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Homo Serviens “Sirvo à vida, sou feliz!” Pe. Jaci Rocha Gonçalves, Dr. Roma 1996

Homo Serviens - Sou feliz, sirvo à vida! Prof. Jaci Rocha Gonçalves

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Homo Serviens

“Sirvo à vida, sou feliz!”

Pe. Jaci Rocha Gonçalves, Dr.

Roma 1996

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Dedico este serviço, um dos escritos que fiz em

Trento (Itália) para o doutorado em Teologia e

Culturas, no inverno de 1995,

a Janaina, minha esposa,

a Luan, Jonas, Moara e Luna,

minha família,

aberta à construção

do divino no humano.

Dedico também às inúmeras redes de

comunidades com quem tenho partilhado meu

cotidiano no Brasil, África, Europa e mundo virtual

sem fronteiras.

(Palhoça, 2013)

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Introdução

Direito humano e divino:

tornar-se Homo serviens

Paulo escreve com carinho aos Filipenses. É a carta da alegria:

“Levai à plenitude a minha alegria

nada fazendo por competição e vanglória,

mas com humildade,

julgando cada um aos outros superiores a si mesmo,

nem cuidando cada um só do que é seu,

mas também do que é dos outros.

Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus.»

Logo que me pus a pesquisar sobre a novidade cristã num mundo em

crise e os direitos humanos lembrei-me do grande filósofo Eric Fromm,

sábio descendente judeu, da terra de Jesus. Ele escreve num dos livros de

sua fecunda senilidade, que a natureza, o cosmos, a nossa época, enfim,

com sua crise de essencial «gemem como mulher em dores de parto,

suspirando pelo amadurecimento, na humanidade, do ‘Homo serviens’»1-

ou seja, - aquela pessoa cuja identidade e missão é viver para servir. E

servir vida qualitativa para todos e tudo, com o tempero lúdico.

É nesta trilha quenotípica, isto é, opção por um jeito de ser que abdica

de quaisquer privilégios, exceto o de “amar até o fim”, portanto, uma opção

de esvaziamento, de humildade, escolhida por Jesus Cristo, que

trabalharemos algumas questões em torno da busca de direitos essenciais

do homem e da mulher de hoje, que estão cruzando um novo milênio. É

impressionante como as pessoas se mostram famintas do sagrado, de

sentido para viver e de como viver.

É neste jeito que Jesus adotou para revelar a identidade de Deus que

existe a novidade cristã fundamental para hoje, como o foi nos primeiros

tempos cristãos. É aí que se fundam as razões para a festa do ano dois mil

que está às portas. Por que este perfil “Homo serviens” é ainda uma

novidade fundamental?

Porque esta verdade é exaustivamente repetida nos escritos e na

prática das comunidades cristãs antigas: a maior glória deste Deus é ver

acontecer a salvação, isto é, a sua vida em abundância para todos e tudo 1FROMM, Erich. A revolução da esperança. Rio de Janeiro: Zahar, 1984. Do latim

“homo = homem; humano”; “serviens = que está a serviço”.

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tem sabor de novidade para nós, bombardeados pelas insistentes

propagandas de lucro fácil, sucesso, protagonismo e prestígio a qualquer

preço, como o foi também para eles.

A revelação desta identidade de Deus como Homo serviens (pessoa

servidora), e da comunidade Trinitária divina de pessoas servidoras, era tão

fundamental que virou poema e hino nas liturgias cristãs mais antigas.

Desta forma ficou como fonte de memória viva nas crises em meio às

perseguições judaica, grega e romana.

Repare só que consciência clara e criativa, os primeiros cristãos

mostram nesta continuação da mesma carta aos Filipenses:

«Jesus tinha a condição divina, e não considerou o ser igual

a Deus como algo a que se apegar com ciúmes,

ao contrário, esvaziou-se a si mesmo tomando a

semelhança humana. E, achado em figura de homem,

humilhou-se e foi obediente até a morte e morte de cruz»2

Este poema, curtido, então, pelas comunidades perseguidas dos

primeiros tempos do cristianismo, rediz a história de Jesus como servidor

da vida. Este foi inclusive o jeito de ser messias que Ele escolheu: servidor.

Portanto, uma escolha quenotípica, isto é, de kenosis (um esvaziamento de

toda a sua prerrogativa divina) levando o amor de entrega por nós (agapé)

até às últimas conseqüências. Ontem, hoje e sempre atual este perfil divino

e humano, um perfil direito de todos – homens e mulheres – às portas do

Terceiro Milênio.

Seguindo a orientação do professor, de unir estudo e vida, apresento

junto a esta pesquisa acadêmica, alguns fatos da vida pastoral vividos

nestes últimos trinta e três anos com nosso povo-comunidade de batizados

e não-batizados, em vários países, mas sobretudo no Brasil e com a grande

família cujo único sobrenome é humano, e em cujas vidas a história ousada

de Jesus se repete, de forma bem especial, no anonimato e heróico mundo

dos excluídos. Excluídos dos direitos humanos à vida e à liberdade.

2Paulo aos Filipenses, 2, 1ss. Trad. da Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Ed. Paulinas,

1985.

IDENTIDADE DE DEUS: SER COMUNIDADE SERVIDORA

DA QUALIDADE DE VIDA PARA TUDO E TODOS!

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Capítulo um

Direito à desculpa

1. Na sabedoria dos simples, o perdão é a resposta.

Onze de março de 1993, tempo de retorno das férias de

verão. Era por volta do meio-dia. O «Jornal do Almoço» é

o programa de TV líder de audiência no Estado de Santa

Catarina, sul do Brasil. A geração de imagens é nos

estúdios da Rede mais importante no mercado de Mídia

regional, no Morro da Cruz em Florianópolis, capital do

Estado e do turismo dos países do Cone-Sul da América

Latina. Torna-se cada vez mais um dos pólos do Mercosul,

inaugurado em janeiro de 1995.

Estamos na véspera do 3o. aniversário de fundação da

Orionópolis Catarinense3, uma pequena vila que, sob a

inspiração de D. Orione,4 procura oportunizar aos cidadãos

de qualquer classe social, ideologia, religião ou etnia, o

exercício da solidariedade pelo voluntariado. Na

Orionópolis são acolhidos os considerados inúteis sociais

porque já são velhos, ou/e portadores de deficiências

múltiplas, sem ninguém a seu favor, nem mesmo a mãe

natureza; sem capacidade de produção. São pessoas que

viviam rolando pelas calçadas e praças, nas ruas e

viadutos, ou apodrecendo em algum mangue, barraco de

favela, rancho de canoa ou feito bicho do mato em

abandono

Os âncoras do programa televisivo, encaminham a

rubrica «entrevista». Após a rolagem de um tape com

imagens dos moradores da vila, perguntam: «-Padre, qual é

3O endereço da Orionópolis Catarinense é Rua Frederico Afonso, 5568. CEP 88 104-

000 - São José - SC-Brasil. Tel. (048) 3343-0087. A Orionópolis Catarinense, anima

com outras forças da comunidade o resgate cultural dos guarani, junto à aldeia Mbyá-

Guarani e o Projeto Turminha, um centro alternativo para crianças pobres, “ditas de

rua”, em Capoeiras, Florianópolis, SC, Brasil. 4São Luís Orione, conhecido como D. Orione, é santo fundador da congregação dos

Filhos da Divina Providência, com 1200 religiosos, das Pequenas Missionárias da

Caridade e Irmãs Sacramentinas Cegas com 900 religiosas. Todos se dedicam à

evangelização através da caridade.

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a maior alegria a ser festejada neste terceiro aniversário da

Orionópolis?» A resposta saltou espontânea: «-Todos os

que morreram, morreram amando! Todos os 12 moradores

já falecidos tinham mil razões para morrer maldizendo a

vida, a sociedade e até a si mesmos. Mas morreram

perdoando, amando, como que para deixar-nos a notícia de

que ‘amor com amor se paga, e ódio com amor também se

paga.’ Esta é a maior alegria que temos para comemorar

com todos vocês».5

Escolhi este fato extraído da micro-história do meu povo que deixei

além-mares, para ser honesto com ele, pois, páginas como esta que

raramente se tornam notícias na Mídia da terra, continuam a escrever hoje o

que nós cristãos chamamos de História da Salvação ou construção do Reino

da Fraternidade cujo protagonismo dos pobres é sinal inegável de sua

presença. Quando eles, os pobres, evangelizam, o Reino está presente.

Cabe-nos, pois, a obrigação de dar o máximo de espaço a estes pobres

de Javé, teimosos em sua maneira quase sempre absurda de crer no Deus da

vida; porque o seu grito de fé vem de um contexto histórico superlotado de

desafios.

Eles convivem com estruturas de morte lenta desde a vida pré-natal, e

quando conseguem nascer, vão até o morrer, em geral com velhice precoce

e doença rara, uma verdadeira tortura permeando-lhes o cotidiano. É

impressionante como a fé lhes dá fôlego, resistência e persistência

instancáveis. É a sabedoria dos humildes. Eles sempre elegem o perdão, a

desculpa, como elemento inicial para crer de novo na força do amor.

5Cf. Gravação de videotape in Arquivo CCDO- informatizado. São José-SC, Brasil:

Orionópolis Catarinense, 1993.

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Patrick no ofertório da missa de Páscoa, com Padre Jaci e sua madrinha. Faleceu

aos 15 anos, desafiando os prognósticos médicos de óbito aos dois anos de idade.

Usava apenas a linguagem térmica da febre para dizer: “Toquem-me, quero

viver!”. Foi o primeiro jovem a morrer no Lar São José da Orionópolis. Outro

menino herdou seu nome como símbolo de jovem biocrático, ou seja, que se deixa

governar pelo valor inestimável da vida.

2. Na agenda dos sábios, também não há festa sem

perdão.

Coragem de Papa! João Paulo II mandou uma carta apostólica

convidando toda a humanidade e não só os batizados na fé em Jesus Cristo,

a abrir o Terceiro Milênio, com a coragem do perdão. Fazendo assim deste

evento razão para uma festa que não seja apenas mais uma expressão de

consumo comercial, e sim, oportunidade para uma grande avaliação

conjunta. Convida, então, a preparar a casa do mundo para a festa. Na

agenda que havia apresentado aos cardeais (reunidos em consistório em

junho de ‘94, com presença maciça, dos que ainda são atuantes) obteve

resposta entusiástica para todo o projeto, exceto para a agenda do «perdão».

Na carta Apostólica de preparação ao Jubileu do Ano Dois Mil com o

título Tertio millenio adveniente, nº 33, quando trata da primeira fase da

preparação, João Paulo II escreve:

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“É justo, portanto, que enquanto o

Segundo Milênio do cristianismo

está terminando, a Igreja assuma

com a mais viva tomada de

consciência dos pecados de seus

filhos ao lembrar todas aquelas

circunstâncias nas quais, no arco de

sua história, eles se afastaram do

espírito de Cristo e de seu

Evangelho, dando ao mundo, em vez

do testemunho de uma vida

inspirada nos valores da fé, o

espetáculo de modos de pensar e de

agir que eram verdadeiras formas

de contra-testemunho e de

escândalo.

A Igreja, mesmo sendo santa pela sua incorporação a

Cristo, não se cansa de fazer penitência: ela reconhece

como próprios, diante de Deus e diante dos homens, os

filhos pecadores. Ela não pode atravessar o novo milênio

sem exigir de seus filhos a purificação, pelo

arrependimento, dos erros, infidelidades, incoerências e

atrasos. Reconhecer as quedas de ontem é ato de lealdade e

de coragem que nos ajuda a reforçar a nossa fé, e nos torna

vigilantes e atentos no enfrentamento das tentações e das

dificuldades de hoje.”

Muitos cardeais viam nesta exigência, excesso de tolerância e de

bondade. Mas o Papa foi inflexível. Segundo alguns analistas, talvez seja

este o gesto mais profético de seu pontificado. Não arredou o pé do pedido

de perdão, começando a admitir culpas de ontem e de hoje, a partir da

própria Igreja e dos cristãos. Para Ele, não haverá festa autêntica sem

fechar a porta do milênio com arrependimento, conversão da própria vida

ao amor, ao perdão, à desculpa sincera.

Assim, o confiteor da Igreja Católica, antes, posto timidamente em

roda pé, como no documento de Puebla nº 6, sobre a cumplicidade cristã

com respeito à escravidão dos afro-americanos, agora brota como atividade

essencial, com simplicidade e coragem evangélicas, antes da festa de

aniversário de dois mil anos do nascimento de Cristo.

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3. A ciência filosófica e a crise do essencial:

os sábios encontram os simples.

Os dados científico-históricos que procuram dar suporte ao balanço

dos resultados da aventura humana no planeta nos últimos mil anos e na

iminência do Terceiro Milênio da Encarnação de Jesus Cristo, apresentam

avaliações mescladas de luzes e sombras. E sobretudo no século XX,

podemos medir até onde somos devedores de crescimento na arte mais

divina em Deus e mais humana no homem: a arte de viver amando, e, de

amar morrendo.

