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Desagravo a Calvino - parte 1

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Honra a Quem é Devida

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Introdução

O material contido neste livro é o fruto de traduções que fizemos de textos de autoria de João Calvino, do original inglês, em domínio público.

Tantas são as divisões de nosso texto que não emitimos um sumário para as mesmas, uma vez que este ocuparia um grande número de páginas.

Por uma leitura deste livro, ainda que breve, pode-se entender melhor por que Deus usou Calvino como um dos principais dos seus instrumentos para promover a Reforma no século XVI, pela qual o Protestantismo foi estabelecido em todo o mundo.

Se Calvino foi achado digno de promover uma Reforma de tal envergadura em seus dias, porque ele não deveria ser também ouvido e acatado por nós em nossos presentes dias, especialmente quando a própria Igreja Protestante apresenta sinais de falta de vigor e de apostasia?

Afinal, a Reforma nada mais é do que trazer a verdade de Deus novamente à tona, e moldar a Igreja segundo a mesma santidade que ela possuiu pela prática da Palavra nos dias apostólicos; e Calvino contribuiu para isto de forma extraordinária com a sua muita sabedoria e conhecimento de Deus e da Sua Palavra.

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Orações Por Toda a Humanidade - Comentário de 1 Timóteo 2.1

“Antes de tudo, pois, exorto que se use a prática de súplicas, orações, intercessões, ações de graças, em favor de todos os homens,”

“Portanto, exorto, antes de tudo”. Os exercícios religiosos que o apóstolo aqui ordena mantêm e fortalecem em nós o culto sincero e o temor de Deus, bem como nutrem a consciência íntegra de que falamos anteriormente. O termo, portanto, é então perfeitamente apropriado, visto que essas exortações se deduzem naturalmente do encargo que ele pusera sobre Timóteo.

Primeiramente, ele trata da oração pública e de sua regulamentação, a saber: que ela deve ser feita não só em favor dos crentes, mas em favor de todo o gênero humano. É possível que alguém argumente: “Por que devemos preocupar-nos com o bem-estar dos incrédulos, já que não mantêm nenhuma relação conosco? Não é suficiente que nós, que somos irmãos, oremos uns pelos outros e encomendemos a Deus toda a Igreja? Os estranhos não significam nada para nós”. Paulo se põe contra essa perversa perspectiva, e diz aos efésios que incluíssem em suas orações todos os homens, e não as restringissem somente ao corpo da Igreja.

Admito que não entendo plenamente a diferença entre os três ou quatro tipos de oração de que Paulo faz

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menção. É pueril a opinião expressa por Agostinho, a qual torce as palavras de Paulo para adequarem-se ao uso cerimonial de sua própria época. O ponto de vista mais simples é preferível, a saber: que súplicas são solicitações para sermos libertados do mal; orações são solicitações por algo que nos seja proveitoso; e intercessões são nossos lamentos postos diante de Deus em razão das injúrias que temos suportado. Eu mesmo, contudo, não entro em distinções sutis desse gênero; ao contrário, deduzo um tipo diferente de distinção. Proseucai [Proseuche] é o termo grego geral para todo e qualquer tipo de oração; e deh>seiv [deeseis] denota essas formas de oração nas quais se faz alguma solicitação específica. Portanto, essas duas palavras se relacionam como o gênero e a espécie. v´Enteu>xeiv [Enteuxeois] é o termo usual de Paulo para as orações que oferecemos em favor uns dos outros, e o termo usado em latim é intercessiones, intercessões. Platão, contudo, em seu segundo diálogo intitulado, Albibíades, usa a palavra de forma diferenciada para denotar uma petição definida, expressa por uma pessoa em seu próprio favor. Em cada inscrição do livro, bem como em muitas passagens, ele mostra claramente que proseuch [proseuche] é, como eu já disse, um termo geral.

Todavia, para não nos determos desproporcionalmente por mais tempo numa questão que não é de grande relevância, Paulo, em minha opinião, está simplesmente dizendo que sempre que as orações públicas foram oferecidas, as petições e súplicas devem ser formuladas em favor de todos os homens, mesmo daqueles que

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presentemente não mantêm nenhum relacionamento conosco. O amontoado de termos não é supérfluo; pois ao meu ver Paulo, intencionalmente, junta esses três termos com o mesmo propósito, ou seja, com o fim de recomendar, com o maior empenho possível, e pedir com a máxima veemência, que se façam orações intensas e constantes.

Sobre o significado de ações de graças não há nada de obscuro, pois ele não só nos incita a orar a Deus pela salvação dos incrédulos, mas também a render graças por sua prosperidade e bem-estar. A portentosa benevolência que Deus nos demonstra dia a dia, ao fazer “seu sol nascer sobre bons e maus”, é digna de todo o nosso louvor; e o amor devido ao nosso próximo deve estender-se aos que dele são indignos.

O Louvor Devido à Fé e ao Amor - Comentário de Colossenses 1.1-3

“1 Paulo, apóstolo de Cristo Jesus, por vontade de Deus, e o irmão Timóteo,

2 aos santos e fiéis irmãos em Cristo que se encontram em Colossos, graça e paz a vós outros, da parte de Deus, nosso Pai.

3 Damos sempre graças a Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, quando oramos por vós,”

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“Paulo, apóstolo”. Já expliquei, em repetidas ocasiões, o propósito de tais dedicatórias. Como, contudo, os colossenses nunca tinham lhe visto, e por essa causa sua autoridade não estava ainda tão firmemente estabelecida entre eles a ponto de fazer seu nome por si mesmo suficiente, ele afirma que é um apóstolo de Cristo separado pela vontade de Deus. Disso seguia-se que ele não agia imprudentemente ao escrever a pessoas que não o conheciam, considerando que estava desempenhando a função de embaixador que Deus tinha lhe confiado. Pois ele não estava ligado a uma Igreja meramente, mas seu apostolado se estendia a todas. O termo santos que aplica a eles é muito honroso, mas ao chamá-los de irmãos fiéis, ele os encoraja ainda mais a ouvi-lo desejosamente. Quanto às outras coisas, explicações podem ser encontradas nas Epístolas precedentes.

3. “Damos graças a Deus”. Ele louva a fé e o amor dos colossenses, para que isso possa encorajá-los à maior diligência e constância da perseverança. E mais, ao demonstrar que tem uma persuasão desse tipo com respeito a eles, ele procura a consideração amigável deles, para que possam ser mais favoravelmente inclinados e ensináveis para receber a sua doutrina. Devemos sempre observar que ele faz uso de ação de graças no lugar de congratulação, pelo que nos ensina, que em todas as nossas alegrias devemos prontamente chamar à lembrança a bondade de Deus, visto que tudo o que é agradável e prazeroso para nós, é uma benignidade conferida por ele. Além disso, ele nos

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admoesta, por seu exemplo, a reconhecer com gratidão não meramente aquelas coisas que o Senhor nos confere, mas também as que ele confere aos outros.

Mas por quais coisas ele dá graças ao Senhor? Pela fé e amor dos colossenses. Ele reconhece, portanto, que ambas são conferidas por Deus: de outra forma a gratidão seria fingida. E o que temos que não seja por meio de sua liberalidade? Se, contudo, mesmo os menores favores chegam até nós dessa fonte, quanto mais esse mesmo reconhecimento deve ser feito com referência a esses dois dons, nos quais consiste a soma inteira da nossa excelência?

“Ao Deus e Pai”. Entenda a expressão assim – A Deus, que é o Pai de Cristo. Pois não é lícito para nós reconhecer qualquer outro Deus, que não aquele que se manifestou a nós em seu Filho. E essa é a única chave para abrir a porta para nós, se estivermos desejosos de ter acesso ao Deus verdadeiro. Por esse motivo, também, ele é um Pai para nós, pois nos aceitou em seu Filho unigênito, e nele também apresenta seu favor paternal para a nossa contemplação.

“Sempre por vós”. Alguns explicam isso assim – Nós damos graças a Deus sempre por vós, isto é, continuamente. Outros explicam que significa – Orando sempre por vós. A frase pode ser interpretada dessa forma também: “Sempre que oramos por vós, ao mesmo tempo damos graças a Deus”; e esse é o significado simples: “Damos graças a Deus, e ao mesmo tempo oramos”. Com isso ele indica que a condição dos crentes

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nunca é perfeita neste mundo, de forma a não ter, invariavelmente, algo em falta. Pois mesmo o homem que começou admiravelmente bem, pode ficar aquém em centenas de ocasiões todo o dia; e devemos estar sempre fazendo progresso, enquanto ainda estamos no caminho. Tenhamos, portanto, em mente que devemos nos regozijar nos favores que já recebemos, e dar graças a Deus por eles de tal maneira, que ao mesmo tempo buscamos dele perseverança e progresso.

Distinguidos pela Fé e pelo Amor - Comentário de Colossenses 1.4

“desde que ouvimos da vossa fé em Cristo Jesus e do amor que tendes para com todos os santos;” (Colossenses 1.4)

“Tendo ouvido da vossa fé”. Esse era um meio de provocar seu amor para com eles, e sua preocupação pelo bem-estar deles, quando ouviu que eram distintos pela fé e amor. E, inquestionavelmente, os dons de Deus que são tão excelentes deveriam ter tal efeito sobre nós, a ponto de instigar-nos a amá-los onde quer que apareçam. Ele usa a expressão fé em Cristo, para que possamos sempre ter em mente que Cristo é o objeto apropriado da fé. Ele emprega a expressão amor para com os santos, não com a visão de excluir os outros, mas porque, na proporção em que alguém está unido conosco em Deus, devemos aceitá-lo ainda mais proximamente

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com especial afeição. O amor verdadeiro, portanto, se estenderá à humanidade universalmente, porque todos eles são nossa carne, e criados à imagem de Deus (Gênesis 4.6); mas com respeito a graus, começará com aqueles que são da família da fé (Gálatas 6.10).

A Esperança Reservada nos Céus - Comentário de Colossenses 1.5

“por causa da esperança que vos está reservada nos céus, da qual antes ouvistes pela palavra da verdade do evangelho,” (Colossenses 1.5)

“Por causa da esperança que vós está reservada nos céus”. Porque a esperança da vida eterna nunca será inativa em nós, não deixando assim de produzir amor em nós. O motivo é que, necessariamente, aquele que está plenamente persuadido que um tesouro da vida está reservado para ele nos céus aspirará àquele lugar, desdenhando deste mundo. A meditação, contudo, sobre a vida celestial provoca nossas afeições tanto ao louvor a Deus, como aos exercícios de amor. Os sofistas pervertem essa passagem com o propósito de enaltecer os méritos das obras, como se a esperança da salvação dependesse das obras. O raciocínio, contudo, é fútil. Pois não se segue que, porque a esperança nos estimula a aspirar viver retamente, ela esteja portanto fundamentada sobre as obras, visto que nada é mais eficaz para esse propósito do que a bondade imerecida

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de Deus, que elimina absolutamente toda confiança nas obras.

Há, contudo, um exemplo de metonímia no uso do termo esperança, visto que é usado pela coisa que se espera. Porque a esperança que está em nosso coração é a glória pela qual esperamos no céu. Ao mesmo tempo, quando ele diz, que existe uma esperança que para nós está reservada nos céus, ele quer dizer que os crentes deveriam sentir-se seguros quanto à promessa de felicidade eterna, igualmente como se já tivessem um tesouro reservado num lugar particular. Da qual já antes ouvistes. Como a salvação eterna é uma coisa que ultrapassa a compreensão do nosso entendimento, ele adiciona que a segurança dela foi trazida aos colossenses por meio do evangelho; e ao mesmo tempo diz no princípio que ele não irá apresentar algo novo, mas tem meramente em vista confirmá-los na doutrina que tinham recebido anteriormente. Erasmo traduziu assim – a palavra verdadeira do evangelho. Também estou bem ciente que, de acordo com o idioma hebraico, o genitivo é frequentemente usado por Paulo no lugar de um epíteto; mas as palavras de Paulo aqui são mais enfáticas. Pois ele chama o evangelho, kay ejxoch>n, (com o objetivo de eminência), de palavra da verdade, com a visão de colocar honra sobre ele, para que eles possam aderir mais leal e firmemente à revelação que tinham derivado dessa fonte. Assim, o termo evangelho é introduzido por aposição.

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O Fruto do Evangelho - Comentário de Colossenses 1.6-8

“6 que chegou até vós; como também, em todo o mundo, está produzindo fruto e crescendo, tal acontece entre vós, desde o dia em que ouvistes e entendestes a graça de Deus na verdade;

7 segundo fostes instruídos por Epafras, nosso amado conservo e, quanto a vós outros, fiel ministro de Cristo,

8 o qual também nos relatou do vosso amor no Espírito.”

6. “Como também em todo o mundo produz fruto”. Isso tem uma tendência tanto de confirmar como confortar os piedosos – ver o efeito do evangelho em todo o lugar, reunindo muitos para Cristo. É verdade que a fé dele não depende do seu sucesso, como se nós devêssemos crer no evangelho com base no fato de muitos crerem. Mesmo que o mundo inteiro desabasse, o próprio céu caísse, a consciência de um homem piedoso não deve hesitar, pois Deus, em quem ela está fundamentada, permanece verdadeiro. Isso, contudo, não impede nossa fé de ser confirmada sempre que percebe a excelência de Deus, que indubitavelmente se mostra com maior poder na proporção do número de pessoas que são ganhas para Cristo. Em adição a isso, na multidão dos crentes naquele tempo havia uma contemplação do cumprimento das muitas predições que estendiam o reino de Cristo do oriente ao ocidente. É um auxílio trivial ou comum à fé, ver realizado diante dos nossos olhos o que os profetas

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há tempos tinham predito quanto à extensão do reino de Cristo por todas as nações do mundo? Não existe nenhum crente que não experimente do que estou falando. Paulo, dessa forma, tinha como objetivo encorajar ainda mais os colossenses com essa declaração, pois, vendo em vários lugares o fruto e progresso do evangelho, eles poderiam abraçá-lo com maior zelo. Aujxano>menon, que traduzi como propagatur, (é propagada) não aparece em algumas cópias; mas, por sua adaptação ao contexto, escolhi não omiti-la. Parece também a partir dos comentários dos antigos que essa leitura foi sempre a mais geralmente recebida.

“Desde o dia em que ouvistes e conhecestes a graça”. Aqui ele os louva por causa de sua docilidade, visto que imediatamente aceitaram a sã doutrina; e louva-os por causa de sua constância, por perseverarem nela. É também com propriedade que a fé do evangelho é chamada o conhecimento da graça de Deus; pois ninguém jamais provou do evangelho, senão o homem que sabe estar reconciliado com Deus, e se apegou à salvação que está em Cristo. Em verdade significa verdadeiramente e sem fingimento; pois como tinha anteriormente declarado que o evangelho é verdade indubitável, assim declara agora que ele tinha sido puramente administrado sobre eles, e isso por Epafras.

Associações Não Aprovadas por Deus - Comentário de 1 Coríntios 5.9,10

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“9 Já em carta vos escrevi que não vos associásseis com os impuros;

10 refiro-me, com isto, não propriamente aos impuros deste mundo, ou aos avarentos, ou roubadores, ou idólatras; pois, neste caso, teríeis de sair do mundo.”

9. “Já escrevi para vocês em uma epístola”. A epístola de que Paulo fala não é existente em nossos dias. Nem há qualquer dúvida de que muitas outros estão perdidas. É o bastante, no entanto, que foram preservadas para nós aquelas que o Senhor previu seriam suficientes. Mas esta passagem, em consequência de sua obscuridade, tem sido foi torcida por uma variedade de interpretações, mas eu não acho que seja necessário ocupar o tempo para refutá-las, senão simplesmente apresentar o que parece-me ser o seu verdadeiro significado. Ele lembra aos coríntios que já lhes tinha ordenado que deveriam se abster de relações sexuais com os ímpios. Porque a palavra traduzida para “associáveis”, significa estar em familiaridade com qualquer um, e ter hábitos de intimidade com ele. Agora, ele recorda que apesar de terem sido admoestados, ainda permaneciam inativos.

Ele acrescenta uma exceção, para que possam entender melhor o que isso se refere especialmente aos que pertencem à Igreja, uma vez que não necessitavam ser admoestados para evitar a sociedade do mundo. Em suma, então, ele proíbe os Coríntios de terem intercâmbio com aqueles que, embora professando ser crentes, no entanto, vivem impiamente e para a desonra de Deus. Essa exceção, no entanto, aumenta a

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criminalidade dos remissos, na medida em que eles admitiam no seio da Igreja uma pessoa abertamente ímpia; pois é mais vergonhoso negligenciar os de sua própria casa do que negligenciar estranhos.

10. "Quando eu te ordeno a evitar os fornicadores, eu não quero me referir a todos eles; caso contrário seria necessário ir em busca de um outro mundo; porque temos de viver entre os espinhos, enquanto permanecemos na terra. É somente isto o que eu exijo, que você não mantenha companhia com os fornicadores, que desejam ser considerados como irmãos em Cristo, para que não pareça pela sua tolerância que aprova a sua iniquidade. "Assim, o termo mundo aqui, deve ser entendido como a presente vida, como em João 17.15: “Não peço, Pai, que os tires do mundo, mas que os livre do mal”.

Contra esta exposição uma pergunta pode ser proposta por meio de objeção: "Como Paulo disse isso em uma época em que os cristãos estavam ainda misturados com pagãos, e dispersados entre eles, o que deveria ser feito agora, quando todos confessavam o nome de Cristo? Pois, mesmo nos dias de hoje é preciso sair do mundo, se quisermos evitar a sociedade dos ímpios; e não há ninguém que seja estranho, quando todos tomam sobre si o nome de Cristo, e são consagrados a ele pelo batismo." Se alguém se sentir inclinado a seguir Crisóstomo, não encontrará qualquer dificuldade em responder, ao que Paulo tem aqui por certo e que era verdade - que, quando há o poder de excomunhão, há um

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remédio fácil para efetuar a separação entre o bem e o mal, se as igrejas fazem o seu dever. Quanto a estranhos, os cristãos de Corinto não tinham jurisdição, e eles não poderiam restringir o seu modo de vida dissoluta. Portanto, eles teriam necessariamente que deixar o mundo, se quisessem evitar a sociedade dos ímpios, cujos vícios não puderam curar.

De minha parte, eu tomo a palavra traduzida por sair no sentido de ser separados , e o termo mundo no sentido das corrupções do mundo. "Que necessidade há de uma união com os filhos deste mundo (Lucas 16. 8), por ter uma vez por todas renunciado ao mundo, você fica por conseguinte distante de sua sociedade; porque o mundo inteiro jaz no maligno" (1 João 5.19). Se alguém não está satisfeito com essa interpretação, aqui está uma outra que ainda é provável: "Eu não escrevo para você, em termos gerais, que você deve evitar uma associação com os devassos deste mundo, todavia você deve fazê-lo, sem qualquer admoestação minha." Prefiro, no entanto, a interpretação anterior.

Associações Não Aprovadas por Deus 2 - Comentário de 1 Coríntios 5.11

“Mas, agora, vos escrevo que não vos associeis com alguém que, dizendo-se irmão, for impuro, ou avarento,

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ou idólatra, ou maldizente, ou beberrão, ou roubador; com esse tal, nem ainda comais.” (1 Coríntios 5.11)

“Alguém que dizendo-se irmão”. No grego há um particípio sem um verbo. Aqueles que veem isso como se referindo ao que se segue, dão-lhe um sentido forçado, e em desacordo com a intenção de Paulo. Confesso, de fato, que esse é apenas um sentimento, e digno de ser particularmente notado - que ninguém pode ser punido pela decisão da Igreja, senão alguém cujo pecado tornou-se público e notório; mas estas palavras de Paulo não podem ser obrigadas a suportar esse significado. O que ele quer dizer, então, é o seguinte: "Se alguém é contado como um irmão no meio de vós, e ao mesmo tempo leva uma vida ímpia, e como isto é impróprio para um cristão, mantenham-se afastados de sua companhia." Em suma, ser chamado irmão, significa aqui uma falsa profissão de fé, que não tem nenhuma realidade correspondente. Mais adiante, ele não faz uma enumeração completa de pecados, mas apenas menciona cinco ou seis à guisa de exemplo, e então, depois, sob a expressão “tal pessoa”, ele resume o todo; e ele não menciona ninguém, senão o que caiu sob o conhecimento dos homens. Porque impiedade interior, e tudo o que é secreto, não se enquadra no julgamento da Igreja.

É incerto, porém, o que ele quer dizer com “idólatra”, porque como pode ser dedicado à idolatria quem tenha feito uma profissão de Cristo? Alguns são de opinião que havia entre os coríntios naquela época alguns que receberam a Cristo, mas ao mesmo tempo estava

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envolvidos, no entanto, envolvidos com idolatria, como os israelitas do passado. De minha parte, prefiro entendê-la se referindo àqueles que, enquanto tinham abandonado o culto aos ídolos, no entanto, davam uma homenagem fingida aos ídolos, com a intenção de agradar aos ímpios. Paulo declara que essas pessoas não devem ser toleradas na sociedade dos cristãos; e não sem uma boa razão, na medida em que fizeram tão pouca conta em pisar a glória de Deus debaixo dos pés. Devemos, no entanto, observar as circunstâncias do caso - que, enquanto eles tinham uma igreja, em que podiam adorar a Deus em pureza, e fazer o uso legítimo dos sacramentos, ingressaram na Igreja, de tal forma, que não renunciaram à comunhão profana dos ímpios. Faço esta observação, a fim de que não se possa pensar que devemos empregar medidas igualmente severas contra aqueles que, embora no dia de hoje dispersos sob a tirania de líderes religiosos hereges, poluem-se com muitos ritos corruptos. Estes, na verdade, eu mantenho, que pecam, no geral, a este respeito, e devem ser fortemente tratados com diligência urgente, para que aprendam a consagrar-se totalmente a Cristo; mas não me atrevo a ir tão longe a ponto de contar-lhes dignos de exclusão da comunhão dos santos, pois o seu caso é diferente.

“Com esse tal nem ainda comais”. Em primeiro lugar, temos que verificar se ele se refere aqui a toda a Igreja, ou apenas a indivíduos. Eu respondo que isso é dito, de fato, a indivíduos, mas, ao mesmo tempo, está conectado com a sua disciplina em comum; porque o

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poder de exclusão não é concedido a qualquer membro individual, mas a todo o corpo. Quando, portanto, a Igreja exclui alguém, nenhum crente deve recebê-lo em termos de intimidade para com ele; caso contrário, a autoridade da Igreja seria levada ao desprezo, se cada indivíduo tivesse a liberdade de admitir à sua mesa aqueles que foram excluídos da mesa do Senhor. Por partilhar o alimento aqui, se entende viver junto, ou ter associação familiar nas refeições. Mas se, por entrar em uma pousada, eu vejo aquele que foi excluído sentado à mesa, não há nada que me impeça de jantar com ele; pois eu não tenho autoridade para excluí-lo. O que Paulo quer dizer é que, na medida em que está em nosso poder, devemos evitar a companhia daqueles a quem a Igreja cortou de sua comunhão.

O excluído não deve ser considerado como um inimigo, mas como um irmão (2 Tessalonicenses 3.15) porque ao se colocar essa marca pública de desgraça sobre ele, a intenção é que ele possa se envergonhar e ser conduzido ao arrependimento.

Purificação da Carne e do Espírito - Comentário de 2 Coríntios 7.1

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“Tendo, pois, estas promessas, amados, purifiquemo-nos de toda a imundícia da carne e do espírito, aperfeiçoando a santificação no temor de Deus.” (2 Coríntios 7.1)

“Estas promessas, portanto”. Deus, é verdade, nos contempla em suas promessas por seu puro favor; mas quando ele tem, por sua própria vontade, conferido a nós seu favor, ele logo em seguida exige de nós a gratidão em troca. Assim, o que ele disse a Abraão, “Eu sou teu Deus” (Gênesis 17. 7), foi uma oferta da sua bondade imerecida, mas ele, ao mesmo tempo acrescentou o que ele exigia dele – “Anda na minha presença e sê perfeito”. Como, no entanto, esta segunda frase nem sempre é expressada, Paulo nos ensina que em todas as promessas, esta condição está implícita, as quais devem ser incitações a nós para promover a glória de Deus. Para que propósito ele apresenta um argumento para nos estimular? É a partir disto, que Deus nos confere uma honra tão ilustre. Essa, então, é a natureza das promessas, para que elas nos chamem para a santificação, como se Deus as tivesse interposto por um acordo implícito. Sabemos, também, que a Escritura ensina isto em várias passagens, em referência ao projeto da redenção, e a mesma coisa deve ser vista como a aplicação de cada prova do seu favor.

“De toda a imundícia da carne e do espírito”. Tendo já mostrado, que somos chamados à pureza, agora ele acrescenta, que esta deveria ser vista no corpo, bem como na alma; porque o termo carne significa aqui corpo, e o termo espírito significa alma, é manifesto disto, que

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se o termo espírito significa a graça da regeneração, a declaração de Paulo, em referência à poluição do espírito seria absurda. Ele nos queria então, puros de contaminações, não só interiormente, tendo apenas a Deus como testemunha; mas também no exterior, como estando sob a observação dos homens. "Não devemos ser somente de consciência casta aos olhos de Deus. Também devemos consagrar a ele todo o nosso corpo e todos os nossos membros, para que nenhuma impureza possa ser vista em qualquer parte em nós."

Agora, se considerarmos qual é o ponto que ele tem em vista, facilmente iremos perceber, que são aqueles que agem com imprudência excessiva, que desculpam a sua idolatria, eu não sei sob que pretextos. Porque, assim como a impiedade interior, e superstição, de qualquer tipo, é a contaminação do espírito, o que eles entendem por contaminação da carne, senão uma profissão externa de impiedade, seja isto fingido, ou expressado do coração? Eles se vangloriam de uma consciência pura; que, de fato, está baseada em motivos falsos, mas concedendo-lhes aquilo do que se gabam, eles têm apenas a metade do que Paulo requer dos crentes. Portanto, eles não têm base para pensar, que têm dado satisfação a Deus por aquela metade; porque, deixe uma pessoa mostrar qualquer aparência de uma total idolatria, ou qualquer indicação da mesma, ou tomar parte em rituais maus ou supersticiosos, embora ela fosse - o que ela não pode ser - perfeitamente reta em sua própria mente, ela seria, no entanto, não isenta da culpa de poluir seu corpo.

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“Aperfeiçoando a santidade”. Apesar de que o verbo ἐπιτελεῖν em grego signifique às vezes, “aperfeiçoar”, e às vezes “realizar ritos sagrados”, isto é elegantemente usado aqui por Paulo na antiga significação, que é a mais frequente - de tal forma, porém, como para aludir à santificação, da qual ele está agora tratando. Por enquanto isto denota perfeição, parece ter sido intencionalmente transferido para ofícios sagrados, porque não deve haver nada defeituoso no serviço de Deus, senão que tudo deve ser completo. Assim, a fim de que você possa se santificar a Deus corretamente, você deve se dedicar de corpo e alma inteiramente a ele.

“No temor de Deus”. Porque, se o temor de Deus nos influencia, não estaremos tão dispostos a sermos indulgentes conosco, e nem haverá uma erupção dessa audácia de luxúria que se mostrou entre os Coríntios. Porque como acontece que muitos se deliciam tanto em idolatria exterior, e altivamente defendem tão grosseiro vício, a não ser por eles pensarem que zombam de Deus impunemente? Se o temor de Deus tivesse domínio sobre eles, eles iriam imediatamente, no primeiro momento, deixar todos os sofismas, sem a necessidade de serem constrangidos a isso por qualquer contestação.

(Nota do Pr Silvio Dutra: Calvino apresenta uma excelente interpretação desta passagem, ao associar o assunto da santificação à vida devotada a Deus, em separação sobretudo de práticas idolátricas, e não

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meramente em seu sentido moral, o qual é importante, mas que é apenas a consequência de um caminhar na presença de Deus e em comunhão com Ele. Apoia a sua interpretação o fato de Paulo ter tratado no contexto imediato anterior, nos últimos versículos do 6º capítulo, à não conveniência da associação dos crentes com as práticas idolátricas daqueles que não conhecem a Deus, seja a qual pretexto for.)

Tristeza que é para Arrependimento e Vida - Comentário de 2 Coríntios 7.8-10

“8 Porquanto, ainda que vos tenha contristado com a carta, não me arrependo; embora já me tenha arrependido vejo que aquela carta vos contristou por breve tempo,

9 agora, me alegro não porque fostes contristados, mas porque fostes contristados para arrependimento; pois fostes contristados segundo Deus, para que, de nossa parte, nenhum dano sofrêsseis.

10 Porque a tristeza segundo Deus produz arrependimento para a salvação, que a ninguém traz pesar; mas a tristeza do mundo produz morte.”

8. “Porque ainda que eu vos tenha entristecido”. Paulo agora começa a pedir desculpas ao Coríntios por lhes ter tratado um pouco asperamente numa antiga epístola.

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Agora, temos de observar, no que uma variedade de modos ele lida com eles, de forma que ele pudesse parecer como se tivesse suportado diferentes caracteres. A razão é que o seu discurso foi dirigido a toda a Igreja. Havia alguns lá, que entretinham uma visão desfavorável dele - havia outros que o tinham, como merecia, na mais alta estima - alguns tinham dúvidas; os outros estavam confiantes - alguns eram dóceis: outros eram obstinados. Em consequência desta diversidade, ele foi obrigado a dirigir seu discurso agora em um lado, depois de outro, a fim de adequar-se a todos. Agora, ele diminui, ou melhor, ele tira completamente qualquer ocasião de escândalo, por conta da severidade que ele havia usado, em razão de esta ter em vista a promoção do bem-estar deles. "O seu bem-estar", diz ele, "é tanto um objeto de desejo para mim, que tenho o prazer de ver que eu lhes tenho feito o bem." Este abrandamento só é admissível quando o professor fez o bem o tanto quanto foi necessário, por meio de suas reprovações; pois se ele tivesse encontrado, que as mentes dos Coríntios ainda permaneciam obstinadas, e se ele tivesse percebido uma vantagem decorrente da disciplina que ele tinha tentado, ele, sem dúvida, nada teria diminuído de sua antiga severidade. Deve ser observado, entretanto, que ele se alegra por ter sido uma ocasião de tristeza para aqueles a quem ele amava; pois estava mais desejoso de benefício, do que agradá-los.

Mas o que ele quis dizer quando ele acrescenta – “embora já me tenha arrependido? Porque se admitirmos, que Paulo se sentiu insatisfeito com o que

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ele havia escrito, se seguiria uma incoerência de não leve caráter - que s Epístola anterior foi escrita sob uma erupção de impulso, em vez de sob a orientação do Espírito. Respondo que a palavra arrependimento é usada aqui num sentido amplo para significar tristeza. Pois enquanto ele entristeceu os Coríntios, ele próprio também participou da tristeza, e de uma forma infligiu sofrimento ao mesmo tempo a si mesmo. "Ainda que eu lhe tenha causado sofrimento contra minha vontade, e isso me entristeceu sob a necessidade de ser rude com você, eu não estou mais triste por causa disso, quando eu vejo que tem sido um benefício para você." Tomemos por exemplo o caso de um pai; porque um pai sente tristeza em conexão com sua severidade, quando a qualquer momento ele corrige seu filho, mas aprova isto, não obstante, porque vê que é propício para a vantagem de seu filho. Da mesma forma como Paulo não podia sentir qualquer prazer em irritar as mentes dos Coríntios; mas, consciente do motivo que influenciou sua conduta, ele preferiu o dever à inclinação para poupá-los.

“Pois vejo que aquela carta.” A transição é abrupta; mas, afinal, não prejudica a clareza do sentido. Em primeiro lugar, ele diz, que ele havia totalmente apurado o fato pelo efeito, que a epístola anterior, ainda que por um momento indesejável, tinha, no entanto, sido vantajosa, e em segundo lugar, que se alegrou por conta daquela vantagem.

9. “Não porque vocês foram entristecidos”. Ele quer dizer, que ele não sente prazer em qualquer que seja a

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sua tristeza - mais ainda, ele tinha sua escolha, ele iria se esforçar para promover igualmente seu bem-estar e sua alegria, pelos mesmos meios; mas que, como ele não poderia agir de outra forma, o bem-estar deles era de tanta importância, em sua opinião, que se alegrou de que haviam sido contristados para arrependimento. Pois há casos de médicos, que são, de fato, em outros aspectos bons e fiéis, mas são ao mesmo tempo duros, e não poupam seus pacientes. Paulo declara que ele não é de tal disposição em empregar curas duras, quando não constrangido pela necessidade. Como, no entanto, tinha se saído bem, que tinha produzido aflição com aquele tipo de cura, ele se congratula sobre o seu sucesso. Ele faz uso de uma forma similar de expressão em 2 Coríntios 5.4, “os que estamos neste tabernáculo gememos angustiados, não por querermos ser despidos, mas revestidos, para que o mortal seja absorvido pela vida.”

10. “Tristeza segundo Deus”. Em primeiro lugar, a fim de compreender o que se entende por esta frase “segundo Deus”, devemos observar o contraste, porque a tristeza que é segundo Deus é contrastada por ele com a tristeza do mundo. Vamos agora tomar, também, o contraste entre dois tipos de alegria. A alegria do mundo é, quando os homens loucamente, e sem o temor do Senhor, exultam com vaidade, isto é, no mundo, e, embriagados com uma felicidade passageira, nada procuram mais alto do que a terra. A alegria que é segundo Deus é, aquela em que os homens colocam toda a sua felicidade em Deus, e têm satisfação em Sua graça, e mostram desprezo ao mundo, usando a prosperidade terrena como se eles

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não a usassem, e alegres em meio a adversidade. Por conseguinte, a tristeza do mundo é quando os homens ficam desalentados em consequência de aflições terrenas, e ficam sobrecarregados com a dor; enquanto a tristeza segundo Deus é a daqueles que têm um olho voltado para Deus, enquanto eles acham que isto é a única miséria - ter perdido o favor de Deus; quando, impressionados com o temor do Seu juízo, lamentam por seus pecados. Desta tristeza Paulo faz a causa e a origem do arrependimento. Isto deve ser cuidadosamente observado, pois a menos que o pecador esteja insatisfeito consigo mesmo, detestando o seu modo de vida, e ficando profundamente contristado a partir de uma apreensão do pecado, ele nunca vai se valer do Senhor. Por outro lado, é impossível para um homem experimentar uma dor desse tipo, sem que ela dê um nascimento para um novo coração. Daí o arrependimento ter sua origem na tristeza, pela razão que eu mencionei - porque ninguém pode voltar para o caminho direito, senão o homem que odeia o pecado; mas onde o ódio do pecado está, há autoinsatisfação e tristeza.

Há, no entanto, uma bela alusão aqui ao termo arrependimento, quando ele diz - não estar arrependido; porque embora uma coisa seja desagradável ao primeiro gosto, torna-se desejável por sua utilidade. O epíteto, é verdade, pode se aplicar ao termo salvação, igualmente ao arrependimento, mas parece-me que se adequa melhor com o prazo de arrependimento "Somos ensinados pelo próprio resultado, que a dor não deve ser

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dolorosa para nós, ou angustiante. Da mesma forma, embora o arrependimento contenha em si um certo grau de amargura, se, dele é dito que não devemos não nos arrepender, por conta do fruto precioso e agradável que ele produz."

“Para a salvação”. Paulo parece fazer do arrependimento a base da salvação. Se fosse assim, ele afirmaria a seguir, que somos justificados pelas obras. Respondo que devemos observar o que Paulo trata aqui, porque ele não está falando sobre a base da salvação, mas simplesmente elogiando o arrependimento pelo fruto que ele produz, ele diz que é como um caminho pelo qual podemos chegar à salvação. Nem isto é sem uma boa razão; porque Cristo nos chama por meio de favor livre, mas isto é para o arrependimento. (Mateus 9.13). Deus por meio de livre favor perdoa nossos pecados, mas somente quando renunciamos a eles. Mais ainda, Deus realiza em nós a um e ao mesmo tempo duas coisas: somos renovados pelo arrependimento, somos libertos do cativeiro de nossos pecados; e, sendo justificados pela fé, somos libertos também da maldição de nossos pecados. Eles são, portanto, frutos inseparáveis da graça, e, em consequência de sua conexão invariável, o arrependimento pode com idoneidade e propriedade ser representado como uma introdução para a salvação, mas neste modo de falar dele, ele é representado como um efeito, em vez de uma causa. Estes não são refinamentos para fins de evasão, senão uma solução verdadeira e simples, porque, enquanto a Escritura nos ensina que nunca obtemos o perdão dos pecados, sem

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arrependimento, este representa, ao mesmo tempo, em uma variedade de passagens, a misericórdia de Deus somente como o fundamento da nossa obtenção dele.

