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CONTEXTO BÍBLICO: CAMINHO PARA A REVELAÇÃO Fabrizio Zandonadi Catenassi 1 A Bíblia não é somente um livro. O valor contido em suas palavras é tão grande, que, unido ao seu caráter de revelação, faz com que sua definição fuja de simples traços em uma folha de papel. A Bíblia é uma compilação de vários escritos inspirados por Deus, segundo o próprio termo “Bíblia”, que deriva do grego, Biblos, e significa “livros” ou “coleção de livros” 1 . A Bíblia também é chamada de Sagrada Escritura, porque é capaz de santificar aquele que a lê e também porque nela se encerra toda a santidade, que é o próprio Deus 2 . A Bíblia é profunda e deve ser degustada suavemente para que possa ser compreendida. Nesse sentido, tecerei neste artigo algumas considerações básicas sobre a estrutura bíblica e sobre o contexto que a delineou, identificando estas estruturas como um caminho para uma compreensão mais profunda da Bíblia. Por ser retirado de um material que elaborei para um curso bíblico, tem um caráter bem formativo, incluindo sua linguagem e objetivos. Na Bíblia, o próprio Deus se revela. Revelação significa tirar o véu que veda o conhecimento sobre algo 3 . Vivemos em um mundo marcado por verdades tão contraditórias à nossa fé e por afirmações superficiais sobre a existência, que acabam por tirar o homem de sua realidade, não o fazendo reconhecer-se como filho de Deus e tirando-o do seu papel na história da salvação. O homem, por sua vez, tende a ser levado para o que é mais confortante, muitas vezes, entregando-se a diferentes doutrinas sem buscar enxergar as conseqüências de assumir esta ou aquela postura ou atitude, afastando-se de Deus. E o conhecimento sobre o divino fica nublado pelas experiências vividas ou pelas ideologias cegamente assumidas na vida. Para que possamos, então, conhecer e experimentar da natureza de Deus, é necessário passar por um processo em que cai o véu que nossas experiências longe do Pai nos colocaram . Nesse sentido, encontramos um Deus sempre disposto a se deixar conhecer. Deus é bom, por excelência. E sabemos que esta bondade, quando conhecida pelo homem, o encanta, o protege e o faz filho. Este encontro paternal é fruto do constante esforço de Deus de tornar- se conhecido por nós e de se achegar ao nosso coração pecador. A Bíblia traz em si um forte caráter de revelação, pois é o próprio Deus que, cheio de amor, quer revelar-se gradualmente e tornar conhecido o mistério de sua vontade (cf. Ef 1, 9). Junto com a Sagrada Tradição e o Sagrado Magistério, a Sagrada Escritura forma o pilar de nossa fé, que nos sustenta numa caminhada segura rumo à constante experiência com o Pai. Dessa forma, a Bíblia está longe de assumir uma postura estática, ela é o próprio Deus se deixando conhecer. O Catecismo da Igreja Católica (CIC) nos fala que a fé cristã não é uma “religião do Livro” 4 . Pelo contrário, é uma religião da Palavra de Deus, de um Verbo que não é mudo, mas que se encarnou para que fosse conhecido e amado e para que servisse ao mundo com seu amor. De fato, durante toda a caminhada do povo de Deus, a voz do Pai nunca se calou. E falou continuamente com seu povo, inicialmente, de boca em boca, se mostrando como o Deus justo e amoroso que os levava à verdade. De diversos modos, Deus falou com o seu povo, de modo especial pelos profetas (cf. Hb 1,1), sempre sob a assistência do Espírito. 1 Membro do Ministério Arquidiocesano de Cura da RCC Londrina-PR. Contato: [email protected].

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CONTEXTO BÍBLICO: CAMINHO PARA A REVELAÇÃO

Fabrizio Zandonadi Catenassi1

A Bíblia não é somente um livro. O valor contido em suas palavras é tão grande, que,unido ao seu caráter de revelação, faz com que sua definição fuja de simples traços em umafolha de papel. A Bíblia é uma compilação de vários escritos inspirados por Deus, segundo opróprio termo “Bíblia”, que deriva do grego, Biblos, e significa “livros” ou “coleção delivros”1. A Bíblia também é chamada de Sagrada Escritura, porque é capaz de santificar aqueleque a lê e também porque nela se encerra toda a santidade, que é o próprio Deus2. A Bíblia éprofunda e deve ser degustada suavemente para que possa ser compreendida. Nesse sentido,tecerei neste artigo algumas considerações básicas sobre a estrutura bíblica e sobre o contextoque a delineou, identificando estas estruturas como um caminho para uma compreensão maisprofunda da Bíblia. Por ser retirado de um material que elaborei para um curso bíblico, temum caráter bem formativo, incluindo sua linguagem e objetivos.

