entre si.

Vejamos, em resumo, os dois pontos de vista sobre os quais se colocam os incondicionalistas:

1.°) Os que declaram que o princípio supremo é semelhante. É a posição dos realistas, dos intelectualistas e dos racionalistas.

2.u) Os que afirmam que é diferente. É a posição dos nominalistas, dos anti-intelectualistas e dos irraciona-listas.

Os partidários dessas duas posições, acusam-se mutuamente de superficialidade.

Como atingir o fundo dessa realidade?

Para os realistas

O melhor meio é a razão (o espírito geométrico, "L'esprit d'ordre" de Pascal).

O meio natural da razão é a identidade (Parmênides).

A identidade é o contrário do diferente, que lhe é antagônico.

C O N V I T E A F I L O S O F I A 79

A razão desindividualiza a realidade, e procura a identidade na realidade.

A razão busca os homólogos, o homogêneo.

Uma coisa é inteligível na medida da sua identidade.

A razão procede pela comparação do semelhante ao semelhante.

í A intuição é o melhor meio de conheci-Para os anti- mento ("L'esprit de finesse" de Pas-

-intelectua- \ cal), listas A intuição é mais profunda; ela pene-

l tra na coisa, para vivê-la.

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A FILOSOFIA DA CONDICIONALIDADE E OS RELATIVISTAS

Para o positivismo (filosofia positiva de Augusto Com-te, 1798 - 1857,

francês)

O absoluto não existe nem objetiva, nem subjetivamente. Para Comte, a humanidade atravessou três estados:

O TEOLÓGICO, O METAFÍSICO e o POSITIVO (que é o atual).

Afirmava que o absoluto não é mais a meta de nossa era. Não se deve pensar que Comte considerasse essas três épocas nitidamente separadas; isto é, que uma desaparecesse quando ocorresse a outra.

A leitura da obra de Comte nos revela que êle compreendeu esses três estados como uma constante domina-dora; isto é, houve época em que uma predominou sobre as outras, mas sem que as outras deixassem de existir mas sempre inferiores à predominante.

Em nossa época, há, ainda, o estado:

teológico e metafísico,

e este está agora tomando um surto inesperado.

Para o empi-rismo (de em-píria, experi

ência)

Todo conhecimento é atribuído aos sentidos.

Ora, os sentidos não podem apreender o absoluto.

O cepticismo, que já estudamos, surgiu na Grécia, com Górgias: é unia atitude filosófica que consiste em ns e,ar a validez ao conhecimento,

C O N V I T E Ã F I L O S O F I A 81

Vejamos como objetavam os cépticos a filosofia da incondicionalidade.

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ii u

Ü

Pirro

l.a) Não há nada absoluto, pois é preciso demonstrar tanto que o ser começou a ser como não começou a ser, tanto que há uma unidade, como uma pluralidade.

2.a) Se existisse alguma coisa não seria cognoscível, pois nem a experiência sensível nem o pensamento nos dão garantias de segurança.

3.a) Embora pudéssemos conhecer alguma coisa, não poderíamos comunicá-la a ninguém, pois cada um vive sua própria vida, e não sabemos se o que dizemos a outrem desperta neste as mesmas representações e pensamentos que em nós.

A atitude de Górgias influiu em Pirro (filósofo grego, 350-270 a. C ) , que foi o criador da chamada "dúvida pirrônica" (céptica).

Criou a dúvida doutrinária, que segue à ciência, que é um resultado da ciência, e tende a destruí-la. Pôs em dúvida sua própria doutrina.

A de Descartes é uma dúvida metódica, e precede à ciência. Esta é ascendente; vai da incerteza ao conhecimento, enquanto a de Pirro segue um caminho regressivo e decrescente; parte da ciência para negá-la, e procura justificar a sua negação.

Mas, na verdade, o cepticismo quer destruir a razão com a própria razão. Pirro torna a dúvida sistemática. Vejamos, agora, quais os seus fundamentos:

Partindo da impossibilidade de saber alguma coisa de certo, verifica êle a

isoteneia (em grego, igualdade em força)

a igualdade em força na convicção, que reside em cada teoria contrária.

Page 40: Mário ferreira dos santos   convite à filosofia e à historia da filosofia

82 MARIO FERREIRA DOS SANTOS

acatalepsia (impossibilidade

de compreender)

Incompreensibilidade das coisas ou impossibilidade em que se encontra o filósofo de compreender o que quer que seja. Daí chegar à

ataraxia (tranqüilidade de espírito)

a despreocupação perfeita, a felicidade da alma.

Pirro era antidogmático e a sua influência se observa na Academia Platônica com Arcesilau e Carneades.

Arcesilau era céptico ao dogmatismo que florescia em Atenas.

Carneades inventou uma teoria da probabili

dade e aceitava três formas de probabilidades:

a) as representações podem ser prováveis em si mesmas;

b) podem ser prováveis e sem contradição com outras;

c) prováveis em si mesmas, sem contradição com outras, e confirmadas universalmente.

No fundo, o probabilismo é céptico. Contudo, este, por mais que duvide, alcança a certezas inevitáveis nem pode provar a sua doutrina sem fazer afirmações, o que o põe em contradição consigo mesmo.

POSIÇÃO TEOLÓGICA

Para a teologia o incondicionado só existe em Deus. É ímpio até buscá-Lo em outro lugar. O ser absoluto é ontologicamente incondicionado. A Ciência não parte Dele, mas desejaria chegar até Êle. Deus não é um ponto de partida para a Ciência.

POSIÇÃO RELATIVISTA

Dentro da posição teorética, o relativismo é outro pólo do cepticismo absoluto. Quando este diz "nada é verdade", o relativismo afirma: "Tudo é verdade, mas uma verdade relativa."

Cinco séculos antes de Cristo, na Grécia, partindo de Leucipo e de Demócrito, concluiu que o mundo é como aparece a cada um. Todas as percepções estão igual-

Protágoras j mente justificadas. Todo o pensado é verdadeiro para o que pensa. "O homem é a medida de todas as coisas; das que são, enquanto são, e das que não são, enquanto não são".

Nossa era é predominantemente relativista. Para a maioria, não há valores absolutos, nem lógicos, nem éticos, nem estéticos, nem religiosos, etc.

O relativismo nasce com uma concepção puramente gnosiológica, mas acaba tornando-se uma verdadeira concepção do mundo.

Para o relativismo, é impossível realizar a incondicio-nalidade. Para êle, todas as doutrinas epistemológicas partem de dogmas fundamentais, inconfessos indemons-tráveis, os quais influíram sobre elas.

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84 MARIO FERREIRA DOS SANTOS

Assim se poderão propor as seguintes perguntas:

1) É possível o princípio do incondicional?

2) Se possível, podemos atingi-lo?

Se respondemos sim ou não à primeira pergunta, só no primeiro caso mantém-se a segunda. Se respondemos sim, poderemos ainda perguntar, se é afirmável a sua necessidade.

A POSIÇÃO CRITICA DE KANT

Podemos colocá-lo aqui no meio termo. Êle permanece fiel ao primeiro postulado do racionalismo; isto é, que toda experiência é um pensar. Daí que todo pensar seja um julgar, e todo julgar o completar uma síntese por categorias, isto é, síntese nas formas do intelecto.

Kant foi uma espécie de criticista.

DUALISMO ANTINÔMICO — RAZÃO E INTUIÇÃO

A razão é a tensão que calcula, mas que ascende do eoncreto, do individual, para funcionar sobre universais.

A realidade se nos parece contínua e diversa. A razão, como funcionamento do parecido, distingue, recolhe nesse contínuo real e diverso, certos caracteres que ela nota que se assemelham.

exige, implica a aceitação de uma se-Toda e qualquer melhança. Comparar é um empa-

comparação relhar

As diferenciações se tornam complexas, e nelas intervém também o racional — o que é importante.

Não podemos comparar dois objetos sem que eles ccupem lugares diferentes. É exigível, assim, a simulta-neidade.

Quando comparo um livro com outro, que não está presente realmente (um livro que vi numa livraria), existe ainda a simultaneidade, porque, no meu espírito, êle está presente, é a presença ideal.

A simultaneidade é a ordem no espaço. Sem ela e sem espaço, embora ideal, não há comparação possível. É o espaço o meio natural, onde a razão se desenvolve; ela necessita do espaço.

A razão, dos racionalistas, posteriormente, vai extrair desse espaço todos os aspectos concretos, para torná-lo cada vez mais puro, mais nítido, mais homogêneo, mais abstrato.

Podemos afirmar com Kant, que o espaço é uma forma pura, mas racional, da sensibilidade, enquanto o tempo pertence à intuição.

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86 MARIO FERREIRA DOS SANTOS

Para melhor compreensão deste tema, analisemos ainda os sentidos:

Oferece-nos os meios de despertar em nós a idéia da simultaneidade. É uma faculdade de fixação, de estabilidade, de imobilidade do real. Tanto a mutação, como o devir e a produção passam-se no interior das coisas. Todo o procedimento da visão tende a fixar, a parar, a estatizar. É a vista que oferece à ra-

A visão zã°> a comparação, como também dá a continuidade do real. De todos os sentidos, é a vista que oferece melhor memória. O conhecimento tem, na visão, seu órgão principal, porque é o que oferece mais facilmente o reconhecimento, que é o verdadeiro conhecimento. Dá-nos sensações múltiplas, mais confusas do que a vista. Não localiza tão facilmente como a visão.

f Por permitir a percepção de sensações diversas, contribui para revelar-nos a existência do mundo exterior e, portanto, da idéia do espaço.

[ É o menos espacial dos nossos sentidos. Embora menos sutil que a visão, dá-nos também elementos para a formação da idéia do espaço.

O ouvido

O odor

O gosto

O tato

A comparação é o primeiro movimento do nosso espírito para formar a razão. O conhecimento racional é um reconhecimento. Conhecer racionalmente é comparar, pois o conhecimento racional é conceituai.

A razão, como uma das funções do espírito, distingue os elementos semelhantes dos diferentes e, destes, retira o que é semelhante, deixando apenas o incognoscível. Note-se bem: a razão extrai, do que é diferente, o que pode ser semelhante, rejeita o que não é mais racionalmente cognoscível, por não ser comparável.

A RAZÃO E O CONCEITO

A razão separa, isola o semelhante que a interessa; essa é a única forma de torná-lo sempre recognoscível, comparável. E é isto que simplifica os processos de eleição. O semelhante é elevado à categoria de uma realidade independente, imutável e idêntica a si mesma, o que permite a comparação. É assim que obtemos a 'abstração.

Essa separação não se dá concretamente no objeto, mas no espírito.

O contrário do abstrato é o concreto. Mas,

concreto { é o conjunto do semelhante e do diferente

enquanto o é apenas o semelhante ou o diferente ra-abstrato | cionalizados, separados, isolados do con

creto.

Assim, o semelhante é elevado à categoria de imutável; dá-se-lhe uma existência independente, permanecendo sempre igual a si mesmo; torna-se

conceito

Desta forma, é possível a redução do desconhecido ao conhecido, e o conceito

procede, depois, à experiência.

É o conceito que modela a intuição, e dá, como resultado, a experiência, reduzindo, desta forma, o esforço intelectual.

É o conceito a base de toda a linguagem, pois não haveria língua se déssemos um nome a cada fato.

A língua funciona com conceitos; isto é, com o semelhante, o comum, o geral. É a capacidade de conceitua-ção de uma língua que prova a sua superioridade.

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GÊNERO E ESPÉCIE

A vista combina o contínuo e o descontínuo sem confundi-los.

Ela procede uma abstração instintiva, automaticamente.

Todos os nossos sentidos são abstrativos, apreendem apenas uma parte da realidade; o ouvido apreende os sons; o olfato, os odores, etc.

Assim os sentidos são a base da abstração. A razão não só elabora os conceitos; ela os compara,

encaixa-os uns nos outros, dá-lhes uma hierarquia quantitativa, os reduz a conteúdo e continente, em suma:

classifica-os; isto é, ordena os objetos singulares nas espécies, es

tas nos gêneros mais vastos, até atingir o gênero supremo, o abstrato mais abstrato de todos os abstratos, e, portanto, o mais vasto de todos, o conceito lógico de ser.

Nessa classificação, ela o faz com ordem, clareza, e, portanto, com simplicidade e unidade.

Toda classificação é uma redução à unidade. Os conceitos são como círculos concêntricos — o mais

vasto contém os outros. Mas, à proporção que subimos dos singulares às es

pécies, e destas aos gêneros, aumentamos a compreensão, mas diminuímos os conteúdos.

A idéia do Ser só será compreendida nesse aumento, nessa dilatação da compreensão (1).

Há semelhança entre a nossa razão e a visão. Quando queremos ver mais coisas, perdemos delas os pormenores; à proporção que a razão quer abranger mais conceitos, perde deles os pormenores que são o diferente, para chegar, cada vez mais, ao mais geral, ao mais semelhante.

Estabelecida a hierarquia pela classificação, segue a

(1) O conceito lógico do ser não deve ser confundido com o conceito ontológico. Se o primeiro é uma abstração, o segundo tem outra realidade, a máxima realidade, como o demonstramos em nossas obras.

C O N V I T E À F I L O S O F I A 89

Indivíduo

razão um caminho inverso: do mais geral ao menos geral, e deste ao singular. Temos, então, a definição.

Dizem os lógicos que não podemos definir o ser individual, porque definir é limitar um conceito mais largo num menos largo.

Definem-se as espécies, descrevem-se os indivíduos, dizem os lógicos.

Mas as espécies estão nos indivíduos, não são separá-veis deles. O gênero humano está em cada ser humano individual.

O definível, então, é a espécie, o gênero; define-se, num indivíduo, o gênero que faz parte dele.

Na realidade, toda definição é uma descrição. Não há língua para expressar o individual, como não há ciência do indivíduo.

Diferença entre indivíduo e individual: é um todo concreto, dado pela realidade, A ciência, que se poderia criar do indivíduo, seria a fundada sobre os caracteres que êle tem, e que pertencem ao grupo. Seria a ciência encarnada no indivíduo. O indivíduo tem um quê próprio (quid proprium). é um elemento desse todo, separado do indivíduo por abstração, elemento que caracteriza o indivíduo e a individualidade. Daí o "princípio de individuação".

Não há ciência do individual, que é inexprimível e incomparável, porque o individual é o diferente absoluto — caráter do princípio de individuação.

Esse diferente absoluto é múltiplo, pois há muitos diferentes absolutos.

Ser é o semelhante absoluto, porque nele se encontram todos os seres que, observados, individualmente, são difeL

rentes absolutos. Estamos, assim, ante uma nova antinomia da razão. (De anti, contra e nomos, regra, quer dizer estar ante duas afirmações contrárias, e que ambas parecem ter o mesmo valor de verdade).

O individual

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a existência entre o Ser, como semelhante absoluto, e o individual como diferente absoluto.

Se admitíssemos que o semelhante está sob o diferente, que o homogêneo está sob o heterogêneo, como o afirma o racionalismo, haveria, então, possibilidades de um conhecimento racional do individual.

Mas,

- í capta o individual; ela capta o indivi-{ dualizado, o que é comum nos indivíduos.

Mais ainda:

são individuais, mdiscerníveis, distintas umas das outras.

Se há indivíduos em a natureza, eles são indefiníveis, portanto, incognoscíveis pela razão.

A DEFINIÇÃO

Analisemos ainda a definição: No seu sentido clássico, o predicado está contido no

sujeito. Dessa forma, a definição é um juízo analítico. A Lógica nos ensina que só podemos definir as espé

cies. Mas sucede que as espécies são construções da razão, como concepções da razão.

É impossível a definição dos seres singulares, como também há conceitos indefiníveis, como são os abstratos supremos (os gêneros supremos), como as categorias aristotélicas.

Nestes conceitos, não se distinguem as diferenças. Nos individuais, as diferenças são absolutas. Pode

mos ter uma intuição do individual, não podemos defini--lo.

Pela intuição, podemos descrever e não definir. Dizem alguns que a definição é anterior à classifica

ção. Mas sabemos que a definição exige gênero próximo e a diferença específica, que são criações da classificação. Logo, esta deve ser anterior à definição.

O individual antinomia da razão

todas as coisas reais

PRINCÍPIOS DE CAUSALIDADE

Não podemos passar ao Ser Supremo sem recorrer ao princípio de causalidade (princípio que afirma que a todo fato corresponde uma causa).

Na qualidade, não encontramos nenhum caráter que seja comum entre ela e outra coisa. Ela não pode, portanto, ser a espécie de nenhum outro gênero.

A qualidade não é suficiente por si mesma, não se explica por si mesma, não tem em si mesma a sua razão suficiente. Não existe por si só, exige algo que a suporte, que seja sua explicação e sua razão de ser.

Esse algo é o Ser.

O Ser é fundamento da qualidade. É nisto que se funda o princípio de causalidade, e

também o princípio de razão suficiente. (Princípio que afirma que há uma razão de ser dos fatos de serem assim e não de outro modo).

O Ser é também suficiente da qualidade.

Para completar o encadeamento dos conceitos, precisamos recorrer ao princípio de causalidade.

Há entre o Ser e a qualidade uma relação de causa e efeito.

O Ser é a razão e a causa da qualidade.

Como a qualidade não é a espécie de nenhum gênero, ela não pode ser definida. O Ser paira acima da qualidade, e só está ligado a ela pelo princípio de causalidade.

A explicação precede à classificação. A classificação é uma retomada da explicação em termos simplificados e imediatamente recognoscíveis.

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As explicações não são definitivas. Novos conceitos exigem novos termos. O novo conceito exige outro mais amplo que o inclua, que seja o seu gênero. Quando não há, inventa-se um novo gênero para nele introduzir-se a nova espécie. Exemplo: a descoberta do vapor e da eletricidade exigiram o conceito moderno e mais vasto de força, que não tem nenhum correspondente exato no vocabulário dos antigos.

Assim, um progresso na Ciência produz um na Filosofia, embora de caráter diferente.

Quando dizemos por que um ser existe, por que um fenômeno sucede ou se reproduz, indicamos um antecedente, sua causa, sua razão de ser. E vemos que, em todas essas explicações, há uma hierarquia de conceitos, que parte do gênero para a espécie.

Quando se diz que os corpos se atraem em virtude de uma força universal, o conceito de força atrativa é incluído no gênero força, que é mais vasto. Inversamente, vemos sair o conceito de força atrativa do conceito força, vemos tirar a espécie do gênero.

A razão funciona sobre esse encadeamento conceituai.

A explicação antecede à classificação. Só se classifica o que já se compreendeu. A classificação é a consagração da explicação.

O encadeamento conceituai, que é um dos processos do funcionamento da razão, realiza-se de duas maneiras:

Nos juízos, sob a forma de proposição,

no raciocínio, sob a forma de silogismo (raciocínio dedutivo).

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Juízo analítico

"Todos os corpos são pesados". O predicado está contido no sujeito. Não há progresso nesses juízos, porque o pensamento não passa de um termo a outro diferente. Êle une dois termos equivalentes. A extensão do sujeito e a do predicado é a mesma, um pode substituir o outro. Há igualdade de extensão no quantitativo, quando dizc-mos: "Todas as coisas pesadas são corpos". Mas, qualitativamente, há diferença. Aqui, a palavra corpos é mais rica de caracteres que a palavra pesadas ou que a expressão coisas pesadas.

A razão interessa-se sobretudo, pelo quantitativo, pela extensão e não pelo conteúdo, que é qualitativo.

Exemplos: "O homem é um animal" e "O homem é um animal racional".

As relações entre os termos nessas duas proposições não são as mesmas. Na l.a, temos uma identidade parcial, porque não poderíamos dizer que "todo animal é homem". Não há neste caso igual extensão.

Mas no 2.° caso, há uma identidade total, tanto o predicado como o sujeito têm extensão igual e posso dizer: "todos os animais racionais são homens" como "todos os homens são animais racionais".

No primeiro caso, há identidade parcial, porque é encaixado um conceito (homem) num conceito maior (animal) onde se dá a identificação genérica apenas.

Dois casos de juízos sintéticos (os termos podem estar nu- { ma relação de identidade par.

ciai ou total)

A CLASSIFICAÇÃO

Temos aí apenas uma classificação.

No segundo caso, temos uma definição, há uma relação de igualdade. Há, nele, um conceito maior do que no

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-primeiro — é a sua espécie, e a palavra, que restringe esse gênero, expressa a diferença específica.

o homem é um animal racional (espécie) (gênero) (diferença específica)

Para Kant, sd os juízos sintéticos trazem um conhecimento positivo. Assim, toda proposição afirmativa ou negativa pode reduzir-se a um juízo, e, se esse juízo fôr sintético, temos, então, um progresso. Neste caso, temos uma classificação, uma definição.

Ora, toda definição é uma espécie de classificação; portanto, toda proposição é uma expressão parcial de classificação.

Um dos pontos mais difíceis de explicar na Lógica é o da indução.

A indução faz o espírito passar de um fato individual para uma totalidade. Por que meio o faz, é uma das grandes interrogações da Filosofia.

A indução é ainda um encaixamento, uma classificação como as outras processadas pela razão, embora mais complexa.

Quanto à dedução, estamos em face de outra classificação. Vejamos:

A dedução pode ser

mediata

imediata

o silogismo "Todos os homens são mortais; Sócrates é homem; logo, Sócrates é mortal". conversão ou oposição.

Se examinarmos toda e qualquer espécie de silogismo, verificaremos que todos eles se incluem apenas numa classificação.

Todo trabalho racional, filosófico ou científico, é predominantemente o de classificação.

Goblot chegou a declarar:

"A classificação exige a classificação da classificação. Toda ciência é uma classificação, mas a razão classifica as

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classificações, dando às ciências particulares um encaixamento na classificação de ciência total".

O conhecimento racional é um conhecimento panorâmico, é um conhecimento do exterior, mas o conhecimento intuitivo é o que penetra, o que invade o individual, é o conhecimento que pormenoriza.

Classificar é dominar, abrangendo, abarcando. Intuir é penetrar, é viver, é ter vivência, é ir ao âma

go das coisas através de nós.

Podem estas últimas páginas conterem algumas dificuldades. Mas tornaram-se necessárias para que não se tenham ilusões quanto à Filosofia. Se é uma matéria admirável, que nos oferece os momentos mais extraordinários do conhecer, nela, no entanto, se colocam todas as dúvidas e todas as dificuldades que assaltam os estudiosos de todos os tempos.

Como edifício arquitetônico de todo o saber humano, a Filosofia não poderia deixar de apresentar também suas dificuldades, porém superaveis.

E depois, que valem as vitórias fáceis?

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IM

fflSTÓRIA SUCINTA DO

PENSAMENTO FILOSÓFICO

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ORIGENS DA FILOSOFIA GREGA — OS PRÉ-SOCRATICOS

Esta exposição da história da Filosofia tem apenas uma finalidade: a de dar um panorama geral do desenvolvimento do pensamento filosófico. O tratamento que merecem as grandes figuras da Filosofia cinge-se apenas aos aspectos gerais do seu pensamento e também a extensão não tem referência ao valor do filósofo, pois veremos aí um São Boaventura, um Tomás de Aquino, um Duns Scot serem tratados em menor extensão que um Maine de Bi-ran, ou os ideólogos franceses, etc. Explica-se tal proceder pelas razões seguintes: em nossas obras, temos procurado estudar com maior soma de pormenores os grandes autores, os de primeira plana, preocupando-nos menos com os filósofos menores, sem que signifique tal atitude negar-lhes valor, mas porque, propriamente, são os mais afastados do que estabelecemos em Filosofia Concreta, que é a nossa contribuição à Filosofia (apesar de sermos um pensador num país onde ainda predomina a mentalidade colonialista passiva). Tendo a nossa Filosofia Concreta consubstanciado num todo homogêneo e, apoditica-mente demonstrado, os postulados fundamentais de um filosofar seguro, procuramos apenas as correspondências que pudemos encontrar em outros filósofos. E como as encontramos em maior cópia, representando-nos a primeira plana da Filosofia, é deles, naturalmente, que temos de tratar com maior abundância de pormenores. Por essa razão, nesta obra, demos preferência a outros, para que tenha o leitor uma visão mais ampla da Filosofia, pois se deixamos de tratar os escolásticos, com maior soma de pormenores, é por já estarem suas principais idéias contidas no pensamento platônico e sobretudo aristotélico.

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ANALISE GERAL

A Filosofia Especulativa, como já vimos, dominante no Ocidente, teve seu berço na Grécia.

A instalação de colônias gregas, na costa da Ásia Menor, permitiu um contato mais direto entre as populações vindas do Ocidente europeu e as provenientes do Oriente. Esse choque de dois mundos fomentou, naturalmente, problemas econômicos, políticos, sociais e filosóficos, que fecundaram vivamente a floração de uma série de filosofias, nos séculos VIII e VII a. C. Os acontecimentos dessa época mostram as agitações, lutas de classes, gerações de idéias, transformações econômicas, que muitas vezes se processam na história, quando se dá o en-trechoque das ideologias condicionadas pelos interesses em luta.

Dedicar-nos-emos, aqui, às origens da filosofia grega, tema abundantemente abordado, mas cheio de controvérsias e obscuridades, nem sempre suficientemente alumia-tías, apesar dos aprofundados estudos já realizados. Em suas origens, dados os estudos atuais, a filosofia grega é, quanto ao passado, a obra coletiva de civilizações riquíssimas, que as investigações feitas em Tróia, Micenas, Chipre, Cícladas e Creta revelaram. Nessas épocas recuadas, a representação do universo estava implicada nas práticas rituais, com a unificação dos grupos sociais aos mistérios da Natureza. Essas representações são expressadas em mitos, relatos referentes à vida e à atividade de personagens históricos, cujas façanhas são divinizadas. Esses mitos, provavelmente antes pertencentes a cada comunidade, formavam um corpo geral de opiniões e de crenças, que recebiam e sofriam a influência de crenças mais longínquas.

Podem considerar-se como verdadeiros precursores da filosofia grega os mitos homéricos, hesiódicos e órfi-cos, formas já sintéticas e estratificadas das opiniões gerais e variadas acerca das origens dos mundos, que haviam sido admitidas pelos povos anteriores.

Esses mitos apresentam traços comuns e são também, como diz Aloys Fischer, "os remotos testemunhos na len-

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da dos "sete sábios". Essas "teogonias" e "cosmogonias" não são o produto pessoal de seus autores, a quem coube a feitura literária, mas o "eco de comuns representações religiosas, assim também sentenças morais e regras de prudência (apesar de que em muitos casos possam representar a quinta-essência da experiência vivida por determinadas pessoas) apresentam, em sua base, um velho fundo de sabedoria, que obteve uma formulação impessoal em provérbios anônimos, como referência às concepções éticas da comunidade popular".

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A FASE COSMOLÓGICA

A chegada dos séculos VIII e VII, quando se dá essa grande floração da economia grega, desenvolvem-se esses mitos, que são apresentados em forma mais sistemática. Impossibilitados de um estudo mais minucioso, vamos, a seguir, fixar os principais aspectos dessa fase "teogônica" da filosofia grega, que precede a fase cosmológica, iniciada depois pela escola jônica.

As civilizações pré-helênicas (egeu ou creto-minóica) tiveram contatos diretos com as culturas sumérica, cal-dáica, assírio-babilônica, iraniana, egípcia, fenícia, etc. Foi dos caldeus que os gregos aprenderam o uso do qua-drante solar, o gnomon (relógio do sol), e as doze partes do dia; a geometria foi-lhes ministrada pelos egípcios, etc. São estes os principais pontos adquiridos:

1) a idéia de unidade universal (egípcia, mesopotâ-mica) em vagas formas panteísticas: "o Um único, pai dos pais, mãe das mães", de onde, tudo provém;

2) cosmogônicamente, a passagem do caos unitário primordial para a distinção dos seres (caos aquoso: Tia-mat em Babilônia; Num, no Egito), a transformação das trevas em luz;

3) transformação do caos para a distinção dos seres, ou por força intrínseca, por potência própria, ou pela intervenção de um espírito superior, que se move sobre as águas, ou através da luta entre as potências opostas das trevas e da luz, do caos e da ordem, da morte e da vida, do ódio e do amor;

4) visão de uma conexão e simpatia universal, que unem a todos os seres da natureza.

5) noção da necessidade e da lei que dirige a todos; e concepção de um retorno cíclico universal, com o retorno de todas as coisas;

6) idéia do dualismo entre corpo mortal e alma imortal, preocupação de uma outra vida, o problema da morte, o juízo acerca dos mortos, e desenvolvimento de exigências éticas de justiça e de pureza moral.

HOMERO E HESfODO

Origens cósmicas, segundo Homero: Oceano, gerador dos deuses, e Tétis, a mãe. É a derivação do mundo do caos aquoso, do princípio úmido, etc.