O amor e a filosofia

Não é aí neste fato do amor ou desamor onde tem desaguado até as

correntes filosóficas mais recentes como o existencialismo? Baste-nos o

exemplo da escola de Martin Heidegger. Na visão heideggeriana o

ontológico humano, aparece descrito no seu jeito de ser como «Da-Sein»

(ser que está aí e sabe-que-está aí), diferenciando-se dos seres ônticos

(Sein), isto é, os seres que estão aí, mas não tem consciência de existirem.

E o «Da-Sein» (ser humano) realiza a sua hominidade na esfera do

relacional adequado. E ao que os humanos chamam de amor é o resultado

do exercício do relacional adequado, maturado, consigo, com os outros,

com o Outro e com o mundo, reflete o filósofo.

O homem é, na verdade, este nó de relações vitais e é desta ação que

dependem sua felicidade e sentido de vida. Nesta aproximação com a

alteridade deverá correr os riscos de uma aproximação onde o outro seja

uma simples atração biofísica para ser usado e voltar a si mesmo (eros,

dizem os filósofos), ou pode ser uma relação de amizade íntima (filia) em

profundidade, ou uma relação de companhia, num caminho conjunto

(koinonia), pode arriscar-se, enfim, numa relação de agapé, ou seja, uma

interrelação a serviço de um Projeto de vida comum que inclui oblação,

entrega, sofrimento. Amor, então, é agapé, não eros. Deus é amor e o amor

é direito humano essencial.

O amor e a experiência histórica

Num outro eixo de reflexão sobre nossas milenares buscas humanas, o

do estudo histórico, podemos lembrar o depoimento de um dos grandes

historiadores, falecido recentemente, o inglês, Arnold Toynbee. Após o

estudo de 27 civilizações, avaliava que a frustração nas ciências-base de

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todas as culturas, ou sejam, a economia, política e ética destes povos,

sempre determinou ciclos críticos agudos, que pareciam intransponíveis. A

superação, a ultrapassagem, destes ciclos caóticos, por novos tempos de

esperança ocorreu em geral na instância do espiritual. Na última entrevista

antes de morrer, Toynbee, que se declarava sem religião, expressou este

desejo: nossa época necessita urgentemente de pessoas à semelhança de

Francisco de Assis.

O amor e o etnocentrismo cultural

É inegável que as culturas que compõem hoje nossa civilização

passam por duras provas diante de fenômenos novos e de difícil adequação,

sobretudo devido à interdependência dos povos e o despreparo destes para

a convivência adequada com o diferente. É inegável que o etnocentrismo,

essa espécie de egoísmo cultural, tem sido marca registrada na maioria das

relações humanas individuais e entre os países.6

Um exemplo representativo a esse respeito, encontra-se na conclusão

da Assembléia Geral de todos os jesuítas do mundo, uma marcante força da

Igreja Católica na história dos últimos 500 anos. A assembléia avalia nossa

situação mundial como devedora ao extremo da relação adequada com a

alteridade. O documento final assinala que a questão do outro, do diferente,

continua a ser um desafio novo. Este se impõe à Igreja e à sociedade a

partir da consciência crescente do pluralismo como característica de uma

mentalidade que se faz cada vez mais generalizada. O mundo sempre foi

plural, mas não pluralista. E explica a diferença entre o plural e o

pluralismo: «Este, o pluralismo, acrescenta à pluralidade sua aceitação

consciente e procurada, por reconhecê-la como fomentadora da riqueza

humana e construtora de convivência mais harmônica.»7

Como a opção pelo pobre se traduz em busca de justiça, a opção pelo

outro se concretiza em diálogo. A ascese de superação do etnocentrismo

faz-nos aproximar do outro com simpatia, sem opiniões pré-concebidas,

dispostos a ouvir e aprender. Exprime o nosso reconhecimento do outro em

sua alteridade. O diálogo abre os horizontes e supõe corações abertos.

Quem tudo sabe, não dialoga; só ensina. Quem se considera melhor, não

dialoga, só julga. A essa atitude de humildade nos convida a opção pelo

outro enquanto outro.

O outro, o diferente é o culturalmente outro. São as milenares culturas

asiáticas e africanas, com as religiões que moldaram suas escalas de

6Cf. Editorial: Deus chegou antes... A propósito da XXIV Congregação Geral da

Companhia de Jesus in Perspectiva Teológica , 27 (1995) 149-154. 7 Idem, p. 150.

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valores, direitos e deveres. São as culturas indígenas que resistem nos

diversos continentes a séculos de opressão, respeitando o meio ambiente,

inspirados numa religião animista. A inculturação revela-se como dimensão

intrínseca da evangelização. O amor agápico cristão é abertura

incondicional ao outro, é uma relação de total «inclusão» da alteridade.

Portanto, continuamos devedores de muito cultivo até o desabrochar

desta verdadeira essência humana e divina, como vimos acima: o amor.

Agora, apoiados na afirmação de Toynbee, e respeitando a estreiteza de

espaço e os objetivos deste tipo de partilha. Façamos uma digressão

resumida nas ciências em geral, na economia e política em relação com a

ética e a revelação de Cristo. Ao mesmo tempo, avaliemos o uso dos

poderes correspondentes às ciências: o poder de saber, de serviço de

autoridade e poder de administração dos bens da terra.

Ontem e hoje, é essencial às ciências, a sabedoria de lavar os pés.

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Capítulo dois

Direito de saber para servir à vida

1. Lauro e Irene

Dois nomes que marcam minha caminhada pastoral junto dos

marginalizados sociais. O primeiro é de Lauro. Chegou no dia 8 de

março de 1991, por volta das 9:00 horas na Orionópolis

Catarinense, trazido pelo padre Carlos e um leigo comprometido

da cidade de Palhoça-SC. Após dois meses de luta por recuperá-lo,

não houve jeito, veio a falecer no Hospital Florianópolis. Seu corpo

não pesava mais que 20 quilos. Tinha 58 anos. Algumas semanas

após seu óbito chegou-nos o resultado da tomografia

computadorizada mostrando vários carcinomas, inclusive no

cérebro.

E o que mais chamou a atenção, foi a sua impossibilidade de

assimilação dos alimentos. Lauro provinha da fome, uma fome

crônica que o levou à morte. Em sua carteira de trabalho, trazia a

profissão de servente de pedreiro. Foi encontrado num rancho de

mangue em condições subumanas. Choramos um choro doído

naquele enterro realizado ao meio-dia no Cemitério do Passa

Vinte. Nas orações, uma meditação especial sobre seu nome:

Lauro, certamente do radical latino, “aurum”, que quer dizer ouro.

O ouro de Deus.

Depois, sempre na Orionópolis, a morte da primeira mulher.

Encontrei-a, em Capoeiras, um bairro classe média da capital do

Estado de Santa Catarina, num barraco do qual estava sendo

despejada. Seu velho não tinha muito jeito de gente, de tão

minguado, parecia-se a certos estereótipos de Jeca Tatu. A relação

entre eles, de convivência impossível, as relações com o filho

também especial, não dá para descrever aqui. Interessa o seu

nome: Irene, que da proveniência grega significa paz. Mas ela era

o protótipo da guerra, da neurose aloprada. Depois sofreu

derrame. Foi convertida ao amor pela dedicação de amor. Quando

morreu, era o símbolo da alegria, da paz alegre, reconciliada.

Lauro e Irene, a lembrança de que todo o masculino e feminino,

são sagrados.

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2. Na intimidade da mesa, o máximo de novidade

Haverá grito, clamor maior nos nossos ouvidos, e mais chocantes do

que o clamor dos Lauros e Irenes que aos milhões apodrecem nos infernos

da exclusão, do abandono, da solidão, da fome? Se viemos para amar,

nossa história é a história de nosso coração, viemos para promover relações

adequadas a fim de que todos tenham vida e vida qualitativa. De

propósito, após a descrição existencialista do amor, proponho agora uma

rápida viagem ao mundo do saber e da economia, bem como a alguns

aspectos da finalidade salvadora do cristianismo, assumida na vivência

paradigmática de Jesus de Nazaré.

Comecemos por Jesus. É no contexto da passagem bíblica do

evangelho de João, dos capítulos 13 a 17. Na intimidade do último jantar

com seus alunos escolhidos. Jesus reparte com eles todos os segredos, não

deixa nada para trás. É a famosa última ceia. Os artistas raramente pintam a

primeira cena desta última ceia. A ceia onde Jesus lava os pés de seus

alunos. Leva aquela bronca de São Pedro porque estava quebrando todas as

etiquetas e se rebaixando demais. Jesus, porém, é irreversível. «Para que

saibais que grande no meu Reino é aquele que vive para servir, como já

lhes expliquei tantas vezes. Quem quiser ser o maior, seja o servidor de

todos. Os que tem poder no mundo usam-no para a dominação, entre vós

não deverá ser assim.” Autoridade é diaconia, serviço à vida de todos.

Eucaristia: a mais revolucionária lição de economia

Depois, Jesus serve-lhes o pão e o vinho, e deixa-nos a suprema e

mais revolucionária lição de economia: a Eucaristia. Várias vezes Jesus

lhes pedira para saciar a fome do povo. Agora o pão os lembrará que a

semelhança do trigo Ele também será triturado por amor; como uva

esmagada dará até sua última gota de sangue por amor. Assim será e

ninguém poderá mudar. Jesus deixa a Memória de sua presença viva, na

mesa da história para saciar todas as dimensões de fome de justiça, amor e

paz. Quem divide, quem mata, quem trafica drogas, quem vende armas,

desperdiça alimento, profana a Eucaristia, quebra o pacto, a nova e eterna

Aliança com o Deus da vida para todos. Não será por isso que o Papa foi

intransigente com os cardeais a respeito do perdão, já que neste milênio

temos nos apresentado divididos. João Paulo chama a isto de «escândalo

dos cristãos»?

Novidade cristã no advérbio de modo: “como”

Então Jesus, após falar-lhes de coragem e de consolo, de um amigo, o

Espírito Santo, que Ele enviará mais tarde, resume toda lei, todas as

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páginas da Bíblia, todas as declarações sobre a dignidade das pessoas, todas

as novidades de cada cultura, de cada religião, nesta única novidade: «Eu

vos dou um novo mandamento: amai-vos uns aos outros como Eu vos

amei!»8. Esta é a novidade que atinge a revelação essencial de Deus sobre

nós, os humanos. Jesus define a medida das possibilidades humanas, já

atingido por Ele, na doação da sua vida e no resgate de nossa salvação.

Garante-nos um horizonte de otimismo e de compromisso: amar do jeito

como Ele amou. A novidade está no jeito de amar, neste pequeno advérbio

de modo: «como».

A revelação deste valor dos humanos, ou seja, de serem tão amados e

considerados por Deus como criaturas sagradas, é um novo horizonte de

sentido, é a verdade sobre o homem que a Igreja zela como princípio ético

fundamental, como o referencial mais precioso revelado por Cristo. Cada

ser humano é o templo vivo de Deus. A única vez que Jesus se enfezou, foi

para exigir respeito a esse templo, a esta casa do Pai. Falava do templo do

seu corpo, diz o evangelista João. Vós sois o templo vivo de Deus, afirma

Paulo. Deus tem amor «zeloso pela sua casa», Deus tem amor «ciumento»

pelos seus Lauros e suas Irenes; cada ser é raro e precioso aos seus olhos.

Cada ser humano é a menina dos seus olhos.

3. Sabedoria de quem sabe: saber para servir à

vida

Cada povo, em geral, tem no campus universitário, ou outras formas e

nomes de lugar de pesquisa de acordo com a própria cultura, o seu lugar

privilegiado de buscar respostas aos questionamentos que a vida vai

apresentando com vários matizes na sucessão das gerações. A esse respeito,

tive várias oportunidades de participar ativamente em debates e fóruns

universitários no meu país a respeito da interdisciplinaridade e a religação

do campus universitário e comunidade.

Nos últimos vinte anos, participando como convidado a animar as

celebrações eucarísticas de fins de cursos das mais variadas faculdades: da

medicina à engenharia, da psicologia e serviço social às ciências contábeis

e computação, pude constatar o ar de surpresa geral, quando convidava os

formandos a pedirmos perdão aos grandes financiadores dos diplomas, com

percentuais de participação em torno até dos 80%. Provocados ao diálogo,

era raro ouvir resposta clara de que era o povo o maior «sponsor”, o maior

patrocinador de seus diplomas.

8Cf.Jo.15,12ss

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E, provavelmente, tal ignorância é devido à ocorrência deste divórcio,

gerado pela própria instituição universitária, entre os que tem acesso ao

poder de saber e o povo, ao qual deveriam aprender a servir com os

diplomas financiados às custas e sacrifícios do dinheiro popular.

«Estude para vencer na vida?!?!»

Por que este objetivo de estudar para servir é uma novidade? Não será

porque insistimos tanto numa visão pedagógica deturpada de concorrência

e que se inicia desde o pré-escolar quando incutimos nas crianças a

necessidade de «estudar para vencer na vida» em vez de «estudar para

servir à vida?». Se ampliada esta constatação para outras áreas geográficas,

não será esta uma das grandes geradoras da mega-crise que atravessa a

nossa civilização?