Na Bíblia, o próprio Deus se revela. Revelação significa tirar o véu que veda oconhecimento sobre algo3. Vivemos em um mundo marcado por verdades tão contraditórias ànossa fé e por afirmações superficiais sobre a existência, que acabam por tirar o homem de suarealidade, não o fazendo reconhecer-se como filho de Deus e tirando-o do seu papel na históriada salvação. O homem, por sua vez, tende a ser levado para o que é mais confortante, muitasvezes, entregando-se a diferentes doutrinas sem buscar enxergar as conseqüências de assumiresta ou aquela postura ou atitude, afastando-se de Deus. E o conhecimento sobre o divino ficanublado pelas experiências vividas ou pelas ideologias cegamente assumidas na vida. Para quepossamos, então, conhecer e experimentar da natureza de Deus, é necessário passar por umprocesso em que cai o véu que nossas experiências longe do Pai nos colocaram .

Nesse sentido, encontramos um Deus sempre disposto a se deixar conhecer. Deus ébom, por excelência. E sabemos que esta bondade, quando conhecida pelo homem, o encanta,o protege e o faz filho. Este encontro paternal é fruto do constante esforço de Deus de tornar-se conhecido por nós e de se achegar ao nosso coração pecador. A Bíblia traz em si um fortecaráter de revelação, pois é o próprio Deus que, cheio de amor, quer revelar-se gradualmente etornar conhecido o mistério de sua vontade (cf. Ef 1, 9). Junto com a Sagrada Tradição e oSagrado Magistério, a Sagrada Escritura forma o pilar de nossa fé, que nos sustenta numacaminhada segura rumo à constante experiência com o Pai.

Dessa forma, a Bíblia está longe de assumir uma postura estática, ela é o próprio Deusse deixando conhecer. O Catecismo da Igreja Católica (CIC) nos fala que a fé cristã não é uma“religião do Livro”4. Pelo contrário, é uma religião da Palavra de Deus, de um Verbo que nãoé mudo, mas que se encarnou para que fosse conhecido e amado e para que servisse ao mundocom seu amor. De fato, durante toda a caminhada do povo de Deus, a voz do Pai nunca secalou. E falou continuamente com seu povo, inicialmente, de boca em boca, se mostrandocomo o Deus justo e amoroso que os levava à verdade. De diversos modos, Deus falou com oseu povo, de modo especial pelos profetas (cf. Hb 1,1), sempre sob a assistência do Espírito.

1 Membro do Ministério Arquidiocesano de Cura da RCC Londrina-PR. Contato: [email protected].

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Em 2 Pd 1,20, está escrito que “jamais uma profecia foi proferida por efeito de uma vontadehumana. Homens inspirados pelo Espírito Santo falaram da parte de Deus”. Para que estainspiração divina ecoasse em nossos dias, foi necessário que a Palavra não fosse só falada,mas escrita. E, nesse sentido, o mesmo Espírito que inspirou os profetas a falarem somente avontade de Deus para o povo também inspirou os escritores bíblicos (hagiógrafos) aescreverem aquilo que Deus ansiava que fosse conhecido por seu povo. A Bíblia, portanto, foirevelada gradualmente, no processo da economia da salvação, para só depois ser escrita5.

Portanto, a Bíblia foi escrita não somente por homens, mas conta com a mão dopróprio Deus guiando os hagiógrafos. O CIC6 afirma que “Deus é o Autor da SagradaEscritura”, sendo esta autoria expressa pela inspiração divina. O Dei Verbum afirma que Deus

“escolheu homens, utilizou-se deles sem tirar-lhes o uso das próprias capacidades efaculdades, a fim de que, agindo Ele próprio neles e por eles, consignassem por escrito, comoverdadeiros autores, aquilo tudo e só aquilo que ele próprio quisesse”7. O CIC traz estaverdade, sob as falas de Santo Agostinho8:

Lembrai-vos que é uma mesma a Palavra de Deus que se ouve em todas as

Escrituras, é um mesmo o Verbo que ressoa na boca de todos os escritores sagrados,

ele que, sendo no início Deus junto de Deus, não tem necessidade de sílabas, por não

estar submetido ao tempo.