Origens cósmicas, segundo Hesíodo: O ser primordial (Caos), a força motora e geradora (Eros) e as sucessões das gerações. O Caos gera a Terra (Gea). No cimo (Olimpo), habitam os deuses; nas profundidades, o Tártaro tenebroso. Eros é o mais belo dos deuses. E do Caos nasce Erebo e a negra Nix (Noite). Da noite, nasceram o Éter e o Dia (Hemera), etc, O caos hesiódi-co não desaparece com a formação do Cosmos. Continua como fonte e termo de todas as coisas. O Caos é uma ameaça à conservação do cosmos. Vamos encontrar na obra dos jônicos a influência, em diversos matizes, da idéia do Caos hesiódico.

Origens cósmicas, segundo os órficos: No princípio existiam o Caos e a Noite, Erebo e o profundo Tártaro. Não havia ainda nem a Terra, nem o Ar, nem o Céu. Nos infinitos de Erebo, engendraram-se os Ovos de asas negras, e, do primeiro deles, nasceu Eros. Unido, no Tártaro, com o Caos, incubou e deu à luz a primeira geração de imortais.

Eros, mesclando todas as coisas, deu nascimento a Urano (Céu), Oceano, Gea (Terra), etc. (Eros é o turbilhão que, com suas asas, forma os turbilhões com o vento).

Origens cósmicas, segundo Jerônimo e Helânico: Cro-nos e Anankê, os primordiais. Da água e da matéria li-mosa endurecida nasceu a Terra. Cronos, o que não envelhece (o tempo), é um dragão, e Héracles foram engendrados pela Terra. A êle, juntou-se Anankê (a necessidade), idêntica à Adrástea (incorpórea), etc.

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Essas cosmogonias primitivas estabelecem os fundamentos dos principais problemas do homem: D o mal provém de uma culpa; 2) o homem é dirigido por um destino inelutável, e salva-se apenas pela intervenção divina; 3) é estabelecida a responsabilidade da vontade humana; 4) uma lei de justiça (Dikê) e a imprescriptibilidade da sanção, do castigo; 5) insondável é o mistério dos deuses, oculto aos homens, que vivem de ilusões e esperanças; 6) mas o homem, por seus esforços, pode conquistar os deuses, que premiarão seus atos nobres; 7) há um sentido pessimista, um desgosto de haver nascido. Esse pessimismo grego gera a admoestaçao da moderação, resignação e humildade, como resultado da consciência da inferioridade e de uma sujeição do homem a um poder transcendente; 8) os órficos aceitavam a mortalidade da alma e de que, dos mortos, nasciam outros seres; 9) transmi-gração das almas (metempsicose) — doutrina de origem egípcia, segundo Heródoto; 10) vida corpórea como ex-piação, segundo os órficos. Mas a pergunta nasce: que é o ser? E os gregos p'assam da fase de explicação mitológica do mundo, dos "teólogos", como os chama Aristóteles (ocupados com o problema da origem do Cosmos, os quais, para edificar suas cosmogonias, recorrem aos seres divinos), para a fase dos "fisiológicos", que partem dos fatos empíricos, para ir além da experiência.

É o que veremos com a filosofia jônica.

O PREDOMÍNIO DO PROBLEMA COSMOLÕGICO:

OS JÔNICOS

TALES DE MILETO

Com os jônicos se inicia, na Grécia, a investigação científica e filosófica. Como vimos, nas origens da filosofia grega predominava o sentido puramente religioso.

Tales de Mileto (595 a. C ) , fundador da Escola milé-sica ou de Mileto, introduziu o conhecimento de diversas filosofias orientais como a caldáica, a egípcia, etc.

São duvidosas as origens de Tales, se de tronco fenício ou semítico. Não se conhece nenhuma de suas obras, e as que lhe são atribuídas são falsificações.

Tales foi considerado um dos sete sábios da Grécia, e também o "pai da filosofia grega", o "fundador, diz Aristóteles, dessa classe de filosofia", a filosofia jônica, que se interessava pela "natureza da matéria".

Temas: A água é o princípio de todas as coisas: Não propriamente a água, mas o úmido. Há, inegavelmente, em Tales, a influência das doutrinas egípcias. A água (do Nilo) é a criadora da terra fértil do Delta. Além disso, havia, nessa época, convicção de que a terra estava cercada de água. Tal doutrina deriva, também, de uma longa e primitiva tradição mitológica das teogonias, e cosmogonias do Oriente antigo, sumério, caldeu, hebreu, fenício, egípcio, egeu, onde todos falam do "caos aquo-so". A causa motora de todas as coisas é a alma, a potência divina, que põe tudo em movimento e penetra no úmido elementar. A Terra navega sobre a água. O mundo "está cheio de deuses". Chamou-se hilozoísmo a essa animação e vivificação da matéria, de hylê (matéria) e zoe (vida). Com Tales se processa a separação da filosofia dominada pela teogonia anterior.

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A escola de Mileto é incluída na classificação geral de Escola Jônica, na qual também são incluídos Herácli-to, Anaxágoras e Demócrito. Aristóteles faz uma distinção em sua "Metafísica" quanto aos que se preocupam com os problemas do homem e do cosmos: teólogos são os que tratam da ciência sob a forma do mito, e filósofos ou fisiólogos, os que expõem suas razões "numa forma demonstrativa, cuja sabedoria, mais humana, não afeta, como a daqueles, um ar de solenidade ática e se propõe menos a satisfazer-se a si mesma que a comunicar-se aos outros" (escreve Leon Robin).

No século VI a. C, os países jônicos conheceram um grande progresso econômico, sobressaindo-se entre as cidades marítimas, a de Mileto, que, depois de submetida pelos persas, foi destruída em 494.

Ante a visão do mundo, nasceu nos jônicos a grande pergunta: de que está constituído o universo? Mas essa pergunta, para eles, era, no entanto, superada por um afã de encontrar soluções para os problemas de ordem científica, exigidos, sobretudo, pelo grande desenvolvimento mercantil de sua época. E esse mercantilismo imprimiu aos jônicos, em grande parte, o sentido "prático" de suas investigações. São estudiosos da natureza em suas manifestações meteorológicas. É com Anaxágoras que vamos ver, depois, o abandono ou a superação desta fase, por outra que podemos chamar "antropológica".

Assim eram os ventos, as chuvas, relâmpagos, eclipses, terremotos, conhecimentos de geografia, a forma da Terra, origens desta, etc, o que preocupava os filósofos. Ora, esses temas eram abordados pelas culturas mesopo-tâmica, egípcia, caldáica, etc. Os filósofos jônicos viam na atividade técnica do homem um motivo de superioridade. A influência "prática" do mercantilismo e da evolução econômica determinava essas investigações e essa perspectiva.

Observamos na filosofia dos jônicos o abandono às imagens fantásticas da natureza (os mitos). Há observação direta, experiências, tanto que os filósofos jônicos se tornam inventores. Isto não impede, porém, que os mitos da época teogônica influam na formação de suas filo-

C O N V I T E A F I L O S O F I A 107

sofias, mas sempre com um cunho mais positivo e científico.

Na atuação dos jônicos, há a tendência para relacionar os fenômenos mais transcendentes aos fatos familiares, afastando-se, assim, quanto possível, do aspecto misterioso que tinham as crenças anteriores. É por isso que os jônicos são considerados propriamente mais físicos do que filósofos. Os problemas, que mais afetavam os interesses econômicos dos povos jônicos, absorviam mais detidamente a atenção de seus filósofos, sobretudo, como acima já dissemos, os que se referiam à meteorologia, naturalmente por se tratar de um povo de navegadores. Observa-se, na obra dos jônicos, a preocupação maior para o mar, grande tema de suas investigações. Não só o mar como o ar, as nuvens, as chuvas, as tempestades. A cosmologia jônica impregna-se do espetáculo das tor-mentas. A concepção do caos, onde existem semelhanças entre o "caos hesiódico", o "migma" de Anaxágoras, tem uma repetição ou uma simbolização nas grandes tempestades. Poderíamos até acrescentar que a afirmação de Anaxímandro, de que a vida provém do mar, está imbuída de uma admiração à "divindade" do oceano, um respeito à água, fonte de toda a riqueza dos jônicos, que também constitui o sentido da filosofia de Tales, embora também impregnada das concepções egípcias e mesopotâmicas. O Infinito de Anaximandro (ápeiron) é o indeterminado, de onde provêm as coisas determinadas; água, ar, fogo, etc, ou a mescla (migma de Anaxágoras). A infinitude do oceano, para os olhos jônicos, talvez sem fim, implicaria fatalmente a concepção do infinito, transformado no infinito (ápeiron), no "migma", de onde proveriam as coisas determinadas. É daí que decorre o tema da pluralidade dos mundos de Anaximandro, tese depois retomada por Anaxímenes.

No mundo que observavam, havia vida, morte, transformações. Tudo provinha do Infinito. Deste provinham os mundos. Tudo vive e morre dentro da eternidade do Infinito. A cúpula terrestre confirmava a limitação da terra e a afirmativa do ilimitado dos céus. E quando Anaxímenes aceita o ar como infinito, nem por isso refuta a doutrina de Anaximandro (ápeiron).

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A filosofia dos jônicos é uma filosofia da natureza, de geógrafos e meteorólogos. Não lhe falta, porém, um sentido religioso, quando emprestam à sucessão, retorno, vida e morte dos mundos e das coisas, uma justiça (Di-kê), onde há expiação e castigo, o que lhes concede um caráter divino e imortal.

O sentido antinomista, que vamos surpreender na filosofia jônica (as coisas submetidas às oposições, a luta dos contrários, penetração dos contrários, e t c ) , nasce da observação cotidiana de um mundo, onde se processam esses contrários. No Nous de Anaxágoras, vamos perceber uma tentativa de equilíbrio. Mas esse equilíbrio, no entanto, poderia ser negado, porque Anaxágoras o estima ativo, dinâmico, em movimento, o que afirmaria a negação, o contrário, porque o movimento implica a passagem de um estado para outro, o que implica contrariedade.

Há, no movimento jônico, a preocupação do conhecimento da substância primeira (arque), primordial e eterna, fonte de todas as coisas. É o conceito do absoluto, a eterna busca de todas as filosofias.

Eram, assim, os jônicos os filósofos da natureza sensível, que buscavam explicar as coisas sensíveis por princípios naturais.

O grego principiou a filosofar partindo de um ser, mas de um ser que êle encontra cambiante, mutável, contraditório. Que é esse ser?

A esta pergunta, os jônicos respondem com soluções mais ou menos materiais, físicas.

Propriamente, pelas respostas dadas a essa pergunta, classificam-se as outras doutrinas. Vejamos quais as outras respostas.

ANAXIMANDRO

Anaximandro (natural de Mileto — 610-547 a. C ) . Filósofo grego da escola jônica. Discípulo de Tales de Mileto, a quem sucedeu na direção da escola milésia. Foi mestre de Anaxímenes, e este, por seu turno, de Anaxágoras. Pouco se sabe de sua vida e de suas obras. Para éle, o princípio primeiro (arque) de todas as coisas é imortal, eterno e fundamental, o ápeiron; possui os caracteres do ilimitado, do qualitativamente indeterminado, do indefinido, do absoluto, e é animado de um movimento eterno. Estimulado por uma força vital intrínseca, e de geração incessante, desagregam-se os contrários desse infinito (ápeiron), formando, primeiramente, o ar; em segundo lugar, a água, depois os elementos. Todas as coisas, afinal, retornam ao infinito (ápeiron). O ápeiron está em oposição ao mundo, que está contido nos limites do céu, apesar desse infinito conter os mundos. Para Anaximandro, era possível que o infinito (ápeiron) gerasse um número infinito de mundos, que coexistiriam uns com os outros, mas separados por distâncias tão grandes que jamais tomariam conhecimento uns dos outros.

Temos aqui em germe a tese da pluralidade dos mundos. Na cosmogonia de Anaximandro, após a evolução, vem a dissolução; os mundos volvem ao infinito e — nova compensação — o ciclo começa de novo. É possível que haja nisto o traço das especulações pessimistas e místicas do Orfismo.

Anaximandro foi considerado o mais profundo e o maior dos jônios. Com maravilhosa intuição, traçou os lineamentos e a escala da filosofia natural, alargando, assim, os princípios estabelecidos por seu mestre Tales de Mileto.

Os mundos nascem e morrem no seio desse infinito. O retorno de todas as formas ao informe é, assim, o cum-

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110 MARIO FERREIRA DOS SANTOS

primento de uma justiça contra a injustiça, e significa que as coisas pretendem ser subsistentes por si mesmas, pois a justiça é, em última instância, a igualdade de tudo na substância única, a imersão, sem diferenças, no seio de uma indeterminada infinitude.

Foi por isso que Nietzsche viu nele um dos caracteres do pessimismo grego, por ter aceito o nascimento e a destruição na natureza, concebidos como falta e punição morais. O seu hilozoísmo panteístico contém germes do evolucionismo, pois afirmou que os homens provêm de animais. Deduziu essa afirmativa da observação do longo período de lactância.

ANAXÍMENES

Anaxímenes de Mileto (Natural de Mileto — 588-524 a. C ) . Segundo Diógenes Laércio, foi discípulo de Ana-xímandro. Escreveu em prosa jônica, havendo-se perdido sua obra. O que conhecemos de sua doutrina é o que podemos extrair da obra de seus comentadores e críticos e de um tratado especial de Teofrasto a êle consagrado, no qual se verifica uma coerência suficiente para permitir a explanação de seus temas. Ei-los: o ar é infinito e princípio de todas as coisas. Assim o infinito, que em Anaxi-mandro é indeterminado, em Anaxímenes é determinado. O ar é o que sustem nossa alma, e o ar sustem o mundo. Aristóteles pergunta; e o que sustem o ar? O ar é o gerador de todos os seres, e perceptível pela diferenciação. É visível com o frio e o calor, e dotado de um movimento eterno de mutação. Se negasse o movimento, não poderia admitir a variabilidade das coisas. Afirma também Anaxímenes a eternidade do movimento. O processo de transformação dá nascimento às diversas substâncias: por rarefação, converte-se em fogo; por condensação, transforma-se em vento; após em nuvens, e mais condensado, em água; a seguir em terra e, por último, em pedra. Note-se que para Anaxímenes o ar é o estado gasoso, e também aceita o retorno de Anaximandro e fundamenta, nele, a sua ética. Observe-se o caráter panteísta das doutrinas jônicas, em que a arque (a substância primordial) é sempre o todo. Essa divindade é igual ao Cosmos.

HERACLITO

Heráclito (Natural de Éfeso 540?-480? a. C.) Dele conhecemos apenas fragmentos esparsos nas obras de seus comentadores. Temas:

1) recíproco condicionar-se dos opostos (pólemos) e harmonia dos contrários, limitando-se uns nos outros, de onde o nascimento e a conservação dos seres (conciliação das antíteses; permuta e identidade dos contrários);

2) identidade do Um eterno (fogo) e devir universal como exigência da razão — idéia do fogo, unidade de substância de todas as coisas, e comum envoltura dos contrários (Heráclito afirma a realidade do ser);

3) idéia do perpétuo escoamento das coisas e do sujeito cognoscente; tudo flui (panta rei); "Tu não podes banhar-te duas vezes no mesmo rio, porque novas águas correm sempre sobre ti" (antítese da experiência e da razão);

4) visão irônica dos contrastes, que permite que as coisas boas e más sejam interpretadas diferentemente. "O charco é, para os porcos, o para íso . . . " ;

5) a fé, como condição de verdadeiro conhecimento;

6) caminho da sabedoria: conhece-te a ti mesmo.

A filosofia de Heráclito encontra hoje seus cultores apaixonados. Aristóteles, para muitos, desce para segunda plana, e H. retoma um lugar de prestígio. Heráclito, entretanto, não podemos negá-lo, presta-se a várias interpretações. Seu sistema não é tão rígido que os seus exe-getas se vejam privados de dar vazão à imaginação. Não se atribua a isso falsificações, propriamente. A interpretação fundamentada da obra de H. não é somente a que se cinge às normas estabelecidas por um Léon Robin, por

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Herman Diels, Zeller, Burnet, Tannery, Joel, Rivaud, Abel Rey. Existem, ainda, novos cultores que alargam as suas perspectivas.

Mas sublinhemos alguns aspectos interessantes: segundo H., o devir e a passagem contínua do finito ao infinito e, inversamente, constitui o único processo infinito que se move em contrários, a unidade do ser e do não--ser, a essência do mundo. H. viu nessa instabilidade de todas as coisas, na mutação contínua de todo ser, a lei mais geral do universo. Tudo flui, nada tem consistência, de maneira que não podemos "entrar duas vezes no mesmo rio". O universo é luta e paz; verão e inverno, fluxo e tempo, saciedade e fome, etc.

A contradição, princípio dominante do mundo, é segundo H., inerente às coisas. Assim, tudo o que é, não existe exclusivamente senão como unidade dos contrários, "tudo sai do Um e para o Um volve tudo". Segundo Aristóteles, o princípio de H., de que "Ser e não-ser são idênticos", vai de encontro ao princípio dos contrários. Diz Aristóteles que, segundo a filosofia de H., é antes o princípio "Nada existe" o admitido, em vez de "Tudo existe".

Aristóteles quer dizer que, admitindo-se com Herá-clito que toda coisa é e não é ao mesmo tempo, uma junção, assim, dos dois momentos contrários, da qual ela é a unidade, não se pode produzir nenhum movimento de um estado contrário ao outro.

Compreendemos o caráter simbólico da palavra fogo em H. Substituindo-a por energia, temos a concepção que modernamente influi na filosofia da ciência. Os vitalistas e os animistas do século passado encontrarão aí muitas semelhanças. Hipócrates também considerava o fogo a fonte da vida. A idéia de alma unida ao fogo, como de vida, é comum na mentalidade primitiva e antiga, mesmo a de sopro, a de ar, porque o sopro é quente, tem logo. Podemos deduzir dessa idéia a formação de muitas palavras e de idéias primitivas.

Não devemos tomar ao pé da letra essas expressões simbólicas.

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O nome de H. liga-se a modernas correntes da filosofia. E não há exagero quando dizemos que se observa um retorno aos pré-socráticos.

j Esse retorno é um traço de profunda "historicidade da atual filosofia", impregnada de indecisões, de dúvidas, de inquietações. A figura aristocrática de H. impõe-se

, prodigiosamente. É um temperamento de inspirado e solitário, de melancólico, como o chamou Teofrasto. Houve a lenda ridícula que fazia de H. um homem que chorava continuamente. Alguns professores de filosofia registraram-na como verdadeira e constróem a figura de H. como

' a de um homem que traz sempre lágrimas nos olhos e palavras de desespero nos lábios. Deve-se isso a Luciano, cujo retrato caricatural do famoso efésio foi aproveitado

] pelos adversários das doutrinas heraclitianas.

I O seu maior objetor foi Parmênides, cuja filosofia • examinaremos em breve.

Pitágoras (de Samos — 569?-470? a. C.) — Segundo alguns, foi discípulo de Ferécides de Siros e de Anaxágo-ras. São contraditórias as informações que nos oferecem os historiadores. No entanto, tudo indica que formou sua cultura no Oriente, no Egito, na Babilônia, em Creta,

| por onde viajou. De retorno a Samos, tentou fundar aí ( uma escola, mas tendo que abandonar a pátria, foi residir I na Itália do sul, por 530, na aristocrática Crotona, onde

fundou uma comunidade ou ordem religioso-moral, que j se estendeu a outras cidades, às quais, foi, por vezes, cha-I mado como legislador, influindo em seus costumes políti-^ cos e sociais. É difícil separar-se a obra pessoal de P. e a

de seus discípulos, de sua escola, bem como o que há de | lenda e de realidade, razão pela qual preferimos aqui exa

miná-lo dentro do pitagorismo, segundo é expresso comu-mente, embora o verdadeiro pitagorismo, o de grau de teleiotes (grau de mestre), seja muito diferente.

1 Pitagorismo — Movimento não só intelectual mas religioso-moral e político. Organizado em forma de comunidade, com iniciações, linguagem simbólica, cercado de

j mistérios e de segredos. Foi combatido severamente pe-1 Ias organizações e governos democráticos da época. Os

-t

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pitagóricos foram dissolvidos por um movimento popular. Pitágoras conseguiu fugir para Metaponto, onde faleceu. A missão da escola de Crotona era ensinar métodos de purificação, reservados aos iniciados. Atribuem a P. a promessa de uma vida futura, após a morte, onde os homens seriam recompensados, desde que cumprissem as ordens da organização e os princípios morais estabelecidos. Estava essa escola aberta tanto aos homens como às mulheres, independentemente de nacionalidade. Era uma doutrina cheia de tabus e proibições, cujas significações têm servido para diversas interpretações. A crença na transmigração das almas através dos corpos de homens e animais era uma das crenças dessa doutrina, não, porém de Pitágoras, mas dos seus discípulos.

A concepção de Anaxímenes de que o mundo estava submergido no infinito, era aceita por Pitágoras.

Para êle todas as coisas são também números (arith-mós). Considerava, assim, a relação entre os números e as formas geométricas. Atribuía aos números uma relação mística. Afirmam que, quando esteve na Pérsia, conheceu Zaratustra ou Zoroastro. Cultivavam os pitagóricos a matemática e a música e sobretudo a geometria, como Filolau de Tebas, e Arquitas, de Tarento. Consideravam a música como meio para excitar e acalmar os sentimentos, e aplicaram-se a ela, não só prática, mas teoricamente. Os números não eram pensados como coisas abstratas, mas como algo de real. O ponto era o equivalente ao 1; a linha ao 2; a superfície ao 3; os corpos ao 4. (Na verdade, esse não era o pensamento pitagórico do grau superior, mas de primeiro grau (paraskeiê), grau de aprendiz).

O número dez, a famosa tetractys, é o número principal, soma dos quatro primeiros (1 + 2 + 3 + 4 = 10). Diz Filolau que o número 10 "tem uma grande força, enche o todo, atua em tudo, e é começo e guia da vida divina, celestial e humana" (tudo tem ponto, linha, superfície, volume). Com os pitagóricos, aparece o tema da libertação do homem ao se bastar a si mesmo. A preocupação pela alma, conduz os pitagóricos posteriores à doutrina da transmigração ou metempsicose, relacionada

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com o problema da imortalidade. Pitágoras foi um iniciado nas especulações da astronomia oriental. Descobrindo a relação fundamental da altura dos sons, com a longitude das cordas que vibram, submeteu o fenômeno do som à invariabilidade de uma lei numérica.

O assombroso dessas proporções inteligíveis, imóveis e imateriais, acessíveis ao matemático, que expressam a regularidade das aparências sensíveis e do fluxo dos fenômenos, tinha fatalmente que impressionar fundo a alma de Pitágoras, decorrendo daí toda a construção de sua simbólica, cuja influência, até os nossos dias, é observável em muitos espíritos de escol. Daí chegarem a atribuir um princípio de realidade ao símbolo, e de causalidade ao signo, não foi mais que um passo, não, porém, por parte de Pitágoras.

Em todas as coisas estão os números. Das contradições fundamentais nascem a simbolização em número: par e ímpar, direita e esquerda, repouso e movimento, macho e fêmea, reta e curva, bem e mal.

São os números que ordenam a constituição do Universo. Essa aritmologia influiu no neopitagorismo, no platonismo pitagorizante, e foi prosseguida por muitos pitagóricos, conjuntamente com investigações matemáticas e cosmológicas.

Entre os seus mais famosos discípulos podemos citar: Lysis, Filolau, Arquitas de Tarento, Alcmeon de Crotona, Epicarmo de Cos, Hipodamo de Mileto, Teano, etc.

Temas pitagóricos: a) as doutrinas dos pitagóricos são uma mescla de ciência e crenças religiosas; b) a imortalidade, a transmigração das almas (metempsicose) parentesco dos vivos, ciclo das coisas (eterno retorno dos acontecimentos já acontecidos); c) alma como princípio do movimento; d) o universo é vivo; e) os números são as essências das coisas, porque sem o número não seria possível conhecê-las, mutabilidade dos números e imutabilidade do um. (Há influência do pitagorismo na ciência moderna, em que a teoria atômica termina por ter uma noção apenas matemática da energia sub-atômica.

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Só é compreensível à razão o que é extensista, portanto, medível e numerável).

Há muito de lenda na vida de Pitágoras. O livro "Versos Áureos", que lhe é atribuído é obra de composição de seus inúmeros discípulos, sobretudo de Lysis.

Atribui-se também a Pitágoras o primeiro emprego da palavra filósofo, termo que se tornou, daí então, universal, para significar os investigadores do absoluto e intérpretes do mundo, estudiosos da sabedoria superior a Mathesis (1).

(1) Uma análise mais vasta da filosofia de Pitágoras é por nós empreendida em «Pitágoras e o Tema do Número». A exposição que acima fizemos refere-se mais ao pitagorismo e ao neo-pitagorismo do que propriamente à filosofia do mestre de Samos, que é por noa estudada na obra que apontamos.

OS ELEATAS

Xenófanes de Colofon (540 a. C.) foi o precursor da escola eleática e o primeiro a afirmar a unidade do ser. Dizem que Parmenides foi seu discípulo. Este foi a maior figura do eleatismo e uma das maiores da filosofia, porque, com êle, inicia-se um novo ciclo, que perdura até boje.

PARMENIDES

Parmenides (natural de Eléia, 540-485? a. C ) , foi nomeado legislador de Eléia. Segundo Diógenes Laércio foi discípulo de Xenófanes de Colofon, o que não está devidamente comprovado, e segundo Teofrasto e também Ana-xímenes, manteve relações com os pitagóricos Amínias e Dioquetas. Destas últimas influências há indícios mais seguros, dada à vida política de Parmenides. Quanto a cronologia, que damos acima, é também controvertida. E o próprio testemunho de Platão em seu Parmenides parece suspeito, pelo intuito de demonstrar a influência eleática na transformação da doutrina de Sócrates, a quem, segundo Platão, Parmenides conhecera, quando aquele era jovem. A única obra de Parmenides é "Da Natureza" (peri physeos), em versos hexâmetros, da qual restam fragmentos.

Temas: a) afirmação do ser, repúdio à sensação, à contradição do ser e do não-ser; a razão como único critério da verdade. Foi assim o primeiro a compreender e a afirmar o princípio de identidade e o de não-contradi-ção, postulados fundamentais da filosofia. O ser e o não--ser formam uma antítese inconciliável;

b) conceptibilidade do real e inconceptibilidade do irreal; afirmando a existência das coisas pensadas, porque o não-ser não pode ser pensado (inconceptibilidade

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Só é compreensível à razão o que é extensista, portanto, medível e numerável).

Há muito de lenda na vida de Pitágoras. O livro "Versos Áureos", que lhe é atribuído é obra de composição de seus inúmeros discípulos, sobretudo de Lysis.

Atribui-se também a Pitágoras o primeiro emprego da palavra filósofo, termo que se tornou, daí então, universal, para significar os investigadores do absoluto e intérpretes do mundo, estudiosos da sabedoria superior a Mathesis (1).

(1) Uma análise mais vasta da filosofia de Pitágoras é por nós empreendida em «Pitágoras e o Tema do Número». A exposição que acima fizemos refere-se mais ao pitagorismo e ao neo-pitagorismo do que propriamente à filosofia do mestre de Samos, que é por noa estudada na obra que apontamos.

OS ELEATAS

Xenófanes de Colofon (540 a. C.) foi o precursor da escola eleática e o primeiro a afirmar a unidade do ser. Dizem que Parmênides foi seu discípulo. Este foi a maior figura do eleatismo e uma das maiores da filosofia, porque, com êle, inicia-se um novo ciclo, que perdura até hoje.

PARMÊNIDES

Parmênides (natural de Eléia, 540-485? a. O , foi nomeado legislador de Eléia. Segundo Diógenes Laércio foi discípulo de Xenófanes de Colofon, o que não está devidamente comprovado, e segundo Teofrasto e também Ana-xímenes, manteve relações com os pitagóricos Amínias e Dioquetas. Destas últimas influências há indícios mais seguros, dada à vida política de Parmênides. Quanto à cronologia, que damos acima, é também controvertida. E o próprio testemunho de Platão em seu Parmênides parece suspeito, pelo intuito de demonstrar a influência eleática na transformação da doutrina de Sócrates, a quem, segundo Platão, Parmênides conhecera, quando aquele era jovem. A única obra de Parmênides é "Da Natureza" (peri physeos), em versos hexâmetros, da qual restam fragmentos.