Vindicando a Santidade de Deus - Comentário de 2 Coríntios 7.11

“Porque quanto cuidado não produziu isto mesmo em vós que, segundo Deus, fostes contristados! Que defesa, que indignação, que temor, que saudades, que zelo, que vindita! Em tudo destes prova de estardes inocentes neste assunto.” (2 Coríntios 7. 11)

“Que cuidado isto produziu em você”. Eu não entrarei em qualquer disputa sobre se as coisas que Paulo enumera são efeitos de arrependimento, ou pertencem a ele, ou sejam preparatórias para isso, pois tudo isto é desnecessário para a compreensão do propósito de Paulo, pois ele simplesmente prova o arrependimento dos Coríntios a partir de seus sinais, ou as coisas que o acompanharam. Ao mesmo tempo, ele faz a tristeza segundo Deus ser a fonte de todas essas coisas, na medida em que surgiram a partir disto - que é seguramente o caso; porque quando nós começamos a sentir autoinsatisfação, somos posteriormente despertados a buscar as outras coisas.

O que se entende por desejo sincero, podemos entender do que se lhe opõe; porque contanto não haja qualquer

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apreensão do pecado, permanecemos negligentes e inativos. Daí sonolência ou falta de cuidado, ou indiferença, se opõe a esse desejo, a que ele faz menção. Assim, “desejo sincero” significa simplesmente uma assiduidade ansiosa e ativa na correção do que está errado, e na mudança da vida.

Paulo emprega o termo ἀπολογίαν (defesa). É por esse motivo que eu teria preferido manter o termo defensionem, que o antigo intérprete tinha usado. Deve, no entanto, ser observado, que é um tipo de defesa que consiste antes em súplica por perdão, do que na atenuação do pecado. Como um filho, que está desejoso de livrar-se do castigo de seu pai, não entra em um pleito regular de sua causa, mas reconhecendo suas falhas desculpa a si mesmo, em vez de ter o espírito de um suplicante, e que em tom de confiança, hipócrita, também, se desculpa - ou melhor, eles arrogantemente se defendem, mas é um pouco à maneira de disputarem com Deus, do que de voltarem a buscar o Ser favor; e algum outro preferia a palavra excusationem (desculpa). Eu não me oponho a isto; porque o significado atingirá a mesma coisa, que o Coríntios foram solicitados a se limparem, enquanto que anteriormente eles não se importavam com o que Paulo pensava deles.

“Sim, que indignação”. Esta disposição, também, é em tristeza sagrada - que o pecador está indignado contra os seus vícios, e até mesmo contra si mesmo, como também todos os que são movidos por um zelo correto estão indignados, como muitas vezes eles como que veem que

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Deus está ofendido. Essa disposição, no entanto, é mais intensa do que tristeza. Porque o primeiro passo é que o mal seja desagradável para nós. O segundo é que, sendo inflamados com ira santa, nós pressionamos severamente sobre nós mesmos, para que a nossa consciência possa ser tocada para ser avivada. Pode, no entanto, ser entendido aqui, por indignação, que os Coríntios ficaram inflamados contra os pecados de alguns, a quem haviam poupado anteriormente. Assim, eles se arrependeram de sua concordância ou conivência.

O temor é o que surge a partir de uma apreensão do julgamento divino, enquanto o agressor pensa - "Marque bem isto, uma conta deve ser prestada por ti, e como esperas avançar na presença de tão grande juiz?" Pois, alarmado com tal consideração, ele começa a tremer.

Como, porém, os próprios ímpios são, por vezes, tocados com um alarme desta natureza, ele acrescenta “desejo”. Esta disposição sabemos ser mais de natureza voluntária do que por medo, pois muitas vezes temos medo contra a nossa vontade, mas nunca desejamos, senão por inclinação, por disposição. Assim, como haviam temido o castigo ao receber a admoestação de Paulo, assim eles ansiosamente desejaram se corrigir.

Mas o que devemos entender por zelo? Não pode haver dúvida de que ele pretendia um clímax. Por isso, zelo é mais do que desejo. Agora podemos entender por que, foi despertado um espírito de rivalidade mútua entre os Coríntios. É mais simples, no entanto, compreendê-lo no sentido de que cada um, com grande fervor de zelo, o

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fizeram com o objetivo de dar provas de seu arrependimento. Assim zelo é a intensidade do desejo.

“Sim, que vindita!”. Ou seja, que vingança! O que dissemos em relação à indignação, deve ser aplicado também à vingança, por causa da maldade que tinham encorajado por sua conivência e indulgência, eles tinham se mostrado depois como rigorosos em vindicar a santidade de Deus. Eles tinham há algum tempo tolerado o incesto; mas, ao serem admoestados por Paulo, eles não tinham somente evitado o semblante do ofensor, mas haviam lhe reprovado severamente - esta foi a vingança a que o apóstolo se refere. Como, no entanto, devemos punir pecados onde quer que estejam, e não somente isso, mas devemos começar mais especialmente com nós mesmos, há algo mais para dizer em que o apóstolo diz aqui, pois ele fala dos sinais de arrependimento. Há, entre outros, este em particular - que, por punir os pecados, podemos evitar, de uma forma, o juízo de Deus, como ele ensina em outro lugar, se nós nos julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados pelo Senhor (1 Coríntios 11.31). Nós não devemos, no entanto, inferir a partir disso, que a humanidade, tomando vingança contra si, compense a Deus por causa do castigo que lhe era devido, para que eles se redimam de sua mão. O caso fica assim - que, como é o desígnio de Deus nos castigar, para nos despertar da nossa falta de cuidado, que, sendo lembrados de seu descontentamento, possamos estar em guarda para o futuro, quando o próprio pecador está de antemão infligindo a punição em si mesmo por sua

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própria vontade, o efeito é, que ele já não tem necessidade de tal admoestação de Deus. Mas pergunta-se, se o Coríntios tinham um olho em Paulo, ou em Deus, nesta vingança, assim como no zelo, e na vontade, e quanto ao demais. Respondo que todas estas coisas são, sob todas as circunstâncias, atendidas sob o arrependimento, mas há uma diferença no caso de um indivíduo pecar secretamente diante de Deus, ou abertamente perante o mundo. Se o pecado de uma pessoa é segredo, é o suficiente que ele tenha essa disposição perante os olhos de Deus; por outro lado, onde o pecado está aberto, é requerida uma manifestação de arrependimento aberta. Assim, os Coríntios, que tinham pecado abertamente e com grande ofensa ao bem, estavam obrigados a dar provas do seu arrependimento por essas evidências.

Unidade na Promulgação do Evangelho - Comentário de Filipenses 1.27

“Vivei, acima de tudo, por modo digno do evangelho de Cristo, para que, ou indo ver-vos ou estando ausente, ouça, no tocante a vós outros, que estais firmes em um só espírito, como uma só alma, lutando juntos pela fé evangélica;” (Filipenses 1.27)

“Por modo digno do evangelho”. Nós fazemos uso desta forma de expressão, quando estamos inclinados a passar para um novo assunto. Assim, é como se Paulo tivesse

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dito: "Mas, quanto a mim, o Senhor proverá, mas quanto a vocês, etc, seja o que for que possa ocorrer comigo, que seja o seu cuidado, no entanto, avançar no curso correto." Quando ele fala de um comportamento puro e honrado como sendo digno do evangelho, ele afirma, por outro lado, que aqueles que vivem de outra forma fazem injustiça ao evangelho.

“Ou indo ver-vos”. Como a frase no grego usado por Paulo é elíptica, fiz uso de videam (vejo), em vez de videns (vendo). Se isto parecer não satisfatório, você pode aplicar o verbo principal Intelligam (Eu posso aprender) neste sentido: "se, quando eu for vê-los, ou se estando ausente, em relação à sua condição, que eu possa aprender em ambos os sentidos, tanto por estar presente ou por receber informações, que estão num mesmo espírito." Nós não precisamos, no entanto, ficar ansiosos quanto às condições particulares, quando o significado é evidente.

“Estar firme em um só espírito”. Esta, certamente, é uma das principais excelências da Igreja e, portanto, esta é uma forma de preservá-la em um estado saudável, na medida em que é feita em pedaços por dissensões. Mas, apesar de que Paulo estivesse desejoso por meio desse antídoto para prevenir doutrinas novas e estranhas, ele exige uma dupla unidade - do espírito e da alma. A primeira é o que temos como pontos de vista; e a segunda, que sejamos de um só coração. Porque, quando esses dois termos estão ligados entre si, spiritus (espírito) denota o entendimento, enquanto anima (alma) denota

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a vontade. Ainda mais, o acordo de pontos de vista vem em primeiro lugar em ordem; e, em seguida, a partir dele, surge a união proveniente de nossa inclinação, de nossas disposições interiores relativas ao espírito.

“Lutando juntos pela fé”. Este é o laço mais forte de concórdia, quando temos que lutar juntos sob a mesma bandeira, porque isto tem sido muitas vezes ocasião de conciliar até mesmo os maiores inimigos. Assim, a fim de que ele possa confirmar ainda mais a unidade que existia entre os filipenses, ele lhes chama para perceberem que são companheiros de armas, que, tendo um inimigo comum e uma guerra comum, deveriam ter suas mentes unidas em um acordo santo. A expressão que Paulo fez uso no grego (συναθλοῦντες τὣ πίστει) é ambígua. O antigo intérprete a toma como Collaborantes fidei, (trabalhando em conjunto com a fé). Erasmo o interpreta como Adiuvantes fidem (Ajudando a fé), como significando ajudar a fé para o máximo de seu poder. Como, porém, é feito uso do dativo (objeto indireto) grego em vez do ablativo (instrumental), eu não tenho nenhuma dúvida de que a interpretação autêntica do que diz o Apóstolo é a seguinte: "Deixem que a fé do evangelho lhes una, mais especialmente porque essa é uma armadura comum contra um e o mesmo inimigo." desta forma, a partícula σύν (junto, comum) que outros usam para se referir à fé, eu tomo como referência aos Filipenses, e com maior propriedade, se não me engano. Em primeiro lugar, cada um está ciente de quão eficaz incentivo é a concórdia, quando temos que enfrentar um conflito juntos; e ainda mais, sabemos que na guerra

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espiritual estamos equipados com o escudo da fé (Efésios 6.16), para repelir o inimigo; mais ainda, a fé é tanto a nossa bandeira quanto a nossa vitória. Por isso, ele acrescentou esta frase, para que pudesse mostrar qual é a finalidade de uma união piedosa. Os ímpios, também, conspiram juntos para o mal, mas o seu acordo é amaldiçoado; vamos, portanto, lidar com uma só mente sob a bandeira da fé.

Não se Deixando Intimidar pelos Adversários do Evangelho - Comentário de Filipenses 1.28

“e que em nada estais intimidados pelos adversários. Pois o que é para eles prova evidente de perdição é, para vós outros, de salvação, e isto da parte de Deus.” (Filipenses 1.28)

“E em nada estais intimidados”. A segunda coisa que Paulo recomenda aos Filipenses é a fortaleza de ânimo, para que não pudessem ser lançados em confusão pela ira de seus adversários. Naquela época as perseguições mais cruéis assolavam quase todos os lugares, porque Satanás se esforçou com toda sua força para impedir o início do evangelho, e ficava mais enfurecido na proporção em que Cristo estendia poderosamente a graça de seu Espírito. Ele exorta, por isso, os Filipenses a permanecerem destemidos, e não ficarem alarmados.

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”O que é para eles uma prova manifesta”. Este é o sentido apropriado da palavra grega, e não havia nenhuma razão para que alguns a interpretassem como “causa”. Porque os ímpios, quando em guerra contra o Senhor, já dão pela mesma uma prova do sinal de sua ruína, e quanto mais ferozmente insultam os piedoso, mais se preparam para a própria ruína. A Escritura, com certeza, não ensina em qualquer lugar que as aflições que os santos sofrem de ímpios são a causa de sua salvação, mas Paulo em outra instância, também, fala delas como uma prova clara ou evidência (2 Tessalonicenses 1.5) e em vez de ἔνδειξιν, usado em 2 Tes 1.5, ele faz uso nessa passagem do termo ἔνδειγμα. Isto, portanto, é uma consolação escolhida, que quando somos atacados e perseguidos por nossos inimigos, temos nisto uma evidência da nossa salvação. Porque perseguições são de uma certa maneira selos de adoção para os filhos de Deus, se eles a suportam com coragem e paciência; os ímpios dão, ao contrário, uma evidência ou prova de sua condenação, porque tropeçam numa Pedra pela qual eles devem ser quebrados em pedaços (Mateus 21.44).

“E isto da parte de Deus”. Isto está restrito à última frase, para que o gosto da graça de Deus possa aliviar a amargura da cruz. Ninguém vai perceber naturalmente a cruz como um sinal ou evidência de salvação, pois são coisas que são contrárias na aparência. Por isso Paulo chama a atenção dos Filipenses para uma outra consideração - que Deus por sua bênção transforma em uma ocasião de bem-estar as coisas que de outra forma parecem tornar-nos infelizes. Ele prova a partir disto,

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que o suportar a cruz é o dom de Deus. Agora é certo, que todos os dons de Deus são salutares para nós. Para você, diz ele, é dado, não somente crer em Cristo, mas também sofrer por ele. Por isso mesmo os próprios sofrimentos são evidências da graça de Deus; e, já que é assim, você tem a partir desta fonte uma evidência de sua salvação. Oh, se esta persuasão fosse efetivamente inculcada em nossas mentes - de que as perseguições devem ser contados entre os benefícios de Deus, que grande progresso seria feito na doutrina da piedade! E, ainda, mais certo do que isto é a maior honra que é conferida a nós pela graça divina, que soframos por causa do nome de Cristo, reprovação, ou prisão, ou misérias, ou torturas, ou até mesmo a morte, porque assim ele nos adorna com as suas marcas de distinção.

A Graça de Crer em Cristo e de Sofrer por Ele - Comentário de Filipenses 1.29,30

“29 Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por Cristo e não somente de crerdes nele,

30 pois tendes o mesmo combate que vistes em mim e, ainda agora, ouvis que é o meu.”

29. “Crerdes nele”. Paulo sabiamente conjuga a fé com a cruz por uma conexão inseparável, para que os Filipenses

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pudessem saber que eles foram chamados para a fé de Cristo nesta condição – para que suportassem perseguições por sua causa, como se ele tivesse dito que sua adoção não poderia mais ser separada da cruz, do que Cristo possa ser separado de si mesmo. Aqui, Paulo atesta claramente, que a fé, assim como a constância nas perseguições duradouras, é um dom imerecido de Deus. E, certamente, o conhecimento de Deus é uma sabedoria que é muito elevada para que possa ser atingida pelo nosso próprio entendimento, e nossa fraqueza se revela em exemplos diários em nossa própria experiência, quando Deus retira sua mão por um tempo. Para que Paulo pudesse intimar mais distintamente que ambos são imerecidos, ele diz expressamente - pelo amor de Deus, ou pelo menos que nos são dados no fundamento da graça de Cristo; pelo que ele exclui qualquer ideia de mérito.

Esta passagem também está em desacordo com a doutrina dos escolásticos, que sustentam que os dons da graça ultimamente conferidos são frutos de nosso mérito, com o fundamento de termos feito um uso correto dos que tinham sido anteriormente concedidos. Eu não nego, de fato, que Deus recompensa o uso correto de seus dons de graça concedendo-nos ainda mais graça, contanto que não coloquemos mérito, como eles fazem, em oposição à sua liberalidade imerecida e o mérito de Cristo.

30. “tendo o mesmo combate”. Ele confirma, também, pelo seu próprio exemplo o que tinha dito, e isso não

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acrescenta pouca autoridade à sua doutrina. Pelos mesmos meios, também, ele lhes mostra, que não há nenhuma razão pela qual eles deveriam se sentir atribulados em razão das lutas que eles contemplavam na vida do apóstolo, em prol do evangelho.

O Fruto do Espírito Santo no Crente - Comentário de Gálatas 5.22,23

“22 Mas o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade,

23 mansidão, domínio próprio. Contra estas coisas não há lei.”

22. “Mas o fruto do Espírito”. Justamente como havia condenado toda a natureza humana como nada produzindo senão frutos nocivos e indignos, agora Paulo nos diz que todas as virtudes, todas as boas e bem ordenadas afeições procedem do Espírito, ou seja, da graça de Deus e da natureza renovada que recebemos de Cristo. Como se houvera dito: “Nada, senão o mal, procede do homem; nada de bom pode proceder senão do Espírito Santo”. Pois ainda que às vezes surjam nos homens não regenerados notáveis exemplos de nobreza, fidelidade, temperança e generosidade, o fato é que não passam de marcas ilusórias. Curio e Fabricio foram famosos por sua coragem; Cato, por sua temperança; Scipio, por sua bondade e generosidade; Fabio, por sua

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paciência. Mas tudo isso era apenas aos olhos dos homens e como membros da sociedade. Aos olhos de Deus, nada é puro senão o que procede da fonte de toda a pureza.

Não tomo alegria, aqui, no sentido de Romanos 14:17, mas como aquele bom humor (hilaritas) para com nossos companheiros, o qual é o posto de melancolia. Fé é usada para verdade, e é contrastada com astúcia, engano e falsidade. Paz contrasto com rixas e contendas. Longanimidade é a suavidade da mente, a qual nos dispõe a levar tudo com otimismo, não permitindo a suscetibilidade. O restante é óbvio, pois a condição da mente se abre a parte de seu fruto.

Pode-se perguntar, porém, que juízo formaremos dos perversos e idólatras que, não obstante, exigem extraordinária semelhança de virtudes. Pois pelo prisma de suas obras parecem espirituais. Eis minha resposta: nem todas as obras da carne despontam numa pessoa carnal; mas sua carnalidade é exibida por um ou outro vício; assim como uma pessoa não pode ser tida como espiritual pelo prisma de uma única virtude. Às vezes se fará óbvio à luz de outros vícios que a carne reina em tal pessoa; e isso é facilmente visto em todos aqueles a quem mencionamos.

23. “Contra tais coisas não há lei”. Há quem entenda isso como significando simplesmente que a lei não é dirigida contra as boas obras, visto que das boas maneiras têm

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emanado boas leis. Mas a intenção de Paulo é mais profunda e menos óbvia, ou seja: onde o Espírito reina, a lei não mais exerce qualquer domínio. Ao modelar nossos corações segundo sua própria justiça, o Senhor nos liberta da severidade da lei, de modo que não trata conosco segundo o pacto da lei, nem obriga nossas consciências sob sua condenação. Não obstante, a lei continua a exercer seu ofício de ensinar e exortar. Mas o Espírito de adoção nos livra da sujeição a ela devida. Paulo, pois, ridiculariza os falsos apóstolos, os quais forçavam a sujeição à lei, mas que ninguém estava mais ansioso do que eles para livrar-se do jugo dela. Paulo nos diz que a única forma pela qual isso se faz possível é quando o Espírito de Deus assume o domínio. À luz desse fato, segue-se que eles não se preocupavam com a justiça espiritual.

Permanecer na Doutrina para Permanecer em Jesus - Comentário de I João 2.24,25

“24 Permaneça em vós o que ouvistes desde o princípio. Se em vós permanecer o que desde o princípio ouvistes, também permanecereis vós no Filho e no Pai.

25 E esta é a promessa que ele mesmo nos fez, a vida eterna.”

24. “Que permaneça em vós”. João acrescenta uma exortação à doutrina anterior; e para que isto pudesse ter

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mais peso, ele aponta os frutos que receberiam da obediência. Ele, então, exorta-os à perseverança na fé, para que pudessem reter fixamente em seus corações o que tinham aprendido.

Mas, quando ele diz, desde o início, ele não quer dizer que a antiguidade era suficiente para provar qualquer doutrina verdadeira; mas assim como ele já tem mostrado que eles haviam sido corretamente instruídos no puro evangelho de Cristo, ele conclui que eles deveriam continuar no mesmo. E esta ordem deveria ser especialmente observada; porque somos dispostos a divergir daquela doutrina que temos uma vez abraçado, seja ela qual for, e isso não seria perseverança, mas obstinação perversa. Assim, a distinção deveria ser exercida, de modo que a razão da nossa fé possa ser evidenciada a partir da palavra de Deus; então devemos seguir uma perseverança inflexível.

“Desde o princípio ouvistes”. Aqui está o fruto da perseverança - que aqueles em quem a verdade de Deus permanece, permaneçam em Deus. Nós, portanto, aprendemos o que devemos procurar em cada verdade relativa à religião. Faz, portanto, a maior proficiência, quem faz tal progresso estando completamente apegado a Deus. Mas em quem o Pai não habita através de seu Filho, é completamente fútil e vazio, qualquer conhecimento que ele possa possuir sobre religião. Além disso, esta é a mais alta comenda da sã doutrina, a qual nos une a Deus, e que nela se encontra tudo o que diz respeito à verdadeira fruição de Deus.

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Em último lugar, João nos lembra que isto é a verdadeira felicidade, quando Deus habita em nós. As palavras que ele usa são ambíguas. Elas podem ser interpretadas: "Esta é a promessa que ele nos prometeu a vida eterna." Você pode, no entanto, adotar qualquer uma destas interpretações, porque o significado ainda é o mesmo. A suma do que é dito é que não podemos viver, exceto em nutrir até o fim a semente da vida semeada em nossos corações. João insiste muito sobre este ponto, que não somente o começo de uma vida abençoada deve ser encontrada no conhecimento de Cristo, mas também a sua perfeição. Mas nenhuma repetição disto será demais, desde que é sabido que isto tem sido sempre a causa de ruína para os homens, que estando, não contentes com Cristo, eles têm tido um desejo para vaguear além da simples doutrina do evangelho.

O Espírito Santo nos Guia na Verdade Doutrinária - Comentário de I João 2.26-29

“26 Isto que vos acabo de escrever é acerca dos que vos procuram enganar.

27 Quanto a vós outros, a unção que dele recebestes permanece em vós, e não tendes necessidade de que alguém vos ensine; mas, como a sua unção vos ensina a respeito de todas as coisas, e é verdadeira, e não é falsa, permanecei nele, como também ela vos ensina todas as

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cousas, e é verdadeira, e não é falsa, permanecei nele, como também ela vos ensinou.

28 Filhinhos, agora, pois, permanecei nele, para que, quando ele se manifestar, tenhamos confiança e dele não nos afastemos envergonhados na sua vinda.

29 Se sabeis que ele é justo, reconhecei também que todo aquele que pratica a justiça é nascido dele.”

26. “Estas coisas vos escrevi”. O próprio apóstolo se desculpa novamente por ter admoestado aqueles que eram bem dotados de conhecimento e julgamento. Mas ele fez isso, para que eles pudessem se aplicar à orientação do Espírito Santo, para que sua admoestação não fosse em vão; como se ele tivesse dito: "Eu, na verdade faço a minha parte, mas ainda é necessário que o Espírito de Deus deve encaminhá-los em todas as coisas; em vão seria até o som da minha voz, batendo nos seus ouvidos, ou melhor, o ar, a menos que ele fale dentro de vocês."

Quando ouvimos que ele escreveu a respeito de sedutores, devemos ter sempre em mente, que é o dever de um bom e diligente pastor, não somente reunir um rebanho, mas também afugentar os lobos; porque do que adiantaria proclamar o evangelho puro, se formos coniventes com as imposturas de Satanás? Ninguém, então, pode ensinar fielmente à Igreja, a não ser que ele seja diligente em banir erros, sempre que encontrá-los espalhados por sedutores. O que ele diz sobre a “unção que dele recebestes”, eu o aplico a Cristo.

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27. “E não tendes necessidade de que alguém vos ensine”. Deve ter sido o propósito de João, como eu já disse, se ele pretendia apresentar o ensino como sendo inútil. Ele não lhes atribui tanta sabedoria, como para negar que eles fossem estudiosos de Cristo. Ele só quis dizer que eles não eram de nenhuma forma tão ignorantes como se precisassem que as coisas desconhecidas lhes fossem ensinadas, porque ele não colocou diante deles qualquer coisa, que o Espírito de Deus não pudesse lhes sugerir de si mesmo. Absurdamente, então, agem os homens fanáticos leigos que usam essa passagem, com o fim de excluir da Igreja o uso do ministério externo (que chamam de leigo). Ele diz que o fiéis, ensinados pelo Espírito, já entenderam o que ele lhes entregou, porque eles não tinham necessidade de aprender coisas desconhecidas para eles. Ele disse isso, para que pudesse acrescentar mais autoridade à sua doutrina, enquanto cada um a recebendo em seu coração, a gravasse como se fosse pelo dedo de Deus. Mas, como cada um tinha conhecimento de acordo com a medida de sua fé, e como a fé em alguns era pequena, e em outros mais forte, e em nenhum era perfeita, portanto, segue-se que ninguém sabia tanto, que não houvesse espaço para o progresso.

Há também um outro uso para ser feito desta doutrina, - que quando os homens realmente entendem o que é necessário para eles, ainda devemos adverti-los e despertá-los, para que possam ser mais confirmados. Por que o que João diz que eles foram ensinados sobre todas as coisas pelo Espírito, não deve ser

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tomado genericamente, mas deve ser limitado ao que está contido nessa passagem. Ele tinha, em suma, nenhuma outra coisa em vista senão fortalecer a fé deles, enquanto ele lhes lembrou do exame do Espírito, que é o único corretor e aprovador de doutrina, que a sela em nossos corações, para que possamos conhecer com certeza o que Deus fala. Por enquanto a fé deve olhar para Deus, somente ele pode ser um testemunho de si mesmo, de modo a convencer os nossos corações que o que nossos ouvidos recebem tem vindo dele.

E o mesmo é o significado dessas palavras, “como a sua unção ensina todas as coisas”, e é verdade; isto é, o Espírito é como um selo, pelo qual a verdade de Deus é testificada a você. Quando ele acrescenta, “e não é falsa”, ele aponta outro ofício do Espírito, pois ele nos reveste com julgamento e discernimento, para que não sejamos enganados por falsidades, para que não hesitemos e fiquemos perplexos, para que não vacilemos em coisas duvidosas.

“Permanecei nele, como também ela vos ensinou”. Ele tinha dito, que o Espírito habitava neles; agora ele os exorta a permanecerem na revelação feita por ele, e especifica que revelação era, "permanecei", diz ele, "em Cristo, conforme o Espírito Santo vos ensinou." Outra explicação, eu sei, é comumente dada: “Permanecei nela", isto é, na unção. Mas, como a repetição que se segue imediatamente, não pode ser aplicada a qualquer outro, senão a Cristo, eu não tenho nenhuma dúvida de que ele fala aqui também de Cristo; e isso é exigido pelo

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contexto; porque o Apóstolo discorre muito sobre este ponto, que os fiéis devem reter o verdadeiro conhecimento de Cristo, e que eles não devem ir a Deus de qualquer outra forma.

Ele, ao mesmo tempo mostra, que os filhos de Deus são iluminados pelo Espírito, para nenhum outro fim, senão para que possam conhecer a Cristo. Providenciando para que eles não se desviassem dele, ele lhes prometeu o fruto da perseverança, mesmo da confiança, de modo a não terem vergonha na sua presença. Pois a fé não é uma nua e fria apreensão de Cristo, mas um sentimento vivo e real do seu poder, que produz confiança. De fato, a fé não pode permanecer, enquanto jogada diariamente por tantas ondas, senão somente por se esperar a vinda de Cristo, e, apoiado por seu poder, isto traz tranquilidade à consciência. Mas a natureza da confiança é bem expressada, quando ele diz que ela pode corajosamente sustentar a presença de Cristo. Pois aqueles que se entregam de forma segura aos seus vícios, viram as costas para Deus; e nem podem de outra forma obter a paz do que por esquecê-lo. Esta é a segurança da carne, que entorpece os homens; para que se afastando de Deus, nunca tenham medo do pecado, nem da morte; enquanto evitam o tribunal de Cristo. Mas uma piedosa confiança encanta o olhar para Deus. Por isso, é que os santos calmamente esperam por Cristo, nem temem a sua vinda.

29. “Se sabeis que ele é justo”. Ele passa novamente às exortações, para que ele as misture continuamente com

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a doutrina em toda a Epístola; mas ele prova por muitos argumentos que a fé é necessariamente conectada com uma vida santa e pura. O primeiro argumento é que somos gerados espiritualmente à semelhança de Cristo; que daí resulta, que ninguém nasce de Cristo, senão aquele que vive em retidão. É ao mesmo tempo incerto se ele quer dizer Cristo ou Deus, quando ele diz que os que nascem dele praticam a justiça. É um modo de falar certamente utilizado nas Escrituras, que nascemos de Deus em Cristo; mas não há nada inconsistente em dizer também, que aqueles que são nascidos de Cristo, são aqueles que são renovados por seu Espírito.

O Amor de Deus por Israel - Comentário de Oseias 11:1

“Quando Israel era um menino, eu o amei, e chamei meu filho do Egito” (Oseias 11.1)

Deus, aqui, protesta contra o povo de Israel por causa da ingratidão. A obrigação deles era dupla, pois Deus lhes adotara desde o início, quando não havia nenhum mérito ou valor no povo. De fato, era outra a sua condição, ao ser emancipado dos seus trabalhos servis no Egito? Indubitavelmente, eles pareciam, então, como um homem meio morto ou uma ossada podre; pois não possuíam vigor algum remanescente neles. O Senhor, pois, estendeu sua mão ao povo quando esse estava em tal desesperado estado, puxou-o, por assim dizer, do

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túmulo, e restaurou-o da morte para a vida. Porém, em segundo lugar, não reconheciam isso como um tão maravilhoso favor de Deus, senão que, logo depois, petulantemente, deram as costas a ele. Que impiedade foi essa, e quão vergonhosa imoralidade, dar as costas, assim, ao autor da vida e da salvação deles? O Profeta, portanto, realça o pecado e a vileza do povo com esta circunstância, que o Senhor lhes amara ainda na infância; quando, ele diz, Israel ainda era uma criança, eu o amei. O nascimento do povo foi sua saída do Egito. O Senhor, deveras, celebrara seu concerto com Abraão quatrocentos anos antes; e, como sabemos, os patriarcas também foram reputados por ele como seus filhos: mas Deus queria que sua Igreja fosse, por assim dizer, extinta, quando a redimiu. Desse modo, a Escritura, quando fala da libertação do povo, amiúde se refere àquela mercê divina como que de alguém trazido para o mundo. Não é, por conseguinte, sem razão que o Profeta lembra o povo, aqui, de que esse fora amado quando na meninice. A prova de tal amor era que fora trazido do Egito. O amor precedera, como a causa vem sempre antes do efeito.

Mas o Profeta expande o argumento: Eu amei Israel, precisamente quando ele ainda era uma criança; eu o chamei do Egito; ou seja: “Eu não somente o amei quando criança, mas, antes que tivesse nascido, eu comecei a amá-lo; pois a libertação do Egito foi o nascimento, e meu amor precedeu esse. Então, fica claro que o povo havia sido amado por mim, antes que viesse à luz; pois o Egito era como uma tumba sem qualquer centelha de vida; e a condição miserável em que esse

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povo se encontrava era pior do que duzentas mortes. Então, ao chamar meu povo do Egito, eu provei que meu amor foi gratuito, antes deles nascerem”. O povo, por isso, era menos desculpável quando retribuiu a Deus com uma tão indigna recompensa, visto que esse tinha, anteriormente, conferido seu livre favor sobre eles. Compreendemos, agora, o sentido dado pelo Profeta.

Mas aqui se levanta uma questão difícil; pois Mateus, no capítulo segundo, acomoda essa passagem à pessoa de Cristo. Aqueles que não são bem versados na Escritura, confiantemente, aplicam esse ponto a Cristo; todavia, o contexto se opõe a isso. Por esse motivo, ocorreu de os escarnecedores haverem tentado perturbar toda a religião de Cristo, como se o Evangelista tivesse aplicado erroneamente a declaração do Profeta. Dão uma resposta mais conveniente aqueles que dizem que, nesse caso, há somente uma comparação: como quando uma passagem de Jeremias é citada em outro lugar, quando a crueldade de Herodes - o qual se enraiveceu contra todos os infantes de seu domínio, abaixo de dois anos de idade - é mencionada: “Raquel, chorando por seus filho, não quis receber consolação, porque eles não mais existem” (Jer 31.15). O Evangelista diz que tal profecia foi cumprida (Mt 2.18). Mas é certo que o objetivo de Jeremias era outro; contudo, nada impede que tal declaração seja aplicada ao que Mateus relata. Assim entendem essa passagem. Não obstante, penso que Mateus tenha considerado mais profundamente o propósito de Deus ao ter levado Cristo para o Egito, bem como seu retorno posterior à Judeia. Em primeiro lugar,

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deve ser lembrado que Cristo não pode ser separado de sua Igreja, visto que o corpo ficará mutilado e imperfeito sem uma cabeça. Tudo o que ocorreu outrora à Igreja, devia, por fim, ser cumprido pela cabeça. Isso é uma coisa. Então, não há dúvida alguma de que Deus, em sua maravilhosa providência, tencionava que seu Filho partisse do Egito para que fosse um redentor para os fiéis; e, dessa forma, ele indica que uma libertação verdadeira, real e perfeita foi, finalmente, efetuada, quando o Redentor prometido surgiu. Foi, pois, o pleno nascimento da Igreja quando Cristo partiu do Egito para redimi-la. Assim, em minha opinião, é insípido demais aquele comentário que adota a ideia de que Mateus fez apenas uma comparação. Pois convém a nós considerar isto, que Deus, quando dantes resgatou seu povo do Egito, somente provou, através de um indiscutível prêmio, a redenção que ele protelou até a vinda de Cristo. Por isso, como o corpo foi, pois, trazido do Egito para a Judeia, assim, finalmente, a cabeça também saiu do Egito: e, então, Deus revelou plenamente ser ele o verdadeiro libertador de seu povo. Eis, então, o significado. Mateus, portanto, com a maior propriedade, acomoda essa passagem a Cristo, que Deus amou seu Filho desde sua primeira infância e o chamou do Egito. Ao mesmo tempo, sabemos que Cristo é denominado o Filho de Deus em um aspecto diferente do povo de Israel; pois a adoção fez dos filhos de Abraão os filhos de Deus, mas Cristo é, por natureza, o unigênito Filho de Deus. Contudo, a dignidade dele deve permanecer na cabeça, para que o corpo continue em seu estado inferior. Não há, pois, nada incoerente nisso. Porém, quanto à

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acusação de ingratidão, que tão grande mercê de Deus não fosse reconhecida, isso não pode ser adaptado à pessoa de Cristo, como bem conhecemos; tampouco é necessário, nesse sentido, aludir a ele; pois vemos, a partir de outros lugares, que nem tudo que é dito de Davi, do sumo sacerdote ou da posteridade davídica se aplica a Cristo; apesar de terem sido tipos de Cristo. Porém, há sempre uma grande diferença entre a realidade e seus símbolos.

A Verdade Revelada por Deus ao Seu Povo - Comentário do Salmo 78.1,2 “1 Escutai, povo meu, a minha lei; prestai ouvidos às palavras da minha boca.

2 Abrirei os lábios em parábolas e publicarei enigmas dos tempos antigos.”

Para compreender muitas coisas dentro de pouco espaço deve-se observar que neste Salmo há dois tópicos principais. Por um lado, declara-se como Deus adotou para si a Igreja, oriunda da posteridade de Abraão, quão terna e graciosamente ele cuidou dela, quão maravilhosamente ele a tirou do Egito e quão variadas foram as bênçãos que ele lhe outorgou. Por outro lado, os judeus, que lhe eram tão devedores pelas grandes

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bênçãos que ele lhes conferira, são censurados por terem de tempo em tempo perversa e traiçoeiramente se revoltado contra um Pai tão liberal; de modo que sua inestimável bondade foi claramente manifesta, não só em havê-los outrora adotado tão graciosamente, mas também em continuar no curso ininterrupto de sua bondade, tudo fazendo contra a rebelião de um povo tão pérfido e contumaz. Além disso, faz-se menção da renovação da graça de Deus, e como foi de uma segunda eleição que ele escolheu a Davi, da tribo de Judá, para alçar o cetro sobre o reino de Israel.

“Dai ouvidos a minha lei, povo meu!” Por todo o Salmo podemos conjeturar, com boa probabilidade, que ele foi escrito muito depois da morte de Davi; pois aí temos celebrado o reino erigido por Deus na família de Davi. Aí também a tribo de Efraim, a qual lemos ter sido rejeitada, é contrastada e posta em oposição à casa de Davi. Disto é evidente que as dez tribos estavam naquele tempo em estado de separação do restante do povo eleito; porque deve haver alguma razão pela qual o reino de Efraim é estigmatizado com o estigma da desonra como sendo ilegítimo e bastardo.

