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Os jesuitas. A companhia de Jesus e a Traição à Igreja Católica. Malachi Martin

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Como os jesuítas de hoje estão usando o poder

espiritual conquistado através dos séculos para

tentar influir nos rumos da política internacional,

De aliados do Papa e seus intransigentes de-

fensores, os jesuítas passaram de algum tempo

para cá a ser os seus mais ativos opositores.

Malachi Martin, teólogo eminente e antigo je-

suíta, revela como os atuais dirigentes da Com-

panhia de Jesus a transformaram na maior

inimiga do capitalismo democrático do Mundo

Ocidental

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OS JESUÍTAS

Malachi Martin, destacado teólogo e especialista em Igreja Cató -lica, ex-jesuíta e professor do Pontifício Instituto Bíblico do Vaticano, ousou assestar um holofote nos véus dos segredos que encobrem as a ti-vidades da mundialmente poderosa Igreja Católica Romana. Neste uni -verso em que a fé e o poder entram em choque, a Sociedade de Jesus tem sido, talvez, a mais lendária e fabulosa, a mais admirada e inju riada na prática de ambos. De seu início numa época revolucionária, e ao longo dos quatro séculos e meio de sua tumultuada existência, os jesuítas têm sido ao mesmo tempo um enigma e um modelo para o resto do mundo. Amigos e inimigos, católicos e não-católicos, todos têm ten-tado resolver o poder e o segredo desses homens, treinados e devotados do ponto de vista religioso que também são gigantes em todas as atividades seculares da humanidade. Nas ciências e nas artes, nas le tras, na exploração e no ensino — para não falar na política mundial —, os jesuítas sempre visaram ao melhor. E foram.

No entanto, o aspecto mais desconcertante da Sociedade de Je sus, e o que mais enfurecia seus inimigos, era que, apesar de todo o poder, os jesuítas eram gigantes com uma finalidade: a defesa e a pro pagação da autoridade e do ensinamento papais. Fiéis a um ideal espiritual, e para “A Maior Glória de Deus”, eram os defensores por excelência dos

interesses vitais da Igreja, a Força Especial do vigário terreno de Cristo. Não eram apenas “Homens do Papa”. Eram os Homens do Papa. Até agora.

Em Os Jesuítas, Malachi Martin torna pública, pela primeira vez, a pungente história dos bastidores de homens e seus motivos e dos meios por eles usados, por trás da camuflagem da grandeza jesuíta no pas sado, para construir a “nova” Sociedade de Jesus no âmbito mundial. O leitor conhecerá os líderes e os joguetes; o sangue e o pathos-, a política, as traições e as humilhações; as campanhas de vendas enlatadas que se estendem de Roma e de Washington para o mundo e que mas caram uma missão estranha e destruidora.

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MALACHI MARTIN

OS JESUÍTAS

Tradução de LUIZ CARLOS DO NASCIMENTO SILVA

EDITORA RECORD - 4 -

Título original norte -americano

THE JESUITS

Copyright da edição original cm língua inglesa © 1987 by Malachi Martin Copyright

desta tradução - 1989 by Distribuidora Record S.A.

Todos os direitos reservados inclusive o direito de reprodução total ou parcial sob

qualquer forma Esta edição é publicada mediante acordo com o editor original, Simon

& Schuster,

New York.

O contrato celebrado com o editor original proíbe a exportação deste livro para

Portugal e outros países de língua portuguesa.

Direitos de publicação exclusivos em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela

DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A. que se reserva a

propriedade literária desta tradução

Impresso no Brasil pelo Sistema Cameron da Divisão Gráfica da DISTRIBUIDORA

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Janeiro, RJ — Tel.: 580-3668

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SUMÁRIO

A Guerra 9

1ª Parte: A ACUSAÇÃO

1. Objeções Papais 35 2. O Campo de Provas 45 3. Papa Branco, Papa Negro 69 4. A Humilhação Papal 93 5. Desobediência Sumária 107

2ª Parte: A SOCIEDADE DE JESUS

6. Iñigo de Loyola 129 7. O Modelo Inaciano 153 8. A Companhia de Inácio 169 9. O Caráter da Sociedade 181 10. O Superior Máximo 203 11. Furacões na Cidade 221

3ª Parte: OS LIBERTADORES

12. A Doutrina Cativante 235 13. George Tyrrell, S.J. 247 14. Pierre Teilhard de Chardin, S.J. 259 15. A Teologia da Libertação 275 16. O Segundo Concílio Vaticano 289

4ª Parte: O CAVALO DE TRÓIA

17. O Segundo Basco 303 18. Roupas Antiquadas 327

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19. Novos Fios Contínuos 339 20. A Procura do Carisma Primitivo 355 21. O Novo Tecido 385 22. Imagem Pública 409

A Ânsia para Construir o Mundo do Homem 425

Notas 453

Fontes e Dados 463

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À Nossa Senhora de Fátima

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A GUERRA

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E

xiste um estado de guerra entre o papado e a Ordem Religiosa dos Jesuítas — a Sociedade de Jesus, para dar à Ordem seu nome oficial. Essa guerra assinala a mais mortífera alteração a acontecer nas fileiras do clero romano nos últimos mil anos. E, como todos os acontecimentos importantes na Igreja Católica Romana, envolve os interesses, as vidas e os destinos de milhões de homens e mulheres comuns.

Como acontece com tantas guerras de nossa época, os jesuí tas não

declararam a deles contra o papado. Na verdade, embora as primeiras escaramuças às claras começassem na década de 1960, levou tempo para que os efeitos da guerra — até mesmo efeitos muito profundos — se tornassem amplamente visíveis. Como os líderes da guerra eram os Superiores da Ordem, foi uma questão simples colocar homens com a mesma identidade de pensamento encarregados dos órgãos de poder, autoridade e comunicações por toda a organização. Feito isso, a imensa maioria dos jesuítas pouco tinha a dizer nas decisões extraordinárias que se seguiram.

Com o tempo, houve manifestações em voz grave e avisos sobre o que estava acontecendo. “Está havendo um golpe de estado”, escreveu um jesuíta,

ao olhar estupefato para “a facilidade com que está sendo conseguida a dissolução da ordem estabelecida [na Sociedade de Jesus]”.

Àquela altura, entretanto, já se estava no início dos anos 70, a guer ra já vinha sendo feita há quase uma década, e alarmas como aquele de pouco adiantavam. De fato, dada a estrita obediência dos jesuítas — um elemento lendário e de eficiência comprovada ao longo dos anos, da anti ga estrutura, que os novos líderes ainda achavam útil quando tratavam com os dissidentes de suas políticas estranhas —, os subalternos da Ordem não tinham outra alternativa senão acompanhar as mudanças que, nas palavras de outro jesuíta, “arrancaram a Sociedade de Jesus de sob os nossos pés e [a] transformaram

numa entidade monstruosa sob o dis farce de bons objetivos”. Ainda assim, pode alguém pensar em perguntar, suponhamos que haja um

problema entre o papado romano e os jesuítas; qual a gravidade que isso pode ter? Chame de guerra, se quiser. Mas, francamente, será que não se trata de apenas outra disputa na Igreja Católica Romana? Num mundo que se vê balançando à perpétua beira da aniquilação, e no qual metade da população morre de fome enquanto a maioria da outra metade está presa à lama por um tipo de injustiça ou outro, que importância pode ter uma desinteressante discussão teológica? Mais ou menos tão importante, talvez, quanto saber quantos anjos podem dançar na cabeça de um alfinete!

A verdade, porém, é que não se trata de disputa sobre sutilezas, nem

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mesmo de desavença teológica entre o papado e os jesuítas que envolva apenas doutos, clérigos e fiéis. Como o papado e os jesuítas sabem, os efeitos de suas políticas vão muito além dos limites da Igreja Católica Ro mana; além até mesmo dos quase um bilhão de homens e mulheres cató licos no mundo inteiro. Quase tudo o que acontece nessa guerra tem relação direta e imediata com as grandes dissensões que castigam todas as nações e povos do mundo. Está no exato centro da rivalidade entre os Estados Unidos e a União Soviética, por exemplo. Relaciona-se, neste exato momento, ao destino — de miséria ou de felicidade — de 350 milhões de pessoas na América Latina. Afeta o código de moral pública e o consenso nacional do povo norte-americano, ambos em profunda mudança; a iminente preponderância, nos assuntos humanos, da República Popular da China; a frágil persistência de uma Europa Ocidental livre; a segurança de Israel; a ainda tosca promessa de uma África negra viável, que está no nascedouro. Todas essas coisas, por separadas e desconexas que possam parecer, estão não apenas interligadas umas às outras, mas estão e serão profundamente influenciadas pelas ondas e pelo resultado da coli são global entre o papado e a Sociedade de Jesus.

Todas as guerras se relacionam ao poder. Na guerra entre o papado e a Sociedade, o poder flui ao longo das linhas de duas questões fundamentais e concretas. A primeira é a autoridade: quem está no comando da Igreja Católica Romana no mundo inteiro? Quem estabelece a lei quan to a em que os católicos romanos devem acreditar e que tipo de princípios morais devem eles praticar?

A segunda questão é o propósito: qual é o propósito da Igreja Católica Romana neste mundo?

Para o papado, as respostas a ambas as questões são claras e bem conhecidas. A autoridade para ordenar e ensinar desce, pela sua estrutu ra hierárquica, do papa aos bispos, aos padres e aos leigos. E o único propósito da Igreja neste mundo é fazer com que todo indivíduo tenha os meios de alcançar a vida eterna de Deus depois da morte. Trata -se de um propósito exclusivamente espiritual.

Para muitos jesuítas, em contrapartida, a autoridade centralizada da Igreja, a estrutura de comando por meio da qual é exercida e sua finali dade são, todas, inaceitáveis hoje em dia. As tradicionais prerrogativas deste papa, João Paulo II, ou de qualquer papa, são censuráveis.

No lugar de uma Igreja hierárquica, eles visam a uma Igreja composta de comunidades pequenas e autônomas — “o povo de Deus”, como são conhecidas em conjunto, ou “a Igreja do povo” — todas associadas livremente apenas pela fé, mas de forma nenhuma por uma autoridade central e centralizadora como o papado alega ser.

No lugar do propósito espiritual da Igreja tradicional, a Sociedade de Jesus colocou a luta, no presente, pela libertação de uma classe de ho mens e mulheres da nossa sociedade de hoje: os milhões de vít imas da injustiça social, econômica e política.

A maneira de falar na luta de classes é uma questão importante e

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delicada para os jesuítas. A nova missão da Sociedade — porque não é nada menos do que isso — coloca-os subitamente numa aliança real e, em certos casos, de bom grado com os marxistas em sua luta de classes. O objeti vo de ambos é criar um sistema sócio-político que afete as economias das nações por uma completa redistribuição dos recursos e bens da terra; e, no processo, alterar os sistemas de governo atuais em voga entre as nações.

Para a Sociedade, porém, não interessa vir a público e dizer tudo isso como sendo política da entidade. Seria perder a guerra antes mesmo que as tropas estivessem todas dispostas em formação de combate. Para cobrir a mesma realidade, a expressão corrente entre os jesuítas e outros dentro da Igreja que simpatizem com essa nova missão é uma frase ar rancada de seu contexto original num documento divulgado em 1968 por uma Conferência de Bispos Católicos realizada em Medellín, Colômbia: “exercer uma opção

preferencial pelos pobres e oprimidos”. Nada do que foi dito significa que a Sociedade de Jesus se tornou, em

qualquer momento, marxista. Não. Apesar disso, a cruel realidade é que muitos jesuítas desejam ver uma alteração radical no capitalismo democrático do Ocidente, em favor de um socialismo que parece inevitavelmente sur gir cheirando a comunismo totalitário. E a verdade é que não faltam jesuí tas influentes que se manifestem regularmente em favor da nova cruzada.

Um breve retrato de três jesuítas — um cientista sócio-político, um dedicado guerrilheiro e um tremendo teólogo-professor — irá fazer um rápido esboço do amplo e geral arco do empenho do jesuíta moderno em vencer essa guerra.

O primeiro, Arthur F. McGovern, S.J., é um destacado e convicto apologista do novo anticapitalismo jesuítico. Em 1980, ele publicou um livro sobre a matéria — Marxism: An American Christian Perspective — e em muitas ocasiões tem exposto com franqueza o que pensa. Em essência, McGovern diz que o marxismo foi e é uma crítica social, pura e simples. Marx queria, apenas, que pensássemos mais claramente nos meios de produção, em como as pessoas produzem; e nos meios de distribuição, nas pessoas que possuem e controlam os meios de produção. Em tudo isso, o marxismo não pode ser riscado por ser “não verdadeiro”. Foram Engels e Lenin que acrescentaram os desagradáveis

ingredientes de “materialismo científico” e ateísmo. Basta ler os trabalhos não

publicados do jovem Marx para que se fique conhecendo o “seu lado mais

humanista”. Em consequência, conclui McGovern, temos que isolar a crítica social de

Marx, que é “verdadeira”, daqueles elementos estranhos. Podemos acei tar o conceito de Marx de uma luta de classes, porque existe uma luta de classes. Isso quer dizer, mesmo, revolução, mas “revolução não significa nitidamente

violência (...) significa que temos que ter um novo tipo de so ciedade, por certo não o capitalismo democrático tal como o conhecemos”.

McGovern vê em Jesus, tal como retratado no Evangelho Segundo São Lucas, um modelo de revolução. O Evangelho de São Lucas é um “evan gelho social”, diz ele, citando Jesus em apoio de sua causa: “Vim para pre gar a boa-nova aos pobres, libertar os oprimidos, redimir os cativos.”

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“Vejam”, acrescenta McGovern, “quantas vezes Jesus fala na pobreza; se identifica com os pobres; critica aqueles que lançam ônus sobre os pobres.”