Temas: a) afirmação do ser, repúdio à sensação, à contradição do ser e do não-ser; a razão como único critério da verdade. Foi assim o primeiro a compreender e a afirmar o princípio de identidade e o de não-contradi-ção, postulados fundamentais da filosofia. O ser e o não--ser formam uma antítese inconciliável;

b) conceptibilidade do real e inconceptibilidade do irreal; afirmando a existência das coisas pensadas, porque o não-ser não pode ser pensado (inconceptibilidade

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do não-ser). "Pois tu não poderás conhecer o não-ser" (frag. 4, 7-8). "É mister dizer e pensar que o ser é, pois é possível que seja, mas o nada não é possível: isto é o que rogo consideres" (frag. 6, 1,3). E afirma: "A mesma coisa é o ser" (frag. 5);

c) existência do ser, eternidade imutável. Atributos: eterno e indestrutível, imóvel e sem fim. Deduz a e-ternidade do ser: 1) da inconceptibilidade do não-ser; 2) da inconceptibilidade da gênese (que seria a aceitação da contradição "ser e não-ser"); 3) da inexplicabilidade dessa gênese;

d) nada existe fora do ser (unidade); nem é divisí-vel, porque tudo é igual (indivisibilidade); e tudo está cheio do ser (homogeneidade);

e) tudo é imóvel, sem princípio nem fim, e sempre idêntico; uma rigorosa Necessidade (Moira) mantém-no firme por todas as partes (frag. 8, 26-31); é o ser uma esfera infinita porque se propaga por toda a parte. Este sentido de P. tem um significado simbólico. A esfera define melhor o sentido da propagação do ser, da extensão infinita, ilimitada;

f) com P., a filosofia passa de física a ser ontológica, uma ontologia do ente cósmico, físico. Há o mundo aparente, o mundo das coisas (prágmata) e o mundo verdade, o mundo dos entes, que só o Nous conhece. O problema da física (ciência da natureza, movimento das coisas naturais) permanece em P. A negação do movimento nega a física. Se o ente é um e imóvel, não há natureza, não há física. Se existe o movimento, a idéia de P. não serve. Aristóteles procura dar uma solução, que os pré--socráticos, após P., também tentaram de várias maneiras.

ZENO DE ELÉIA

Zeno de Eléia (490-430 a. C.) foi discípulo de Parmê-nides. Combateu os adversários da doutrina do mestre, desenvolvendo em primeiro lugar o aspecto crítico do pensamento parmenídico. Aristóteles considera-o o fundador da dialética, como arte da demonstração, partindo de princípios admitidos por seu interlocutor.

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Método de Zeno: O método de Z. é o princípio da não--contradição. É o método da "disputa" (erístico), oferecendo dois caminhos opostos ao adversário para que permaneça um só, por onde possa seguir. Força o adversário a reconhecer a impossibilidade de admitir as contradições inclusas em cada uma das dificuldades expostas, a não ser que elimine o suposto que lhe havia dado origem.

Temas: a) é inconcebível o espaço como ente real (tese de Parmênides);

b) a divisibilidade infinita determina a impossibilidade do movimento, por uma série de raciocínios habilidosos, entre eles o famoso "Argumento de Aquiles";

c) ante a descontinuidade do mundo para alguns pi-tagóricos, em choque contra a continuidade do mundo parmenídico, assim argumenta Zeno: a descontinuidade é absurda, porque é compreender como nada a composição de um múltiplo com unidades sem grandeza ou como pontos; também emprestar a cada unidade uma grandeza é declarar que esta não é a unidade, pois está composta. Se um ponto, juntado a uma magnitude, não o torna maior, como poderá ser a componente da magnitude? E se se supõe que a magnitude, é feita de pontos, haverá entre os pontos outra magnitude, que deverá ser feita de pontos, e assim até o infinito.

Argumento de Aquiles: Entre os argumentos de Zeno para combater a idéia do movimento, estava o marginado. Aquiles era, entre os gregos, o símbolo veloz. Se Aquiles fosse correr com uma tartaruga, e desse a essa um pouco de vantagem (de distância), jamais a alcançaria. Pois, quando Aquiles tivesse alcançado o lugar onde estava a tartaruga, esta já teria avançado um pouco mais. Quando chegasse ao novo local, esta já estaria mais adiante. Ora, sendo o espaço composto de pontos infinitos, jamais seria alcançada a tartaruga por Aquiles.

Este argumento é rebatido por Aristóteles, porque Zeno parte da aceitação de uma infinita divisibilidade dó espaço. Aliás, a concepção racionalista teve em Parmênides seu momento mais alto, mas, em Zeno, sua forma viciosa mais acabada. O racionalismo, levado ao extremo,

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chegaria como chegou logo a Zeno. Concebendo-se o espaço como quantitativo, sua divisibilidade infinita é imposta pela razão, mas essa divisibilidade é o ponto fraco do racionalismo, porque oferece logo uma impossibilidade à razão. (Os escolásticos resolviam este problema ao afirmar que o espaço (como extensão) é potencialmente divisível em infinitude, e não composto de pontos indivisíveis).

Para a matemática, também, a divisibilidade é potencialmente infinita, mas atualmente finita; isto é, pode conceber-se apenas como possível uma infinita divisibilidade.

EMPÉDOCLES

Empédocles de Agrigento (ap. 490-430 a. C ) . Foi Empédocles, para a Sicília, o que Pitágoras foi para a Grande Grécia. De família abastada, defendeu as idéias dos partidos populares. Foi inimigo dos tiranos, legislador, homem de Estado, sábio, hierofante. Proclamaram--no deus, combateu a peste em sua terra, e realizou milagres, suicidando-se, afinal, segundo a tradição mais disseminada, atirando-se na cratera do Etna. Era Empédocles um convicto de suas qualidades de taumaturgo, não se conhecendo os seus limites de charlatanismo e de convicção. Escorraçando os tiranos de sua pátria, constituiu uma democracia, baseada no amor dos cidadãos, sendo, para Agrigento, o que Péricles foi para Atenas. Admirado, amado por seus contemporâneos, seu nome percorreu os séculos com a mesma auréola, merecendo de Lucrécio, versos inflamados, além da admiração de Aristóteles, Platão e outros.

Temas: a) aceitava o limite e a dificuldade para os conhecimentos humanos. Afirmava a necessidade do intelecto para complementar a experiência sensível;

b) repudiava a divindade representada em formas animais;

c) afirmava a eternidade do ser. Do nada, não pode nascer coisa alguma. A morte não é o fim, mas a desagregação das formas;

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d) não há vazio no todo. O Universo é a mescla (vide Migma de Anaxágoras) dos quatro elementos — água, fogo, ar e terra — representados pelos nomes divinos de Zeus, Hera, Edoneu e Néstis;

e) aceitava o eterno retorno, a fatalidade do ciclo por uma sucessão de períodos cósmicos, idênticamente como Heráclito e Anaxágoras;

f) as coisas semelhantes se atraem, as dissemelhan-tes se repelem. Há luta entre o Amor e o ódio (influência talvez de Heráclito), com predomínio alternativo de um ou outro;

g) aceitava a metempsicose e a transmigração das almas e uma lei universal de justiça;

h) a alma era, para êle, um agregado de átomos sutis, dispersos no sangue e condensados em torno do coração;

i) é um precursor de Goethe na morfologia comparada: "uma mesma coisa são os cabelos, a folhagem e a plumagem das aves", dizia.

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ANAXAGORAS

Anaxágoras de Clazômenes — Filósofo e matemático grego, nascido em 500 a. C , em Clazômenes, morto em 426. Segundo os antigos, foi iniciado nas doutrinas jôni-cas por Anaxímenes de Mileto. Por amor ao estudo, abandonou sua pátria e seus bens. Durante trinta anos ensinou filosofia em Atenas e teve por discípulos a Péricles provavelmente, e Sócrates, Temístocles, Tucídides, Demó-crito, Empédocles e Eurípedes.

A originalidade de sua doutrina estava na aceitação de um espírito ordenador do mundo, (o Nous, cuja idéia influiu na formação da idéia da Razão, de Sócrates), que êle não confundia com os deuses do politeísmo. Foi por isso acusado de impiedade. Mas Péricles salvou-o da morte. Obrigado a fugir, terminou seus dias em Lapsa-que. Anaxágoras é um dos primeiros filósofos gregos que escreveram sua filosofia, mas suas obras se perde-lam. Existem fragmentos nas obras de Platão, Aristóteles, Cícero, Diógenes Laércio e Esobeu.

Temas: Os sentidos, por débeis, não nos permitem discernir a verdade (frag. 21). Mas a experiência, a sabedoria, a memória e a arte nos auxiliam no entendimento. " . . . Não é possível saber a multidão das coisas distintas, nem por meio da razão, nem por meio da experiência" (frag. 7). Esse aparente cepticismo de Anaxágoras refere-se à verdade. É qualitativo, não quantitativo, porque reconhece uma permanente identidade descoberta pela razão (nous).

Anaxágoras não aceita o perecimento nem a morte das coisas, mas um desdobrar-se. Cada coisa compõe-se e decompõe-se de coisas já existentes (frag. 17), concluindo, daí, a invariabilidade quantitativa do todo, que todas as coisas não se encontram em maior ou menor quantidade, porque nunca podem ser mais que todas (frag. 5).

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O princípio dos seres são as homeomérias. O ser é composto de partículas (mere) que são similares (homia), de onde deriva o que chamou homeomérias.

Há em Anaxágoras um ponto a ressaltar: com êle se inicia a passagem da fase do interesse meteorológico, que era a espinha dorsal dos primeiros jônicos, para o interesse fisiológico. O problema cosmológico cede para o antropológico. Deduz-se essa interpretação da aplicação que A. faz das homeomérias para explicar a nutrição.

As homeomérias são invisíveis. Elas compõem todas as coisas. Não se poderia compreender a nutrição dos corpos de outra maneira. No pão, na água, no ar, estão as homeomérias, que se transformam em carne, cabelos, sangue. Note-se a semelhança da teoria das homeomérias com a teoria atômica de Demócrito. Assim conclui: em cada coisa há partículas de cada coisa (frag. 11). Afirmava a inseparabilidade dos seres e dos contrários: " . . . são inseparáveis o frio do calor, o calor do frio" (frag. 8).

O conceito do infinito em A. toma três aspectos: aceita o infinitamente grande (a totalidade do universo), o infinitamente pequeno (os infinitesimais indescerníveis, homeomérias), o infinitamente múltiplo (a composição infinita de seu discípulo Eurípedes afirmava que o "nosso intelecto é, cada coisa) (frag. 1, 3).

O Nous de Anaxágoras é o Intelecto, Inteligência, Mente, Espírito. É o espírito ordenador de todas as coisas. Já em cada um de nós, a divindade". Para Aécio o "Nous, ordenador do mundo, é a divindade". O Nous é infinito, auto potente, em nada se mistura com outras coisas, é o ordenador de todas as coisas. O Nous deu movimento ao todo e criou todas as coisas (frag. 12, 13, 15).

Anaxágoras representa uma tentativa de conciliação entre os Eleáticos e Heráclito. Enquanto aqueles negavam o devir como ilusão dos sentidos, Heráclito afirmava que o ser permanente era uma aparência. A. busca harmonizá-los: reconhece no ser o qualitativamente invariável, o imperecedouro, que o ser é o que não "devêm", mas que a diversidade das coisas não é uma ilusão. De-

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mócrito, depois, vai tentar essa reconciliação de maneira mais perfeita que a de Anaxágoras e a de Empédocles.

Sua teoria cosmológica de que o sol, a luz, os astros despreenderam-se pela força do movimento universal de rotação, é uma antecipação da hipótese de Kant-Laplace. Pressentiu também a gravidade. Foi o primeiro a dar uma exata explicação das fases e eclipses da lua. Em muitos outros tópicos, há passagens que hoje seriam julgadas profundamente pueris.

LEUCIPO E DEMÓCRITO

Demócrito (natural de Abdera, 460-370 a. C ) , discípulo de Leucipo. Segando Diógenes Laércio manteve rontato com sábios persas e caldeus. Permaneceu ignorado, embora vivesse em Atenas. É difícil distinguir-se a diferença existente entre a doutrina de Leucipo e a de Demócrito, razão pela qual estudá-lo-emos juntos. Quanto a Leucipo, houve quem negasse sua existência, mas sem razão. Ambos são contemporâneos de Empédocles e Anaxágoras, bem como dos sofistas e de Sócrates, embora ainda classificados entre os "pré-socráticos".

Demócrito é um sistematizador do materialismo e da concepção mecânica contra a teleológica. Muitas das obras de Demócrito devem pertencer aos discípulos, embora tenha sido um grande escritor, e outras a Leucipo. Ambos são os fundadores da atomística.

Temas: a) Demócrito assinala a incerteza das impressões sensíveis. A verdade é somente proveniente do inteligível;

b) a influência eleática e a de Heráclito manifestam-se em sua obra. Afirma: 1) nada do que é ente pode ser não-ente; 2) o ser é um cheio absoluto, quantitativa e qualitativamente invariável (eleatismo); mas esse ser, dessa maneira constituído, é composto de partículas ínfimas, infinitas em multiplicidade e invisíveis pela pequenez da massa (átomos); 3) movem-se no vazio, porque existe o vazio (que é um postulado democrítico), e, unindo-se produzem o nascimento, e desagregando-se, a destruição;

c) é impossível a conversão do um em múltiplo e vice-versa; a multiplicidade é originária e indestrutível;

d) aceita, como Anaxágoras, que "tudo está mesclado no todo";

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e) no vazio, existem sólidos, mas invisíveis, indivisíveis, contíguos uns aos outros (átomos ) t e entre eles se encontram vazios;

f) o ser, para D., são os átomos, em número infinito, diferentes entre si, não pelas qualidades sensíveis, como as homeomérias de Anaxágoras, mas por sua ordem, figura e posição, pois há uma única espécie de matéria ou substância fundamental: 1) os átomos são elementos, cujas determinações gerais são geométricas (quantitativas); 2) movimentam-se no vazio, onde se processam os câmbios. O vazio não é um simples nada, mas uma existência efetiva, embora de forma distinta dos átomos; 3) os átomos são eternos e incausados, a partir dos quais as coisas chegam à existência. São possuidores de uma eternidade mecânica (movimento), com encadeamento causai, sem azar, mas necessariamente e por uma razão. (Vê-se, aqui, que D. não aceitava um puro mecanicismo, pois concebia o mundo como animado. Esta é uma restrição ao materialismo de sua doutrina); 4) os átomos compõem "todas as coisas que são", inclusive as que parecem imateriais, como a alma. Diferem quanto à forma, mas são de uma única natureza. Primeira fundamentação do materialismo.

g) a causa de todas as coisas é a diferença entre os átomos: forma, ordem e posição;

h) conseqüentemente, há uma infinitude de formas e de combinações, porque são infinitos os átomos e as suas combinações;

i) os corpos compostos com mais vazios são mais brandos, os com menos são mais duros; daí o peso maior de uns e de outros, a menor ou maior consistência; daí o frio ou o calor. Todas estas são realidades subjetivas (opiniões, doxa, segundo Demócrito) só os átomos e o vazio constituem a verdade;

j) quanto ao movimento, há duas espécies: o originário, que é eterno, e o espontâneo e o derivado, provenientes do choque, que é forçado. Os átomos movem-se chocando-se uns aos outros, repelindo-se, atraindo-se, e, das combinações, nascem as coisas compostas;

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k) aceita o universo infinito e a multiplicidade de sistemas cósmicos diferentes, uns em formação, outros em evolução, outros em vias de se formarem e outros prestes a se destruírem. Opinião que se aproxima do conceito atual da cosmologia;

1) quanto ao conhecimento, as coisas emitem imagens sutis (eidola), compostas de átomos mais finos que penetram nos órgãos dos sentidos. Não é sua teoria propriamente sensualista como dizem muitos, como vemos pela sua afirmação do conhecimento da verdade proveniente do inteligível.

Eticamente, estabelece Demócrito a virtude no equilíbrio das paixões, pela dominação dos impulsos do coração e pelo triunfo sobre os próprios desejos. Este equilíbrio é obtido pelo saber e pela prudência, que ensinam como conquistar a felicidade, que nãq, se fundamenta nos bens externos, mas na alma do homem, "a mais nobre parte do homem", a paz interior, a alegria (euthymia). A prática do bem deve ser feita sem desejos de remuneração. Seus discípulos, entre outros, foram Metrodoro de Quios, Anaxarco, Diógenes de Esmirna, Nausifane, etc. O atomismo de D. coordena-se, posteriormente, com o asce-tismo pirrônico e com o epicurismo, e com as concepções do atomismo filosófico moderno.

ANÁLISE GERAL

Com os pré-socráticos, embora especulativa, a razão ainda não atinge seu grau tão elevado como veremos no racionalismo. Os jônicos, preocupados com os problemas cosmológicos, nem sequer punham em dúvida o testemunho dos sentidos, nem suas investigações iam além do que já estava incorporado às religiões orientais. Com Parmênides, a filosofia atinge um novo grau. A razão especula consigo mesma, fixa a si mesma, objetiva a si mesma para analisar-se. O princípio de identidade surge então, como já vimos. A afirmação do homogêneo absoluto, do espaço inteiramente uno, é um postulado que a razão impõe. Há, aí uma verdadeira lua de mel da razão com os seus axiomas fundamentais.

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Parmênides é uma reação a Heráclito. Quando os jônicos se preocupavam apenas com o meteorológico, Heráclito, pela Razão (o Logos), intui o diferente, afirma o mutável, o cambiante, o movimento de tudo, a transformação de todas as coisas, o devir eterno. Procura racionalizar, tornar inteligível o que os sentidos mostravam. Mas a especulação heraclitiana não poderia ter atingido todo o fundo das possibilidades racionais. Surge Parmênides, para, aproveitando-se do caráter antinômico da própria Razão, por meio dela, afirmar o contrário do que postulava Heráclito.

O movimento, por si só, não é compreensível sem o imutável. Essa antinomia, que já estudamos, polarizou Heráclito do lado da mutabilidade e Parmênides do lado da imutabilidade. Ambos tomavam posições unívocas. Para um, tudo era movimento. Para outro, tudo era imutável. Embora dialético, Heráclito não compreendia que a conceituação da mutabilidade e da imutabilidade eram antinomias próprias do nosso espírito e que, na natureza, não pode dar-se a imutabilidade como a concebe a razão, nem a mutabilidade pura, que oferece a intuição.

Sob a influência de Parmênides, a filosofia tende para firmar-se em esquemas racionais.

Penetraremos agora na segunda fase da filosofia grega: o período em que predomina o problema antropológico. Não será mais o cosmos o grande objeto de estudo dos filósofos, mas o homem. Desta análise do homem, em suas relações com o cosmos, vão surgir novas possibilidades para a Filosofia.

FASE ANTROPOLÓGICA — OS SOFISTAS

PROTÁGORAS E GÓRGIAS

A vitória dos gregos sobre os persas, deu a Atenas a hegemonia sobre o mar Egeu, enquanto a democracia vitoriosa teve um grande desenvolvimento, com a crescente importância das assembléias e dos tribunais, das discussões sobre os temas da moral, da política, etc. Tais circunstâncias acarretam a maior preocupação quanto aos problemas humanos, pois as instituições e as crenças do passado eram agora insuficientes para fazer face às novas perguntas que surgiam. Desenvolveu-se, assim, uma cultura de valor prático, que se preocupava pelas coisas humanas. Uma cultura dialética, que não encontrava mais, no âmbito das velhas concepções filosóficas, uma resposta às suas novas perguntas, levou filósofos a penetrarem em novo terreno: o homem. A fase cosmológica da Filosofia é agora substituída pela fase antropológica. Foi quando surgiu um grande número de mestres, sábios vagabundos, hábeis oradores, expositores de doutrinas, que encontravam o apoio da juventude que os acompanhava, que, com eles, aumentava seus conhecimentos. São os sofistas. Admirados pelos que os pagavam para que lhes ensinassem a arte de argumentar e de discutir, não formavam propriamente uma corrente, pois havia entre eles de todas as tendências. O que os caracterizava, porém, era a exaltação que davam ao homem como indivíduo; por isso se deu o nome de Ilustração Grega a essa fase da história, nome que teve uma correspondência na Ilustração ocidental, que oportunamente trataremos.

Apesar disso, eram os sofistas desprezados pelos aristocratas do saber, pelos filósofos. Para darmos uma idéia do conceito que gozavam junto aos filósofos, basta

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que citemos estas palavras de Aristóteles: "Realmente, a sofistica é uma sabedoria aparente, não real, porém; e o sofista é um traficante de sabedoria aparente, não porém real". Entre os sofistas aparecem, como duas figuras ex-ponenciais, as personalidades de Protágoras e de Górgias, cujas doutrinas passaremos a expor.

PROTÁGORAS

Protágoras de Abdera (480-410 a. C) . Já tivemos ocasião de estudar temas da filosofia protagórica (também se encontra muitas vezes o termo abderita para qualificar alguma idéia tipicamente semelhante às de Protágoras). Partindo dos temas heraclitianos, Protágoras afirmou a relatividade do conhecimento. ("O homem é a medida de todas as coisas, das que são, enquanto são, e das que não são, enquanto não são"). A relatividade protagórica leva a aceitar a verdade dos contrários. Assim, a mesma coisa é e não é ao mesmo tempo, porque reúne, em si, os opostos, pois podemos qualificá-la de boa ou de má. Entre os homens, dão-se opiniões contrárias; por isso as coisas são verdadeiras e falsas, havendo, assim, identidade entre o verdadeiro e o falso. Os ensinamentos de Protágoras trouxeram, como conseqüência, a relatividade das valorações éticas, estéticas e cognoscitivas. O situar o homem no centro de toda consideração trouxe, como conseqüência, que os estudos se ativessem no que se referia ao estritamente humano. Os sofistas, apesar de todos os defeitos de que os acusam, representam, na história da filosofia, um grande papel. E esse papel consiste na atualização do que é humano, do homem, tantas vezes desprezado no desenvolvimento da História. É o que veremos surgir depois do Renascimento europeu, e sobretudo na Ilustração, e depois de um período de re-fluxo no decorrer do século XIX, e neste, surgir agora, mais uma vez. É a mesma colocação do problema do homem, enquanto indivíduo, e não do homem abstrato, de que tratam a Ciência, a Filosofia e a maioria das doutrinas políticas, que o reduzem à classe ou à raça ou à nação, como se vê no socialismo autoritário e nas correntes fascistizantes.

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GÓRGIAS

Górgias de Leontium (485-375 a. C.) foi um grande retórico e notável orador. Górgias estabelecia três princípios em sua filosofia: 1) que não existe nada; 2) que, embora algo exista, é incognoscível ao homem; 3) que, embora sendo concebível, é inexplicável e incomunicável ao próximo. São esses os três princípios fundamentais de suas doutrinas. Os argumentos de Górgias foram expostos, explorando habilmente as possibilidades racionais.

SÓCRATES

Sócrates (470-389 a. C.) foi para a maioria dos seus contemporâneos um sofista. Outra não foi a imagem superficial que dele nos deu Aristófanes em sua famosa comédia "As Nuvens", que o conheceu em sua primeira fase, quando sofista. De origem humilde, foi de início escultor, entregando-se depois à apaixonada campanha de educar seus concidadãos, mantendo longas disputas com os sofistas, então preponderantes em sua pátria. De entre o caos da Filosofia, que os sofistas ameaçavam, a figura de Sócrates, se não é a de revigorador das doutrinas do passado, é, no entanto, um continuador do espírito filosófico, marcando, inegavelmente, um novo rumo à Filosofia, rumo este que até os dias presentes tem orientado de maneira preponderante os temas das grandes investigações do espírito. A própria vida de Sócrates, sua ação como militar, sua juventude, o processo que sofreu, sua condenação e sua morte prestam-se como temas para amplas páginas. Trataremos, aqui, porém, tanto quanto possível, do que representa, em conjunto, a sua filosofia, sobre a qual jamais escreveu e que se tornou conhecida através das obras de Platão, Xenofonte e outros.

Temas: a) Era para êle a Filosofia uma missão sagrada, que deve ser cumprida com risco da própria vida. Éle mesmo foi um exemplo de sua devoção. Com essa atitude, opunha-se aos sofistas, para quem a educação era puramente uma arte, uma função utilitária;

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b) o objeto de suas investigações tinha um caráter religioso e o de purificação espiritual, tendente à procura da verdade e da virtude, que afirmava atingíveis aos homens;

c) o verdadeiro valor da vida está na purificação de si mesmo, do espírito, pelo "conhecimento de si mesmo" e pela prática da virtude, pelo estudo acurado fugindo às afirmações fáceis e à presunção do saber;

d) o conhecimento é a condição da sabedoria e da virtude. Não é sábio o que não tenha conhecimento de si mesmo, e, para conhecer a si mesmo, aconselha o método da introspecção;

e) conhecer a própria ignorância é um meio para permitir a purificação dos conhecimentos;

f) todas as relações da vida humana devem ser examinadas através de uma meditação profunda, não aceitando instintivamente os costumes e acontecimentos, mas raciocinando sobre eles. O seu racionalismo fundamenta a conduta na reflexão, por meio de conceitos claros, sobre a própria evidência racional, ratio. Neste ponto, Sócrates aproxima-se dos sofistas, mas afasta-se deles ao buscar a verdade. Seu método é a "maiêutica": a interrogação. Método obstétrico, como êle mesmo o chamava, que leva a partejar as idéias.

Através das perguntas que faz, os seus interlocutores acabarão filosofando à procura de respostas, e encontrarão, em si mesmos, razões, conhecimentos insuspeitadós. Afirmava Sócrates que já possuímos em nós os conhecimentos, que, por seu método, vão ser atualizados pelas interrogações. Esse método vai Platão depois aperfeiçoá-lo na sua dialética;

g) o objeto da investigação socrática é o universal (essência) imanente às coisas, verdadeiro objeto da ciência;

h) o fim do método socrático é a elaboração dos conceitos, e o caminho que conduz a esse fim é a da indução (não no sentido da ciência moderna, que se eleva dos casos particulares a um resultado geral), mas sòmen-

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te quando é definido, quando permanece esgotado numa forma verbal, é que o conceito está determinado universalmente. Assim, as características da investigação socrática são: indução, conceituação, definição. Por esses meios, desejava atingir o enobrecimento moral de seus amigos. Por isso, para Xenofonte, foi Sócrates um reformador moral;

i) afirma que o saber e o conhecimento conduzem à virtude, e que a virtude necessita de um elemento diretor, o saber, afirmando ainda que o saber e a virtude são idênticos. Esse pressuposto eudemonístico de Sócrates é conseqüência do outro que diz: o bem é idêntico ao útil e ao favorável;

j) segundo os testemunhos de Xenofonte, podemos destacar os seguintes pontos na doutrina de S.: 1) a alma participa da natureza divina e é dada por Deus ao homem; 2) a vida não depende do corpo, depende da alma; 3) através da união ao corpo, a alma se macula, e só reconquista sua pureza pela libertação do corpo;

k) Deus é uma inteligência onipresente, onisciente, onipotente, absolutamente invisível ao homem, revelan-do-se pelas obras imensas que realiza;

1) deriva a prova da existência de Deus da finalidade do mundo. A ordem cósmica (o providencial) do acontecer é obra de um espírito inteligente e não do acaso.

A filosofia de Sócrates influiu decididamente na obra de Platão e Aristóteles, e seu nome está ligado ao racionalismo como verdadeiro estimulador, embora não tenha sistematizado suas idéias, como o fêz posteriormente Aristóteles. Observa-se que Sócrates muito se preocupou com o Nous de Anaxágoras, de onde fundamentou sua compreensão da razão.

Nota crítica: Vimos que, nas suas origens, a filosofia grega se preocupava por uma explicação religiosa do Cosmos. Com os pré-socráticos, os jônicos, eleatas, pitagó-ricos, o problema fundamental é o cosmológico, é o Cosmos. A Filosofia quer responder as interrogações que lhe oferece o diálogo entre o homem e o Cosmos.

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Com os sofistas, nova fase surge: a fase antropológica. Passa o homem a ser o objeto atualizado das pesquisas filosóficas. Mas aqui o homem é examinado como indivíduo, como o homem A, B, C, D, etc. Os sofistas não têm uma visão homogênea do homem, mas heterogênea. O homem é o heterogêneo, que vemos nos diversos indivíduos. Com Sócrates, muda o caminho da investigação filosófica para o homem, sob outro aspecto. Os homens são diversos, vários, diferentes uns dos outros, mas são homens por sua humanidade, que está em todos e em cada um. É essa humanidade que os distingue dos outros seres. Conhecer o homem, conhecer a si mesmo, é penetrar nessa essência (humanidade), que vale para todos, que deve valer para todos, que é universal, E essa essência do homem é o racional. O homem é, agora, conceito, abstração, o homogêneo, o que se repete em cada um. Com Sócrates, inicia-se o exame especulativo do problema ético (o dever-ser).