Quem quer que tenha sido o escritor inspirado deste Salmo, ele não introduziu Deus falando como alguns imaginam, mas ele mesmo se dirige aos judeus no caráter de mestre. Não há objeção quanto ao fato de ele chamar o povo de meu povo e a lei, minha lei; não sendo algo incomum que os profetas tomavam por empréstimo o nome daquele por quem eram enviados, para que sua

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doutrina desfrutasse de maior autoridade. Aliás, a verdade que lhes havia sido confiada pode, com propriedade, ser chamada sua. Assim Paulo, em Romanos 2.16, se gloria no evangelho como sendo meu evangelho, expressão essa que não deve ser entendida como significando que ele [o evangelho] era um sistema que devia sua origem a ele [Paulo], mas que ele era meramente pregador e testemunha dele. E tenho dúvidas se os intérpretes estão estritamente certos em traduzir a palavra hrwt, torah, por lei. O significado dela parece ser um tanto mais geral, como transparece da sentença seguinte, onde o salmista usa a frase: as palavras de minha boca, no tempo sentido. Se considerarmos com que intenção mesmo aqueles que fazem veementes confissões de por serem discípulos de Deus ouvem sua voz, ficaremos admirados com o fato de que os profetas tivessem boa razão para introduzir suas lições de instruções com uma solene chamada de atenção. É verdade que ele não se dirige aos obstinados que não se deixam instruir, que teimosamente recusam submeter-se à Palavra de Deus; mas como até mesmo os verdadeiros crentes geralmente são tão relutantes em receber instrução, esta exortação, longe de ser supérflua, era muitíssimo necessária para curar a indolência e inatividade entre eles.

Para assegurar uma atenção mais firme, ele declara ser seu propósito discutir temas de um caráter profundo, elevado e difícil. A palavra lXm mashal, a qual traduzi por parábola, denota sentenças graves e notáveis, tais como adágios, provérbios e apotegmas. Como, pois, a própria

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questão que temos tratado, se é de peso e importante, desperta a mente dos homens, a pena inspirada afirma que é seu propósito pronunciar somente sentenças notáveis e ditos extraordinários. A palavra twdyx, chidoth, a qual, seguindo a outros, traduzi por enigmas, é aqui usada não tanto para sentenças obscuras, mas para ditos que são enfatizados e dignos de nota especial. Ele não pretendia encerrar seu cântico com linguagem ambígua, mas clara e distintamente conservar tanto os benefícios de Deus quanto a gratidão do povo. Como eu já disse, seu desígnio é apenas estimular seus leitores a pensarem e considerarem mais atentamente o tema proposto. Esta passagem é citada por Mateus 13.35 e aplicada à pessoa de Cristo quando ele manteve a mente do povo em suspenso através de parábolas às quais não podiam entender. O objetivo de Cristo, de agir assim, era provar que ele era um Profeta de Deus distinto dos demais, e que assim pudesse ser recebido com maior reverência. Visto que ele então se assemelhava a um profeta por pregar mistérios sublimes num estilo de linguagem acima do gênero comum, isso que o escritor sacro afirma aqui acerca de si mesmo é com propriedade transferido para ele [Cristo]. Se neste Salmo resplandece uma majestade tal que com razão incita e inflama os leitores com o desejo de aprender, deduzimos disto com que solícita atenção ele nos faz receber o evangelho, no qual Cristo nos abre e nos exibe os tesouros de sua celestial sabedoria.

O Único Cordeiro Sacrificado que Tira o Pecado do Mundo - Comentário de João 1.29

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“No dia seguinte, viu João a Jesus, que vinha para ele, e disse: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!” (João 1.29)

No dia seguinte”. Não pode haver dúvida de que João já havia falado sobre a manifestação do Messias; mas quando Cristo começou a aparecer, ele desejou que o anúncio dele fosse rapidamente conhecido, e o tempo havia chegado no qual Cristo poria fim ao ministério de João, assim como, quando o sol se levanta, e a aurora desaparece. Depois de ter testemunhado aos sacerdotes que foram enviados a ele, sobre Aquele no qual deveriam buscar a verdade e o poder de batizar com o Espírito Santo, já se achava presente, e João estava conversando no meio do povo, e no dia seguinte, ele apontou Jesus à vista de todos. Porque esses dois atos, um após o outro, em rápida sucessão, devem ter afetado poderosamente suas mentes. Esta também é a razão por que Cristo apareceu na presença de João.

“Eis o Cordeiro de Deus”. O principal ofício de Cristo é breve e claramente indicado; que tira os pecados do mundo pelo sacrifício da sua morte, e reconcilia os homens com Deus. Existem outros favores, de fato, que Cristo nos concede, mas este é o principal favor, e o resto depende disso; que, por apaziguar a ira de Deus contra o pecado, faz com que sejamos contados como santos e justos. Porque a partir desta fonte fluem todos os rios de bênçãos, que, por não imputar os nossos pecados, ele nos recebe em seu favor. Assim, João, a fim de nos conduzir

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a Cristo, começa com o perdão gratuito dos pecados que nós obtemos através dele.

Pela palavra Cordeiro ele alude aos antigos sacrifícios da Lei. Ele tinha que tratar com os judeus que, tendo sido acostumados a sacrifícios, não poderiam ser instruídos sobre a expiação dos pecados de qualquer outra forma que não fosse por meio de um sacrifício. Como havia diversos tipos deles, ele apresenta um, por uma figura de linguagem, para representar o todo; e é provável que João tenha feito alusão ao cordeiro pascal. Deve-se observar, em geral, que João empregou este modo de expressão, que era melhor adaptado para instruir os judeus, e possuía uma força maior; assim como em nossos próprios dias, em consequência do batismo ser geralmente praticado, nós entendemos melhor o que se refere à obtenção do perdão dos pecados através do sangue de Cristo, quando nos dizem que somos lavados e purificados por ele de nossas poluições. Ao mesmo tempo, como os Judeus comumente tinham noções supersticiosas sobre os sacrifícios, ele corrige essa falha, lembrando-lhes o objeto para o qual todos os sacrifícios foram dirigidos. Foi um abuso muito perverso da instituição dos sacrifícios, que eles tivessem fixado a sua confiança nos sinais exteriores; e, portanto, João, apontando para Cristo, testificou que ele é o Cordeiro de Deus; pelo que se entende que todos os sacrifícios, que os judeus estavam acostumados a oferecer nos termos da Lei, não tinham poder algum para expiar os pecados, mas que eles eram apenas figuras, da verdade que foi manifestada em Cristo.

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“Que tira o pecado do mundo”. Ele usa a palavra pecado no singular, para qualquer tipo de iniquidade; como se tivesse dito, que todo tipo de injustiça que aliena os homens de Deus são afastadas por Cristo. E quando ele diz, o pecado do mundo, ele estende esse favor indiscriminadamente a toda a raça humana; para que os judeus não pensassem que ele tinha sido enviado somente a eles. Mas daí podemos inferir que o mundo inteiro está envolvido na mesma condenação; e que, assim como todos os homens sem exceção, são culpados de injustiça diante de Deus, eles precisam se reconciliar com ele. João Batista, pois, falando genericamente do pecado do mundo, tinha por propósito incutir em nós a convicção de nossa própria miséria, e nos exorta a buscar o remédio. Agora é nosso dever, abraçar o benefício que é oferecido a todos, que cada um de nós possa ser convencido de que não há nada para nos impedir de obter a reconciliação em Cristo, desde que venhamos a ele pela orientação da fé.

Uma Fé Que Não Foi Confirmada - Comentário de João 2.23

“23 Estando ele em Jerusalém, durante a Festa da Páscoa, muitos, vendo os sinais que ele fazia, creram no seu nome;

24 mas o próprio Jesus não se confiava a eles, porque os conhecia a todos.

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25 E não precisava de que alguém lhe desse testemunho a respeito do homem, porque ele mesmo sabia o que era a natureza humana.”

(O comentário dos versos 24 e 25 está registrado em outro texto com título alusivo aos mesmos)

3. “Muitos acreditaram”. O evangelista liga adequadamente esta narrativa com a anterior. Cristo não tinha dado o sinal que os judeus lhe solicitaram; e agora, quando ele não produziu qualquer bom efeito sobre eles por muitos milagres - exceto que eles entretiveram uma fé fria, que era apenas a sombra da fé - este evento prova suficientemente que não mereciam que ele atendesse aos seus desejos. Isto foi, de fato, alguns frutos dos milagres, que muitos viessem a acreditar em Cristo e em seu nome, assim como professar que desejavam seguir a sua doutrina; porque a palavra “nome” é usada aqui em lugar de “autoridade”. Este aspecto da fé, que até então era inútil, poderia vir a ser transformado em verdadeira fé, e poderia ser uma útil preparação para celebrar o nome de Cristo; e ainda o que temos aqui escrito, é verdade, pois eles estavam longe de ter bons sentimentos, de modo a serem beneficiados com as obras de Deus, como deveriam ter feito.

No entanto, esta não era uma fé fingida pela qual eles desejavam ganhar reputação entre os homens; pois eles estavam convencidos de que Cristo era algum grande Profeta, e talvez até mesmo atribuíram-lhe a honra de ser o Messias, em relação a quem havia naquela época uma forte e geral expectativa. Mas, como eles não

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entenderam o ofício peculiar do Messias, sua fé era um absurdo, porque estava exclusivamente direcionada para o mundo e as coisas terrenas. Foi também uma crença fria, e desacompanhada dos verdadeiros sentimentos do coração. Porque hipócritas não aderem ao Evangelho, para que possam se dedicar em obediência a Cristo, nem com aquela sincera piedade para que possam seguir a Cristo quando ele lhes chama, mas porque não se aventuram a rejeitar totalmente a verdade que eles conhecem, e especialmente quando não encontram razão para se oporem a ele. Porque, assim como eles voluntariamente, ou de comum acordo, fazem guerra contra Deus, por isso, quando percebem que sua doutrina é contrária à carne e aos seus desejos ímpios, eles ficam imediatamente ofendidos, ou, pelo menos, retiram-se da fé que já tinham abraçado.

Quando o evangelista diz, portanto, que aqueles homens “creram”, eu não entendo isto como se eles tivessem uma fé que não existia, mas que foram, de alguma forma constrangidos a se alistarem como seguidores de Cristo; e, no entanto, parece que a sua fé não era verdadeira e genuína, porque Cristo os excluiu do número daqueles cujos sentimentos eram verdadeiros. Além disso, aquela fé dependia apenas de milagres, e não tinha raízes no Evangelho e, portanto, não poderia ser estável ou permanente. Os milagres, ajudam de fato, os filhos de Deus a chegarem à verdade; mas não correspondem à crença real, quando eles admiram o poder de Deus, a fim de crer meramente que isto é verdade, mas não para se submeterem inteiramente a ele, e, portanto, quando

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falamos genericamente sobre a fé, saibamos que há um tipo de fé que é percebida pelo entendimento apenas, e depois desaparece rapidamente, porque ela não é fixada no coração; e é a fé a que Tiago chama de morta; mas a verdadeira fé sempre depende do Espírito de regeneração (Tiago 2.17, 20, 26). Observe-se, que nem todos obtêm um igual benefício com as obras de Deus; porque alguns são conduzidos por elas a Deus, e os outros só são movidos por um impulso cego, assim que, embora eles percebam realmente o poder de Deus, ainda não deixam de vaguear em suas próprias imaginações.

Jesus e Nicodemos - Comentário de João 3.1

“Havia, entre os fariseus, um homem chamado Nicodemos, um dos principais dos judeus.” (João 3.1)

“Ora, havia um homem dos fariseus”. Na pessoa de Nicodemos o Evangelista exibe agora, a nosso ver, quão vã e passageira era a fé daqueles que, tendo sido animados por milagres, de repente, professavam ser discípulos de Cristo. Pois desde que este homem era da ordem dos fariseus, e ocupava o posto de um governante em seu país, ele deve ter sido muito mais excelente do que outros. As pessoas comuns, em sua maior parte, são superficiais e instáveis; mas quem não teria pensado que aquele que era letrado e experiente era também um homem sábio e prudente? No entanto, da resposta de Cristo é evidente, que nada estava mais distante do seu

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propósito em ter vindo a este mundo, do que uma pretensão de aprender os primeiros princípios da religião. Se ele, que era um príncipe entre os homens é menos do que uma criança, o que deveríamos pensar da multidão em geral? Agora, embora o desígnio do Evangelista tenha sido o de exibir, como em um espelho, quão poucos houve em Jerusalém que estavam corretamente dispostos para receber o Evangelho, ainda, por outras razões, esta narrativa é muito útil para nós; e especialmente porque nos instrui sobre a natureza depravada do homem, sobre o que é a entrada correta na escola de Cristo, e qual deve ser o início do nosso treinamento para fazer progressos na doutrina celeste. Porque a suma do discurso de Cristo é, que, a fim de que possamos ser seus verdadeiros discípulos, devemos nos tornar homens novos. Mas, antes de prosseguir mais adiante, temos de confirmar pelas circunstâncias que são aqui descritas pelo Evangelista, quais foram os obstáculos que impediram Nicodemos de entregar-se sem reservas a Cristo.

“Dos fariseus”. Esta designação era, sem dúvida, estimada por seus conterrâneos como honrosa para Nicodemos; mas não é por uma questão de honra que isto lhe é atribuído pelo evangelista, que, ao contrário, chama a nossa atenção, para o que o impediu de vir voluntária e alegremente a Cristo. Por isso, somos lembrados que os que ocupam uma posição elevada no mundo são, em sua maioria, envolvidos por muitas armadilhas perigosas; não, vemos muitos deles tão firmemente empenhados, e nem mesmo o menor desejo

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ou oração surge a partir deles para o céu ao longo de toda sua vida. Por que eles foram chamados fariseus temos explicado em outra parte; porque se gabavam de serem os únicos expositores da Lei, como se estivessem na posse, do cerne e do sentido escondido da Escritura; e por essa razão eles se chamavam phrvsym (Perushim). Embora os essênios levassem uma vida mais austera, que granjeou-lhes uma grande reputação de santidade; ainda porque, como eremitas, abandonaram a vida cotidiana e os costumes dos homens, a seita dos fariseus era tida em estima mais elevada. Além disso, o Evangelista menciona não somente que Nicodemos era da ordem dos fariseus, mas que ele era um dos governantes de sua nação.

Os Verdadeiros Mestres da Palavra de Deus - Comentário de João 3.2

“Este, de noite, foi ter com Jesus e lhe disse: Rabi, sabemos que és Mestre vindo da parte de Deus; porque ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele.” (João 3.2)

“Ele veio a Jesus à noite”. A partir da circunstância de sua vinda à noite inferimos que sua timidez era excessiva; porque seus olhos estavam deslumbrados, por assim

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dizer, pelo esplendor da sua própria grandeza e reputação. Talvez ele também foi prejudicado pela vergonha, pois homens ambiciosos pensam que a sua reputação será completamente arruinada, uma vez que tiverem descido da dignidade dos mestres para o posto de alunos; e ele estava, sem dúvida, inchado com um parecer tolo de seu conhecimento. Em suma, como ele tinha uma opinião elevada de si mesmo, ele não estava disposto a perder uma parte da sua altura. E, no entanto, aparecem nele algumas sementes de piedade; por ter ouvido que um Profeta de Deus tinha aparecido, ele não desprezou ou rejeitou a doutrina que tem sido trazida do céu, e é movido por um desejo de obtê-la, - um desejo que surgiu a partir de nada mais do que do temor e reverência a Deus. Muitos estão deliciados com uma ociosa curiosidade de perguntar ansiosamente sobre qualquer coisa que é nova, mas não há nenhuma razão para duvidar que foi um princípio religioso e sentimento consciente que animaram em Nicodemos o desejo de obter um conhecimento mais íntimo da doutrina de Cristo. E, apesar daquela semente ter permanecido muito tempo oculta e aparentemente morta, todavia, após a morte de Cristo rendeu frutos, como nenhum homem jamais teria esperado, como podemos ver em João 19.39.

O Novo Nascimento Faz Ver o Reino de Deus - Comentário de João 3.3

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“A isto, respondeu Jesus: Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus.” (João 3.3)

“Em verdade, em verdade te digo”. A palavra verdade (amém) é duas vezes repetida, e isto é feito com a finalidade de provocar uma atenção mais séria. Pois, quando Jesus estava prestes a falar sobre o mais importante de todos os assuntos, ele achou necessário despertar a atenção de Nicodemos, que poderia ter passado por todo esse discurso de uma forma desatenciosa ou descuidada. Tal, então, é o desígnio da dupla afirmação.

Embora esse discurso pareça ser muito forçado e quase inapropriado, todavia foi com a máxima propriedade que Cristo abriu seu discurso desta maneira. Porque, assim como é inútil semear em um campo que não tenha sido preparado pelo trabalho do lavrador, de igual modo é sem propósito espalhar a doutrina do Evangelho, se a mente não tiver sido previamente subjugada e devidamente preparada para a docilidade e obediência. Cristo viu que a mente de Nicodemos estava cheia de muitos espinhos, sufocada por muitas ervas daninhas, de modo que não havia praticamente nenhum espaço para a doutrina espiritual. Esta exortação, portanto, se assemelhava a um arado para purificá-lo, para que nada pudesse impedi-lo de ser beneficiado com a doutrina. Lembremos que isto foi falado a um indivíduo, de tal modo que o Filho de Deus se dirige a todos nós diariamente na mesma linguagem. Pois qual de nós irá

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dizer que é tão livre de afeições pecaminosas que não precisa de uma tal purificação? Se, portanto, queremos fazer um bom e útil progresso na escola de Cristo, aprendamos a partir deste ponto.

“A menos que um homem nasça de novo”. Ou seja, desde que és destituído daquilo que é da maior importância no reino de Deus, eu me importo pouco com o teres me chamando de Mestre; porque a primeira entrada no reino de Deus é, tornar-se um novo homem. Mas, como esta é uma notável passagem, será adequado examinar todas as partes da mesma minuciosamente.

Ver o reino de Deus é o mesmo que entrar no reino de Deus, como vamos perceber imediatamente a partir do contexto. Mas estão enganados aqueles que supõem que o reino de Deus significa Céu; porque; pelo contrário, significa a vida espiritual, que é iniciada pela fé neste mundo, e aumenta gradualmente a cada dia de acordo com o contínuo progresso da fé. Assim, o significado é que nenhum homem pode ser verdadeiramente unido à Igreja, de modo a ser contado entre os filhos de Deus, até que ele tenha sido previamente renovado. Esta expressão mostra brevemente o que é o início do cristianismo, e ao mesmo tempo nos ensina que nascemos exilados e totalmente alienados do reino de Deus, e que há um perpétuo estado de variação entre Deus e nós, até que ele nos faz completamente diferentes pelo nosso novo nascimento; porque a declaração é geral, e abrange toda a raça humana. Se Cristo tivesse dito a uma pessoa, ou para alguns indivíduos, que não

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poderiam entrar no céu, a menos que tivessem sido previamente nascidos de novo, podemos supor que se trataria apenas de certos indivíduos que foram designados, mas ele fala de todos, sem exceção; porque a linguagem é ilimitada, e é da mesma importância de termos universais, como estes: Quem não nascer de novo não pode entrar no reino de Deus.

Pela frase nascer de novo não se expressa a correção de uma parte, senão a renovação de toda a natureza. Daí segue-se que nada há em nós que não seja pecaminoso; pois, se a reforma é necessária ao todo e em cada parte, a corrupção deve ter sido espalhada por toda parte. Sobre este ponto em breve teremos ocasião de falar mais detalhadamente. Erasmo, adotando a opinião de Cirilo, tem indevidamente traduzido o advérbio anothen, como “do alto”, e torna a frase assim: se alguém não nascer do alto. A palavra grega, é ambígua; mas sabemos que Cristo conversou com Nicodemos na língua hebraica. Não teria, então, havido espaço para a ambiguidade que ocasionou o erro de Nicodemos e levou-o a escrúpulos infantis sobre um segundo nascimento da carne. Ele, portanto, entendeu que Cristo teria dito nada mais do que, que um homem deve nascer de novo, antes que ele seja admitido no reino de Deus. Ou seja, pela resposta que dera, com certeza ele ouviu Cristo dizer nascer de novo, e não nascer do alto.

Não se Entende o que é Espiritual com a Mente Natural - Comentário de João 3.4

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“Perguntou-lhe Nicodemos: Como pode um homem nascer, sendo velho? Pode, porventura, voltar ao ventre materno e nascer segunda vez?” (João 3.4)

“Como pode um homem nascer, sendo velho?” Embora a forma de expressão que Cristo empregou não estivesse contida na Lei e nos profetas, ainda assim, como a renovação é frequentemente mencionada nas Escrituras, e é um dos primeiros princípios da fé, torna-se evidente quão imperfeitamente hábeis eram os Escribas naquela época na leitura das Escrituras. Isto certamente não se deu apenas com Nicodemos, que fosse culpado por não saber o que significava a graça da regeneração; mas com quase todos que dedicavam a sua atenção às sutilezas inúteis, e o que era de maior importância na doutrina da piedade era desconsiderado. O papado exibe para nós, nos dias atuais, uma instância do mesmo tipo em seus teólogos. Por enquanto eles gastam toda a sua vida com especulações profundas, como a tudo o que se refere estritamente à adoração a Deus, à esperança confiante de nossa salvação, ou aos exercícios da religião, eles não sabem mais sobre estes assuntos do que um sapateiro ou um vaqueiro sabe sobre o curso das estrelas; e, ainda mais, tendo prazer em mistérios estranhos, eles desprezam abertamente a verdadeira doutrina da Escritura como indigna da posição elevada, que pertence a eles como mestres. Não precisamos nos surpreender, portanto, em encontrar Nicodemos tropeçando em uma palha; pois é uma justa vingança de Deus, que os que se julgam os mais elevados e mais excelentes professores, e em cuja estima a comum simplicidade da doutrina é vil e

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desprezível, fiquem maravilhados com pequenos assuntos.

Nascer da Água e do Espírito Santo - Comentário de João 3.5

“Respondeu Jesus: Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus.” (João 3.5)

“A menos que um homem nasça da água”. Esta passagem tem sido explicada de várias maneiras. Alguns têm pensado que as duas partes da regeneração estão apontadas claramente, e que pela palavra água é indicada a renúncia ao velho homem, enquanto pelo Espírito compreende a nova vida. Outros pensam que há um contraste implícito, como se Cristo contrastasse água e Espírito, que são puros elementos, com a natureza terrena e bruta do homem. Assim, eles veem a linguagem como alegórica, e supõem que Cristo ensinou que devemos deixar de lado a massa da pesada carne, e tornar-nos como a água e o ar, que podem se mover livremente. Mas ambas as opiniões me parecem estar em contradição com o significado de Cristo.

Crisóstomo, com quem a maior parte dos expositores concordam, faz com que a palavra água se refira ao batismo. O significado seria então, que pelo batismo entramos no reino de Deus, porque no batismo somos

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regenerados pelo Espírito de Deus. Daí surgiu a crença da necessidade absoluta do batismo, a fim de se ter a esperança da vida eterna. Mas, ainda que nós fôssemos admitir que Cristo fala aqui do batismo, ainda que não devemos pressionar suas palavras tão fortemente a ponto de imaginar que ele confina a salvação ao sinal externo; mas, pelo contrário, ele conecta a água com o Espírito, porque por esse símbolo visível ele atesta e sela aquela novidade de vida que só Deus produz em nós pelo seu Espírito. É verdade que, por negligenciar o batismo, somos excluídos da salvação; e neste sentido, reconheço que é necessário; mas é absurdo falar da esperança de salvação como confinada ao sinal. Até onde nos leve o que se refere esta passagem, eu não posso ser levado a crer que Cristo fala do batismo; porque isso teria sido inapropriado.

Devemos sempre ter em mente o propósito de Cristo, o qual já temos explicado; ou seja, que tinha a intenção de exortar Nicodemos à novidade de vida, porque ele não seria capaz de receber o Evangelho, até que começasse a ser um novo homem. É, portanto, uma simples declaração, que devemos nascer de novo, a fim de que possamos ser filhos de Deus e que o Espírito Santo é o autor deste segundo nascimento. Porque enquanto Nicodemos estava sonhando com a regeneração (palingenesia) ou transmigração ensinada por Pitágoras, que imaginou que as almas, depois da morte de seus corpos, passam para outros corpos, Cristo, a fim de curá-lo desse erro, acrescentou, à guisa de explicação, que não é de uma forma natural que os homens nascem uma

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segunda vez, e que não é necessário que sejam revestidos de um novo corpo, mas que são nascidos quando são renovados na mente e no coração pela graça do Espírito.

Assim, ele empregou as palavras Espírito e água para significar a mesma coisa, e isso não deve ser considerado como uma interpretação severa ou forçada; pois é uma forma frequente e comum de se falar na Escritura, quando o Espírito é mencionado, adicionar a palavra água ou fogo, expressando seu poder. Às vezes, encontrar-se com a declaração, que é Cristo que batiza com o Espírito Santo e com fogo (Mateus 3:11; Lucas 3:16), onde o fogo não significa nada diferente do Espírito, mas apenas mostra o que é a sua eficácia em nós. Saber porque a palavra água é colocada em primeiro lugar, é de pouca importância; ou melhor, este modo de falar flui mais naturalmente do que o outro, porque a metáfora é seguida por uma declaração simples e direta, como se Cristo tivesse dito que o homem não é um filho de Deus, até que ele tenha sido renovado pela água, e que esta água é o Espírito que nos purifica de novo e que, por espalhar sua energia sobre nós, dá-nos o vigor da vida celestial, embora por natureza, sejamos totalmente secos. E mais apropriadamente o faz Cristo, a fim de reprovar Nicodemos por sua ignorância, empregando uma forma de expressão que é comum na Escritura; porque Nicodemos deveria pelo menos ter reconhecido, que o que Cristo tinha dito foi extraído da doutrina comum dos Profetas.

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Pela água, portanto, significa nada mais do que a purificação interior e fortalecimento, que é produzido pelo Espírito Santo.

Carne Gera Carnal e Espírito Gera Espíritual - Comentário de João 3.6

“O que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito.” (João 3.6)

“O que é nascido da carne”. Pelo raciocínio de contrários, Cristo argumenta que o reino de Deus está fechado para nós, a menos que uma entrada seja aberta para nós por um novo nascimento. Porque ele dá como garantido, que não podemos entrar no reino de Deus se não formos espirituais. Mas nada trazemos desde o ventre materno, senão uma natureza carnal. Segue-se portanto, que estamos naturalmente banidos do reino de Deus, e, tendo sido privados da vida celestial, permanecemos sob o jugo da morte espiritual. Além disso, quando Cristo argumenta aqui, que os homens devem nascer de novo, porque eles são apenas carne, ele, sem dúvida, abrange toda a humanidade sob o termo carne. Por carne, por conseguinte, entende-se neste lugar, não o corpo, mas a alma também, e, consequentemente, todas as partes da mesma.

Quando alguns teólogos restringem a palavra carne à parte que chamam de sensual, eles fazem isso em

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absoluta ignorância do seu significado; porque Cristo teria usado, neste caso, um argumento inconclusivo, que precisamos de um segundo nascimento, porque uma parte de nós é corrompida. Mas, se a carne é contrastada com o Espírito, como uma coisa corrupta é contrastada com uma que é incorruptível, uma coisa torta com uma que é reta, uma coisa poluída com uma que é sagrada, uma contaminada com uma que é pura, podemos facilmente concluir que toda a natureza do homem é condenada por um única palavra. Cristo, portanto, declara que o nosso entendimento e razão estão corrompidos, porque são carnais, e que todos os afetos do coração são maus e perversos, porque eles também são carnais.

Aqui surge uma questão; pois é certo que nesta natureza degenerada algum resquício dos dons de Deus ainda permanece; e, portanto, segue-se que não estamos em todos os aspectos corrompidos. A resposta é fácil. Os dons que Deus deixou para nós, desde a queda, se eles são avaliados em si mesmos, são, de fato dignos de louvor; mas, como o contágio da maldade está espalhado por todas as partes, nada será encontrado em nós que seja puro e livre de toda contaminação. Que possuímos naturalmente algum conhecimento de Deus, que alguma distinção entre o bem e o mal está gravada em nossa consciência, que nossas faculdades são suficientes para a manutenção da vida presente, que – em suma - somos em tantos aspectos superiores aos animais irracionais, que isto é excelente em si mesmo, na medida em que procede de Deus; mas em todos nós estas coisas estão

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completamente poluídas, da mesma maneira como o vinho que foi totalmente infectado e corrompido pelo gosto ofensivo do recipiente perde a agradabilidade do seu bom sabor, e adquire um sabor amargo e ruim. Porque tal conhecimento de Deus como agora permanece nos homens nada mais é do que uma fonte terrível de idolatria e de todas as superstições; o julgamento exercido para escolher e distinguir coisas está parcialmente cego e insensato, em parte imperfeito e confuso; todas as nossas faculdades fluem para a vaidade e ninharias; e a própria vontade, com impetuosidade furiosa, corre freneticamente para o que é mau. Assim, em toda a nossa natureza não permanece uma gota de pura retidão. Por isso, é evidente que deve ser formada pelo segundo nascimento, para que possamos ser equipados para o reino de Deus; e o significado das palavras de Cristo é que, como um homem nasce apenas carnal do ventre de sua mãe; ele deve ser formado de novo pelo Espírito, para que possa começar a ser espiritual.

A palavra Espírito é usada aqui em dois sentidos, a saber, por graça, e o efeito da graça. Porque em primeiro lugar, Cristo nos informa que o Espírito de Deus é o único autor de uma natureza pura e reta, depois, ele afirma, que somos espirituais, porque temos sido renovados pelo seu poder.

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O Espírito Santo Age como o Vento - Comentário de João 3.7

“7 Não te admires de eu te dizer: importa-vos nascer de novo.

8 O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo o que é nascido do Espírito.”

“Não te admires”. Esta passagem tem sido torcida por comentaristas de várias maneiras. Alguns pensam que Cristo reprova a ignorância de Nicodemos e outras pessoas da mesma classe, dizem que não é surpreendente, se eles não compreendem esse mistério celeste da regeneração, uma vez que, mesmo na ordem da natureza não percebemos a razão das coisas que caem sob o conhecimento dos sentidos. Outros inventam um significado que, embora engenhoso, é muito forçado: o de que, quando o vento sopra livremente, por isso, pela regeneração do Espírito somos postos em liberdade, e, depois de ter sido libertados do jugo do pecado, ouvimos voluntariamente a Deus. Igualmente distante do significado de Cristo é a exposição dada por Agostinho, que o Espírito de Deus exerce sua energia de acordo com o seu próprio prazer. A melhor interpretação é dada por Crisóstomo e Cirilo, que dizem que a comparação é extraída do vento, e aplicada assim, à presente passagem; apesar de seu poder ser sentido, não sabemos a sua origem e causa. Quanto a mim, enquanto não difiro

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muito de sua opinião, eu devo me esforçar para explicar o significado de Cristo com maior clareza e certeza.

Eu mantenho por este princípio, que Cristo faz uma comparação a partir da ordem da natureza. Nicodemos reconheceu que o que ele tinha ouvido falar sobre regeneração e uma nova vida era inacreditável, porque a forma desta regeneração excedia sua capacidade. Para impedi-lo de entreter qualquer escrúpulo deste tipo, Cristo mostra que, mesmo na vida material é exibido um incrível poder de Deus, cuja razão está escondida. Porque percebemos a agitação do ar, mas não sabemos de onde vem a nós, nem para onde ele se afasta. Se nesta vida frágil e transitória Deus age de maneira tão poderosa que somos obrigados a admirar o seu poder, que loucura é tentar medir pela percepção de nossa própria mente o seu trabalho secreto na vida celestial e sobrenatural, de modo a acreditar somente naquilo que vemos? Assim, Paulo, quando se expressa em indignação contra aqueles que rejeitam a doutrina da ressurreição, na base de ser impossível que o corpo que está agora sujeito à putrefação, após ter sido reduzido a pó, deva ser revestido com uma bendita imortalidade, repreende-os pela insensatez de não considerarem que uma exibição semelhante do poder de Deus pode ser vista em um grão de trigo; porque a semente não germina até que ela morra (1 Coríntios 15:36, 37). Esta é a sabedoria surpreendente da qual Davi exclama: “Ó Senhor, quão variadas são as tuas obras! em sabedoria fizeste todas elas,” (Salmos 104.24).

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São, portanto, excessivamente insensatos aqueles que tendo sido advertidos pela ordem comum da natureza, não sobem mais alto, de modo a reconhecer que a mão de Deus é muito mais poderosa no reino espiritual de Cristo. Quando Cristo diz a Nicodemos que ele não deveria se maravilhar, nós não devemos entendê-lo de tal forma como se pretendesse que nós desprezemos uma obra de Deus, que é tão ilustre, e que é digna da maior admiração; mas significa que nós não devemos nos maravilhar com aquele tipo de admiração que dificulta a nossa fé. Porque muitos rejeitam como sendo fábula o que eles pensam ser muito elevado e difícil. Em uma palavra, não duvidemos que pelo Espírito de Deus, somos formados de novo e feitos novos homens, embora sua maneira de fazer isso seja ocultada a nós.

Como Ocorre o Novo Nascimento do Espírito Santo - Comentário de João 3.8-10

“8 O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo o que é nascido do Espírito.

9 Então, lhe perguntou Nicodemos: Como pode suceder isto? Acudiu Jesus:

10 Tu és mestre em Israel e não compreendes estas coisas?”

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8. “O vento sopra onde quer”. Não que, a rigor, há vontade no vento, mas porque a agitação é livre, incerta e variável; porque o ar é transportado, por vezes, numa direção e, por vezes, em outra. Como isso se aplica ao caso em mão; porque se fluísse num movimento uniforme, como a água, seria menos milagroso.

“Assim é todo aquele que é nascido do Espírito”. Cristo afirma que o movimento e operação do Espírito de Deus não é menos perceptível na renovação do homem do que no movimento do ar nesta vida terrestre e exterior, mas que a forma disto é oculta; e que, portanto, somos ingratos e maliciosos, se não adoramos o poder inconcebível de Deus na vida celeste, da qual vemos tão impactante exposição neste mundo, e se nós atribuímos a ele menos em restaurar a salvação de nossa alma do que na defesa da estrutura corporal. A aplicação será um pouco mais evidente, se você tomar a sentença desta maneira: Tal é o poder e a eficácia do Espírito Santo no homem renovado.

9. “Como pode ser isso?” Nós vemos o que é o principal obstáculo no caminho de Nicodemos. Cada coisa que ele ouve parece absurda, porque não entende a maneira das mesmas; de modo que não há maior obstáculo para nós do que nosso próprio orgulho; isto é, sempre desejamos ser sábios além do que é apropriado e, portanto, rejeitamos com orgulho diabólico cada coisa que não é explicada pela nossa razão; como se fosse adequado limitar o poder infinito de Deus pela nossa pobre capacidade. Nos é permitido, de fato, em certa medida,

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que investiguemos a forma e a razão das obras de Deus, desde que o façamos com sobriedade e reverência; mas Nicodemos rejeita como uma fábula, com base na qual, ele não acreditou que fosse possível. Sobre este assunto trataremos mais detalhadamente no âmbito do sexto capítulo.

10. “Tu és mestre em Israel”. Como Cristo vê que ele está gastando seu tempo sem propósito no ensino de homem tão orgulhoso, ele começa a repreendê-lo. E, certamente, essas pessoas nunca farão qualquer progresso, até que a confiança ímpia, com a qual se ensoberbecem, seja removida. Cristo censura a sua ignorância. Ele pensava, que não admitir uma coisa como não possível seria considerado uma prova de gravidade e inteligência. Mas ainda Nicodemos, com toda a sua magistral altivez, se expõe ao ridículo por sua mais do que infantil hesitação sobre os primeiros princípios da religião. Essa hesitação, certamente, é vergonhosa. Por que qual é a religião que temos... que conhecimento de Deus, que governa o bem viver... que esperança temos da vida eterna, se não crermos que o homem é renovado pelo Espírito de Deus? Há uma ênfase, por conseguinte, na palavra “estas coisas”; porque desde que a Escritura repete com frequência esta parte da doutrina, não deveria ser desconhecido até mesmo para a mais baixa classe de iniciantes. É absolutamente insuportável que qualquer homem seja ignorante e inábil quando afirma ser um professor na Igreja de Deus.

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Jesus Não Inventou uma Religião - Deu Testemunho da Verdade Eterna - Comentário de João 3.11

“Em verdade, em verdade te digo que nós dizemos o que sabemos e testificamos o que temos visto; contudo, não aceitais o nosso testemunho.” (João 3.11)

“Nós dizemos o que sabemos”. Alguns aplicam isto a Cristo e João Batista; outros dizem que o número plural é utilizada em vez do singular. De minha parte, não tenho dúvida de que Cristo menciona a si mesmo em conexão com todos os profetas de Deus, e fala na pessoa de todos. Os filósofos e os outros vangloriosos mestres, frequentemente afirmam as bagatelas que eles próprios inventaram; mas Cristo afirma em relação a si mesmo e a todos os servos de Deus, que eles não entregaram nenhuma doutrina, senão a que é certa. Porque Deus não envia ministros para tagarelarem sobre coisas que são desconhecidas ou duvidosas, mas os treina em sua escola, para que aprendam dele próprio aquilo de posteriormente entregarão a outros. Ainda, como Cristo, por este testemunho, recomenda-nos a certeza da sua doutrina, assim ele prescreve a todos os seus ministros a lei da modéstia, para não exporem os seus sonhos ou conjecturas próprias - não para pregar invenções humanas, que não têm nenhuma solidez, mas para prestarem um testemunho fiel e puro para Deus. Deixe cada homem, portanto, ver o que o Senhor tem revelado a ele, que nenhum homem possa ir além dos limites da sua fé; e, por último, que nenhum homem possa permitir-se falar qualquer coisa, senão o que ouviu do Senhor.