As ciências existem para responder às nossas necessidades vitais,

estão a serviço da grande e única família humana, a serviço do

desenvolvimento, da proteção e do sentido da vida, de todas as vidas

humanas, mas também dos outros seres vivos, do ecossistema, do cosmos,

enfim. Do contrário, a quem servem as ciências? Nas análises mais

aprofundadas daqui por diante com a digressão no estudo da economia,

Comunicação Social e Ética nos daremos conta dos porquês e das

conseqüências pérfidas deste tipo de comportamento.

O saber para matar: alguns números da cultura da morte

É aí, no serviço à vida, que alguns poucos sábios, verdadeiros profetas

da ciência econômica começam a fazer o balanço neste fim de milênio,

embora a grande maioria dos entendidos neste campo busquem a evasiva

de que há uma «científica separação metodológica que os

desresponsabiliza ética ou moralmente». Pior cegueira é de quem não quer

enxergar. Na verdade, nunca produzimos tanto e em tão pouco tempo,

graças a tecnologias ultra-avançadas. Então, por que nossa sociedade

aparentemente tão desenvolvida, a cada ano, colhe cifras astronômicas da

morte pela fome? Nunca matamos tanto, e tão impiedosamente, e em tão

pouco tempo.

A situação do mundo no fim de nosso século registra surpreendentes

contrastes: uma minoria da população do Planeta possui uma notável

capacidade de acúmulo de riqueza o que lhe permite usufruir um exagerado

bem-estar material; ao mesmo tempo, uma imensa maioria de habitantes do

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globo, luta para sobreviver em condições de indigência. No finado ano de

1995, por exemplo, produzimos 61 milhões de mortos pela fome no

planeta.9 Não obstante o enorme incremento do PIB (Produto Interno

Bruto) mundial nos últimos 50 anos, (pós-fim da guerra de 1939-1945), são

cerca de 20 a 25% dos habitantes da terra que vivem abaixo do nível da

pobreza.10

Convivemos com imensas regiões do mundo nas quais a maioria dos

habitantes se debate e se consome na luta pela sobrevivência. O preço pago

é altíssimo. Este quadro de miséria é, sobretudo, escandaloso se se compara

à vida opulenta daqueles que dispõem das vantagens oferecidas pela

riqueza e bem-estar. Aprofundemos um pouco mais as causas desta chacina

anual de nossos dias, este grito silencioso dos famintos que clama ao Deus

da Vida por justiça. Na verdade, são os novos sacrifícios humanos ao deus-

capital. São 40.000 crianças vítimas mortas por dia em seu holocausto.

O saber ópio do povo: anestesiados pelo Pensamento Único

Segundo o analista de economia Inácio Ramonet11

, cresce sempre

mais na democracia atual, o número de cidadãos que ainda tem sede de

liberdade e se sentem dopados, anestesiados por uma espécie de doutrina

gelatinosa que insensivelmente neutraliza qualquer raciocínio de sã

rebeldia, de indignação afirmativa. Confunde-os, paralisa-os até sufocá-los:

o pensamento único, único autorizado a expressar-se através de uma

invisível e onipresente polícia de opinião.

Segundo Ramonet, somos vítimas deste todo-poderoso «pensamento

único». O fundamento do “pensamento único” é o conceito do primado da

economia sobre a política. Ele foi formulado e definido desde 1944, por

ocasião dos acordos de Bretton Woods. As suas principais fontes são as

grandes instituições econômicas e monetárias – o Banco Mundial, o Fundo

Monetário Internacional, a Organização para a cooperação e

desenvolvimento econômico, o Acordo Geral sobre Tarifas Alfandegárias e

sobre o Comércio, a famosa Comissão Européia, os Bancos Centrais e

outros. Através dos financiamentos, colocam a serviço de suas idéias por

todo o Planeta, numerosos centros de pesquisa, universidades e fundações,

chamadas a rezar o mesmo catecismo e difundir suas boas idéias, numa

espécie de Bíblia-Liberal. À economia se reserva o lugar de comando em 9Cf. in Jornal A Folha de São Paulo, 24.12.1995, p. 20.

10Júlio de Santa Ana, L’attuale sistema socio-economico quale causa de squilibrio

ecologico e della povertà, in Concilium 5(1995) p. 17. 11

Ignacio Ramonet, Il pensiero unico, in Missione Oggi, 10 (1995) pp. 22-23 resumo de

sua análise feita em Le Monde, 17.12.’94.

Page 17: Homo Serviens - Sou feliz, sirvo à vida! Prof. Jaci Rocha Gonçalves

18

nome de um realismo, de um pragmatismo cuja importância o francês

Alain Minc resume na seguinte formulação: «O capitalismo não pode cair,

porque é o estado natural da sociedade. A democracia não é o estado

natural da sociedade. O mercado é.»12

Há outros conceitos-chave do pensamento único que já entraram

na desordem estabelecida em nosso dia-a-dia. Dentre eles:

- o mercado, ídolo cuja «mão invisível corrige os excessos e as

disfunções do capitalismo»;

- de modo bem especial os mercados financeiros, cujos «sinais

orientam e determinam o movimento geral da economia»;

- a concorrência e a competição: estimulam e dinamizam as

empresas, conduzindo-as a uma modernização permanente e

benéfica»;

- o comércio ilimitado e livre: fator de desenvolvimento

ininterrupto do comércio e em conseqüência da sociedade»;

- a mundialização ou globalização tanto da produção

manufaturada como dos fluxos financeiros;

- a divisão internacional do trabalho tem a função de «moderar

as reivindicações sindicais e diminuir o custo da mão de obra, do

trabalho»;

- a moeda forte, «fator de estabilidade»;

- deregulation, a privatização, a liberação; que definem sempre

mais a supremacia do poder econômico até mesmo da política, sempre

«menos Estado»; acontecendo assim, uma arbitragem constante em

favor dos lucros do capital e em detrimento do trabalho.

“A morte de 40.000 crianças por dia devido à miséria é gerada

por decisões tomadas a nível supranacional que chegam aos povos e

aos setores mais frágeis transformadas em planos econômicos que

tem como objetivos a produção de capital, de armamentos e de coisas

supérfluas.”13

12

Cf. Cambio 16, Madrid, 5.12.1994. 13

Cf. VELÁSQUEZ, JULIA ESQUIVEL. Espiritualidade da Terra, Concilium 5 (1995)

p. 94.

Page 18: Homo Serviens - Sou feliz, sirvo à vida! Prof. Jaci Rocha Gonçalves

19

O milagre da mídia fabricando enlatados

Para a sua doutrinação, o pensamento único utiliza a massmediologia

e as Ciências de Opinião Pública. Quais suas características? Antes de tudo,

usa o método do discurso anônimo, explica ainda Ramonet, que é gravado

e reproduzido nos principais órgãos de difusão (Agência de Notícias), para

ser repetido incessantemente como um catecismo à moda antiga, de

perguntas e respostas, através dos principais órgãos de informações

econômicas.

Estes órgãos utilizam, em geral, uma linguagem hermética,

comumente apelidada de «economês», cujo acesso é permitido só a uma

«elite decodificadora» uma espécie de «bíblia» dos investidores, dos

agentes de Bolsa de Valores e assessoria dos «managers empresariais». Os

principais são The Wall Street Journal, Financial Times, The Economist,

Far Eastern Economic Review, les Echos, a Agência Reuter, A Gazeta

Mercantil, etc.- na maior parte propriedade dos grandes grupos industriais e

financeiros.

Mas haverá economia da salvação para os pobres através deste sistema

tão bem organizado, e que utiliza de maneira otimal a ciência de Marketing

nas suas produções em rede transnacionais? Até quando vai gerar tanta

miséria e nos fazer experimentar esta ansiedade e sentimento de

impotência, ao contemplar sua magnificência grandiosa, onipresente,

inatacável e ... sarcasticamente sorridente? Desde quando, na verdade este

sistema econômico funciona na história da humanidade? Será que foi

sempre assim? É lei natural que seja assim, como vimos acima?

Após a queda do muro de Berlim em novembro de 1989, o social-

comunismo deixou de ser referência, também na ciência econômica. O

capitalismo, o neo-liberalismo não tem mais opositores. Não tem mais

como esconder sua mão invisível. Mas até onde vão os adoradores do deus-

mercado? Segundo os analistas, diante de seu furor ideológico, não é

exagerado falar em dogmatismo moderno.

Até mesmo os homens responsáveis pela política, tanto de direita

quanto de esquerda, usam os mesmos critérios e linguagem, como se

cedessem à intimidação do sistema econômico, sufocando qualquer

tentativa de reflexão livre. Tornam assim sempre mais difícil a resistência

contra este novo obscurantismo, quase que delegando toda autoridade ao

poder do ter (sistema econômico) e seu porta-voz (poder midiático), de

forma que o ético-político, o saber e ser-religioso, lhes passassem a ser

apenas um acréscimo. 14

14

Sobre análise do poder medial hodierno cf. longa bibliografia apresentada in Missione

Oggi, op. cit. supra. Inclusive o próprio corpo do dossier que, embora sumário,

apresenta alguns quantificativos do poder medial em uso pelo sistema econômico.

Page 19: Homo Serviens - Sou feliz, sirvo à vida! Prof. Jaci Rocha Gonçalves

20

Pequena amostragem do poder medial de informação em 1996.

No intuito pastoral deste trabalho escolar para o Brasil e dada a

escassez de informações no meu país, deixo alguns números do imenso

«planeta mídia». Entre as primeiras 300 empresas de comunicação e

informação, 144 são americanas, 80 européias, 49 japonesas e as restantes

são de propriedade de países do Norte. Em geral, o Sul do mundo, se se

exclui o Brasil, Índia e México - não dispõe de indústria de comunicação,

mesmo porque hoje, para cada cem palavras difundidas pela Mídia na

América Latina, 90 provêm de Agência de Notícia não-latino-americana.

Para medição do poder de uma Agência vejamos o exemplo da «Reuter».

Ela declarou em 14 de Fevereiro de 1995, que teve um ganho bruto em

1994 no valor de 510 milhões de libras esterlinas, cerca de um bilhão e

300 milhões de liras, com um crescimento de 16 % a mais que 1993.

A Agência é inglesa e nasceu em 1851, é especializada em informação

econômica e financeira. Com um estatuto de sociedade privada, como

cotação de bolsa de valores, tem mais de 11 mil dependentes, dos quais

1500 jornalistas (entre redatores, fotógrafos e câmerasmen), e 30 mil

assinantes. As notícias da Reuter, instrumento indispensável para qualquer

jornal, são transmitidas em cinco línguas: inglês, alemão, árabe, espanhol

e francês. Para termo comparativo, vejamos as suas «colegas». A

Associated Press, agência americana fundada em 1848, sociedade sem fins

lucrativos, tem 3.157 empregados entre os quais 1.323 jornalistas, e 17 mil

assinantes no mundo, (a metade fora da América). A France Press, nascida

em 1944, tem 670 jornalistas e 12.500 assinantes». 15

15

Cf. Reuter-Le Monde, Internacional nº. 66, 17.2.95.

Page 20: Homo Serviens - Sou feliz, sirvo à vida! Prof. Jaci Rocha Gonçalves

21

Na poltrona da sala, no quarto ou na mesa de jantar:

com sabor de impotência

É um sistema tecnológico fascinante, com um poder até de

subliminaridade, isto é, com poder de atuação a nível abaixo da nossa

percepção consciente, que faz do cidadão um verdadeiro alvo do

bombardeio da propaganda. Ela, para ser realmente completa «made in

USA» deverá servir bem o alvo, digo, os fregueses telespectadores com os

três «SSSs: sun, sea, sex» - muita luz, com os melhores efeitos (sun), muita

água em turbulência marítima (sea), com boa dosagem de erotismo

provocando a libido (sex). Assim o telespectador, de forma subliminar,

portanto, imperceptivelmente, se «converterá« ao mundo colorido,

estimulador e provocante da receita de felicidade com as requintadas

fantasias do luxo e bem-estar, ao alcance do nosso bolso. Quanto às

informações, se faz espetáculo até com a tragédia. Sobre o mundo, ficamos

sabendo o que o «pensamento único» decidiu pelas suas Agências de

Notícias.

Às vezes chega-se a pensar que os 17,4 milhões de desempregados

europeus, o desastre no funcionamento das cidades, a precariedade geral

dos bens públicos, a corrupção, a tensão nas periferias das cidades, o saque

da ecologia, o retorno dos preconceitos raciais, dos integralismos e

extremismos religiosos, a maré dos excluídos, não sejam mais que uma

simples invenção e miragem, alucinações culpáveis em grave discordância

com este melhor dos mundos, construído pelo pensamento único para as

nossas consciências anestesiadas.

Todo saber esteja a serviço da vida para tudo e todos!

Page 21: Homo Serviens - Sou feliz, sirvo à vida! Prof. Jaci Rocha Gonçalves

22

Capítulo três

Direito à economia de reciprocidade

1. Opção preferencial pelos pobres e

marginalizados16

Às vezes não acho bom nem lembrar. Dá arrepios e náusea.