AS ESCOLAS SOCRÁTICAS MENORES

As escolas socráticas menores são assim chamadas por oposição à maior, que é a de Platão, que estudaremos no próximo capítulo.

São três:

1) a escola cirenáica, fundada por Aristipo de Cirene, o qual sofreu a influência de Protágoras, e que expõe um sensualismo fenomenista ou hedonista (de hedonê prazer);

2) a escola cínica, fundada por Antístenes, que sofreu a influência de Górgias, escola materialista individualista e anti-hedonista;

3) a escola megárica, fundada por Euclides, de Me-gara, que conjugava a doutrina de Sócrates com as do elea-tismo, e defendia um idealismo rígido.

Refutavam os megáricos os sentidos, e exaltavam o Bem inteligível, ao qual atribuíam os caracteres que os eleatas atribuíam ao Ser. A verdade não era dada pelos sentidos, mas pela razão. Negavam o diverso, o diferente, o devir, para afirmar apenas o Ser com o qual se identifica o Bem. Por isso, as virtudes eram uma só, mas se apresentavam sob diversos nomes.

Diziam os cirenáicos que o único critério da verdade eram as sensações, e que só elas eram verazes. Apesar disso, não se podia apreender os objetos que as produziam, por isso as sensações nunca estavam livres de enganos. Para eles, tudo era movimento, relatividade e fenômeno e os objetos eram reduzidos a grupos de sensações. São as teses gerais que veremos, posteriormente, na doutrina dos sensualistas. Aristipo dizia que a sensação agradável era o fim, e nela consistia a felicidade, e que só

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ela era atual. Desde criança buscamos instintivamente o prazer, e quando o conseguimos, não buscamos nada mais, e de nada fugimos tanto como da dor, que é o contrário do prazer. Por isso, o prazer é um fim para todos os seres vivos, pois os animais repelem a dor.

Não se pense que os cirenáicos, muitas vezes chamados de hedonistas, pregassem o prazer pelo prazer, a busca incontida dos prazeres fugazes. Tinha, para eles, o prazer um sentido mais elevado, e pregavam, por isso, a virtude. Possuir e não ser possuído, dominar os prazeres e não deixar-se dominar por eles, como também não abster-se deles, eram seus princípios éticos.

"Domina o prazer, não quem se abstém, mas quem sem deixar-se arrastar por êle, sabe usar dele" (Stobeu).

Os cínicos, cujo nome vem de Kynes, que quer dizer cão, pois era do ginásio de Kinosarges em que se reuniam os seguidores dessa escola, eram homens em geral pobres, modestos. Por isso foi chamado o cinismo de filosofia do proletariado grego. Pregavam uma austeridade ascética. Aceitavam o sensualismo e o materialismo, negavam as idéias e afirmavam a individualidade do real ("ó Platão! o cavalo, sim, o vejo, mas a eqüinidade não a vejo").

Rebelavam-se contra os artifícios e convenções sociais, e pregavam o retorno à natureza. Pregavam o cosmopo-litismo, repudiavam as leis positivas, negavam a família, o Estado e a diferença entre livres e escravos, bem como entre as nações. Um dia Diógenes, perguntando sobre seu lugar de nascimento, declarou que era cidadão do mundo, e que o único verdadeiro Estado era o mundo inteiro.

Pregavam a fraternidade e a não desdenhar, mas buscar o contato dos repelidos pela sociedade.

O S G R A N D E S S I S T E M A S

PLATÃO

Platão (428-347 a. C ) , foi discípulo de Sócrates, o qual aparece como principal interlocutor em quase todas as suas obras dialogais.

Após a morte de Sócrates, viajou pelo Egito, Cirene, a Grande Grécia, entrando em contato com as filosofias egípcias, a pitagórica e a eleática. Em 387, fundou em Atenas, perto do ginásio de Academos, sua escola (Academia), dedicando-se daí em diante, ao ensino e à composição de suas obras. Antes de Sócrates, teve por mestre Crátilo, que seguia a doutrina de Heráclito, exagerando-a. Quando Heráclito disse que não nos podemos banhar duas vezes no mesmo rio, Crátilo afirmou que, por ser tão rápido e contínuo o câmbio, não podíamos fazê-lo nem uma só vez. Negava ainda Crátilo que as palavras, sempre estáveis, pudessem expressar as coisas em sua instabilidade, concluindo, daí a impossibilidade de um conhecimento estável e válido quando os fenômenos eram mutáveis, tanto como as sensações. Sócrates também julgava assim, e era um dos seus argumentos contra Protágoras. Mas Sócrates ia além de Crátilo porque, embora aceitasse a incapacidade das sensações para nos dar algo mais que as opiniões mutáveis, privada de um critério de verdade, aceitava, no entanto, a capacidade dos conceitos para dar-nos uma ciência firme e segura das essências universais.

Foi daí que P. deduziu sua teoria do ser. É aparência ilusória o que corresponde à falaz opinião sensível (fenômenos), e é conhecimento verdadeiro o que se refere às essências ou tipos universais, as idéias. Nisto consiste o idealismo platônico, que estabelece a antítese entre o

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mundo dos fenômenos, formados pelos dados da sensibilidade e o mundo das substâncias, das essências, ao qual atingimos por intermédio da indução e da definição, segundo o método socrático.

Mas transpareciam novos problemas para Platão. Como podemos reconhecer o que ignoramos? Estabelecia, então, a existência de um mundo-verdade, eterno, onde a alma humana viveu, antes de penetrar no corpo humano, na contemplação das idéias. Este mundo ofusca-lhe a existência, mas a reminiscência da contemplação originária permanece, de forma que aprender é um recordar, um recuperar o que ficara oculto na alma. Assim, o método obstétrico de Sócrates (a maiêutica) passa para P. a ser uma teoria do conhecimento. As coisas sensíveis despertam a recordação das idéias. As coisas sensíveis são sombras das idéias. E quem permanecer preso a elas não atingirá o mundo das idéias, permanecendo encerrado no corpo, como quem, em uma obscura caverna, de costas para a abertura, vê as sombras, enquanto o filósofo vê a realidade que é o mundo ideal (das idéias).

São as idéias os arquétipos (tipos primeiros), que servem de modelo ao criador (demiurgo) para formar as coisas, e estas não passam de meras imitações daquelas.

Mas nasceram novas interrogações. Todos os objetos ou fatos, de qualquer espécie, possuíam seus arquétipos?

Platão não respondeu categoricamente. A multiplicidade das idéias criava o problema das conexões e relações recíprocas, imprescindíveis para a constituição, com elas, de um sistema harmônico e orgânico que se refletisse no interior de nosso pensamento em conexão com nossos conceitos.

Platão afirmava que as idéias eram vivas e não inertes e rígidas, como pensavam tantos. Havia entre elas comunhão ou união recíproca.

Mas havia idéias incompatíveis umas com as outras (as opostas), mas a outras cabia-lhes o papel de enlace, de encadear, como a idéia do ser, do um, do todo.

C O N V I T E A F I L O S O F I A 139

Caberia à dialética, como ciência das idéias, distin-v guir quais as que concordam e quais as que excluem, bem

como quais as que unem e as que dividem, bem como classificá-las.

Cinco eram as idéias mais importantes para P.: ser, repouso e movimento, idêntico e distinto. É a idéia do Bem a suprema entre todas, a que sobre todas esparge

( sua luz e seu calor, a que empresta verdade ao conhecido e capacidade intelectiva ao cognoscente. Para P., era o Bem o que constituía a natureza de Deus, criador e orde-nador do cosmos, modelado segundo um arquétipo eterno, criado com harmonia e proporção, dotado de uma alma universal, que penetrava em todas as coisas, princípio da vida, da razão e da harmonia, criada segundo as regras dos números e que, em si, continha todas as relações harmônicas.

Não pode o bem ser causa do mal. Mas existe o mal. É que existe uma concausa, que se opõe ao bem e resiste-

, -lhe, ou seja a matéria, fonte dos defeitos, da mutabilidade, da multiplicidade.

É a matéria o contrário das idéias. É o não-ser, ne-gatividade, indeterminação. É informe, por isso plástico para receber todas as formas, receptáculo, como o vazio e o espaço.

Comparava P. os quatro elementos, terra, água, ar e fogo, com os quatro sólidos geométricos regulares: cubo, icosaedro, octaedro e a pirâmide, que êle decompunha em triângulos. Era marcante a influência do pitagorismo nes-

iir sas idéias de P . Mas a maté r ia oferece resistência às formas, sua ação é desordenada, e estas se opõem à ação ordenadora do demiurgo. Assim a causa física (matéria) resiste à causa final (alma do mundo e idéia), por isso, as coisas são apenas formas imperfeitas das idéias, apenas sombras.

Quanto mais diretas ao criador, mais perfeitas as obras: o cosmos. Era para P. o homem uma união de corpo e alma. A alma é a essência do corpo e tem a natureza das idéias (simples, invisível, mutável) e, porque contemplou as idéias, tem a capacidade de recordar-se de-

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140 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

Ias; isto é, de conhecimento. É a alma o princípio do movimento e da vida, e é imortal.!

Mas a alma tem três faculdades: alma racional (alma-- cabeça), a quem cabe dominar e dirigir o conhecimento e a ciência; alma passional (alma-peito), que muitas vezes se afasta da razão para enganar-se pelas opiniões: e alma apetitiva (alma ventre) sensível e sujeita aos desejos sensíveis. Se a alma, quando penetra no corpo, não busca manter sua pureza, quando morre o corpo não retornará ao mundo das idéias, mas estará suieita à trans-migração para outro corpo de homem ou animal, segundo as predileções que tenha manifestado. (É ainda a influência do mito das transmigrações da metempsicose).

O bem divino, idêntico ao belo e ao verdadeiro, é a espiritualidade. A alma, prisioneira do corpo, deseja libertar-se. E a libertação não se faz com o suicídio, mas com a purificação e a elevação contínua a uma esniritua-lidade divina. É o amor a aspiração à espiritualidade pura. Mas, o mundo sensível é o reflexo do esplendor das idéias e o caminho para a contemplação dos estágios mais altos da beleza espiritual pura; e é com o esforço constante da vontade que permite a conquista dessa purificação das paixões, que é a virtude. Para cada parte da alma, há uma virtude: a racional possui a sabedoria, a passional a coragem, a fortaleza; a apetitiva, a temperança.

Mas essas três virtudes precisam ser harmônicas e subordinadas. Portanto, a uma mais elevada, que é a justiça, a virtude por excelência, harmonia espiritual, também felicidade, enquanto a injustiça gera a turbação e a infelicidade. Quem pratica uma injustiça deve ser punido e a pena, a expiação, é purificação (catarsis), libertação do mal interior.

Assim cabe ao Estado a função punitiva, de caráter ético e de elevação moral. Cabe ao Estado fornecer o maior bem aos cidadãos, aos homens, não propriamente comodidades e gozos, porque estimulam a avidez, a in-temperança e a injustiça, mas de bens espirituais em primeira plana. Para isso, deve o Estado ter a mesma ordem hierárquica que existe na alma individual.

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Em sua famosa República, estabelece P. o regime para êle ideal.

; A educação deve ser dada não à classe oprimida, mas à classe dos superiores/. Deve eliminar-se todo interesse e vínculo particulares (propriedade privada, família, etc), que possa entrar em conflito com as exigências do bem comum. Homens, mulheres, crianças e bens devem pertencer ao Estado. A educação deve ser dirigida por este. A educação será comum aos dois sexos, com música e ginástica, para formar indivíduos fortes, capazes de defender à pátria, libertos de toda passividade ou pieguice na poesia, como em qualquer outra arte. Os indivíduos devem ser selecionados, e por meio da matemática e da filosofia escolhidos os que são dignos de dirigir o Estado. Assim, teremos a construção ideal para F.: a aristocracia, o governo dos melhores. Mas a realidade mostra violações da ordem justa. Pela ambição, a alma passional supera a racional; o desejo das honrarias substitui o amor da sabedoria, e a avidez das riquezas gera as oligarquias. Mas, desencadeados os apetites, desenfreiam-se os da multidão e a democracia turbulenta triunfa, e a desordem das paixões permite transformem-se as multidões em presa fácil dos astutos, que se utilizam delas para estabelecer a tirania, em que o Estado se torna o servo dos interesses egoístas do tirano.

É a tirania o extremo da desordem e da degradação do Estado, porque o tirano suspeita da fidelidade de seus sequazes. É injusto, porque teme. É o tirano o cúmulo da injustiça e, conseqüentemente, o cúmulo da infelicidade.

Mas Platão, no seu livro "As Leis", estabelece concessões, buscando aproximar o ideal à realidade.

Reconhece a necessidade da família e da propriedade privada, e o domínio da lei em substituição ao absolutis-mo dos sábios.

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ARISTÓTELES

Aristóteles (natural de Estagira, ap. 384-322 a. C ) , íoi discípulo de Platão, em Atenas, tendo sido chamado, depois, para a corte macedônica, como mestre de Alexandre Magno. Fundou em Atenas, perto do templo de Apo-lo Liceu, sua escola peripatética ou Liceu.

Separou-se cedo da filosofia dos platônicos, não, propriamente, de Platão. Consistiu este afastamento ante a separação entre as idéias e as coisas, na exigência de sua unidade.

A Filosofia, que para Platão era uma mística preparação para a morte, converteu-se em Aristóteles na compreensão da vida universal. A. voltava para Sócrates, de quem Platão havia se afastado.

Nas essências (universais) buscava a razão das coisas e dos fatos, devendo supô-las no interior e não fora destas.

O problema da Ciência era para êle exnlicar os fenômenos e a realidade natural. Quanto à Filosofia cabia indagar os princípios e as causas dos seres enquanto seres, acima das investigações particulares das ciências particulares. Para tal empreendimento, a doutrina platônica, com as idéias imóveis, colocadas acima e fora das coisas, nada podia oferecer, nem facilitar a explicação do ser, como também do devir das coisas. É nas coisas, e em seu interior mesmo, e não fora delas, que é preciso buscar a explicação. Platão colocava as substâncias (idéias ou formas) fora das coisas e, nelas, a resistência, a nega-tividade (matéria).

Para A., a substância é o ser por excelência, aue existe e pode ser pensado em si e por si, sujeito de todas as qualidades, que só lhe podem ser inerentes a êle como também os seus atributos.

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É, em suma, o indivíduo que se nos apresenta como plenitude e viva síntese de todas as determinações. (Essas determinações essenciais da realidade formam as dez categorias de A.).

Um indivíduo natural ou artificial, homem ou coisa, nasce, porque existe quem o procrie ou realize; é constituído de uma matéria, orgânica ou não, recebe uma forma, humana ou não, que é precisamente o fim à qual tende seu desenvolvimento natural ou artificial. São quatro as condições ou causas de sua existência: 1) causa eficiente ou motora; 2) material; 3) formal; 4) final.

As duas últimas podem ser identificadas, e também as duas primeiras.

Por isso, Aristóteles distingue as condições constitutivas do indivíduo natural em duas: matéria e forma.

A substância, sob certo aspecto, segundo A., é matéria e, sob outro, é forma. Mas, em sua plenitude concreta, é o resultado de ambas, sua unidade (synolo).

Mas essa unidade só é possível enquanto não estão separadas de lugar e não são incompatíveis por natureza. Matéria significa também potência, caso haja falta de determinações ou formas, e também aspiração e esforço para o ato ou forma no qual se realiza essa potência. A união entre a matéria e a forma é a passagem da potência para o ato; é o desenvolvimento, que se diferencia do conceito platônico de degradação das idéias e das coisas, e deriva do fato de, para A., não ser a forma algo extrín-seco, mas imanente à coisa. Assim a matéria não é, como para Platão, resistência à forma, mas espontaneidade de realização dela (enteléquia).

Nos dois pólos opostos do processo universal do desenvolvimento, A. coloca, de um lado, uma originária matéria primeira, com absoluta privação de qualquer forma, e do outro uma absoluta forma pura ou Ato Puro, na qual não existe nenhuma espécie de matéria ou potência passiva, que se coloca absolutamente fora do mundo, das coisas e do devir, a qual é Deus.

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Toda a realidade natural é para êle desenvolvimento, mutação, movimento. Mas todo movimento supõe uma causa motora que o engendre. Um motor pode imprimir movimento a outro corpo, mas esse motor precisa estar em movimento, requerendo, por seu turno, outro motor que o ponha em movimento, e assim sucessivamente, até o infinito, o que impediria uma solução para o problema do movimento.

Aristóteles usa outro caminho. Considera o movimento pelo fim ao qual tende. Todo devir tem uma explicação verdadeira na causa final, na tendência do desenvolvimento, na realização de uma forma, a perfeição superior. Aqui se encontra um limite, o último termo para nosso pensamento, mas causa primeira em si mesmo, quer dizer, perfeição suprema absoluta, que é forma pura ou Ato Puro, no qual não há matéria nem potência, e por éle falta qualquer possibilidade do devir e do movimento. Aqui está Deus, motor imóvel, que move o mundo, enquanto é causa final dele, mas que não tem um fim para o qual tender, porque é realização perfeita e acabada.

Mas, para estar substraído ao movimento, Deus tem que estar absolutamente alheio ao mundo, e até desconhecer o mundo, porque conhecimento do movimento já seria movimento de pensamento.

Deus, portanto, como perfeição suprema, é pensamento puro, não pensamento de outro, mas de si mesmo, identidade de pensante e pensado, pensamento do pensamento, imutável, imperturbável, e bem-aventurada contemplação de si mesmo. Deus assim é absolutamente transcendente.

A concepção de A. é dominada pela teleologia (princípio de finalidade), fim para o qual tende todo ser, que tem um tipo modelo. Há um só limite que está na resistência da matéria (conceito de Platão), que explica a verificação da contingência e dos desvios na ordem dos fins e das formas normais, mas A. não aclara como possa conciliar isso com o conceito da matéria como potência, que, por si mesma, tende para a realização de um fim.

A concepção do finalismo é muito mais intrínseca à concepção de A. que à de Platão.

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Para A., o movimento compreende todo câmbio do devir: crescimento e diminuição ou movimento de quantidade; variação ou movimento de qualidade; transladação ou movimento espacial. As duas primeiras espécies implicam a terceira e a ela se reduzem.

O espaço, condição do movimento, não é matéria nem forma, mas o continente das coisas, o limite interno imóvel do corpo continente. Não há, por isso, espaço vazio nem infinito: o espaço coincide com o universo que, sendo tudo, não pode conter um continente fora de si. Há, no espaço, infinitude pela divisibilidade, infinitude em potência, não em ato. O tempo também é uma infinitude em potência, porque se pode pensar sempre em maior. No universo aristotélico existe duas mesclas de movimento: um descendente, da perfeição celeste para a imperfeição terrena, um afastamento de Deus, e outro ascendente, desde o tipo mais inferior na terra para o tipo superior. Para êle, a vida e a alma possuem três graus de desenvolvimento: alma vegetativa, nutritiva e reprodução, que já se encontra nas plantas; alma sensitiva, que, nos animais, se ajunta à anterior, e alma intelectiva que, no homem, se ajunta às duas anteriores. Essas três almas separaram--se do sentido platônico, porque, em Platão, tinham assentos diferentes, pertenciam a partes diferentes, quando, em A., representa três estados de desenvolvimento, de progresso a um estado superior, que contém em si o inferior. Cada estado é, assim, uma aspiração a um fim de perfeição.

As virtudes mais altas são as do intelecto (dianocti-cas ou contemplativas: prudência e sabedoria); mas o domínio da razão na vida prática, dá lugar às virtudes éticas.

A virtude não se encontra nos atos isolados, mas na orientação constante das ações; ou seja, o hábito de eleição, que, segundo a exigência racional, evita tanto o excesso como a carência, e permanece num justo meio entre os extremos opostos.

Embora admirasse Platão, A. polemizou muitas vezes contra a doutrina platônica e atacou a duplicidade do mundo das idéias.

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O propósito de A. era levar as idéias transcendentes de Platão e fundi-las com as coisas reais de nossa experiência sensível.

Parte da coisa, tal como a vemos e sentimos, e distingue três elementos: substância, essência, acidente.

Analisemos: quando examinamos uma coisa, e vamos abstraindo um a um os seus caracteres, dimensões, côr, etc, restará um "quid", a "quidditas" (qüididade), este é o "substante" (hipokéimonon), substância.

Essência é a soma dos predicados que podemos predicar da substância. Os predicados se dividem em duas partes: predicados que, faltando à substância, esta não seria mais o que é, e predicados que embora faltando à substância, esta prosseguiria sendo o que é.

Os primeiros formam a substância propriamente dita e os segundos são os acidentes. Seguidamente A. usa também o termo substância no sentido de totalidade da coisa, com seus caracteres essenciais e acidentais. É neste sentido que considera a substância individual. O que existe para A. é a substância individual e não o conceito genérico no sentido de Platão.

Era êle um filósofo prático, positivo, comedido, culto. Toda a sua obra é um trabalho de sistematização, onde há a ausência dos impulsos poéticos tão característicos de Platão e de outros filósofos gregos. A própria vida de A., sua influência na corte de Alexandre, seu papel na história de uma época de realizações práticas deram surto ao desenvolvimento de suas qualidades.

A. sistematizou toda a ciência de sua época. Sua obra variada atingiu todos os ângulos do conhecimento de então, pois era desses espíritos universalistas, que se rareiam na história ante o aumento do conhecimento humano e das sistematizações.

Influiu com sua doutrina na Filosofia, por muitos séculos e ainda perdurará. Aristóteles não admitia a existência das idéias inatas, como Platão. E não explica o conhecimento como uma reminiscência. Assenta o princípio que todo o nosso conhecimento provém das sensa-

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ções. Nada há no entendimento que antes não tenha estado nos sentidos "Nihil est in intellectu quod prius non íuerit in sensu". A alma, para êle, era uma tabula rasa em que nada está escrito: "sicut tabula rasa qua nihil est scriptum".

Não se leve daí a concluir que A. fosse um sensualista a estilo de Condillac e Locke, porque cabe, posteriormente, ao entendimento e à razão ordenarem os conhecimentos, expurgá-los, apreciá-los, pois enquanto os sentidos percebem o individual, cabe ao entendimento o universal. Preocupado com as leis do entendimento, atingiu A. o que até então não se houvera alcançado. Interessou-se pela lógica, transformando-a no órgão principal para todas as ciências.

Estudou o raciocínio, analisando-o, dividindo-o em suas partes, suas formas, sobretudo o silogismo. Segundo A., há em nós duas espécies de conhecimento: o imediato e o mediato. O primeiro refere-se aos princípios ou axiomas, verdades indemonstráveis que o entendimento aceita sem precisar de prova, e o segundo, que é uma decorrência dos primeiros, são obtidos através do raciocínio.

A Lógica formal, como a conhecemos ainda hoje, é uma das grandes obras de Aristóteles.

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ACADEMIA PLATÔNICA

Nos jardins consagrados a Academos, herói ateniense, fundou Platão sua escola. ""Só graças à sua base religiosa pôde a Academia de Platão conservar-se durante cerca de ura milênio, até a época de Justiniano. A mesma forma adotaram a escola de Aristóteles, o "Peripatos"; ramo desprendido da Academia, e, mais tarde, as escolas dos estóicos e dos epicúreos. Platão consagrou, pois, às musas um templo próximo do santuário de Academos, e conferiu, assim, à fundação a necessária base jurídica. No dito templo, colocaram mais tarde, a efígie do próprio fundador, a qual se venerava como herói, juntamente com as Musas.

Celebravam o dia 7 do mês de Thargelion, dia do orto ou epifania de Apoio, como o do nascimento do filósofo. A Academia, à semelhança de todas as escolas filosóficas dos antigos, era considerada não só como "escola", mas como associação dedicada à investigação e ao ensino da ciência, realizando-o coletivamente, dentro de uma estreita comunidade de vida. Não era só o chefe que em cada ocasião exercia o magistério. Está provado que já em vida de Platão, ensinaram na Academia seus discípulos mais graduados. Tal sucedeu, principalmente, com Aristóteles, que pertenceu à Academia desde os dezessete até os trinta e sete anos, e nela não só estabeleceu as bases de suas grandiosas investigações, como, ao que parece, atuou também como mestre" (Paul Natorp).

Entre os outros discípulos merecem distinção: Espeu-sipo (348-339 a. C ) , que sucede a Platão no escolarcado e acentua a tendência pitagorizante do mestre; Xenócrates (339-314 a. C ) , que sucede a Espeusipo, prossegue a fase pitagorizante deste, mas renuncia os números ideais pelos matemáticos, renuncia a existência distinta destes últimos, reduzindo-os aos números ideais como idênticos;

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Polemon (314-270 a. C ) , sucessor de Xenócrates, volve-se particularmente aos problemas éticos. Depois deste, sucede Crates (de Atenas — 3.° século a. C ) , e último esco-larca da antiga Academia. Com Ascesilau, inicia-se a nova Academia, que segue o caminho dos cépticos.

O PREDOMÍNIO DO PROBLEMA ÉTICO

Vimos que, com Sócrates, o problema ético inicia seu domínio no terreno da filosofia grega e os temas, que vamos tratar agora, nos mostrarão e comprovarão essa afirmativa.

O fim supremo é o Bem, que, em Sócrates e Aristóteles, tem valor metafísico. Platão colocou-o no cimo de sua pirâmide de idéias. Como a colocação do Bem supremo está fora da vida, a filosofia se converte numa meditação sobre a morte. Sendo o Bem o fim, Aristóteles reconhecia que êle era compreensível pelo intelecto agente, que poderia alcançá-lo. A essas virtudes, cujo fim era intelectualmente apreendido, Aristóteles chamava de virtudes dianoéticas (de dia, através e noesis, conhecimento).

Após Aristóteles, a filosofia toma outro caminho. Procura o supremo bem para o homem, virtualizando as grandes interrogações e os problemas que haviam inspirado as obras de Platão e de Aristóteles.

Quatro são as escolas desse período: 1) o epicuris-mo, ligado ao atomismo de Demócrito; 2) o estoicismo, ligado ao dinamismo de Heráclito; 3) o cepticismo, ligado ã crítica do conhecimento, iniciada pelos sofistas; 4) o ecletismo, que tem uma tendência conciliadora.

Examinemos, em suas linhas gerais, essas quatro escolas:

O EPICURISMO

Epicuro (341-270 a. C.) afirmava que "a filosofia deve servir somente para alcançar a verdadeira liberdade", a serenidade em que o espírito tem consciência que o domínio sobre si pertence-lhe totalmente. "O essencial para

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a nossa felicidade é a nossa condição íntima, da qual somos donos". Para a conquista dessa felicidade, é necessário um conhecimento verdadeiro e seguro da realidade universal. Dessa forma, a física e a teoria do conheci:

mento (canônica, como a chama Epicuro) são os meios para atingir o fim, que é dado pela ética. A canônica é a teoria do canon do conhecimento. Estabelece a experiência sensível como a fonte única de todo saber e, como critério de verdade, a evidência. Epicuro fundava sua doutrina no atomismo de Demócrito, que já estudamos.

A aceitação do naturalismo permite que nos libertemos do temor dos deuses e do medo da morte. Pregava E. a busca de um prazer estável, e não do prazer em movimento dos cirenaicos. Esse prazer em repouso é a ata-raxia, a ausência de perturbação, e a aponia (a ausência da dor). O prazer espiritual, que sempre está à nossa disposição, pode cobrir e compensar qualquer sofrimento físico, à proporção, sobretudo, quanto mais elevada e pura fôr a contemplação da verdade, que nos permite penetrar mais fundo no infinito e no eterno. É a prudência, a qual é a mãe da felicidade e a mãe da virtude, também.

O ESTOICISMO

Em antagonismo à escola epicúrea, surge a Estóica-s que toma dos cínicos o conceito da filosofia como exercício e estudo da virtude.

Zeno de Cítio, Cleanto de Asos, Crisipo de Soles, Sê-neca, Marco Aurélio, Epitecto são nomes dos mais famosos estóicos.

Aceitavam um materialismo dinâmico, mas o princípio ativo era identificado com o fogo de Heráclito e com o éter de Aristóteles, que invade todas as coisas com sua tensão e seu calor, que é, como Heráclito pensava, o Lo-gos, a razão universal, a razão de todas as coisas. Por isso são também panteístas. Aceitavam uma inexorável necessidade (fatalidade) e, conseqüentemente, uma lei de finalidade (Providência), porque tudo é orientado racionalmente. Assim Deus é a ordem universal, fatal e providen-

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ciai. O mal é necessário para que exista o bem: a injustiça, necessária para que exista justiça. Não há verdade sem a falsidade. A liberdade individual é um momento da fatalidade universal. O fim ideal do indivíduo é a criação e a conservação de uma harmonia de vida, que é conformidade com sua natureza interior, enquanto é conforT midade com a natureza universal. O domínio da razão, que é o Logos universal, deve impedir as perturbações dos impulsos irracionais, as paixões. É a virtude o ideal do sábio, e ela consiste na extirpação das paixões (apatia) e na imperturbabilidade (ataraxia).