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Deve-se observar, igualmente, que Cristo aqui confirma a sua doutrina por um juramento, para que pelo mesmo tenha total autoridade sobre nós.

“Você não aceita o nosso testemunho”. Isso é adicionado, que o Evangelho nada pode perder por causa da ingratidão dos homens. Porque desde que poucas pessoas devem ser encontradas, que exercem fé na verdade de Deus, e uma vez que a verdade é em todos os lugares rejeitada pelo mundo, devemos defendê-la contra o desprezo, para que sua majestade não seja tida em menor estima, porque todo o mundo a despreza, e a obscurece por impiedade. Agora, o significado das palavras é simples e único, e ainda devemos tirar dessa passagem uma doutrina dupla. A primeira é que a nossa fé no Evangelho não pode ser enfraquecida, se ele tiver poucos discípulos na terra; como se Cristo dissesse: Ainda que você não receba minha doutrina, ela permanece no entanto, certa e durável; porque a incredulidade dos homens nunca irá impedir que Deus permaneça sempre verdadeiro. A outra é que aqueles que, nos dias de hoje, não acreditam no Evangelho, não escaparão impunemente, uma vez que a verdade de Deus é santa e sagrada. Devemos ser fortalecidos com este escudo, para que possamos perseverar na obediência ao Evangelho em oposição à obstinação dos homens. Na verdade, temos que assegurar por este princípio, que a nossa fé seja fundada em Deus. Mas quando temos Deus como nossa segurança, devemos, como pessoas elevadas, acima dos céus, corajosamente trilhar o mundo inteiro sob os nossos pés, ou considerá-lo com elevado desdém,

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ao invés de permitir que a incredulidade de qualquer pessoa venha a nos alarmar. Quanto à acusação que Cristo faz, que o seu testemunho não é recebido, nós aprendemos com ele, que a palavra de Deus tem, em todas as épocas, sido distinguida por esta característica peculiar, que os que creem são poucos; para a expressão - você não aceita - pertence ao maior número de pessoas do mundo. Não há razão, portanto, que deveríamos agora ficar desencorajados, se o número daqueles que acreditam é pequeno.

Elevados do Terreno ao Celestial - Comentário de João 3.12

“Se, tratando de coisas terrenas, não me credes, como crereis, se vos falar das celestiais?” (João 3.12)

“Se vos falei de coisas terrenas”. Cristo conclui que deveria ser colocado para Nicodemos e outros, se eles não fazem progresso na doutrina do Evangelho; pois ele mostra que não é culpa dele, que todos não sejam adequadamente instruídos, uma vez que ele desceu à terra, para que ele possa nos elevar ao céu. É uma falha muito comum que os homens desejem ser ensinados por um engenhoso e rebuscado estilo. Daí, a maior parte dos homens ficar tão encantada com elevadas e confusas especulações. Daí, também, muitos têm o Evangelho em menos estima, porque não encontram nele palavras altissonantes para preencherem seus ouvidos, e por esse

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motivo não se dignam a conceder sua atenção a uma doutrina tão baixa. Mas isso mostra um grau extraordinário de impiedade, que rende menos reverência a Deus por falar conosco, porque ele condescende em nossa ignorância; e, portanto, quando Deus se expõe para nós nas Escrituras em um estilo áspero e popular, deixe-nos saber que isto é feito por causa do amor que ele tem por nós. Quem exclama que ele é ofendido por tal mediocridade de linguagem, ou usa isto como um argumento para se desculpar por não se submeter à Palavra de Deus, fala falsamente; pois aquele que não pode suportar abraçar a Deus, quando ele se aproxima dele, muito menos correrá para encontrá-lo acima das nuvens.

“Coisas terrenas”. Alguns explicam que isso significa os elementos da doutrina espiritual, pois da autonegação pode ser dito que é o início da piedade. Mas prefiro concordar com aqueles que o relacionam à forma de instrução; pois, embora a totalidade do discurso de Cristo fosse celeste, todavia ele falou de uma maneira tão familiar, que o próprio estilo teve algum aspecto de forma terrena. Além disso, estes termos não devem ser considerados como se referindo exclusivamente a um único sermão; porque o método comum de Cristo ensinar – que é com uma simplicidade popular de estilo - é aqui contrastado com as frases pomposas e altissonantes às quais homens ambiciosos estão tão fortemente viciados.

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É Somente em Jesus que Temos Revelação do que é Celestial - Comentário de João 3.13

“Ora, ninguém subiu ao céu, senão aquele que de lá desceu, a saber, o Filho do Homem que está no céu.” (João 3.13)

“Ninguém subiu ao céu”. Jesus novamente exorta Nicodemos a não confiar em si mesmo e em sua própria sagacidade, porque nenhum homem mortal pode, por seus próprios poderes, entrar no céu, senão somente aquele que vai para lá sob a orientação do Filho de Deus. Porque subir ao céu significa aqui, "ter um conhecimento puro dos mistérios de Deus, e a luz de entendimento espiritual." Porque Cristo dá aqui a mesma instrução que é dada por Paulo, quando declara que o homem natural não compreende as coisas que são de Deus (1 Coríntios 2.14), e, portanto, ele exclui as coisas divinas de toda a agudeza do entendimento humano, pois está muito abaixo de Deus.

Mas devemos entender das palavras, que só Cristo, que é celestial, ascende aos céus, mas que a entrada está fechada para todos os demais. Pois, na frase anterior, ele nos humilha, quando ele exclui todo mundo do céu. Paulo ordena àqueles que desejam ser sábios com Deus que devem ser tolos em relação a si mesmos (1 Coríntios 3.18).

Nada há para o que temos maior relutância. Para este propósito devemos lembrar, que todos os nossos

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sentidos falham e fogem quando intentamos ir a Deus; mas, depois de nos ter colocado fora do céu, Cristo rapidamente propõe um remédio, quando ele acrescenta, que o que foi negado a todos os outros é concedido ao Filho de Deus. E isso também é a razão pela qual ele se chama o Filho do homem, para que não duvidemos que podemos ter uma entrada no céu em comum com ele, que se vestiu com a nossa carne, para que pudesse nos fazer participantes de todas as bênçãos. Uma vez que, portanto, somente ele é Conselheiro do Pai (Isaías 9. 6), ele nos admite naqueles segredos que de outra forma teriam permanecido em segredo.

“Que está no céu”. Pode-se pensar ser absurdo dizer que ele está no céu, enquanto ele ainda habitava na terra. Se for respondido que isso é verdade no que diz respeito à sua natureza divina, o modo de expressão significa alguma outra coisa, a saber, que, porquanto ele fosse homem, ele estava no céu. Pode-se dizer que nenhuma menção é feita aqui de qualquer lugar, mas apenas que Cristo é distinguido dos outros, no que diz respeito ao seu estado, porque ele é o herdeiro do reino de Deus, do qual toda a raça humana está banida; mas, uma vez que muito frequentemente acontece, em virtude da unidade da Pessoa de Cristo, que o que pertence propriamente a uma natureza é aplicado a outra, não devemos procurar outra solução. Cristo, portanto, que está nos céus, se vestiu da nossa carne, para que, esticando a mão fraternal para nós, ele possa nos elevar para o céu juntamente com ele.

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Jesus é Elevado pelo Evangelho à Vista dos Que se Salvam - Comentário de João 3.14,15

“14 E do modo por que Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do Homem seja levantado,

15 para que todo o que nele crê tenha a vida eterna.”

14. “E como Moisés levantou a serpente”. Jesus explica mais claramente por que ele disse que é somente para ele que o céu é aberto; ou seja, que ele traz para o céu somente a todos os que estão dispostos a segui-lo como seu guia; pois ele atesta que ele vai ser aberto e publicamente manifestado a todos, para que ele possa difundir seu poder sobre os homens de todas as classes. Ser levantado significa ser colocado numa situação elevada, de modo a ser exibido à vista de todos. Isso foi feito através da pregação do Evangelho; porque a explicação que alguns dão, como se referindo à cruz, nem está de acordo com o contexto, nem é aplicável ao presente assunto. O simples significado das palavras, portanto, é que, pela pregação do Evangelho, Cristo seria exaltado, como um padrão para o qual os olhos de todos deveriam ser dirigidos, como Isaías tinha predito (Isaías 2.2). Como um tipo desse levantamento, ele se refere à serpente de bronze, que foi erguida por Moisés, a visão da qual era um remédio salutar para aqueles que foram feridos pela picada mortal de serpentes. A história desta ocorrência é bem conhecida, e é detalhada em Números 21.9. Cristo a introduz nesta passagem, para mostrar que

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ele deve ser colocado diante dos olhos de todos pela doutrina do Evangelho, para que todos os que olham para ele pela fé possam obter salvação. Por isso, deve-se inferir que Cristo é claramente exibido a nós no Evangelho, a fim de que ninguém possa se queixar de obscuridade; e que esta manifestação seja comum a todos, e que a fé tem o seu próprio olhar, pelo qual é percebida como presente; como Paulo nos diz que um retrato vivo de Cristo com a cruz é exibido, quando ele é verdadeiramente pregado (Gálatas 3.1).

A metáfora não é imprópria ou rebuscada. Assim como era apenas a aparência de uma serpente, mas não continha nada em si que fosse pestilento ou venenoso, assim Cristo vestiu-se com a forma de carne do pecado, e ainda sendo puro e livre de todo o pecado, para que pudesse curar em nós a ferida mortal do pecado. Não foi em vão que, quando os judeus foram feridos pelas serpentes, que o Senhor preparou previamente este tipo de antídoto; e isto intentava confirmar o discurso que Cristo entregou. Porque quando viu que ele seria desprezado como uma pessoa desconhecida, ele poderia produzir nada mais apropriado do que a elevação da serpente, para dizer-lhes, que eles não devem achar isto estranho, mas, ao contrário da expectativa dos homens, ele foi levantado de sua muito baixa condição, porque isso já havia sido tipificado nos termos da Lei pela serpente de bronze.

A questão agora é: Será que Cristo comparou-se à serpente, porque há alguma semelhança; ou, ele

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pronunciou isto para ser um sacramento, como foi o maná? Porque embora o maná fosse um alimento material, Paulo ainda testifica que era um mistério espiritual (1 Coríntios 10.3) sou levado a pensar que este também foi o caso com a serpente de bronze, tanto por essa passagem, e pelo fato de ter sido preservado para o futuro, até que a superstição das pessoas a tivessem convertido em um ídolo (2 Reis 18. 4). Se qualquer um formar uma opinião diferente, eu não debato o ponto com ele.

Jesus nos Foi Dado por Causa do Amor de Deus - Comentário de João 3.16

“Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.” (João 3.16)

“Porque Deus amou o mundo”. Cristo abre a primeira causa, e, por assim dizer, a fonte da nossa salvação, e ele faz isso, para que nenhuma dúvida possa permanecer; pois as nossas mentes não conseguem encontrar calmo repouso, até que chegamos ao amor gratuito de Deus. Como toda a questão da nossa salvação não deve ser procurada em qualquer outro lugar do que em Cristo, por isso temos de ver de onde Cristo veio a nós, e por que ele foi oferecido para ser nosso Salvador. Ambos os pontos são claramente afirmados para nós: a saber, que a fé em Cristo traz a vida a todos, e que Cristo trouxe a vida,

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porque o Pai Celestial ama a raça humana, e deseja que eles não se percam. E esta ordem deveria ser cuidadosamente observada; porque tal é a ambição ímpia que pertence à nossa natureza, que, quando a questão está relacionada com a origem da nossa salvação, nós rapidamente formamos imaginações diabólicas sobre nossos próprios méritos. Assim, imaginamos que Deus está reconciliado conosco, porque ele tem nos contado como dignos de que ele deveria olhar para nós. Mas as Escrituras em todos os lugares exaltam sua misericórdia pura e sem mistura, que deixa de lado todos os méritos.

E as palavras de Cristo significam nada mais do que isto, quando ele declara a causa de estarmos no amor de Deus. Porque se quisermos subir mais alto, o Espírito fecha a porta, pela boca de Paulo, quando ele nos informa que este amor foi fundado sobre o propósito da sua vontade (Efésios 1. 5). E, de fato, é muito evidente que Cristo falou desta maneira, a fim de chamar os homens para longe da contemplação de si mesmos e olharem somente para a misericórdia de Deus. Nem ele diz que Deus foi movido para nos libertar, porque ele percebeu em nós algo que era digno de tão excelente bênção, mas atribui a glória de nossa libertação inteiramente ao seu amor. E isto fica ainda claro no que se segue; porque ele acrescenta, que Deus deu seu Filho aos homens, para que não pereçam. Daí segue-se que, até Cristo conceder seu auxílio no resgate dos perdidos, todos estão destinados a eterna destruição. Isto é também demonstrado por Paulo na consideração do tempo; “porque ele nos amou, quando

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éramos ainda inimigos por causa do pecado” (Romanos 5. 8, 10).

E, de fato, onde reina o pecado, nada iremos encontrar, senão a ira de Deus, que chama a morte juntamente com isto. É a misericórdia, portanto, que nos reconcilia com Deus, para que ele possa também restaurar-nos à vida.

Este modo de expressão, no entanto, pode parecer estar em desacordo com muitas passagens das Escrituras, que põem em Cristo o primeiro fundamento do amor de Deus para conosco, e mostra que fora dele somos odiados por Deus. Mas devemos lembrar - o que eu já disse - que o amor secreto com que o Pai Celestial nos amou em si mesmo é maior do que todas as outras causas; mas que a graça pela qual ele deseja ser feito conhecido a nós, e pela qual somos encorajados à esperança da salvação, começa com a reconciliação, que foi adquirida por meio de Cristo. Porque desde que ele odeia o pecado, necessariamente, como devemos acreditar que somos amados por ele, senão até que a expiação tenha sido feita para aqueles pecados por conta dos quais ele está justamente ofendido conosco? Assim, o amor de Cristo intervém com o objetivo de conciliar Deus conosco, antes de termos qualquer experiência de sua bondade paternal. Mas, como somos informados de que primeiro Deus nos amou, porque deu o seu Filho para morrer por nós, por isso é imediatamente adicionado, que é Cristo para quem, a rigor, a fé deve olhar.

“Ele deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça”. Isso, diz ele, é o olhar correto da fé,

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ser fixada em Cristo, no qual se contempla o peito de Deus cheio de amor: isto é um apoio firme e duradouro, contar com a morte de Cristo como a única promessa daquele amor. A palavra unigênito é enfática, para ampliar o fervor do amor de Deus para conosco. Porque os homens não são facilmente convencidos de que Deus os ama, a fim de eliminar qualquer dúvida, ele declarou expressamente que somos muito queridos por Deus que, em nossa conta, nem sequer poupou o seu Filho unigênito. Uma vez que, por conseguinte, Deus tem mais abundantemente testemunhado seu amor para conosco; quem não fica satisfeito com este testemunho, e ainda permanece em dúvida, oferece um alto insulto a Cristo, como se ele tivesse sido um homem comum dado aleatoriamente à morte. Mas devemos considerar ainda que, em proporção à estima que Deus tem por Seu Filho unigênito, muito mais preciosa a nossa salvação lhe parece, pela redenção para a qual ele escolheu que seu Filho unigênito morresse. Para este nome Cristo tem um direito, porque ele é, por natureza, o único Filho de Deus; e ele comunica esta honra para nós por adoção, quando somos enxertados em seu Corpo.

“Para que todo aquele que nele crê não pereça”. Isto é um notável louvor à fé, que nos liberta da destruição eterna. Porque ele pretendia expressamente afirmar que, embora pareçamos ter sido nascidos para a morte, uma libertação inquestionável nos é oferecida pela fé em Cristo; e, portanto, não devemos temer a morte, que de outra forma, teria pairado sobre nós. E ele empregou o termo universal todo aquele que, tanto para convidar

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todos indiscriminadamente para participarem da vida, e para cortar qualquer desculpa dos incrédulos. Essa é também a importação do termo mundo, que ele usou anteriormente; porque nada será encontrado no mundo que seja digno do favor de Deus, e ainda ele se mostra reconciliado com o mundo inteiro, quando ele convida todos os homens sem exceção, à fé nEle, que é nada mais do que uma entrada na vida.

Lembremo-nos, por outro lado, que enquanto a vida é prometida universalmente para todos os que creem em Cristo, ainda a fé não é comum a todos. Porque Cristo é dado a conhecer à vista de todos, mas somente os eleitos são aqueles cujos olhos Deus abre, para que possam procurá-lo pela fé. Aqui, também, é exibido um efeito maravilhoso da fé, pois por ela recebemos a Cristo como ele nos é dado pelo Pai - isto é, como tendo nos libertado da condenação da morte eterna, e nos feito herdeiros da vida eterna, porque, pelo sacrifício de sua morte, ele tem expiado os nossos pecados, para que nada possa impedir que Deus nos reconheça como seus filhos. Uma vez que, portanto, a fé abraça Cristo, com a eficácia de sua morte e os frutos da sua ressurreição, não precisamos nos maravilhar se é por isto que obtemos também a vida de Cristo.

Ainda assim, não é muito evidente por que e como a fé nos dá a vida. É isto porque Cristo nos renova pelo seu Espírito, que a justiça de Deus possa viver e ser vigorosa em nós; ou é porque, tendo sido purificados pelo seu sangue, somos considerados justos diante de Deus por

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um perdão gratuito? Na verdade, é certo que essas duas coisas estão sempre unidas; mas como a certeza da salvação é o assunto agora em mãos, devemos principalmente atentar para esta razão, que nós vivemos, porque Deus nos ama gratuitamente, por não nos imputar os nossos pecados. Por esta razão o sacrifício é expressamente mencionado, pelo qual, em conjunto com os pecados, a maldição e a morte são destruídos. Já expliquei o objeto dessas duas cláusulas, que é, para nos informar que, em Cristo, recuperamos a posse da vida, da qual somos destituídos em nós mesmos; na presente condição miserável da humanidade, e a redenção, na ordem do tempo, vai adiante de salvação.

A Missão Presente de Jesus é Salvar e Não Julgar - Comentário de João 3.17

“Porquanto Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele.” (João 3.17)

“Porque Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo”. Isto é uma confirmação da declaração anterior; por isso não foi em vão que Deus enviou seu próprio Filho para nós. Ele não veio para destruir; e, portanto, se segue que é o ofício peculiar do Filho de Deus, que todos os que creem possam obter a salvação por ele. Agora não há razão para que qualquer homem esteja em um estado de hesitação ou de

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angustiante ansiedade, quanto à maneira pela qual ele pode escapar da morte, quando acreditamos que foi o propósito de Deus que Cristo nos livrasse dela. A palavra mundo é repetida novamente, para que ninguém possa pensar de si mesmo como totalmente excluído, se ele somente guardar o caminho da fé.

A palavra julgar (krino) é aqui colocada como condenar, como em muitas outros passagens. Quando ele declara que não veio para condenar o mundo, ele observa, assim, o desígnio real da sua vinda; porque que necessidade haveria que Cristo deveria vir para nos destruir, nós que estamos completamente arruinados? Não devemos, pois, olhar para qualquer outra coisa em Cristo, senão aquilo que Deus, por sua bondade infinita escolheu estender sua ajuda para salvar os que estavam perdidos; e sempre que nossos pecados nos pressionarem - sempre que Satanás puder nos levar ao desespero - que mantenhamos este escudo, que Deus não está disposto em nos deixar sobrecarregados com eterna destruição, porque ele designou seu Filho para a salvação do mundo.

Quando Cristo diz, em outras passagens, que ele há de vir para julgar (João 9.39); quando ele é chamado de uma pedra de escândalo (1 Pedro 2.7); quando dele é dito ser destinado para a destruição de muitos (Lucas 2.34), isto pode ser considerada como acidental, ou como resultante de uma causa diferente; porque aqueles que rejeitam a graça oferecida nele merecem encontrá-lo como o Juiz e o Vingador de desprezo tão indigno e vil. Um exemplo marcante disto pode ser visto no Evangelho;

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porque ele é estritamente o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê (Romanos 1.16). A ingratidão de muitos faz com que isto se torne para eles a morte. Ambos têm sido bem expressados por Paulo, quando ele se gloria da vingança próxima, pela qual ele punirá todos os adversários de sua doutrina, depois que a obediência do piedoso tiver sido cumprida (2 Coríntios 10. 6).

O significado equivalente a isto, que o Evangelho é especialmente, e na primeira instância, nomeado para os crentes, para que possa ser a salvação para eles; todavia, depois dos crentes não escaparão impunes aqueles que, desprezando a graça de Cristo, optaram por tê-lo como autor de morte ao invés de vida.

O Que Crê Não é Julgado para Condenação Eterna - Comentário de João 3.18

“Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus.”

“Aquele que crê não é condenado”. Quando Jesus tão frequentemente e tão seriamente repete, que todos os crentes estão fora de perigo de morte, nós podemos inferir a partir disso a grande necessidade da firme e segura confiança, que a consciência não pode ser mantida perpetuamente em estado de tremor e alarme. Ele voltou a declarar que, quando nós cremos, não há

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condenação remanescente, o que ele explicará depois com mais detalhes no quinto capítulo. O tempo presente - não é condenado - é aqui usado em vez do tempo futuro - não deve ser condenado - de acordo o costume da língua hebraica; pois significa que os crentes são salvos do medo da condenação.

“Mas aquele que não crê já está condenado”. Isto significa que não há nenhum outro remédio pelo qual qualquer ser humano possa escapar da morte; ou, em outras palavras, que, para todos os que rejeitam a vida dada a eles em Cristo, resta senão a morte, uma vez que a vida consiste em nada mais do que em fé. O passado do verbo, já está condenado, (ede kekritai) foi usado por ele enfaticamente (emphatikos), para expressar mais fortemente que todos os incrédulos estão totalmente arruinados. Mas deveria ser observado que Cristo fala especialmente daqueles cuja iniquidade é exibida no desprezo do Evangelho. Pois, embora seja verdade que nunca houve qualquer outro remédio para escapar da morte do que os homens se valerem de Cristo, ainda como Cristo aqui fala da pregação do Evangelho, o qual deveria ser espalhado em todas as partes do mundo, ele dirige seu discurso contra aqueles que deliberada e maliciosamente apagam a luz que Deus acendeu.

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Só Sai das Trevas quem Vem para a Luz de Jesus - Comentário de João 3.19

“O julgamento é este: que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz; porque as suas obras eram más.” (João 3.19)

“E a condenação é esta”. Ele conhece os murmúrios e reclamações, pelos quais os homens ímpios estão acostumados para censurar - que eles imaginam ser um rigor excessivo de Deus, quando ele age em relação a eles com maior severidade do que eles esperavam. Todos pensam que é duro que aqueles que não creem em Cristo devam ser destinados à destruição. Para que ninguém possa atribuir sua condenação a Cristo, ele mostra que todo homem deveria imputar a culpa a si mesmo. A razão é que a incredulidade é um testemunho de uma má consciência; e, portanto, torna-se evidente que é a sua própria impiedade o que dificulta os incrédulos de se aproximarem de Cristo. Alguns pensam que ele aponta aqui nada mais do que a marca de condenação; mas, o desígnio de Cristo é, conter a impiedade dos homens, para que eles não possam, de acordo com o seu costume, contestar ou discutir com Deus, como se ele os tratasse injustamente, quando castiga a incredulidade com a morte eterna. Ele mostra que tal condenação é justa, e não está sujeita a quaisquer censuras, não somente porque os homens agem perversamente, por preferirem as trevas à luz, e recusam vir para a luz que é livremente oferecida a eles, mas porque esse ódio à luz surge somente a partir de uma mente que é má e consciente de

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sua culpa. Uma bela aparência e o brilho da santidade pode de fato ser encontrado em muitos, que, afinal, se opõem ao Evangelho; mas, embora eles pareçam ser mais santos do que os anjos, não há espaço para duvidar de que eles são hipócritas, que rejeitam a doutrina de Cristo por nenhuma outra razão senão porque eles amam seus esconderijos nos quais a sua baixeza possa ser escondida. Uma vez que, portanto, a hipocrisia somente conduz os homens a odiarem a Deus, todos são condenados, porque se não fosse isso, que cegados pelo orgulho, se deleitam com os seus crimes, eles teriam facilmente e de bom grado recebido a doutrina do Evangelho.

Quem Ama a Verdade Vem para a Luz - Comentário de João 3.20,21

“20 Pois todo aquele que pratica o mal aborrece a luz e não se chega para a luz, a fim de não serem arguidas as suas obras.

21 Quem pratica a verdade aproxima-se da luz, a fim de que as suas obras sejam manifestas, porque feitas em Deus.”

20. “Porque todo aquele que pratica o mal”. O significado é que a luz é odiosa para eles por nenhuma outra razão, senão de que são maus e desejam esconder seus pecados, tanto quanto esteja ao seu alcance. Por isso

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segue-se que, por rejeitarem o remédio, pode ser dito deles que propositalmente se agradam da razão da sua condenação. Estamos muito enganados, portanto, se supusermos que os que estão enfurecidos contra o Evangelho são movidos pelo zelo divino, quando, pelo contrário, eles abominam e evitam deliberadamente a luz, para que possam se gloriar mais livremente na escuridão.

21. “Mas quem pratica a verdade”. Esta parece ser uma declaração indevida e absurda, a menos que você opte por admitir que alguns são retos e verdadeiros, antes de terem sido renovado pelos Espírito de Deus, os quais, em nenhum grau, concordam com a doutrina uniforme da Escritura; pois sabemos que a fé é a raiz da qual surgem os frutos de boas obras. Para resolver essa dificuldade, Agostinho diz, que praticar a verdade significa "reconhecer que somos miseráveis e indigentes de todo o poder de fazer o bem ", e, certamente, isto é uma verdadeira preparação para a fé, quando uma convicção da nossa pobreza nos obriga a fugir para a graça de Deus. Mas tudo isso é amplamente removido do significado de Cristo, pois ele pretendia simplesmente dizer que aqueles que agem sinceramente desejam nada mais intensamente do que a luz, para que a suas obras possam ser provadas; porque, quando tal prova tem sido feita, torna-se mais evidente que, aos olhos de Deus, eles falam a verdade e estão livres de todo o engano. Agora seria um raciocínio inconclusivo, inferirmos a partir disso, que os homens têm uma boa consciência, antes de terem fé; porque Cristo não diz que os eleitos creem, como para

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merecer o louvor de boas obras, mas somente o que os incrédulos fariam, se não tivessem uma má consciência.

Cristo empregou a palavra verdade, porque, quando somos enganados pelo brilho exterior das obras, não consideramos o que está escondido dentro. Assim, ele diz, que os homens que são retos e sem hipocrisia entram voluntariamente na presença de Deus, o único que é o Juiz competente de nossas obras. Porque dessas obras é dito serem feitas em Deus ou de acordo com Deus, que são aprovadas por Ele, e que são boas de acordo com a Sua regra. Portanto, vamos aprender que não devemos julgar as obras de qualquer outra maneira do que por trazê-las à luz do Evangelho, porque a nossa razão é totalmente cega.

Adoração em Espírito e em Verdade - Comentário de João 4.23

“Mas vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque são estes que o Pai procura para seus adoradores.” (João 4.23)

“Mas a hora vem”. Agora segue a primeira frase, a revogação do culto, ou cerimônias, prescritos pela Lei de Moisés. Quando Jesus diz que a hora vem, ou vai chegar, ele mostra que a ordem estabelecida por Moisés não será perpétua. Quando ele diz à mulher samaritana que a hora

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já é chegada, ele põe fim às cerimônias, e declara que o tempo de reforma, de que fala o Apóstolo (Hebreus 9.10), tem sido, assim, cumprido. No entanto, ele aprova o Templo, o Sacerdócio, e todas cerimônias ligadas a eles, no que concerne ao tempo passado. Ainda, como para mostrar que Deus não escolhe ser adorado tanto em Jerusalém ou no monte Gerizim, ele apresenta um princípio superior, que a verdadeira adoração a Ele consiste no espírito; para que, daí se segue, Ele possa ser corretamente adorado em todos os lugares.

Mas a primeira pergunta que se apresenta aqui é: por que, e em que sentido, é a adoração de Deus chamada espiritual? Para entender isso, nós devemos atender ao contraste entre o espírito e os emblemas exteriores, como entre as sombras e a verdade. Da adoração a Deus é dito que consiste no espírito, porque ela não é nada mais do que aquela fé interior do coração que produz oração, e, depois, a pureza de consciência e autonegação, para que possamos ser dedicados a obedecer a Deus como sacrifícios vivos e santos.

Daí surge outra pergunta, os patriarcas não adoraram a Deus espiritualmente sob a Lei? Eu respondo, como Deus é sempre o mesmo, ele não aprovou desde o início do mundo qualquer outro culto do que aquele que é espiritual, e que está de acordo com sua própria natureza. Isto é abundantemente atestado pelo próprio Moisés, que declara em muitas passagens que a Lei não tem outro objetivo senão que o povo se apegue a Deus com fé e uma consciência pura (Dt 10.12,16 etc). Mas

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ainda mais é claramente declarado pelos profetas quando eles atacam com severidade a hipocrisia do povo, porque eles pensavam que tinham satisfeito a Deus, quando acabaram de apresentar os sacrifícios e fizeram uma devoção exterior. É desnecessário citar aqui muitas provas que devem ser encontradas em toda parte, mas as passagens mais marcantes são as seguintes: Salmo 50; Isaías 1, 58, 66; Miqueias 5; Amós 7. Mas, enquanto a adoração de Deus, sob a Lei era espiritual, ela estava envolvida com tantas cerimônias exteriores, que se assemelhava a algo carnal e terreno. Por esta razão Paulo chama as cerimônias de rudimentos fracos e pobres (Gálatas 4. 9). Da mesma maneira, o autor da Epístola aos Hebreus diz que o antigo santuário, com seus utensílios, era terreno (Hebreus 9.1). Assim, podemos dizer com justiça que a adoração da Lei era espiritual em sua substância, mas, no que diz respeito à sua forma, foi tanto terrena e carnal; para o conjunto daquela dispensação, que em relação à realidade com a qual está agora plenamente manifestada, ela consistiu em sombras.

Vamos ver agora o que os judeus tinham em comum conosco, e o que diz respeito a eles diferirem de nós. Em todos os tempos Deus quis ser adorado por fé, oração, agradecimento, pureza de coração, e inocência da vida; e em nenhum momento ele se deleitou com todos os outros sacrifícios. Mas sob a Lei havia várias adições, porque o espírito e em verdade estavam escondidos sob tipos e sombras, que, agora que o véu do templo foi rasgado (Mateus 27.51), nada é escondido ou obscuro.

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De fato, há entre nós, nos dias de hoje, alguns exercícios de piedade exterior, os quais se tornam necessários em razão da nossa fraqueza, mas tal é a moderação e sobriedade deles (ceia e batismo), que eles não obscurecem a pura verdade de Cristo. Em suma, o que foi exibido para os patriarcas sob figuras e sombras agora é exibido abertamente.

Não se pode negar que Cristo estabelece aqui uma clara distinção entre nós e os judeus. Quaisquer que sejam os subterfúgios que são usados por aqueles que insistem em manter ritos e cerimoniais no culto de adoração, estão usando coisas que foram abolidas pela vinda de Cristo. Assim todos os que oprimem a Igreja com uma multiplicidade excessiva de cerimônias, fazem o que está em seu poder para privar a Igreja da presença de Cristo. Eu não paro para examinar as desculpas vãs que eles pleiteiam, afirmando que muitas pessoas nos dias de hoje têm ainda necessidade desses auxílios como os judeus tinham em tempos antigos. É sempre o nosso dever investigar por que ordem o Senhor quis que a sua Igreja fosse governada, pois somente Ele sabe completamente o que é conveniente para nós. Agora é certo que nada está mais em desacordo com a ordem designada por Deus do que a grosseira pompa carnal que prevalece em várias instituições religiosas ditas cristãs. O espírito era de fato ocultado pelas sombras da Lei, essas máscaras o desfiguram completamente; e, portanto, não devemos ceder a tais corrupções vergonhosas. Quaisquer que sejam os argumentos que possam ser empregados pela engenhosidade de homens, ou por aqueles que não

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têm coragem suficiente para corrigir vícios - certamente não podem ser tolerados para que a regra prevista por Cristo não seja violada.

“Os verdadeiros adoradores”. Cristo parece reprovar indiretamente a obstinação de muitos, a qual mais tarde foi exibida; pois sabemos quão obstinados e contenciosos foram os judeus, quando o Evangelho foi revelado, na defesa das cerimônias a que estavam acostumados. Mas esta declaração tem um significado ainda mais amplo; porque, sabendo que o mundo nunca mais seria inteiramente livre de superstições, Jesus separa assim os fiéis devotos e retos daqueles que eram falsos e hipócritas. Armados com este testemunho, não vamos hesitar em condenar os que violam o culto verdadeiro, e sejamos corajosos para desprezar suas censuras. Por que razão deveríamos temer, quando sabemos que Deus fica contente com esta adoração pura e simples, que é desprezada por aqueles que não o adoram da forma devida?

O que é adorar a Deus em espírito e verdade aparece claramente a partir do que já foi dito. É deixar de lado as complicações das antigas cerimônias, e manter apenas o que é espiritual no culto de Deus; porque a verdade da adoração de Deus consiste no espírito, e cerimônias são apenas uma espécie de apêndice. E aqui, novamente, deve ser observado, que a verdade não é comparada com a falsidade, mas com a prática da Palavra de Deus, que é a verdade (João 17.17) e pela qual somos santificados pela operação do Espírito Santo.

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Jesus é Espírito Vivificante - Comentário de João 5.21

“Pois assim como o Pai ressuscita e vivifica os mortos, assim também o Filho vivifica aqueles a quem quer.” (João 5.21)

“Pois assim como o Pai ressuscita os mortos”. Aqui, Jesus dá uma visão resumida da natureza do ofício que tinha sido dado a ele pelo Pai; porque embora ele pareça especificar uma classe, no entanto, esta é uma doutrina geral em que declara ser o Autor da vida. Agora a vida contém em si não só a justiça, mas todos os dons do Espírito Santo, e cada parte da nossa salvação. E, certamente, este milagre deve ter sido uma prova muito notável do poder de Cristo, como para produzir este fruto comum; ou seja, para abrir uma porta para o Evangelho. Nós também devemos observar de que maneira Cristo nos concede a vida; porque ele nos encontrou a todos mortos espiritualmente, e, portanto, era necessário começar com uma ressurreição No entanto, quando ele junta as duas palavras, “ressuscita” e “vivifica”, ele não usa uma linguagem supérflua; pois não teria sido suficiente que fôssemos resgatados da morte, se Cristo não restaurasse total e perfeitamente a vida para nós. Mais uma vez, ele não fala dessa vida como uma graça dada indiscriminadamente a todos; pois diz que ele dá vida a quem ele quer; pelo que ele quer dizer que confere especialmente esta graça a ninguém, senão a certas pessoas, isto é, por meio de eleição.

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Jesus é o Rei Supremo do Céu e da Terra - Comentário de João 5.22

“E o Pai a ninguém julga, mas ao Filho confiou todo julgamento,” (João 5.22)

“Porque o Pai a ninguém julga”. Jesus agora afirma com mais clareza a verdade geral, que o Pai governa o mundo na pessoa do Filho e exerce o domínio pela sua mão; porque o evangelista emprega a palavra julgamento, concordando com a expressão idiomática da língua hebraica, como denotando autoridade e poder. Percebemos agora a suma do que é dito aqui, que o Pai deu ao Filho um Reino, para que ele possa governar o céu e a terra de acordo com a sua vontade. Mas isso pode parecer ser muito absurdo, a saber, que o Pai, renunciando ao seu direito de governar, deve permanecer desocupado no céu, mas a resposta é fácil. Isto é dito, tanto em relação a Deus e aos homens; porque nenhuma mudança ocorreu no Pai, quando nomeou Cristo como supremo Rei e Senhor do céu e da terra; pois ele está no Filho, e trabalha nele. Mas uma vez que, quando queremos nos elevar a Deus, todos os nossos sentidos imediatamente falham, Cristo é colocado então diante de nossos olhos como uma imagem viva do Deus invisível. Não há razão, portanto, por que devemos trabalhar arduamente para nenhum propósito em explorar os segredos do céu, uma vez que Deus provê para a nossa fraqueza, por se revelar tão próximo na pessoa de Cristo; mas, por outro lado, sempre que a indagação diz respeito ao governo do mundo, à nossa

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própria condição, à tutela celestial de nossa salvação, vamos aprender a dirigir os olhos para Cristo, porque todo o poder foi dado a ele (Mateus 28.18), e em sua face, Deus Pai, que de outra forma teria ficado ocultado e à distância, aparece para nós, para que a majestade revelada de Deus não nos consuma pelo seu brilho inconcebível.