Está claro, portanto, que Jesus reconhecia a “luta de classes” e endossava a

“revolução”. Consciente ou inconscientemente, como a maioria dos jesuítas modernos e

muitos ativistas católicos, McGovern pôs de lado, efetivamente, mil e quatrocentos anos de uma rica interpretação católica, autenticamente cristã, da Bíblia. Ele reinterpretou o Evangelho e a missão salvífica do Filh o de Deus num sentido econômico, num sentido de preocupação com as coisas terrenas, num sentido não-sobrenatural, num sentido não-católico. Todo o resto vem em seguida.

Como o “novo tipo de sociedade” não pode ser “o capitalismo de -mocrático tal como o conhecemos”, os Estados Unidos, como líder e mais bem-sucedido expoente do capitalismo democrático, vêm para o centro do palco. De fato, logo nos primórdios da guerra, na década de 1960, quando os jesuítas dos Estados Unidos adotaram um “projeto jesuítico de liderança nacional”, o plano

deles era explícito quanto à intenção de alterar a estrutura fundamental da América de uma democracia capitalis ta: “Nós, os jesuítas, temos que

reconhecer que participamos de muitas estruturas pecaminosas da sociedade americana. Por isso, corremos o risco do pecado, a menos que trabalhemos para mudar isso.”

Como uma andorinha, só, não faz verão, um só McGovern — ou mesmo um só “projeto jesuítico de liderança nacional” — não faz uma guerra. Tirando-se a política declarada no projeto, em todos os sentidos práticos a Sociedade de Jesus se dedica como um todo a essa luta de clas ses. A sua mensagem chega, hoje, de mil fontes diferentes entre clérigos e teólogos que vivem nos países de capitalismo democrático. Ela é vene rada numa teologia totalmente nova — a Teologia da Libertação — cujo manual foi escrito por um jesuíta peruano, padre Gustavo Gutierrez, e cujo quadro de honra inclui um número notável de destacados jesuítas latino-americanos como Jon Sobrino, Juan Luis Segundo e Fernando Cardenal. Não se trata de nomes bem conhecidos ouvidos nos noticiosos de todas as noites nos EUA. Mas são homens de significativa influência internacional para as Américas e para a Europa.

Embora o movimento tenha sido global desde o começo, foi acima de tudo na América Latina que a estranha aliança entre jesuítas e marxis tas tomou o seu primeiro impulso prático. Foi lá que essa nova missão jesuítica, envolvendo, como envolve, nada menos do que a transforma ção da face sócio-política do Ocidente, enredou vidas de maneira muito mais profunda do que McGovern e teóricos como ele previam. Rapidamente, dezenas e dezenas de jesuítas começaram a trabalhar, com a paixão e o zelo que sempre lhes foram característicos, pelo sucesso dos sandino-comunistas na Nicarágua; e quando os sandinistas tomaram o poder, aqueles mesmos jesuítas assumiram cargos cruciais no governo central e atraíram outros para participarem em vários níveis regionais. Enquanto isso, em outros países centro-americanos os jesuítas não apenas

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participavam no treinamento de quadros marxistas em guerrilhas, mas alguns se tornaram também guerrilheiros. Inspirados pelo idealismo que viam na Teologia da Libertação, e encorajados pela independência ine rente à nova ideia da Igreja como um grupo de comunidades autônomas, os jesuítas achavam que tudo era permitido — e mesmo estimulado — desde que promovesse o conceito da nova “Igreja do povo”.

Aqueles homens eram o sonho e o ideal dos verdadeiros teólogos da li -bertação. Pois eles eram os combatentes, os quadros que levaram a Teologia da Libertação de teoria para o que chamavam de práxis — a implementação da revolução popular pela libertação econômica e política. Daquela práxis, insistiam os teólogos da libertação, “lá de baixo, entre o povo”, viria toda a verdadeira teologia, para substituir a velha teologia que certa vez fora imposta autocraticamente “de cima” pela hierarquia da Igreja Romana.

O segundo nome naquele arco dos novos esforços jesuíticos é James Francis Carney, S.J., homem que foi o modelo da práxis — talvez o mais completo, embora não o mais famoso ou influente de todos os modernos teólogos jesuítas da Libertação.

Carney nasceu e foi criado em Chicago. Fez o aprendizado para je suíta na província de Chicago; ao terminar seu aprendizado, apresentou-se como voluntário para trabalhar na América Central e foi enviado para lá em 1961. Ficou tão impressionado pela sua temporada centro-americana, que se tornou cidadão hondurenho. Ao longo dos anos, Carney sorvia a Teologia da Libertação como se se tratasse de vinho raro. Tornou-se conhecido como defensor dos pobres e crítico severo, incansável e impiedo so dos governos e dos exércitos estabelecidos, em especial em Honduras. Seu nome e suas atividades eram publicamente associados aos guerrilhei ros baseados na selva. Mesmo quando foi fixado um preço por sua cabeça pelas autoridades militares hondurenhas, não houve providência alguma dos superiores jesuítas no sentido de impedir as associações de Carney às guerrilhas. Na verdade, Carney era apenas um dos vários jesuítas em Honduras, Nicarágua, Guatemala e Costa Rica que estavam todos seguindo o mesmo caminho com as bênçãos de seus superiores locais e romanos.

Contente, sentado numa champa em ruínas, de chão batido, na cidade nicaraguense de Limay, onde fora buscar refúgio da guerra de guer rilhas em Honduras, o padre jesuíta de 47 anos acabou de escrever sua autobiografia à luz de vela. Era o dia 6 de março de 1971. Àquela época, Carney já tinha atrás de si dez anos de dificuldades e trabalho na América Central, e cerca de doze anos ainda para viver. O “padre Lupe”, como o chamavam os nativos com carinho (o nome era a forma abreviada de Guadalupe), Contou ao mundo que havia extraído os três esteios ou verdades básicas da Teologia da Libertação do s trabalhos de seu colega jesuíta Juan Luis Segundo. As obras são áridas e deploráveis.

Grace and the Human Condition, de Segundo, mostrou a Carney que “tudo,

neste mundo, é sobrenatural”. The Sacraments Today, de Segundo, revelou ao padre Lupe que “a humanidade está desenvolvendo uma ideia mais correta de Deus”. E Evolution and Guilt, de Segundo, ensinou

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a ele que “a dialética revolucionária tem que vencer o pecado do con -servadorismo da Igreja”.

Com o mais triste dos amores, Lupe já havia escrito para sua família nos Estados Unidos, para dizer-lhe o que iria fazer. A carta é reproduzida em sua autobiografia. Ele tinha que compartilhar da revolução com seus adorados campesinos hondurenhos porque, escreveu ele, “não suporto viver com vocês segundo a sua maneira de viver”. O capitalismo, disse ele, em cujos pecados

estavam imersos todos os americanos, era um mal tão abominável quanto se achava que era o comunismo. Só a revolução armada poderia erradicar “o

capitalismo e o imperialismo supranacional da América Central. (...) Ser cristão é ser revolucionário”.

“Nós, os cristãos-marxistas, teremos que lutar lado a lado, na América Central, com os marxistas que não acreditam em Deus, a fim de formarmos uma nova sociedade socialista (...) um modelo centro-americano puro.”

Embriagado pelo idealismo carregado de ignorância dos teólogos da libertação, esse jesuíta passou a acreditar que “um marxista não é dog mático, mas dialético. Um cristão não condena ninguém do ponto de vis ta dogmático, mas respeita as crenças dos outros. Um cristão anticomunista dogmático não é um cristão verdadeiro, e um marxista anticristão dogmático não é um marxista de verdade”.

Tendo investido a dura realidade do marxismo, tal como tem sido historicamente conhecida, com uma magia visionária sem nenhuma realidade tridimensional, Carney esboçou, para a família, o seu “modelo centro -americano puro”.

“Nem comunista nem capitalista (...).” O novo socialismo será “uma

fraternidade de toda a humanidade (...) e igualmente uma sociedade sem classes (...)”. Teologicamente falando, “o universo do homem está em

evolução dialética em direção ao Reino de Deus (...)”. Muito embora todos “respeitem a crença dos outros”, Carney con seguiu

ser muito mais honesto do que McGovern ao reconhecer que “(...) d ialético significa conflitante, avançando por uma série de lutas entre pes soas de ideologias contraditórias (...)”. Na verdade, Carney ficara con vencido de que o propósito real da dialética da luta era vencer “o pecado” do conservadorismo

que é o pecado peculiar da Igreja Católica Romana. O plano de Deus para a evolução do mundo e da sociedade humana iria desdobrar -se em conflito e na revolução armada. A transformação assim provocada seria completa; seria, ao mesmo tempo, uma mudança “cultural-espiritual”, e uma “mudança econômica,

social e política”. Carney terminava sua autobiografia com um apelo a todos os cristãos:

“(...) livrem-se de quaisquer preconceitos injustos e não-cristãos que tiverem contra a revolução armada, o socialismo, o marxismo e o comunismo. (...) Não existe uma terceira opção entre ser cristão e ser revolucionário (...).”

Isso foi o apelo máximo em favor da práxis. Mais tarde, naquela primavera de 1971, com a concordância de seus

superiores, Carney atravessou ilegalmente a fronteira, t ornando a entrar em Honduras para partilhar da vida de ataques e retiradas rápidas de um

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comando guerrilheiro. Foi o início de doze anos de práxis a mão armada pelo “conflito dialético” que ele tinha em alta estima como sendo a cha ve para o futuro do catolicismo.

De comum acordo com seu superior provincial, padre Jerez, que àque la altura sofria certa pressão de Roma e do Vaticano, o padre Carney aca bou se desligando dos jesuítas. O entendimento que tinha com Jerez e seus superiores era de que poderia tornar a entrar para a Sociedade tão logo a luta terminasse. A Sociedade, no final das contas, era apenas conveniência. Num mundo em que tudo já era sobrenatural, como o padre Lupe escreveu dizendo ser essa a verdade para ele, não havia lugar para regras rígidas; não havia lugar para uma Igreja Romana infalivelmente autoritária. Não havia necessidade de qualquer Igreja santificar coisa alguma, porque tudo era sobrenatural e, portanto, já era santo. A Igreja era apenas uma parte outra da humanidade, ao nível da humanidade em relação a Deus, aprendendo à medida que a humanidade aprende, deslocando-se com a humanidade em direção a uma utopia na Terra.

“Fico desgostoso”, escreveu Carney, “mas quero ser honesto e não

prejudicar os jesuítas ao me unir às guerrilhas como um desobediente fugitivo da Sociedade, obrigando-os a me expulsarem.” Como demonstraram outros que vieram depois dele, Carney não precisava ter -se preocupado com desobediência ou expulsão. Ainda assim, se o padre Lupe não pre servara os rudimentos de sua fé católica romana, pelo menos preservara a sua sinceridade e sua capacidade de fazer uma escolha bem definida.

Em setembro de 1983, a unidade de assalto de Carney, com noventa homens, foi aniquilada numa batalha com tropas hondurenhas de seu ve lho inimigo, o general Gustavo Alvarez Martinez, que tantas vezes fora por ele denunciado em público. Uns poucos de seus homens que sobrevi veram foram capturados e atirados numa cova retangular na selva, atrás do acampamento militar hondurenho de Nueva Palestina. Será que Carney era um daqueles homens? Ninguém conseguiu descobrir. Será que ele morreu? É muito provável. De esgotamento? Pelo menos de esgotamen to. Terá sido interrogado? É provável. Torturado? É provável. Será que foi deixado para morrer de inanição? Provavelmente. Será que ainda es tá vivo e ainda é prisioneiro na selva? Não parece possível; mas jamais se revelou uma notícia precisa.

Este é o tipo de guerra que existe. Não se trata, nem de longe, de saber quantos anjos podem dançar na cabeça de um alfinete. É uma guerra na qual sangue é derramado com regularidade e em grandes quantidades. Sacerdotes como Carney não constituem raras exceções. É claro que nem todos escrevem testamentos de sua conversão para a violência revolucio nária, a fim de que o mundo os leia; e nem todos chegam ao ponto de viverem a vida de membros de unidades de assalto. Mas nos muitos e va riados papéis que eles representam na arena puramente política do mundo, homens como o padre Carney, S.J., cada um deles, são essenciais para o sucesso dos jesuítas em sua luta contra o papado.

Para os jesuítas, a realidade da vida, hoje, é que o nosso mundo

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bipolar gira inexoravelmente em torno do marxismo-leninismo soviético e do capitalismo ao estilo ocidental. A única disputa que pa rece ter importância para a Sociedade de Jesus neste último quarto do século XX é aquela entre essas duas esferas de influência. E o fato é que, embora a Sociedade em si não seja oficialmente marxista, os jesuítas que se diziam ou se di zem marxistas — porque o padre Lupe não estava sozinho nem mesmo nisso — não são, por esse motivo, expulsos da Sociedade ou censurados ou silenciados. Ao contrário, fazem-se os maiores esforços no sentido de protegê-los de ataques. Isso se tornou tão espalhafatoso que, não faz muito tempo, quando o papa João Paulo II conheceu um jesuíta indiano que, como verificou, não era marxista, exclamou, surpreso: “Com que então nem todos vocês são marxistas!”

A guerra entre o papado e os jesuítas parece, então, ser de natureza política. E, num sentido, é. Mas presumir, como fazem muitos jesuítas da nova missão, que a sua guerra contra o papado começa e termina com a luta marxista-capitalista pelo poder, pela autoridade e pelo domínio do mundo, seria confundir os sintomas de apodrecimento da Sociedade com a condição mais básica que permite que esses sintomas progridam e se multipliquem. Porque embora a guerra que eles se decidiram a fazer tenha lugar no plano da geopolítica, é também, e mais fundamentalmente, uma guerra por causa da questão da existência mesma do Espírito como a dimensão básica do mundo dos homens e das mulheres. É sobre o sobrenatural como o elemento que torna cada um de nós humano e define nossa existência e nosso mundo.