Todas as paixões são vícios porque são erros e enfermidades da alma. Assim repelem os impulsos comu-mente condenados, como a ira, o temor, a avidez, a cupidez, etc , como também os julgados louváveis, como a piedade, as aflições por calamidade pública, a compaixão, etc.

Não se pode dizer que os estóicos fossem egoístas, no mau sentido, por se desinteressarem com as calamidades públicas. Mas a sua visão do mundo, leva-os a compreender que um mal particular podia ser um bem no conjunto universal. Além disso, pregavam eles a indiferença, para com o sofrimento próprio, uma atitude tal, que o termo estoicismo alcançou, no vocabulário popular, um sentido de serena superioridade ante o sofrimento. O cristianismo, que sobrevém depois, não é estóico, pois a caridade passa a ser a grande virtude. No entanto, com Zeno, no seu cosmopolitismo, que prega um vínculo universal entre os homens, encontramos um ponto de aproximação com o cristianismo.

O CEPTICISMO

São três as fases do desenvolvimento do cepticismo: 1) escola de Pirro; 2) a Nova Academia com Arcesilau e Carneades; 3) os cépticos posteriores ou neopirrônicos, de Enesidemo até Agripa e Sexto Empírico (II e III séculos d. C ) .

Já examinamos os aspectos temáticos do cepticismo, ao tratarmos dos temas do conhecimento, razão pela qual não os reproduziremos aqui.

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O ECLETISMO

Os ecléticos surgem de todas as escolas, no afã de encontrar um ponto comum em que se possa estabelecer um amplo acordo entre as partes, num desejo prático de união, de conformidade de vistas.

Assim, Panécio e Possidônio, estóicos, Filon e Antíoco, acadêmicos, e alguns peripatéticos, inclinam-se para o ecletismo. O consenso universal passa a ser o critério prático da plausibilidade das doutrinas. Assim, os ecléticos procuravam conciliar todas as doutrinas, seguindo, naturalmente, a tendência da época para encontrar uma unidade em todo o império romano. Não é debalde que uma. figura, como a de Cícero, fosse um dos representantes mais lídimos desse movimento.

PREDOMÍNIO DO PROBLEMA RELIGIOSO

A crítica e a análise feitas ao conhecimento humano, as imperfeições salientadas em todo o saber, só podiam dar lugar à aceitação de uma fé como única garantia de uma certeza.

Essas correntes religiosas, que surgem na filosofia antiga, são os Judeus-alexandrinos, do século II a. C. ao século I d. C ; os Neopitagóricos e os platônicos pitagori-zantes, entre os séculos I a. C. e III d. C , os neoplatôni-cos, politeístas, do século II ao IV d. C , que sustentam uma luta feroz com o Cristianismo.

Vamos examinar essas escolas em suas linhas gerais, demorando-nos, naturalmente, nas figuras mais importantes.

FILON

É com Filon (25 a. C. e 50 d. C.) de origem judaica, que o judaísmo alcança seu ponto mais elevado na especulação filosófica. Os judeus de Alexandria faziam uma interpretação alegórica do Antigo Testamento. Eram influídos pela filosofia grega, sobretudo por Platão e, em parte, pelos estóicos. As investigações de Filon centralizam-se, sobretudo, no exame da transcendência de Deus em relação ao mundo.

As idéias são intermediárias entre o homem e Deus, que é infinito, eterno e invisível, e essas idéias constituem o logos. À proporção que o homem penetra no mundo sensível, desce à matéria, aproxima-se do nada. Há, assim, uma hierarquia de seres: anjos, demônios, mensageiros, que são por sua vez, modelos e essências, que estão subordinados ao modelo perfeito, ao logos. Aproxima-se o homem de Deus à proporção que se afasta da matéria.

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Essa a verdadeira missão do homem, que é uma ascendência pelo reino das idéias, que é o único caminho que permite chegar à contemplação extática de Deus.

OS NEOPITAGÓRICOS E OS PLATÔNICOS PITAGORIZANTES

No período que vai do século I a. C. e ao II d. C, mesclam-se as doutrinas platônicas com as doutrinas do círculo pitagórico.

Entre as figuras mais importantes desse período, salientamos Nigidius Figulus, Apolônio de Tiana, Moderato de Gades.

Há, ainda, Nicômaco de Gerasa, para o qual os números pitagóricos são idéias divinas. O simbolismo da mística pitagórica chega à maturidade e culminação em todos esses representantes do neopitagorismo platonizan-te, que desdobram o Um em diversos conceitos da unidade, e explicam o mundo pela emanação da unidade suprema e contemplação desta unidade sobre si mesma.

O S N E O P L A T Ô N I C O S

PLOTINO

Plotino (204-270 d. C., natural de Licópolis, Egito). Em Roma, Plotino fundou sua escola, na qual professou até o fim da vida.

Teve, como discípulos, além de Porfírio, que recom-pilou sua filosofia, em seis Ennêades, divididas em nove tratados cada uma, Amélio de Etrúria, o médico alexandrino Eustóquio, o poeta Zótico e alguns senadores e pessoas influentes na casa imperial romana.

Estudemos os temas principais da doutrina de Plotino:

a) com P., e também com Proclo, o neoplatonismo empreende uma grande especulação final religiosa. Tudo vem de Deus por graus e tudo volve, por graus, a Êle. A unidade universal se estabelece na continuidade do círculo, que une o término com o princípio.

b) O princípio é Deus. Aceita P. sua transcendência. Deus é incognoscível e inefável para os homens, e coloca-o acima de todas as determinações que possamos conceber do ser, da essência, do pensamento, da vontade, etc. Podemos, de Deus, dizer o que não é, nunca o que é. Para falarmos de Deus, temos que usar nossos termos inferiores e compará-lo ao inferior, chamando-O o Um, Bem, Ato Puro, etc. Com isso não expressamos a Deus, mas a necessidade e a aspiração das coisas inferiores, que só podem subsistir pelo apoio da Unidade, do Bem, do Ato Puro. Deus coloca-se, assim, além de qualquer determinação.

c) É Deus a fonte de todos os seres. Embora não tenha necessidade de movimento e câmbio, emana o descender de uma série de outros seres numa procissão des-

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eendente. A emanação deriva desde a essência de Deus, enquanto êle permanece, em si, no ato de sua essência. Assim, o fogo que permanece, em si, fogo, emana o calor, ou o sol, que, permanecendo sol, em si, emana sua luz em todas as direções. Todas as coisas procedem de Deus, e sem Êle não se manteriam, mas Deus transcende a todas as coisas. É progressiva a descida dos seres. Assim como a luz vai se debilitando e obscurecendo, quanto mais se afasta de sua fonte, assim, afastando-se da fonte da Unidade e da Perfeição os seres vão aumentando em multiplicidade.

Três graus tem esse descer do Um: 1) Intelecto; 2) Alma universal; 3) Mundo corpóreo.

Os dois primeiros formam com o Um a Trindade divina das substâncias ou hipóstases, o terceiro é o último cios entes, fora do mundo inteligível e em contato com a matéria, que não é corporeidade, mas absoluto não-ser, e, por isso, mal absoluto.

d) O Intelecto é filho e Verbo do Um (Pai). O filho é, imagem do pai, porque este é inteligível puro, e o filho é, ao mesmo tempo, inteligível e intelecto, ser e pensamento, objeto e sujeito. Todos os inteligíveis estão reduzidos à unidade e compenetrados nela.

Como unidade, o Intelecto é imagem do Pai; como totalidade, é exemplar da terceira hipóstase divina, Alma do Mundo, no qual a totalidade, embora sem dividir-se em si, se distribui na multiplicidade.

e) O mundo corpóreo, último degrau da descida do ser, está possuído pela alma que não a possui como coisa sua. Todas as coisas de que se compõe o mundo derivam da unidade da Alma, unidade vivente. Da matéria provém a divisão, a discórdia, porque a matéria é o absoluto mal e não-ser, degrau último de todas as coisas, limite final da descida. Mas é, na matéria, que se inicia o retorno, porque o mundo corpóreo é vivente, e o verdadeiro ser do vivente é a alma. Se a alma perde a consciência da unidade universal nos seres individuais, cai no pecado do orgulho da individualidade, convertend'o-se em prisioneira da matéria, que é a negação da unidade, con-denando-se, assim, à série das transmigrações dos corpos. Mas, na expiação do pecado, a alma é purificada. Reconhecendo a vaidade da vida terrena, volve a penetrar em

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si mesma, e sente a exigência íntima da natureza divina. Assim, a passagem do pecado à virtude é a purificação, enquanto liberação da espiritualidade de qualquer sujeição do corpo. Com essa purificação, a alma inicia sua conversão a Deus, que se realiza por três caminhos ascendentes: contemplação da harmonia (música), da beleza espiritual (amor), da virtude inteligível (filosofia).

Mas acima desses três caminhos, há, ainda, outro superior, a suprema conversão, a união com Deus, a ima-nência da alma em Deus, que se processa pelo êxtase. Com esse retorno é fechado o círculo.

PROCLO

Proclo (410-485. Natural de Constantinopla), foi disr cípulo de Olimpiodoro, em Alexandria, e, em Atenas, de Siriano. Seguiu em parte os predecessores da escola ateniense do neoplatonismo, mas foi influído, principalmenT te, pelas doutrinas de Plotino e Jâmblico. Deu à sua doutrina uma precisão lógica e tal sutileza, que foi consagrar do como o maior escolástico do neoplatonismo.

Temas: a) a doutrina do círculo de descida e retôrr no de Plotino foi sistematizada por Proclo, que delineia a dialética de todo o processo de desenvolvimento em sug doutrina da tríada: 1) permanência do ser em si; 2) saíT da do ser de si mesmo; 3) retorno a si mesmo pela conversão. Pela perfeição e superabundância de poder, o ser, permanecendo em si mutável, gera um produto, que lhe é semelhante (quer dizer idêntico e diverso ao mesmo tempo), que permanece e procede ao mesmo tempo, mas aspira ao Bem e pelo Bem retorna à sua causa. Cada re* torno realiza-se através das mesmas causas pelas quais cumpriu a procissão. Os caminhos correspondem-se exa* tamente, em perfeito círculo, que reúne o término com o princípio.

b) O Um contém, assim, potencialmente, todos os seres inferiores, como todos os superiores. Assim, os inferiores são emanações dos superiores, chegando até à singularidade. A estrutura do universo, assim concebi^ da, é imutável. Em todo o platonismo, apesar de sua complicada hierarquia dos seres, há unidade sem tempos ralidade e sem criação.

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A F I L O S O F I A DO C R I S T I A N I S M O

A PATRÍSTICA

Dá-se o nome de patrística à fase da fundamentação e da fixação dos dogmas cristãos. Essa grande obra foi realizada pelos primeiros padres da Igreja, nos primeiros séculos da era cristã. Entre os elementos representantes da patrística, temos os apologistas, como São Justino, Ta-ciano, Santo Hipólito, São Irineu, etc, cuja obra consistiu na defesa do cristianismo dos ataques vindos dos filósofos gregos. Entretanto, não foram indemnes às influências das outras escolas, incorporando muitos dos princípios, que eram expostos nas doutrinas dos combatidos, sempre, naturalmente, coerenciando-as com os princípios cristãos. Na realidade, os primeiros padres fizeram uma obra de ecletismo, aproveitando da filosofia clássica tudo que não desmentisse os princípios do cristianismo e que viesse em seu auxílio, para corroborar os princípios que dominavam a nova doutrina, que surgia para completar o afã de salvação, agora sob um ângulo totalmente novo. O homem era salvo por Deus, que se encarnava em homem (Jesus Cristo), para, pela sua morte e, posteriormente, por sua ressurreição, abrir-lhe o caminho do céu. Surgem, depois, os primeiros teólogos sistemáticos, como São Clemente de Alexandria, Orígenes, São Basílio de Cesa-réia, São Gregório, etc, os quais estabeleceram os dogmas de um modo definitivo ante as heresias e os desvios que sucederam no cristianismo nas primeiras épocas.

A patrística compreende toda a fase da atividade teo-iógico-filosófica e religioso-política (que também se chama patrologia). É difícil estabelecer-se onde termina a patrística e onde começa a escolástica, que a sucede, e que iremos examinar em breve.

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SANTO AGOSTINHO

Santo Agostinho (354-430), nasceu na Numídia (África). Por influência de Santo Ambrósio, adotou o cristianismo. É extraordinária a significação de Santo Agostinho como filósofo e como religioso, pois é a figura humana que sente, primeiro que todos, o grande drama do homem moderno com suas contradições. Por isso é que se encontra, em sua obra e na sua vida, bases tanto do romantismo, como do "existencialismo".

Santo Agostinho busca uma idéia de Deus como incorruptível e imutável. Desta forma, como explica o mal? Responde assim: o mal é criação do homem e não de Deus, pois este é incorruptível. Concedendo ao homem a liberdade, pode este escolher entre aproximar-se de Deus ou Dele afastar-se. O mal é o afastamento de Deus.

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ORIGENS DA ESCOLÁSTICA

Entre a fase da filosofia patrística e a escolástica, dá--se a definitiva queda do império romano e as invasões bárbaras.

Se a patrística esteve em geral preocupada em definir o dogma, a escolástica preocupa-se em explicá-lo, em torná-lo racional.

É comum confundir-se a escolástica com a filosofia medieval. Procede o termo escolástica dos mestres que ensinavam as artes liberais nas escolas monacais e eclesiásticas. O nome de escolástico foi aplicado, depois, aos teólogos e filósofos, que se ocupavam com a fundamentação dos dogmas e que procuravam construir sistemas que estivessem de acordo com os princípios fundamentais da ortodoxia cristã.

Em suma, a escolástica procurava aproveitar da obra dos autores gregos tudo quanto podia conciliar-se racionalmente com a fé cristã, inclusive da obra de Aristóteles e Platão, e dos grandes filósofos árabes.

SCOT ERIÚGENA

Scot Eriúgena, no século IX (810-877, irlandês), desejava construir uma filosofia que fosse a expressão de uma religião verdadeira.

Deus é a natureza criadora e incriada. Dele procedem, como segunda hipóstase, a natureza criadora e criada, as idéias, o inteligível. A isso segue-se a natureza criada e incapaz de criar, representada pelo mundo sensível. Posteriormente, vem a natureza que não foi criada nem tampouco é criadora. Essa natureza é novamente Deus.

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O homem, no início, antes do pecado original, tinha um conhecimento puro de Deus. Sua queda no pecado é uma maior aproximação à matéria, mas sua redenção, efetuada pelo Filho de Deus, permite que retorne a Deus. Esse o grande drama da existência, cujo princípio e fim são idênticos.

SANTO ANSELMO

Santo Anselmo (1033-1109) era natural de Aosta, Itália. É considerado o fundador da Escolástica. Há, em sua filosofia, uma tradição patrística, com grande ascendência agostiniana, platônica e neo-platônica. A orientação característica de sua obra é a prova da existência de Deus. Parte da fé. Credo ut intelligam (creio para compreender) é o seu princípio. Mas a fé deve ser viva, isto é, com dilectio, com amor de Deus, com o querer contemplar a Deus.

O ponto de partida do argumento ontológico é singelamente o seguinte: "Toda idéia tem seu objeto. A idéia do infinito exige a existência do Infinito. Sendo no universo tudo finito, quem daria ao homem a concepção do infinito? Logo, se o cérebro humano concebe o infinito é porque o infinito existe". Também se pode definir o argumento de S.A. assim: "Se o homem pode conceber Deus no intelecto, pode concebê-Lo, também, in re, como realidade. Neste último caso, a idéia de Deus seria maior que a primeira. Se Deus não existe, podemos pensar algo maior que Êle. Há aí a contradição, porque nada se pode pensar maior que Deus. Logo, existindo no entendimento, tem que existir também na realidade."

ABELARDO

Pedro Abelardo (1079-1142), foi homem de vida tre-pidante, cujo amor por Heloísa o imortalizou. Manteve agitadas controvérsias. Foi acusado de heresia por São Bernardo de Clairvaux e, condenado, viu-se forçado a retratar-se. Negava-se Abelardo a aplicar a dialética às

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coisas religiosas, dando preferência sempre ao racionalis-mo, razão pela qual foi por alguns considerado o fundador da escolástica.

Abelardo tornou-se famoso por sua posição adotada na famosa polêmica dos universais, que teve um efeito extraordinário durante a Idade Média. Opunha-se ao realismo de Guilherme de Champeaux e ao nominalismo extremo de Roscelino, propondo o conceptualismo, que já tivemos ocasião de estudar, e que é desenvolvido, depois, por Alberto Magno e Tomás de Aquino. Sustentava que o universal não é o objeto (realismo), nem tampouco a voz (nominalismo), mas sim o discurso, a palavra, desde que significativa, e abranja uma pluralidade de seres singulares. Os nominalistas afirmavam que os universais eram apenas uma voz (palavra falada); os realistas, que eles tinham uma existência real, e os conceptualistas, com Abelardo como seu criador, a palavra com significação, era a realidade.

OS MÍSTICOS

O que caracteriza a mística é a "união" da alma humana com a divindade no caso religioso, com o cosmos em outros casos, como ainda veremos, por meios que se acham acima ou além de toda racionalidade ou de toda especulação.

Esse contato da alma individual com a divindade produz uma iluminação da alma, em virtude de seu des-preendimento de tudo quanto é obscuro e sensível. Na unio mystica, há a participação da alma com Deus, a eliminação tanto do sensível como do racional. A razão é impotente para atingir o inefável, o inominável. Vamos ver que essas idéias místicas vêm do neo-platonismo na obra do Pseudo-Dionísio, como as encontraremos no romantismo filosófico, em parte.

A figura máxima do misticismo, nessa época, é Meis-ter Eckhardt (1260-1327), seguido, depois, por Johannes Tauler, Suso, Ruysbroeck, etc.

OS ÁRABES

A filosofia árabe, em seu momento mais alto, teve sua origem na Síria, mesclada com elementos filosóficos gregos, neoplatônicos e aristotélicos, e permitiu o nascimento do que se chama a escolástica árabe. Foram eles os tradutores de Aristóteles. Entre eles se destacam Al Kin-di, Alfarabi, Algazali e, sobretudo, Averroes e Avicena, cujo pensamento tanto influiu na filosofia ocidental.

AVERROES

Averroes (1126-1198) — Natural de Córdova, discípulo de Avempace (Ibn-Bâdja). Foi o maior dos pensadores árabes ocidentais. Foi juiz em Sevilha e Córdova. Acusado de heresia, foi deportado, falecendo em Marrocos. Não pretendeu Averroes fundar um sistema filosófico. Quis apenas ser um comentador de Aristóteles, a quem professava um culto verdadeiro, e de quem afirmava nada se poderia ajuntar quanto à sua doutrina que fosse digno de atenção. Foi considerando, assim, que A. não quis formular um novo sistema, e seu desejo foi nada acrescentar nem retirar ao que Aristóteles já havia estabelecido. Mas o que o caracteriza é, precisamente, à semelhança dos outros comentadores neoplatônicos, ver as doutrinas de Aristóteles por um prisma diferente. Como na doutrina de Aristóteles existem muitos pontos obscuros, Averroes quis esclarecê-los, e nesse procedimento criou novas doutrinas, que lhe pertencem de pleno direito e que possuem certa originalidade. É difícil sintetizar a vasta obra de A., mas tentaremos fixar, aqui, os principais temas, interessando-nos em desfazer muitas dúvidas freqüentes em tratados de filosofias e dicionários:

a) o caráter geral da doutrina de A. é o mesmo que podemos assinalar nas filosofias árabes. Em A., a dou-

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trina de Aristóteles está modificada por certas teorias neoplatônicas , como a inclusão da inteligência das esferas, colocada entre o primeiro motor e o mundo, e a admissão de uma emanação universal, pela qual o movimento se comunica de um a outro a todas as partes do universo. Era intuito dos filósofos árabes fazer desaparecer o dualismo de Aristóteles e encher o abismo entre o que separa a energia pura, Deus, da matéria primária;

b) a matéria, para A., é eterna, e criada de todo sempre, não tendo tido princípio. É não apenas a faculdade de todo devir pela forma que advém do exterior, mas a forma está virtualmente na matéria. Se fosse produzida pela causa primeira seria criada do nada, o que A. não admite;

c) o laço que liga o homem a Deus permite àquele participar, até certo ponto, da ciência superior.

Assim, para A., é pela ciência e não pela contemplação que nos aproximamos do ser superior. Neste ponto, ultrapassa a doutrina de seu mestre Ibn-Bâdja, pois dá um valor secundário às obras piedosas e à própria moral;

d) quanto à alma, A. recorda a divisão das faculdades e das suas relações mútuas. Argumenta que deve existir um laço entre o intelecto separado e o intelecto humano, como entre a forma e o sujeito, e sustenta que o intelecto ativo deve perceber o intelecto ativo universal. O intelecto ativo humano é individual e mortal, integrando-se, no fim, no intelecto universal, pela perfeição;

e) a faculdade de atingir esse último grau de perfeição; isto é, identificar-se o intelecto individual com o intelecto ativo universal, não é idêntica a todos os homens. Depende de três coisas: 1) da força primitiva do intelecto material, que por seu turno dependerá da força da imaginação; 2) da perfeição do intelecto adquirido, que exige esforços especulativos; 3) da infusão mais ou menos pronta da forma destinada a transformar o intelecto adquirido. É o caminho da especulação e do estudo e a renúncia aos desejos que aperfeiçoam o intelecto. Aquele que não procurar nesta vida seguir o caminho indicado, após a morte recairá no nada ou nos tormentos eternos;

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f) o intelecto individual morre com o homem; eterno é somente o intelecto universal. Este não é Deus, mas uma emanação de Deus;

g) a doutrina de A. influiu vivamente na formação da escolástica aristotélica do século XII, apesar de fortemente combatida, quando foi condenada, em 1240, pela Universidade de Paris. Teve uma seqüência no chamado averroismo latino, representado por Siger de Brabante e João de Jardum, que defendiam a interpretação averrois-ta de Aristóteles contra a tomista, de Tomás de Aquino. A corrente averroísta prosseguiu através dos séculos XIV, XV, XVI e inclusive XVII, especialmente em Pádua. Ro-ger Bacon, Duns Scot, John Baconthorpe, e muitos outros foram influídos pela sua doutrina.

Além de Averroes, outras grandes figuras da filosofia árabe foram Moses Ben Maimon (Maimonides), Avice-bron e Avicena.

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PERÍODO DE FLUXO DA ESCOLASTICA

SÃO BOA VENTURA

São Boaventura (1221-1274) é da Ordem dos Francis-canos. Quando mais acesa estava a luta entre os francis-canos e dominicanos, expressada de um modo geral pela preferência pela vida mística dos primeiros e pela especulativa dos segundos, São Boaventura, chamado o Doc-tor Seraphicus, tentou uma conciliação. Sustentava que a filosofia e a razão não se encontram na base da teologia nem na culminação do conhecimento da divindade, mas sim no caminho que conduz a alma a Deus. É aí, somente, que a "especulação filosófica tem sentido como uma das "etapas" que se intercalam entre o conhecimento as-severativo de Deus e o Saber obtido pela contemplação mística".

Da fé passa-se à razão, mas desta passa-se à contemplação.

Desta forma, conhecer Deus não é, como pensava São Tomás, chegar ao limite da razão e do mistério, mas, sim, chegar à divindade por um ato estático, que parte do sensível, mas que o transcende e ultrapassa, pois o sensível é apenas um sinal, e não o lugar de Deus.

ALBERTO O GRANDE

Alberto o Grande, doctor universalis (1206-1280), também conhecido por Alberto Magno, admitia uma limitação da razão, mas essa limitação não era uma negação, mas apenas o meio de lhe prestar maior confiança. Ao delimitá-la, estabelecia todo o seu poder dentro desse limite. Dedicou-se a estudos científicos, cuja obra é grandiosa, e foi mestre de Tomás de Aquino.

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PERÍODO DE FLUXO DA ESCOLÁSTICA

SÃO BOA VENTURA

São Boaventura (1221-1274) é da Ordem dos Francis-canos. Quando mais acesa estava a luta entre os francis-canos e dominicanos, expressada de um modo geral pela preferência pela vida mística dos primeiros e pela especulativa dos segundos, São Boaventura, chamado o Doc-tor Seraphicus, tentou uma conciliação. Sustentava que a filosofia e a razão não se encontram na base da teologia nem na culminação do conhecimento da divindade, mas sim no caminho que conduz a alma a Deus. É aí, somente, que a "especulação filosófica tem sentido como uma das "etapas" que se intercalam entre o conhecimento as-severativo de Deus e o Saber obtido pela contemplação mística".

Da fé passa-se à razão, mas desta passa-se à contemplação.

Desta forma, conhecer Deus não é, como pensava São Tomás, chegar ao limite da razão e do mistério, mas, sim, chegar à divindade por um ato estático, que parte do sensível, mas que o transcende e ultrapassa, pois o sensível é apenas um sinal, e não o lugar de Deus.

ALBERTO O GRANDE

Alberto o Grande, doctor universalis (1206-1280), também conhecido por Alberto Magno, admitia uma limitação da razão, mas essa limitação não era uma negação, mas apenas o meio de lhe prestar maior confiança. Ao delimitá-la, estabelecia todo o seu poder dentro desse limite. Dedicou-se a estudos científicos, cuja obra é grandiosa, e foi mestre de Tomás de Aquino.

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TOMAS DE AQUINO

Tomás de Aquino (1225-1274). O trabalho de aristo-telização do cristianismo tem, em Tomás de Aquino, o seu ponto culminante, o qual procede a escolha e sistematiza-ção dos materiais até então conhecidos e estudados por Alberto Magno, seu mestre, e pelos comentaristas árabes e judeus da obra aristotélica. Através de uma série de comentários e de sumas, realiza êle essa obra ingente, que é um dos momentos mais elevados da filosofia. A preocupação máxima de Tomás de Aquino são as relações entre a fé e a razão. Compreendeu que o terreno da Filosofia e da Teologia são terrenos distintos, e que uma não podia ser absorvida pela outra. Se a razão se move dentro do terreno da filosofia, a unidade da verdade exige que nada do que a razão pretende saber seja contrário ao dogma estabelecido. Salvo quando a razão é usada de modo incorreto, pode ela afastar-se do dogma. Por isso, estabelece os limites da razão. E daí afirmar que a razão é apenas uma criada da fé.

Para Tomás de Aquino, é a questão de Deus a culminação mais alta da filosofia e da fé, e acredita que, por raciocínios, pode demonstrar a existência de Deus, o que empreende.

Deus é Ato Puro. Todos os outros seres não são perfeitos, porque não são atos puros.

RAMON LHULL E ROGER BACON

Outras grandes figuras desse período foram Ramon Lhull ou Lullio, espanhol (1235-1315), que procurou também, pela razão, fundamentar a fé cristã, em seu afã de converter os infiéis, e Roger Bacon (1214-1294). A obra deste, que não se deve confundir com a de Francis Bacon, representa, dentro da escolástica, um novo caminho, que coincide com a exigência moderna da experiência no tratamento da natureza. A experiência não nega a fé; ao contrário, afirma-a. Daí sobrevém a explicação matemática dos fenômenos da natureza, o único caminho capaz

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PERÍODO DE FLUXO DA ESCOLASTICA

SÃO BOA VENTURA

São Boaventura (1221-1274) é da Ordem dos Francis-canos. Quando mais acesa estava a luta entre os francis-canos e dominicanos, expressada de um modo geral pela preferência pela vida mística dos primeiros e pela especulativa dos segundos, São Boaventura, chamado o Doc-tor Seraphicus, tentou uma conciliação. Sustentava que a filosofia e a razão não se encontram na base da teologia nem na culminação do conhecimento da divindade, mas sim no caminho que conduz a alma a Deus. É aí, somente, que a "especulação filosófica tem sentido como uma das "etapas" que se intercalam entre o conhecimento as-severativo de Deus e o Saber obtido pela contemplação mística".

Da fé passa-se à razão, mas desta passa-se à contemplação.

Desta forma, conhecer Deus não é, como pensava São Tomás, chegar ao limite da razão e do mistério, mas, Bim, chegar à divindade por um ato estático, que parte do sensível, mas que o transcende e ultrapassa, pois o sensível é apenas um sinal, e não o lugar de Deus.