Honra-se a Deus Pai Honrando-se a Jesus - Comentário de João 5.23

“a fim de que todos honrem o Filho do modo por que honram o Pai. Quem não honra o Filho não honra o Pai que o enviou.” (João 5.23)

“Para que todos os homens honrem o Filho”. Esta frase confirma suficientemente a sugestão que eu dei um pouco atrás, que quando se diz que Deus reina na pessoa de Cristo, isto não significa que ele repousa no céu, como reis indolentes estão acostumados a fazer, mas porque em Cristo, ele manifesta o seu poder e mostra-se presente. Porque, qual seria o significado dessas palavras, para que todos os homens honrem o Filho, senão que o Pai deseja ser reconhecido e adorado através do Filho? O nosso dever, portanto, é buscar a Deus, o Pai, em Cristo, para contemplar a seu poder em Cristo e adorá-lo em Cristo. Pois, como imediatamente segue, quem não honra o Filho retira de Deus a honra que é devida a ele. Todos admitem que devemos adorar a Deus,

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e esse sentimento, que é natural para nós, está profundamente enraizado em nossos corações, de modo que ninguém se atreve absolutamente a recusar a Deus a honra que é devida a ele; e ainda as mentes dos homens se perdem em sair do caminho para buscar a Deus. Daí tantas divindades pretensas, daí tantos modos perversos de adoração. Jamais, portanto, se encontrará o verdadeiro Deus, senão em Cristo, nem estaremos sempre adorando-lhe corretamente, senão ao beijar o Filho, como Davi nos diz no Salmo 2.12, pois, como João declara em outro lugar, “aquele que não tem o Filho não tem o Pai” (1 João 2:23).

Maometanos e judeus, de fato, adornam com belos e magníficos títulos o Deus a quem eles adoram; mas devemos lembrar que o Nome de Deus, quando ele é separado de Cristo, nada mais é do que uma vã imaginação. (Uma vez que é através de Jesus que é revelado na Bíblia e que se manifestou na carne, confirmando e ensinando a Palavra de Deus, que podemos achar e honrar a Deus Pai, ao único Deus verdadeiro – nota do tradutor).

Todo aquele que deseja ter seu culto aprovado pelo verdadeiro Deus, nunca deve se apartar de Cristo. Também não foi de outra forma com os patriarcas sob a Lei de Moisés no período do Velho Testamento; porque eles contemplaram Cristo obscuramente sob sombras, porque Deus nunca se revelou aparte de Cristo. Mas agora, uma vez que Cristo foi manifestado na carne e nomeado para ser Rei sobre nós, o mundo inteiro deve

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dobrar os joelhos a ele, a fim de obedecer a Deus; porque o Pai tendo feito que ele se assente à sua mão direita, todo aquele que faz uma concepção de Deus, sem Cristo, tira a metade dele.

A Vida Eterna é Por Ouvir e Crer no Evangelho - Comentário de João 5.24

“Em verdade, em verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida.” (João 5.24)

“Aquele que ouve a minha palavra”. Aqui descreve-se a forma e modo de honrar a Deus, para que ninguém possa pensar que consiste unicamente em qualquer desempenho exterior, ou em cerimônias frívolas. Porque a doutrina do Evangelho parece como um cetro de Cristo, pelo qual ele governa os crentes a quem o Pai tem feito seus súditos. E esta definição é eminentemente digna de nota. Nada é mais comum do que uma falsa profissão de cristianismo; mesmo porque há muitos que se intitulam líderes religiosos cristãos, que são os inimigos mais inveterados de Cristo, por fazerem uma ostentação presunçosa do seu nome. Mas aqui Cristo não exige de nós nenhuma outra honra que não seja a de obedecer ao seu Evangelho. Por isso segue-se que toda a honra que hipócritas concedem a Cristo é, senão o beijo de Judas, porque ele traiu o seu Senhor. Embora eles

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possam chamá-lo cem vezes de Rei, ainda assim o privam de seu reino e de todo o seu poder, quando não exercem fé no Evangelho.

“Tem a vida eterna”. Por estas palavras, ele elogia igualmente o fruto da obediência, para que possamos estar mais dispostos a lhe obedecer. Porque quem deveria estar tão endurecido como para não se submeter voluntariamente a Cristo, quando a recompensa da vida eterna é oferecida a ele? E, no entanto, vemos quão poucos há que garantem para si mesmos tão grande bondade. Tão grande é a nossa depravação que escolhemos, morrer de vontade própria do que nos rendermos à obediência ao Filho de Deus, para que sejamos salvos pela sua graça. Ambos, portanto, estão aqui incluídos por Cristo - o manto de devoção e adoração sincera que ele requer de nós, e o método pelo qual ele nos restaura a vida. Porque não seria suficiente entender o que ele anteriormente ensinou, que ele veio para ressuscitar os mortos, a não ser que também saibamos a maneira pela qual ele nos restaura a vida. Agora, ele afirma que a vida é obtida pelo ouvir a sua palavra, e por ouvir a palavra ele quer se referir à fé, como ele logo em seguida declara. Mas a fé tem a sua sede não nos ouvidos, mas no coração. De onde deriva a fé tão grande poder, já anteriormente explicado. Devemos sempre considerar o que é que o Evangelho nos oferece; para que não nos surpreendamos que aquele que recebe Cristo com todos os seus méritos é reconciliado com Deus, e absolvido da condenação de morte; e que aquele que recebeu o dom do Espírito Santo está vestido com uma justiça celestial,

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para que possa caminhar em novidade de vida (Romanos 6.6). A frase que é adicionada, “crê naquele que me enviou”, serve para confirmar a autoridade do Evangelho: quando Cristo testifica que esta autoridade do evangelho veio de Deus, e não foi inventada por homens, como ele em outro lugar diz, que o que ele fala não é dele mesmo, mas foi entregue a ele pelo Pai (João 7.16; 14.10).

“E não entrará em condenação”. Há aqui um contraste implícito entre a culpa da qual todos nós somos naturalmente responsáveis, e a absolvição incondicional que obtemos por meio de Cristo; pois se todos não fossem passíveis de condenação, para que propósito serviria livrar dela aqueles que creem em Cristo? Assim, o significado é que estamos além do perigo de morte, porque somos absolvidos pela graça de Cristo; e, portanto, embora Cristo santifique e nos regenere, pelo seu Espírito, em novidade de vida, mas aqui ele menciona especialmente o perdão incondicional dos pecados, no qual somente a felicidade dos homens consiste. Por que, então, um homem começa a viver quando tem sido reconciliado com Deus; e como é que Deus nos amaria, se ele não perdoasse nossos pecados?

“Mas já passou”. Algumas versões latinas têm esse verbo no tempo futuro, vai passar da morte para a vida; mas esta surgiu da ignorância e imprudência de alguma pessoa que, sem entender o significado do Evangelista, deu-se mais liberdade do que deveria ter tomado; porque a palavra grega Metabebeke (já passou) não tem

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qualquer ambiguidade que seja. Não há qualquer impropriedade em dizer que já passamos da morte para a vida; porque a semente incorruptível de vida (1 Pedro 1.23) habita nos filhos de Deus, e eles já se sentaram na glória celestial com Cristo, pela esperança (Colossenses 3. 3), e eles têm o reino de Deus já estabelecido dentro deles (Lucas 17.21). Pois, embora a sua vida esteja escondida, eles deixam, por conta disso, de possuí-la pela fé; e embora a sua fé seja assediada por todos os lados, eles não deixam de estar calmos por esse motivo, porque sabem que estão em perfeita segurança através da proteção de Cristo. No entanto, lembremo-nos de que os crentes estão agora na vida de tal maneira que sempre carregam com eles a causa de morte; mas o Espírito, que habita em nós, é a vida, e ele irá destruir totalmente os resquícios de morte; pois é uma verdadeira palavra de Paulo, que a morte é o último inimigo a ser destruído (1 Coríntios 15.26).

E, de fato, essa passagem não contém nada que diga respeito à completa destruição da morte, ou de toda a manifestação da vida. mas, apesar da vida ser somente começada em nós, Cristo declara que os crentes estão tão certos de obtê-la, que eles não devem temer a morte; e não precisamos nos surpreender com isto, uma vez que estamos unidos a Ele que é a inesgotável fonte da vida.

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Ouvir a Jesus Gera a Vida Eterna - Comentário de João 5.25

“Em verdade, em verdade vos digo que vem a hora e já chegou, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus; e os que a ouvirem viverão.” (João 5.25)

“Em verdade, em verdade”. Quando o evangelista representa o Filho de Deus como jurando tão frequentemente em referência à nossa salvação, daí percebemos, em primeiro lugar, como ele deseja ansiosamente o nosso bem-estar, e depois, de quão grande importância é que a fé do Evangelho deva ser profundamente fixada e completamente confirmada. A declaração tem de fato alguma aparência de ser incrível, quando nos dizem que este é o efeito da fé, da qual Cristo fala; e, portanto, ele confirma por um juramento de que a voz do seu Evangelho tem tal poder de dar vida que é poderoso para ressuscitar os mortos É de consenso geral que ele fala da morte espiritual; porque aqueles que aplicam esta passagem a Lázaro (João 11.44), e ao filho da viúva de Naim (Lucas 7.15), e a outros casos semelhantes, são refutados pelo que se segue. Primeiro, Cristo mostra que estamos todos mortos antes que ele nos vivifique; e, portanto, é evidente que toda a natureza do homem necessita da salvação.

Cristo declara que estamos totalmente condenados à morte. E, de fato, assim temos estado, desde a rebelião

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do primeiro homem, alienado de Deus pelo pecado, todos os que não reconhecem que eles estão sobrecarregados com a destruição eterna nada mais do que enganam a si mesmos com lisonjas vazias. Eu prontamente reconheço que na alma do homem continua a existir algum resquício de vida; pois o entendimento, o julgamento, e a vontade, e todos os nossos sentidos, são partes da vida; mas como não há nenhuma parte que se eleve para desejar a forma de vida celestial, não precisamos nos surpreender se o homem todo, no que concerne ao reino de Deus, é considerado morto. E essa morte Paulo explica mais detalhadamente quando, ele diz, que estamos alienados da pura e sadia razão do entendimento, que somos inimigos de Deus, e nos opomos à sua justiça, em cada afeto do nosso coração; que vagueamos em escuridão, como cegos, e nos entregamos a paixões más (Efésios 2.1; 4.17). Se uma natureza tão corrompida não tem poder de desejar a justiça, segue-se que a vida de Deus está apagada em nós.

Assim, a graça de Cristo é uma verdadeira ressurreição da morte. Agora, esta graça nos é conferida pelo Evangelho; não que tanta energia seja possuída pela voz externa, a qual em muitos casos atinge os ouvidos sem propósito, mas porque Cristo fala aos nossos corações interiormente pelo seu Espírito, para que possamos receber pela fé a vida que nos é oferecida. Porque ele não fala indiscriminadamente de todos os mortos, mas se refere aos eleitos somente, cujos ouvidos Deus penetra e abre, para que possam receber a voz de seu Filho, que lhes restitui a vida. Esta dupla graça, de fato, Cristo

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expressamente nos garante por suas palavras, quando diz: “os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus; e os que a ouvirem viverão.”; pois não é menos contrário à natureza que os mortos devam ouvir, do que eles devam ser trazidos de volta para a vida que eles tinham perdido; e, portanto, ambos procedem do poder secreto de Deus.

“Mas a hora vem, e é agora”. Assim, Cristo fala disto como uma coisa que nunca tinha antes acontecido; e, de fato, a proclamação do Evangelho foi uma nova e repentina ressurreição do mundo. Mas a palavra de Deus não fez sempre isso, a saber, dar vida aos homens? Esta questão pode ser facilmente respondida. A doutrina da Lei e os Profetas foi dirigida ao povo de Deus e, consequentemente, deve ter tido um pouco a intenção de preservar a vida daqueles que eram os filhos de Deus do que para trazê-los de volta à morte. Mas foi o contrário com o Evangelho, pelo qual as nações anteriormente distantes do reino de Deus, separadas de Deus, e privadas de toda a esperança de salvação, foram convidadas a se tornarem participantes da vida.

A Vida Imanente de Jesus é Igual à de Deus Pai - Comentário de João 5.26

“Porque assim como o Pai tem vida em si mesmo, também concedeu ao Filho ter vida em si mesmo.” (João 5.26)

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“Pois assim como o Pai tem vida em si mesmo”. Jesus mostra de onde a sua voz deriva tal eficácia; ou seja, dAquele que é a fonte da vida, e por sua voz derrama-a sobre os homens; porque a vida não fluiria para nós da sua boca, se ele não tivesse em si a causa e a origem da mesma. De Deus é dito ter a vida em si mesmo, não só porque ele vive somente pelo seu próprio poder inerente, mas porque, contendo em si a plenitude da vida, ele comunica a vida a todas as coisas. E isso, de fato, pertence peculiarmente a Deus, como é dito, em ti está a fonte da vida (Salmo 36,9). Mas, por causa da majestade de Deus, que sendo removida para longe de nós, se assemelharia a uma fonte desconhecida e oculta, por esta razão, a mesma tem se manifestado abertamente em Cristo. Temos, assim, uma fonte aberta colocada diante de nós, da qual podemos tirar. O significado das palavras é o seguinte: "Deus não escolheu ter a vida oculta, e, por assim dizer, enterrada dentro de si mesmo, e, portanto, ele a derramou em seu Filho, para que pudesse fluir para nós." Daí podemos concluir, que esta faculdade de ter também vida em si mesmo, é estritamente aplicada a Cristo, no que concerne a ter se manifestado na carne.

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Jesus é o Juiz de Vivos e de Mortos - Comentário de João 5.27

“E lhe deu autoridade para julgar, porque é o Filho do Homem.” (João 5.27)

“E lhe deu poder”. Jesus mais uma vez repete que o Pai tem lhe dado domínio, que ele pode ter plenos poderes sobre todas as coisas no céu e na terra. A palavra (exousia) aqui denota autoridade. O julgamento está aqui para colocar domínio e governo, como se ele tivesse dito, que o Pai lhe nomeou para ser Rei, para governar o mundo, e exercer o poder do Pai em si mesmo.

“Porque ele é o Filho do homem”. Esta razão, que é adicionada imediatamente, merece ser observada particularmente, pois significa que ele vem aos homens, adornado com tanta magnificência de poder, para que ele possa lhes transmitir o que ele recebeu do Pai. Alguns pensam que esta passagem contém nada mais do que aquilo que é dito por Paulo, que Cristo, tendo sido achado na forma de Deus se esvaziou, tomando a forma de servo, e humilhou-se até a morte de cruz; e, portanto, Deus o exaltou e lhe deu um nome que é sobre todo nome, para que todo joelho se dobre diante dele. (Filipenses 2.7-10)

Mas de minha parte, considero o significado mais amplo: que Cristo, no que concerne a ser homem, foi nomeado pelo Pai para ser o Autor da vida, para que não seja necessário irmos muito longe para procurá-lo; porque Cristo não recebeu isto para si mesmo, como se ele

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precisasse, mas a fim de nos enriquecer com a sua riqueza. Pode ser resumido assim: "O que tinha sido escondido em Deus nos é revelado em Cristo, como homem, e a vida, que antigamente era inacessível, é agora colocada diante de nossos olhos." Há alguns que separam esse argumento de sua conexão imediata, e o juntam com a frase seguinte; mas esta é uma interpretação forçada, e está em contradição com o significado de Cristo.

A Autoridade Suprema da Doutrina de Jesus - Comentário de João 7.16

(Nota do tradutor: Calvino comentou antes, os versículos precedentes a este, nos quais vemos os judeus contestando a autoridade de Jesus, e a sua doutrina, afirmando que não podia ser de origem divina, por que sabiam que ele era filho de José e de Maria - se bem que não sabiam que ele não filho biológico de José pois tivera seu corpo formado no ventre de Maria, quando virgem, pelo poder do Espírito Santo, sem que José tivesse coabitado com ela até que Ele tivesse nascido – e também se escandalizavam nele e o rejeitavam porque não havia estudado nas escolas rabínicas para que pudesse ser considerado um mestre de religião entre os judeus.)

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“Respondeu-lhes Jesus: O meu ensino não é meu, e sim daquele que me enviou.” (João 7.16)

“A minha doutrina não é minha”. Cristo mostra que essa circunstância, a qual foi uma ofensa para os judeus, era sim uma escada pela qual eles deveriam subir mais alto para perceber a glória de Deus; como se tivesse dito, "Quando você vê um professor não treinado na escola dos homens, você sabe que eu tenho sido ensinado por Deus." Porque a razão pela qual o Pai Celestial determinou que seu filho deveria proceder da oficina de um carpinteiro, em vez das escolas dos escribas, foi para que a origem do Evangelho pudesse ficar mais evidente, para que ninguém pudesse pensar que tinha sido originado na terra, pela imaginação de qualquer ser humano que fosse o seu autor. Assim também Cristo escolheu homens ignorantes e sem instrução para serem seus apóstolos, e lhes permitiu permanecer três anos na ignorância, quando, poderia tê-los instruído em um único instante, fazendo-lhes novos homens, e até mesmo como anjos que tinham acabado de descer do céu.

“Mas daquele que me enviou”. Nesse comenos, Cristo mostra onde devemos derivar a autoridade da doutrina espiritual - somente de Deus. E quando ele afirma que a doutrina de seu Pai não é dele, ele olha para a capacidade dos ouvintes, que não tinham uma elevada opinião dele senão a de que fosse um mero homem. A título de concessão, portanto, ele se permite ser contado diferente de seu Pai, mas, de modo a antecipar nada senão aquilo que o Pai havia ordenado. A suma do que se

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afirma é, que o que ele ensina em nome de seu Pai não é uma doutrina de homens, e não procede de homens, de modo que alguém seja capaz de desprezá-la com impunidade. Vemos por qual método ele atribui autoridade para sua doutrina. É referindo-se a Deus como seu autor. Vemos também, com que base, e por que razão, ele exige que ele deve ser ouvido. É porque o Pai o enviou para ensinar. Ambas as coisas deveriam ser observadas por cada homem que toma sobre si o cargo de professor na Igreja, e que deseja que ele deva ser acreditado.

Conhece-se a Origem Celestial da Doutrina Quando a Vivemos - Comentário de João 7.17

“Se alguém quiser fazer a vontade dele, conhecerá a respeito da doutrina, se ela é de Deus ou se eu falo por mim mesmo.” (João 7.17)

“Se alguém quiser fazer a vontade dele”. Jesus antecipa as objeções que poderiam ser feitas. Porque desde que ele tinha muitos adversários naquele lugar, alguns poderiam facilmente ter murmurado contra ele desta maneira: "Por que te glorias no nome de Deus? Porque nós não conhecemos que tens procedido dele. Por que, então, tu nos pressiona afirmando que não admitimos que nada nos ensina, senão somente aquilo que é pelo mandamento de Deus? "Cristo, portanto, responde que o julgamento flui do temor e da reverência a Deus; de

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modo que, se suas mentes estivessem bem dispostas ao temor de Deus, eles teriam facilmente percebido se o que ele pregava era verdade ou não. Ele de igual modo lhes administrou, por isso, uma repreensão indireta; porque como não conseguiam distinguir entre falsidade e verdade, porque lhes faltava o principal requisito para o bom entendimento, a saber, a piedade e o desejo sincero de obedecer a Deus.

Esta afirmação é altamente digna de observação. Satanás continuamente nos ataca, e espalha suas redes em todas as direções, para que ele possa nos tomar de surpresa por seus enganos. Aqui Cristo nos previne para tomar cuidado para não nos expormos a qualquer uma de suas imposturas, assegurando-nos que, se estamos preparados para obedecer a Deus, ele nunca deixará de nos iluminar, com a luz de seu Espírito, para que sejamos capazes de distinguir entre a verdade e a mentira. Nada mais, portanto, nos impede de julgar corretamente, mas quando somos indisciplinados e obstinados; e cada vez que Satanás nos engana, somos justamente punidos por nossa hipocrisia. De igual forma Moisés avisa que, quando surgirem falsos profetas, nós somos provados por Deus; porque aqueles cujos corações são retos nunca serão enganados (Deuteronômio 13.3). Por isso, é evidente quão perversa e estupidamente muitas pessoas nos dias de hoje, temendo o perigo de cair em erro, por este grande medo fecham a porta contra todos os desejos para aprender; como se o nosso Salvador não tivesse uma boa base para dizer, “Batam, e a porta será aberta para vocês” (Mateus 7.7).

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Pelo contrário, se somos inteiramente dedicados à obediência a Deus, não vamos duvidar que Ele nos dará o espírito de discernimento, para ser nosso contínuo diretor e guia. Se outros optam por vacilar, eles vão por fim, ver quão frágeis são os pretextos para a sua ignorância. E, de fato, vemos que todos os que agora hesitam, e preferem valorizar a sua dúvida, em vez de, por leitura ou audição, da Palavra de Deus, investigar sinceramente onde a verdade de Deus está, têm a audácia de se rebelar contra Deus com base em princípios gerais. Um homem dirá que ele ora pelos mortos, porque, desconfiando de seu próprio julgamento, ele não pode se aventurar a condenar as falsas doutrinas inventadas por homens sobre o purgatório. Outro dirá que ele não possui tanta acuidade para ser capaz de distinguir entre a pura doutrina de Cristo e os artifícios espúrios dos homens, mas ainda assim ele vai ter acuidade suficiente para roubar ou cometer perjúrio. Em suma, todos aqueles que duvidam, que se cobrem com um véu de dúvida em todos os assuntos que são atualmente objeto de controvérsia, exibem um desprezo manifesto de Deus sobre assuntos que não são de todo obscuros.

Não precisamos nos surpreender, portanto, que a doutrina do Evangelho seja recebida por muito poucas pessoas nos dias de hoje, uma vez que há tão pouco temor de Deus no mundo. Além disso, estas palavras de Cristo contêm uma definição da verdadeira religião; isto é, quando estamos preparados de coração para seguir a vontade de Deus, o que ninguém pode fazer, a menos que tenha renunciado a seus próprios pontos de vista.

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“Ou se eu falo por mim mesmo”. Devemos observar de que maneira Cristo deseja que uma decisão seja formada sobre qualquer doutrina que seja. ele deseja que o que é de Deus deve ser recebido sem controvérsia, mas nos permite rejeitar livremente tudo o que é do homem; porque essa é a única distinção que ele estabelece, pela qual devemos distinguir entre doutrinas.

(Nota do tradutor: Ao dizer que todo aquele que quisesse fazer a vontade do Pai poderia conhecer que Jesus não falou por si mesmo, pois conheceria a mesma doutrina que ele ensinava da parte do Pai, isto se aplica de modo muito claro ao fato de que a doutrina de Deus é conhecida pela aplicação do Espírito Santo nos crentes, do mesmo modo como o Espírito também atuava no Senhor Jesus Cristo. Não se trata portanto de mero conhecimento intelectual do seu ensino, mas sobretudo de verificar a sua realidade em nossa própria vida.)

Verdadeira Testemunha da Verdade é Somente Quem Faz Tudo Para a Glória de Deus - Comentário de João 7.18

“Quem fala por si mesmo está procurando a sua própria glória; mas o que procura a glória de quem o enviou, esse é verdadeiro, e nele não há injustiça.” (João 7.18)

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“Aquele que fala por si mesmo”. Até agora Jesus mostrou que não é por nenhuma outra razão que os homens são cegos, senão porque eles não são regidos pelo temor de Deus. Ele agora coloca outra marca na própria doutrina, quanto a que pode ser conhecida se é de Deus ou se é do homem. Porque cada coisa que exibe a glória de Deus é santa e divina; mas cada coisa que contribui para a ambição dos homens, e, para exaltá-los, obscurece a glória de Deus, e não somente não tem direito de ser crida, mas deve ser veementemente rejeitada. Quem faz a glória de Deus ser o objeto em todos os seus desejos, nunca irá errar; aquele que provar esta pedra de toque que exalta o nome de Deus jamais será enganado. Também somos lembrados pelo ninguém pode desempenhar fielmente o cargo de professor na Igreja, a menos que seja desprovido de ambição e esteja determinado a fazer ser seu único objetivo promover, ao máximo, a glória de Deus. Quando ele diz que não há injustiça nele, ele quer dizer que não há nada ímpio, nem hipócrita, mas aquilo pode tornar alguém em um reto e sincero ministro de Deus.

(Nota do tradutor: A grande prova da maturidade espiritual se encontra justamente no fato de aprendermos que tudo o que Deus faz é por meio de Jesus Cristo, e pela operação do Espírito Santo. De modo que os crentes não têm do que se gloriar em si mesmos em tudo o que façam no Reino de Deus, uma vez que toda obra genuína do Espírito sempre nos leva a dar toda a glória a Deus, e a não nos gloriarmos o mínimo em nós mesmos. Como toda a plenitude do Espírito Santo

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habitava em Jesus e nele operava, entende-se que, ainda que sendo Deus juntamente com o Pai e o Espírito, tributava toda glória ao Pai em tudo o que o que Ele fazia. Na verdade o Filho sempre glorificou o Pai quer na criação de tudo o que há no céu ou na terra, e sempre há de glorificá-lo, porque é assim que sucede com todo aquele que conhece de fato a Deus, e sabemos que Jesus possui este conhecimento em toda a extensão de sua plenitude, em razão de não ser finito e imperfeito como nós.)

Somente Quem é Pela Verdade Conhece a Deus - Comentário de João 7.28

“Jesus, pois, enquanto ensinava no templo, clamou, dizendo: Vós não somente me conheceis, mas também sabeis donde eu sou; e não vim porque eu, de mim mesmo, o quisesse, mas aquele que me enviou é verdadeiro, aquele a quem vós não conheceis.” (João 7.28)

“Portanto, Jesus exclamou no templo”. Ele os repreende duramente pela sua temeridade, porque eles arrogantemente gabavam-se num falso parecer, e desta forma se excluíam de um conhecimento da verdade; como se ele tivesse dito: "Vocês sabem todas as coisas, mas vocês nada sabem." E, na verdade, não existe uma forma de praga mais destrutiva do que quando os

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homens estão tão intoxicados pela porção escassa de conhecimento que eles possuem, que ousadamente rejeitam qualquer coisa que seja contrária à sua opinião.

“Vocês me conhecem, e sabem de onde eu sou”. Esta é uma linguagem irônica. Com a falsa opinião que haviam formado a respeito dele, ele contrasta o que é verdadeiro; como se tivesse dito: "Enquanto vocês têm seus olhos fixados na terra, vocês acham que cada parte de mim está diante de seus olhos; e, portanto, me desprezam como vil e desconhecido. Mas Deus testemunha que eu vim do céu; e embora eu possa ser rejeitado por vocês, Deus vai reconhecer que eu sou verdadeiramente seu próprio Filho."

“Mas aquele que me enviou é verdadeiro”. Ele chama a Deus de verdadeiro, no mesmo sentido que Paulo chama de fiel, “Se somos infiéis”, ele diz, “ele permanece fiel, pois não pode negar a si mesmo” (2 Timóteo 2.13).

Pois seu objetivo é provar que o crédito devido ao Evangelho não é no menor grau diminuído pelo maior esforço do mundo para desfazê-lo; que, embora os homens ímpios possam tentar tirar de Cristo o que lhe pertence, ele ainda continua intacto, porque a verdade de Deus é firme e sempre será como Ele mesmo.

Cristo vê que ele é desprezado; mas até agora ele está longe de se render, pelo contrário, ele corajosamente repele a arrogância furiosa daqueles que não o tinham em qualquer estima. Com tal fortaleza inabalável e heroica todos os crentes devem ser dotados; ou melhor,

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jamais, a nossa fé será sólida e duradoura, a menos que tratemos com desprezo à presunção de homens ímpios, quando eles se levantam contra Cristo. Acima de tudo, os professores piedosos, contando com esse apoio, devem perseverar na manutenção da sã doutrina, mesmo que eles tenham que sofrer oposição do mundo todo. Assim Jeremias apela a Deus como seu defensor e guardião, porque ele é condenado como um impostor: “Persuadiste-me, ó Senhor, e persuadido fiquei; mais forte foste do que eu e prevaleceste; sirvo de escárnio todo o dia; cada um deles zomba de mim.” (Jeremias 20.7).

De igual modo Isaías, oprimido por todos os lados por calúnias e injúrias, voa para este refúgio, que Deus irá aprovar a sua causa (Isaías 50.8). E também Paulo, oprimido por julgamentos injustos, recorre contra tudo se firmando no dia da volta do Senhor (1 Coríntios 4.5), reconhecendo que é suficiente ter a Deus somente para nos guardar contra o mundo inteiro, embora este possa se apresentar enfurecido e tempestuoso contra nós.

“Aquele a quem vós não conheceis”. Ele quer dizer que não é surpreendente que ele não seja conhecido pelos judeus, porque eles não conhecem a Deus; porque o início da sabedoria é, contemplar a Deus.

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Jesus é a Única Fonte Que Sacia a Sede Espiritual - Comentário de João 7.37

“No último dia, o grande dia da festa, levantou-se Jesus e exclamou: Se alguém tem sede, venha a mim e beba.” (João 7.37)

“No último dia”. A primeira coisa que deve ser observada aqui é, que nenhum argumento ou intriga de inimigos aterrorizam a Cristo, de modo a fazer com que desista de seu dever; senão, pelo contrário, a sua coragem aumenta com perigos, de modo que ele perseverou com maior firmeza. Isto é provado pela circunstância do tempo, pelo conjunto da multidão, e pela liberdade que ele usou ao exclamar, enquanto sabia que mãos estavam estendidas por todos os lados para pegá-lo; pois é provável que os oficiais estavam naquele momento prontos para executar sua missão.

Devemos observar a seguir, que nada mais foi do que a proteção de Deus, na qual ele se baseava, que lhe permitiu manter-se firme contra tais esforços violentos daqueles homens, que tinham cada coisa em seu poder. Porque, por qual outra razão pode ser atribuído que Cristo pregou no dia mais público da Festa dos Tabernáculos, no meio do templo, no qual seus inimigos mantinham uma reunião tranquilamente, e depois que eles tinham preparado um grupo de oficiais para prendê-lo, senão porque Deus conteve a raiva deles? No entanto, é muito útil para nós, que o evangelista apresente Cristo

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exclamando em voz alta: “todos os que têm sede venham a Mim”, porque inferimos disto que o convite não foi feito a uma ou duas pessoas apenas, ou como um sussurro baixo e suave, mas que esta doutrina é proclamada a todos, de tal modo que ninguém possa ser ignorante da mesma, senão aqueles que, por vontade própria fechando os seus ouvidos, não perceberão este grito alto e distinto.

“Se alguém tem sede”. Por esta frase ele exorta todos a participarem de suas bênçãos, desde que, a partir de uma convicção da sua própria pobreza, desejem obter assistência. Pois é verdade que somos todos pobres e destituídos de todas as bênçãos, mas está longe de ser verdade que todos são despertados por uma convicção de sua pobreza para buscar socorro. Por isso, sucede que muitas pessoas não mexem um só pé, mas miseravelmente murcham e caem, e ainda há muitos que não são afetados por uma percepção de seu vazio, até que o Espírito de Deus, pelo seu próprio fogo, instiga fome e sede, em seus corações. Pertence ao Espírito, portanto, fazer-nos desejar a sua graça.

Quanto à presente passagem, devemos observar, em primeiro lugar, que ninguém é chamado para obter as riquezas do espírito, senão aqueles que queimam com o desejo delas. Porque sabemos que a dor da sede é mais aguda e atormentadora, para que os homens muito mais fortes, e aqueles que podem suportar qualquer quantidade de labuta, possam ser dominados pela sede. E assim ele convida o sedento e o faminto, a fim de

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prosseguir com a metáfora na qual ele emprega depois a palavra água e a palavra bebida, para que todas as partes do discurso pudessem estar acordes. E eu não tenho dúvida de que ele faz alusão a essa passagem em Isaías, “todos os que têm sede, venham às águas” (Isaías 55.1), porque o que Profeta atribui a Deus deveria ser cumprido plenamente em Cristo, como também o cântico de Maria: “Encheu de bens os famintos e despediu vazios os ricos.” (Lucas 1.53).

Ele, portanto, nos exorta para vir direto a si mesmo, como se ele tivesse dito, que é somente ele que pode satisfazer plenamente a sede de todos, e que todos os que buscam mesmo o menor alívio da sua sede espiritual em qualquer outro lugar estão enganados, e trabalhando em vão.

“E beba”. A promessa é adicionada à exortação; pois embora a palavra – e beba - transmita uma exortação, ainda contém em si mesma uma promessa; porque Cristo testifica que ele não é uma cisterna seca e desgastada, mas uma fonte inesgotável, que em grande parte e abundantemente supre a todos os que vêm para beber. Daí segue-se que, se pedirmos a ele o que necessitamos, o nosso desejo não será decepcionado.

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Jesus é Uma Fonte no Coração do Que Nele Crê - Comentário de João 7.38 “Quem crer em mim, como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva.” (João 7.38)

“Aquele que crê em mim”. Jesus aponta agora a maneira de vir a ele, que é, que devemos nos aproximar, não com os pés, mas pela fé; ou em vez disso, vir, nada mais é do que crer, pelo menos, se você definir com precisão a palavra crer; como já disse que nós cremos em Cristo, quando nós o abraçamos como ele é apresentado a nós no Evangelho, cheio de poder, sabedoria, justiça, pureza, vida, e todos os dons do Espírito Santo. Além disso, ele agora confirma mais clara e totalmente a promessa que mencionou antes; pois ele mostra que tem uma grande abundância para nos satisfazer plenamente.

“Do seu interior correrão rios de água viva”. A metáfora parece, sem dúvida, ser um pouco áspera, quando ele diz que rios de água viva correrão do ventre dos crentes; mas não pode haver nenhuma dúvida quanto ao significado, que aqueles que acreditam não sofrerão qualquer falta de bênçãos espirituais. Ele chama isso de água viva, a fonte da qual nunca seca, nem deixa de fluir continuamente. Como a palavra rios se encontra no plural, interpreto-a como denotando a diversidade das graças do Espírito, que são necessárias para a vida espiritual da alma. Em suma, a perpetuidade, assim como a abundância, dos dons e graças do Espírito Santo, são

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aqui prometidas para nós. Alguns entendem que a expressão - as águas fluirão do ventre dos crentes - significa que aquele a quem o Espírito tem sido dado deve fluir para seus irmãos, como devendo haver comunicação mútua entre nós. Mas eu considero que isto seja um significado mais simples, que todo aquele que crer em Cristo terá uma fonte de vida, fluindo em si mesmo, como Cristo disse anteriormente: “Aquele que beber desta água nunca mais terá sede” (João 4.14), porque enquanto a água comum apenas sacia a sede por um curto período de tempo, Cristo diz que pela fé nós bebemos do Espírito, que é uma fonte de água que jorra para a vida eterna

Ainda, ele não diz que, no primeiro dia, os crentes ficarão tão totalmente satisfeitos com Cristo, que jamais terão mais tarde qualquer fome ou sede; mas, ao contrário, o desfrute de Cristo acende um novo desejo dele. Mas o significado é que o Espírito Santo é como um fluir vivo e contínuo nos crentes; como Paulo também declara que ele é a vida em nós (Romanos 8.10), embora nós ainda carreguemos presentemente resquícios de pecado, a causa da morte. E, de fato, como cada um participa dos dons e graças do Espírito Santo, de acordo com a medida de sua fé, não pode possuir uma plenitude perfeita deles na vida presente. Mas os crentes, enquanto fazem progressos na fé, continuamente aspiram a novas adições do Espírito, para que as primícias que provaram os conduzam adiante até a perpetuidade da vida. Mas também são lembrados por ele, quão pequena é a capacidade de nossa fé, uma vez que as graças do Espírito dificilmente entram em nós por gotas, as quais fluem

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como rios, se damos a devida admissão a Cristo; se a fé nos fez capazes de recebê-lo.

“Como diz a Escritura”. Alguns limitam isso à frase anterior, e outros à última; de minha parte, eu o estendo a todo o âmbito do discurso. Além disso, Cristo não aponta aqui, em minha opinião, qualquer passagem particular das Escrituras, mas dá um testemunho extraído da doutrina comum dos Profetas. Pois sempre que o Senhor, prometendo uma abundância de seu Espírito, a compara a águas vivas, ele olha principalmente para o reino de Cristo, ao qual ele direciona as mentes dos crentes. Todas as predições de águas vivas, portanto, têm o seu cumprimento em Cristo, porque somente ele tem aberto e apresentado os tesouros escondidos de Deus. A razão pela qual as graças do Espírito são derramadas sobre ele (Jesus) é para que todos possamos extrair da sua plenitude (João 1.16).

Prova-se Ter a Fé por se Permanecer na Palavra de Cristo - Comentário de João 8.30,31

“30 Ditas estas coisas, muitos creram nele.