A esse nível, os novos conceitos jesuíticos rela tivos à autoridade na Igreja e ao propósito da Igreja no mundo representam uma reviravolta da mais profunda natureza. Para a Sociedade de Jesus, a autoridade má xima para crença e moralidade já não está na Igreja Católica Romana, com o seu papado e sua hierarquia de âmbito mundial, mas no “povo de Deus”. Os resultados dessa

substituição são que, até esta data, não há dogma importante ou lei moral capital do catolicismo romano que não tenha sido contestada e negada por jesuítas, a começar com jesuítas das mais altas posições hierárquicas e das mais elevadas reputações.

Eles têm sido imitados e têm recebido a adesão de uma infinidade de grupos, tanto católicos como não-católicos, com as mais diversas razões para defenderem essa nova igreja, o “povo de Deus”, como superior à Igreja hierárquica Católica Romana. Mas foram eles, os jesuítas, que abriram o caminho e que deram os maiores e mais consistentes exemplos nessa nova atitude em relação ao pontífice romano e aos dogmas definidos de Roma.

O teólogo-professor dessa guerra — e o terceiro nome naquele arco do novo empenho jesuítico — é o homem aceito e celebrado como o maior teólogo jesuíta dos últimos cem anos, Karl Rahner, S. J. Rahner viveu to da uma vida de esforços — cautelosamente, a princípio, mas com uma estridência cada vez maior à medida que o tempo passava — no sentido de alterar a crença católica. Embora não trabalhasse em campos isolados, sua estatura, sua ousadia que não ligava para as consequências, e

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seu sucesso o destacam como o líder no que pode ser perfeitamente descrito como o esquadrão de combate de teólogos católicos que, a partir de 1965, laceraram e cortaram em pedaços não apenas os flancos, mas a própria substância do catolicismo.

Rahner era tão diferente de seu colega jesuíta James Carney quanto é o frio do calor. O contraste entre os dois homens é a melhor ilustração do velho ditado que diz que uma ideia pode provocar um inferno de cha mas no coração de certos homens, mas explode no cérebro de outros. En quanto Carney era um fazedor impulsivo e apaixonado, Rahner era o intelectual meditativo, pensativo, impassível. Enquanto Carney podia es crever ilógica mas emocionalmente para justificar suas ações aos olhos da família, e depois contar apenas com o amor da família para aceitá-lo como era, Rahner escrevia, proferia conferências e conversava com lógi ca sutil e mente desprovida de paixão para desengatar os dogmas de fé mais caros que se achavam na mente de seus leitores e ouvintes.

Carney ficava zangado com a injustiça, revoltava -se contra a opressão, clamava dolorosamente contra a miséria humana. Sua munição e suas ar mas não eram apenas balas e canhões, mas a sua profunda compaixão, sua fúria contra a injustiça e sua recusa congênita em fazer a mínima concessão. Era o seu coração, numa agonia avassaladora, que guiava o seu julgamento.

Rahner, em contrapartida, apontava a artilharia pesada de sua lógica e de sua imensa reputação como teólogo para a sacrossanta autoridade dos papas. Escolheu como alvo as imemoriais fórmulas de fé. Tinha à s ua disposição outras armas com que Carney não contava: a mais arguta das men tes, um conhecimento realmente enciclopédico, um humor sempre pronto e azedo, e uma indômita arrogância de intelecto. “Não vou tolerar a in justiça”, era o grito

de Carney. “Não serei um servo”, era o de Rahner. Num momento crítico e doloroso na moderna história do papado, Rahner

se recusou categoricamente a defender o ensinamento católico so bre o controle da natalidade ou o pontífice que pediu aos jesuítas, como “homens do papa” , que o ajudassem em seu desespero. O mesmo acon teceu com virtualmente todos os outros dogmas e regras da Igreja Católica que Rahner havia jurado defender.

No entanto, sua voz parecia tão autêntica, que ele era considerado por muitos como tendo maior autoridade do que três papas sucessivos, quando chegava o momento de interpretar o ensinamento moral da Igre ja Católica. O próprio Rahner se esforçou muito para representar esse papel de profeta moderno. Enquanto viajava pela Europa e pelas Américas vestindo seus corretos ternos de passeio, era incansável na sua crítica mordaz e sarcástica ao papado e à autoridade romana.

Em Unity of the Churches: An Actual Possibility, o último livro que escreveu antes de morrer em 1984, Rahner fez a mais notável e patente apresentação da recém-aceita atitude jesuítica sobre o papado e os dogmas de finidos de sua Igreja. Trabalhando com um colega jesuíta e co-autor, Heinrich Fries, e com o imprimatur de seus superiores jesuítas, Rahner apresentou uma proposta radical e ultrajantemente anti-romana. Para obter a

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unidade cristã, disse ele, era necessário parar com toda a insistência na in -falibilidade papal como dogma, e também acabar com a insistência em to das as outras doutrinas sobre o pontífice romano e o catolicismo romano que tinham sido definidas e propostas por papas desde o século IV.

Com efeito, Rahner estava propondo que a Igreja Católica pegasse oficialmente todo o corpo de leis relativas à fé e aos costumes, tal como desenvolvido e ensinado pela sua Igreja durante dezesseis séculos, e o des-vinculasse da vida diária. Casamento, homossexualidade, ética comercial, liberdade humana, piedade, todas as esferas da existência humana, tudo teria que ficar à deriva ao sabor das marés da redefinição, que estavam sempre mudando. Mas os dogmas da Igreja seriam as principais baixas. Porque aquilo que a Igreja definiu como básico e obrigatório para a crença católica iria, no plano de Rahner, tornar-se opcional. A integridade da pessoa de Cristo; o significado e o valor dos Sete Sacramentos; a existência do Céu e do Inferno; o caráter divino da autoridade dos bispos; a ver dade da Bíblia; a primazia e a infalibilidade do papa; o caráter de clero; a Imaculada Conceição e a Assunção de Maria, mãe de Cristo — tudo ficaria à ecumênica disposição de quem quisesse.

Acima de tudo isso, entretanto, ficavam os principais alvos de Rah ner, os bloqueios que ficavam no caminho de tudo o mais: a autoridade papal que ele queria ver desmantelada e a Igreja Católica Romana hierár quica que ele queria ver reduzida a mais uma expressão idiossincrática da mensagem de Cristo. Em outras palavras, a autoridade prática e o propósito espiritual da Igreja — sempre as verdadeiras questões na guerra entre papado e jesuítas — seriam rejeitados e substituídos pela autoridade e pela missão materialista que estivesse em voga.

A nível meramente pessoal, é razoável que se tenha que presumir a falta total de fé católica em Rahner. Mas o que está em jogo é menos a condição da alma de Rahner do que a influência prát ica que ele e muitos outros teólogos, que tenham as mesmas ideias, exercem sobre a vida tal como é vivida em nosso mundo.

Dizer que Rahner — e Fries como co-autor secundário — estava apenas exprimindo o sentimento antipapal que era muito corrente entre o s teólogos católicos em 1984 não é contar a metade da ruína causada por ele. Rahner, ocupado em ensinar teologia numa prestigiosa universidade jesuítica durante a maior parte de sua vida, tornou-se ao longo dos anos uma imagem de sabedoria teológica e bom julgamento para literalmente milhares de pessoas que, por sua vez, agora são sacerdotes, professores e escritores com comando, influência e renome próprios.

É de se admitir que esse trabalho pareça, a muitos, ter lugar em tor res de marfim. Mas homens como Karl Rahner ajudaram poderosamente a moldar o pensamento e os costumes de padres e bispos que estão, ago ra, envolvidos em cada nível de questões mundanas em todas as partes do globo. E uma vez convencidos, mesmo num plano puramente pessoal, de que os Rah ners da Igreja têm razão e que o papado está errado, não há chance alguma de que o conflito possa permanecer teórico. Em vez

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disso, ele atinge as mais profundas áreas de pensamento, crença e senti mentos de milhões que são arrastados pelo coração — e pela influência direta ou indireta de teólogos como Rahner — para um mundo no qual a natureza, o significado e a mais básica finalidade de suas vidas como cristãos são redefinidos num cenário puramente racional e materialista.

Sem um gigante como Karl Rahner, é de se duvidar que a Teologia da Libertação fosse conseguir muito mais do que rachar, oscilar e despencar; ou que um Francis Carney fosse ser tão pouco severo ao criticar os traba lhos escritos por Juan Luis Segundo. Apesar de tudo, deve-se dizer que Rahner não foi um inventor; tampouco o foram os homens de sua geração que foram a sua ferrotipia. Não foi Rahner quem iniciou a enorme reviravolta teológica na Sociedade de Jesus ou na Igreja Romana. Sua importância não foi como inovador, mas como fiel e eficiente evangelista em favor de uma influência perniciosa e destrutiva que já vinha se espalhando sorrateiramente dentro da Sociedade de Jesus há décadas antes de ele surgir em cena. Quer proferindo conferências na Europa, quer se transportando para as Améri cas, envolto no prestígio que adquirira, incontestável em sua autoridade, apresentando sempre o rosto não-atrativo do materialista, rápido em qualquer luta interna, e sem se curvar para ninguém, Rahner foi o ponta -de-lança adequado para o autocanibalismo católico. Ele ensinou a várias gerações a consumir sua fé com lógica, ceticismo e desobediência.

Sua dedicação ao ponto de vista antipapal e anticatólico era tão sin cera, que ele se tornou a sua encarnação, como se poderia dizer. E, no entanto, foi tão eficiente na manutenção de sua estatura teológica dentro da Sociedade de Jesus, que deu àquele ponto de vista uma nova respeitabilidade, tanto dentro como fora da Sociedade e da Igreja. Nenhum superior jesuíta, no seu país natal ou em Roma, jamais o conteve. Tendo sido a prova em carne e osso da estranha corrupção que se instalara na Sociedade, Rahner morreu como havia vivido, numa aura de honra entre seus companheiros e superiores.

Apesar de todas as suas diferenças, os três homens aqui esboçados — o cientista sócio-político, o guerrilheiro dedicado e o teólogo-professor — exemplificam, inclusive, a aberração da Sociedade.

É claro que, a esta altura, a Sociedade de Jesus não está sozinha na luta contra o papado. Ela tem sido imitada e tem recebido a adesão de muitos grupos — católicos e não-católicos, religiosos e seculares — cada qual com suas próprias razões para defender a ideia de que uma nova igre ja, o “povo de

Deus”, substituiu a antiga e hierárquica Igreja Católica Romana. Mas foram os

jesuítas que abriram aquele caminho; foram eles que estabeleceram os maiores e mais consistentes exemplos dessa nova ati tude em relação ao pontífice romano e aos dogmas definidos de Roma; e são eles que continuam a trabalhar nos pontos mais longínquos daquilo que só se pode chamar de política divina.

E foi assim que o atual geral da Sociedade de Jesus, Piet -Hans Kol-venbach, pôde enfrentar os jesuítas que o elegeram chefe da Ordem em 1983 — o ano em que James Francis Carney foi engolido numa batalha

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na selva; o ano antes daquele em que Karl Rahner voltou a Deus — e prometer, com uma confiança solene, que, entre outras coisas, sua tarefa seria assegurar a procura da justiça, escolhida pelos jesuítas, e não ser perturbado “pelos

gemidos de reclamação de papas”.

Quando se fala que a Sociedade de Jesus está, hoje, em guerra com o pa pado, e mesmo antes de se perceber que estranha e confrangedora revira volta isso representa para um corpo de homens cujo principal motivo de fama foram suas realizações e sua reputação como “homens do papa”, não se deve pensar que

essa Ordem Religiosa dos Jesuítas seja apenas mais uma organização humana. São muitas as organizações desse tipo que têm sua fase áurea e depois decaem, ossificam-se e acabam por desaparecer.

A Sociedade de Jesus foi criada em 1540 por um obscuro basco chamado Iñigo de Loyola, mais conhecido como Inácio de Loyola. Não se pode colocar os jesuítas de Iñigo no mesmo nível de qualquer outra orga nização, pelo simples motivo de que nenhuma organização que conheça mos pode rivalizar, até o momento, com os jesuítas no que se refere aos inestimáveis serviços que prestaram à família humana — muito acima do que fizeram, em nome do papado e da Igreja Católica Romana do papado.

Iñigo foi um gênio raro. Se Leonardo Da Vinci, contemporâ neo de Iñigo, tivesse projetado uma máquina, chegando até os detalhes das por cas e parafusos, que suportasse todos os testes do tempo e das circuns tâncias que se alteraram ao longo de um período de 425 anos — e se só a destruição de seu projeto inicial provocasse o colapso da máquina — não seria maravilha maior do que a Sociedade que Iñigo projetou. Por que, tal como ele a construiu — o molde de seu jesuitismo, sua estrutura funcional, sua devoção ao papado, seu caráter e seus objetivos — a Sociedade resistiu a todos os testes de tempo e circunstâncias, exceto um: a perversão da regra, do papel e do espírito que ele lhe deu. Fora isso, sua mui extraordinária durabilidade está comprovada.

Nem mesmo Iñigo poderia ter previsto o quase-milagre da organização de sua Sociedade, seu sucesso meteórico e brilhante, e sua influência universal sobre o mundo do homem, quando a fundou. Nos 425 anos que se seguiram, as dezenas de milhares de pessoas que entraram para a Companhia de Iñigo estabeleceram um recorde que, em sua categoria, não foi igualado na história passada ou presente — um recorde tanto de serviços à Igreja Católica quanto à sociedade humana como um todo.

Olhando para trás, um fanático do século XX que parecia um gênio, Lenin, mal orientado mas com admiração, afirmou, no fim da vida, que se tivesse contado com doze homens iguais a um daqueles jesuítas pionei ros, o seu comunismo teria arrebatado o mundo.

Embora poucos em número, os princípios básicos que Iñigo estabe lecera para a sua Companhia eram catal isadores poderosos. Logo que seus homens utilizaram suas energias dentro de sua organização no trabalho de âmbito mundial da Igreja Romana, provocaram um fenômeno sem igual de história humana. “Nunca”, escreveu Novalis, o teórico alemão do sé culo

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XVIII, “nunca antes na história do mundo surgiu uma Sociedade igual a essa. O

próprio velho Senado Romano não fez planos de domínio mundial com maior certeza de sucesso. Nunca a execução de uma ideia maior foi examinada com maior compreensão. Para todo o sempre, essa Sociedade será um exemplo para toda sociedade que sentir um desejo orgânico de extensão infinita e duração eterna (...).”