ALBERTO O GRANDE

Alberto o Grande, doctor universalis (1206-1280), também conhecido por Alberto Magno, admitia uma limitação da razão, mas essa limitação não era uma negação, mas apenas o meio de lhe prestar maior confiança. Ao delimitá-la, estabelecia todo o seu poder dentro desse limite. Dedicou-se a estudos científicos, cuja obra é grandiosa, e foi mestre de Tomás de Aquino.

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TOMAS DE AQUINO

Tomás de Aqukio (1225-1274). O trabalho de aristo-telização do cristianismo tem, em Tomás de Aquino, o seu ponto culminante, o qual procede a escolha e sistematiza-ção dos materiais até então conhecidos e estudados por Alberto Magno, seu mestre, e pelos comentaristas árabes e judeus da obra aristotélica. Através de uma série de comentários e de sumas, realiza êle essa obra ingente, que é um dos momentos mais elevados da filosofia. A preocupação máxima de Tomás de Aquino são as relações entre a fé e a razão. Compreendeu que o terreno da Filosofia e da Teologia são terrenos distintos, e que uma não podia ser absorvida pela outra. Se a razão se move dentro do terreno da filosofia, a unidade da verdade exige que nada do que a razão pretende saber seja contrário ao dogma estabelecido. Salvo quando a razão é usada de modo incorreto, pode ela afastar-se do dogma. Por isso, estabelece os limites da razão. E daí afirmar que a razão é apenas uma criada da fé.

Para Tomás de Aquino, é a questão de Deus a culminação mais alta da filosofia e da fé, e acredita que, por raciocínios, pode demonstrar a existência de Deus, o que empreende.

Deus é Ato Puro. Todos os outros seres não são perfeitos, porque não são atos puros.

RAMON LHULL E ROGER BACON

Outras grandes figuras desse período foram Ramon Lhull ou Lullio, espanhol (1235-1315), que procurou também, pela razão, fundamentar a fé cristã, em seu afã de converter os infiéis, e Roger Bacon (1214-1294). A obra deste, que não se deve confundir com a de Francis Bacon, representa, dentro da escolástica, um novo caminho, que coincide com a exigência moderna da experiência no tratamento da natureza. A experiência não nega a fé; ao contrário, afirma-a. Daí sobrevém a explicação matemática dos fenômenos da natureza, o único caminho capaz

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de explicá-la. Com Bacon, em linhas gerais, liberta-se a ciência do campo do racionalismo aristotélico que julgava que, por meios exclusivamente racionais, poder-se-ia tratar dos magnos problemas da natureza.

DUNS SCOT

Duns Scot. (1270-1308) foi chamado de doctor subti-lis, pela sua acuidade em estabelecer distinções. Foi influído pela obra de Roger Bacon. Considerava que os argumentos sobre a existência de Deus, até então apresentados, eram apenas prováveis, e não davam uma certeza cabal, razão pela qual apresentou outros, de um valor, sem dúvida, notável, sobretudo pela sutileza que apresentam.

Deus pode ser inteligível como infinito, não pode ser racionalizado. Deus está situado acima da verdade e do bem, porque é infinito, e é toda verdade e todo o bem. Deus não se subordina à inteligibilidade, mas sim esta a Deus.

OCKAM

Para Guilherme de Ockam (1300-1347), chamado doctor invencibilis, a ciência se converte de ciência do geral para ciência do particular, pois o particular é o único que é capaz de ser objeto de um saber intuitivo imediato.

É um dos construtores dos métodos genuinamente científicos e pode ser considerado, ao lado de Roger Bacon e Santo Alberto, como precursor da ciência moderna.

O RENASCIMENTO — EXALTAÇÃO DO HOMEM

A filosofia medieval tinha sobretudo uma preocupação teológica em suas investigações. Deus era o objeto de todas as suas buscas. O mundo era apenas a linguagem com que Deus falava aos homens.

Em fins do século XIV, atravessa a Europa uma fase de ressurreição da antigüidade clássica. Embora, na realidade, não se desse um renascimento, como muitos julgam, o simples fato de os artistas, sábios, estudiosos dessa época terem procurado, na arte e na filosofia grega; a luz, a clareza, que julgavam faltar ao ambiente obscuro das idéias dominantes na Idade Média, permitiu que o homem atingisse uma nova fase da sua cultura, cujos frutos nos relata a história.

No Renascimento, e aqui nos interessa o seu aspecto filosófico, há uma acentuação exaltada da fé religiosa, que, na mística, atinge um grau bastante elevado. Ao lado dessa exaltação de fé, vemos um crescente aumento do cepticismo, uma crença segura no conhecimento e do domínio das forças da natureza, ao lado de um desenvolvimento da magia. A pressão exercida acentuadamente pelos governos autocratas, desperta, então, um desejo de liberdade que se exalta, ao mesmo tempo que a intolerância aumenta suas exigências. O Renascimento é sobretudo considerado um movimento de descobrimento do homem, ao lado das grandes descobertas da Terra, que se desenvolvem nessa época. O homem, enquanto homem, é o grande tema. E sempre que o homem, enquanto homem, é colocado como tema principal, o tema da liberdade assume as mais altas proporções.

De todas essas tendências e opiniões que surgem no Renascimento, era natural que a filosofia sofresse o seu influxo. O Renascimento é uma época de transição entre

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a era medieval e a moderna, e como época de transição tinha, naturalmente, como a nossa, de sofrer de tantas contradições, de tantas idéias diversas, em que as filosofias, que surgem, encontram profundos pontos de contato, o que torna difícil precisar os de diferenciação entre elas.

Muitas são as tendências que se manifestam nessa época e iremos estudar, através dos seus tipos representativos, as mais importantes.

É muito comum falar-se do Humanismo, pois este foi o nome que se deu à tendência que se manifestou no Renascimento, e que produziu o amor e o culto da Antigüidade clássica, e que valorizou tanto o espírito humano. Chamavam-se humanistas, durante o Renascimento, aqueles sábios e estudiosos que, embora não voltados para a Antigüidade clássica, preocupavam-se por uma ampla reforma do homem e pela instalação de uma ampla reforma do homem e pela instalação de uma nova escala de valores, que desse ao homem toda a dignidade que merecia. Vemos hoje, depois de duas guerras terríveis, que novamente o tema humanista ressurge sob diversas formas, como o humanismo cristão, o humanismo libertário, o humanismo socialista, e o neo-humanismo liberal. Mas deve destacar-se, porém, as diferenças que os separam do humanismo da Idade Média.

Enquanto aquele era um humanismo que procurava valorizar o homem como abstração, o homem como humanidade, como generalidade, o novo humanismo quer valorizar o homem como pessoa, como personalicade, como portador de um espírito.

PICO DELLA MIRANDOLA

A figura significativa dessa época porque propriamente é quem sente essa valoração do homem, antes de qualquer outro, é Pico delia Mirandola (1463-1494), uma estranha figura de grande talento, que viveu apenas 31 anos, uma vida tempestuosa e cheia de relâmpagos geniais, mas que sofre de um silêncio quase criminoso da maioria dos autores de filosofia. Para Pico delia Mirandola, a criatura humana é divina, porque participa da divindade,

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e é natureza, porque participa da natureza. Ama a natureza e é amada por Deus. Enquanto todos os outros seres são determinados, vivem e desenvolvem-se dentro de suas rígidas leis naturais, o homem goza da liberdade, que lhe permite criar, evoluir, transformar-se, avançar até os pontos mais elevados e cair, também, aos degraus mais vis. Essa criatura é digna de respeito e de adoração, dizia êle. O que, na sua exaltação juvenil, viveu Pico delia Mi-íandola, que procurou unir todas as crenças, encontrar a verdade que havia em cada uma, que disputavam mais palavras do que doutrinas, é bem o sentido do Humanismo, que vai prevalecer no Renascimento, e que, hoje, retorna a ter, mais uma vez, uma posição de relevo, apesar de todas as doutrinas, crenças e teorias sociais que desejam reduzir o homem a um ser apenas utilizável, a um mero instrumento de trabalho.

Outra figura gigantesca, que surge no Renascimento, é a de

NICOLAU DE CUSA

Nicolau de Cusa (1401-1464) foi bispo de Brixem. Entre as tendências tradicionais, o platonismo e o neo-platonismo e as influências escolásticas e as novas idéias renascentistas, Nicolau de Cusa participa de todas, e atravessa esse momento de transição, e penetra no pensamento moderno. É bem um espírito moderno.

Deus é, para êle, a coincidentia oppositorum, a unidade dos contrários, onde está a verdade, a superação de toda contradição.

Deus é a possibilidade de todas as coisas e também a sua realidade. É o poder-ser (possest), que chegou a ser de um modo real e absoluto. Para a alma atingir o saber supremo, que é o saber da unidade suprema, precisa ausentar o espírito de toda determinação positiva, renunciar a toda afirmação. Esse estado de espírito, em que a alma se desprende do conhecimento dos contrários, é a verdadeira docta ignorantia, a douta ignorância, que é a

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verdadeira sabedoria, a ignorância que se faz consciente da importância de todo saber racional.

Na mesma época em que Erasmo de Rotterdam afirmava a liberdade da vontade, Martin Lutero escrevia páginas violentas contra a liberdade. "O homem não é nada e Deus é tudo". Nem a vontade nem a razão humana valem ante a divina, que é inatingível em sua realidade.

A Reforma se processa na Europa com o movimento chamado posteriormente de protestante. Mas a Igreja inicia a sua Reforma católica, a Contra Reforma, que, no Concilio de Trento (1545-63), termina por aceitar muitas das reformas renovadoras, mas todas dentro do espírito católico.

Nessa época, o misticismo conhece um dos seus momentos mais elevados, com as figuras de Jacob Boehme (1575-1624), San Juan de Ia Cruz e Santa Tereza.

Cresce, nessa época, a preocupação pelas coisas da natureza, pela ciência, pela técnica. São figuras de destaque Leonardo da Vinci, Luca Facioli e Telésio de Cosenza. Telésio (Bernardino) preocupa-se mais pelo naturalismo, defende o empirismo na física, não só para o conhecimento, mas também para o domínio das forças da natureza. Tem Telésio uma visão dualística da natureza, o calor e o frio, a contração e a expressão, o movimento e o repouso. Mas outra grande figura dessa época, é inegavelmente,

GIORDANO BRUNO

Giordano Bruno (1548-1600), que sofreu imensa influência de Nicolau de Cusa, defendeu a doutrina da ínfi-nitude do universo, mas um universo que se transforma continuamente, que passa do inferior ao superior, e deste para aquele, porque é vida inesgotável. Deus está no mundo e fora do mundo. "É êle causa imanente do mundo e também transcendente. Essa contradição, como no caso de Nicolau de Cusa, é apenas aparente para a razão, porque Deus é a coincidência dos opostos.

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O Universo está penetrado de vida, e é êle mesmo vida. O que rege essa vida é a própria vida, que lhe é imanente, Deus.

Deus está presente em todas as coisas. Deus é infinita potência e infinito ato. A potência infinita coincide com o ato infinito.

CAMPANELLA

Para Tomaso Campanella (1568-1639), pelo conhecimento sensível, o homem, como sujeito, se identifica com o mundo externo. A alma conhece a si mesma, e fundada nesse saber pode atingir a Deus, porque as categorias da sabedoria, do amor e do poder de Deus, projetam-se em todas as coisas.

GALILEU

Galileu Galilei (1564-1642), cuja vida acidentada tornou-se lendária, preocupou-se pelas investigações naturais. São dele essas palavras: "O livro da natureza está escrito em língua matemática e suas letras são triângulos, círculos e outras figuras geométricas, de modo que, sem elas, não se pode entender uma única palavra".

Assim, para Galileu, é a quantidade abstrata a base de todos os fenômenos, a relação numérica. É importante o seu pensamento, porque êle veio estabelecer a imagem filosófica que servirá para Descartes e, em geral, também para o racionalismo e o idealismo modernos.

Reduzindo os fenômenos ao quantitativo, aceita, como base deles, o mensurável e o numerável. Essa é a orientação que predominará até nossos dias na física, com influência na própria filosofia.

SUAREZ

Francisco Suarez (1548-1617), o "doctor exímio", é o representante mais importante da escolástica no Renascimento. Entretanto, Suarez tem idéias próprias. Deus não

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é inteligível pela investigação metafísica, que dele não nos pode dar um conhecimento. O que nos conduz a Deus são os efeitos de Deus, que o demonstram. O que é interessante de notar em Suarez é a sua concepção do individual. Não há na natureza o absolutamente universal, sem o individual. Por isso, não se pode falar do universal univocamente, mas devemos referir-nos a êle como algo que está potencialmente nas coisas e, em ato, no intelecto.

Desta forma, a verdadeira realidade da coisa é o composto. Reconhece, assim, Suarez uma complementaridade entre o universal e o individual.

Propondo a doutrina de Tomás de Aquino e de Duns Scot, realiza uma obra de vulto, ocupando, assim, a primeira plana, da escolástica, ao lado daqueles, e influiu na obra dos comentadores de Coimbra e Salamanca, onde floresceram gigantes como Fonseca, os Góis, Furtado de Mendonça, Benedito Pereira, Soto, Vasquez, Bahez, Gon-zalez, Toledo, etc.

A FILOSOFIA MODERNA — O ILUMINISMO

(ILUSTRAÇÃO)

O Iluminismo, ou Ilustração, ou "época das luzes" (Aufklaerung) são os nomes que geralmente se dão ao período compreendido ao século XVII (parte) e XVIII, e que tem uma grande influência na Filosofia. Antes de penetrarmos num rápido estudo do Iluminismo, precisamos estudar o movimento empirista e o racionalista que o precederam, e que serviram de origem às grandes mutações por que vai passar a filosofia.

Influído pelo racionalismo e pelo desenvolvimento da ciência no século XVII, a Ilustração é uma marcha em direção à natureza, e para robustecer o domínio que o homem exerce sobre ela, que, desde então, aumentará constantemente. Por isso, iniciemos com o estudo de uma das personalidades mais elevadas da filosofia, cujas doutrinas serviram de fundamento à Ilustração. Esse homem foi

FRANCIS BACON

Francis Bacon (1561-1626) era natural de Londres, obteve o título de Lord de Verulam, chanceler do Parlamento inglês. Acusado de suborno, foi condenado à prisão, sendo agraciado, depois, por seu renome de valor. Em filosofia é mais conhecido por Bacon de Verulam.

Além de sua obra jurídica, política, econômica e social, deve-se ressaltar sua obra filosófica, que teve influência ponderável no desenvolvimento da filosofia. Bacon procurou mostrar o erro dos métodos racionalistas antigos e a necessidade de interrogar a experiência, o que aliás, diga-se de passagem, era aconselhado pelos escolas-

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ticos maiores. Combateu o método abstrato dos aristo-télicos, (que desvirtuavam o pensamento de seu mestre), vindo sim, historicamente, corresponder à necessidade da Europa de então, já em plena marcha para o experimental e o científico destes últimos séculos. Não foi propriamente um sistemático. Deu ao conhecimento humano um método, em seu livro Novum Organum, uma das obras maiores da humanidade. Contemporâneo de Descartes, Galileu, Pascal, contribuiu para o desenvolvimento da ciência prática. Sua intenção era edificar um movimento à ciência prática, uma "Instauratio Magna", e as obras deixadas não passam de capítulos desse grande empreendimento, que a morte impediu.

Lutou por dissipar a confusão então existente entre Ciência e Filosofia, através de seu tratado "Progresso das Ciências".

Nessa obra, estabeleceu novo método de substituição da hipótese pela observação, cujo método é exposto em "Novum organum", e em sua "De dignitatis et arguméntis Scientiarum".

Preconizava a observação como seqüência da finalidade que emprestava à ciência: isto é, utilidade prática, domínio do homem sobre o universo. Expunha seu método que consistia primeiramente na observação, depois na indução, e estabeleceu regras do método experimental e indutivo, em suas categorias de presença, ausência e grau.

É sua doutrina um método positivista de conhecer, o qual se opõe à predominância dos ídolos em nosso entendimento.

Essa doutrina influiu no empirismo inglês, tendo Bacon influído no método experimental moderno.

Para realizar o método experimental e para que obtenha bom êxito, é necessário libertar-se dos idola (erros do espírito), que são de quatro espécies: idola tribu, inerente ao gênero humano, que consistem em procurar ver nas coisas uma ordem, humanizando-a, atendendo ao que nos é favorável; idola epecus (ídolos da caverna), que procedem das disposições individuais, preconceitos adquiridos pela educação, costumes e pela leitura; idola fori, os pro-

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porcionados pelas confusões da linguagem, das palavras equívocas, confusas, que não correspondem aos objetos reais e idola theatri, os ídolos provenientes do prestígio, de renome, entre os quais Bacon cita o prestígio de Platão e Aristóteles, como os mais perigosos.

HOBBES

Thomas Hobbes (1588-1679) teve oportunidade de manter contato, através de suas viagens, com Galileu, Descartes, Gassendi.

A doutrina de Hobbes é classificada de empirista, no-minalista, racionalista e materialista. Fundava-se na sensação como base do conhecimento. Sem ela, era impossível o conhecimento. Só a sensação permite a percepção. A verdadeira ciência, para êle, funda-se no método matemático. A linguagem deve ater-se rigorosamente ao pensamento. Pensar é "calcular" com palavras, assim a Aritmética calcula com números. O materialismo de Hobbes revela-se na sua noção da corporalidade, que é regida por leis rigorosamente causais, às quais também está submetido o espírito.

As idéias de Hobbes sobre o Estado deram-lhe um grande renome. Afirma Hobbes que o homem é dominado pelo instinto de conservação.

Por isso, em "estado natural", o homem é "um lobo para o homem" (homo homini lúpus). Esse instinto de conservação determina uma luta de todos contra todos (bellum emnium contra omnes), que se dirige à destruição de tudo e de cada um. Por isso, impõe-se uma limitação ao instinto de conservação, isto é, aos seus direitos, para que se institua uma paz social. Daí nasce o contrato de paz. Mas, para que esse contrato esteja garantido, para que não o violem, é necessário o soberano que, ao concentrar em suas mãos o poder e a razão, permite que se realize o ideal desejado. A democracia, julga Hobbes, não assegura essa paz, porque as assembléias são movidas pelos instintos e interesses particulares. Desta forma, propõe a monarquia absoluta.

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O Estado não é um inimigo dos indivíduos, mas ao contrário, um defensor deles, porque defende a possibilidade da convivência dos impulsos contrários. Em Levia-than, sua obra famosa, defende a idéia desse Estado. Como propunha a submissão da Igreja ao Estado, foi Hob-bes tenazmente combatido pelo clero, que classificou sua doutrina de ateia. As idéias de Hobbes influíram muito nas concepções estatistas do século XVIII e no século XIX, até os nossos dias.

Toda a argumentação de Hobbes parte da premissa de que o homem, em "estado natural", é um inimigo do homem. No entanto, Kropotkine, que representa um pensamento totalmente oposto ao de Hobbes, mostra, em seu livro "Apoio Mútuo", que o homem, como os animais superiores, apóia-se mutuamente, que há uma ordem social natural.

É essa ordem social natural que Kropotkine pretende estabelecer na sociedade, retirando naturalmente dela tudo quanto impede que desabroche, e que são, precisamente os interesses criados.

OS RACIONALISTAS

Para esclarecimento do que é o racionalismo, convém dizer que se deve distingui-lo do simples uso da razão. Tanto o racionalismo como o empirismo usam a razão. Mas enquanto o primeiro, ao exaltá-la, admite que seja um meio de conhecimento da coisa-em-si, o empirismo, que dela usa e abusa até, limita-a ao conhecimento empírico apenas. Estabelecida essa distinção, podemos então examinar o seu maior representante:

DESCARTES

A filosofia de René Descartes (1596-1650), conhecido também por Cartésio, é um ponto de maturidade da filosofia moderna.

Desejava encontrar um método que não fosse o aris-totélico, e que lhe permitisse um caminho para novos descobrimentos.

A matemática influiu decisivamente no método carte-siano. Para isso desejava partir de um princípio incon-dicionado, que lhe desse o ponto de apoio. A "dúvida metódica", iniciada por êle, leva-o à afirmação do "Penso, logo existo".

Quatro regras estabeleceu Descartes para o seu método: 1) "não admitir como verdadeira, coisa alguma que não se saiba com evidência que o é"; 2) dividir cada dificuldade em quantas partes seja possível e em quantas requeira sua melhor solução; 3) conduzir ordenadamente os pensamentos, começando pelos objetos mais simples e fáceis de conhecer, para ascender, gradualmente, aos mais compostos; 4) fazer uma recontagem tão integral e revisões tão gerais, que se chegue a estar certo de não omitir nada".

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Essas quatro regras são o resumo do método carte-siano.

Por meio da dúvida metódica, chega ao "cogito, ergo sum". Mas o cogito, ao evidenciar a existência de quem pensa, permite estabelecer o seguinte raciocínio: "Se eu existo, sei que sou imperfeito. Mas a idéia de imperfeito implica a de perfeito, logo deve existir um ser perfeito, e esse ser é Deus".

Mas, assinala Descartes que, ao conhecer-se intuitivamente como ser, reconhece que seu corpo é distinto do seu pensamento. Surge, então, a distinção entre a substância pensante e a extensa.

A alma, como pensamento, pode ser pensada sem extensão, porque a extensão não lhe é essencial, enquanto o corpo tem, como essência, a extensão. Esse dualismo de Descartes funda as grandes controvérsias da filosofia desde então. Dessa forma, estabelece que a substância extensa é geométrica. Reduz, assim, a física à geometria, maternatiza a existência, reduzindo-a ao espaço. Deste modo, os modos da extensão são a posição, a figura e o movimento.

Reduz toda qualidade à quantidade, e o próprio movimento fica reduzido a uma sucessão de imobilidades, uma sucessão de pontos.

Os modos da substância pensante são a sensação, a paixão e a vontade.

MALEBRANCHE

Nicolau Malebranche (1638-1715) influído pela obra de Descartes, discordou deste quanto à possibilidade do conhecimento certo da substancialidade do eu pensante. O conhecimento apenas pode ater-se à substância extensa e através das suas modalidades pode conhecer-se, parcialmente, as modalidades que se referem à alma. Desta forma, toda atividade da alma se acha relacionada com os fenômenos corporais e sensíveis.

O corpo, como extensão, não tem capacidade de modificar-se por si mesmo. Deus é a única causa eficiente

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das modificações do corpo, dos movimentos deste, como das modificações que se processam na alma. Assim, Deus contém em sua essência, todas as finitudes, e também todas as infinitudes particulares.

PASCAL

Blaise Pascal (1623-1662) prossegue usando, em sua obra filosófica, o espírito de clareza de Descartes, o "espírito geométrico". Reconhece que as verdades matemáticas não podem ser averiguadas e conhecidas pelos mesmos meios que as verdades morais e religiosas.

Daí distinguir "1'esprit de finesse" de 'Tesprit d'ordre", que é a base de toda a sua doutrina. A ciência é impotente para alcançar a religião, na qual a razão é substituída pelo amor.

A ciência é impotente ante o inexplicável. A existência humana é contradição. O homem é "depositário do verdadeiro e cloaca da incerteza e do erro, glória e desperdício do universo". Aceitando o princípio da graça agos-tiniana, a verdade da religião é dada pela graça divina, a razão é impotente para alcançá-la.

Para crer em Deus é preciso já aceitá-Lo, amá-Lo. Ante a verdade da religião e a dúvida propõe Pascal a aposta (pari) pela crença.

Acreditar na verdade da religião, se houver o céu, é ganhá-lo, é ganhar o infinito. Se não houver, perdemos apenas o finito. Qual o jogador que não arriscaria o pouco que tem pelo infinito? Poder-se-ia perguntar a Pascal como o fazem alguns existencialistas, se realmente podemos arriscar a perder o que temos, embora sendo pouco, como também se realmente queremos apostar.

Separa assim Pascal a fé da ciência. Esta pode ser atingida pela investigação e pelo conhecimento, geomètri-camente organizado, mas o terreno da fé só "Tesprit de finesse", a intuição, poderia penetrar.

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SPINOZA

Benedictus Spinoza (1632-1677) procura, através da filosofia, o bem supremo, que é Deus. Para isso, usa o método matemático de Descartes, e pretende raciocinar a "more geométrico". Deus é substância infinita, entendendo por substância "o que é em si mesmo e por si mesmo se concebe, isto é, aquilo cujo conceito não necessita do conceito de outra coisa para ser formado". Deus é, assim, a causa de si mesmo, e sua essência implica a sua existência. Não há para Spinoza duas substâncias, a pensante e a extensa, mas tanto a substância pensante como a extensa são atributos de Deus. Deus é Natureza (Deus sive Natura). São esses dois atributos o pensamento e a extensão, os únicos que são compreendidos pelo homem de um modo claro e distinto. Por isso se chamou a doutrina de Spinoza de panteísmo (pan, em grego, tudo), o que significa doutrina que afirma que Deus é tudo ou tudo é Deus.

LEIBNITZ

Muitos aspectos da filosofia de Gottfried Wilhelm Leibnitz (1648-1716) já foram estudados por nós. Aceitava Leibnitz que a natureza não dá saltos. Um estado passa ao outro subseqüente, por meio de uma série infinita de intermediários. Há, assim, uma perfeita continuidade na natureza. E essa continuidade só poderia ser expressada através de uma análise do infinito. Opõe-se Leibnitz à física cartesiana, sobretudo à concepção de que o corpo seja apenas extensão. O mecanismo de Descartes é por êle substituído por um dinamismo, que o seu conceito novo de força iria oferecer.

O universo é harmônico, e foi preestabelecido assim por Deus (harmonia preestabelecida). Tudo quanto sucede acontece por uma disposição já previamente determinada pelo Criador.

A FILOSOFIA DO EMPIRISMO

LOCKE

John Locke (1632-1704) em sua obra "Um ensaio sobre o entendimento humano", declara, no prefácio, que pretende examinar a natureza e os limites do entendimento humano. Locke opõe-se à aceitação das idéias inatas. Êle repele o inatismo, e afirma que todas as idéias do homem são adquiridas através de um processo psicológico. Assim, para êle, a alma é uma tabula rasa, uma folha não escrita, na qual a experiência grava as suas impressões. Dessas impressões é que nascem as idéias, que, para Locke, são apenas representações gerais da consciência. A experiência pode ser externa ou interna. No primeiro caso, a aquisição da idéia é feita através da sensação; no segundo, pelo reflexo do espírito, a qual exige atenção. As representações não são imagens fiéis do objeto percebido. Nas representações, concorrem as qualidades chamadas primárias, que são as correspondentes às relações de extensão, figura, movimento, número, e tc , que são adequadas ao objeto externo e que, por isso, podem ser qualificadas de verdadeiras. As qualidades secundárias, tais como a côr, o sabor, o som, e tc , são meros produtos da representação interna. São as qualidades primárias, como elemento objetivo, a base de todas as leis físicas e mecânicas.

BERKELEY

Jorge Berkeley (natural da Irlanda, 1685-1753) foi continuador da filosofia de Locke, com maior preocupação quanto às questões metafísicas. Berkeley foi influído pelo platonismo tradicional da Inglaterra. Foi bispo protestante. Lutou acerbamente na defesa dos ideais religiosos contra os cépticos materialistas e ateus.

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a) Berkeley atingiu uma das fórmulas mais extremadas do idealismo. Como nominalista, não aceitava a existência das idéias gerais. Não existe a idéia geral de um triângulo, o qual, forçosamente, quando imaginado, será isdsceles, equilátero ou escaleno. Este é o conhecido argumento de Berkeley. Êle queria referir-se à intuição do triângulo, e não ao conceito ou pensamento do triângulo, pois este é verdadeiramente universal.

b) Espiritualista e idealista extremado, negou a existência da matéria. Todas as qualidades, quer primárias, quer secundárias, são subjetivas. São idéias a extensão, a côr, etc, conteúdos da percepção. Nada de material existe atrás delas. Na percepção, isto é, em ser percebidas, está todo o ser: esse est percipi. Este é o fundamento do idealismo berkeleyano.

c) Daí Berkeley afirmar o eu espiritual, como única certeza intuitiva. As nossas idéias procedem de Deus, que as pôs em nosso espírito. A regularidade dessas idéias (leis, etc), é fundada na vontade de Deus, e dá-nos a convicção da existência do mundo corpóreo.