Enterrei muito neném que morria de «subnutrição», segundo o

laudo médico; «é anjinho, melhor assim, foi com Jesus!»,

consolavam-se uns aos outros. Eu era padre novo, 25 anos, hoje

estou com 48. As comunidades tinham colonos de descendência

italiana, polonesa, cabocla e novos migrantes. Era periferia de

Curitiba – Paróquia de São Sebastião em Quatro Barras (PR),

Brasil. Após dois anos, conseguimos fazer o levantamento da

realidade e elaborado uma diagnose pastoral. Em cada uma das

oito capelanias havia junto do templo um pequeno terreno e

alguma construção de madeira para as três festas anuais de cada

localidade. Com mulheres dispostas da comunidade estimulamos

um processo de proteção à vida das crianças. Os homens também

apoiaram.

Após sete anos de trabalho sistemático, construímos oito

centros comunitários para prezinhos e creches, clubes de mães e de

gestantes e educação dos jovens à política. Com as economias da

pobreza de cada comunidade, não enterramos mais criança por

morte de fome. A primeira creche recebeu o nome de «Nossa

Creche». Ela nasceu num momento doído, um funeral infantil em

fins de novembro. Ficamos três domingos sem comunhão, como

penitência. A missa ia até o rito da oração dos fiéis. No dia de

Natal, fizemos um ofertório inesquecível: todas as pessoas que

tinham roupas de neném, fraldas, bercinho, trouxeram para o

presépio; assim começou a “a nossa creche”. O processo foi

multiplicando-se aos poucos, até por via política, na forma de

reivindicação. Tínhamos nosso slogan: “mais vale pobreza

partilhada que riqueza mal distribuída”.

16

Cf. TMA nº. 51, lembrando que Jesus veio para evangelizar os pobres, o Papa quer

fechar o ano de 1999 com o aprofundamento do tema da caridade: (...) este

compromisso num mundo marcado por tantas desigualdades sociais e econômicas (...)

os cristãos deverão ser porta-vozes de todos os pobres do mundo, propondo a festa do

Jubileu como um tempo oportuno para pensar, entre outras ações, numa consistente

redução, se não o total perdão, da dívida internacional, que pesa sobre muitas nações.”

Page 22: Homo Serviens - Sou feliz, sirvo à vida! Prof. Jaci Rocha Gonçalves

23

Antes de vir à Itália, após 12 anos, passei por lá. Mesmo sem

o apoio efetivo de autoridades civis e, em certos momentos até

eclesiásticas, o povo tocou em frente os projetos animados pelo

velho refrão: «Eu vim para que todos tenham vida, que todos

tenham vida plenamente!»(Jo 10,10).

2. Uma nova ordem econômica mundial? Até onde é realmente possível, neste contexto de crise de civilização,

uma nova ordem econômica mundial? A busca do novo nesta área angustia

porque é difícil, ao mesmo tempo porque trata da questão essencial da

sobrevivência. A esperança está na elaboração de novos princípios de uma

ciência econômica, que admita antes de tudo a necessidade da economia de

mercado, mas não sua suficiência, para que haja desenvolvimento

autenticamente humano.

A queda do socialismo real, como vimos acima, aumenta ainda mais

os riscos de absolutização de um sistema de mercado que se exclui das

valorações morais. Sem o socialismo, o sistema neo-liberal está dançando

sozinho e solto na avenida da oferta e da procura. Com as enormes fatias de

novos consumidores nos territórios antes ocupados pelo comunismo, o neo-

liberalismo vai, guloso, «fazendo novos ajustes» na sua geo-economia.

Apartheid Social

Nos estudos da relação teologia e economia, embora nos inícios, tem-

se chamado a atenção para dois fatores que mais preocupam neste sistema

com sua capacidade de gerar o chamado apartheid social: o primeiro, é a

denúncia da «irracionalidade da razão sistêmica».17

Porque irracional?

Porque promove o crescimento econômico, a produção da riqueza e na

mesma proporção a exclusão social. Isto o torna gerador de um quadro

crônico de injustiças e mostrando um onipotente poder de aumentar o

abismo a cada ano entre os muitíssimos pobres e os poucos riquíssimos em

todo chão aonde já chegou.

Estas e outras contradições surpreendentes têm sido percebidas graças

às ocasiões úteis como os encontros promovidos pela ONU no Rio de

Janeiro em junho de ‘92 sobre o desenvolvimento e ambiente e em março

de ‘95 em Copenhague sobre o desenvolvimento social. Nestas ocasiões

podemos observar os sinais de esperança para a vida. É que nestes

17

Cf. Hinkelamert, Franz. La irracionalidad de la racionalidad dominante. São José da

Costa Rica: Ed. DEI, 1994.

Page 23: Homo Serviens - Sou feliz, sirvo à vida! Prof. Jaci Rocha Gonçalves

24

encontros cresce o grito de denúncia contra a irracionalidade da lógica do

sistema vigente ao mesmo tempo em que mostra o aumento do número de

associações públicas não-governamentais que procuram corrigir de modo

radical estas insensatas tendências do sistema.

É nestes encontros que as igrejas e religiões podem atuar em

profundidade, como aconteceu com a Santa Sé, nos encontros de ‘95 em

Estocolmo e em Pequim no 4º Congresso sobre a mulher (setembro ‘95).

Nestes encontros emergem o poder da própria organização dos excluídos

como uma força transformadora surpreendente porque o oprimido emerge

como sujeito criativo e reivindicador.

O «espírito faustoso» da «cultura universal»

O segundo fator responsável pelo apartheid social tem raízes antigas

na história econômica: é o «espírito faustoso» do sistema, ou seja, o

sistema é intrinsecamente egoísta porque não conhece limites desde que

seja para obter vantagens. Este espírito é fruto de mutações históricas que

adquiriram cidadania num processo de «longa duração».18

Antes que o

sistema surgisse e se consolidasse, a maior parte do poder do Planeta se

concentrava no Extremo Oriente. Não obstante, nem a China, nem o Japão

conseguiram tornar-se potência «mundial».

A situação só começou a mudar com a expansão do sistema europeu

de conquistas na Idade Moderna e que se fundamenta em três dimensões

interconexas: comercial, política e cultural. Este processo põe em evidência

o espírito de dominação. A conquista traduziu-se com freqüência na

superposição de uma nomenclatura nova à realidade conquistada. Novos

nomes substituíram os autóctones. Assim, nações que até o século XVI

eram pobres e estereotipadas como bárbaras, passaram ao processo de

acumulação de riquezas, dos grandes progressos no conhecimento e

aplicações no campo tecnológico.

A Ciência Ocidental reflete o mesmo espírito de dominação dos

conquistadores e colonizadores. Hoje o sistema tomou dimensão de uma

entidade global. A cultura sistêmica dominante é cosmopolita, porque é

constituída por pessoas e grupos econômicos pertencentes a várias nações.

Por isso esta «classe dominante»19

se apresenta como «cultura universal».

18

É o nome dado por Immanuel Wallertein in The modern World - Sistem II. New York

– London: Academic Press, 1980. 19

A análise foi cunhada por Fernando Braudel. Cf. La méditerranée et le monde

méditerranée à lépoque de Philippe II, 2o. Volume, Arnaud Colin, Paris 1966. É o

primeiro sistema que se inseriu na história. É fruto da expansão comercial, política e

cultural do Ocidente nos últimos cinco séculos.

Page 24: Homo Serviens - Sou feliz, sirvo à vida! Prof. Jaci Rocha Gonçalves

25

Ela é, na verdade, um atentado contra-cultural, porque anula as culturas

locais, procura dominar e controlar tudo, sem limites, segundo o espírito

«faustoso» que a anima.

Zona-franca: paraíso fiscal com impunidade

Este sistema «mundial» apresenta-se com esta estrutura: um «centro»

onde se acumula a maior parte da riqueza e tem o maior foco de poder. Ao

redor deste «centro» se encontram os «quarteirões periféricos» que

também conseguem acumular associando-se ao poder central, depois vem

as «periferias» conquistadas e subjugadas economicamente. Afora algumas

que conseguem alianças, estas em geral trabalham a serviço do poder

estabelecido no centro do sistema. Existem lugares que ligam centro e

quarteirões com as periferias distantes, aí também acontece uma certa

acumulação como é o caso das grandes cidades-porto, que hoje cedem

lugar às chamadas «zonas-francas», verdadeiros paraísos fiscais, onde o

poder econômico e financeiro internacional podem operar com liberdade,

isto é, impunemente.

Atualmente, num momento em que os Estados Unidos da América do

Norte é o país mais endividado do mundo, o centro está se deslocando para

o Extremo Oriente, no Japão e os quarteirões periféricos, os chamados

tigres asiáticos, a China ou outras nações do sudeste asiático. A outra opção

é a Europa Ocidental, cuja área de poder mais sólida se encontra entre

Londres, Paris, Berlim e Milão. Esta mudança intra-sistêmica é uma das

causas mais importantes da instabilidade atual.

Esperança: a solidariedade competente

Mais que a eficiência como propriedade nesta nova ordem econômica,

, é necessário, embora difícil, que o mercado tenha instituições a serviço do

bem comum e da cooperação. Em segundo lugar, é preciso desmascarar e

desobedecer à orientação de que se diminua a solidariedade do setor

público-governamental, tanto a nível internacional quanto a nível interno,

nacional. São raros os Estados que tem aceitado contribuir com o 0,7% do

próprio Produto Interno Bruto para auxiliar o desenvolvimento

socioeconômico dos países pobres, acordados na ONU.

É verdade também que, de forma particular, existem setores da

sociedade que procuram preencher esta carência com contribuições

voluntárias. É óbvio que, não obstante a sua generosidade, estas

manifestações de solidariedade estão longe de ser suficientes. Mas sem

estas contribuições, a situação dos pobres seria ainda mais difícil. Apesar

de todos os esforços que os pobres fazem na tentativa de sobreviver, a

pobreza e a miséria crescem progressivamente em quase todo o mundo.

Page 25: Homo Serviens - Sou feliz, sirvo à vida! Prof. Jaci Rocha Gonçalves

26

E, fato ainda mais grave, o descuido pela sorte dos pobres se

manifesta a nível interno na maioria dos países. A adoção de políticos

«neo-liberais» e de planos especiais de organização econômica deixam os

pobres numa situação dramática. Desprovidos de cuidado, se sentem

atraídos por várias formas de violência e de outras de natureza ilegal. Uma

grande parte da responsabilidade na organização destes processos dizem

respeito às tendências sistêmicas predominantes.

«Irracionalidade da racionalidade sistêmica»

A «irracionalidade da racionalidade sistêmica» se traduz na ideologia

que diminui a importância do social e de seus valores, ideologia que apela

sistematicamente ao individualismo. Neste contexto ideológico a única

«coisa» social que parece ter valor é «o mercado» que tem pouquíssimos

de social, como todos sabemos.20

Esta ideologia induz e explora um

«sentido de pertença comum» tão dominador que induz as maiorias, seja no

Norte como no Sul, a aceitar custos e sacrifícios muito altos quando se trata

de salvar o sistema, o tal mercado. É uma ideologia útil para aqueles que

administram instituições e processos sistêmicos, de roldão aderem também

os pobres, aliciados a sacrificar-se no altar do sistema. A esse respeito já é

possível falar de uma «religião civil»21

cujo núcleo sacro tem como uma

das manifestações mais evidentes, o mercado como «totem» porque se trata

de um manufaturado, de uma obra humana.22

É neste discernimento e enfrentamento que as religiões, as igrejas, as

organizações comunitárias humanizadoras podem entrar repondo os valores

da pessoa, como a mais sagrada riqueza, fortalecendo organizações, através

de encontros, troca de «know-how», mesmo correndo os riscos da

ambigüidade.23

20

Lembre-se a afirmação de Margareth Thatcer: “There is not such a thing society” (Não

existe uma coisa como a sociedade). Uma orientação análoga pode-se entrever na

impostação econômica do Presidente Reagan (Reagonomics), que predomina nos

Estados Unidos entre 1981 e 1992. 21

“Religião civil” segundo o sentido conferido por Rousseau, J.J, in Contrato social.

Paris: Aubier-Montaigne, 1976, p. 427. 22

A relação teologia e ciência econômica parece estar dando os primeiros passos. Cf.

Produções de Júlio de Santa Ana e outros in Concilium 5 (1995); as obras de Jung Mo

Sung, Ed. Paulinas, Brasil e de F. Hinkelammert , DEI, San José de Costa Rica e Hugo

Assmann, Ed. Paulinas, Brasil. Vide para o Brasil, estudos in Tempo e Presença, CEDI,

268(Ano 15); Perspectiva Teológica 70 (1994). 23

A escassez de espaço não permite apresentar no corpo do texto excelentes estudos

sobre Ética e economia, sobre a cultura da solidariedade cristã, a busca de mercados

competentes e criativos na relação de comunidades-irmãs do Norte e do Sul, onde a

postura da caridade vai junto com a justiça e reciprocidade, superando alienação e

Page 26: Homo Serviens - Sou feliz, sirvo à vida! Prof. Jaci Rocha Gonçalves

27

A busca de uma solidariedade competente não visa só superar a

instância de “esmola, de ajuda”, nem tampouco apenas criar “ilhas de

troca” entre comunidades, muito menos ainda os planos com o “invólucro

de solidariedade” mas cuja ação burocrática corrupta canaliza os fundos

para seu próprio bem-estar em vez de atingir o alvo que é sujeito-

comunidade-local em libertação. A verdadeira solidariedade vai ainda mais

longe. Supera a ingenuidade de atuação, usando os mesmos campos e redes

de mercado, porém, com um espírito concreto e vigilante de economia de

reciprocidade à moda de inúmeros esforços que se tem feito nas últimas

décadas.24

É também aí que o serviço e a arte da ciência política diante da

economia pode acontecer no habitat concreto da comunidade.