“Quanto mais universal o seu trabalho”, dissera Iñigo, “mais divi no ele se torna.” Trinta anos depois que ele fundara a Ordem, s eus jesuítas estavam trabalhando em todos os continentes e em praticamente todas as formas de apostolado e campo educacional. Num prazo de cem anos, os jesuítas eram uma força que se tinha que enfrentar em praticamente todas as fases da vida ao longo da qual os homens procuram, e às vezes conseguem, poder e glória.

Não havia continente que os jesuítas não alcançassem; nenhuma lín gua conhecida que não falassem e estudassem ou, em dezenas e dezenas de casos, desenvolvessem; nenhuma cultura em que não penetrassem; nenhum ramo de conhecimento e ciência que não explorassem; nenhum tra balho em humanismo, nas artes, na educação popular, que eles não realizassem e fizessem melhor do que qualquer outra pessoa; nenhuma forma de violência que não tivessem sofrido — os jesuítas foram enforcados, arrastados e esquartejados em Londres; estripados na Etiópia; comidos vivos por índios iroqueses no Canadá; envenenados na Alemanha; esfolados até a morte no Oriente Médio; crucificados na Tailândia; mor tos de fome na América do Sul; decapitados no Japão; afogados em Madagascar; bestializados na União Soviética. Naqueles primeiros quatrocentos anos, eles deram à Igreja 38 santos canonizados, 134 homens santos já declarados “Benditos” pela Igreja Romana, 36 já decla rados “Veneráveis” e 115 considerados como tendo sido “Servos de Deus”.

1 Desses, 243 foram mártires; isto é, foram mortos por causa de suas crenças.

Viveram entre mandarins chineses, índios norte-americanos, as brilhantes cortes reais da Europa, brâmanes hindus da Índia, as escolas de “cerca viva” da

Irlanda penal, navios escravos dos otomanos, imames e ulemás do Islã, o decoro e o saber dos lentes graduados de Oxford, as multiformes sociedades primitivas da África subsaariana, e se adaptaram.

E, no longo catálogo de insultos e calúnias que os homens criaram a fim de injuriar seus inimigos, não havia termo suficientemente forte para se aplicar aos jesuítas, devido àquela terrível fixação que eles tinham, desde os seus primórdios, por outro dos princípios de Iñigo: serem “homens do papa”; os homens do papa. Iñigo de Loyola, escreveu Thomas Carlyle, foi “a fonte de

veneno da qual nasciam todos os rios de amargura que inundavam o mundo agora”.

Insultos como esse têm sido cultuados nas próprias línguas dos ho mens. O Webster’s Third New International Dictionary, depois de ter dado o significado básico de jesuíta como membro da Ordem, fornece os significados negativos: “pessoa dada à intriga e a subterfúgios; pessoa

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ladina”; termos que são ampliados pelo dicionário de Dornseif para “de duas

caras, falso, insidioso, dissimulador, pérfido (...) insincero, ignó bil, desonesto, mentiroso”. Um provérbio francês diz que “sempre que dois jesuítas se juntam,

o Diabo completa o trio”. Um provérbio espanhol alertava as pessoas, d izendo “não confie sua mulher a um monge ou seu dinheiro a um jesuíta”.

Os eternos inimigos do papado nunca poderiam perdoar Iñigo e seus jesuítas enquanto estivessem em missão do papa, cumprindo o sagrado voto de obediência, ainda que sujeitos à desonra e à morte. Estava tudo de acordo com o desejo expresso de Iñigo. “Esperemos”, escreveu ele certa vez, “que a Ordem

nunca possa ficar muito tempo sem sofrer a hostilidade do mundo!’ Na verdade, seu desejo foi realizado, pois os seus jesuítas eram realmente

homens do papa. Seus primeiros alvos principais: as novas igrejas protestantes que pululavam pela Europa. Justamente a questão vital que estava em jogo entre a Igreja Católica e os líderes da revolta protestante — Lutero, Calvino e Henrique VIII da Inglaterra — era a autoridade do pontífice romano e a primazia de sua Igreja Católica Romana.

Os jesuítas levaram a batalha aos próprios territórios daqueles ini migos papais. Faziam debates públicos com reis, debatiam em universidades protestantes, pregavam em encruzilhadas e em mercados. Dirigiam-se a conselhos municipais e instruíam os concílios da Igreja. Infiltravam-se em territórios hostis, disfarçados, e se deslocavam às escondidas. Estavam em toda parte, cumulando seus contemporâneos de brilhantismo, sagacidade, severidade, erudição, devoção. Seu tema constante: “O bispo de Roma é o

sucessor de Pedro o Apóstolo, sobre o qual Cristo fundou sua Igreja (...). Essa Igreja é uma hierarquia de bispos em comunhão com aquele bispo em Roma. (...) Qualquer outra instituição eclesiástica é uma rematada heresia, filha de Satã (...).”

Em outras palavras, todo mundo sabia da existência dos jesuítas; e todo mundo sabia que os jesuítas eram os defensores sinceros daquela autoridade e primazia.

Embora a violenta investida dos jesuítas contra os inimigos de Roma fosse vigorosa, a penetrante influência deles sobre o próprio catolicismo romano nunca foi igualada. Eles detiveram o monopólio da educação da Europa durante mais de duzentos anos, e entre seus alunos pelo mundo in teiro se encontrava gente famosa e gente abominável — incluindo Voltaire, Luis Bunuel, Fidel Castro e Alfred Hitchcock. Sozinhos, literalmente remodelaram o ensino da teologia e da filosofia católica romana, de modo a torná -lo outra vez claro e acessível, mesmo para a nova mentalidade da era turbulenta que despontava. Proporcionavam novos meios para a prá tica da devoção popular. Promoveram o estudo do asceticismo, do misticismo e da missiologia. Proporcionaram modelos novos para o treinamento de sacerdotes em seminários. Geraram, pelo exemplo e pela inspiração de seu Preceito Religioso, toda uma nova família de ordens religiosas. Foram o primeiro corpo de católicos eruditos que se tornou preeminente em ciências seculares — matemática, física, astronomia, arqueologia, linguística,

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biologia, química, zoologia, paleografia, etnografia, genética. A lista de invenções e descobertas científicas realizadas por jesuítas enchera núme ros

intermináveis de volumes nos mais diversos campos — engenharia mecânica, energia hidráulica, aviação, oceanografia, hipnose, cristais, linguística comparativa, teoria atômica, medicina de doenças internas, man chas solares, aparelhos de surdez, alfabetos para os surdos e mudos, car tografia. A lista da qual são extraídos esses exemplos aleatórios entorpece a mente, devido à sua variedade que abrange todos os setores. Os manuais, livros de texto, tratados e estudos dos jesuítas eram aceitos em caráter ofi cial e conclusivo em todos os ramos do saber católico e secular.

Eles eram gigantes, mas com um propósito: a defesa e a propagação da autoridade papal e do ensinamento papal.

Tampouco suas extraordinárias energias e talentos se limitavam à ciên cia. Fizeram como se fossem seus, também, todos os setores da arte. Em 1773, contavam com 350 teatros na Europa, e as atividades teatrais dos jesuítas lançaram as fundações para o balé moderno. Fundaram o pri meiro teatro no continente norte-americano — precisamente em Quebec em 1640. Ensinaram a França a fazer porcelana. Levaram para a Europa os primeiros conhecimentos que os homens ocidentais tiveram da cultura indiana e chinesa. Traduziram os vedas do sânscrito. Até mesmo as chinoiseries do período rococó tiveram como base publicações dos jesuítas em chinês. O guarda-chuva, a baunilha, o ruibarbo, a camélia e o quinino foram inovações jesuíticas na Europa.

As façanhas dos jesuítas como exploradores do Extremo Oriente ultrapassavam qualquer coisa jamais sonhada por seus contemporâneos, e constituem uma narrativa épica que tem o sabor de quase má gica. Os nomes de jesuítas estarão ligados para sempre a lugares que, para a maioria de nós, são motivos de fantasia — Kambaluc, Catai, Sarkand, Shrinagar, Tcho Lagram, Tcho Mapang, Manasarovar, Tashi-Ihumpo, Koko Nor, e o nome comprido e saltitante, Chomolongmo (que nós conhecemos como monte Everest).

Menos de cem anos depois da fundação da Sociedade, os jesuítas se tornaram os primeiros europeus a penetrarem no Tibet e depois seguirem dali para a China. O padre jesuíta Matteo Ricci foi a primeira pessoa a provar que a Catai de Marco Polo era idêntica à China, e não um país diferen te. Em 1626, o padre Antonio Andrade e o irmão Manuel Marquis abriram a primeira igreja católica no Tibet, às margens do rio Sutlej, no reino de Guge, em Tsaparang. O irmão Benito de Goes está sepultado na extremidade noroeste da Grande Muralha da China. O túmulo do irmão Manuel Marquis fica no cume da cordilheira Zaskar, que dá vista para o passo Mana, na região ocidental do Tibet, onde o bom irmão morreu em 1647 depois de longo período de prisão no posto da fronteira.

Outros jesuítas — austríacos e belgas — foram os primeiros europeus a atingirem Lhasa a 8 de outubro de 1661, e viram a construção do Palácio Potala para o Dalai Lama Chenresik. O padre Grueber, um aus tríaco, foi o primeiro a determinar a posição de Lhassa com exatidão,

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a 29 graus, 6 minutos de latitude norte. Ele e seus companheiros foram sucedidos por uma linha de destacados tibetólogos jesuítas que produzi ram dicionários, estudos de língua, mapas, estudos geológicos e tratados teológicos. Seus túmulos, como os de Benito de Goes e Manuel Marquis, pontilham uma área que era tão remota e amedrontadora para seus con temporâneos quanto o outro lado da lua ainda continua sendo para nós.

Esses homens e seus pares religiosos noutra parte qualquer não eram apenas “os solitários e bravos” celebrados num drama teatral da década de

1940. Em sua mente, não faziam confusão entre as dimensões da Po breza Religiosa e a pobreza econômica, como aconteceu com tantos je suítas nas últimas décadas deste século. Não visavam a um objetivo nebuloso, materialista, como a “libertação integral do indivíduo huma no”. Eram gigantes

que, proporcionalmente falando, rivalizaram as façanhas posteriores de Scott e Perry nos pólos, Hilary no monte Everest, e os primeiros astronautas no espaço e na lua. Mas, mais do que isso, eram missionários jesuítas obedientes à voz do pontífice romano, vivendo, trabalhando e morrendo fiéis a ele, porque ele representava o apóstolo Pedro, que representava o Cristo que eles acreditavam ser o Salvador.

No auge de seus esforços, duzentos anos depois de sua fundação, os jesuítas exerciam um controle formativo e decisivo na educação e na ciência de praticamente todos os países da Europa e da América Latina. Ti nham um papel a representar em todas as alianças políticas da Europa — um cargo influente junto a todos os governos, uma função de assessoria jun to a todo grande homem e a toda mulher poderosa. Um jesuíta foi o primeiro ocidental a frequentar a corte do grão-mogol. Outro foi o primeiro a ser declarado mandarim oficial no palácio do imperador em Beijing. Oliver Cromwell, Filipe II da Espanha, Luís XIV da França, Catarina a Grande, o cardeal Richelieu, a rainha Cristina da Suécia, Mary, a rainha dos escoceses, Napoleão, Washington, Garibaldi, Mussolini, Chiang Kai -shek — a lista dos grandes vultos da história frequentados pelos jesuítas se estende por várias páginas. Eles minutavam tratados, negociavam pactos de paz, serviam de mediadores entre exércitos em guerra, arranjavam casamentos reais, faziam arriscadas missões de resgate, viviam onde não eram bem-vindos, como agentes secretos da Santa Sé. Passavam-se por criadores de porcos na Irlanda, bazaaris na Pérsia, homens de negócios na Prússia, marinheiros mercantes na Indonésia, pedintes em Calcutá, swamis em Bombaim. Não havia coisa alguma, em parte alguma, que eles não realizassem, como diziam, “para a maior gló ria de Deus”,

em obediência ao papa romano. Estavam em todo país eu ropeu, africano, asiático e americano onde fosse possível o mais leve desabrochar do catolicismo. Toda a influência deles era exercida visando ao atendimento da vontade papal. Ser jesuíta era ser um papista no senti do exato desse termo que já foi pejorativo.

O poder de âmbito mundial dos jesuítas se tornou tão grande, que as pessoas comuns de Roma inventaram um novo título para padre jesuí ta geral. Elas o chamavam de “O papa negro”, comparando seu poder

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o sua influência globais com os do próprio papa; e fazendo entre os dois uma distinção apenas com base na batina toda branca do pontífice e a batina simples e preta do sacerdote comum, que os sucessores de Iñigo usavam imitando seu exemplo. O apelido popular era um exagero, é cla ro. Mas os romanos estavam suficientemente perto do centro das coisas para saberem quem exercia uma impressionante parte do verdadeiro poder que residia na colina Vaticano.

Como Iñigo havia pretendido, aquele poder do “papa negro” e sua

Companhia estava atrelado à vontade papal, mesmo que isso represen tasse a morte da própria Ordem. Em 1773, quando o papa Clemente XIV decidiu — certo ou errado — que deveria ser feita uma rígida opção entre a extinção do papado e a morte da Ordem dos Jesuítas, ele, e somente ele, agindo segundo decisão pessoal sua, aboliu a Sociedade de Jesus. Por um documento publicado oficialmente, destituiu os 23.000 jesuítas ao mes mo tempo, e colocou o padre-geral e seus assessores em calabouços papais, mesmo enquanto impunha o exílio e a morte lenta a milhares de jesuítas que se viram sem ajuda ou apoio em partes perigosas do mundo.