31 Disse, pois, Jesus aos judeus que haviam crido nele: Se vós permanecerdes na minha palavra, sois verdadeiramente meus discípulos;”

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(Nota do Tradutor: Nós veremos a partir do verso 31 deste oitavo capitulo do evangelho de João, quão grande debate houve entre Jesus e os judeus em relação à não aceitação deles da afirmação que lhes fizera que eram escravos do pecado, e por conseguinte, de Satanás. Todavia, nunca podemos esquecer que tudo o que Jesus fez e ensinou foi por amor, e com misericórdia de nossa condição, com o propósito de nos salvar da escravidão ao pecado e ao diabo. Este amor, pode ser visto na parte inicial deste oitavo capítulo, na forma pela qual Ele livrou a mulher adúltera da condenação, especialmente por parte de religiosos de Israel. Assim, se nos parece haver alguma forma de aspereza ou rigor nas palavras de Jesus, devemos apagar isto de nossas mentes, porque elas são a mais pura expressão da verdade, de modo que as recebendo e recorrendo a Ele pela fé, possamos ser ajudados e livrados da condenação eterna que paira sobre a cabeça de toda e qualquer pessoa neste mundo.)

30. “Enquanto ele falava essas coisas, muitos creram nele”. Embora os judeus, naquele tempo, quase se assemelhassem a um solo seco e estéril, todavia Deus não permitiu que a semente da sua palavra fosse totalmente perdida. Assim, ao contrário de todas as esperanças, e em meio a muitos obstáculos, aparecem alguns frutos. Mas o evangelista imprecisamente dá o nome de fé para o que era apenas uma espécie de preparação para a fé, porque ele nada afirma além disso a respeito deles do que estavam dispostos a receber a doutrina de Cristo.

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31. “Se vós permanecerdes na minha palavra”. Aqui Cristo lhes adverte, em primeiro lugar, que não é suficiente para qualquer pessoa ter começado bem, se o seu o progresso até o fim não corresponder a este início; e por esta razão ele exorta à perseverança na fé àqueles que provaram sua doutrina. Quando ele diz que os que estão firmemente enraizados na sua palavra, e que por isso continuam nela, são os seus verdadeiros discípulos, ele quer dizer que muitos professam ser discípulos que ainda não são na realidade, e não têm direito de serem contados como tal. Ele distingue seus seguidores hipócritas por esta marca, que aqueles que falsamente se vangloriam numa falsa fé recuam tão breve assim que têm entrado na jornada, ou pelo menos no meio dela; mas os crentes perseveram constantemente até o fim. Se, portanto, desejamos que Cristo deve nos contar como seus discípulos, nós devemos nos esforçar para perseverar.

(Nota do tradutor: temos assim, o alerta da misericórdia do Senhor, para que não nos iludamos pensando que somos seus discípulos e que por conseguinte nos encontramos seguramente salvos, quando nos falta esta evidência da perseverança até o fim na fé e na obediência a Ele e aos seus mandamentos, que caracteriza a todos os que são genuinamente salvos.)

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A Verdade de Jesus Liberta do Pecado, do Diabo e da Morte - Comentário de João 8.32

“e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” (João 8.32)

(Nota do tradutor: Este “e”, conjunção de ligação, do início da frase, une o que está sendo dito agora pelo Senhor Jesus, ao que havia afirmado no verso anterior, ou seja, que isto que agora se afirma sucede a todos aqueles que perseveram na fé até o fim, ou seja, eles conhecerão a verdade que os libertará da escravidão ao pecado e ao diabo.)

“E conhecereis a verdade”. Ele diz que os que chegaram a algum conhecimento dele conhecerão a verdadeira Verdade. Aqueles a quem Cristo se dirigiu eram ainda tão ignorantes e mal conheciam os primeiros rudimentos da fé, e, portanto, não precisamos nos surpreender que ele lhes prometa uma mais completa compreensão de sua doutrina. Mas a afirmação é geral. Por isso, qualquer progresso que qualquer um de nós tem feito no Evangelho, que ele saiba que precisa de novas adições. Esta é a recompensa que Cristo confere à sua perseverança, que ele o admite a uma maior familiaridade com ele; embora ele não faça, desta forma, nada além do que adicionar um outro dom ao primeiro, de modo que nenhum homem deve pensar que tem direito a qualquer recompensa. Pois é ele que aplica a sua Palavra em nossos corações, pelo seu Espírito, e é ele que, diariamente, afugenta de nossas mentes as nuvens

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da ignorância que obscurecem o brilho do Evangelho. A fim de que a verdade possa ser plenamente revelada a nós, devemos sincera e ardentemente nos esforçar para alcançá-la. É a mesma verdade invariável que Cristo ensina seus seguidores desde o início até o fim, mas sobre aqueles que foram a princípio iluminados por ele, é como se fosse com pequenas faíscas, ele a expande até que chegue a ser uma luz plena. Assim, os crentes, até que tenham sido totalmente confirmados, são em alguma medida ignorantes do que sabem; e ainda assim não é um conhecimento tão pequeno ou obscuro da fé a ponto de que não seja eficaz para a salvação.

“A verdade vos libertará”. Ele recomenda o conhecimento do Evangelho a partir do fruto que dele deriva, ou - o que é a mesma coisa - a partir de seu efeito, ou seja, que nos restaura à liberdade. Esta é uma bênção inestimável. Daí segue-se que nada é mais excelente ou desejável do que o conhecimento do Evangelho. Todos os homens sentem e reconhecem que a escravidão é um estado muito infeliz; e uma vez que o Evangelho nos livra dela, segue-se que deriva do Evangelho o tesouro de uma vida abençoada.

Temos agora de averiguar que tipo de liberdade é aqui descrito por Cristo, ou seja, que nos liberta da tirania de Satanás, do pecado e da morte espiritual. E se nós o obtivemos por meio do Evangelho, é evidente a partir disso que somos por natureza escravos do pecado. Em seguida, deve ser verificado qual é o método de nossa libertação. Porque até que sejamos governados por

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nossos sentidos e pela nossa disposição natural, estamos em escravidão ao pecado; mas quando o Senhor nos regenera pelo seu Espírito, também ele nos torna livres, de modo que, soltos dos laços de Satanás, de bom grado obedecemos a justiça. Mas a regeneração (novo nascimento que recebemos do Espírito Santo) procede da fé, e, portanto, é evidente que a liberdade procede do Evangelho.

Assim que nos gloriemos somente em Cristo, nosso Libertador, uma vez que somos conscientes da nossa própria escravidão. Para a razão pela qual o Evangelho deve ser reconhecido na nossa libertação é, que nos oferece Cristo para sermos libertados do jugo do pecado. Por fim, devemos observar que a liberdade tem os seus graus de acordo com a medida da fé; e Paulo, portanto, embora claramente feito livre, ainda gemia e ansiava pela perfeita liberdade, conforme ele afirma em relação a si mesmo em Romanos 7.24.

O Orgulho Religioso Mata - Comentário de João 8.33 “Responderam-lhe: Somos descendência de Abraão e jamais fomos escravos de alguém; como dizes tu: Sereis livres?” (João 8.33)

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(Nota do tradutor: No comentário deste versículo nós vemos quão perigoso é para o destino eterno da nossa alma, que estejamos apegados a alguma forma de orgulho religioso, especialmente nos casos em que este foi adquirido por conta de tradição religiosa familiar ou de nossos antepassados, ou ainda da nação ou grupo em que vivemos. A situação do orgulho dos judeus que aqui será vista, pode ser estendida a todos os demais, pois ninguém mais do que eles, poderia abrigar sentimentos de que já eram salvos, por conta da aliança que Deus havia feito com eles através de Moisés, e com nenhuma outra nação da terra, e todavia, nós os encontramos sendo admoestados por Cristo a não colocarem a sua confiança no fato de que por conta disto fossem salvos de fato, uma vez que não é por condição religiosa que somos salvos, mas por uma obra de libertação da graça divina operando em nosso coração, tornando-nos novas criaturas em Cristo Jesus.)

“Somos descendência de Abraão”. É incerto se o evangelista se refere aqui às mesmas pessoas das quais havia falado antes, ou a outros. Minha opinião é que é àqueles responderam a Cristo de forma confusa, como geralmente acontece em uma multidão promíscua; e que esta contenda foi feita sim por desprezadores do que por aqueles que acreditaram. É um modo de expressão muito habitual nas Escrituras, sempre que parte de um povo é mencionada, atribuir em geral, a todos o que pertence apenas àquela parte.

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Daqueles que objetaram que eles eram descendentes de Abraão, e que sempre foram livres, facilmente se infere das palavras de Cristo, qual liberdade foi prometida a eles como para pessoas que eram escravas. Mas eles não podem suportar o que lhes é dito, que sendo um povo santo e eleito, estava reduzido à escravidão Para qual proveito foi a adoção e aliança (Romanos 9.4), pela qual eles foram separados de outras nações, senão para que fossem contados filhos de Deus? Eles acham que, por isso, que eles são insultados, quando a liberdade é exibida para eles como uma bênção que eles ainda não possuem. Mas pode ser pensado estranho que eles devam afirmar que nunca foram escravizados, uma vez que tinham sido tão frequentemente oprimidos por vários tiranos, e naquela época estavam submetidos ao jugo romano, e gemiam sob o jugo mais pesado de escravidão; e, assim, isto pode ser facilmente visto, a saber, quão tola era sua jactância.

Quem é Liberto por Jesus Não é Mais Escravo do Pecado - Comentário de João 8.34

“Replicou-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado.” (João 8.34)

“Todo homem que comete pecado é escravo do pecado”. Este é um argumento tirado de coisas opostas. Os judeus se gabavam de que eram livres. Jesus prova que eles são

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escravos do pecado, porque, sendo escravizados pelos desejos da carne, pecavam continuamente. É surpreendente que os homens não sejam convencidos por sua própria experiência, de modo que, deixando de lado seu orgulho, eles possa aprender a ser humildes. E isso é muito frequente ocorrer nos dias de hoje, que, quanto maior a carga de vícios pela qual um homem é puxado para baixo, mais ferozmente ele profere palavras sem sentido exaltando o livre arbítrio.

Cristo parece dizer aqui nada mais do que aquilo que foi dito anteriormente por filósofos, que os que são dedicados às suas paixões estão sujeitos a uma escravidão mais degradante. Mas há um significado mais profundo e oculto, ou seja; pois ele não argui o que os homens maus trazem em si mesmos, mas o que é a condição da natureza humana. Os filósofos pensavam que qualquer homem é escravo por sua própria escolha, e que pela mesma escolha ele retorna à liberdade. Mas aqui Cristo afirma, que todos os que não são livrados por ele estão em um estado de escravidão, e que todos sofreram o contágio do pecado da natureza corrompida, sendo escravos desde seu nascimento. Nós devemos atentar para a comparação entre a graça e a natureza, à qual Cristo aqui se refere; a partir da qual pode ser facilmente visto que os homens estão destituídos de liberdade, a não ser que sejam resgatados desta condição por uma ajuda externa.

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A Libertação do Pecado por Jesus é Para Sempre - Comentário de João 8.35,36 “35 O escravo não fica sempre na casa; o filho, sim, para sempre.

36 Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres.”

35. “Ora, o escravo não permanece sempre na casa”. Jesus adiciona uma comparação, tirada das leis e do direito político, no sentido de que um escravo, embora ele possa ter poder por um tempo, ainda não é o herdeiro da casa; a partir do que ele infere que não há perfeita e durável liberdade, senão a que é obtida por meio do Filho. Desta forma ele acusa os judeus de vaidade, porque eles detêm, senão uma máscara em vez da realidade; pois, quanto ao fato de serem descendentes de Abraão, eles não eram nada senão uma máscara. Eles tinham um lugar na Igreja de Deus, mas um lugar como Ismael, um escravo, levantando-se contra seu irmão nascido livre, usurpado por um curto espaço de tempo (Gálatas 4.29). A conclusão é que todos os que se vangloriam de serem filhos de Abraão têm nada mais do que uma vazia e enganosa pretensão.

36. “Se, pois, o Filho vos libertar”. Por essas palavras ele quer dizer que o direito à liberdade pertence a si mesmo, e que todos os outros, sendo escravos nascidos, não podem ser libertados, senão pela sua graça. Porque

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aquilo que ele possui em sua própria natureza, ele nos concede por adoção, quando somos enxertados pela fé em seu corpo, e nos tornamos seus membros. Assim, devemos lembrar o que eu disse anteriormente, que o Evangelho é um instrumento pelo qual obtemos a nossa liberdade. Então a nossa liberdade é um benefício concedido por Cristo, mas o obtemos pela fé, em consequência da qual também Cristo nos regenera pelo seu Espírito. Quando ele diz que eles serão verdadeiramente livres, há uma ênfase na palavra verdadeiramente; para que façamos o contraste com a persuasão tola pela qual os judeus estavam cheios de orgulho, do mesmo modo que a maior parte do mundo imagina que possui um reino, enquanto se encontra na mais miserável escravidão ao pecado.

A Escravidão ao Pecado Implica Escravidão a Satanás - Comentário de João 8.44,45 “44 Vós sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos. Ele foi homicida desde o princípio e jamais se firmou na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da menti

45 Mas, porque eu digo a verdade, não me credes.”

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(Nota do tradutor: Foi somente depois de muito insistir pacientemente com os judeus para que entendessem que necessitavam ser libertados por Ele do domínio do pecado, que nos torna também escravos de Satanás, que nosso Senhor se dirigiu aos judeus com estas palavras não com o intuito de feri-los ou ofendê-los, como eles estavam fazendo com Ele, mas simplesmente de alertá-los, por misericórdia, qual era o verdadeiro estado miserável em que eles se encontravam diante de Deus, e não somente eles, mas toda a humanidade, por causa do pecado.)

44. “Vós tendes por pai o diabo”. O que Jesus tinha dito duas vezes antes, nos versos anteriores, de modo velado, agora ele expressa mais plenamente, que os judeus que contendiam com ele eram filhos do diabo, mas temos que apresentar o contraste, que eles não podiam acalentar tal ódio intenso para com o Filho de Deus, se não fosse pelo fato de que eles tinham por pai o inimigo perpétuo de Deus. Ele os chama de filhos do diabo, não somente porque eles imitam suas obras, mas porque eles são liderados por sua instigação a lutar contra Cristo. Porque, assim como nós somos chamados de filhos de Deus, não só porque nos assemelhamos a ele, mas porque ele nos governa pelo seu Espírito, porque Cristo vive e é poderoso em nós, de modo a nos conformar à imagem de seu Pai; assim, por outro lado, do diabo é dito ser o pai daqueles cujo entendimento ele cega, cujo coração ele move para cometer toda forma de injustiça, e em quem, em suma, atua poderosamente e exerce sua tirania;

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como vemos em 2 Coríntios 4.4; Efésios 2.2, e em outras passagens.

Os maniqueístas tola e inutilmente abusaram desta passagem para provar seus dogmas absurdos. Porque, desde que a Escritura nos chama de filhos de Deus, isso não se refere à transmissão ou origem da substância divina, mas à graça do Espírito, que nos regenera para uma novidade de vida; de modo que esta afirmação de Cristo não se relaciona à transmissão de substância, mas à corrupção da natureza, da qual a rebelião do homem foi a causa e origem. Quando os homens, portanto, nascem filhos do diabo, isto não deve ser imputado à criação, mas à culpa do pecado. Agora Cristo prova isso a partir do efeito, porque eles voluntariamente, e por sua própria vontade, estão dispostos a seguir o diabo.

“Ele foi homicida desde o princípio”. Ele explica o que são aqueles desejos e menciona dois casos, crueldade e falsidade; em que os judeus muito se assemelhavam a Satanás. Quando ele diz que o diabo era um assassino, ele quer dizer que ele planejou a destruição do homem; porque tão logo o homem fora criado, Satanás, impulsionado por um desejo perverso de causar injúria, se esforçou para destruí-lo. Cristo não se refere ao princípio da criação, como se Deus tivesse implantado nele a disposição de fazer dano desde que fora criado; mas ele condena em Satanás a corrupção da natureza, que ele trouxe sobre si mesmo. Isto aparece de forma mais clara a partir da frase, em que ele diz:

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“Ele não permaneceu na verdade”. Pois, ainda que aqueles que imaginam que o diabo era mau por natureza, se esforçando para produzir enganos, todavia estas palavras afirmam claramente que houve uma mudança para pior, e que a razão pela qual Satanás era um mentiroso era, que se revoltou contra a verdade Que ele é um mentiroso, não surge a partir de sua natureza ter sido sempre contrária à verdade, mas porque ele caiu desta por uma queda voluntária. Esta descrição de Satanás é muito útil para nós, para que todas as pessoas possam se esforçar para ter cuidado com suas armadilhas, e, ao mesmo tempo, repelir sua violência e fúria; com que ele ruge como um leão, buscando a quem possa tragar (1 Pedro 5.8), e tem mil estratagemas em seu comando para enganar. Tanto mais deveriam os crentes a ser abastecidos com armas espirituais para lutar, e tanto mais intensamente deveriam manter guarda com vigilância e sobriedade. Agora, se Satanás não pode deixar de lado essa disposição, não devemos ficar alarmados com isso, como se fosse uma nova e incomum ocorrência, quando os erros brotam extremamente numerosos e variados; porque Satanás usa seus seguidores como foles, para enganar o mundo por seus ardis. E nós não precisamos ficar surpresos que Satanás faça tais esforços extenuantes para extinguir a luz da verdade; pois ela é a única vida da alma. Assim, então, a ferida mais importante e mais mortal para matar a alma é a falsidade.

“Porque a verdade não está nele”. Esta declaração, que imediatamente segue a anterior, é uma confirmação, a

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posteriori, ou seja, que é retirada do efeito. Porque Satanás odeia a verdade, e portanto, não pode suportá-la, mas, ao contrário, é inteiramente coberto com falsidades. Daí Cristo infere que ele está totalmente caído da verdade, e totalmente afastado dela. Não vamos nos maravilhar, portanto, se ele exibe diariamente os frutos de sua apostasia.

“Quando ele profere mentira”. Estas palavras geralmente são explicadas como se Cristo tivesse afirmado que a culpa da mentira não pertence a Deus, que é o Autor da natureza, mas, ao contrário, procede de corrupção. Mas eu explico de forma mais simples, que é habitual ao diabo falar mentira, e que ele nada sabe, senão inventar corrupções, fraudes, e enganos. E ainda assim, com justiça inferimos a partir destas palavras, que o diabo tem esse vício de si mesmo, e que, enquanto isto que é peculiar a ele, pode igualmente ser considerado acidental; porque, ao mesmo tempo Cristo ao afirmar ser o diabo o inventor da mentira, ele evidentemente o separa de Deus, e ainda declara que ele é contrário a Deus.

“Porque ele é um mentiroso, e pai da mentira”. A palavra pai tem o mesmo objeto como a declaração anterior; porque a razão pela qual é dito de Satanás ser o pai da mentira é, porque ele está afastado de Deus, em quem somente a verdade habita e de quem flui como a sua única fonte.

45. “Mas porque eu digo a verdade”. Jesus confirma a declaração anterior; porque, uma vez que os judeus não

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têm outra razão para se oporem a ele, senão porque a verdade é odiosa e intolerável para eles, eles mostram claramente que são filhos de Satanás.

A Obra de Deus é Viver pela Fé em Jesus - Comentário de João 6.29

“Respondeu-lhes Jesus: A obra de Deus é esta: que creiais naquele que por ele foi enviado.” (João 6.29)

“A obra de Deus é esta”. Eles tinham falado de obras. Cristo lhes lembra de uma única obra, isto é, a da fé; pelo que ele se refere que todo compromisso dos homens sem fé é vão e inútil, mas que somente a fé é suficiente, porque é somente isto que Deus requer de nós, que creiamos. Porque há aqui um contraste implícito entre a fé e as obras e os esforços dos homens; como se ele tivesse dito, os homens labutam sem propósito, quando eles se esforçam para agradar a Deus sem fé.

Esta é uma passagem notável, mostrando que, embora os homens se atormentem durante toda sua vida, ainda, eles perdem seus esforços e dores, se eles não têm fé em Cristo como a regra de sua vida. Aqueles que inferem que esta passagem está ensinando que a fé é um dom de Deus estão errados; porque Cristo não mostra agora o que Deus produz em nós, mas o que ele deseja e exige de nós.

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Mas podemos achar estranho que Deus nada aprove, senão somente a fé; porque o amor ao próximo não deveria ser desprezado, e os outros exercícios de religião não deveriam perder seu lugar e honra. Então, embora a fé possa manter a posição mais elevada, ainda outras obras não são supérfluas. A resposta é fácil; porque a fé não exclui nem o amor ao próximo ou qualquer outra boa obra, porque ela os contém a todos dentro de si. A fé é chamada a única obra de Deus, porque, por meio dela possuímos a Cristo, e assim nos tornamos filhos de Deus, para que ele nos governe pelo seu Espírito. Assim, então, porque Cristo não separa a fé de seus frutos, não precisamos nos maravilhar que ele faça com que a fé seja o primeiro e o último.

“Que creiais naquele que ele enviou”. O que é a importância da palavra crer, temos explicado no terceiro capítulo. Deveria sempre ser lembrado que, para se ter uma percepção completa do poder da fé, devemos entender o que Cristo é, em quem cremos, e por que ele nos foi dado pelo Pai. É um sofisma sem valor, sob o pretexto desta passagem, afirmar que somos justificados por obras, se a fé justifica, porque é também chamada de uma obra. Primeiro, está claro o suficiente que Cristo não fala com estrito rigor, quando ele chama a fé de uma obra, assim como Paulo faz uma comparação entre a lei da fé e a lei das obras (Romanos 3.27). Em segundo lugar, quando nós afirmamos que os homens não são justificados pelas obras, entendemos obras do mérito pelo qual os homens podem obter o favor de Deus. Agora, a fé não traz nada a Deus, senão, pelo contrário,

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coloca o homem diante de Deus como vazio e pobre, para que ele possa ser preenchido com Cristo e com a sua graça. Isto é, portanto, se podemos permitir a expressão, uma obra passiva, para a qual nenhuma recompensa possa ser paga, e sem conceder ao homem qualquer outra justiça do que aquela que ele recebe de Cristo.

Jesus é o Alimento da Vida Eterna - Comentário de João 6.35

“Declarou-lhes, pois, Jesus: Eu sou o pão da vida; o que vem a mim jamais terá fome; e o que crê em mim jamais terá sede.” (João 6.35)

“Eu sou o pão da vida”. Primeiro, ele mostra que o pão, que eles pediram com escárnio nos versos anteriores, está diante de seus olhos; e, em seguida, os repreende. Ele começa com doutrina, para fazer mais evidente que eles eram culpados de ingratidão. Existem duas partes da doutrina; pois ele mostra onde devemos buscar a vida, e como podemos apreciá-la. Nós sabemos o que deu ocasião para Cristo usar essas metáforas; era porque o maná e a alimentação diária tinham sido mencionados. Mas, ainda assim esta figura está melhor adaptada para ensinar as pessoas ignorantes do que um estilo simples. Quando comemos o pão para a nutrição do corpo, vemos mais claramente não apenas a nossa própria fraqueza, mas também o poder da graça divina, em que, sem pão, Deus desse ao corpo um poder secreto de nutrir a si

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mesmo. Assim, a analogia que é traçada entre o corpo e a alma, nos permite perceber mais claramente a graça de Cristo. Porque quando aprendemos que Cristo é o pão pelo qual nossas almas devem ser alimentadas, isto penetra mais profundamente em nossos corações do que se Cristo simplesmente dissesse que ele é a nossa vida

Deve ser observado, no entanto, que a palavra pão não expressa o poder vivificante de Cristo tão plenamente como nós o sentimos; porque o pão não faz começar a vida, mas nutre e sustenta a vida que já possuímos. Mas, graças à bondade de Cristo, não somente continuamos a possuir a vida, mas temos o início da vida, e, portanto, a comparação é em parte inadequada; mas não há nenhuma inconsistência nisto, pois Cristo adapta seu estilo às circunstâncias do discurso que anteriormente tinha apresentado. Agora, a questão que tinha sido levantada nos versos anteriores, qual das duas era a alimentação mais eminente entre os homens, a de Moisés (maná) ou a do próprio Cristo? Esta é também a razão pela qual ele chama isto de pão apenas, pois foi somente o maná que eles opuseram a ele, e, portanto, julgou suficiente contrastá-lo com um tipo diferente de pão. A doutrina é simples, “Nossas almas não vivem por um poder intrínseco, por assim dizer, ou seja, por um poder que elas têm, naturalmente, em si mesmas, mas emprestam a vida a partir de Cristo."

“Aquele que vem a mim”. Ele agora define a maneira de tomar esse alimento; é quando recebemos a Cristo pela

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fé. Pois é de nenhum proveito para os incrédulos que Cristo seja o pão da vida, porque permanecem sempre vazios; assim, então, Cristo se torna nosso pão, quando chegamos a ele como pessoas famintas, para que ele possa nos saciar. Vir a Cristo e crer nele, nesta passagem, é a mesma coisa; mas a palavra anterior destina-se a expressar o efeito da fé, ou seja, que é em consequência de sermos impulsionados pelo sentimento de nossa fome que nós corremos a Cristo para buscar vida.

Aqueles que inferem desta passagem que comer Cristo é a fé, e nada mais, raciocinam inconclusivamente. Eu prontamente reconheço que não há nenhuma outra maneira em que nós nos alimentamos de Cristo a não ser por crermos; mas o comer é o efeito e fruto da fé, em vez da própria fé. Porque a fé não olha para Cristo apenas como à distância, mas o abraça, para que ele possa se tornar nosso e habitar em nós. Ela nos faz ser incorporados a ele, ter vida em comum com ele, e, em suma, tornar-nos um com ele (João 17.21). Portanto, é verdade que é por fé que comemos Cristo, desde que também compreendamos de que maneira a fé nos une a ele.

“Nunca mais terá sede”. Isto parece ser adicionados sem qualquer boa razão; porque a função do pão não é a de matar a sede, mas aliviar a fome. Cristo, portanto, atribui ao pão mais do que a sua natureza permite. Eu já disse, que ele emprega a palavra pão sozinha, porque foi exigido pela comparação entre o maná e o poder celestial de Cristo, pelo qual nossas almas são sustentadas em

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vida. Ao mesmo tempo, a palavra pão, significa, em geral, tudo o que nos alimenta, e que era um costume comum de sua nação. Porque os hebreus, pela figura de linguagem chamada sinédoque, usam a palavra pão para o jantar ou ceia; e quando pedimos a Deus o nosso pão de cada dia (Mateus 6.11), nós incluímos bebida e todas as outras partes da vida. O significado, pois, é: "Quem deve valer-se a Cristo, para ter a vida dele, não terá falta de nada, mas terá em abundância tudo o que contribui para sustentar a vida."

A Vontade de Deus Pai é a Mesma de Jesus: Conceder Vida Eterna - Comentário de João 6.38,39

“38 Porque eu desci do céu, não para fazer a minha própria vontade, e sim a vontade daquele que me enviou.

39 E a vontade de quem me enviou é esta: que nenhum eu perca de todos os que me deu; pelo contrário, eu o ressuscitarei no último dia.”

38. “Porque eu desci do céu”. Esta é uma confirmação da afirmação do versículo anterior, que nós não buscamos a Cristo em vão. Pois a fé é uma obra de Deus, pela qual ele mostra que somos o seu povo, e nomeia o seu Filho para ser o guardião da nossa salvação. Agora o Filho não tem outro propósito do que cumprir as ordens de seu Pai. Por isso, ele nunca irá rejeitar aqueles a quem o Pai lhe tem enviado. Assim, finalmente, segue-se que a fé nunca será

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inútil. Quanto à distinção que Cristo faz entre sua vontade e a vontade do Pai, a este respeito, ele se acomoda aos seus ouvintes, porque, como a mente do homem é propensa à desconfiança, estamos acostumados a inventar alguma diversidade que produz hesitação. Para cortar toda pretensão para aquelas ímpias imaginações, Cristo declara que ele se manifestou ao mundo, a fim de que ele possa realmente ratificar o que o Pai tem decretado a respeito de nossa salvação.

39. “E esta é a vontade do Pai”. Ele agora testemunha, que este é o projeto do Pai, que os crentes possam encontrar a salvação garantida em Cristo; do que mais uma vez se segue que todos aqueles que não se beneficiam da doutrina do Evangelho são reprovados. Portanto, se vemos que ele se volta para a ruína de muitos, não temos nenhuma razão para ficar desapontados, porque aqueles homens voluntariamente fazem mal a si mesmos. Vamos ficar satisfeito com isso, que o Evangelho sempre terá poder para reunir os eleitos para a salvação.

“Que eu não perca nenhum deles”. Ou seja, "que eu não deveria sofrer por eles para que fossem tirados de mim ou perecer;" pelo que ele quer dizer que não é o guardião da nossa salvação por um único dia, ou por alguns dias, mas que irá cuidar dela até o fim, de modo que nos conduzirá, desde o início até o término de nossa jornada; e portanto, ele menciona a última ressurreição. Esta promessa é altamente necessária para nós, que miseravelmente gememos sob tão grande fraqueza da

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carne, da qual cada um de nós está suficientemente consciente; e a cada momento, de fato, a salvação do mundo inteiro pode ser arruinada, mas isto não atingirá os crentes, que apoiados pela mão de Cristo, avançam com ousadia para o dia da ressurreição. Que isto, portanto, seja fixado em nossas mentes, que Cristo, tem estendido a mão para nós, para que ele não possa nos abandonar no meio da jornada, mas que, confiando em sua bondade, possamos corajosamente levantar os olhos para o último dia.

Há também uma outra razão pela qual ele menciona a ressurreição. É porque, desde que a nossa vida está escondida nele (Colossenses 3.3), somos como homens mortos. Pois, o que faz com que os crentes difiram dos ímpios, é que, sendo sobrecarregados com aflições, e como ovelhas destinadas para o abate (Romanos 8.36), eles têm sempre um pé na cova, e, na verdade, não estão longe de serem engolidos continuamente pela morte? Assim não existe outro tipo de apoio para a nossa fé e paciência, senão este, que mantenhamos distância de ver a nossa presente condição de vida, e apliquemos as nossas mentes e os nossos sentidos para o último dia, e passemos pelos obstáculos do mundo, até que o fruto da nossa fé, finalmente apareça.

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Só É Possível Conhecer a Deus Através da Fé em Jesus - Comentário de João 6.43,44

“43 Respondeu-lhes Jesus: Não murmureis entre vós.

44 Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer; e eu o ressuscitarei no último dia.”

43. “Não murmureis entre vós”. Jesus repreendeu a murmuração deles, como se tivesse dito: "A minha doutrina não contém nenhum fundamento para ofensa, mas porque vocês são reprovados, ela irrita o veneno que vocês trazem em seus corações, e a razão pela qual vocês não se deleitam com ela é porque têm um paladar viciado."

44. “Ninguém pode vir a mim, se o Pai, que me enviou, não o trouxer”. Ele não se limita a acusá-los de impiedade, mas também lembra-lhes, que é um dom peculiar de Deus abraçar a doutrina que é exibida por ele; o que ele faz, para que a incredulidade não perturbe mentes fracas. Porque muitos são tão insensatos que, nas coisas de Deus, eles dependem das opiniões dos homens; em consequência do que, eles entretêm suspeitas sobre o Evangelho, assim que veem que não é recebido pelo mundo. Os incrédulos, por outro lado, se lisonjeiam em sua obstinação, e têm a audácia de condenar o Evangelho porque não lhes agrada. Em sentido contrário, portanto, Cristo declara que a doutrina do Evangelho, embora seja pregada a todos sem exceção, não pode ser abraçada por

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todos, pois uma nova compreensão e uma nova percepção são necessárias; e, por conseguinte, a fé não depende da vontade dos homens, porque é Deus quem a dá.

“Se o Pai não o trouxer”. “Vir a Cristo”, que está sendo usado aqui metaforicamente como “crer” - o Evangelista diz que as pessoas que são atraídas são aquelas cujos entendimentos Deus ilumina, e cujos corações ele inclina e transforma para a obediência a Cristo. A declaração equivale a isto: que não devemos perguntar se muitos se recusam a abraçar o Evangelho; porque nenhum homem, de si mesmo, jamais será capaz de vir a Cristo, mas Deus deve primeiro abordá-lo pelo seu Espírito; e, portanto, segue-se que nem todos são inclinados, a menos que Deus conceda esta graça àqueles a quem ele elegeu. É verdade que, de fato, quanto ao tipo de inclinação, esta não é violenta, de modo a obrigar os homens por força externa; mas ainda é um poderoso impulso do Espírito Santo, que leva os homens a desejarem o que anteriormente não estavam dispostos, achando-se relutantes a abraçar. É uma afirmação falsa e profana, portanto, que ninguém é atraído, senão aqueles que estão dispostos a serem atraídos, como se o homem fosse obediente a Deus por seus próprios esforços; porque a vontade com que os homens seguem a Deus é a que eles já têm de si mesmos, por Ele ter inclinado seus corações a obedecê-lo.

(Nota do Tradutor: Por esta afirmação de nosso Senhor Jesus Cristo vemos que é de bom senso, no assunto da

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religião, que não tentemos buscar a salvação ou adorar a Deus de acordo com os meios inventados pela nossa própria imaginação, mas nos esvaziarmos de nossas convicções religiosas e adquirirmos aquelas que Cristo e seus apóstolos nos ensinam na Bíblia, dependendo inteiramente de Deus por nos entregarmos a Cristo, pela fé nele e no que nos tem ensinado, para que o Espírito Santo o aplique aos nossos corações.)

Quem Tem Ouvido e Aprendido de Deus Vem para Jesus - Comentário de João 6.45

“Está escrito nos profetas: E serão todos ensinados por Deus. Portanto, todo aquele que da parte do Pai tem ouvido e aprendido, esse vem a mim.” (João 6.45)

“Está escrito nos profetas”. Cristo confirma com o testemunho de Isaías o que ele disse, no versículo anterior, que ninguém pode vir a ele, a não ser que seja trazido pelo Pai. Ele usa a palavra profetas no plural, porque todas as suas profecias tinham sido reunidas num único volume, de modo que todos os profetas poderiam ser considerados um único livro. A passagem que é aqui citada encontra-se em Isaías 54.13, onde, falando da restauração da Igreja, ele promete a ela, filhos ensinados pela instrução de Deus. Por isso, pode ser facilmente inferido, que a Igreja não pode ser restaurada de qualquer outra forma que não seja por Deus realizar o ofício de um Instrutor, e trazer os crentes a si mesmo. A

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forma de ensino, da qual o profeta fala, não consiste simplesmente na voz exterior, mas igualmente na operação secreta do Espírito Santo. Em suma, este ensinamento de Deus é a iluminação interior do coração.

“E serão todos ensinados por Deus”. A palavra todos deve ser limitada aos eleitos, os únicos que são os verdadeiros filhos da Igreja. Agora, não é difícil ver de que maneira Cristo aplica esta predição ao presente assunto. Isaías mostra então que a Igreja é somente verdadeiramente edificada, quando ela tem seus filhos ensinados por Deus em Cristo, portanto, conclui que os homens não têm olhos para contemplar a luz da vida, até que Deus lhos abra.

“Portanto, todo aquele que da parte do Pai tem ouvido e aprendido”. A soma do que é dito é, que todos os que não creem são afirmados por Cristo serem reprovados e condenados à destruição; porque todos os filhos da Igreja e herdeiros da vida são transformados por Deus em seus discípulos obedientes. Daí segue-se que não há um só de todos os eleitos de Deus, que não seja participante da fé em Cristo. (E isto não por qualquer mérito que haja neles, senão exclusivamente por terem sido atraídos por Deus a Cristo e à vida de obediência que eles acolheram voluntariamente – nota do tradutor). Mais uma vez, como Cristo anteriormente afirmou que os homens não são habilitados para crerem, até que tenham sido atraídos, então ele agora declara que a Sua graça, pela qual são atraídos, é eficaz, de modo que necessariamente creem.

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Estas duas cláusulas absolutamente derrubam todo o poder do livre-arbítrio para a salvação, porque se é apenas quando o Pai nos atraiu que começamos a vir a Cristo, não há em nós qualquer início de fé, ou qualquer preparação para isso. Por outro lado, se todo o que vem é porque o Pai lhe ensinou, Ele dá a eles não somente a escolha de crer, mas a própria fé. Quando, portanto, voluntariamente nos rendemos à orientação do Espírito, isto é uma parte, e, por assim dizer, um selo da graça; porque Deus não iria nos chamar, se Ele fosse apenas estender a sua mão, e deixar a nossa vontade, em um estado de suspense. Mas em estrita propriedade de linguagem Ele diz que nos atrai, quando Ele estende o poder do seu Espírito para o efeito pleno da fé. É dito daqueles que ouvem a Deus, que voluntariamente concordam com Deus falando-lhes no seu interior, porque o Espírito Santo reina em seus corações.

“Vem a mim”. Jesus mostra a conexão inseparável que existe entre Ele e o Pai. Porque o significado é, que é impossível que qualquer um que seja discípulo de Deus não obedeça a Cristo, e que aqueles que rejeitam a Cristo se recusam a ser ensinados por Deus; porque a única sabedoria que todos os eleitos aprendem na escola de Deus é, para vir a Cristo; porque o Pai, que o enviou, não pode negar a si mesmo.