Entre os Mbyá Guarani, a ordem econômica é de “economia de

reciprocidade”. Eram cinco milhões, na descoberta e invasão européia

do Brasil. Após 500 anos foram reduzidos a 200 mil. Em 1996,

arriscam perder ainda mais espaço. Mesmo como “guarani em beira

de asfalto” não desistem de sua língua, fé e tradições.

irenismos. Cf. Jesus Ano XV-8(1993). São cerca de 1500 documentos episcopais sobre

a questão social, já reunidos pelo Instituto Internacional J. Maritain, dos últimos cem

anos; cresce o interesse e a urgência de pesquisa e profecia neste campo por parte da

Igreja. Os documentos do Magistério tem despertado sempre mais interesse. 24

Para informações detalhadas sobre o crescimento e desenvolvimento de setores de

comércio equo-solidário, sobre financiamento ético e economia social “non-profit” (sem

lucro) procurar o CTM MAG Servizi: Centro Ricerca - Formazione - Comunicazione ,

Piazzetta Forzaté, 2 - 35 137 Padova - Italia. Fax 049/8755714 - e-mail:

[email protected]

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28

Capítulo quatro

Política é coisa suja?

Sobre o nosso direito de interferência

política

Se a resposta é não, estamos com Jesus de Nazaré. Mas o modo como

está sendo vivida neste mundo em crise, onde se esvazia sempre mais o

sentido de autoridade servidora do bem comum, o serviço de política está

desacreditado. Estamos carentes de paradigma também nesta área. Há dois

textos paradigmáticos da vida de Jesus que podem nos ajudar a aprofundar

o sentido desta arte tão antiga quanto a humanidade: a arte de se interessar

pela boa convivência e o bem de todos, a arte de fazer política, como

veremos logo a seguir.

1. Jesus e a Política

Baste-nos, por ora, encontrarmos com Jesus em duas idades

sacramentais de sua vida. Haveria muitos outros textos com suas palavras,

fatos e atitudes, a ponto de fazermos um longo tratado sobre Jesus e a

política.

Aos 12 anos

Aos doze anos ele dá um susto nos pais. Foi logo após a festa de sua

maioridade religioso-política, conhecida como “Bar mitzvah”, em

Jerusalém, na capital. Jesus fica na cidade e seus pais, após longa e aflita

procura, o encontram no centro religioso, político e de referência social

judaica: no templo da cidade santa. Usando o direito de participação que a

lei lhe dá, o jovem nazareno não se intimida diante das autoridades de seu

povo e discute com eles.

Conta o Evangelho que “após três dias de procura, os pais de

Jesus o encontraram no templo, sentado entre os doutores,

escutando-os e interrogando-os. E todos aqueles que o ouviam

ficavam pasmos de admiração pela sua inteligência e a

sabedoria de suas respostas.” (Lc 46-47).

Aos 30 anos

Vinte e poucos anos mais tarde, Jesus voltará a defrontar-se com as

autoridades, no mesmo pátio do templo. Dali Jesus sairá para levar a lei e a

política do amor até as últimas conseqüências numa condenação injusta e

Page 28: Homo Serviens - Sou feliz, sirvo à vida! Prof. Jaci Rocha Gonçalves

29

morte violenta. Tudo começa em Nazaré entre seus parentes e

companheiros de idade.

“Jesus voltou à Galiléia com a potência do Espírito Santo e

a sua fama se espalhou por toda a região. Ensinava nas

sinagogas e todos lhe davam muitos elogios.

Vai a Nazaré, onde tinha crescido; e entrou, segundo o seu

costume, na sinagoga e se levantou para ler. Deram-lhe o rolo

com o livro do profeta Isaías; abrindo-o, encontrou o trecho

onde estava escrito:

‘O Espírito do Senhor está sobre mim; por isto me

consagrou com o óleo santo da unção, e enviou-me para

anunciar uma alegre notícia aos pobres, para proclamar a

liberdade aos presos, devolver a visão aos cegos; libertar os

oprimidos e anunciar o ano de graça do Senhor.’( Is. 61,1-2)

Depois enrolou o livro e o deu ao ajudante e se sentou. Os

olhos de todos na sinagoga se fixaram nele. Então começou a

dizer-lhes: Hoje se cumpriu esta escritura que acabastes de

ouvir.” Todos se orgulhavam dele e se maravilhavam com as

palavras de sabedoria que saiam de sua boca, e diziam: “Não é

este o filho de José, o carpinteiro?” (Lc. 4, 14-22).

Querendo que fizesse milagres para dar demonstração de poder e de

sucesso Jesus lhes responde que “nenhum profeta é bem aceito em sua

terra”. O pessoal ficou furioso e o levou para fora da cidade para jogá-lo no

precipício. Jesus, porém, passando no meio deles, segue seu caminho.

2. O descrédito de nós mesmos no descrédito da

ciência política

No campo da ciência política há muitos tabus a serem quebrados, pois

o exercício desta arte chegou ao máximo de desprestígio. O analfabetismo

da humanidade no que se refere ao uso deste poder essencial nas mais

variadas culturas, produziu neste segundo milênio e, de forma violentíssima

no século XX, milhões incontáveis de vítimas.

O que é a política? A própria palavra de origem grega já traz o

significado-básico, ou seja, a arte de orientar com prudência a convivência

entre pessoas. Em outras palavras, é a ciência que resguarda os direitos do

cidadão a viver respeitado, útil, solidário em sua sociedade. O quanto de

novidade estamos carentes nesta área de convivência, especialmente nas

megalópoles, faz-nos lembrar a magistral obra de Ernst Cassirer, cujo título

de capa já sintetiza a dimensão da problemática política: «A multidão

solitária».

Page 29: Homo Serviens - Sou feliz, sirvo à vida! Prof. Jaci Rocha Gonçalves

30

A freqüência dos suicídios em épocas de grandes festas, a eficiente

rede planetária do narcotráfico que há 30 anos mutila gerações de jovens na

fuga de si mesmos e da inaptidão para a convivência com a alteridade. A

venda de drogas é o segundo comércio da atualidade. Os ambientes de

trabalho nas fábricas onde o sistema de industrialização visa apenas o

quantitativo de produção e renda, sem dar possibilidade de participação

consciente e cooperativa dos trabalhadores. As inúmeras e vergonhosas

guerras e seus armistícios hipócritas escondendo sempre o trabalho da mão

invisível do mercado vendendo armamentos e mantendo o seu recorde

como o mais vantajoso comércio do século.

Sem esquecer que é tarefa política administrar os outros setores da

proteção à vida especialmente, a segurança (que deveria ser entendida mais

como proteção do que defesa), a moradia, a instrução, a saúde e o lazer.

3. Na crise dos paradigmas de autoridade: a

orfandade planetária?

Com as mudanças de 1989 produziram-se ainda alguns cenários

inéditos e em grande parte imprevisíveis: a crise das ideologias não

significou só o fim das trágicas opressões do Leste, mas também o

desfalecimento de tecidos sociopolíticos que pareciam compactos, e o

emergir deste processo de trituração de reivindicações particularísticas com

violência inaudita. O vazio terrível produzido pelo fim da lógica da

contraposição demonstrou que o consenso coagulado «contra um

adversário” não correspondesse de fato a um análogo crescimento da

consciência moral e cívica.25

O desencanto produzido em muitos «órfãos» da ideologia, o triunfo

efetivo deste modelo ideológico ainda mais sutil e perigoso, que é o

hedonismo unido ao individualismo exasperado da sociedade opulenta do

Ocidente, determinaram uma crise ética, cujas dimensões hoje são

dificilmente calculáveis.

Neste vazio de valores onde triunfam os modelos da «decadência», as

propostas de otimismo a alto preço de mercado, o afastamento da

solidariedade por detrás da máscara do estilo do «cada um por si» que

sacrifica precisamente os mais fracos, sem poder aquisitivo dos bens até de

primeira necessidade; a procura do lucro fácil e do sucesso a qualquer

preço, e a perda dos mais elementares princípios morais.

25

FORTE, Bruno. L’Essenciale è vivere la carità, in Jesus 11 (1995), p. 64.

Page 30: Homo Serviens - Sou feliz, sirvo à vida! Prof. Jaci Rocha Gonçalves

31

As associações sociopolíticas do passado perderam a sua razão de

consistência: não é mais a bandeira ideológica que possa sustentar um

consenso, nem mesmo a bandeira ligada a um programa de inspiração

cristã, como o demonstra o fim do partido único dos católicos na Itália, a

famosa Democracia cristã. Apareceram vencedores o pragmatismo, a

capacidade de sedução, a força dos persuasores ocultos ligados ao poder da

mídia, os particularismos regionais e econômicos, em geral de baixíssimo

nível, cujos aspectos já analisamos.

Mas o tabu maior que sobra como saldo é que realmente há uma perda

de credibilidade geral no setor. Cai assim com o político um referencial

importante para a vida das comunidades humanas que é o valor da

autoridade. Em poucas décadas, nosso século colheu consequências com

feridas ainda vivas na pele e na mente de inúmeros cidadãos, frutos podres

dos totalitarismos de direita e de esquerda em todo o Planeta: de Hiroshima

a Dachau até Ruanda e Burundi.

Um novo jeito de governar: “de satanás a anjos da guarda”

Nosso jeito dominador e não sabiamente servidor da vida, de todas as

vidas é responsável por todas as vítimas. Nossa aproximação da “mãe

natureza” ainda é o pior possível. Finalmente a Teologia também dá aqui

seus primeiros passos e nos ajuda a abrir os olhos para mais este fruto de

uma relação de pecado estrutural, a nossa relação de dominação em vez de

diálogo com a mãe natureza. "Não será possível tratar a natureza como a

trata a nossa sociedade, quase como se ela fosse supermercado ou um self-

service.

A natureza é um patrimônio comum que vem sendo assaltado sem

piedade, mas que é urgente conservar... De satanás da terra, o homem deve

educar-se a se tornar seu Anjo da Guarda, capaz de salvá-la como sua pátria

cósmica e mãe terrena.”26

"Os astronautas nos acostumaram a ver a terra como uma astronave,

que se equilibra azulada nos espaços siderais, portadora do destino

comum de todos os seres. Acontece, porém, que nesta nave-Terra 1/5 da

população viaja na parte reservada aos passageiros, consumindo 80% das

reservas disponíveis para a viagem, enquanto os outros 4/5 viajam no

bagageiro, passando fome, frio e toda sorte de privações". As estatísticas

registram em dados recentes que a acumulação integrada hoje em nível

mundial, exige uma Hiroshima-Nagasaki por dia em vítimas humanas. Mas

26

Cf. BOFF, LEONARDO. Teologia da libertação e ecologia, in Concilium 5(1995)

pg. 113ss.

Page 31: Homo Serviens - Sou feliz, sirvo à vida! Prof. Jaci Rocha Gonçalves

32

às vezes o próprio fato de delegarmos tais horrores às estatísticas é mais um

sintoma de nossa fuga ao informacionismo.

Na verdade, o progresso é imenso, mas profundamente desumano. Ao

centro deste não estão a pessoa humana e os povos com suas necessidades e

as suas preferências, mas a mercadoria e o mercado aos quais tudo e todos

devem estar submissos. Neste contexto o ser mais ameaçado da criação não

são as baleias mas os pobres, condenados a morrer prematuramente.

E para dar espaço à realidade, Leonardo lembra que as estatísticas da

ONU mostram que neste nosso mundo quinze milhões de crianças morrem

antes de concluir o quinto dia de vida, por causa da fome ou de doenças

derivadas dela; 150 milhões são subnutridos, enquanto 800 milhões de

pessoas vivem padecendo fome crônica.27

Mas se estamos descobrindo ainda o ABC de nossa

corresponsabilidade, é sinal que muito preço deveremos pagar ainda para

uma relação de verdadeira amorização. Isto no tocante à política com a

natureza, imaginemos para pisar no concreto, a caminhada política das

relações humanas solidárias. A nível interno de Igreja há que se superar

muitas dicotomias em vista desta fraternidade cósmica.

4. A Igreja é essencialmente política:

Até quando o dualismo – profano/sacro?

Os que militam na área, mesmo se cristãos, sentem-se soltos e

desamparados no perigo. A propósito, cai bem o depoimento de Card.

Martini sobre a desproteção do político «vocacionado». «Recordo o que um

político africano, ouvinte do sínodo sobre os leigos, dizia: “Os cristãos

comprometidos na política estão colocados num campo impuro, em parte,

não todo - onde o exercício da força e da luta pelo poder são determinantes

e é uma pena constatar que não existem nem a nível nacional ou

continental, nem em escala internacional, lugares de recuperação espiritual,

fontes de revisão, abastecimento, «carrefours» de aprofundamento,

estruturas eficazes de apoio para o cristão que atua na área.»28

.