O papa Clemente não explicou sua decisão aos jesuítas ou a qual quer outra pessoa. “As razões [para essa decisão] nós mantemos tranca das em Nosso Coração”, escreveu ele. Apesar de tudo, os jesuítas obedeceram, colaborando obedientes com a morte de sua Ordem.

Quarenta e um anos depois, em 1814, o papa Pio VII decidiu que o papado precisava da Companhia, e com isso a ressuscitou. Os jesuítas, revivificados, saíram em campo novamente, com renovado zelo pe la vontade do papa, e usaram de enorme dedicação de homens e trabalho para garantir que o Concílio Vaticano I, em 1860, decretasse que a autoridade infalível do papa era um artigo de fé e um dogma revelado de forma divina.

O esforço foi tão incisivo e surtiu tanto sucesso, e tão odioso para tantos, que angariou para os jesuítas pós-supressão um novo epíteto: eles eram os “ultramontanos” — pessoas que apoiavam aquele abominável bispo que vivia “para lá das montanhas” (os Alpes), em Roma. O desprezo contido nesse nome injurioso é um claro indício daquilo que os jesuítas defendiam com o mesmo vigor de sempre: a antiga crença católica romana de que, por decreto divino, o homem que levava em si mesmo toda a autoridade de Cris to na Igreja deveria ser identificado por um elo físico com um ponto geográfico sobre a face desta Terra: a cidade de Roma. Esse homem seria, sempre, o bispo legal de Roma. E vigário pessoal de Cristo.

Os novos inimigos daquela crença moravam, em sua maior parte, na França, Bélgica, Holanda, Alemanha, Áustria, Suíça e Inglaterra. Eram bispos, sacerdotes, teólogos e filósofos. Falando do seu lado dos Alpes, eles se chamavam de “cismontanos” (pessoas “do lado de cá das montanhas”, o lado

norte), e se opunham à autoridade e à primazia do bispo romano. O fato de o catolicismo romano concentrado no papa romano ter

florescido e se mantido na Europa ocidental até o último quarto do sécu lo XX deveu-se, principalmente, àqueles “homens do papa” — ao seu zelo, à sua devoção àquela missão papal, à sua cultura, e à evolução que

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eles instigavam na mente católica romana. Porque em qualquer área em que tocavam, os jesuítas introduziam uma nota de razão, um discurso racional, e eles o fermentavam com uma fé brilhante e vigorosa.

Em poucas palavras, eles tomaram de assalto a mentalidade dos católicos no século XVI. Essa mentalidade tinha todas as suas amarras numa esfera pré -científica, pré-naturalista. No espaço de quatrocentos anos, com o seu próprio sepultamento no meio, os jesuítas mudaram aquilo tudo. P elos seus métodos educacionais, por suas pesquisas e sua intrepidez intelec tual, eles possibilitaram aos católicos romanos a manutenção de sua posição, como homens e mulheres crentes e fiéis, no oceano de novas ideias e nova tecnologia que começou na década de 1770 e nunca mais parou.

Periodicamente, na sua existência de mais de quatrocentos anos, os jesuítas foram expulsos e banidos de vários países — França, Alemanha, Áustria, Inglaterra, Bélgica, México, Suécia e Suíça. O termo “jesuíta” se

tornara tão conhecido como sinônimo de autoridade papal, que a ex pulsão deles era sempre um sinal claro de que o governo daquele país es tava determinado a eliminar a autoridade e jurisdição do papa romano. E quando a força bruta era usada contra eles, passavam para a clandestinidade ou faziam as malas e partiam, para esperar o dia em que pudes sem voltar. Sempre voltavam. Mesmo quando a situação não chegava a caso de expulsão, ninguém tinha qualquer ilusão sobre o que eles representavam — o papado — e muitas vezes a função dos jesuítas em nome do papado era desvirtuada por seus inimigos. Na América de início do século XIX, a oposição e o ódio protestantes aos jesuítas era expresso com vigor: “Eles [os jesuítas] vão fazer

com que Roma governe a União.” Aquela identificação com o papado e aquela dedicação a ele tinham sido

a vontade e a intenção de Inácio, seu fundador; e fora a condição sob a qual o papado consentira em criar a Sociedade de Jesus. Na vida e na mor te, os jesuítas escreveram realmente a história como “homens do papa” — fosse o padre jesuíta Peter Claver consumindo sua existência entre es cravos sul-americanos; ou o padre Matteo Ricci tornando-se um autêntico mandarim na corte imperial de Beijing; ou o padre Peter Canisius, o Mar telo dos Hereges, recuperando províncias e cidades inteiras do protestantismo com suas incansáveis e incessantes viagens, pregações e obras escritas; ou o padre Walter Ciszek definhando no gulag soviético por dezessete anos; ou o padre Jacquineau servindo de mediador ente japoneses e chineses que guerreavam por causa de Hong Kong; ou o padre Augustin Bea, viajando clandestinamente pelos quatro pontos cardeais da União Soviética na época de Stalin, para obter um retrato fiel das condições para a Santa Sé; ou o padre Tacchi Venturi levando de um lado para outro as negociações entre o ditador Benito Mussolini e o papa Pio XII.

Não importa quem fossem ou onde estivessem, ou o que fizessem, inerente na mente de cada jesuíta estava aquele santa estrutura da Igreja de Cristo, ancorada por Jesus ao seu vigário pessoal, o papa, e mantida unida pela hierarquia de bispos e sacerdotes, pessoas religiosas e leigas em união com aquele vigário pessoal de Cristo. E não importa o ano ou

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o século em que trabalhasse, cada jesuíta sabia que a Igreja Católica a que ele jurara servir sob as ordens do papa era a mesma Igreja que havia existido no século VI sob Gregório o Grande, no século XI sob Inocêncio IX e em 1540 sob Paulo III.

De lato, o que mantinha a vontade deles com relação ao seu traba lho por grandes distâncias de espaço e tempo era a lendária obediência jesuítica, consagrada pelo seu voto especial: o de que todo e qualquer trabalho que realizassem seria sob a obediência papal.

Para os inimigos dos jesuítas, enquanto isso, eram precisamente o s erviço e a obediência ao papado que constituíam a abominação jesuíti ca. Seus críticos nunca cessaram de acusar os jesuítas de terem distorcido a filosofia humanista. Mas o escritor francês F. R. de Chateaubriand, que não era nada amigo da Sociedade, foi muito preciso em seu julgamento quando disse que “o leve dano

que a filosofia pensa lhe ter sido causado pelos jesuítas” não vale a pena ser

lembrado, tendo em vista “os incomensuráveis serviços que os jesuítas têm

prestado à sociedade humana”. A mentalidade e a perspectiva criadas pelos jesuítas atingiram seu ponto

máximo de desenvolvimento na primeira metade do século XX. Co mo resultado de seus esforços, houve uma pseudo-renascença do catolicismo social e cultural, permitindo que os católicos fossem cien tistas, tecnólogos, psicólogos, sociólogos, cientistas políticos, líderes, artistas, eruditos, saindo -se bem mesmo nos campos mais novos do conhecimento e, no entanto, conciliando tudo com a sua crença firme como um roche do. O testemunho de tudo isso se encontra em muitas coisas — na poesia e na literatura de um G. K. Chesterton e um Paul Claudel; na sociologia militante de católicos franceses, alemães, belgas e italianos entre as duas guerras mundiais; na florescente missiologia que transformou os campos missionários da Ásia e da África; na temível escola de apologética na Europa e nos Estados Unidos; na padronização das devoções populares e dos regulamentos eclesiásticos; no vibrante catolicismo dos Estados Unidos; e quando nada, no relutante mas finalmente admitido respeito, por parte tanto de católicos como de não -católicos, que ficou evidente com relação ao catolicismo no mundo na década de 1950.

Durante a época de seu maior florescimento, na primeira metade do século XX, o número de jesuítas atingiu o seu apogeu — cerca de 36.038

— dos quais pelo menos a quinta parte era de missionários. A influência jesuítica sobre a política papal nunca foi maior, nem antes nem depois; e o prestígio dos jesuítas entre os católicos e os não-católicos nunca foi mais elevado.

No entanto, já um pouco de podridão interna estava corroendo tan to os jesuítas como o corpo eclesiástico católico. Um câncer oculto, inse rido décadas antes naqueles corpos, ficara neutro, mas não benigno.

Sintomas ocasionais traíam a sua presença — às vezes, revoltas de jesuítas em caráter individual; de vez em quando, abusos flagrantes na liturgia por parte de grupos individuais; raramente, mas com regularida de, a confusão entre atividade espiritual e vantagem política. Mas nada

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do que acontecia vaticinava a violenta mudança que aguardava a Igreja, o papado e os jesuítas na década de 1960.

Com plena visão das realizações sem paralelo, torna -se fascinante examinar que tipo de característica a Sociedade de Jesus desenvolveu durante suas atividades ao longo de séculos, e por que ou como, no século XX, ela transmudou a sua finalidade original. Não que seja esta a primeira vez em que um ou outro grupo da Igreja saiu de forma e decla rou guerra ao papado. Mas é a primeira vez que a Sociedade de Jesus se voltou contra o papado com a nítida ideia de desfazer as prerrogativas do papado, diluir o governo hierárquico da Igreja Católica e criar uma nova estrutura da Igreja; e é a primeira vez que a Sociedade de Jesus, tanto em bloco como por seus membros indiv iduais, empreende uma missão sócio-política. Iñigo fundou a sua “Companhia de Jesus”, como ele a chamava originalmente, com uma finalidade: ser a defensora da Igreja e do papado. O papa que deu à Ordem uma existência oficial, no século XVI, tornou aquela finalidade a missão da Sociedade e a razão de sua existência. Co mo instituição, ela sempre esteve presa ao papa. Seus membros professos sempre estiveram ligados ao papa por um voto sagrado de absoluta obediência. Durante 425 anos, eles ficaram ao lado do papado, foram soldados em suas batalhas, ensinaram suas doutrinas, sofreram suas derrotas, defenderam suas posições, compartilharam de seus poderes, foram atacados por seus inimigos, e constantemente promoveram seus interesses por todo o globo. Eram considerados por muitos, tal como eles mesmos se consideravam, os “homens

do papa”; e os muitos privilégios extraordinários concedidos por papas ao longo dos séculos eram como distintivos da confiança que o papado tinha na Sociedade.

Nunca, pode-se dizer, a Sociedade de Jesus, como um bloco, se desviou dessa missão, até 1965. Naquele ano, o Concílio Vaticano II encerrou a última de suas quatro sessões; e Pedro de Arrupe y Gondra foi eleito para ser o 27º geral dos jesuítas. Sob a liderança de Arrupe, e na estonteante expectativa de mudança provocada pelo próprio Concílio, o novo ponto de vista — antipapal e de natureza sócio-política — que vinha medrando às escondidas há mais de um século, foi adotado pela Sociedade como pessoa jurídica.

A rápida e completa reviravolta da Sociedade em sua missão e em sua razão de ser não foi acidente ou obra do acaso. Foi um ato delibera do, para o qual Arrupe, como geral, proporcionou uma liderança inspiradora, entusiástica e ardilosa.

As percepções, entretanto, especialmente em questões de grandes ins-tituições religiosas, não se alteram com facilidade ou rapidez. A reputa ção angariada pela Sociedade ao longo de centenas de anos foi a melhor camuflagem para formar uma nova e muito diferente Sociedade que pas sou a existir nos últimos vinte anos. Com efeito, a história passada e glo riosa da Sociedade parece ter tornado invisíveis os feitos presentes e possibilitado à nova liderança jesuítica apresentar ao mundo o seu novo

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ponto de vista como sendo a mais recente e melhor expressão da espiritualidade e da lealdade inacianas.

Para a massa geral dos católicos, clérigos e leigos, era inconcebível que os jesuítas, logo eles, propagassem uma nova ideia da Igreja; ou que passassem a combater um só papa, quanto mais três, difama ndo-o, enganando-o, desobedecendo-o, esperando que cada um deles morresse, na esperança de que o papa seguinte lhes desse plenos poderes.

Inevitavelmente, a guerra dos jesuítas contra o papado intensificou -se durante o pontificado de Karol Wojtyla como João Paulo II. Esse homem carismático, teimoso, chegou ao papado com sua vivida experiência dos marxistas na Polônia. Tudo o que se relacionava com ele — mas em especial seus objetivos, seu plano de ação e sua estratégia como papa — indicava um bem definido afastamento de tudo o que estivera em voga em Roma desde a década de 1950.

Desde o momento de sua eleição, ficou evidente que João Paulo sofria a oposição de muitos elementos da burocracia do Vaticano por ele herdada. O que estava menos claro, mesmo para os veteranos observadores do Vaticano, era que ele também sofria forte oposição, e sua autori dade seria violentamente desafiada, por questões de método de ação, pela Sociedade de Jesus.

Nada que João Paulo tem tentado desde que chegou ao Trono de Pedro em 1978 — e ele já tentou tudo, da persuasão ao confronto e à intervenção direta — dissipou ou mesmo suavizou a decidida postura jesuítica contra ele. Até agora, os jesuítas têm frustrado os esforços do pon tífice para cercá-los; e o exemplo deles ainda está sendo seguido em escala cada vez maior.

Mas, como a Sociedade está aprendendo, esse papa polonês não é outro Paulo VI. Ele se recusa a erguer as mãos em desespero. Ao contrá rio, acaba de iniciar uma nova campanha na guerra, dessa vez num campo de batalha escolhido por ele mesmo.

Como João Paulo está aprendendo, os jesuítas serão tão espertos e tão vivos em sua resposta a cada ofensiva papal como sempre foram em tudo o que fizeram. De fato, foram os jesuítas, e não o papado, que dis pararam a primeira salva de tiros na mais recente confrontação direta, num esforço de tirar a iniciativa do papado e da hierarquia romana.