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As Palavras que São Espírito e Vida - Comentário de João 6.63

“O espírito é o que vivifica; a carne para nada aproveita; as palavras que eu vos tenho dito são espírito e são vida.” (João 6.63)

“É o Espírito que vivifica”. Por estas palavras Cristo mostra a razão pela qual os judeus não se beneficiaram com a sua doutrina é que, sendo espiritual e vivificante, ela não encontrou ouvidos bem preparados. Mas como esta passagem tem sido variadamente exposta, será importante primeiro determinar o sentido natural das palavras; a partir do que será fácil perceber a intenção de Cristo. Quando ele afirma que a carne para nada aproveita, Crisóstomo indevidamente, na minha opinião, refere-se aos judeus, que eram carnais. Eu prontamente reconheço que em mistérios celestiais todo o poder da mente humana é totalmente inútil; mas as palavras de Cristo não têm esse significado, senão serão violentamente torcidas. Igualmente forçada seria essa opinião, caso aplicada à cláusula pertinente; ou seja, é a iluminação do Espírito que vivifica.

(Todo o comentário deve ser entendido à luz do fato que Jesus estava discursando a pessoas que haviam se escandalizado com o fato dele ter afirmado, nos versículos anteriores, que era necessário comer da Sua carne para que se tivesse a vida eterna. Eles pensavam que deveriam comer literalmente a carne do Seu corpo, e assim, ele demonstra que não era a isto que estava se

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referindo, senão à nossa participação da sua vida espiritual, por nos alimentarmos espiritualmente dele e do seu ensino – nota do tradutor).

Agostinho pensa que devemos aplicar somente uma palavra, ou por si só, como se tivesse sido dito, "A carne somente, e por si só, não aproveita", porque ela deve ser acompanhada pelo Espírito. Este significado concorda bem com o escopo do discurso, pois Cristo refere-se simplesmente ao modo de alimentação. Ele não exclui portanto, todos os tipos de utilidade, como se nada pudesse ser obtido a partir de sua carne; mas ele declara que, se ela for separada do espírito, então será inútil. Porque de onde tem a carne poder para vivificar, senão porque isto é espiritual? Assim, quem quer que confine toda a sua atenção à natureza terrena da carne, vai encontrar nela nada além de que já está morta; mas aqueles que levantarem seus olhos para o poder do Espírito Santo, que é difundido sobre a carne, irão aprender do efeito real e da experiência da fé, que não é sem razão que é chamada de vivificação.

“As palavras que eu vos tenho dito são espírito e são vida”. Esta é uma alusão à declaração anterior, porque ele agora emprega a palavra espírito em um sentido diferente. Mas como tinha falado do poder secreto do Espírito, ele elegantemente aplica isto à sua doutrina, porque ela é espiritual; porque a palavra espírito deve ser explicada como significando espiritual. Ora, a Palavra é chamada espiritual, porque ela nos chama para cima para buscar a Cristo em sua glória celestial, por meio da

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orientação do Espírito, pela fé, não por nossa percepção carnal; pois sabemos que nada de tudo o que foi dito, pode ser compreendido, senão pela fé. E é também digno de observação, que ele conecta a vida com o Espírito. Ele chama sua palavra de vida, a partir do seu efeito, como se ele a tivesse chamado de vivificante; mas mostra que ela não será vivificante para ninguém, senão apenas para aqueles que a recebem espiritualmente, porque outros, por ela, serão tragados pela morte. Para os piedosos, esta recomendação do Evangelho é a mais deleitável, porque eles estão certos que é designada para a sua salvação eterna; mas ao mesmo tempo, eles são lembrados que devem se esforçar para provar que eles são autênticos discípulos de Cristo.

Ninguém Vem a Jesus se Não For Atraído a Ele por Deus Pai - Comentário de João 6.65

“E prosseguiu: Por causa disto, é que vos tenho dito: ninguém poderá vir a mim, se, pelo Pai, não lhe for concedido.” (João 6.65)

(Nota do tradutor: Que majestade, honra, poder, domínio e glória teria Deus Pai e Jesus Cristo se tivessem que regatear com os homens acerca da salvação deles, como que lhes implorando o favor de se converterem? Reis terrenos fariam isto com malfeitores? Quanto mais jamais o fará a Majestade santa e perfeitamente justa do Céu. Por isso se diz que somos bem-aventurados se nos

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humilharmos diante do Senhor, se chorarmos por nossos pecados e lhe estendermos nossas mãos implorando que seja misericordioso para conosco, pecadores que somos. Sabendo que se Deus não inclinar o seu cetro para nos perdoar, estamos irremediável e eternamente perdidos.)

65. “ Por isso eu vos disse”. Mais uma vez Jesus afirma que a fé é um dom incomum e notável do Espírito de Deus, de modo que não devemos ficar atônitos com o fato do Evangelho não ser recebido em todos os lugares e por todos. Porque, sendo fracos para virar a nosso favor o curso dos acontecimentos, pensamos da forma mais mesquinha do Evangelho, porque o mundo inteiro não concorda com ele. Surge o pensamento em nossa mente, como é possível que a maior parte dos homens deva recusar deliberadamente a sua salvação? Cristo, portanto, atribui a razão pela qual há tão poucos crentes, ou seja, porque nenhum homem, seja qual for a sua inteligência, pode chegar à fé por sua própria sagacidade; pois todos são cegos, até que sejam iluminados pelo Espírito de Deus, e, portanto, somente deste modo eles podem participar da grande bênção que o Pai designou para que sejamos participantes da mesma. Se esta graça fosse concedida a todos, sem exceção, teria sido inoportuno e inadequado ter mencionado isto nesta passagem; pois devemos entender que era o desígnio de Cristo mostrar que não muitos acreditam no Evangelho, porque a fé procede apenas da secreta revelação do Espírito.

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“Se, pelo Pai, não lhe for concedido”. Ele agora usa a palavra “conceder” no lugar que tinha usado no versículo anterior, “atrair”; pelo que ele diz que não há outra razão pela qual Deus nos atraia, senão por causa da livre graça com a qual ele nos ama; porque o que obtemos pelo dom e graça de Deus, nenhum homem adquire para si mesmo por sua própria operosidade.

Judas, Apóstolo, Irmão do Apóstolo Tiago - Comentário de Judas 1.1,2

Combatendo o Mal nas Fileiras do Próprio Exército

Nosso Senhor Jesus Cristo reprovou e repreendeu severamente os religiosos nos dias de Seu ministério terreno por causa de sua ganância e hipocrisia.

E estes religiosos não eram os de uma nação estrangeira, senão da própria nação israelita que era a guardiã da aliança que Deus fizera com eles, e da Lei divina que lhes fora dada pela mediação de Moisés.

Quem não lembra do trovão retumbante que o Senhor Jesus Cristo disparou sobre os sacerdotes, escribas e fariseus, sob o epíteto “ai de vós escribas e fariseus hipócritas!”? (Mateus 23)

Eles não somente haviam, por causa de sua hipocrisia e ganância, por gerações seguidas, e por séculos, sempre se

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desviado do cumprimento dos mandamentos de Deus, e não somente isto, também haviam adulterado a Lei acrescentando-lhe ordenanças de homens.

Pelo mesmo motivo, vemos os apóstolos do Senhor, em suas epístolas do Novo Testamento condenando a ganância e a hipocrisia dos falsos pastores e mestres.

Nós vemos isto especialmente nas epistolas de Pedro (2ª) e Judas.

E assim como sucedeu ao povo de Israel no período do Velho Testamento estando sob os sacerdotes e demais religiosos que tinham por dever ensinar e guardar os mandamentos de Deus, de igual modo tem sucedido à Igreja ao longo da sua história de cerca de 2.000 anos, com os pastores, profetas e mestres que em vez de pregarem e ensinarem o genuíno evangelho de Cristo, têm em sua grande maioria não somente ocultado a mensagem da cruz, como também têm-na adulterado com suas invenções e artifícios religiosos que não cumprem a ordenança de Jesus Cristo de se pregar e ensinar somente a verdade com vistas à salvação e santificação dos pecadores.

Portanto, farão um grande e eterno bem às suas almas todos aqueles que se guardarem de ouvir e seguir os falsos cristos, pastores, profetas e mestres dos quais nosso Senhor nos alertou para que nos acautelássemos deles e de sua hipocrisia, especialmente nos dias do tempo do fim que têm chegado a nós; pois o intento deles, pela inspiração de Satanás é tão somente o de nos

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manter cativos ao pecado e por conseguinte sujeitos à condenação eterna.

Uma introdução aos comentários das epístolas de Judas e 2ª Pedro, de Calvino, pelo Pr Silvio Dutra.

1. Judas, servo de Jesus Cristo, e irmão de Tiago, aos chamados, santificados em Deus Pai, e conservados por Jesus Cristo:

2. Misericórdia, e paz, e amor vos sejam multiplicados.

1. “Judas, servo de Jesus Cristo”. Ele se denomina servo de Cristo, não do modo como o nome se aplica a todos os santos, mas com respeito ao seu apostolado; porque eram considerados peculiarmente servos de Cristo aqueles a quem fora confiado algum ofício público. E sabemos por que os apóstolos costumavam

atribuir a si mesmos este nome honorífico - todo aquele que não é chamado arroga-se presunçosamente o direito e a autoridade de ensinar. Nesse caso, o chamado dos apóstolos era uma evidência para eles de que não se lançaram ao seu ofício por vontade própria. Embora, não fosse suficiente serem designados para o seu ofício, se não o desempenhassem fielmente. E, sem dúvida, aquele que se declara servo de Deus inclui estas duas coisas, ou seja, que Cristo é o conferidor do ofício que exerce, e que ele realiza fielmente o que lhe foi confiado. Muitos agem falsamente, e falsamente se gloriam do que estão muito longe de ser;

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devemos sempre examinar se a realidade corresponde à profissão.

E irmão de Tiago. Ele menciona um nome mais celebrado do que o seu, e mais conhecido das igrejas. Embora a fidelidade da doutrina e a autoridade não dependam dos nomes de homens mortais, é uma confirmação para a fé quando a integridade do homem que assume o ofício de um mestre nos é assegurada. Além disso, a autoridade de Tiago não é apresentada aqui como a de uma pessoa particular, e sim porque ele era considerado por toda a Igreja como um dos principais apóstolos de Cristo. Ele era filho de Alfeu, conforme eu disse em outro lugar. Não somente isto, mas esta passagem é para mim prova suficiente contra Eusébio e outros que dizem que este era um discípulo chamado Oblias [Tiago], mencionado por Lucas em At 15:13; 21:18, o qual era mais eminente do que os apóstolos na Igreja. Mas não há dúvida de que Judas menciona aqui seu próprio irmão porque este era eminente entre os apóstolos. Nesse caso, é provável que ele fosse aquele a quem fora concedida a honra principal pelo restante, de acordo com o que relata Lucas.

Aos santificados por Deus Pai, ou, aos chamados, santificados, etc. Por esta

expressão, “chamados”, ele denota todos os fiéis, porque o Senhor os tem separado para si. Mas, como o chamado não é nada mais do que o efeito da eleição eterna, às vezes é empregado em lugar desta. Nesta passagem faz pouca diferença em que sentido é entendido, pois não há dúvida de que ele lhes recomenda a graça de Deus, pela

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qual lhe aprouve escolhê-los como seu tesouro peculiar. E ele sugere que os homens não se antecipam a Deus, e que eles nunca vêm até ele enquanto ele não os atrai.

Do mesmo modo, ele diz que eles eram: santificados em Deus Pai, o que pode

ser traduzido como: “por Deus Pai”. No entanto, retive a forma exata da expressão, para que os leitores exercitem o seu próprio julgamento. Pois talvez

o sentido seja este - de que, sendo em si mesmos profanos, eles tinham a sua

santidade em Deus. Mas a maneira em que Deus santifica é nos regenerando pelo seu Espírito.

Outra leitura, que a Vulgata adotou, é um tanto áspera: “aos amados (egapemenois) em Deus Pai”, em vez de “aos santificados em Deus Pai”. Por isso a considero corrupta e, de fato, encontra-se apenas em algumas cópias.

Ele ainda acrescenta que eles eram conservados em Jesus Cristo. Pois estaríamos sempre em perigo de morte por causa de Satanás, que poderia nos apanhar como presa fácil a qualquer momento se não estivéssemos a salvo sob a proteção de Cristo, a quem o Pai concedeu para ser o nosso guardião, para que não pereça nenhum daqueles que ele recebeu sob o seu cuidado e abrigo.

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Judas então menciona aqui uma tripla benção, ou favor de Deus, com respeito a todos os santos - que pelo seu chamado ele fez deles participantes do evangelho; que ele os regenerou, pelo seu Espírito, para a novidade de vida; e que ele os tem preservado por meio de Cristo, para que não decaiam da salvação.

2. “Misericórdia... vos seja”. Misericórdia claramente significa o mesmo que graça nas saudações de Paulo. Se alguém desejar uma distinção refinada, pode-se dizer

que graça é propriamente o efeito da misericórdia; pois não há outra razão pela qual Deus nos tenha abraçado em amor, senão porque ele se apiedou das nossas misérias. Amor pode-se entender como o de Deus para com os homens, bem como o dos homens uns para com os outros. Se for referido a Deus, o sentido é de que aumentasse para com eles, e que a certeza do amor divino fosse diariamente mais e mais confirmada em seus corações. O outro sentido, porém, de que Deus despertasse e confirmasse neles o amor mútuo, não é inadequado.

Os Opositores Permanentes do Evangelho - Comentário de Judas 1.3,4

“3. Amados, procurando eu escrever-vos com toda a diligência acerca da salvação comum, tive por

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necessidade escrever-vos, e exortar-vos a batalhar pela fé que uma vez foi dada aos santos.

4. Porque se introduziram alguns, que já antes estavam escritos para este mesmo juízo, homens ímpios, que convertem em dissolução a graça de Deus, e negam a Deus, único dominador e Senhor nosso, Jesus Cristo.”

3. “Procurando com toda a diligência”. Traduzi as palavras spouden poioumenos por “tomando cuidado”; literalmente, são: “fazendo diligência”. Mas muitos intérpretes explicam a sentença neste sentido, que um forte desejo constrangeu Judas a escrever, tal como dizemos acerca daqueles que estão sob a influência de um forte sentimento, que não podem governar ou conter a si mesmos. Nesse caso, de acordo com esses expositores, Judas estava sob uma espécie de necessidade, porque um desejo de escrever não lhe permitia descansar. Mas prefiro pensar que as duas sentenças são separadas; que, embora estivesse inclinado e solícito a escrever, uma necessidade o compeliu. Ele sugere então que, de fato, estava contente e ansioso por lhes escrever, mas a necessidade o urgiu a fazer isto, a saber, porque eram assaltados (segundo o que se segue) pelos infiéis, e precisavam estar preparados para combatê-los.

Então, em primeiro lugar, Judas testifica que sentiu tanta preocupação com a salvação deles, que ele mesmo quis, e de fato estava ansioso, por escrever-lhes;

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e, em segundo lugar, para despertar a sua atenção, diz que o estado das coisas exigia que ele fizesse isso. Pois a necessidade acrescenta fortes estímulos. Se não tivessem sido avisados com antecedência de quão necessário era a sua exortação, eles poderiam se tornar preguiçosos e negligentes. Mas quando faz este prefácio, de que escreveu por conta da necessidade da situação deles, era o mesmo que se ele tivesse tocado uma trombeta para despertá-los do seu torpor.

“Acerca da salvação comum”. Algumas cópias acrescentam “vossa”, mas sem razão, penso eu, pois ele torna a salvação comum a eles e a si mesmo. E acrescenta não pouco peso à doutrina que é anunciada, quando alguém fala de acordo com os seus próprios sentimentos e experiência. É vão o que dizemos, se falamos da salvação para outros, quando nós mesmos não temos nenhum conhecimento real dela. Nesse caso, Judas confessava ser ele mesmo um mestre por experiência (por assim dizer) quando se associava aos santos na participação da mesma salvação.

“E exortar-vos”. Literalmente: “exortando-vos”. Mas como ele aponta o objetivo do seu conselho, a sentença deveria ser expressa assim. O que traduzi como: “ajudar a fé, batalhando”, significa o mesmo que lutar para reter a fé, e resistir corajosamente aos assaltos contrários de Satanás. Ele lhes faz recordar que, para perseverarem na fé, diversas batalhas devem ser enfrentadas, e mantida uma guerra constante. Ele diz que a fé foi uma vez dada,

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para que soubessem que a obtiveram para este fim, para que nunca fracassem ou caíssem.

4. “Porque se introduziram alguns”. Embora Satanás seja sempre um inimigo dos

santos, e nunca deixe de acossá-los, Judas lembra aqueles a quem estava escrevendo do estado de coisas naquele tempo. Agora Satanás, diz ele, ataca e vos incomoda de uma maneira peculiar. Por isso é necessário pegar em armas para resistir-lhe. Por aqui aprendemos que um pastor bom e fiel deveria considerar sabiamente o que o estado atual da Igreja exige, assim acomodando a sua doutrina às necessidades dela.

A palavra pareisedusan, que ele usa, denota uma insinuação furtiva e indireta, pela qual os ministros de Satanás enganam os incautos. Satanás semeia seu joio de noite, e enquanto os lavradores estão dormindo, a fim de corromper a semente de Deus. Ao mesmo tempo, ele nos ensina que esta é uma guerra interna, pois neste aspecto Satanás também é astuto, na medida em que suscita para causar dano aqueles que são do rebanho, a fim de que possam se introduzir mais facilmente.

“Já antes estavam escritos”. Ele invoca aquele julgamento, ou condenação, ou mente réproba, pela qual estes foram levados a perverter a doutrina da piedade; pois ninguém pode fazer tal coisa senão para a sua própria ruina. Mas a metáfora é aduzida desta circunstância porque o conselho eterno de Deus, pelo qual os fiéis são ordenados para a salvação, é designado

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como um livro. E quando os fiéis ouviram que estes estavam entregues à morte eterna, convinha que cuidassem para que não se envolvessem na mesma destruição. Ao mesmo tempo, o objetivo de Judas era elucidar o perigo, para que a novidade da coisa não perturbasse nem angustiasse nenhum deles. Pois se aqueles já estavam desde há muito ordenados para a condenação eterna, segue-se que a Igreja só é tentada ou testada de acordo com o conselho infalível de Deus.

“A graça de Deus.” Ele expressa agora mais claramente qual era o mal, pois diz que eles abusavam da graça de Deus, assim levando a si mesmos e a outros a tomarem uma liberdade impura e profana no pecado. Mas a graça de Deus se manifestou com um propósito muito diferente - ou seja, que, negando a impiedade e os prazeres mundanos, vivamos sóbria, justa e piamente neste mundo. Saibamos, então, que nada é mais pestilento do que homens desta sorte, que da graça de Cristo tomam uma capa para se indultarem na lascívia.

Porque ensinamos que a salvação é obtida pela misericórdia de Deus somente, os papistas nos acusam desse crime. Mas por que deveríamos usar palavras para refutar a afronta deles, visto que em toda parte urgimos o arrependimento, o temor a Deus e a novidade de vida, e visto que eles mesmos não apenas corrompem todo o mundo com os piores exemplos, mas também pelo seu ensinamento iníquo retiram do mundo a verdadeira santidade e a adoração pura a Deus? Entretanto, prefiro pensar que aqueles de quem Judas fala eram como os

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libertinos de nosso tempo, conforme se tornará mais evidente a partir do que se segue.

“Deus, único Senhor, ou, Deus, que é o único Senhor”. Algumas cópias antigas trazem: “Cristo, que é o único Deus e Senhor”. E, de fato, na Segunda Epístola de Pedro, somente Cristo é mencionado, e ali ele é chamado de Senhor. Mas ele quer dizer que Cristo é negado quando aqueles que foram redimidos por seu sangue tornam-se novamente vassalos do Diabo, e assim invalidam até onde podem esse preço incomparável. Então, para que Cristo nos retenha como seu tesouro peculiar, devemos nos lembrar de que ele morreu e ressuscitou por nós para que pudesse ter domínio sobre a nossa vida e morte.

A Seriedade da Vida Cristã - Comentário de Judas 1.5

“Mas quero lembrar-vos, como a quem já uma vez soube isto, que, havendo o Senhor salvo um povo, tirando-o da terra do Egito, destruiu depois os que não creram;” (Judas 1.5)

“Mas quero lembrar-vos, ou, recordá-los”. Judas ou modestamente se desculpa, para que não parecesse ensinar, como que a ignorantes, coisas desconhecidas a eles; ou, de fato (com o que estou mais de acordo), declara abertamente, de um modo enfático, que não aduzia nada novo ou inaudito antes, a fim de que aquilo

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que ia dizer pudesse ter mais crédito e autoridade. “Apenas torno a chamar à vossa mente”, diz ele, “aquilo que já aprendestes”. Uma vez que lhes atribui conhecimento, ele diz que precisavam de advertências, para que não pensassem que o trabalho que teve com eles fosse supérfluo. Ele usa a palavra de Deus não apenas para ensinar o que não poderíamos ter conhecido de outro modo, mas também para nos despertar para uma séria meditação das coisas que já entendemos, e para não permitirmos que nos tornemos apáticos num conhecimento frio.

Agora, o sentido é que, após termos sido chamados por Deus, não devemos nos gloriar negligentemente na sua graça, e sim, pelo contrário, andar atentamente no seu temor. Pois, se alguém brinca com Deus assim, o menosprezo pela sua graça não ficará impune. E isto ele prova por três exemplos. Primeiro, ele se refere à vingança que Deus executou sobre aqueles incrédulos que ele havia escolhido como seu povo e libertado pelo seu poder. Praticamente a mesma referência é feita por Paulo em 1 Cor 10.1-13. O significado do que ele diz é que aqueles que Deus havia honrado com as maiores bênçãos, que ele havia exaltado ao mesmo grau de honra de que desfrutamos hoje, puniu depois severamente. Então futilmente se orgulhavam da graça de Deus todos aqueles que não viviam de uma maneira conveniente com o seu chamado.

A palavra povo é empregada por honra em lugar de nação santa e eleita, como se ele tivesse dito que de nada lhes

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serviria que, por um favor singular, tivessem entrado no pacto. Chamando-os de incrédulos, ele denota a fonte de todos os males. Pois todos os pecados deles, mencionados por Moisés, deviam-se a isto, que eles se recusaram a ser governados pela palavra de Deus. Onde existe a sujeição da fé, aí a obediência para com Deus necessariamente se mostra em todos os deveres da vida.

Deus Reservou Anjos para o Juízo e o Fará Também com os Homens Ímpios - Comentário de Judas 1.6

“E aos anjos que não guardaram o seu principado, mas deixaram a sua própria habitação, reservou na escuridão e em prisões eternas até ao juízo daquele grande dia;” (Judas 1.6)

“E aos anjos”. Este é um argumento do maior para o menor. Pois o estado dos anjos é mais elevado que o nosso, e contudo Deus puniu a sua deserção deles de um modo terrível. Assim sendo, ele não perdoará a nossa perfídia, se nos afastarmos da graça para a qual nos chamou. Este castigo, infligido sobre os habitantes do céu, e sobre ministros de Deus tão superiores, certamente deveria estar constantemente diante de nossos olhos, para que em momento algum sejamos levados a desprezar a graça de Deus, e assim nos precipitarmos abruptamente em destruição.

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A palavra arché nesta passagem pode ser entendida propriamente como princípio, bem como principado ou domínio. Judas sugere que eles sofreram castigo porque haviam desprezado a bondade de Deus e desertado da sua primeira vocação. E aí segue-se imediatamente uma explicação, pois ele diz que eles haviam deixado a sua própria habitação. Como desertores militares, eles deixaram o posto em que haviam sido colocados.

Devemos também notar a atrocidade da punição que o Apóstolo menciona. Eles não são apenas espíritos livres, mas poderes celestiais. Agora estão presos por cadeias perpétuas. Eles não apenas desfrutavam da luz gloriosa de Deus, mas seu resplendor brilhava neles, de modo que a partir deles, como que em raios, ela se espalhava por todas as partes do universo. Agora estão imersos em trevas. Mas não devemos imaginar um certo lugar em que os demônios estejam encerrados, pois o Apóstolo simplesmente pretendia nos ensinar quão miserável é a condição deles, visto que, no momento em que apostataram, eles perderam a sua dignidade. Para onde quer que sigam, eles arrastam consigo as suas cadeias, e permanecem envoltos em trevas. Entrementes, o castigo extremo deles é adiado até que chegue o grande dia.

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O Exemplo de Juízo Dado Através de Sodoma e Gomorra - Comentário de Judas 1.7

“Assim como Sodoma e Gomorra, e as cidades circunvizinhas, que, havendo-se entregue à fornicação como aqueles, e ido após outra carne, foram postas por exemplo, sofrendo a pena do fogo eterno.” (Judas 1.7)

“Assim como Sodoma e Gomorra.” Este exemplo é mais geral, pois ele testifica que Deus, não excetuando a nenhum homem, castiga sem nenhuma diferença todos os infiéis. Judas também menciona no que segue que o fogo pelo qual as cinco cidades pereceram era um tipo do fogo eterno. Nesse caso, Deus mostrou naquele tempo um exemplo notável, a fim de manter os homens em temor até o fim do mundo. Por isso é tantas vezes mencionado na Escritura. Mais ainda, sempre que os profetas queriam designar algum juízo memorável e terrível de Deus, eles o retratavam sob a imagem do fogo sulfuroso, e aludiam à destruição de Sodoma e Gomorra. Portanto, não é sem razão que Judas atinge todas as gerações com terror, mostrando a mesma visão.

Quando ele diz: as cidades circunvizinhas, que, havendo-se entregue à fornicação como aqueles, não aplico estas palavras aos israelitas e aos anjos, mas a Sodoma e Gomorra. Não constitui objeção o fato de o pronome toutois ser masculino, pois Judas se refere aos habitantes e não aos lugares. Ir após outra carne é o mesmo que entregar-se a desejos monstruosos. Sabemos que os sodomitas, não contentes com a maneira comum de

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cometer fornicação, contaminavam-se do modo mais imundo e detestável. Devemos observar que ele os entrega ao fogo eterno, pois aqui aprendemos que o espetáculo terrível que Moisés descreve foi apenas uma imagem de um castigo bem mais severo.

A Impiedade Provada pela Insubmissão à Verdade - Comentário de Judas 1.8

“E, contudo, também estes, semelhantemente adormecidos, contaminam a sua carne, e rejeitam a dominação, e vituperam as dignidades.” (Judas 1.8)

“E, contudo, também estes”. Esta comparação não deve ser forçada muito rigorosamente, como se ele comparasse em todas as coisas estes que menciona com os sodomitas, ou com os anjos caídos, ou com o povo incrédulo. Ele apenas explica que eles eram vasos da ira designados para a destruição, e que não poderiam escapar da mão de Deus, mas que num momento ou em outro ele faria deles exemplos da sua vingança. O seu propósito era atemorizar os fiéis para os quais estava escrevendo, para que não se associassem com eles.

Mas aqui ele começa a descrever mais claramente esses impostores. E primeiro diz que eles contaminavam sua carne como que por sonhos – por cujas palavras Judas denota o seu estúpido descaramento, como se tivesse dito que eles se entregavam a todos os tipos de

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imundície, que os mais perversos abominariam, a menos que o sono retirasse a vergonha, e também a consciência. Nesse caso, este é um modo metafórico de falar, pelo qual ele sugere que eles eram tão grosseiros e estúpidos que se entregavam sem nenhuma vergonha a todo o tipo de infâmia.

Há um contraste a ser notado, quando ele diz que eles contaminavam, ou poluíam a carne, ou seja, degradavam o que era menos excelente, e que, no entanto, desprezavam como infame o que é considerado particularmente excelente entre os homens.

Pela segunda cláusula parece que eles eram homens sediciosos, que buscavam a anarquia, a fim de que, estando livres do temor das leis, pudessem pecar mais livremente. Mas estas duas coisas estão quase sempre conectadas, que aqueles que se entregam à iniquidade também querem abolir toda a ordem. Embora, de fato, o objetivo principal deles seja livrar-se de todo o jugo, pelas palavras de Judas parece que eles costumavam falar insolente e injuriosamente dos magistrados, assim como os fanáticos de hoje, que não apenas murmuram porque são impedidos pela autoridade dos magistrados, mas clamam furiosamente contra todo o governo, e dizem que o poder da espada é profano e contrário à piedade. Em suma, eles expulsam arrogantemente da Igreja de Deus todos os reis e todos os magistrados. “Dignidades, ou glórias”, são ordens ou postos eminentes em poder ou honra.

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O Mau Fruto dos Falsos Pastores e Mestres - Comentário de Judas 1.9,10

“9. Mas o arcanjo Miguel, quando contendia com o diabo, e disputava a respeito do corpo de Moisés, não ousou pronunciar juízo de maldição contra ele; mas disse: O Senhor te repreenda.

10. Estes, porém, dizem mal do que não sabem; e, naquilo que naturalmente conhecem, como animais irracionais se corrompem.”

9. “Mas o arcanjo Miguel”. Pedro apresenta este argumento de forma mais breve, e declara genericamente que os anjos, muito mais excelentes que os homens, não se atrevem a pronunciar juízo de maldição (2 Pe 2:11).

Mas como se acredita que esta história fosse tirada de um livro apócrifo, por isso tem sido dado menos importância a esta Epístola. Mas, visto que os judeus daquele tempo derivavam muitas coisas das tradições dos pais, não vejo nada de desarrazoado em dizer que Judas se referiu ao que já havia sido transmitido por muitas gerações. Sei que, de fato, muitas puerilidades haviam alcançado o nome de tradição, assim como nos tempos de hoje os papistas relatam como tradições muitos dos desvarios estúpidos dos monges. Mas isto não é motivo para que eles não tivessem alguns fatos históricos não consignados à escrita.

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Está fora de controvérsia que Moisés foi sepultado pelo Senhor, ou seja, que o seu sepulcro foi escondido segundo o propósito oculto de Deus. E a razão para esconder o seu sepulcro é evidente a todos, isto é, para que os judeus não apresentassem seu corpo para promover superstição. Então qual o motivo de surpresa quando, tendo o corpo do profeta sido escondido por Deus, Satanás tentasse manifestá-lo; e que os anjos, que sempre estão prontos para servir a Deus, por outro lado lhe resistissem? E sem dúvida sabemos que Satanás quase em todas as épocas tem se esforçado para transformar os corpos dos santos de Deus em ídolos para os homens insensatos. Portanto, esta Epístola não deveria ser suspeita por conta deste testemunho, ainda que não encontrado na Escritura.

Que Miguel seja apresentado sozinho como disputando contra Satanás não é novidade. Sabemos que miríades de anjos estão sempre prontos a prestar serviço a Deus. Mas ele escolhe este ou aquele para fazer seu negócio conforme lhe agrada. O que Judas relata como tendo sido dito por Miguel, encontra-se também no livro de Zacarias: “O Senhor te repreenda (ou, impeça), Satanás” (Zc 3:2).

E isto é uma comparação, como dizem, entre o maior e o menor. Miguel não se atreveu a falar mais severamente contra Satanás (ainda que um réprobo e condenado) do que entregá-lo a Deus para que fosse refreado. Mas aqueles homens não hesitavam em carregar de censuras

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extremas os poderes que Deus havia adornado com honras peculiares.

10. “Estes, porém, falam mal do que não sabem”. Ele quer dizer que eles não tinham nenhuma inclinação por qualquer coisa que não fosse grosseira, e como que bestial, e por isso não percebiam o que era digno de honra. E, contudo, à loucura acrescentavam audácia, de modo que não temiam condenar coisas acima da sua compreensão. E eles também laboravam sob outro mal, pois, quando eram levados como animais às coisas que gratificavam os sentidos do corpo, não observavam nenhuma moderação, mas se fartavam excessivamente, como porcos que rolam na lama fétida. O advérbio naturalmente está em oposição à razão e ao juízo, pois somente o instinto da natureza controla os animais irracionais, mas a razão deveria governar os homens e refrear os seus apetites.

A Corrupção e Ganância dos Falsos Pastores e Mestres - Comentário de Judas 1.11

“Ai deles! porque entraram pelo caminho de Caim, e foram levados pelo engano do prêmio de Balaão, e pereceram na contradição de Coré.” (Judas 1.11)

“Ai deles!”. É de se questionar por que Judas os censura tão severamente, quando acabara de dizer que não fora permitido a um anjo pronunciar acusação injuriosa

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contra Satanás. Mas não era o seu propósito estabelecer uma regra geral. Ele apenas explicou brevemente, pelo exemplo de Miguel, quão intolerável era a loucura deles quando censuravam insolentemente o que Deus honrou. Sem dúvida era lícito a Miguel fulminar Satanás com a sua maldição final. E sabemos quão veementemente os profetas ameaçavam os ímpios. Mas, quando Miguel absteve-se da severidade extrema (de outro modo legítima), que loucura seria não observar moderação para com aqueles que se sobressaem em glória? Mas quando pronunciou maldição sobre eles, ele não imprecou tanto o mal sobre eles, mas antes lembrou-os o tipo de final que os aguardava. E fez isto para que não levassem outros consigo à perdição.

Ele diz que aqueles eram imitadores de Caim, o qual, sendo ingrato a Deus e pervertendo a sua adoração por um coração ímpio e mau, perdeu o seu direito de primogenitura. Ele diz que estavam enganados pela recompensa como Balaão, porque adulteravam a doutrina da verdadeira religião por lucro imundo. Mas a metáfora que ele usa expressa algo mais, pois diz que eles transbordavam, ou seja, porque o seu excesso era como água transbordante. Ele diz, em terceiro lugar, que eles imitavam a contradição de Coré, porque perturbavam a ordem e tranquilidade da igreja.

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A Carnalidade dos Falsos Pastores e Mestres - Comentário de Judas 1.12

“Estes são manchas em vossas festas de amor, banqueteando-se convosco, e apascentando-se a si mesmos sem temor; são nuvens sem água, levadas pelos ventos de uma para outra parte; são como árvores murchas, infrutíferas, duas vezes mortas, desarraigadas;” (Judas 1.12)

“Estes são manchas em vossas festas de caridade”. Aqueles que leem: “entre vossas caridades”, conforme penso, não explicam suficientemente o verdadeiro significado. Pois ele chama de caridades (agapais) aquelas festas que os crentes tinham entre si para testemunhar sua unidade fraternal. Tais festas, diz ele, eram desonradas por homens impuros, que depois se alimentavam em excesso, pois nelas havia a maior frugalidade e moderação. Então não era correto que fossem admitidos esses devoradores, que depois eram indulgentes consigo mesmos em excessos em quaisquer outros lugares.

Algumas cópias trazem: “Banqueteando-se convosco”—leitura que, se aprovada, tem este significado, de que eles não apenas eram uma desgraça, mas também eram incômodos e dispendiosos, uma vez que se empanturravam sem temor, às custas públicas da igreja. Pedro fala de modo um pouco diferente (2 Pe 2:13), dizendo que eles se deleitavam em erros, e banqueteavam-se com os fiéis, como se tivesse dito que

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agiam inconsideradamente aqueles que alimentavam tão perniciosas serpentes, e que eram extremamente insensatos aqueles que encorajavam o luxo excessivo deles. Hoje em dia eu gostaria que houvesse mais juízo em alguns homens bons que, procurando ser extremamente gentis com homens maus, causam grande dano a toda a igreja. (Nota do Pr Silvio Dutra: Este é um mal bastante comum em nossos dias, quando vemos a grande maioria dos crentes indultando a muitos que fizeram a si mesmos pastores para viverem às expensas da exploração dos membros da Igreja alimentando a vida abastada e desregrada que eles tanto apreciam.)

“São nuvens sem água”. As duas comparações presentes em Pedro são dadas aqui numa só, mas com o mesmo propósito, pois ambas condenam a vã ostentação. Estes homens inescrupulosos, embora prometessem muito, interiormente eram estéreis e vazios, tal como nuvens levadas por ventos tempestuosos, as quais dão esperança de chuva, mas logo se desfazem em nada. Pedro acrescenta a comparação de uma fonte seca e vazia, mas Judas emprega outras metáforas com o mesmo fim, que eles eram árvores murchas, assim como o vigor das árvores desaparece no outono. Ele os chama depois de árvores infrutíferas, desarraigadas, e duas vezes mortas, como se tivesse dito que não havia seiva no interior, mesmo que aparecessem folhas.

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O Juízo Eterno Reservado para os Falsos Pastores e Mestres - Comentário de Judas 1.13

“Ondas impetuosas do mar, que escumam as suas mesmas abominações; estrelas errantes, para os quais está eternamente reservada a negrura das trevas.” (Judas 1.12)

“Ondas impetuosas do mar”. Por que isto foi acrescentado, podemos saber mais perfeitamente a partir das palavras de Pedro (2 Pe 2:17, 18) era para mostrar que, estando inchados de orgulho, eles exalavam, ou antes expeliam a escuma de superfluidade de palavras em estilo grandiloquente. Ao mesmo tempo não traziam nada de espiritual, seu objetivo sendo, pelo contrário, tornar os homens tão estúpidos como animais irracionais. Tais são, conforme se disse antes, os fanáticos de nosso tempo, que se chamam a si mesmos de libertinos.