Lembro, a propósito desta verdade do parlamentar, uma experiência

de debate dos 11 candidatos à vereança do bairro de Capoeiras em

Florianópolis (SC), Brasil, para as eleições municipais de 1988, se não me

engano, e que registrou a presença de 200 participantes, numa comunidade

27

Cf. UNDP. Human Development Report 1990. Oxford - New York: Oxford

University Press, 1990. 28

Cf. MARTINI, CARLO MARIA. Viaggio nel vocabolario dell’etica. Casale

Monferrato: Centro Ambrosiano/Edizioni Piemme, 1993, p. 94

Page 32: Homo Serviens - Sou feliz, sirvo à vida! Prof. Jaci Rocha Gonçalves

33

de 11.000 eleitores. Aquelas ausências devidas, sem dúvidas, ao tabu de

que «política é coisa suja!« e que «igreja não se mistura com política». E

quanta crítica ao tipo de teologia que procurava refletir o ser cristão na

política, em vista da transformação da realidade a fim de que a vida de

todos fosse respeitada!

5. Quando teremos escolas de educação à política?

Não haverá muito «mea culpa» a pedir da parte das instituições

eclesiásticas, pelo medo das consequências do profetismo na vida política

das comunidades? Não há dúvida de que atuar neste âmbito é delicado,

perigoso e arriscado. Em primeiro lugar, porque mexe com os interesses de

grandes grupos econômicos, depois, porque mexe com o grupo oligárquico

de turno no poder, bem como, tem a cooperação do próprio eleitorado,

habituado a negociar o voto por favores individualistas em vez de valorizar

os interesses comunitários.

Por isso, na busca do novo modo de fazer política, o discernimento é

fundamental em quaisquer operações. Exemplifiquemos com o movimento

que ocorreu na Itália, conhecido como operação «mãos limpas»,

semelhante às CPIs do Brasil. ‘Trata-se da coragem de trabalhar no

profundo das causas e de educar a comunidade numa visão «de tempo

longo», e que exige muita «paciência e persistência históricas», como toda

boa pedagogia o deve exigir. É um trabalho de educação a ser feito

especialmente com as novas gerações, desde a catequese, superando todo

dualismo entre fé e vida, fé e realidade.

Assim aquele binômio prioritário «educar à comunhão e à

participação» apontado pelos bispos latino-americanos em Puebla de Los

Angeles, no México em 1978, junto à escolha da opção preferencial pelos

pobres, continuará vigendo para além dos dez anos previstos. É uma

educação permanente.

E as estatísticas sobre o nível de participação nos desafiam em todos

os sentidos. Há pouco, outra voz africana, desta vez a delegada do Burundi

à Conferência de Copenhague, organizada pela ONU sobre o

desenvolvimento social, em março de 1995 declarou, surpreendendo os

participantes que «90,3% dos deputados do mundo são homens e que 100

países ainda não tem mulheres no Parlamento.» E se no Brasil pensarmos

em termos étnicos de representação parlamentar, numa terra morena como

a nossa, a segunda nação negra do mundo, a primeira é a Nigéria, quanto

caminho ainda por fazer! São raríssimos ainda os negros na vida pública

civil e entre as autoridades eclesiais. Entre 283 bispos, três apenas são

negros.

Page 33: Homo Serviens - Sou feliz, sirvo à vida! Prof. Jaci Rocha Gonçalves

34

6. As autoridades de Igreja como educadoras de

educadores políticos No contexto de política onde a crise mundial tem pedido contínua e

urgente purificação, é muito difícil trabalhar com cabeça fria, sem ser

invadido pela emoção. Nas análises destas situações, o discernimento é

fundamental. Vale lembrar a postura pastoral de Martini, Cardeal de Milão,

portanto, em pleno centro de comando da operação «mãos limpas» na

Itália.

Usando a TV e os grandes meios de comunicação de massa, o cardeal

atuou com o grande público com informações essenciais de como atuar em

profundidade, contra as causas da corrupção. «Estas causas estruturais,

supondo que já estejam identificadas, são comportamentos de uma

sociedade, hábitos de grupo, ou são por assim dizer institucionais, quero

dizer, codificadas pelos regulamentos e por leis que produzem, como efeito

colateral, comportamentos reprováveis e, porém, de fato, inevitáveis para

obter determinados fins políticos?

No primeiro caso basta recorrer à moral, mas no segundo, o

problema se torna problema de todos, e é necessário estudá-lo atentamente

e profundamente para desamarrar aqueles comportamentos que, não

obstante a boa vontade de alguns - poucos ou muitos - terminam por

obrigar quase a utilizar meios ilícitos.»

Ampliando, então, sua análise numa visão mundial da política, Martini

diz: «Em não poucas situações políticas de nosso planeta, surge a suspeita

de que a multiplicação de casos de transgressões no âmbito administrativo

e político não seja devido simplesmente ao crescimento de degradação de

indivíduos singulares, mas a fatos mais estruturais. E isto influencia nas

relações de confiança global entre os cidadãos e a classe política,

portanto, sobre o funcionamento correto do próprio sistema constitucional

no seu conjunto. Então o sistema deve tornar-se público e não se pode

permitir que alguém recue, ou quem se desresponsabilize.»29

Embora a irresponsabilidade comece pelos grandes poderes da terra

corrompendo seus próprios compromissos como ocorreu em Estocolmo. Na

palavra do Diretor Geral da UNESCO, Frederico Mayor Zaragoza, «os

países ricos estão dando um espetáculo lamentável com seu

comportamento junto dos países pobres nesta conferência». E se tratava

exatamente de dois posicionamentos: o primeiro diante do perdão ou

abaixamento da dívida externa dos países mais pobres. Do grupo dos sete

mais ricos, nenhum aceitou. E o segundo, quanto ao pagamento de suas

29

Idem, p. 95ss.

Page 34: Homo Serviens - Sou feliz, sirvo à vida! Prof. Jaci Rocha Gonçalves

35

dívidas com o desenvolvimento assumidas pela oferta de 0,7% do Produto

interno bruto, todos estavam inadimplentes.30

A opinião de Santa Catarina

Há ainda sinais de esperança?

Houve outras épocas em que a interferência do feminino trouxe muitas

luzes neste campo e eram tempos de segregação ainda mais violentas que

hoje sobre o espaço-mulher. Nos tempos de Santa Catarina, não aquela que

é padroeira do meu estado natal que dizem ser Santa Catarina de

Alexandria, esta era de Siena.

Considerada doutora da Igreja, nos tempos de grave crise social e

política ela saiu a campo e foi aconselhar o governo da Igreja no qual se

misturavam os poderes temporal e religioso. Ela viveu de 1347 a 1380 e

desenvolveu intensa atividade de pacificação entre estados, cidades e

vilarejos, lutando pela unidade da igreja. Conservam-se 381 cartas ditadas

aos seus alunos e muitas destas tratam de argumentos políticos. Ela insiste

em dois princípios essenciais para viver uma santidade política.

Numa de suas cartas, Catarina descreve assim aos governantes da

cidade de Siena:

“É mau apoderar-se de coisa emprestada como é o poder

público, se primeiro não se governa e se domina a si mesmo.

Poder emprestado é o poder de governo das cidades, dos bens

temporais que nos são emprestados e aos outros homens do

mundo, e, que nos são emprestadas por tempo determinado,

segundo o agrado da bondade divina e de acordo com os modos

e costumes de cada região.

De qualquer maneira, é sempre um poder emprestado.

Quem o usa deverá possuí-lo com santo temor, com amor

ordenado e não desordenado, como coisa emprestada e não

própria.”31

30

Cf. In Religión y Cultura, 192 (1995), La cumbre de Copenhague, pp. 135-145. 31

MARTINI, op. cit. p. 117ss. Toda a longa explicação é uma jóia rara para o nosso

momento histórico.

Page 35: Homo Serviens - Sou feliz, sirvo à vida! Prof. Jaci Rocha Gonçalves

36

Capítulo cinco

Direito à ética: Sem

corrupção, mas com

ternura e graça

“A ética é a obediência ao não

obrigatório.”

1. O que é Ética?

Em nosso percurso, de olho nas realidades essenciais, vamos parar na

estação dos valores. Na verdade, já os temos mencionado ao longo deste

trabalho, visando preparar a casa para a festa do 3o. Milênio e o resgate dos

direitos humanos. Começamos observando que hoje é muito comum falar

de ética na economia, na política, na vida pública.

Os historiadores dizem que quanto mais uma sociedade está carente de

moralidade pública, mais se fala. Eles dão razão à sabedoria do povo

quando diz que a boca fala do que o coração está cheio. E mais, os estudos

dos historiadores mostram que as grandes épocas de reflexão sobre a ética

acontecem nos momentos de transição da humanidade e é quando se

verificam também os grandes episódios de corrupção.

Mas o que é ética? Primeiro olhemos a origem da palavra que também

vem dos gregos, quer dizer «aquilo que se faz costumeiramente, como

rotina”. «Ethos» em grego significa, sobretudo o caráter, a maneira de ser,

o bom comportamento de uma sociedade.

Para os gregos, porém, trata-se de uma sociedade bem ordenada, de

uma sociedade boa. Então, ética indica os comportamentos que uma

sociedade, na sua sabedoria e experiência, tem como positivos para a paz e

a ordem na convivência social, para o progresso dos cidadãos e o aumento

da qualidade de vida para todos. Tais comportamentos são «éticos», quer

dizer, eticamente honestos.

É ético, isto é, inegociável

Há também um outro elemento. É quando usamos o termo ético no

sentido absoluto: o que é bom em si, aquilo que evitaremos a todo o custo,

e em qualquer caso sem que nem mesmo pensemos em vantagens pessoais

Page 36: Homo Serviens - Sou feliz, sirvo à vida! Prof. Jaci Rocha Gonçalves

37

ou sociais, algo que é totalmente digno do ser humano, algo que é

inegociável, sobre o qual não se discute, nem se transgride.

Há, enfim, um quarto significado que é a ética como ciência de

reflexão filosófica e que trata do comportamento humano e o seu sentido

mais profundo. Não é motivo de orgulho e de alegria que os seres humanos

tenham chegado a intuir a existência de comportamentos que são colocados

acima do prazer, do ganho, do lucro? Comportamentos que não tem preço,

porque estão acima de qualquer preço. Por isso o tema da ética deverá

sempre recuperar o sentido do otimismo, da esperança.

2. Mesmo na crise da ética, a esperança cristã

repesca a alegria

Às vezes, associamos o tema da ética, do comportamento, da moral,

com homens e mulheres, denunciadores severos, inflexíveis, sisudos. Creio

muito enriquecedor partilhar nesta pesquisa o depoimento de Martini,

Arcebispo de Milão, feito via conversa televisiva, como já dissemos; nas

entrevistas ele sugeria, que fôssemos capazes de conversar sobre moral

com seriedade, mas mantendo o caráter de encorajamento, animação e

conforto do povo.

Ele assim explicava: «a grande palavra da ética é: tu podes muito

mais, é possível fazer melhor, és chamado a algo muito mais lindo na vida;

é possível ser honestos e é uma aventura extraordinária do espírito...

Exatamente, de tal espírito de otimismo temos necessidade para não

perdermo-nos em lamentações estéreis e obedecer ao mandamento

fundamental da ética: procura ser mais autenticamente tu mesmo, ser mais

verdadeiro, mais livre, mais responsável.»32

Melhor um homem morto do que uma obra de arte destruída! (?)

E para ir mais fundo nas explicações aos telespectadores sobre esta

verdadeira característica da ética, da moral, de tratar daquelas ações que

são absolutamente dignas ou indignas do ser humano, contou-lhes que um

colecionador de obras de arte, no início da segunda guerra mundial, diante

do perigo dos bombardeios e da possível destruição de obras artísticas,

escrevera este princípio: melhor um homem morto do que uma obra de arte

destruída!

Este é um exemplo de uma sentença moral, ética, de um modo de

pensar que nenhum homem e mulher bons da cabeça poderiam jamais

aprovar. É claro, todos apreciamos obras de arte, porque são tesouros da

humanidade, mas a humanidade é bem maior do que seus tesouros. Assim,

32

Martini, op. cit. p.16.

Page 37: Homo Serviens - Sou feliz, sirvo à vida! Prof. Jaci Rocha Gonçalves

38

toda doutrina ética ensina a refutar tais aberrações que são afins com todo

tipo de preconceito racial, ou outros, contrários a todo sentimento de

humanidade.

Revendo e aprofundando estes valores e referindo-os com o que vimos

acima sobre o mundo da filosofia, do saber, da economia, dos meios de

comunicação, da política e suas leis, já podemos imaginar o quanto tem a

ver conosco. Com todo o ser humano, sobretudo se foi evangelizado e com

o momento histórico a ser transformado, e, o que de ético deve ser

preservado a qualquer preço.