Observa-se a semelhança da doutrina berkeleyana cem a opinião de Malebranche e Leibnitz. O conhecimento das coisas e a visão das coisas só podemos perceber em ou por Deus. Em Berkeley, Deus e os espíritos são as únicas realidades. É Deus quem cria um mundo "material". Nós só vemos as coisas em Deus, como somente nele "vivemos, nos movemos, somos". Podemos caracterizar a doutrina de Berkeley como um idealismo subjetivo, que significa o mundo real ao mundo representado e que, após a destruição da matéria, da substância física, atinge o "eu exclusivo".

d) Devemos salientar ainda: Em psicologia, Berkeley exerceu grande influência por ter empregado o método introspectivo (auto-observação) nos problemas psicológicos; e, também, por seu conseqüente nominalismo, negando a existência das idéias abstratas gerais.

e) A doutrina de Berkeley é, inegavelmente, uma construção inteiriça, coerente e lógica, embora sejam obje-táveis seus pontos de partida, cujas premissas são falsas.

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f) Berkeley é um céptico, apesar de combater o cep-ticismo. E age como céptico por afirmação e negação e, historicamente, bem podemos compreendê-lo dentro do aspecto geral do espírito inglês, numa época de grande desordem intelectual.

g) A doutrina de Berkeley é também conhecida por imaterialismo, e mais tarde, encontramos sua influência no espiritualismo alemão.

HUME

David Hume (1711-1756) prosseguiu as análises de Locke e Berkeley. É considerado como empirista, mas um empirista que compreende a análise irracional das noções tía experiência. A sensação, ou impressão, é apenas a percepção dos sentidos, mas a reflexão é uma imagem pálida, uma mera recordação das sensações originárias, e, por sua vez, uma cópia. À Filosofia cabe estudar atentamente essas cópias, porque, segundo Hume, a impressão constitui o dado primitivo. As idéias simples se enlaçam para a formação das idéias complexas, segundo as leis da associação psicológica, isto é, pela lei de semelhança, de contigüidade e de relação causai. Uma das partes mais importantes da obra de Hume é o seu estudo sobre o tema da causalidade. Para êle, as conexões dos fatos sucessivos dão-nos a impressão de uma causalidade radicada nas coisas. Mas a sensação não nos proporciona a idéia de causa. A noção de causa é, originàriamente, uma impressão sensível, que é aplicada, erroneamente, a uma propriedade das coisas. Hume, ao combater a idéia de causa, quer fundá-la exclusivamente na própria experiência. Quanto à religião, declara que a reflexão racional é importante para demonstrar as suas verdades. Considera as provas da existência de Deus defeituosas por isso. Hume reconhecia os limites da razão. Sua obra influiu decisivamente sobre Kant, o qual declara que a leitura dos seus livros levou-o a despertar de um sonho dogmático e a refletir sobre temas que até então não suspeitara serem tão complexos. Como veremos em Kant, este superou o cepticismo de Hume.

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a) Berkeley atingiu uma das fórmulas mais extremadas do idealismo. Como nominalista, não aceitava a existência das idéias gerais. Não existe a idéia geral de um triângulo, o qual, forçosamente, quando imaginado, será isósceles, equilátero ou escaleno. Este é o conhecido argumento de Berkeley. Êle queria referir-se à intuição do triângulo, e não ao conceito ou pensamento do triângulo, pois este é verdadeiramente universal.

b) Espiritualista e idealista extremado, negou a existência da matéria. Todas as qualidades, quer primárias, quer secundárias, são subjetivas. São idéias a extensão, a côr, e tc , conteúdos da percepção. Nada de material existe atrás delas. Na percepção, isto é, em ser percebidas, está todo o ser: esse est percipi. Este é o fundamento do idealismo berkeleyano.

c) Daí Berkeley afirmar o eu espiritual, como única certeza intuitiva. As nossas idéias procedem de Deus, que as pôs em nosso espírito. A regularidade dessas idéias (leis, e t c ) , é fundada na vontade de Deus, e dá-nos a convicção da existência do mundo corpóreo.

Observa-se a semelhança da doutrina berkeleyana com a opinião de Malebranche e Leibnitz. O conhecimento das coisas e a visão das coisas só podemos perceber em ou por Deus. Em Berkeley, Deus e os espíritos são as únicas realidades. É Deus quem cria um mundo "material". Nós só vemos as coisas em Deus, como somente nele "vivemos, nos movemos, somos". Podemos caracterizar a doutrina de Berkeley como um idealismo subjetivo, que significa o mundo real ao mundo representado e que, após a destruição da matéria, da substância física, atinge o "eu exclusivo".

d) Devemos salientar ainda: Em psicologia, Berkeley exerceu grande influência por ter empregado o método introspectivo (auto-observação) nos problemas psicológicos; e, também, por seu conseqüente nominalismo, negando a existência das idéias abstratas gerais.

e) A doutrina de Berkeley é, inegavelmente, uma construção inteiriça, coerente e lógica, embora sejam obje-táveis seus pontos de partida, cujas premissas são falsas.

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f) Berkeley é um céptico, apesar de combater o cep-ticismo. E age como céptico por afirmação e negação e, historicamente, bem podemos compreendê-lo dentro do aspecto geral do espírito inglês, numa época de grande desordem intelectual.

g) A doutrina de Berkeley é também conhecida por imaterialismo, e mais tarde, encontramos sua influência no espiritualismo alemão.

HUME

David Hume (1711-1756) prosseguiu as análises de Locke e Berkeley. É considerado como empirista, mas um empirista que compreende a análise irracional das noções da experiência. A sensação, ou impressão, é apenas a percepção dos sentidos, mas a reflexão é uma imagem pálida, uma mera recordação das sensações originárias, e, por sua vez, uma cópia. À Filosofia cabe estudar atentamente essas cópias, porque, segundo Hume, a impressão constitui o dado primitivo. As idéias simples se enlaçam para a formação das idéias complexas, segundo as leis da associação psicológica, isto é, pela lei de semelhança, de contigüidade e de relação causai. Uma das partes mais importantes da obra de Hume é o seu estudo sobre o tema da causalidade. Para êle, as conexões dos fatos sucessivos dão-nos a impressão de uma causalidade radicada nas coisas. Mas a sensação não nos proporciona a idéia de causa. A noção de causa é, originàriamente, uma impressão sensível, que é aplicada, erroneamente, a uma propriedade das coisas. Hume, ao combater a idéia de causa, quer fundá-la exclusivamente na própria experiência. Quanto à religião, declara que a reflexão racional é importante para demonstrar as suas verdades. Considera as provas da existência de Deus defeituosas por isso. Hume reconhecia os limites da razão. Sua obra influiu decisivamente sobre Kant, o qual declara que a leitura dos seus livros levou-o a despertar de um sonho dogmático e a refletir sobre temas que até então não suspeitara serem tão complexos. Como veremos em Kant, este superou o cepticismo de Hume.

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ANALISE DO ILUMINISMO

O ponto fundamental do Iluminismo consiste em tornar a filosofia um meio para chegar ao domínio efetivo da natureza, e para a reorganização da sociedade. O interesse pelas ciências naturais é uma tendência marcante, bem como o interesse despertado pelo homem e os seus problemas, ante as grandes questões de ordem cosmológicas. O Iluminismo é considerado mais como uma concepção do mundo do que propriamente uma filosofia.

Entre as maiores figuras do Iluminismo, podemos citar Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), cujo pensamento teve tão marcante influência sobre a história.

Em sua famosa obra "Discursos sobre as origens e fundamento da desigualdade entre os homens", defendeu a tese de que o homem, em sua natureza, é bom, mas a sociedade é que o desvirtua. Não prega Rousseau, como muitos pensam, o retorno à vida natural, no sentido de primitivo, mas sim naturalidade do homem, transformado pelos interesses criados em inimigo até de si mesmo. Para isso, julgava que a única maneira de suprimir a maldade humana e a desigualdade seria por meio do desenvolvimento das forças naturalmente boas do homem, expressadas em seus sentimentos, para, sobre elas, construir um novo estado social.

Um novo contrato social deveria ser estabelecido, no qual o homem renunciasse a sua liberdade no sentido egoístico, em benefício do bem geral. O estado democrático puro era o sonho de Rousseau e as suas doutrinas influíram sobre a Revolução Francesa, que adotou o seu lema "Egalité, Liberte, Fraternité".

Outras figuras importantes foram Voltaire que manteve longas polêmicas como Rousseau, Montesquieu (1689--1755), Condorcet, Condillac, Diderot. Os Enciclopedistas Holbach, Lanmétrie, Grimm, Helvetius.

K A N T

Emanuel Kant, natural de Koeningsberg (1724-1804), permaneceu durante toda a sua vida em sua cidade natal. De família modesta, foi educado no Colégio Fredericianum, de ambiente pietista. Seguiu daí para a Universidade, onde Martin Knutzen lhe ensinou a filosofia de Wolf. Auste-io, tenaz, sua vida primou sempre pela regularidade e a ordem. Foi aceito como preceptor em muitas famílias nobres. Viveu solteiro, mantendo vida regular e metódica. Pelas suas contribuições na filosofia, seu nome permanece entre os maiores do mundo. Em toda a filosofia kantiana, revela-se a tendência egotista pessoal, tendência aliás característica da filosofia alemã.

a) Fases da filosofia kantiana: Zhitlovsky estabelece estas: 1.°) Período até 1760. Kant é racionalista e dogmático. Desenvolve-se sua filosofia, dentro do âmbito do sistema de Leibnitz-Wolf, com atração evidente das ciências naturais sobre a metafísica pura; 2.°) período: empí-rico-céptico (1760-1769). A obra de Hume desperta-o do "sonho dogmático" (palavras dele). Ocupa-se, então, da crítica do racionalismo. Analisa o valor da lógica, e chega à conclusão de que são excessivas as esperanças nela depositadas. A metafísica é, nesta época, para êle, nada mais que "a ciência dos limites da razão humana"; 3.°) período de transição para a crítica (1770-1780). Elaboração e aprofundamento do pensamento crítico que obtivera no 2.° período; 4.°) período criticista (1781-1804).

b) Filosofia: A filosofia de Kant tem um ponto de partida semelhante ao de Descartes e de Leibnitz: isto é, Kant inicia sua filosofia por uma prévia teoria do conhecimento, mais acentuadamente que os seus antecessores, mas diferencia-se muito daqueles. Enquanto aqueles falam do conhecimento que terão, da teoria que vão construir, Kant parte do conhecimento já existente, da ciência

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físico-matemática de seu tempo, quando Newton já a havia consolidado. Em Kant, influíram as três grandes correntes filosóficas do século XVIII: o racionalismo de Leib-nitz, o empirismo de Hume e a ciência positiva de Newton. Assim, para Kant, a realidade da ciência de Newton é uma evidência palpável. Sua teoria do conhecimento, portanto, não será a teoria de um conhecimento possível, como em Descartes, ou de um conhecimento em formação, de Leib-nitz, é a física matemática de Newton, seu "fato", seu postulado, onde fundamenta sua teoria do conhecimento. Remonta assim, aos princípios do conhecimento, para discutir, criticar sua origem, seu valor, seu alcance para descobrir, pôr à tona, o vício do empirismo e do dogmatismo.

"Toda a experiência e todo conhecimento filosófico provém, segundo Kant, de três fontes: os sentidos, que criam intuiçõés, o entendimento, que cria conceitos, e a razão, que cria idéias. A sensibilidade e o entendimento fluem continuamente e criam a experiência. A razão encontra já a experiência feita, cujos limites sobrepassa com suas idéias, além do mundo empírico. Nestas três fontes se encontram produtos "puros" do conhecimento humano. Deve investigar-se que papel desempenham na experiência a sensibilidade e o entendimento puros, para logo averiguar se a razão "pura" tem direito a sobrepassar, com suas idéias, os limites do mundo da experiência, porque o faz e em que medida são exatos os resultados a que chega." (Zhitlovsky "Kant", págs. 14 e 15). Estão, aí, os três caminhos seguidos por êle. Vejamos como o fêz.

c) Para Kant, a ciência físico-matemática da natureza compõe-se de juízos, estruturados em teses, afirmações, proposições. São esses juízos, enunciações de fatos observados, que compõem a estrutura geral do saber científico--matemático e podem ser divididos em dois grandes grupos: analíticos e sintéticos. Analíticos são aqueles em que o predicado já está contido no sujeito. Ex.: o quadrado tem quatro lados; sintéticos, os em que o predicado não está contido no sujeito; ex.: a lua é um planeta. Os juízos analíticos são verdadeiros para Kant, porque se estri-bam no princípio de identidade. Os juízos sintéticos não são verdadeiros por si mesmos, mas a sua legitimidade está na experiência. São os juízos analíticos universais, por

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verdadeiros em qualquer lugar, no espaço e no tempo, enquanto os juízos sintéticos são contingentes e particulares, válidos pela experiência sensível, e cuja validez não poderá ser aceita no espaço e no tempo.

Ora, o conhecimento científico fundamenta-se nos juízos sintéticos, porque os analíticos são pura tautologia e nada acrescentariam ao conhecimento. Leibnitz queria que a ciência se fundamentasse em juízos analíticos. Se a ciência estivesse, como queria Hume, constituída apenas pelos juízos sintéticos, constituídos de associação de idéias, por fatos, repetições da experiência, seria apenas um costume, sem validade universal. Ora, pensava Kant, a lei de Newton não é apenas um juízo analítico, nem tampouco um juízo sintético. Observou Kant que uns desses juízos provêm dos sentidos e outros da razão. Existem, portanto, princípios a priori do conhecimento. Ora, de uma ou várias experiências, pode-se formular a priori uma lei universal, pois os juízos a priori deverão possuir a característica de necessários e universais, mas, também, por isso, contêm os atributos do juízo sintético, do contrário seriam simples tautologias. Infere, daí os juízos sintéticos a priori.

d) A crítica dos juízos a priori é a matéria de sua Crítica da Razão Pura. Mas se o conhecimento não pode dispensar os juízos a priori não pode, também, valer-se exclusivamente deles, porque não são meios suficientes de conhecimento. Assim há um limite para o conhecimento? Não, — responde Kant, — porque o conhecimento científico permanece possível e a moral nos permite, por outra parte, ir além da experiência. A lei moral impõe-se a todos os indivíduos, possuindo, por isso, uma objetividade certa. É essa a conseqüência tirada na "Crítica d'a Razão Prática", em que, apoiando-se nas idéias morais, o espírito pode afirmar algo além da experiência.

Partindo desses princípios, assim Kant expôs as suas idéias:

e) Os sentidos fornecem apenas dados contingentes. Se existem conhecimentos universais e necessários, só podem provir da razão.

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Vejamos agora as três fontes do conhecimento já acima citadas: 1.°) a sensibilidade (os sentidos). De sua crítica, fundamenta Kant sua estética transcendental. Elimina todos os elementos particulares que a sensibilidade oferece, que corresponde ao objeto do conhecimento. Feito isso, permanecemos em face de duas idéias universais e necessárias: tempo e espaço. São elas a forma sempre presente do conhecimento. Em si nada são, mas pertencem ao sujeito pensante. São duas formas a priori da sensibilidade.

f) o entendimento, segunda faculdade do conhecimento. Sua crítica aqui, chama-se lógica transcendental. Correspondem às quatro formas do julgamento do juízo, quatro categorias, conceitos puros do entendimento: quantidade, qualidade, relação, modalidade. São as condições a priori do conhecimento sensível, como o espaço e o tempo, são as condições a priori da intuição. São elas inerentes ao nosso espírito, não são coisas em si. Daí conclui Kant que não conhecemos as coisas em si. (noumenon), mas apenas através do nosso conhecimento (fenômenos).

g) Segue-se a razão pura, terceiro elemento, a quem pertence o mundo das idéias. A crítica aqui se chama dialética transcendental. Fundamenta-se em três idéias: o eu, o mundo e Deus (psicologia racional, cosmologia racional e teologia racional). São idéias puramente a priori, portanto frágeis e incompletas para o conhecimento. São, portanto, cientificamente falsas.

A crítica da razão pura, conclui Kant, é insuficiente para ultrapassar os limites da experiência. Resta o caminho da razão prática:

h) Assim como existem elementos a priori do conhecimento, há dados a priori para guiar nossa vontade e nossa ação. Pela crítica da razão prática, Kant pode ultrapassar o conhecimento e fundamentar nela a imortalidade da alma e a existência de Deus.

Os princípios morais a priori geram a noção do dever. Sd são morais os atos que se fundamentam na vontade de fazer o bem, na "boa vontade", independentemente de qualquer finalidade útil ou desejável. O respeito ao de-

C O N V I T E À F I L O S O F I A 191

ver é essencial a toda moralidade. É uma lei moral, que eqüivale aos princípios evidentes da ciência natural. A lei moral é uma lei férrea e incondicional: um imperativo categórico. Admitindo a autonomia da vontade, o homem obedece à sua vontade, que é livre. A afirmação da existência da alma é o postulado necessário para assegurar ao &ujeito moral conformidade de sua vontade à lei moral, por não ser realizável a moralidade na existência. É necessária a existência de Deus, para que seja possível o soberano bem, e para que o homem possa vencer suas inclinações, que o poderiam afastar do cumprimento da lei moral.

A faculdade da consciência, que cria moralidade, é chamada por Kant a "capacidade de querer", e também ela encerra uma parte sensível e uma parte "pura". A parte sensível compreende as tendências e desejos que provêm dos sentidos, que estão sempre dirigidos pelos sentimentos momentâneos de prazer e de dor. "A parte mais elevada chama-se "razão prática", e coloca-se além dos sentimentos momentâneos de prazer, e de dor, valoriza-os, aprecia--os e formula leis para a vontade, para ser esta consciente e racional atividade prática." Para muitos, é a parte da moral o ponto realmente frágil da filosofia kantiàna e muitas críticas lhe foram feitas. Nietzsche, por exemplo, viu aí o funcionário prussiano, ansioso de servir à ordem política de sua época, e no imperativo categórico um reflexo do militarismo da Prússia.

A palavra crítica, usada por Kant, não é tomada na acepção comum de censura, mas sim no sentido clássico de estudo, investigação. Assim "crítica da razão pura" significa estudo, investigação da razão, independentemente da experiência, pois a palavra puro significa independente da experiência, a priori.

A filosofia de Kant é também conhecida por "idealismo crítico", "idealismo transcendental". Quanto à teoria do conhecimento:

"Os sentidos nos fazem conhecer o mundo exterior real, e nos fornecem os materiais da experiência. A imagem que temos das coisas é o resultado de dois fatores: í) propriedades dos objetos, que atuam em nossos senti-

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dos e provocam em nós, certas impressões e representações; 2) o caráter particular do sujeito, que recebe essas impressões, isto é, a consciência. Daí, deduz que as representações que temos das coisas, tais como nos aparecem, dis-tinguem-se completamente da coisa em si; isto é, da coisa tal como existe em si e por si, em seu ser "verdadeiro", independente da consciência subjetiva. É a coisa em si, para Kant, incognoscível. Podemos conhecer apenas os fenômenos.

Fora do espaço e do tempo, nada podemos conhecer nem imaginar.

As leis naturais desenvolvem-se, estendem-se unicamente ao mundo dos fenômenos que existe em nossa consciência. Os noumenos (as coisas em si) não estão submetidas às leis da necessidade e da universalidade absolutas (lei da causalidade, que Kant afirma não podemos rigorosamente concluir pelo fato de observarmos que o fenômeno B segue-se naturalmente do fenômeno A). Contém, assim, a teoria do conhecimento de Kant dois elementos contraditórios: 1) um elemento idealista subjetivo: as formas de nossa experiência (Anschauung): espaço, tempo, categoria; 2) um elemento realista, que são os materiais indeterminados, que nos fornecem as coisas em si (o mundo exterior, que existe independentemente de nós). Nossa concepção da necessidade da natureza não é aplicável ao mundo dos noumenos, portanto neste pode reinar a liberdade absoluta. É neste império que Kant coloca a idéia de Deus, e da imortalidade da alma, o livre-arbítrio, que não são compatíveis com a idéia da lei. É essa sua última atitude, tomada na "Crítica da Razão Prática".

OS IDEÓLOGOS

Era este o nome que se dava a um grupo de pensadores e cientistas que, partindo das análises de Condillac, embora deste se afastando, formaram um movimento, em fins do século XVIII, chamado de ideologia... Entre ê!es destacaram-se: Vorney, Charles Bonnet, Garat, Sieyès, Guinguené, Cabanis, Laromiguière, Destutt de Tracy, De Gerando. Apoiando Bonaparte, quando do 18 de Brumá-rio, separam-se dele, ao perceber sua tendência autocrá-tica, sofrendo, por isso, a perseguição do imperador. Examinavam os ideólogos os problemas psicológicos, fisiológicos e lógico-gramaticais, penetrando pelo terreno da filosofia, estabelecendo, assim, uma concepção do mundo, uma moral, e até um partido político, de tendências liberais.

O pensamento fundamental dos ideólogos provém de Condillac. A sensação é a fonte única de todos os nossos conhecimentos, e o princípio único de todas as nossas faculdades, tanto das afetivas como das intelectuais. Por uma simples transformação, a sensação torna-se, a pouco e pouco, atenção, comparação, julgamento, raciocínio, e, por fim, desejo e vontade. A alma é assim o conjunto das sensações experimentadas e daquelas que a memória recorda.

Destutt de Tracy (1754-1836) segue os princípios fundamentais da ideologia, mas considera-os insuficientes. Assim, aceita quatro faculdades não susceptíveis de decomposição: querer, julgar, sentir, recordar.

Cabanis (Pierre) (1757-1808), embora filiado ao movimento dos ideólogos, tem sido apresentado discutido e comentado, de forma muito parcial, em grande parte distante de sua verdadeira doutrina. Façamos uma síntese de suas opiniões:

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a) Cabanis tem sido apresentado como um materialista, que quis submeter toda análise psicológica à fisiòlo-gia, desejando resolver os problemas das faculdades e dos atos, com exclusão de qualquer suposto metafísico. Para Cabanis, seria o pensamento apenas o produto da atividade cerebral.

b) Pela leitura de sua obra, Cabanis nos oferece outras conclusões: admirava a obra dos sensualistas Hol)-bes, Locke, Helvétius e Condillac, mas deplorava que este não tivesse suficientes conhecimentos fisiológicos.

c) o físico e o moral confundem-se em suas fontes! isto é, o moral não é mais que o físico considerado so> determinados pontos de vista particulares;

d) influenciado pelos ideólogos, afirma: as impressões recebidas pelos órgãos são igualmente a fonte de todas as idéias e de todos os movimentos. Cabanis não podia conceber um fato de atividade, sem um fato prévia de sensibilidade;

e) há para êle grande número de determinações absolutamente fora da experiência e da razão, que desne-cessitam de educação, que atingem um alto grau de per-fecionamento, porque emanam de uma fonte distinta; isto é, o instinto;

f) não há apenas fenômenos físicos no homem. Êle espiritualiza o homem (Mémoire IV, § I) e afirma "aos elementos materiais da economia, junta-se um princípio desconhecido qualquer";

g) há três escolas entre os fisiologistas durante o século de Cabanis: 1) a dos estritamente materialistas; 2) a dos que aceitam que além dos fenômenos físicos, há outra espécie de fenômenos vitais (vitalistas); 3) a dos que aceitam que aos fenômenos materiais, junta-se um princípio desconhecido qualquer, que eles chamam alma, arque, princípio vital. Entre estes, está Cabanis;

h) com seu contato com Pariel, Cabanis empreendeu estudos mais aprofundados em torno dos fenômenos psíquicos, e é nessa época que afirma que no inato da razão possui esta uma natureza não material, princípio este que não pode partilhar da dissolução da matéria orgânica. Esse princípio mental não é o resultado das ações das partes, uma propriedade ligada a uma combinação

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animal, mas uma substância, um ser à parte e distrn*?-Acreditando na imaterialidade e no inatismo do princíp.10

da vida, crê, posteriormente, na imaterialidade e no inatis" mo do princípio da inteligência, porque o todo é um p0 r a

êle, e, conseqüentemente, na preexistência desse prir»01* pio, após a morte. (Lettres, etc, 74). Essas proposiç^s

não são, porém, para Cabanis artigos de fé. Êle, atra^es

de sua obra, examinou os prós e os contras. E as pa*a" vras são dele: "Tais são os motivos que podem fazer p^.n" der a crença de um homem razoável em favor da per^is" tência do princípio vital ou do eu, após a cessação ó°s movimentos vitais nos órgãos". Mas, acreditou afil>a^:

"Não esqueçamos que permanecemos aqui no terreno àas

probabilidades". Observe-se que Cabanis, por haver atribuído à natt»^"

za, inteligência e vontade, foi classificado de panteí^ta" Vemos ainda que está muito longe de ser o materiali^a

vulgar, tão freqüentemente apresentado nos compênd*os

de filosofia. Maine de Biran (1766-1824). Natural de Bergerac'

exerceu na vida política diversos cargos importantes. £ s ' tudou com afinco as sensações e as impressões, e dês^es

estudos surgiu sua doutrina filosófica. A oposição entre o sentimento e a reflexão, enti"^ a

passividade e a atividade, são os temas principais de M31" ne de Biran. Parte da filosofia sensualista dos ideólo^os' mas afasta-se logo depois. O hábito, afirma, embota a

sensação e facilita o pensamento. Isso se dá, porque pei}" samento e sensação são de naturezas diferentes. O ]?n" meiro é atividade, e o segundo, passividade.

Parte do eu, como fato primitivo, "condição da Pu' manidade". Este se manifesta unicamente na ação, p e | ° esforço, dado simples da observação, liberto da existêr>cia

da vontade. Há, no homem, uma vida animal, puramef^6

passiva, e uma vida humana, que se manifesta pela atívl_

dade do eu, que se excede sobre o corpo que lhe resiste e

que é o germe de toda vida, inclusive a intelectual e mo*"al-O homem é formado de dois elementos distintos. Qua t r 0

são os sistemas (modos) que formam a existência: ^ sistema afetivo, que corresponde à vida animal, que cCm_

porta prazer e dor, conjunto de fantasmas e imagens; 2 )

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sistema sensitivo, resultado do grau inferior do esforço (pensamento), que determina a localização das afeições nos órgãos, idéia de causa, reminiscência; 3) sistema per-eeptivo, que corresponde à atenção, idéias, criações artísticas, em que a atividade do eu é orientada para o exterior; 4) sistema reflexivo, em que o eu discerne a si mesmo e se eleva à concepção das noções que formam sua origem. Reconhecendo Maine de Biran que a primazia da vontade na vida interna, como origem e raiz do conhecer, era insuficiente na vida psíquica, chegou à afirmação da existência de uma vida espiritual superior, onde as resistências físicas e corporais se evaporassem ante a força do espírito, tal como se revela na experiência mística. A vida psíquica, libertada do orgânico, é livre, e representa um estágio superior, mais elevado, que é possível para intervenção de Deus.

O UTILITARISMO INGLÊS

Em suas linhas gerais, o utilitarismo é a doutrina que sustenta, na hierarquia dos valores, o posto mais alto para os valores utilitários. Embora se notem diversas manifestações utilitárias no decorrer da história da filosofia, o utilitarismo teve seu ponto mais alto no século XVIII, na Inglaterra, representado por homens como Je-remy Bentham, James Mill, John Stuart Mill, etc.

Jeremy Bentham, (1748-1832) foi a maior figura do utilitarismo, ao qual deu um sentido radical. Afirma Bentham que o homem se rege pelo interesse, como o revelam os seus atos e a História. Mas o interesse do homem é a sua felicidade. E a felicidade não consiste no gozo egoísta do bem, mas no maior número de bens para o maior número de pessoas. O homem é guiado pelo prazer e pela dor, que lhe ensinam a viver. O homem tende para aumentar o prazer e para eliminar a dor. No entanto, não se deve pensar que Bentham defendesse o prazer sem limites. Sua vida foi até puritana, e êle estabelecia certas restrições a todo excesso.

James Mill (1773-1836) manteve-se dentro das idéias utilitaristas de Bentham, completando-a com a teoria as-sociacionista. Quanto a John Stuart Mill, seu filho, examinaremos mais adiante.

O I D E A L I S M O A L E M Ã O

FICHTE

Johann Gottlieb Fichte (1762-1814) preocupado com os estudos de Kant e depois de haver discordado de muitos dos seus pontos de vista doutrinários, interessou-se pelo fundamento da relação gnosiológica entre o sujeito e o objeto. Entre o dogmatismo e o idealismo, julga Fichte que o ato de libertação deve ser pela escolha do idealismo. O ponto de partida é a atividade consciente, o Eu como auto-consciência. Mas o Eu, para Fichte, não é algo estático, mas algo dinâmico. O pensamento se afirma como ato de pensar. Esse Eu se descobre por meio de uma intuição intelectual. O Eu se oferece a si mesmo num &to de liberdade absoluta. Mas a consciência é bipolar. Ao Eu se opõe o não-Eu. Ao sujeito, o objeto. A cisão ãa realidade em Eu e não-Eu, exige uma síntese que o anule, mas sem destruí-los. Essa síntese se dá pela limitação do Eu pelo não-Eu. Para Fichte, em suma, o Eu se forma pelo pensar. Mas o Eu não é propriamente um Eu individual, mas um Eu que é um ponto onde a atividade criadora do Absoluto emerge na consciência individual.