Seja qual for o resultado dessa campanha mais recente, e de outras que se seguirão, com toda certeza, não pode haver dúvida de que durante a nossa geração aquilo que o papado representa tornou-se inaceitável para os jesuítas; e que aquilo que a Sociedade de Jesus passou ultimamente a defender é hostil ao papado e, portanto, inaceitável para ele.

No entanto, apesar do fato de que cada qual se coloca num pólo oposto ao outro, ainda permanecem poderosas similaridades entre o pa pado e a Sociedade — similaridades que irão significar que a guerra en tre eles será mortal a um nível e a um grau atingidos por poucas guer ras.

A primeira e mais poderosa similaridade é o inextirpável senso de

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missão divina que é o instinto motor tanto no papado como nos jesuítas. Cada um deles alega estar agindo unicamente para o bem-estar do povo de Deus no mundo inteiro e para a exaltação da Igreja que Cristo fundou sobre Pedro.

Uma segunda é que, como organizações que lidam com potencial humano e dons naturais, cada qual segura com mão firme as alavancas de um imenso poder temporal. Cada qual aplica suas energias e seus re cursos a situações específicas visando a fins particulares, concretos e definidos.

Apesar de tudo — e isto é uma terceira similaridade — em meio à paixão e à aparente confusão que sempre acompanham a atividade hu mana, tanto o papado quanto os jesuítas operam num plano universal e desprovido de pai xão, com motivos que não permitem a vulnerabilidade dos sentimentos humanos. Ambos tentam agarrar o valor do momento presente, passageiro. Mas ambos têm lembranças respeitáveis; ambos medem constantemente seus planos e ações por um gabarito do futuro que desejam ver tornado realidade; e ambos partem do pressuposto de que o tempo está do seu lado. Bastante tempo.

É neste ponto capital relativo ao tempo que melhor pode ser percebi do o inevitável resultado de todas as batalhas. Porque na perspectiva ca tólica romana — e também na perspectiva do jesuitismo inaciano clássico — existe outra dimensão, outra condição de existência humana, que ofusca essa guerra entre o papado e a Sociedade: dois poderes cósmicos — o bem inteligente e o mal inteligente, personificados em Deus e Lúcifer — estão atracados numa luta de vida ou morte pela fidelidade de todos os seres humanos. Essa luta só se torna tangível — pode ser rastreada e identificada — nos múltiplos detalhes de complexas situações humanas. Mas, pela mesma razão, tudo o que é tangível, toda e qualquer situação humana, é colorido pelo que é trans-humano e eterno.

É essencialmente nesse plano que está sendo travada a guerra entre o papado e a Sociedade de Jesus. E nesse plano, só o papado é que tem a promessa divina de tempo.

No plano que ocupamos como espectadores dos acontecimentos con -temporâneos, não temos possibilidade de prever quais as sementes do bem poderão germinar no que temos que resumir como área de calamidade. Estamos demasiado próximos desses acontecimentos. Falta-nos perspectiva — bem como presciência. A visão que temos pelo espelho da história é obscura. Não podemos, portanto, saber quais as alterações que haveria na Sociedade de Jesus se todos os extremismos atuais da Ordem dos je suítas fossem eliminados — entendendo-se por extremismos óbvios o abandono do ensinamento católico romano básico, a substituição dele por soluções sócio-políticas, e o abandono inevitavelmente consequente da primordial vocação dos jesuítas de serem “homens do papa”. Uma tal reforma da Sociedade e uma nova adesão ao seu carisma inicial parecem, humanamente falando, improváveis quando se analisa até mesmo uma branda acusação de suas condições em nossos dias.

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1ª PARTE

A ACUSAÇÃO

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1 . OBJEÇÕES PAPAIS

Todo papa competente estabelece uma estratégia dominante para o seu papado. Formula muitos planos de ação, persegue vá rios objetivos determinados: mas todas as políticas e cada objetivo são enquadrados na esfera daquela estratégia.

A Sociedade de Jesus foi criada pelo papado em 1540 como “unidade de combate” muito especial, à disposição total do papa romano — fosse ele quem fosse. Desde o início, os jesuítas foram concebidos num estilo militar. Soldados de Cristo, receberam dois objetivos: propagar a doutrina religiosa e a lei moral do papa romano, e defender os direitos e prerrogativas daquele mesmo papa. Objetivos puramente espirituais e sobrenaturais. E especificamente católicos romanos. E o surpreendente foi que, devido a esse mandato da Sociedade, a própria estratégia papal s e tornou a cunha da separação entre os jesuítas e o papado — na verdade, a própria arena em que está sendo travada a batalha entre os dois.

Pio XII, papa de 1939 a 1958, se viu num mundo novo dominado por duas superpotências rivais, uma das quais — a URSS — ele excomungou. Sua política de pós-guerra foi de uma intratável oposição ao marxismo soviético e de apoio à civilização “ocidental”, centralizada na Europa e protegida pelos

Estados Unidos. João XXIII, papa de 1958 a 1963, estava convencido de que uma política

de “janelas abertas, campos abertos” induziria outros — inclusive os soviéticos — a reformarem suas atitudes e políticas. O papa João arriou tantas barreiras entre a Igreja e o mundo — inclusive a União Soviética — quanto lhe foi possível em seu curto e muito ativo pontificado. Chegou, até, a garantir à União Soviética imunidade aos ataques da Igre ja, uma assombrosa reversão das atitudes papais.

Foi um enorme jogo. E que só podia funcionar se reinasse entre os adversários participantes uma dose adequada de boa vontade.

O jogo fracassou. O grande detalhe comovente foi que, ao morrer, o papa João, aquele camponês realista, sabia que a sua abertura tinha sido vista como fraqueza, e dele se tinham aproveitado homens de um espírito muito inferior.

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O papa Paulo VI, 1963-1978, cego para as deficiências da política de João, aprimorou-a ainda mais. A Santa Sé se tornou nada menos do que uma querelante no tribunal do poder soviético, pleiteando, no âmbi to diplomático, uma audiência; organizando conversações cautelosas; praticando a arte irresoluta das aproximações concessórias — e até mesmo se rebaixando ao mesquinho engano e traição do reconhecidamente difí cil primaz da Hungria, cardeal Mindszenty, a fim de agradar os soviéti cos e seu castrado representante húngaro, Janos Kadar.1

Em tudo isso, Paulo VI, pessoalmente o mais delicado de todos os papas modernos, comprometeu inconscientemente a sua autoridade papal. Sua grande estratégia para a sua Igreja foi arrebatada e prostituída por terceiros, reduzindo-o a uma impotência que deixou cicatrizes nos seus últimos anos atormentados pela doença, até sua morte no dia 6 de agosto de 1978.

Ainda assim, foi Paulo VI que, quando seu período papal já ia mui to avançado, percebeu que o propósito duplo original da Sociedade de Jesus tinha sido alterado. Durante o seu pontificado, foi organizado extenso dossiê crítico sobre a Sociedade. Por enquanto, é suficiente di zer que o que esse dossiê continha era comprometedor. Era um retra to, na realidade, de uma ordem jesuítica que, como um cata-vento no alto de um telhado, tivesse sido virada por um vento diferente. Para os jesuítas, o papado já não tinha a primazia de posição. O objetivo coletivo da Sociedade era colocar -se, junto com a Igreja, à disposição de uma mudança radical e puramente sócio-política do mundo, sem se reportar — na verdade, desafiando — à estratégia, às políticas e aos ob-jetivos papais.

Em 1973, Paulo VI, alarmado mais do que nunca pela maneira de os membros da Sociedade se portarem, tentou deter a investida dos acon-tecimentos. Reuniu-se várias vezes com o chefe da Ordem, o padre-geral jesuíta Pedro Arrupe. Boa parte desses encontros entre os dois homens foi tempestuosa. Mais de uma vez, Paulo quis que Arrupe renunciasse ao cargo. De uma maneira ou de outra, Arrupe sobreviveu a todos os ata ques papais. Paulo VI insistiu, mesmo, que Arrupe transmitisse a seus jesuítas “nossa ordem de

que os jesuítas continuem leais ao papa”. Ar rupe e seus assistentes em Roma, àquela época, estavam decididos a se preparar para outra reunião internacional da Ordem, uma Congregação Geral, como é chamada essa assembleia. Por isso, foi ganhando tempo, um tempo precioso. Paulo, na sua fraqueza, não encontrava outra alternativa que não a de esperar.

Paulo fez uma última, mas ineficaz, tentativa de lembrar a obediência da Sociedade ao papado, durante a assembleia internacional de líde res jesuítas, que durou 96 dias, a XXXII Congregação Geral de 1974-1975. Seus esforços encontraram total incompreensão e uma obstinada — farisaica até, alguns disseram — oposição por parte da Ordem. Papa e jesuí tas simplesmente não conseguiram chegar a um acordo. Os jesuítas não queriam obedecer. Paulo estava fraco demais para forçar mais o debate.

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“Quando se tem pessoas [os jesuítas]”, escreveu o padre jesuíta M. Buckley a respeito da atitude de Paulo para com aquela XXXII Congre gação Geral, “que não acham que tenham cometido erro, quer de conteúdo, quer de

procedimento, e quando essas pessoas sofrem a desconfiança, resistência ou reprovação do próprio homem que elas estão tentando servir (...) tem-se (...) um problema religioso muito sério.”

Para dizer o mínimo. O cardeal Albino Luciani, de Veneza, foi eleito para suceder Paulo VI no

dia 26 de agosto de 1978. Mesmo antes de se tornar papa, parece que ele já tomara uma decisão notadamente desfavorável com relação à Sociedade.

E aparentemente a Sociedade já tomara uma decisão com referência ao papa João Paulo I. Assim que foi eleito, os jesuítas fizeram suas reivindicações. O padre Vincent O’Keefe, o mais destacado dos quatro assistentes -gerais de Arrupe, e que estava sendo preparado para suceder a Arrupe um dia como geral da Ordem, declarou em entrevista a um jornal holandês que o novo papa deveria rever a condenação da Igreja ao aborto, à homossexualidade e ao sacerdócio feminino. A entrevista foi publicada.

O papa João Paulo I ficou enfurecido. Aquilo era mais do que des prezo. Era uma afirmação de que a Sociedade de Jesus sabia, mais do que o papa, quais os princípios morais que os católicos deveriam praticar. E era uma afirmação de que a Sociedade tinha autoridade para dizer o que pensava; isto é, era uma apropriação direta da autoridade que pertencia exclusivamente ao papa.

João Paulo I mandou chamar Arrupe e exigiu uma explicação. Arrupe prometeu, humildemente, investigar o caso todo. Mas João Paulo podia sentir o que estava no ar, tão bem quanto qualquer papa. Com base no dossiê crítico de Paulo VI, e com a ajuda de um velho jesuíta muito experiente, padre Paolo Dezza, que tinha sido confessor do papa Paulo VI e agora era o confessor de João Paulo I, o papa redigiu um violento discurso de aviso. Ele planejava proferi-lo à assembleia internacional de líderes jesuítas com o geral Arrupe, em outra de suas congregações gerais a ser realizada em Roma em 30 de setembro de 1978.

Uma das características mais notáveis do discurso era a repetida re ferência que João Paulo I fazia aos desvios doutrinários por parte dos jesuítas. “Que não

aconteça que os ensinamentos e as publicações dos jesuítas contenham alguma coisa que cause confusão entre os fiéis.” O desvio doutrinário era, para ele, o

mais ominoso sintoma do fracasso jesuítico. Encoberto pelo polido verniz de sua graciosa romanità, aquele discurso

continha uma clara ameaça: a Sociedade dever ia voltar ao seu papel adequado e prescrito, ou o papa seria obrigado a tomar providências.

Que providências? Com base nos memorandos e notas de João Paulo, está claro que, a menos que fosse factível uma rápida reforma da Ordem,

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ele tinha em mente a efetiva liquidação da Sociedade de Jesus tal como existe hoje — talvez para ser reconstituída mais tarde, numa forma que fosse mais controlável. João Paulo I recebeu pedidos de muitos je suítas implorando para que não fizesse aquilo.

O papa nunca proferiu aquele discurso de aviso. Na manhã de 29 de setembro, depois de 33 dias no Trono de Pedro, e um dia antes de se dirigir à congregação geral da sociedade, João Paulo I foi encontrado mor to em seu leito.

Nos dias que se seguiram, o geral jesuíta Arrupe apresen tou um pedido ao cardeal Jean Villot, que como secretário de estado do Vaticano governava a Santa Sé no período intermediário entre a morte de João Paulo I e a eleição de seu sucessor: será que os jesuítas poderiam obter uma cópia do discurso?

Depois de uma discussão com o Colégio de Cardeais, que o estava ajudando nos preparativos para a eleição do próximo papa, o cardeal pru -dentemente negou o pedido. Arrupe foi avisado de que, na opinião de Villot e do concílio, “estava mais do que na hora de os jesuítas colocarem seus assuntos em ordem”.

Por sua parte, Arrupe e os jesuítas decidiram não fazer nada e ver quem se tornaria o papa seguinte. Tempo era o artigo que eles sempre procuravam ter.

Mais do que nenhum de seus dois antecessores imediatos, Karol Wojt yla, da Polônia, eleito como João Paulo II no dia 16 de outubro de 1978, não podia hesitar naquela questão dos jesuítas. A grande estratégia papal de João Paulo II abrangia o Primeiro Mundo do capitalismo, o Segundo Mundo do comunismo soviético e o Terceiro Mundo dos chamados países subdesenvolvidos e em desenvolvimento.

Wojtyla foi extremamente sagaz ao analisar o caráter e as limitações da estratégia papal a partir de 1945. Em sua opinião, Pio XII havia guia do a Igreja na base de uma mentalidade de “cerco”, só permitindo à es tratégia papal um movimento clandestino dentro do império soviético, mas não oferecendo desafio algum à continuada erosão da Igreja naque la área. A política de “campos abertos”, de João XXIII, tinha sido um fracasso. A política de Paulo VI consistira apenas de uma refinação de uma política já defeituosa e fracassada. Até a época da morte de Paulo VI em 1978, seu Secretariado de Estado conseguira elaborar protocolos de acordo com mais de um governo -membro da “fraternidade” socialis ta soviética, mas nenhum tinha sido rubricado, quanto mais assinado e transformado em lei. De qualquer maneira, ainda que aqueles protocolos tivessem sido ratificados, já se tornara claro que não teriam feito diferença alguma para a situação dos católicos romanos sob domínio soviético.