Antes, porém, de encaminhar o último capítulo desta nossa viagem em

busca de perspectiva de novidade cristã na crise da mundialidade atual,

precisamos concluir o percurso entre as ciências-chaves das comunidades,

indagando sobre a ciência que caminha junto da moral: a ciência dos juízes

e advogados, o Direito, a legalidade.

3. Uma nova legalidade?

Podemos compreender melhor o que é Direito em relação à ética. Pois

bem, se esta se interessa pelos comportamentos de valores humanos, o

Direito colhe e se interessa pelo conjunto de normas positivas que as

sociedades se dão, para responder a esses imperativos morais profundos e

traduzi-los na prática do dia-a-dia.

Estas leis só terão valor se se mantiverem fiéis àqueles princípios

respeitados por todos. Sobre o respeito com o próximo, por exemplo, o

Direito diz apenas: respeita o outro, também o estranho, promove o bem

comum, ou, ao menos, não faças o mal. A moral, a ética, em vez, vai mais

longe e sugere: seja próximo dele, considera o outro como membro de tua

família, o mais possível!

A lei do bom samaritano

O primeiro preceito da moral está indicado na parábola do Bom

Samaritano que desce do cavalo para socorrer o ferido de uma outra etnia,

que encontra caído na estrada, e providencia tudo para ele. A moral, pede

que se faça aos outros o que queríamos que eles fizessem para nós.

Direito e moral não se chocam, mas se unem para criar uma sociedade

não só vivível mas boa e fraterna. Este é o ideal de uma comunidade à

medida da pessoa humana, é o ideal que nasce do credo religioso com forte

conteúdo ético como é próprio da tradição hebraica e cristã.

Muitos chamam a atenção para a urgência de instaurar uma nova

cultura da legalidade, de caráter cultural para além do caráter legislativo.

Na crise da sociedade italiana o próprio santo padre João Paulo II insiste

num compromisso amplo em vista de uma grande recuperação da

Page 38: Homo Serviens - Sou feliz, sirvo à vida! Prof. Jaci Rocha Gonçalves

39

legalidade, como primeiro remédio para resgatar o país da situação na qual

se encontra: «não há ninguém que não veja a urgência de recuperação de

uma moralidade pessoal e social, de legalidade. Sim, é urgente a

recuperação da legalidade.»

Leis ou “lobbies” legalizados?

Junto a um eclipse da legalidade (e quase como sua conseqüência)

devemos observar também um afastamento cada vez maior de uma ação

política autêntica. É sinal de sua doença quando passa a legislar e ser

manipulada de modo redutivo diante do tumultuado desenvolvimento da

subjetividade privada e pública. É preciso sondar, se está favorecendo o

aparecimento de um neofeudalismo em cujas corporações e lobbies se tem

a tendência a ditar leis a serviço de privilégios.

Para que aconteça um justo e útil desenvolvimento de autonomia dos

indivíduos e dos grupos, é necessário que exista um forte e unitário quadro

de referências que garanta regras de comportamento comum. As leis

nascerão assim de uma síntese superior que reúna os interesses comuns, em

vez de tornar-se o fruto de um contrato com determinadas partes da

sociedade que, sendo mais fortes, tem o poder de sentar-se, à mesa de

negociações, com o direito de exercitar o poder de veto.

Evitar-se-á deste modo também aquelas belíssimas «leis-manifesto»

que, porém, não possuem estrutura e recursos adequados, e que afundam

miseravelmente no primeiro impacto com a realidade.

Mas uma verdadeira, consciente e nova cultura da legalidade exige

algo mais profundo e seria importante, por isso, voltar-se para a referência

rica do vocabulário bíblico, quando queremos aprofundar a noção de lei.

Pintura de Giuseppe Pollarolo. 2000 anos de Maria.

Otimismo ético de Maria, mãe de Jesus de Nazaré.

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4. De volta às fontes bíblicas, lições jurídicas sempre novas

As palavras usadas a este propósito na Escritura são muitas, como o

demonstra a riqueza do salmo 119 todo tecido de termos referentes à lei;

são termos que significam, vez por vez, instrução social-religiosa-cultural-

política de origem divina, testemunhos passados fielmente no que respeita

o ethos (jeito próprio de ser) de uma comunidade. A lei se torna assim, o

caminho a ser seguido com rumo certo à felicidade e à vida.33

A cultura da lei, com raízes no povo de Deus da bíblia, não se apoia

simplesmente em leis externas, mas na realidade dialogal da Aliança, isto é,

naquela relação privilegiada que se instaura entre Deus e seu povo e entre

os membros do povo. A experiência do amor de Deus, reconhecida ao

longo da história dos antepassados, a sua grande ação providencial,

fortalece e desenvolve a consciência de um amor divino e de uma missão

religiosa, social e política, das quais as leis são consequência e condição.

Leis que representem ideais coletivos

Leis, então, a serviço da vida, para o bem, para o futuro, para o

progresso do povo. E não leis que possam tornar-se permissão à morte,

como todas as aberrações contra a vida, de ontem e de hoje, cujo

arrependimento e conversão, se faz proposta corajosa pelo Papa, para a

festa do 3º milênio.

Uma cultura da legalidade deve, portanto, plantar suas raízes num

profundo ethos religioso, social e cultural. Deve distinguir-se do legalismo,

favorecendo situações nas quais a lei seja respeitada não só pelo seu valor

formal ou pelas sanções que comporta, mas pelo seu valor e seu significado

intrínseco, pela sua capacidade de representar os ideais e os fins de uma

coletividade.

Com a graça do fôlego dos pobres

É difícil realizar o “novo” tão suspirado quando viajamos pelos

setores complexos e estruturais com tantos desafios para as comunidades

nesta nossa época. Às vezes nos escondemos, noutras nos cansamos. Mas

ninguém nasce fora de época. Cada um vem “sob medida” para fazer a

história. E a tarefa de viver com amor, lei maior, exige sempre uma graça

especial.

33

Cf. Análise por uma nova legalidade in Martini, op. cit. p. 104ss.

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41

E aqui podemos lembrar o samba que diz: “viver e não

ter a vergonha de ser feliz, cantar e cantar a beleza de ser

um eterno aprendiz; ai meu Deus! Eu sei que a vida devia

ser bem melhor e será, mas isto não impede que eu repita: é

bonita, é bonita, é bonita!”34

E esta lição podemos aprendê-la do mundo dos pobres. Talvez o de

que necessitamos seja a graça do fôlego dos pobres, ou antes, dos

miseráveis que nos evangelizam as possibilidades e as esperanças porque

às vezes só dependem de um financiamento. Deus. «Deus lhes pague!» São

os verdadeiros «anawin», os «pobres de Javé». Só Ele é seu patrocinador.

Quem conhece a força dos pobres, a sua impossível alegria de barraco,

a criativa ginga do samba que nasce no morro após 350 anos de escravidão,

só seguirá uma palavra de ordem: o mínimo a fazer é mergulhar no rio da

história e nadar contra a correnteza. É preciso perseverar no caminho. Hoje

temos necessidade de personalidades fortes e honestas, em cada campo da

vida social, econômica e política com o jeito ousado e determinado do Bom

Samaritano.

É preciso perseverar no caminho. Hoje temos necessidade de

personalidades fortes e honestas, em cada campo da vida social,

econômica, política e profissional, com o jeito ousado e determinado do

Bom Samaritano (Lc 10, 29-37), aquele que seguiu pelo caminho do não

obrigatório.

ESPINHEIRA

Êta espinheira danada que o pobre atravessa prá sobreviver,

vive com as cargas nas costas e as dores que sente não pode dizer,

sonha com as belas promessas de gente importante que tem ao redor,

quando entrar o fulano e sair o sicrano será bem melhor.

Mas entra ano e sai ano, e o tal fulano ainda é pior,

este é o meu cotidiano, mas eu não me dano, pois Deus é maior.

O mundo não acaba aqui não, não, o mundo ainda está de pé,

enquanto Deus me der a vida levarei comigo esperança e fé (bis).

Êta que gente danada que esquece de vez a palavra cristã,

Ah! Eu queria só ver se Deus se zangasse e voltasse amanhã,

Seria um “Deus nos acuda”, um monte de Judas querendo perdão,

com tanta gente graúda implorando ajuda com a bíblia na mão.

Mas a esperança é miúda, e a coisa não muda, não tem solução,

nem tudo o que a gente estuda, se agarra e se gruda arrebenta no chão.

34

Cf. Música “O que é, o que é?”, do cantor Gonzaguinha.

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42

Conclusão

Direito humano e divino:

pilotar a crise

Para concluir, é bom lembrar que a viagem no trem da história

prossegue em cada vida, por mais anônima que pareça, por mais distante

que esteja dos centros urbanos coloridos, dos cones de luz, das bolsas de

“valores?”. Queiramos ou não é em cada coração que se faz aquela história

que conta, cada ser humano escreve a história de seu próprio coração. Em

cada coração pulsa o batimento pela eternidade da vida. Se alguém não o

sabe, pelo menos sente que não somos daqui, nos surpreendemos aqui.

Somos uma espécie de embaixadores do infinito.

A própria existência das religiões testemunha esta sede de

imortalidade humana. Os valores existentes em cada cultura mostram que

Deus chegou antes de nós. “Escreverei minha aliança nos vossos corações”,

repetem os profetas em nome de Deus, como Ezequiel desde o Antigo

Testamento. Todos se esforçam na busca de Deus. E aqui está o ponto

essencial pelo qual o cristianismo se diferencia das outras religiões35

. Não

conta como ponto de partida a nossa busca, mas a iniciativa obstinada de

Deus em seu amor por nós. Deus se arrisca a entrar em crise quando seu

Filho Querido, Jesus de Nazaré, se encarna no meio de nós e se torna

semelhante a nós em tudo, menos no egoísmo, no pecado.

Então, qual pode ser a “kusform”36

da novidade cristã?

Antes de tudo, o evangelho é novidade permanente. Esta revelação

está na própria raiz grega da palavra: provém de “En angélion” que

significa “publicar a boa notícia”. Portanto, se faltar novidade, o anúncio se

torna imediatamente estéril. E o é também nas sociedades e comunidades

antigas ou jovens nas quais já foi anunciado o Evangelho, e que

cristalizaram formas anti-evangélicas de convivência política, econômica,

religiosa e jurídica, como vimos ao longo desta rápida viagem. E não se 35

Cf. João Paulo II, in TMA, nº. 6. 36

Nesta viagem fizemos uma tentativa de caminhar na linha de uma “Kusform”, isto é,

uma “fórmula breve”, centrando o essencial cristão. Este foi o fio condutor teológico

deste trabalho. Cf. RHANER, Karl. “Per una “Formula Breve” della fede cristiana” in

Nuovi Saggi, III. Roma: Ed. Paulinas 1969.

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43

pode esquecer de frisar que estas sociedades secularizadas tem carência

urgente desta novidade.

E qual pode ser esta “fórmula breve” que pode repescar as atenções e

a paixão do homem da era da informática e do novo deus “mercado”? A

iniciativa da pergunta, é preciso ressaltar, é toda da parte de Deus. Mas

quem é Deus e o que tem feito por nós?

Na parte da ética, da moral, não é que há muita novidade, outras

religiões, tem até melhores, embora o cristianismo tenha “algo mais”. Mas

a raiz da novidade cristã, segundo os evangelhos, vai na direção da

revelação da identidade de Deus e de seu amor por nós. Uma novidade até

escandalosa do evangelho: não é que o homem deva morrer por Deus, mas

em vez, revela que Deus morreu pelo homem. Como vimos em nosso

itinerário, é uma novidade “descendente” de Deus em Cristo quando diz,

“como eu vos amei, amai-vos!”. O importante é este “como” vamos amar a

alteridade, é aí, no exercício do “Da-sein” que a Trindade servidora deseja

nossa resposta, e espera que vivamos na sua lógica diferente, a do amor que

perdoa.

Não basta dizer a uma pessoa: Deus te ama!

No evento Jesus, ao contatar sua história, descobrimos que Deus tem a

iniciativa de revelar os traços essenciais de sua identidade. Por isso não

basta dizer a uma pessoa: Deus te ama! Isto não é novidade. Devemos

contar o que fez o Deus que a ama: libertou do Egito... se fez homem e

morreu por nós. Como o vimos no hino cristológico que abriu este nosso

trabalho.

Seria mais fácil dizer: temos um Deus igual, nós cremos que Ele se

revelou e vocês não, e está tudo bem. Quando nós criamos a imagem de

Deus, seguimos o caminho mais fácil. Porém, não fomos honestos com

Jesus Cristo. Em Jesus é revelado o ponto nevrálgico da sua identidade,

como já vimos nas aplicações da fé à vida ao longo dos capítulos, e que o

mostra como o dom de si, uma pessoa a serviço.

Nós desconversamos dizendo que Ele apareceu assim não porque

Deus tem por qualidade especial o serviço, mas porque Jesus devia se

mostrar humilde, reparar os pecados, dar exemplo. Para nós a identidade de

Deus está ligada a potência, não a serviço. Lucas diz que quando o Senhor

glorioso retornar e encontrar os seus servos vigilantes, de plantão, os fará

sentar à mesa e passará servindo-os. O servir, portanto, não é só “um

perfil” do Jesus terreno, mas “algo que identifica” toda a sua pessoa: Deus

é assim.