O ROMANTISMO

Logo após a Revolução Francesa, processa-se o movimento ao qual foi dado o nome de romântico, o romantismo, cuja tendência geral consiste em acentuar o sentimento sobre o pensamento, a intuição sobre o conceíFo, o dinâmico sobre o estático, o orgânico sobre o mecânico, o expressivo sobre o plástico. Surgem, então, na filosofia, nomes como Schleger, Tieck, Novalis, Hólderlin, etc.

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SCHELLING

Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854) foi o fundador da filosofia da identidade, para o qual o sujeito e o objeto coincidem no Absoluto, que é um estado que pode ser realizado pela intuição intelectual. A filosofia de Schelling culmina num idealismo transcendental, em que a natureza e o espírito fundem-se na identidade, daí afirmar que a natureza é o espírito dinâmico visível, e o espírito, a invisível natureza. A liberdade e a necessidade são as diferentes maneiras de se manifestar uma mesma realidade. Schelling é, assim, monista.

HEGEL

George Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831). Influído de início pelos românticos e Schelling, destes se separou posteriormente, fundando um sistema próprio, que teve grande influência posterior na filosofia (hegelianismo). Para Hegel, o Absoluto do idealismo transcendental "é a ingenuidade do vazio no conhecimento", e que não favorece a explicação da heterogeneidade. Embora considerado idealista, é, na verdade, um real-idealista, pois revela em sua obra uma preocupação constante pelo concreto, de onde parte para alcançar um saber absoluto. O saber, enquanto permanece no empírico, no transeunte, no contingente, é um saber imperfeito, insuficiente e até deficiente. O pensamento sobre o objeto supera o próprio objeto; é um saber mais alto. É o conceito que sintetiza a oposição que há entre o sujeito e o objeto. É mister superar es oposições e o espírito consegue realizá-lo pela penetração decidida na religião, onde êle conhece o seu triunfo. Só aí o espírito pode alcançar a Idéia Absoluta, e o procedimento para alcançá-la é dialético, através de afirmações e negações (teses e antíteses), até atingir a síntese superior. Em sua famosa Lógica, expõe seu método, que seria impossível sintetizar aqui. O Ser Absoluto é o tema principal de sua Filosofia da Natureza. A idéia absoluta e n si e para si é o tema de sua Filosofia do Espírito. A tese, a antítese e a síntese são os momentos distintos da Idéia Absoluta, os quais são afirmados, negados e superados pela sua dialética. A superação é ao mesmo tempo

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conservação e superação (Auffhebung) do afirmado, por que contém este, e a negação da negação. A dialética é a expressão, assim, da própria realidade e não apenas um modo de pensar.

Teorizando a idéia de Ser, afirma, na Lógica, que ó a mais universal e também a mais indeterminada. Negado todo conteúdo ao Ser, tornado abstração, converte-se em nada. Esquece, porém, Hegel que há uma diferença importante: o nada, enquanto tal, é nada, e o ser é alguma coisa, o que impede a total identificação entre ambos. A negação do ser é superada, porém, pela sua negação, que é o devir (o vir-a-ser). O devir é negado por sua vez pela qualidade; a negação da qualidade nega a quantidade, e a superação de ambos se dá pela medida, que é a antítese. A filosofia de Hegel teve um grande papel. A atualização da sua parte realista favoreceu a formação das doutrinas hegelianas de esquerda, de onde o marxismo vai buscar seus fundamentos, e da atualização do aspecto ideal surgiram as tendências direitistas. Entre os hegelianos mais famosos podemos salientar, na esquerda: Feuerbach, Max Stirner, Marx e, na direita, os irmãos Meyer, etc. Outros hegelianos famosos foram Rosenkranz, Bieder-mann, Zeller, Kuno, Fisher, Erdmann, Fries, Beneke, Vic-tor Cousin, Spaventa, Prahtl, e outros.

GOETHE

Johnn Wolfgang Goethe (1749-1832) não é incluído em geral entre os filósofos. No entanto, sua obra influiu e influi no pensamento moderno. Como Goethe não organizou nenhum sistema, não tem sido considerado como é merecedor. Goethe é um legítimo representante do romantismo alemão. Viu no homem e na natureza uma união indissolúvel, e compreendeu que a intuição e o pensamento formam um todo. Além disso, repelia todo me-canicismo.

SCHOPENHAUER

Arthur Schopenhauer (1788-1860), cuja obra máxima é "O Mundo como vontade e como representação", em

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que afirma que o mundo é "minha" "representação", um fato primário de consciência, que implica a inseparabili-dade do sujeito e do objeto, com a qual quer refutar a tese do materialismo e do subjetivismo, é um filósofo romântico, mas pessimista e sombrio.

KIERKEGAARD

Süren Kierkegaard (1813-1855) é hoje um filósofo de certa notoriedade, dada a sua marcante influência na filosofia chamada existencialista. Suas teses e opiniões têm uma atualidade que não conheceram quando de sua breve vida, em que permaneceu obscuro e incompreendido pelos seus contemporâneos. A eternidade é mais importante que o tempo. O homem é um egoísta, e precisa experimentar o desespero. Deus está atrás da razão e do homem. Reagiu Kierkegaard contra a religião ortodoxa dominante.

PROUDHON

Joseph Proudhon (1809-1865) foi um dos maiores pensadores da França, cuja obra quase desconhecida, salvo a obra social, não tem merecido, senão em nossos dias, uma análise mais completa. Proudhon compreendeu as profundas oposições na natureza e a sua doutrina das antinomias é a base das suas idéias. Afastado do individualismo atomista e do socialismo estatal, pregou idéias libertárias, que lhe valeram o nome de pai do anarquismo, cuja doutrina muito lhe deve.

STIRNER

Max Stirner (1806-1856), cujo nome real era Johann Gaspar Schmidt, era um hegeliano de esquerda. Foi êle o defensor de um individualismo extremado, que encontra no Eu, enquanto "único", o fundamento de toda relação.

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O único é uma resistência ante toda exterioridade, quer formada pelas criações do espírito, quer pelos "eus" alheios. O único não se submete a nenhuma categoria. O único é independente de toda categoria, de toda submissão. Por essa razão, Stirner combate toda espécie de coação, não só do Estado como até das próprias idéias. O único pode unir-se independentemente, num ato de liberdade aos outros únicos. Se não houver independência do único, não há liberdade. Só pelo único, pode a sociedade conhecer a liberdade e, em vez de uma união forçada dos indivíduos, pode dar-se a união livre e a universalidade da idéia em universalidade da unicidade. É muito comum julgar-se que Stirner seja um defensor do egoísmo utilitarista. No entanto, não é. O único, o eu de cada um, é livre pela liberdade dos outros únicos. A liberdade é indivisível e não conhece limites. Nenhuma liberdade limita outra liberdade. O que limita a liberdade é a opressão; não a liberdade. Uma sociedade de eus livres é uma sociedade livre. Considerar, porém, a sociedade como uma entidade que pode ser livre, ser eus livres, é cair nas velhas idolatrias.

O existencialismo tem, em muitos aspectos, muitas teses de Stirner, sem que os existencialistas o saibam. Stirner é dos filósofos menos conhecidos, mas, nem por isso deixa de ser uma das personalidades mais fortes e originais que surgiram na filosofia. É a grande figura do anarquismo individualista.

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OS POSITIVISTAS — TRANSFORMISMO E EVOLU-CIONISMO SOCIALISTAS — PRAGMATISTAS

Em sentido específico, considera-se por positivismo a doutrina e a escola fundada por Augusto Comte (1798--1857), que além de compreender uma teoria da ciência, é, também, e especialmente, uma reforma da sociedade e uma religião. Nasceu como reação à filosofia romântica especulativa do século XIX. Inclui o movimento positivista, correntes das mais diversas, utilitarismo, bioío-gismo, pragmatismo, sensualismo, materialismo, e tc , que lhe são, afins, o que torna difícil precisar o sentido claro do positivismo.

Se atentarmos aos seus elementos mais importantes, constitui êle uma teoria do saber, que se nega a admitir outra realidade que não seja a dos fatos e a investigar outra coisa, que não sejam as relações entre os pactos. Manifesta o positivismo uma aversão sem limites à metafísica. Repele o saber metafísico, o conhecimento a priori, a intuição direta do inteligível e a crítica gnosioló-gica. Hostiliza o positivismo todo o sistema, toda construção e dedução e reduz a Filosofia à Ciência. Embora distinto desse positivismo, mas vinculado a êle em algumas teses essenciais, temos o chamado neopositivismo, que se manifestou, sobretudo, entre os cientistas do século passado, destacando-se entre eles o "círculo de Viena", e, em particular Hans Heichenbach, Moritz Schlick, e t c , que embora já quase esquecidos na Europa, conhecem agora, no Brasil, um surto inesperado, como sucedeu também com o positivismo, que pontificava entre nós, quando já se ex-tinguia na Europa. Outras manifestações neopositivistas se apresentaram no pensamento ocidental, que negam também a metafísica, e ampliam o empirismo, e tendem para a construção de uma filosofia da ciência.

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STUART MILL

John Stuart Mill (1806-1873) era filho de James Mill. Rebelou-se contra a estreiteza do utilitarismo. Combateu, como Comte, a metafísica, mas discordou deste ao reconhecer a Psicologia como ciência afetiva. As idéias psicológicas de Stuart Mill foram desenvolvidas no corpo da Psicologia Teórica. Stuart Mill foi também um grande economista e suas idéias, neste setor, são valiosas.

DARWINISMO

Carlos Darwin (1809-1882), foi um estudioso da doutrina da seleção natural, que antes dele já havia sido examinada e investigada, embora sem os recursos que êle dispunha. Em Empédocles e em Anaximandro, encontramos afirmações, que evidenciavam a aceitação do transfor-mismo, e da evolução nas espécies animais. Mas, no século XVIII, foi que surgiram várias teorias evolucionis-tas. Tanto na obra de Shelling, como na de Hegel, há antecipações filosóficas à teoria evolucionista.

Entre os mais famosos que estudaram esses temas, salientamos a figura de Lamarck (1748-1825), o qual, em sua "Filosofia Zoológica", explicou a origem das espécies e as variações condicionadas pelo meio, o qual exige do animal a necessidade de adaptações sucessivas, e, conseqüentemente, modificação dos seus órgãos. São essas modificações fixadas pelo costume e transmitidas pela herança, constituindo-se de tal forma uma gradação de espécies, cujas anormalidades tornam-se, por sua vez, condições da futura normalidade.

Darwin partiu da opinião de Malthus de que há uma desproporção entre a multiplicação dos seres vivos e os meios de subsistência, o que produz a luta pela vida (struggle for life), e esta luta desemboca na supervivência dos mais aptos (note-se aptos, e não os mais fortes). Estes mais aptos são aqueles cujas funções se adaptaram melhor às exigências do meio. Essas variações, quando fixadas, dão origem a novas espécies, que surgem através

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do tempo, articuladas numa hierarquia de funções, progressivamente mais diferenciadas e perfeitas. Influi o darwinismo no mundo moral e histórico do século XIX. Spencer (1820-1903) aplicou os princípios da evolução a todos os domínios da natureza e da cultura. As comprovações científicas vieram dar à filosofia de Spencer uma justificação extraordinária, o que lhe valeu, em certo tempo, um grande prestígio. Foi assim que o darwinismo penetrou na filosofia, filiando-se, naturalmente, ao positivismo e ao evolucionismo naturalista. Considerou a evolução, não só como um processo mas como um progresso, dando, assim, à noção mecânica de evolução um valor, o que se tornou um dos grandes mitos do século XIX, e também do século XX. Entre os mais famosos seguido-les dessas teorias, temos Thomas Huxley (1815-1895) e Ernest Haeckel (1834-1919). Atualmente, porém, o darwinismo, em face das grandes conquistas da Biologia, perdeu muito de sua validez, deixando de ser um princípio geral de explicação. Haeckel repele a metafísica e segue em suas linhas gerais os princípios de Darwin, dos evo-lucionistas e dos positivistas. Mas, no terreno filosófico, aceita um hilozoísmo, que se assemelha ao hilozoísmo jô-nico, dando à matéria um atributo vital. Para êle, o movimento é a energia do universo, e Deus é a consciência dessa natureza. Haeckel é um monista naturalista. Considera totalmente falso o dualismo entre matéria e espírito. Assim a matéria e a energia são meros atributos de uma substância única, que é Deus, assemelhando-se, assim, ao espinozismo.

Vejamos, agora, o movimento socialista do século XIX e sua significação na filosofia, e comecemos por

FEUERBACH

Ludwig Feuerbach (1804-1872) foi discípulo de Hegel e filiou-se à esquerda hegeliana. Sustenta Feuerbach que o espírito é nada mais que uma manifestação da natureza. Todas as entidades transcendentes são apenas hipostases dos conceitos humanos.

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O homem cria os deuses à sua imagem e semelhança. Cria-os de acordo com suas necessidades, desejos e angústias. A idéia de Deus, em todas as culturas, revela a íntima autenticidade do homem dessas eras. Por isso, deve-se compreender o sentimento das religiões. O ateísmo, para Feuerbach, é uma conseqüência da razão, uma conseqüência do desenvolvimento cultural. Naturalmente, o homem é religioso. O ateísmo é alcançado pelo homem quando chega à consciência da sua limitação e também do seu poder. Esse poder é adquirido pela sua libertação da transcendência.

MARX

Karl Marx (1818-1883), na juventude, ligou-se à esquerda hegeliana, então representada por Feuerbach, de quem foi um entusiasta admirador, até dele separar-se posteriormente. Liga-se Marx à economia liberal inglesa do século XVIII, representada por Adam Smith, Ricardo e do socialismo francês, sobretudo de Saint Simon, Fourier e Prou-dhon, a quem muito admirou e exaltou até seu rompimento, quando passou a atacá-lo e negar-lhe tudo quanto antes havia afirmado.

Marx procurou inverter o método dialético de Hegel. Combateu ferozmente o idealismo em todas as suas afirmações, tornando-o sinônimo de metafísica, pois, como se observa nas obras dos marxistas, idealista e metafísico são sempre tomados como sinônimos. Não é o espírito que determina o processo histórico e com êle as relações econômicas, mas, sim, estas são os fatores determinantes do espírito. Estas formam a estrutura de que o espírito, através de suas múltiplas manifestações, é apenas a superestrutura. Esta idéia fundamental deu origem ao materialismo dialético e ao materialismo histórico, fundamentando, posteriormente, a doutrina socialista, que é conhecida geralmente por marxismo. Marx não só combateu o idealismo como o materialismo mecanicista, defendendo o materialismo dialético, o qual já tivemos oportunidade de estudar.

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PRAGMATISMO

Embora tenha sido usada a palavra pragmatismo várias vezes na filosofia, é só com o pragmatismo contemporâneo, desenvolvido nos Estados Unidos, que ela tomou um sentido nítido e doutrinário. Encontram-se formas de pensar pragmatista nos sofistas gregos e em diversos pensadores do Renascimento. Mas, com o surgimento do positivismo e dos movimentos anti-intelectuais, é que o pragmatismo tomou uma direção francamente filosófica.

Ao fazer depender a verdade da utilidade, Nietzsche pode ser considerado um pragmatista. Alguns aspectos da filosofia de Spengler, de Simmel, as doutrinas relati-vistas, têm aspectos pragmatistas. Entretanto, quando se íala em pragmatismo, quer-se referir a William James, Charles Pierce, DeKey, F. C. S. Schiller, Papini, Jacoby, etc.

A F I L O S O F I A C O N T E M P O R Â N E A

Metafísicos — Espiritualistas modernos — Idealistas — Realistas — Vitalistas — Existencialistas

HARTMANN

Eduard von Hartmann (1842-1906) julga que a explicação dos fenômenos da natureza e especialmente dos fenômenos orgânicos deve-se a um princípio criador do mundo, princípio ativo e cego, análogo à idéia absoluta de He-gel e à vontade absoluta de Schopenhauer, mas que antecede a ambas, que são seus atributos, ao qual êle chama de Inconsciente. É este o incondicionado de Hartmann, a arque de todas as coisas, que, como incondicionado, não pode explicar-se por meio de qualquer relação. É assim o Absoluto. Esse princípio ativo é inconsciente.

GUYAU

Jean-Marie Guyau (1854-1888) iniciou uma crítica da moral tradicional, considerando como fatores importantes nos atos morais a vida espontânea e a motivação inconsciente. A vida espontânea não é incompatível com a vida moral, desde que seja realmente espontânea, e não produto de uma libertação das cadeias. Guyau defende uma moral sem obrigações nem sanções, a qual é atingível, desde que o homem se liberte dos preconceitos, de todos os proibidos que geram, por isso mesmo o desejo do proibido e, daí, as formas viciosas. Em linhas gerais, as opiniões de Guyau substituem o velho princípio clássico de "devo, portanto posso", pelo "posso, portanto devo".

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208 MARIO FERREIRA DOS SANTOS

NIETZSCHE

Friedrich Nietzsche (1844-1900) nasceu em Roecken, Prússia, filho de um pastor protestante e de remota origem polaca. Desde moço aprofundou seus estudos em filosofia, estudando entusiàsticamente a literatura grega. Por sua grande cultura, foi aprovado sem exames na Universidade de Leipzig, por voto unânime da Congregação. Aos 24 anos de idade, foi nomeado lente de filosofia na Universidade de Basiléia (Suíça), onde por seu precário estado de saúde, teve de aposentar-se, vivendo, desde aí, em solidão. A leitura da obra de Schopenhauer ("O Mundo como Representação e como Vontade") levou-o ao pessimismo, reagindo logo para uma concepção "otimista trágica" e para um "dionisismo", diríamos, existencial, que colimou em seu lema do Amorfati . que consiste no amor à vida com todas as suas alegrias e"tristezas. Influenciado pelas filosofias dos pré-socráticos, dos Vedanta, e por outros mais modernos, entre eles Lichtenberg, Pascal, Spi-noza, Hegel, formulou um ataque extremado a todos os valores religiosos, filosóficos e científicos tradicionais, como também aos postulados do cientificismo do século XIX.

Acusou os metafísicos, defendeu o sentimento artístico contra a frieza da razão, aceitando para a arte uma justificação suficiente da existência, concebendo o Universo como a obra de um demiurgo artista. Afirmou a existência de um instinto poderoso no homem, que o impulsiona à procura da verdade, que o impele a arte, à vitória sobre si mesmo, energia essa que é essência da vida (Vontade de Potência), essência que compõe até os átomos que não são mais que partículas de "vontade de potência", o Todo, e até Deus, que êle mesmo define como "Vontade de Potência". O homem, assim como superou o "homo faber", tem de superar o "homo sapiens". O homem é uma ponte para uma super-humanidade de homens, que vencem suas fraquezas e se libertam da tirania de seus instintos e da razão, para a conquista de uma plena liberdade. É esse o ideal do super-homem, acessível somente aos que desejam ir além de si mesmo. Esse ideal não é um fim. Nietzsche é dinamista, dialético-trágico. O pró-

C O N V I T E A F I L O S O F I A 209

prio super-homem conhecerá superações. Suas contribuições à sociologia e à psicologia são avultadas, havendo influído decisivamente em toda a concepção existencialista moderna da filosofia, e na obra dos psicologistas profundos, que decorrem de Freud, Adler e Jung, como de Spen-gler, Scheler, etc.

Sua doutrina, devido ao choque das contradições, oferece campo para interpretações díspares. Há inúmeras exegeses da sua obra e quase todas as correntes ideológicas da atualidade disputam a sua doutrina. Nietzsche faleceu nos albores deste século, havendo, porém, em 1888, perdido inteiramente a razão, devido a seus grandes pade-cimentos.

BERGSON

Henri Bergson (1859-1940). Os aspectos mais importantes das suas teses, quer na psicologia como na filosofia, já foram estudados na introdução e, por meio deles, pode ter-se uma visão geral da sua filosofia. O estudo, entretanto, dos aspectos mais específicos pode ser realizado através da leitura de suas obras, das quais há edições, além das francesas, em castelhano.

O que se deve salientar na filosofia de Bergson é o sentido do seu temporalismo, o seu conceito de duração e de intuição. A duração é para êle uma específica experiência, revelada ao indivíduo na experiência imediata. Todas as coisas, consciência, matéria, evolução, tempo, movimento, e tc , são várias formas tencionais especializadas da duração. O élan vital, o impulso vital, mostra-nos sua doutrina vitalista. Esse élan é a força original, que, de sua original unidade, se desdobra e se multiplica, se ramifica e se diversifica. É a grande fonte da vida. Esse élan \ital só pode ser revelado pela intuição, e a busca, para compreendê-lo, é a metafísica.

Outro aspecto importante da filosofia de Bergson é o tema da intuição, que teve nele um dos mais interessados estudiosos, ao qual deu uma base científica. A intuição não rejeita a razão, mas apenas a completa. Esse sentido é importante, porque abre o caminho para uma nova

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compreensão do imediato, o que já tivemos oportunidade de examinar tantas vezes, através da explanação das bases gerais que demos da Noologia.

BLONDEL

Maurice Blondel (1861-1949), seguindo os estudos de Leon Ollé-Laprune (1839-1898), chegou à conclusão que, por meios intelectualistas, não se poderia atingir a uma plena evidência. É sobre a ação que Blondel fundamenta seu trabalho filosófico. É ela o princípio sobre o qual deve formar-se a filosofia, se não quiser cair nas contradições já clássicas: o unilateralismo intelectualista ou o uni-lateralismo vitalista. A idéia permanece no próprio interior da ação, a qual supera e unifica a teoria e a prática, a contemplação e a agitação. Dessa forma, a filosofia de Blondel torna-se uma dialética do devir, culmina na afirmação da primazia do devir sobre o ser, o que manifesta, não só no aspecto metafísico, mas também nas esferas da ciência da vida, da moral e da religião. O devido é compreensível pelo devir.

Assim a ação é o Absoluto, o princípio da multiplicidade.

ROYCE

Josiah Royce (1855-1916) defende um monismo personalista e julga que a personalidade está vinculada a uma totalidade suprema, na qual se identifica a realidade e o pensamento da mesma. Essa totalidade é Deus ou o Absoluto. Através da prática é que a personalidade divina dispersa-se nas consciências particulares finitas.

Royce afirma a liberdade humana na liberdade divina, e vice-versa.

Por isso, o mundo é perfectível e há progresso à proporção que a consciência do bem moral suprime e aniquila o mal existente.

C O N V I T E A F I L O S O F I A 211

ESCOLA DE MARBURGO E A ESCOLA DE BADEN

Hermann Cohen (1842-1918) foi o fundador da escola de Marburgo, na Alemanha. Propunha-se desenvolver até suas últimas conseqüências o método transcendental kan-tiano. Foi prosseguido por Paul Natorp e Ernest Cassirer, que desenvolveram as idéias do mestre, mas num sentido livre. Opõe-se a escola de Marburgo à escola de Baden.

Os seguidores da escola de Baden criticam os de Marburgo por se deixarem arrastar pelo naturalismo, por seu racionalismo exagerado, e pela interpretação unilateral do pensamento kantiano. Foi a escola de Marburgo um centro de onde se difundiu, não só as idéias de Kant, como também as de Cohen. A escola de Baden, como a de Marburgo, predominou desde fins do século XIX até 1914 no pensamento alemão.

A escola de Baden afastou-se do idealismo em sentido gnosiológico, para aproximar-se consideravelmente ao realismo, especialmente ao chamado realismo crítico. Win-delband, Rickert, Emil Lask, Max Weber são os principais seguidores desta escola.

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A F E N O M E N O L O G I A

HUSSERL

Edmundo Husserl (natural de Hossnitz — 1859-1937) íoi discípulo de Brentano. A grande destruição de premissas no fim do século dezenove influiu sobre êle decididamente. A tradição idealista estava golpeada pelo positivismo; a corrente contrária à metafísica, e a psicologia associacionista preponderavam no ambiente filosófico; em suma: o psicologismo dominante nas mais vastas camadas e que tanto influiu e influi na literatura de ficção. Por esse psicologismo, a filosofia foi reduzida a um capítulo da psicologia. A lógica tornou-se uma simples disciplina normativa. Tudo isso Husserl combateu. Em 1900, aparecem suas Investigações lógicas. t.

a) O princípio de contradição A é A e não pode ser não-A, não se refere à possibilidade de pensar, mas à verdade do pensado, ao comportamento dos objetos. Husserl rebate as críticas da dialética trágica e do materialis-rno dialético, afirmando a lógica pura dos objetos ideais.

b) A fenomenologia é a ciência dos objetos ideais. É, portanto, uma ciência a priori, ademais de universal, ciência das essências das vivências. (Vivência é todo ato psíquico, para Husserl). Husserl abstrai o tempo quando afirma que o princípio de contradição independe do tempo. Assim o ser ideal é intemporal.

c) Mas somente ao ser real Husserl admite a sujeição ao tempo, hic et nunc, aqui e agora. Dessa forma, os objetos ideais são espécies, não têm o princípio de indivi-duação real. Os objetos ideais são, pois, espécies, ou, melhor, essências.

C O N V I T E A P I L O S O I M A is i r*

d) A "fenomenologia" trata das significações. i;: M significação que faz que uma palavra seja palavra, do <:<>n trário é puramente um sinal. Mas a significação não cstii na palavra. Esta simplesmente chama n atenção para a significação. Nem tampouco a significação está no oh jeto da palavra, porque este pode não existir; por extin pio: círculo quadrado.

As significações são, assim, objetos ideais. F: a significação que chama a atenção sobre o objeto.

e) Em suma, a fenomenologia é a ciência descritiva das essências da consciência pura. Consciência para Husserl, é:

1) conjunto das vivências; unidade da consciência;

2) o ter consciência de uma coisa expressa o sentido da consciência. Não basta ver, é preciso dar-se conta que se vê;

3) consciência é uma vivência intencional.

f) O momento fundamental da fenomenologia é a epokhé (abstração) fenomenológica, que consiste em tomar uma vivência e pô-la "entre parêntesis". A sua fase está no idealismo husserliano.

g) O "eu puro", de Husserl, é o feixe de vivência, e não "sujeito histórico". Isto forma a consciência pura. Das vivências, o fenomenólogo eleva-se para as essências. É o que Husserl chama de reducção eidética. Mas essência para Husserl, é: o conjunto de todas as notas unidas entre si por função que constitui a essência da vivência.

h) A "fenomenologia", é, assim, uma doutrina e um método, além de uma tese idealista.

i) É uma ciência que trata e descreve as essências das vivências da consciência pura. É, portanto, uma ciência a priori e universal. A priori, porque descreve essências (isto é, objetos ideais e não empíricos). É universal, porque se refere a todas as vivências. Como método: leva-nos ao conhecimento das essências. Conhecimento evidente, fundado na intuição, não numa intuição sensível, mas eidética, de essências.

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j) Por reducção fenomenológica, chegamos à intuição da essência.

Crítica: Husserl é idealista, repetimos. E, como idealista, atinge ao pináculo da concepção refinada do idealismo, muito além de Berkeley, etc. Por mais que Husserl quisesse evitar que a "fenomenologia" se transformasse em metafísica, ela é metafísica. Por outro lado, os feno-menólogos só consideram o objeto como objeto ideal (es-sencialista em Husserl e ontológico em Heidegger), não lhe concedendo o estrito valor ôntico, como se a consciência estivesse impossibilitada de proferir um juízo, essencial e existencialmente. Husserl, numa série de conferências realizadas na França, afirmou que a fenomenologia deve sua incitação a Descartes, e que se poderia denominar quase de um neo-cartesianismo, muito embora se visse forçado a rechaçar o conteúdo doutrinai do cartesianismo. Mas podemos afirmar, no entanto, que a fenomenologia tem laivos de idealismo kantiano e às vezes de um empi-ijsmo anti-intelectualista.

Os temas husserlianos são numerosos. E convém anotar que a maior parte de suas obras ainda não foram publicadas.

SCHELER

Max Scheler (1875-1928) foi discípulo de Eucken, mas encontrou na fenomenologia de Husserl seu campo de ação, que êle desenvolveu com observações e contribuições próprias. As contribuições mais importantes de Scheler se dão no terreno da axiologia.(a ciência dos valô-les). Influído pelo pensamento de Santo Agostinho, Pascal e Nietzsche, Scheler (esse "Nietzsche cristão", como o chamaram) construiu uma teoria dos valores, que examinamos em nosso "Filosofia Concreta dos Valores".