Segundo a análise de João Paulo II, enquanto os chamados Primei ro, Segundo e Terceiro Mundos ficassem trancados no frio glacial da ri validade de superpotências alimentada indefinidamente pelo sistema de “bola ao chão”

entre o marxismo-leninismo e o capitalismo rígido, não haveria a mínima esperança, em termos mundanos, de que alguma coisa

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pudesse ser salva — de que qualquer batalha fosse vencida ou de que fosse encontrada qualquer solução para o perigoso dilema das nações. A situação só iria se desintegrar, lenta mas inevitavelmente, possivelmente arrasando a civilização tal como os homens a conheceram no último quarto do século XX, e reduzindo a história humana a uma longa e angustiada caminhada sonambúlica até o fim da noite humana.

Wojtyla achou que estava na hora de adotar uma norma de ação completamente diferente daquela que Pio, João, ou Paulo, tinha adotado antes dele. Sua abordagem seria na base da “força muscular”: onde os católicos constituíssem maioria ou, então, uma minoria de bom tamanho, em sociedade fechadas, deveriam exigir o espaço sócio-político que lhes cabia por direito — reivindicar seus direitos, em outras palavras, sob a alegação de que a sua simples presença como católicos romanos seria suficiente para garantir a defesa daqueles direitos.

Quando cardeal-arcebispo da Cracóvia, na Polônia, Wojtyla já ha via afiado sua sagacidade no planejamento de uma estratégia pela qual tais maiorias e minorias católicas que ele tinha em mente pudessem rei vindicar seus direitos; no entanto, não havia entrado em conflito com o totalitário e inescrupuloso controle militar característico dos governos co munistas.

O método de “força” de João Paulo não afastou a hipótese de diá logo e discurso com os soviéticos e seus representantes. Pelo contrário. Mas seria de um tipo totalmente diferente daquele que João XXIII ou Paulo VI tinha adotado. E de fato, nenhum líder mundial de hoje tem falado aos líderes soviéticos com tanta frequência e de forma tão direta quanto João Paulo II, logo desde o princípio de seu pontificado. Ele recebeu o prestigiado Andrei Gromyko, da União Soviética, que participara de muitos governos, no dia 24 de janeiro de 1979, pouco mais de três meses depois de sua eleição papal. Foi apenas o primeiro de oito encontros pessoais entre este pontífice e Gromyko entre 1979 e 1985. Suas conversas telefônicas com a Europa Oriental e com a União Soviética são assunto seu; é bastante que se diga que elas acontecem. Se você é um eslavo dos eslavos, se você fala russo além de duas ou três outras línguas europeias orientais, se você é papa, e se você é Karol Wojtyla, os agentes do poder desejam falar com você.

Seria essencial, para a estratégia “de força” de João Paulo II, que ele

proporcionasse e impusesse, com sucesso, uma nova liderança mundial alimentada exclusiva e inquestionavelmente por motivos morais e es pirituais. A fim de ter até mesmo uma esperança de vencer numa estratégia assim tão ousada e tão radical, João Paulo II teria que demonstrar a lide rança que ele estava propondo em suas áreas-chave: sua autoridade suprema quanto a doutrina e moralidade teria que ser defendida e reafirmada dentro de sua Igreja de âmbito mundial; e deveria haver um exemplo concreto do que aquela liderança podia oferecer como solução para o dilema internacional.

Daí as duas linhas mais visíveis da atividade papal de João Paulo:

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suas viagens pelo mundo todo e sua cuidadosa orientação do movimento Solidariedade na Polônia. O aparecimento dessa figura papal em todos os principais países e em muitos outros sem tanta importância seria o meio de restabelecer aquela autoridade. E se o movimento Solidariedade con seguisse a liberdade de ação econômica e cultural sob a égide do comu nismo soviético na Polônia, os comunistas e os capitalistas teriam um exemplo vivo para mostrar que a política doutrinária não precisa resultar em escravidão, pobreza ou um devastador militarismo.

Com a orientação e a ajuda financeira de João Paulo II, o primaz da Polônia, cardeal Stefan Wyszynski, de oitenta anos, estava obtendo progresso no desenvolvimento de uma atitude na organização do Solida riedade através da qual a Igreja e seu povo pudessem escapar, cultural e socialmente, das garras do comunismo. O éthos do Solidariedade foi desenvolvido precisamente pa ra permitir essa liberdade cultural e social, enquanto deixava intato o controle político e militar do marxismo. “Não ameacem os marxistas do Partido

Comunista da Polônia, no Parlamento Nacional, no seu exército ou em suas forças de segurança”, era o lema dos fundadores do Solidariedade. “Deixem-nos em paz. Vamos reivindicar liberdade nas outras áreas.”

Ao mesmo tempo, no outro lado do mundo, na área que se estende das fronteiras sul do Texas até à ponta da América do Sul, jesuítas e ou tros estavam executando uma política própria como criadores e princi pais fomentadores de uma nova concepção — que eles chamavam de “Teologia da

Libertação”, numa tentativa caracteristicamente eficiente de inspirar um apelo

romântico — baseada em princípios revolucionários marxistas e visando instalar um sistema comunista de governo. A contra dição entre o modelo polonês de João Paulo e o modelo de “Libertação” defendido ardorosa e

abertamente pelos jesuítas na América Latina não poderia ter sido mais completa ou petulante.

João Paulo II, como João Paulo I antes dele, tinha conhecimento do dossiê sobre os jesuítas compilado na época de Paulo VI. E tinha em seu poder, também, o discurso de reprovação que João Paulo I havia preparado mas nunca pronunciara. Em novembro de 1978, um mês após sua eleição, o papa enviou o discurso de João Paulo I ao padre-geral Arrupe no Gesù, como é chamada a sede internacional dos jesuítas em Roma. O papa queria que o gesto tivesse a natureza de um aviso benigno: é co mo se este discurso tivesse sido escrito por mim, dizia o gesto. Em respos ta, como era de se esperar, ele recebeu do geral os devidos protestos de lealdade e obediência. Mas estes iriam revelar-se apenas isso: protestos.

Na noite de 31 de dezembro, como gesto de boa vontade, o papa fo i à igreja jesuítica do Gesù, a fim de honrar a Sociedade com a sua presen ça durante as tradicionais cerimônias religiosas de fim de ano, de dar gra ças a Deus. João Paulo mandou dizer aos jesuítas, de antemão, que não queria ver nenhum deles em trajes civis. E não viu. Talvez fosse uma pequena concessão ao papa, ao qual cada um dos presentes prestara votos importantes e sem igual. Mas foi a única.

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Até mesmo a comitiva de João Paulo observou a polida frieza dos notáveis jesuítas reunidos para a ocasião. Depois das cerimônias religiosos, o papa jantou com os jesuítas no refeitório deles. Foi cortês em suas observações, reclamou um dos jesuítas presentes mais tarde, mas “não nos fez

a menor insinuação sobre o futuro da Sociedade”. Aquela reclamação tinha um significado que daria para encher volumes,

Os jesuítas tinham conseguido ignorar Paulo VI e João Paulo I. Por que iriam precisar de João Paulo II? Os jesuítas teriam simplesmente que ter paciência e sobreviver a esse papa, como haviam sobrevivido aos doi s anteriores.

Dois meses após aquele encontro de fim de ano entre o papa e seus jesuítas, nos meses de fevereiro e março de 1979 o geral Arrupe convocou entrevistas coletivas no México e em Roma, nas quais afirmou afavelmente que não havia atrito algum ent re o santo padre e os jesuítas. Sim, confirmou Arrupe a jornalistas no Gabinete Internacional de Imprensa da Santa Sé, ele havia recebido aquele discurso de João Paulo I, que João Paulo II havia assumido como sendo dele próprio. Falava-se, continuou ele, que o documento “tinha um sentido pejorativo e era uma reprimenda” dirigida às

alterações feitas na Sociedade sob a liderança de Arrupe que já durava quatorze anos. Mas aquilo era um absurdo, disse Arrupe. O papa sabia que, “naturalmente, a Sociedade de Jesus havia mudado”, continuou ele. “Não

poderia ser de outra maneira, ao ver que a própria Igreja havia mudado.” Não

havia, na realidade, atrito algum, concluiu ele. Sua Santidade pensava o contrário: havia um grave atrito. Aquilo que

João Paulo chamava de “atrito sobre pontos fundamentais”. Teólogos e escritores jesuítas, na Europa e nas Américas, tinham estado,

e ainda estavam, ensinando e escrevendo sobre crenças e leis católi cas de uma maneira que se opunha aos ensinamentos papais tradicionais e aos ensinamentos anteriores da Igreja como um todo — sobre a autoridade papal; sobre o casamento entre o marxismo e a cristandade; sobre a moralidade sexual em todos os seus aspectos; sobre crenças sagradas católicas como a Conceição da Virgem Maria, a existência do Inferno, o sacerdócio. Eles estavam, na verdade, redefinindo e remodelando tudo do catolicismo que os católicos sempre consideraram como valores pelos quais valia a pena viver e morrer — inclusive a própria natureza e consti tuição da Igreja que Cristo fundou.

O geral Arrupe continuou a permitir a publicação de livros que con -tradiziam toda a gama de ensinamentos tradicionais, e a defender seus homens que escreviam e ensinavam segundo aquela orientação. Nenhum apelo papal ao padre Arrupe jamais pareceu ter qualquer efeito, diante da complicada e engenhosa delonga do geral jesuíta.

Arrupe iria examinar a situação, prometia ele ao santo padre. Dizia ele que já tinha inquéritos em mãos. Iria mandar informações o mais rá pido possível. Era difícil separar a verdade de boatos malévolos. Ele fa ria esforços no sentido de esclarecer posições. Era preciso tempo. Seus homens estavam fazendo o possível. Seus pontos de vista tinham sido dis torcidos.

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As acusações contra seus homens eram demasiado vagas. Ele preci sava de nomes, detalhes, datas e lugares. O padre Arrupe faria, na verdade, qualquer coisa, exceto levar seus homens de volta à condição de homens do papa. Em especial a homens daquele papa.

Aos olhos de João Paulo, era significativo o fato de o geral Arru pe ter permitido que se chegasse àquela situação. Afinal, diz a razão que se, como dirigente da Ordem, você permite que um de seus jesuítas publique um livro defendendo uma mudança na oposição da Igreja à homossexua lidade, você, como geral, tem que considerar o assunto como questão em aberto. O jesuíta John J. McNeil teve permissão de seus superiores americanos e romanos para publicar um livro desses. Se você apoia repetidas vezes o trabalho de outro de seus jesuítas que vota abertamente no Congresso dos Estados Unidos a favor do financiamento do aborto, você, como geral, deve considerar que o aborto, também, é uma questão que de qualquer modo está em aberto. Juntamente com os superiores jesuítas americanos, Arrupe aprovou repetidamente a carreira de dez anos no Congresso do padre Robert F. Drinan, que fez exatamente isso. “Rejeitamos a ideia”, disse Arrupe, contrariando diretamente o desejo e a

ordem explícitos de João Paulo, “de que os jesuítas devam evitar

sistematicamente todo envolvimento político.” Ao final do verão de 1979, estava claro para João Paulo que Arrupe não

iria fazer coisa alguma para deter até mesmo aqueles dentre os seus comandados que lançassem dúvidas sobre doutrinas básicas que iam da divindade de Jesus à infalibilidade do papa.

Em setembro de 1979, cerca de doze presidentes de conferências jesuíticas nacionais e regionais reuniram-se em Roma para um encontro com Arrupe. Este e seus assessores jesuítas acharam que seria boa ideia ter uma audiência com o santo padre. Em consequência, Arrupe requereu e teve autorizada uma audiência para ele, seus principais assessores jesuí tas de Roma, e os doze presidentes visitantes.

A audiência teve lugar no Vaticano, no dia 21 de setembro. João Pau lo posou para fotografias com os presentes, conversou sobre amenidades depois de seu discurso formal, ofereceu rosários a cada um deles. Mas não havia como ter dúvidas quanto à sua mensagem.

“Os senhores estão causando confusão entre o povo cristão”, recla mou o pontífice em sua mensagem aos líderes jesuítas, “e ansiedade à Igreja e,

também, pessoalmente ao papa que lhes fala.” O papa relacionou suas reclamações contra os jesuítas, falando em suas “lamentáveis deficiências” e

sua “heterodoxia doutrinária”, e pedindo a eles que “vol tassem à total fidelidade ao magistério supremo da Igreja e ao pontífice romano”. Disse ele

que não podia ser mais explícito ou estender muito mais sua paciência para com os desvios dos jesuítas.

Já não havia mais como dissimular sob a forma de uma reclamação de que o papa “não nos deu o menor sinal quanto ao futuro da Socieda de”. Mas

existiam outros recursos, e os homens da Sociedade sempre fo ram engenhosos.

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Arrupe mandou uma carta-circular, datada de 19 de outubro, a todos os superiores provinciais da Sociedade, junto a uma fotografia — uma cópia para cada comunidade de jesuítas no mundo inteiro e, naturalmen te, destinada a ampla divulgação nos meios de comunicação mundiais — mostrando ele próprio, como geral, ajoelhado diante do papa. Sua carta, ordenava ele, deveria ser lida por todos os seus 27.347 jesuítas.

João Paulo II, lembrava ele a seus homens, era o terceiro papa que chamara a atenção deles. Citou as palavras de João Paulo II no discurso de 21 de setembro e ordenou relatórios anuais de todos os superiores so bre a maneira pela qual estavam observando as admoestações de João Paulo.