Deus inspira o homem. Mas é importante entender que a Inspiração divina é diferenteda inspiração humana. Dizemos que estamos inspirados quando realizamos uma tarefaprontamente, sem demora e as idéias logo surgem à mente. A inspiração divina é a “moção deDeus (causa principal) no hagiógrafo (causa secundária), elevando e aplicando as faculdadeshumanas para que este escreva tudo e só aquilo que Deus quer que seja escrito”3

. Daí, percebe-se que a inspiração não meramente toca a inteligência, de forma sutil, como que sussurrando oque se deve fazer. Na verdade, a inspiração divina é ativa, e fez com que os hagiógrafos, detodo o conhecimento que já tinham, apurassem como verdade de Deus somente aquilo que Elequeria que fosse a Sua Palavra9. É notável que, por vezes, o autor bíblico sequer soubesse osentido das palavras inspiradas9. Veja o exemplo da profecia de Isaías:

Eis que uma virgem conceberá

E dará à luz um filho

E lhe porá o nome de Emanuel (Is 7, 14).

É pouco provável que Isaías soubesse exatamente qual era o sentido das palavras queescrevera ao se deparar com elas. No entanto, escrevia, pois era inspirado pela graça divina,um influxo sobrenatural de Deus10. Daí, assumimos que a Bíblia é a fala de Deus enquanto é

redigida sob a moção do Espírito Santo11 e acentuamos o valor que ela tem para nossa

salvação. Como nos convence Paulo:

E desde a infância conheces as sagradas Escrituras e sabes que elas têm o condão de

te proporcionar a sabedoria que conduz à salvação pela fé em Jesus Cristo. Toda a

Escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar, para repreender, para corrigir e

para formar na justiça (2Tm 3, 15-16).

Por isso, diz a Constituição Dogmática Dei Verbum12:

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A Igreja sempre venerou as divinas Escrituras, como sempre venerou ao próprio

corpo do Senhor, já que sem cessar toma da mesa da Palavra de Deus e do Corpo de

Cristo o pão da vida e o serve aos filhos. Sempre as teve e tem, juntamente com a

Tradição, como suprema regra de sua fé, porque, inspiradas por Deus e consignadas

por escrito uma vez para sempre, comunicam imutavelmente a palavra do próprio

Deus e fazem ressoar através das palavras dos Profetas e Apóstolos a voz do Espírito

Santo.

Diante disso, cremos na Bíblia como um livro divino-humano. Tanto Deus deixa suasprofundas marcas nos escritos, quanto os hagiógrafos. Deus deixa sua santidade, inerrância,infalibilidade e vida eterna3. Os homens deixam suas qualidades e limitações, seu grau deconhecimento, seu estilo de escrita, sua cultura e lembranças. Dessa forma, ao interpretar aSagrada Escritura, devemos estar atentos ao contexto que permeia a escrita do livro, bemcomo às características do hagiógrafo.

Por exemplo: Mateus, Marcos e Lucas escrevem que, após a crucificação, os soldadospegaram as vestes de Jesus e dividiram entre si, lançando a sorte sobre elas (Mt 27,35; Mc15,24; Lc 23,34). No entanto, João, que foi testemunha ocular do fato, estava aos pés da cruzde Jesus, em sua narrativa, assume que algumas peças foram divididas e somente a túnica foisorteada (cf. Jo 19,23-24). Se todos eles foram inspirados pelo Espírito Santo, então aonde estáo erro? Quem escreveu a narrativa corretamente?

O mais importante, quando se lê uma narrativa bíblica, não é atentar-se aos fatos e quereranalisá-los ceticamente. Apesar de haverem fatos históricos inegáveis narrados pela Bíblia, elanão é um livro histórico. Tampouco científico. É um livro que contém verdades religiosas edeve ser lido como tal.

(...) já que Deus na Sagrada Escritura falou através de homens e de modo humano,

deve o intérprete da Sagrada Escritura, para bem entender o que Deus nos quis

transmitir, investigar atentamente o que foi que os hagiógrafos de fato quiseram dar

a entender e por suas palavras aprouve a Deus manifestar13

.