Podemos dizer justamente que eles fazem apenas sons retumbantes, pois, desprezando a linguagem comum, formam para si um não sei que idioma exótico. Eles parecem a um momento levar seus discípulos acima do céu, então repentinamente caem em erros bestiais, pois concebem um estado de inocência no qual não há diferença entre a vileza e a honestidade. Eles concebem uma vida espiritual, quando o temor é extinto, e quando todos se indultam negligentemente. Eles imaginam que nos tornamos deuses, porque Deus absorve os espíritos quando deixam seus corpos. Com o máximo cuidado e

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reverência a simplicidade da Escritura deveria ser estudada, para que, raciocinando mais refinadamente do que é justo, ao invés de levarmos os homens para o céu, não sejamos, pelo contrário, envolvidos em múltiplos labirintos. Por isso ele os chama de estrelas errantes, porque deslumbravam os olhos com um tipo de luz evanescente.

A Volta do Senhor para Julgar os Ímpios - Comentário de Judas 1.14,15

“14. E destes profetizou também Enoque, o sétimo depois de Adão, dizendo: Eis que é vindo o Senhor com milhares de seus santos;

15. Para fazer juízo contra todos e condenar dentre eles todos os ímpios, por todas as suas obras de impiedade, que impiamente cometeram, e por todas as duras palavras que ímpios pecadores disseram contra ele.”

“E também Enoque”. Prefiro pensar que esta profecia não estava escrita, ao invés de ter sido tirada de um livro apócrifo. Ela pode ter sido transmitida de memória pelos antigos à posteridade. Se alguém questionar: Visto que sentenças semelhantes ocorrem em muitas passagens da Escritura, por que ele não citou um testemunho escrito por um dos profetas? A resposta é óbvia: Ele queria repetir desde a mais remota antiguidade o que o Espírito havia pronunciado a respeito deles. E isto é o que as

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palavras sugerem, pois diz expressamente que este era o sétimo depois de Adão, a fim de recomendar a antiguidade da profecia, porque ela existia no mundo antes do dilúvio.

Mas eu disse que esta profecia era conhecida dos judeus por relato. Mas se alguém pensa de outro modo, não contenderei com ele, e, na verdade, nem a respeito da própria epístola, se é de Judas ou de algum outro. Em coisas duvidosas, apenas sigo o que parece provável.

“Eis que vem, ou é vindo, o Senhor”. O tempo passado, segundo o modo dos profetas, é usado em lugar do futuro. Ele diz que o Senhor viria com milhares de seus santos. E por santos ele se refere aos fiéis, bem como aos anjos, pois ambos adornarão o tribunal de Cristo, quando ele descer para julgar o mundo. Ele diz milhares, como também Daniel menciona miríades de anjos (Dn 7.10), a fim de que a multidão dos ímpios não sobrepuje, como um mar bravio, os filhos de Deus, mas para que pensem nisto, que o Senhor um dia reunirá o seu povo, parte do qual está habitando no céu, invisível a nós, e parte está oculta sob uma grande quantidade de pó.

Mas a vingança que está suspensa sobre as cabeças dos ímpios deveria manter os eleitos em temor e vigilância. Ele fala de obras e palavras, porque seus corruptores cometeram muito mal, não somente pela sua vida ímpia, mas também pela sua linguagem falsa e impura. E as suas palavras foram duras, por conta da audácia obstinada, pela qual, sendo orgulhosos, agiram insolentemente.

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A Arrogância e Concupiscências dos Falsos Pastores e Mestres - Comentário de Judas 1.16

“Estes são murmuradores, queixosos da sua sorte, andando segundo as suas concupiscências, e cuja boca diz coisas mui arrogantes, admirando as pessoas por causa do interesse.” (Judas 1.16)

“Estes são murmuradores”. Aqueles que favorecem seus prazeres depravados são difíceis de agradar, e morosos, de modo que nunca estão satisfeitos. Donde sempre murmurarem e se queixarem, por mais gentilmente que os homens bons os tratem. Ele condena a sua linguagem orgulhosa, porque se gabavam altivamente. Mas ao mesmo tempo mostra que eles eram desprezíveis em sua disposição, pois eram servilmente submissos por causa do ganho. E, geralmente, este tipo de inconsistência é visto em homens inescrupulosos desta natureza. Quando não há ninguém para conter a insolência deles, ou quando não há nada que permaneça em seu caminho, o orgulho deles é intolerável, de modo que eles arrogam imperiosamente tudo para si. Mas lisonjeiam abjetamente aqueles a quem temem, e de quem esperam alguma vantagem. Ele emprega pessoas como significando eterna grandeza e poder.

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Os Escarnecedores dos Últimos Dias - Comentário de Judas 1.17-19

“17. Mas vós, amados, lembrai-vos das palavras que vos foram preditas pelos apóstolos de nosso Senhor Jesus Cristo;

18. Os quais vos diziam que nos últimos tempos haveria escarnecedores que andariam segundo as suas ímpias concupiscências.

19. Estes são os que causam divisões, sensuais, que não têm o Espírito.”

17. “Mas vós, amados”. Judas acrescenta agora a uma profecia muito antiga as admoestações dos apóstolos, cuja memória era recente. Quanto ao verbo mnesthete, não faz grande diferença se o lemos como declarativo ou como uma exortação, pois o sentido permanece o mesmo, de que, sendo fortalecidos pela predição que ele cita, eles devem se atemorizar.

Por últimos tempos ele se refere àqueles em que a condição renovada da Igreja recebeu uma forma fixa até o fim do mundo. E isto teve início na primeira vinda de Cristo.

De acordo com o modo usual da Escritura, ele chama de escarnecedores aqueles que, estando inebriados por um perverso e profano desprezo por Deus, precipitam-se impetuosamente num desprezo brutal ao Ser Divino, de

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modo que nenhum temor ou reverência os mantém mais dentro dos limites do dever. Assim como em seus corações não há nenhum temor de um juízo futuro, assim também não há nenhuma esperança de vida eterna. Do mesmo modo o mundo hoje está cheio de epicuristas desprezadores de Deus, os quais, tendo lançado fora todo o temor, escarnecem loucamente de toda a doutrina da verdadeira religião, considerando-a como fabulosa.

19. “Estes são os que causam divisões”. Algumas cópias gregas trazem o particípio sozinho, outras cópias heautous “a si mesmos”. Mas o sentido é praticamente o mesmo. Ele quer dizer que eles se separavam da Igreja porque não queriam suportar o jugo da disciplina, uma vez que aqueles que gratificam a carne têm aversão à vida espiritual. A palavra sensual, ou animal, opõe-se a espiritual, ou à renovação da graça; e aqui ela se refere a viciosos ou corruptos, tais como são os homens quando não regenerados. Nessa natureza degenerada que derivamos de Adão, não há nada além do que é grosseiro e terreno, de modo que nenhuma parte de nós aspira a Deus, enquanto não somos renovados pelo seu Espírito.

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Edificação Espiritual pela Fé e Oração - Comentário de Judas 1.20

“Mas vós, amados, edificando-vos a vós mesmos sobre a vossa santíssima fé, orando no Espírito Santo,” (Judas 1.20)

“Mas vós, amados”. Judas mostra o modo como poderiam vencer todos os artifícios de Satanás, a saber, tendo o amor unido à fé, e ficando em guarda como que em sua torre de vigia, até a vinda de Cristo. Mas como usa muitas vezes e densamente as suas metáforas, ele apresenta aqui um modo de falar peculiar a si, que deve ser brevemente comentado.

Ele lhes manda primeiro se edificarem a si mesmos sobre a fé, significando por isto que o fundamento da fé deveria ser mantido, mas que a primeira instrução não é suficiente, a não ser que aqueles que já foram estabelecidos na verdadeira fé prossigam continuamente em direção à perfeição. Ele chama a fé deles de santíssima, a fim de que repousassem totalmente nela, e para que, apoiando-se da sua firmeza, nunca vacilassem.

Mas, visto que toda a perfeição do homem consiste na fé, pode parecer estranho que lhes mande construir outro edifício, como se a fé fosse apenas um começo para o homem. Esta dificuldade é removida pelo Apóstolo nas palavras que seguem, quando ele acrescenta que os homens edificam sobre a fé quando é acrescentado o amor. Exceto, talvez, que alguém prefira considerar este

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sentido, de que os homens edificam sobre a fé enquanto fazem proficiência nela. E, sem dúvida, o progresso diário da fé é tal que ela mesma se ergue como um edifício. Assim o Apóstolo nos ensina que, para crescermos na fé, precisamos ser constantes em oração e manter o nosso chamado pelo amor.

“Orando no Espírito Santo”. O modo de perseverar é quando somos investidos do poder de Deus. Por isso, sempre que a questão for a respeito da constância da fé, devemos fugir para a oração. E, como geralmente oramos de uma maneira formal, ele acrescenta: “no Espírito”, como se tivesse dito que tal é a nossa indolência, e que tal é a frieza da nossa carne, que ninguém pode orar corretamente a não ser que seja despertado pelo Espírito de Deus; e que também somos tão inclinados à desconfiança e ao estremecimento que ninguém se atreve a chamar Deus de Pai, exceto através do ensino do mesmo Espírito. Pois dele é a solicitude, dele é o fervor e a veemência, dele é a vivacidade, dele é a confiança em obter o que pedimos, em suma, dele são aqueles gemidos inexprimíveis mencionados por Paulo em Romanos 8.26. Sendo assim, não é sem razão que Judas nos ensina que ninguém consegue orar como deveria sem ter o Espírito Santo como seu guia.

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Conservando-se no Amor de Deus - Comentário de Judas 1.21,22

“21. Conservai-vos a vós mesmos no amor de Deus, esperando a misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo para a vida eterna.

22. E apiedai-vos de alguns, usando de discernimento;”

21. “Conservai-vos a vós mesmos no amor de Deus”. Judas fez do amor como que o guardião e o governante da nossa vida. Não que pudesse colocá-lo em oposição à graça de Deus, mas que é o caminho correto do nosso chamado quando fazemos progresso no amor. Mas, como muitas coisas nos instigam à apostasia, de modo que é difícil nos mantermos fiéis a Deus até o fim, ele chama a atenção dos fiéis para o último dia. Pois somente esta esperança deve nos suster, para que não nos desanimemos em momento algum. De outro modo, necessariamente cairíamos a todo instante.

Mas deve-se notar que ele não quer que esperemos a vida eterna, exceto através da misericórdia de Cristo, pois ele será de tal modo o nosso juíz, que não terá nenhuma outra regra para nos julgar além daquele benefício gratuito da redenção obtida por ele mesmo.

22. “E apiedai-vos de alguns”. Ele acrescenta outra exortação, explicando como os fiéis deveriam agir ao reprovar os irmãos a fim de restaurá-los ao Senhor. Ele lhes lembra de que os tais deveriam ser tratados de

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diferentes maneiras, cada um de acordo com a sua disposição. Com os mansos e ensináveis devemos usar de bondade; mas outros, que são duros e perversos, devem ser admoestados severamente. Este é o discernimento que ele menciona.

O particípio diakrinomenoi não sei por quê, é traduzido num sentido passivo por Erasmo. De fato, pode ser traduzido de ambos os modos, mas o seu sentido ativo é mais adequado para o contexto. O sentido então é de que, se desejamos ter em consideração o bem-estar daqueles que se desviam, devemos considerar o caráter e a disposição de cada um, de modo que aqueles que são mansos e tratáveis sejam restaurados ao caminho reto de um modo gentil, como sendo objetos de piedade. Mas, se alguém for perverso, deve ser corrigido com mais severidade. E, como a aspereza é por pouco detestável, ele a desculpa com base na necessidade, pois, de outro modo, aqueles que não seguem bons conselhos prontamente não podem ser salvos.

Além disso, ele emprega uma metáfora surpreendente. Quando há perigo de fogo, não hesitamos em arrebatar violentamente aqueles que desejamos salvar, pois não seria suficiente apontar com o dedo, ou estender gentilmente a mão. Assim também deveria ser tratada a salvação de alguns, porque eles só virão a Deus se puxados rudemente. Muito diferente é a tradução antiga, cuja leitura, no entanto, é encontrada em muitas cópias gregas. A Vulgata traz: “Repreendei os julgados” (Arguite dijudicatos). Mas o primeiro sentido é mais adequado, e

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penso que está de acordo com a leitura antiga e genuína. A palavra salvar é transferida para os homens, não porque sejam os autores, mas os ministros da salvação.

Agindo em Favor do Bem Espiritual e Salvação do Próximo - Comentário de Judas 1.23-25

“23. E salvai alguns com temor, arrebatando-os do fogo, odiando até a túnica manchada da carne.

24. Ora, àquele que é poderoso para vos guardar de tropeçar, e apresentar-vos irrepreensíveis, com alegria, perante a sua glória,

25. Ao único Deus sábio, Salvador nosso, seja glória e majestade, domínio e poder, agora, e para todo o sempre. Amém.”

23. “Odiando até a túnica”. Esta passagem, que de outro modo pareceria obscura, não terá nenhuma dificuldade quando a metáfora for corretamente explicada. Ele queria que os fiéis não apenas se guardassem do contato com os vícios, mas, para que nenhum contágio os alcançasse, ele os lembra de que tudo o que faz limite com os vícios e está próximo deles deve ser evitado; assim como, quando falamos da lascívia, dizemos que todos os incitamentos aos prazeres deveriam ser removidos. A passagem também se tornará mais clara quando toda a sentença é completada; isto é, que

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devemos odiar não apenas a carne, mas também a túnica, que, pelo contato com aquela, é infectada. A partícula kai (e) até serve para dar maior ênfase. Assim sendo, ele não admite que o mal seja nutrido através da indulgência, de modo que manda que todos os preparativos e todos os acessórios, como dizem, sejam cortados.

24. “Ora, àquele que é poderoso para vos guardar”. Ele encerra a Epístola com oração a Deus, com o que mostra que nossas exortações e esforços nada podem fazer exceto através do poder de Deus acompanhando-os.

Algumas cópias trazem “os” ao invés de “vos”. Se recebermos esta leitura, o sentido será: “De fato, é o vosso dever esforçardes por salvá-los; mas somente Deus é quem pode fazer isto”. Contudo, a outra leitura é a que eu prefiro, na qual há uma alusão ao verso precedente. Pois, após ter exortado os fiéis a salvarem o que estava perecendo, para que entendessem que todos os seus esforços seriam vãos a não ser que Deus operasse por meio deles, ele testifica que aqueles não poderiam ser salvos de outro modo senão através do poder de Deus. Nesta última cláusula na verdade existe um verbo diferente, phulaxai que significa guardar. Assim a alusão é a uma cláusula mais remota, quando ele disse: Guardai-vos.

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A Lei de Deus Implantada na Consciência de Todos - Comentário de Romanos 2.14

"Quando, pois, os gentios, que não têm lei, procedem, por natureza, de conformidade com a lei, não tendo lei, servem eles de lei para si mesmos." (Romanos 2.14)

“Porque, quando os gentios, que não têm lei, fazem naturalmente as coisas que são da lei”. Paulo agora repete a prova da primeira parte da sentença, porquanto não se satisfaz em nos condenar por mera afirmação e em pronunciar o justo juízo divino sobre nós, senão que diligencia por convencer-nos dele por meio de argumentos, a fim de despertar-nos um grande desejo e amor por Cristo. Ele mostra que a ignorância é apresentada pelos gentios como fútil justificativa, visto que declaram, por seus próprios feitos, que possuem alguma norma de justiça. Não existe nação tão oposta a tudo quanto é humano que não se mantenha dentro dos limites de algumas leis. Visto, pois, que todas as nações de dispõem a promulgar leis para si próprias, de seu próprio alvitre, e sem serem instruídas para agirem assim, é além de toda e qualquer dúvida que elas conservam certa noção de justiça e retidão, ao que os gregos se referem como prolhyeij, e que é implantado por natureza nos corações humanos. Eles, portanto, possuem uma lei, sem a Lei; porque, embora não possuam a lei escrita por Moisés, não são completamente destituídos de conhecimento da retidão e da justiça. De outra forma, não poderiam distinguir entre vício e virtude - restringem aquele com castigo,

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enquanto que a esta exaltam, mostrando-lhe sua aprovação e honrando-a com recompensas. Paulo contrasta a natureza com a lei escrita, significando que os gentios possuíam a luz natural da justiça, a qual supria o lugar da lei escrita, por meio da qual os judeus são instruídos, de modo a se tornarem lei para si próprios.

(Nota do Pr Silvio Dutra: Tomemos por assentado, que nesta dispensação da graça, que tem durado desde a morte e ressurreição de Jesus, que a nenhuma pessoa, e a nenhuma instituição tem sido dado por Deus, que em nome da religião, se faça acepção, ou injúria, maldição ou condenação de quem quer que seja, e muito menos que se use de violência seja ela moral ou física em nome de se defender a santidade e justiça de Deus. Ao contrário é ordenado aos que amam e conhecem a Deus em espírito, que amem a todos, inclusive a seus inimigos, e que perdoem e bendigam os que lhes amaldiçoam, injuriam ou perseguem.

Quando encontramos em comentários bíblicos o terrível destino que está reservado àqueles que se opuserem a Deus até o final de suas vidas, como vemos por exemplo não apenas nos comentários de Calvino, mas nos de todos aqueles que são fiéis à pregação e ensino da verdade revelada nas Escrituras, o que se tem em foco não é uma ameaça ou um aborrecimento declarado da parte de homens, senão um alerta misericordioso da parte do próprio Deus, que é quem o afirma, pela boca dos seus ministros o que há de suceder no dia do juízo

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final, de modo que pelo arrependimento, possam se converter e serem livrados da condenação.)

O Testemunho da Nossa Consciência - Comentário de Romanos 2.15

“Rom 2:15 Estes mostram a norma da lei gravada no seu coração, testemunhando-lhes também a consciência e os seus pensamentos, mutuamente acusando-se ou defendendo-se,”

“Nisto eles mostram a obra de lei escrita em seu coração”, ou seja: eles provam que há impressa em seus corações certa discriminação e juízo, por meio dos quais podem distinguir entre justiça e injustiça, honestidade e desonestidade. Paulo não diz que a obra da lei se acha esculpida em sua vontade, de modo a buscarem-na e perseguirem-na diligentemente, mas que se acham tão assenhoreados pelo poder da verdade, que não têm como desaprová-la. Não teriam instituído ritos religiosos, se não estivessem convencidos de que Deus deve ser adorado; nem se envergonhariam de adultério e de latrocínio, se os não considerassem como algo em extremo nocivo.

Não há qualquer base para deduzir-se desta passagem o poder da vontade, como se Paulo dissesse que a observância da lei é algo que se acha em nosso poder, visto que ele não está falando de nosso poder de cumprir

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a lei, e, sim, de nosso conhecimento dela. O termo corações não deve ser considerado como a sede das afeições, mas simplesmente como se referindo ao entendimento, como em Deuteronômio 29.4: "Porém, o Senhor não vos deu coração para entender"; e Lucas 24.25: "Ó néscios e tardos de coração para crer [=entender] tudo o que os profetas disseram!"

Não podemos concluir desta passagem que há no ser humano um pleno conhecimento da lei, mas tão-somente que há algumas sementes de justiça implantadas em sua natureza. Isto é evidenciado por fatos como estes, a saber: que todos os gentios, igualmente, instituem ritos religiosos, promulgam leis para a punição do adultério, do latrocínio e do homicídio, e louvam a boa fé nas transações e contratos comerciais. Assim, eles provam seu conhecimento de que Deus deve ser cultuado, que o adultério, o latrocínio e o homicídio são ações perversas, e que a honestidade deve ser valorizada. Não é o nosso propósito inquirir sobre que tipo de Deus eles o tomam, ou quantos deuses têm eles inventado. É suficiente saber que acreditam que há um Deus, e que honra e culto lhe são devidos. Pouco importa, também, que não permitam que se cobice a mulher do próximo, possessões, ou alguma coisa que tenham como sua, se toleram as faltas sem rancor e ódio, porque tudo aquilo que julgam como sendo ruim sabem também que não deve ser cultivado.

“Sua consciência e seus pensamentos, ora acusando-os, ora defendendo-os”. O testemunho de sua própria

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consciência, que é equivalente a mil testemunhas, era a mais forte pressão que poderá ter causado neles. Os homens são sustentados e confortados por sua consciência e boas ações, porém, interiormente, são molestados e atormentados quando sentem ter praticado o mal - daí, o aforismo pagão de que a boa consciência é um espaçoso teatro, e que a má consciência é um dos piores verdugos, e atormenta os perversos com a mais feroz de todas as fúrias. Há, pois, [no homem], um certo conhecimento da lei, o qual confirma que uma ação é boa e digna de ser seguida, enquanto que outra será evitada com horror.

Notemos como Paulo define a consciência de forma judiciosa. Adotamos, diz ele, certos argumentos com o fim de defender certo curso de ação que assumimos, enquanto que, por outro lado, há outros que nos acusam e nos convencem de nossos maus feitos. Ele se refere a estes argumentos de acusação e defesa no dia do Senhor, não só pelo fato de que somente então é que aparecerão, porquanto são constantemente ativos no cumprimento de sua função nesta vida, mas porque, então, também entrarão em vigor. O propósito do argumento de Paulo, aqui, é impedir que alguém menospreze tais argumentos como sendo de pouca importância ou permanente significação. Como já vimos, ele pôs no dia em vez de até ao dia.

(Nota do Pr Silvio Dutra: Tomemos por assentado, que nesta dispensação da graça, que tem durado desde a morte e ressurreição de Jesus, que a nenhuma pessoa, e

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a nenhuma instituição tem sido dado por Deus, que em nome da religião, se faça acepção, ou injúria, maldição ou condenação de quem quer que seja, e muito menos que se use de violência seja ela moral ou física em nome de se defender a santidade e justiça de Deus. Ao contrário é ordenado aos que amam e conhecem a Deus em espírito, que amem a todos, inclusive a seus inimigos, e que perdoem e bendigam os que lhes amaldiçoam, injuriam ou perseguem.

Quando encontramos em comentários bíblicos o terrível destino que está reservado àqueles que se opuserem a Deus até o final de suas vidas, como vemos por exemplo não apenas nos comentários de Calvino, mas nos de todos aqueles que são fiéis à pregação e ensino da verdade revelada nas Escrituras, o que se tem em foco não é uma ameaça ou um aborrecimento declarado da parte de homens, senão um alerta misericordioso da parte do próprio Deus, que é quem o afirma, pela boca dos seus ministros o que há de suceder no dia do juízo final, de modo que pelo arrependimento, possam se converter e serem livrados da condenação.)

O Juízo de Condenação Será Segundo a Rejeição do Evangelho - Comentário de Romanos 2.16

“Rom 2:16 no dia em que Deus, por meio de Cristo Jesus, julgar os segredos dos homens, de conformidade com o meu evangelho.”

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“No dia em que Deus julgará os segredos dos homens”. Esta descrição ampliada do juízo divino é mais apropriada para a presente passagem. Ele informa aos que intencionalmente se ocultam nos refúgios de sua insensibilidade moral, que as intenções mais íntimas, que presentemente se acham inteiramente escondidas no recôndito de seus corações, serão, estão, trazidas à plena luz. Assim, em outra passagem, Paulo procura mostrar aos coríntios de quão pouco mérito é o juízo humano que se deixa fascinar pelas aparências exteriores. Ele os conclama a que aguardem até à vinda do Senhor, "o qual não somente trará à plena luz as coisas ocultas das trevas, mas também manifestará os desígnios dos corações" [1 Co 4.5]. Ao ouvirmos isto, lembremo-nos daquela admoestação, a saber: se aspiramos a real aprovação por parte de nosso Juiz, empenhemo-nos por cultivar a sinceridade de coração.

Ele adiciona a expressão, segundo o meu evangelho, para provar que está oferecendo uma doutrina que corresponde aos juízos inatos do gênero humano, e a chama de meu evangelho em consideração ao seu ministério. Deus verdadeiro é unicamente aquele que possui a autoridade de dar o evangelho aos homens. Os apóstolos só tinham a administração dele. Não carece que fiquemos surpresos de dizer-se ser o evangelho, em parte, tanto mensageiro como a proclamação do juízo futuro. Se o cumprimento e completação de suas promessas são suspensos até à plena revelação do reino celestial, então tal fato precisa necessariamente ser relacionado com o juízo final. Além do mais, Cristo não

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pode ser proclamado sem demonstrar ser Ele, ao mesmo tempo, ressurreição para alguns e destruição para outros. Ambas estas - ressurreição e destruição - se referem ao dia do juízo. Aplico as palavras por meio de Jesus Cristo ao dia do juízo, ainda que haja outras explicações, significando que o Senhor executará Seu juízo por meio de Cristo, o qual foi designado pelo Pai para ser o Juiz tanto dos vivos como dos mortos. Este juízo por meio de Cristo é sempre posto pelos apóstolos entre os principais artigos do evangelho. Se porventura adotarmos esta interpretação, então a sentença, que de outra forma seria inadequada, ganhará em profundidade.

Predestinados por Deus para Ser Semelhantes a Cristo - Comentário de Romanos 8.29

"Rom 8:29 Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos.”

“Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou”. Paulo mostra, portanto, pela própria ordem da eleição, que todas as aflições dos crentes são simplesmente os meios pelos quais são identificados com Cristo. Ele previamente declarara a necessidade disto. As aflições, portanto, não devem ser um motivo para nos sentirmos entristecidos, amargurados ou

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sobrecarregados, a menos que também reprovemos a eleição do Senhor, pela qual fomos predestinados para a vida, e vivamos relutantes em levar em nosso ser a imagem do Filho de Deus, por meio da qual somos preparados para a glória celestial. O conhecimento antecipado de Deus, mencionado aqui pelo apóstolo, não significa mera presciência, como alguns neófitos tolamente imaginam, mas significa, sim, a adoção, pela qual o Senhor sempre distingue seus filhos dos réprobos. Neste sentido, Pedro diz que os crentes foram eleitos para a santificação do Espírito segundo a presciência divina [1 Pedro 1:2]. Aqueles, pois, a quem me refiro aqui, tolamente concluem que Deus não elegeu a ninguém senão àqueles a quem previu que seriam dignos de sua graça. Pedro não incensa os crentes como se fossem todos eles eleitos segundos seus méritos pessoais, senão que, ao remetê-los ao eterno conselho de Deus, declara que estão todos inteiramente privados de qualquer dignidade. Nesta passagem, Paulo também reitera, em outras palavras, as afirmações que já havia feito concernentes ao propósito divino. Segue-se disto que este conhecimento depende do beneplácito divino, visto que, ao adotar aqueles a quem ele quis, Deus não teve qualquer conhecimento antecipado das coisas fora de si mesmo, senão que destacou aqueles a quem propôs eleger.

O verbo proorizo, o qual é traduzido por predestinar, aponta para as circunstâncias desta passagem em pauta. O apóstolo quer dizer simplesmente que Deus determinara que todos quantos adotasse levariam a

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imagem de Cristo. Não diz simplesmente que deveriam ser conformados a Cristo, e, sim, à imagem de Cristo, com o fim de ensinar-nos que em Cristo há um vivo e nítido exemplo que é posto diante dos filhos de Deus para que imitem. A súmula da passagem consiste em que a graciosa adoção, na qual nossa salvação consiste, é inseparável deste outro decreto, a saber: que ele nos designou para que levemos a cruz. Ninguém pode ser herdeiro do reino celestial sem que antes seja conformado ao Filho Unigênito de Deus.

A fim de que ele seja [ou, fosse] o primogênito entre muitos irmãos. O infinitivo grego, einai [einai], pode ser traduzido de outra forma, porém preferi esta. Ao chamar Cristo de o primogênito, Paulo quis simplesmente expressar que, se Cristo possui a preeminência entre todos os filhos de Deus, então, com razão, ele nos foi dado como exemplo, de modo que não devemos recusar nada de tudo quando agradou-lhe suportar. Portanto, o Pai celestial, a fim de mostrar, por todos os meios, a autoridade e a excelência que conferiu a seu Filho, ele deseja que todos aqueles a quem adota como herdeiros de seu reino vivam de conformidade com o seu exemplo.

Embora a condição dos santos difira na aparência (assim como há diferença entre os membros do corpo humano), todavia há certa conexão entre cada indivíduo e sua cabeça. Como, pois, o primogênito leva o nome da família, assim Cristo é colocado numa posição de preeminência, não só para que sua honra seja enaltecida

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entre os crentes, mas também para que ele inclua todos os crentes em seu seio sob o selo comum de fraternidade.

Predestinados, Chamados, Justificados e Glorificados - Comentário de Romanos 8.30

“Rom 8:30 E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou."

“E aos que predestinou, a esses também chamou”. Paulo agora emprega um clímax a fim de confirmar, por meio de uma demonstração mais clara, quão verdadeiramente a nossa conformidade com a humildade de Cristo efetua a nossa salvação. Daqui ele nos ensina que a nossa participação na cruz é tão conectada com a nossa vocação, justificação e, finalmente, nossa glória, que não podem ser desmembradas.

A fim de que os leitores possam melhor entender a intenção do apóstolo, é bom que se lembrem de minha afirmação anterior, ou seja: que o verbo predestinar, aqui, não se refere à eleição, mas ao propósito ou decreto divino pelo qual ordenou que seu povo levasse a cruz. Ao ensinar-nos que agora são chamados, o apóstolo tencionava que Deus não oculta mais o que determinara fazer com eles, mas que o revelou a fim de que pudessem levar com equanimidade e paciência a condição a eles imposta. A vocação, aqui, é distinguida da eleição

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secreta, como sendo inferior a ela. Pode-se alegar que ninguém tem conhecimento algum da condição que Deus designou a cada indivíduo. Portanto, para evitar isto, o apóstolo diz que Deus, através de seu chamado, testifica publicamente de seu propósito oculto. Este testemunho, contudo, não consiste só na pregação externa, mas tem também o poder do Espírito conectado a ela, pois Paulo está tratando com os eleitos, a quem Deus não só compele por meio de sua Palavra falada, mas também convence interiormente.

A justificação, aqui, pode muito bem ser entendida como que incluindo a continuidade do favor divino desde o tempo da vocação do crente até sua morte. Mas, visto que Paulo usa esta palavra ao longo da Epístola, no sentido da imerecida imputação da justiça, não há necessidade de nos apartarmos deste significado. O propósito de Paulo é mostrar que a compensação que nos é oferecida é por demais preciosa para permitir-nos enfrentar com ânimo as aflições. O que é mais desejável que ser reconciliado com Deus, de modo que nossas misérias não mais são sinais da maldição divina, nem mais nos conduz à destruição?

O apóstolo acrescenta que aqueles que se veem oprimidos pela cruz serão glorificados pela cruz serão glorificados, de modo que seus sofrimentos e opróbrios não lhes produzem dano algum. Embora a glorificação só foi exibida em nossa Cabeça, todavia, visto que agora percebemos nele a herança da vida eterna, sua glória nos traz uma segurança tal de nossa própria glória, que a

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nossa esperança pode muito bem ser comparada a uma possessão já presente.

Deve-se acrescentar ainda que o apóstolo empregou um hebraísmo e usou o tempo passado dos verbos, em vez do presente. O que ele pretende é, quase certo, um ato contínuo; por exemplo: “Aqueles a quem Deus agora educa sob a cruz, segundo seu conselho, ele chama e justifica, ato contínuo, para a esperança da salvação; de modo que, em sua humilhação, não perdem nada de sua glória. Embora seus sofrimentos atuais a deformem aos olhos do mundo, todavia, diante de Deus e dos anjos, ela está sempre a brilhar em perene perfeição”. O que Paulo, pois, pretende mostrar, por este clímax, é que as aflições dos crentes, as quais são a causa de sua atual humilhação, têm como único propósito fazê-los entender que possuem a glória do reino celestial e que vão alcançar a glória da ressurreição de Cristo, com quem já se acham crucificados.

Agradecer a Deus pela Unidade que Dá ao Corpo de Cristo - Comentário de 2 Tessalonicenses 1.1-3

“1. Paulo, e Silvano, e Timóteo, à igreja dos tessalonicenses, em Deus nosso Pai, e no Senhor Jesus Cristo:

2. Graça e paz a vós da parte de Deus nosso Pai, e da do Senhor Jesus Cristo.

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3. Sempre devemos, irmãos, dar graças a Deus por vós, como é justo, porque a vossa fé cresce muitíssimo e o amor de cada um de vós aumenta de uns para com os outros,”

1. “À igreja dos tessalonicenses, em Deus”. Quanto à forma de saudação, seria supérfluo comentar. Somente é necessário observar isto – que, por igreja em Deus e Cristo, faz-se referência a uma igreja que não apenas fora reunida sob a bandeira da fé, com o propósito de adorar ao único Deus e Pai, e de confiar em Cristo; mas que é obra e construção tanto do Pai como de Cristo, porque, enquanto Deus nos adota para si, e nos regenera, é dele que começamos a estar em Cristo (1 Co 1.30).

3. “Dar graças a Deus”. Paulo principia com a recomendação, a fim de ter o ensejo de passar à exortação – pois deste modo temos mais sucesso entre aqueles que já começaram a jornada, quando, sem ignorar em silêncio o seu progresso inicial, nós os lembramos de quão distantes ainda estão do alvo, e os encorajamos a fazer progresso. Como, porém, havia recomendado na Epístola anterior a sua fé e amor, ele agora declara o crescimento de ambos. E, sem sombra de dúvida, este curso deve ser seguido por todos os que são piedosos – examinarem-se diariamente, e verem o quanto têm avançado. Portanto, esta é a verdadeira recomendação dos crentes – seu crescimento diário em fé e amor. Quando diz “sempre”, ele quer dizer que ele é constantemente suprido com nova ocasião. Anteriormente, havia dado graças a Deus por causa

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deles. Agora, ele diz que tem ocasião de fazer isto novamente, pelo seu progresso diário. Porém, quando dá graças a Deus por esta causa, ele declara que o aumento, não menos do que o começo, da fé e do amor procedem do Senhor, pois, se procedesse do poder dos homens, a ação de graças seria fingida, ou ao menos inútil. Ademais, ele mostra que o aproveitamento deles não era trivial, ou mesmo ordinário, mas muito abundante. Tanto mais vergonhosa é a nossa lentidão, quando mal avançamos um passo durante um longo período de tempo.

“Como é justo”. Nestas palavras, Paulo mostra que somos obrigados a dar graças a Deus, não apenas quando ele nos faz o bem, mas também quando temos em vista os favores concedidos por ele aos nossos irmãos. Pois, onde quer que a bondade de Deus resplandeça, convém que a exaltemos. Ademais, o bem-estar de nossos irmãos deveria ser tão caro a nós que reconhecêssemos entre os nossos próprios benefícios tudo o que lhes tem sido conferido.

Mais ainda, se consideramos a natureza e sacralidade da unidade do corpo de Cristo, terá lugar entre nós uma comunhão tão mútua que consideraremos os benefícios concedidos a um membro individual como lucro para toda a Igreja. Por isso, ao exaltar os benefícios de Deus, devemos sempre ter em vista todo o corpo da Igreja.

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Paciência e Fé Sob Perseguições e Aflições - Comentário de 2 Tessalonicenses 1.4

“De maneira que nós mesmos nos gloriamos de vós nas igrejas de Deus por causa da vossa paciência e fé, e em todas as vossas perseguições e aflições que suportais;” (2 Tessalonicenses 1.4)

“De maneira que nós mesmos nos gloriamos de vós”. Paulo não poderia ter-lhes concedido maior recomendação do que dizer que os apresenta diante de outras igrejas como um padrão – pois tal é o sentido destas palavras: nos gloriamos de vós na presença de outras igrejas. Paulo não se orgulhava da fé dos tessalonicenses por um espírito de ambição, e sim porquanto sua recomendação acerca deles poderia ser um incitamento para fazer com que seu esforço fosse imitado. Contudo, ele não diz que se gloria na fé e no amor deles, e sim na sua paciência e fé. Por onde segue-se que a paciência é o fruto e evidência da fé. Estas palavras devem, portanto, ser explicadas da seguinte maneira – “Nos gloriamos na paciência que brota da fé, e damos testemunho de que ela resplandece em vós eminentemente”; do contrário, o contexto não corresponderia.

E, sem sombra de dúvida, não há nada que nos sustente nas tribulações como a fé – o que é manifesto a partir disto, que nos prostramos completamente tão logo as promessas de Deus nos abandonem. Por isso, quanto

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maior aproveitamento alguém faz na fé, tanto mais será dotado de paciência para suportar todas as coisas com firmeza; assim como, por outro lado, a indolência e impaciência sob a adversidade são sinal de incredulidade de nossa parte; mas ainda mais especialmente quando perseguições devem ser suportadas pelo evangelho, a influência da fé nesse caso revela a si mesma.