Page 43: Homo Serviens - Sou feliz, sirvo à vida! Prof. Jaci Rocha Gonçalves

44

A sua verdadeira identidade é colocar-se sob os outros, antes de

colocar-se acima. Isto revira toda a nossa idéia de Deus. Mas certas idéias

que temos não têm nada de original, como, por exemplo, que Deus é

“onipotente”. É lógico e todo mundo já o sabe. O ponto novo e provocador

da revelação evangélica é que Deus é “dom de si”, é serviço de criação (o

Pai), é serviço de redenção (o Filho), é serviço de santificação (o Espírito

Santo). Todos trabalham em conjunto. Esta modalidade divina celestial, se

torna também na terra a identidade de Deus. Por isso, no meio de nós, Ele é

um Deus em crise. Isso é original.

Deus em crise?

Já abordamos várias vezes o termo “crise”. Vamos buscar na raiz da

palavra o seu significado. Vem do grego também, como a maioria de nosso

vocabulário, do verbo kríno: passar no crisol, ou no crivo. É desta raiz que

temos em português o verbo acrisolar, isto é, passar no crisol, ou no crivo,

na purificação. O acrisolamento é o processo químico de transformação de

um metal bruto em metal trabalhado, precioso.

Só nesta pequena verificação de raiz filológica já dá para sentir a

riqueza da palavra, não é mesmo? Não é difícil entender que o homem,

qual pérola preciosa, é pela sua própria natureza um ser acrisolável, ser de

possibilidades, ser que cresce. Assim, desde que nascemos entramos em

“crise”. É no útero da “crise” que vamos nos revelando.

Por isso, ninguém é o “fim da picada,” um ser falido. Crise é sinal de

juventude, de que estamos vivos e podemos desafiar os desafios. Na

encarnação de Jesus, Deus embarca no trem da história humana, arriscando

tudo na revelação do amor do Pai, sem medo da crise, de sujar as mãos para

lavar-nos do pecado, do egoísmo, em todas as suas formas.

Jesus: Deus é “Homo serviens”

Então, Jesus não faz teatro e assume o verbo servir como programa de

seu jeito de ser. Já vimos que a sua encarnação revela sua identidade de

“homo serviens”, pessoa a serviço. E começa cedo. Logo que o anjo

Gabriel deixou Maria, desde antes de nascer, já como feto, conjugou o

verbo servir tendo por professora a sua Mãe. Pensemos nas caminhadas

difíceis de Maria nos primeiros meses de gravidez quando foi ajudar sua

velha prima Isabel, a mãe de João Batista. E assim pela vida afora até à

cruz.

O Filho de Deus realizou até o fim o que o ecossistema, o cosmos, as

épocas esperam ver brotar em nós, gemendo como mulher em dores de

Page 44: Homo Serviens - Sou feliz, sirvo à vida! Prof. Jaci Rocha Gonçalves

45

parto: o “homo serviens”! Bem do jeito como as primeiras comunidades

cristãs rezavam e certamente cantavam no seu hino cristológico cuja

segunda parte conservada na carta da alegria aos filipenses conclui esta

nossa viagem refletindo esta novidade cristã de ser servidores alegres

(ludens) para um mundo em crise:

«E é por isso que Deus o sobreexaltou grandemente

e o agraciou com o Nome

que está acima de todo o nome.

Para que ao nome de Jesus,

se dobre todo joelho dos seres celestes

dos terrestres e dos que vivem sob a terra,

e, para a glória de Deus, o Pai,

toda língua confesse:

Jesus é o Senhor.»37

37

Cf. Fil. 2, 9-11

Page 45: Homo Serviens - Sou feliz, sirvo à vida! Prof. Jaci Rocha Gonçalves

46

GABRIEL:

«SER LIVRE É SER COMO PÁSSARO, MESMO PRESO NA GAIOLA, ACHA

RAZÕES PARA CANTAR».

Era nos idos de 1980. Na cadeia de menores,

construída para 120, se exprimiam 280 meninos e

adolescentes, dos 10 aos 18 anos de idade. Chamava-se

Queiroz Filho, em Piraquara – PR. Aceitei, após tantas

insistências do Major, ajudar a transformar a cadeia em

escola. Foram cinco anos de lutas, de organização e

trabalho árduo para animar equipes externas a fim de

conseguir os objetivos. Após quase três anos os frutos

começaram a despontar: equipe de técnicos e

especialistas consolidada, oficinas, esporte, catequese,

greves de fome para a mudança da comida que mais

parecia lavagem, etc. Gabriel, 17 anos. Sem família. Teve

muito crescimento. Foi batizado tendo como padrinhos

Ariosvaldo e Leoni. Fizemos vários retiros, dormindo na

prisão. Já tínhamos uma casa de apoio para os que saíam

e eram filhos da rua. Gabriel apresentou um dia o seu

desenho sobre a liberdade: uma gaiola com um pássaro

preso e a frase - «ser livre é ser como pássaro, mesmo

preso na gaiola acha razões para cantar».

Reconquistada a liberdade, sendo já um animador de

outros jovens acompanhando-me nas andanças de

apostolado, foi morar na casa de seus padrinhos. Mas não

conseguiu. Nunca tinha convivido numa casa de família.

Sentia-se perdido. E sumiu. Após 3 ou 4 anos, aparece

uma carta de Gabriel: «estou bem. Botei prá trabalhar e

me casei. Escrevo prá pedir desculpas pela minha fuga.

Eu tinha vergonha de viver numa família, eu ficava todo

sem jeito. Peço mandar endereço de meus padrinhos.

Vou escrever para eles. Obrigado de coração. Aqui nós

vamos sempre a missa. Estou feliz! Seja sempre muito

feliz.»

Page 46: Homo Serviens - Sou feliz, sirvo à vida! Prof. Jaci Rocha Gonçalves

47

Referências

1. Autores

Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Ed. Paulinas, 1985.

BOFF, L. Teologia da libertação e ecologia, in Concilium 5(1995).

BRAUDEL, FERNANDO. La méditerranée et le monde méditerranée à

lépoque de Philippe II. II Vol. Paris: Arnaud Colin, 1966.

FROMM, ERICH. A revolução da Esperança. Rio de Janeiro: Zahar, 1984.

FORTE , BRUNO. L’Essenciale è vivere la carità, in Jesus 11 (1995).

HINKELAMERT, FRANZ. La irracionalidad de la racionalidad dominante.

São José da Costa Rica: Ed. DEI, 1994.

JOÃO PAULO II. Carta Apostolica Tertio Millenio Adveniente. Roma:

Tipografia Vaticana, 1994.

MARTINI, CARLO MARIA. Viaggio nel vocabolario dell’etica. Casale

Monferrato: Centro Ambrosiano/Edizioni Piemme, 1993.

RAMONET, IGNACIO. Il pensiero unico, in Misssione Oggi, 10 (1995).

RHANER, Karl. “Per una “Formula Breve” della fede cristiana”. Nuovi Saggi,

III. Roma: Ed. Paulinas, 1969.

ROUSSEAU, J.J. Contrato social. Paris: Aubier-Montaigne, 1976.

SANTANA, JÚLIO. L’attuale sistema socio-economico quale causa de

squilibrio ecologico e della povertà, in Concilium 5 (1995).

UNDP. Human Development Report 1990. Oxford-New York: Oxford

University Press, 1990.

VELÁSQUEZ, J.E. Espiritualidade da Terra, Concilium 5 (1995).

WALLERTEIN, IMMANUEL. The modern World - Sistem II. New York –

London: Academic Press, 1980.

2. Revistas e Outros

Arquivo CCDO-informatizado, Orionópolis Catarinense, São José-SC, Brasil.

Cambio 16, Madri, 5.12.1994.

Concilium 5 (1995)

CTM MAG Servizi: Centro Ricerca - Formazione - Comunicazione, Piazzetta

Forzaté, 2 - 35 137 Padova - Italia. Fax 049/8755714 - e-mail: [email protected]

Jesus Ano XV, 8 (1993)

Jornal A Folha de São Paulo, 24.12.1955.

Missione Oggi

Perspectiva Teológica, 27 (1995) 149-154

Religión y Cultura, 192 (1995)

Reuter-Le Monde, Internacional nº. 66, 17.2.95.

* 33 anos de história pastoral no Sul do mundo.

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO ................................................................................................. 3

Direito humano e divino: tornar-se Homo serviens ...................................... 3

CAPÍTULO UM .......................................................................................... 5

DIREITO À DESCULPA ....................................................................................... 5

1. Na sabedoria dos simples, o perdão é a resposta ...................................... 5

2. Na agenda dos sábios, também não há festa sem perdão .......................... 7

3. A ciência filosófica e a crise do essencial:

os sábios encontram os simples .............................................................. 9

- O amor e a filosofia ............................................................................ 9

- O amor e experiência histórica .......................................................... 9

- O amor e o etnocentrismo cultural ................................................... 10

CAPÍTULO DOIS ..................................................................................... 12

DIREITO DE SABER PARA SERVIR À VIDA .......................................................... 12

1. Lauro e Irene ........................................................................................... 12

2. Na intimidade da mesa: o máximo da novidade ..................................... 13

Eucaristia: a mais revolucionária lição de economia ........................ 13

Novidade cristã num advérbio de modo: como .................................. 13

3. Sabedoria de quem sabe: saber para servir à vida ................................... 14

«Estude para vencer na vida!?!?» ...................................................... 15

O saber para matar: alguns números da cultura da morte ................ 15

O saber ópio do povo: anestesiados pelo Pensamento Único ............ 16

O milagre da mídia fabricando enlatados .......................................... 18

Na poltrona da sala, no quarto ou na mesa do jantar:

com sabor de impotência .................................................................... 20

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49

CAPÍTULO TRÊS: ................................................................................... 21

DIREITO À ECONOMIA DE RECIPROCIDADE ...................................................... 21

1. Opção preferencial pelos pobres e marginalizados ................................ 21

2. Uma nova ordem econômica mundial? ................................................... 22

Apartheid Social .................................................................................. 22

O «espírito faustoso» da «cultura universal» ..................................... 23

Zona-franca: paraíso fiscal com impunidade ..................................... 24

Esperança: a solidariedade competente ............................................. 24

“A irracionalidade da racionalidade sistêmica” ............................... 25

CAPÍTULO QUATRO ............................................................................. 27

POLÍTICA É COISA SUJA? ................................................................................ 27

Sobre o nosso direito de interferência política

1. Jesus e a política ...................................................................................... 27

Aos 12 anos ......................................................................................... 27

Aos 30 anos ......................................................................................... 27

2. O descrédito de nós mesmos

no descrédito da Ciência Política .......................................................... 28

3. Na crise dos paradigmas de autoridade: a orfandade planetária? ........... 29

Um novo jeito de governar: “de satanás a anjos da guarda” ........... 30

4. A Igreja é essencialmente política. Até quando o dualismo -

profano/sacro? ....................................................................................... 31

5. Quando teremos escolas de educação à política?.................................... 32

6. As autoridades de Igreja como educadores políticos .............................. 33

A opinião de Santa Catarina ............................................................... 34

CAPÍTULO CINCO .................................................................................. 35

DIREITO À ÉTICA: SEM CORRUPÇÃO, MAS COM TERNURA E GRAÇA .................... 35

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50

1.O que é Ética? .......................................................................................... 35

É ético, isto é, inegociável .................................................................. 35

2. Mesmo na crise da ética,

a esperança cristã repesca a alegria ....................................................... 36

Melhor um homem morto do que uma obra de arte destruída! (?) .... 36

3.Uma nova legalidade? ............................................................................. 37

A lei do bom samaritano ..................................................................... 37

Leis ou “lobbies” legalizados? ........................................................... 38

4. De volta às fontes bíblicas, lições jurídicas sempre novas ..................... 39

Leis que representem ideais coletivos ................................................. 39

Com a graça do fôlego dos pobres ..................................................... 39

CONCLUSÃO ................................................................................................ 41

Direito Humano e Divino: Pilotar a crise .................................................... 41

Então, qual pode ser a “kusform” da novidade cristã? ..................... 41

Não basta dizer a uma pessoa: Deus te ama! ..................................... 42

Deus em crise? ............................................................................................ 43

Jesus: Deus é “Homo serviens” ................................................................. 43

Gabriel: «ser livre é ser como pássaro,

mesmo preso na gaiola acha razões para cantar». .................................... 45

REFERÊNCIAS ............................................................................................... 46

ÍNDICE..........................................................................................................47

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Pintura de Giuseppe Pollarolo, orionta nos 2000 anos de Maria.

Otimismo ético de Maria, mãe de Jesus de Nazaré.

PARTILHO OS DIREITOS PATRIMONIAIS COM AS COMUNIDADES,

ACOMPANHADAS PELO PROGRAMA REVITALIZANDO CULTURAS NA

UNISUL.

PARTILHO TAMBÉM COM OS MORADORES DA ORIONÓPOLIS CATARINENSE

EM SEUS 26 ANOS DE EXISTÊNCIA, DESDE 1987, EM CAPOEIRAS –

FLORIANÓPOLIS (SC).