Muitas vezes, as verdades religiosas que caracterizam a Bíblia estão escondidas em umahistória ou figura de linguagem ou ainda permeadas pelos gêneros literários que as compõem.Portanto, ler um texto bíblico sem buscar enxergar o contexto em que foi escrito é um erromuito grave. É necessário que, em primeiro lugar, entendamos a face humana para queconsigamos chegar à revelação divina14.

Se fôssemos analisar a Bíblia literalmente, ficaríamos perplexos ao estudar algumaspassagens:

• Em Nm 22,22-35, os hebreus se encontram com o mago Balaão, dotado de uma mulaque fala como uma pessoa humana.

• Em Lv 11,6, a lebre é tratada como um animal ruminante.• Em Nm 11,4-9 está a conhecida narrativa do pão que caiu do céu para alimentar o

povo hebreu.

Além do mais, é essencial o estudo do contexto em que os livros bíblicos foram escritos,especialmente em vista do grande período que se passou em que a Bíblia foi escrita15,aproximadamente entre os anos de 1250 a.C. e 115 d.C.1, ou seja, em um intervalo de quase

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1400 anos. Pense nas mudanças que aconteceram desde o século passado até os dias de hoje.O modelo da estrutura atômica proposto por Rutheford, por exemplo, que revolucionou osconhecimentos da Atomística, foi proposto a partir de um experimento realizado somente em1911. A descoberta dos prótons, elétrons e da radioatividade haviam ocorrido apenas algumasdécadas antes!

Portanto, buscar verdades científicas em textos escritos mil anos antes de Cristo é,necessariamente, uma inconseqüência. É essencial estudar as características de cada povo, decada hagiógrafo e do contexto no qual os livros foram inspirados por Deus. Só assim,chegamos no real sentido que Deus inspirou ao hagiógrafo, contemplando o próprio Deus quese revela pela Palavra.

É importante ressaltar que as narrativas bíblicas que não parecem ter lógica em nossos diasnão estão perdidas ou jogadas ao acaso na Bíblia. O importante é analisá-las no contexto,adotando como enfoque a História da Salvação, o tema central que serve como o elo quecostura todos os escritos e dá o sentido religioso que deve ser contemplado em nossa leitura16.A Bíblia nos narra a história da salvação do povo hebreu, que se estende também a nós emnossos dias. É a narrativa de como o povo, passo a passo, foi sendo preparado para receber avinda de Cristo. Estudar a história da Salvação é um interessante passo para compreender osentido religioso presente nos livros bíblicos.

Faça, portanto, uma experiência diferente. Ao meditar sobre determinada passagem, ou aoacompanhar a liturgia da Igreja, leia um pouco sobre o livro do qual estão sendo retiradas asleituras. Quase todas as Bíblias possuem informações sobre o autor ou sobre o livroprecedendo os escritos. Com certeza, uma nova visão irá florescer em seu coração, que oauxiliará no processo de se apaixonar por Jesus.

Que Deus nos abençoe!

1 SERVIÇO DE ANIMAÇÂO BÌBLICA. Bíblia: comunicação entre Deus e o povo. Visão Global, vol. 1. SãoPaulo: Paulinas, 2001.2 FLORES, José H. Prado. A Bíblia não é um livro, é uma pessoa. Coleção Querigma, vol. 11. São Paulo: Loyola,1996.3 PEDRINELLI, Mauro. História de Israel. Apostila do Curso de Formação Teológica para Leigos “Universidadedos Ministérios”. Londrina, 2001.4 Catecismo da Igreja Católica (CIC) 108.5 Secretaria Pedro Diocesana do PR. O conhecimento de Deus. Apostila de formação para pregadores. Maringá,2001.6 CIC 105.7 Constituição Dogmática Dei Verbum (DV) 11.8 CIC 102.9 CECHINATO, Luiz. Conheça Melhor a Bíblia. Petrópolis: Vozes, 1984.10 BATTISTINI. A Igreja do Deus vivo. Petrópolis, Vozes, 1991.11 DV 9.12 DV 21.13 DV 12.14 AQUINO, Felipe Q. Ciência e fé em harmonia. Lorena: Cléofas, 2004.15 Secretaria Pedro e Secretaria Paulo Apóstolo de Londrina-PR. Crescimento. Londrina, 2003.16 FLORES, José H. Prado. História da Salvação. Coleção Querigma; 10. São Paulo: Loyola, 1996.