Terminada a leitura da carta, porém, o seu tom e o seu arcabouço eram meramente políticos. Na verdade, dizia o geral, os jesuítas não ti nham observado as convenções exteriores formais que normalmente atendem às exigências papais e às condições burocráticas romanas. Sua carta era, em essência, um convite para que os jesuítas pensassem em como estavam agindo e apresentassem racionalizações e explicações que ficassem de acordo com as normas exteriores e, com isso, contrabalançassem as críticas papais.

Nem uma só vez Arrupe disse rudemente: nós, os jesuítas, nos des viamos de nosso caminho. Como superior geral, eu agora proíbo isso, mande voltar aquele homem, expulse esse outro, imponha as seguintes normas e reformas. Ao contrário, a carta dava a entender: temos dificuldades políticas com este novo papa; ajudem-me na área política.

A reação à carta — e, portanto, às críticas de João Paulo — foi do tipo da carta de Arrupe. O padre Arrupe recebeu aquilo que, em essência, havia pedido: comentários de jesuítas em enormes quantidades, alguns muito ressentidos, sobre as admoestações do papa. Como dizia uma piada interna, Arrupe foi uma vítima da “chuva radiativa” da “bomba W [de Wojtyla]”.

Embora a tática de Arrupe para lidar com a situação tivesse produzi do seus frutos sob a forma de muito papel, um cardeal romano observou que “ele

não devia ter pedido cartas em quantidade para encher uma cesta — o que conseguiu — mas a cabeça sangrando de uns 5.000 jesuítas — os maiores pecadores — todas bem arrumadas em bandejas de madeira”.

Fosse como fosse, não houve sinal algum da esperada mudança. Não estava à vista qualquer alteração do comportamento dos jesuítas como organização.

Tudo aquilo estava ficando demais. Àquela altura, João Paulo II es tava com uma grande pressa histórica. O movimento Solidariedade esta va sendo preparado para a sua primeira grande operação em público; até onde João Paulo podia apurar pelas sondagens em Varsóvia e Moscou, o futuro que se havia planejado para o Solidariedade poderia chegar. Ao mesmo tempo, a irritante realidade era que, do outro lado do Atlântico, a estratégia adversária dos jesuítas estava progredindo com a mesma ra pidez, se não mais depressa. Acima de tudo na Nicarágua.

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A Nicarágua estava, na verdade, se transformando rapidamente num teste público e dramático da disputa entre papa e jesuítas. Lá, os objeti vos do papa e dos jesuítas eram irreconciliáveis. O Solidariedade na Po lônia fora fomentado precisamente para afrouxar o controle marxista efetivo sobre a vida sócio -cultural do povo polonês. Na Nicarágua, os jesuítas visavam criar um sistema marxista de governo que abrangesse a vida sócio-cultural, política e econômica dos nicaraguenses. Se João Paulo não pudesse controlar os jesuítas na Nicarágua, onde o que estava em jogo poderia, em essência, envolver o sucesso de toda a sua estratégia papal, simplesmente não poderia controlá -los em parte alguma.

Por outro lado, do ponto de vista dos jesuítas, se João Pau lo II con-seguisse frustrar sua política explícita de ativismo político em favor de um regime marxista — se o papa fizesse com que o que eles haviam gasto em homens e energia na Nicarágua desse em nada — eles teriam falhado em seus objetivos como organização. O papa iria atacá-los noutra parte qualquer.

Era uma situação antagônica desde o começo. Era claro que o mate rial bélico para a guerra entre o papa e os jesuítas estava no seu lugar.

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2 . O CAMPO DE PROVAS

M

uito antes de João Paulo II entrar em cena com sua estratégia papal radicalmente nova, a Nicarágua já havia sido escolhida, como se por preceito, como campo de provas para a luta global que tomava impulso entre o papado e a sociedade de Jesus.

A Nicarágua é totalmente católica romana por tradição e na prática. Geopoliticamente, é de importância enorme, devido a seu acesso tanto no Atlântico como ao Pacífico, devido a seu potencial de ser praticamente auto -sustentável na parte econômica e, o que não é pouco, graças à sua localização no centro da estratégica ponte terrestre centro-americana entre a América do Norte e a do Sul. Acrescente-se a essas circunstâncias a extrema opressão social e política da dinastia Somoza, que manteve a Nicarágua sob um domínio opressor desde 1937. A mistura resulta explosiva.

Houve um momento, na era moderna, em que teria sido possível outro destino para a Nicarágua. Foi durante a curta vida de Augusto César Sandino, filho de agricultor pobre, que se tornou um general revolucionário de muito sucesso. Em 1926, ainda na casa dos vinte, ele já era militarmente bastante forte e já conhecia o suficiente das táticas de guerrilhas para fugir à captura por uma força de 2.000 fuzileiros navais americanos e pela Guarda Nacional nicaraguense. Sua intrepidez e sua liderança mi litares eram tão irresistíveis, que ele obrigou o presidente Franklin D. Roosevelt a criar a famosa “Política

da Boa Vizinhança”. Em 1933, os fuzileiros foram retirados e um presidente

nicaraguense legalmente eleito tomou posse. Sandino tinha uma grandeza potencia l. Para ele, a guerra era apenas outra

maneira de procurar a diplomacia. Tão logo a diplomacia se tornou possível, ele depôs as armas e entrou para a vida pública. Quase não há dú vidas de que, com o tempo, teria liderado politicamente o seu país. Seu ca risma pessoal, sua inteligência e sua profunda fé certamente teriam guiado a Nicarágua para uma grandeza própria. Infelizmente, em 1934, ele foi as sassinado aos 37 anos de idade, por membros descontentes da Guarda Na cional.

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Desse ponto em diante, era apenas uma questão de tempo antes que os ingredientes presentes na Nicarágua fervessem a ponto de explodir. A população da Nicarágua, primordialmente mestiza — uma mistura de raças caucasianas e não-caucasianas — foi sangrada, literal e figurativamente, por um regime extremamente corrupto liderado pelo ditador cortês e de olhar indiferente, Anastasio Somoza, e depois pelo filho dele, Luis Somoza Debayle. Os dois Somoza eram apoiados pelos Estados Unidos, e ambos estavam sempre prontos a defender o seu regime com o uso da invulgarmente brutal Guarda Nacional, uma unidade que teria dado orgulho ao corpo de elite de Hitler.

Ao mesmo tempo, entretanto, o assassinato de Sandino havia criado a sua herança. Porque, ao morrer, Sandino se tornara de imediato uma figu ra mítica, representando a independência e resistência nicaraguenses aos odiados “yanquis” e aos assassinos que os yanquis haviam treinado. Os nicaraguenses começaram a formar um romântico ideal revolucioná rio em torno de seu nome. O nacionalismo de um dos maiores poetas latino-americanos, Ruben Darío, e os trabalhos do escritor Salvador Mendieta — ambos nicaraguenses — alimentavam aquele ideal. Ao chegar a década de 1960, toda uma galeria de ativistas jovens e inteligentes se havia reunido nas províncias centro-nortistas de Matagalpa e Jinotega. Diziam-se sandinistas, assumindo, com isso, a capa, a atração e o romantismo do único homem que ainda continuava sendo o defensor e o herói do povo nicaraguense.

Naquela galeria de revolucionários jovens e entusi astas, destacavam-se alguns como protótipos do ideal revolucionário. Um deles era, certamen te, o padre jesuíta Fernando Cardenal. Seu irmão Ernesto surgia como um bom segundo lugar na disputa daquela distinção.

Os Cardenal vinham de uma família nicaraguense de posses. Fernando foi admitido como jesuíta; Ernesto entrou para o seminário diocesano de Manágua. Embora os dois se tivessem tornado marxistas consumados e sandinistas dedicados, seus caminhos eram diferentes. Ernesto, que alguns diziam ser poeta, decidira tentar a vida de monge trapista na abadia de Getsêmani, em Kentucky, sob a direção de Thomas Merton. Ele ado rava Merton, mas não conseguiu aceitar a vida em clausura, motivo pelo qual voltou à Nicarágua e, adotando um novo tipo de monge ativo, mudou-se para a ilha principal de Solentiname, no lago Nicarágua, onde se propunha criar sua própria comunidade monástica. Ernesto tinha ambições de ser o Ruben Darío da revolução sandinista; mas a política e, talvez, uma verdadeira falta de gênio poético, não o deixaram alcançar aquela posição.

Fernando era de outro calibre. De uma beleza robusta, sério e joco so, ora fantasioso, ora pragmático, muito inteligente, filósofo talentoso, orador convincente com uma voz que podia modular para se ajustar à ocasião, Fernando tinha pouco do poetismo de seu irmão; mas possuía uma determinação de ferro disfarçada na linguagem romântica — e às vezes, quando necessário, religiosa. E tinha um dom autêntico para complexidades

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diplomáticas. Vestindo blazer e calças de flanela cinza ao falar em campi

jesuítas nos Estados Unidos, em uniforme de faxina do exército dando ordens de seu gabinete de governo em Manágua, vestindo um traje de passeio de três peças em visita ao cardeal Casaroli no Secretariado de Estado do Vaticano, ou negociando com Castro em Cuba ou com o representante da União Soviética no Panamá, Cardenal estava perfei tamente à vontade.

Seu treinamento jesuítico apenas aguçara uma inteligência já viva. De acordo com a ocasião, ele podia moldar a linguagem. Com o geral jesuíta, sabia que termos jesuíticos usar. Discutindo o assassinato de Luis Somoza Debayle com a junta nicaraguense, ele era igual a seus colegas na linguagem, no propósito e nas palavras. Com os quadros sandinistas, falava de modo tão eficiente quanto qualquer comissário do povo. Numa reunião de bispos e clérigos, sabia envolver a morte e a opressão do marxismo em termos neoteológicos entremeados de referências aparentemente tradicionais à morte e à ressurreição de Jesus.

Dessa maneira, ele se destacava entre seus colegas sandinistas marxistas. Daniel Ortega y Saavedra e Tomás Borge eram marxistas doutrinários. Miguel D’Escoto era rechonchudo de corpo e astuto no modo de agir. Ernesto

Cardenal era impetuosamente romântico. Mas Fernando era o elemento atraentemente frio, calculista — quase uma caricatura do jesuíta de ficção.

Quando Fernando, como seu irmão Ernesto, se uniu aos sandinistas, contou com o apoio irrestrito de seus superiores de todos os níveis na

Sociedade de Jesus. De fato, para os membros comuns dos jesuítas, Cardenal se tornou o paradigma do que um jesuíta do século XX deveria ser: um homem totalmente devotado a corrigir a injustiça perpetrada pe los ricos capitalistas contra os “pobres de Cristo”. Ali estava um homem, dizia -se, que era a personificação da “missão jesuíta para o Povo de Deus”.

Na verdade, foi especificamente como jesuíta que Fernando Carde nal se tornou um íntimo colaborador da maior importância para os sandinistas marxistas. Para eles, nenhum dos dons e habilidades pess oais de Cardenal, por impressionantes que fossem, igualava-se a sua identidade como sacerdote e jesuíta. Os jesuítas tinham, na Nicarágua, uma história muito mais longa e uma influência muito mais profunda do que qualquer outro grupo, inclusive o próprio governo. Missionários jesuítas se faziam presentes na Nicarágua desde 1600. Qualquer que fosse a vida intelectual na Nicarágua, ela era formada pelas escolas, pelos centros de estudos e pelas faculdades dos jesuítas. Os jesuítas proporcionaram a mais comprida cadeia ininterrupta de influência em cada condição social, em todos os níveis, da mais negligenciada aldeia camponesa às mais poderosas dinastias familiares. Quando os sandinistas ficaram prontos para a mobilização na década de 1960, qualquer análise do potencial da Nicarágua que estivesse sendo feita estava nas mãos dos jesuítas. Um homem como Fernando Cardenal era absolutamente essencial à revolução — era, num sentido

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muito verdadeiro, seu combustível, sua força motora e sua reivindi cação de legitimidade tanto entre o povo da Nicarágua como no mundo inteiro.

A luta sandinista contra os Somoza começou com um ataque contra a Guarda Nacional Nicaraguense em Pancasan, Matagalpa, em 1967. Desde o início, a liderança sandinista — inclusive Fernando Cardenal — não hesitou em se identificar como marxista de linha dura ou em revelar sua intenção de ocupar o país por meios violentos e permanecer no poder. Já em 1969, Carlos Fonseca, o principal fundador do sandinismo, publi cou um opúsculo político que revelava um marxismo stalinista de linha dura. Os acordos e pactos que os sandinistas fizeram na década de 1960 com o representante soviético Fidel Castro em Cuba, e com representantes diretos da União Soviética, foram amplo testemunho tanto daquela intenção como da busca de apoio para ela. Os acordos deles com Havana e Moscou diziam respeito a armamentos e propaganda. Fizeram, também, um pacto com a Organização para a Libertação da Palestina, pelo qual a OLP iria treinar sandinistas em táticas de guerrilha.

A combinação geral foi de que a Nicarágua, como nação, seria intei -ramente integrada ao marxismo de um partido único. Não haveria um exército nicaraguense, apenas um exército sandinista “politizado a um grau sem

precedentes”. Nada de Rede Nicaraguense de Televisão, mas apenas a Rede Sandinista de Televisão. A liderança sandinista queria a própria alma do povo nicaraguense, assim como os soviéticos haviam ti rado a alma do povo russo. Mais do que isso, no início da década de 1970, pelo menos sete anos antes de tomarem o poder, os líderes sandinistas proclamaram abertamente seu objetivo máximo: criar uma sociedade marxista na Nicarágua, para servir de ventre do qual nasceria a revolução marxista por toda a América Central. “Revolução por

todas as Américas” era o lema. Desde seus primórdios como grupo, quando não passavam de guer rilheiros

maltrapilhos, assaltantes de banco e terroristas de ataques -relâmpago, os sandinistas compreendiam muito bem que não podiam ter espe rança de instalar um regime marxista numa Nicarágua 91,6% católica sem que pudessem obter — na verdade, inalar — a cooperação ativa do clero católico, juntamente com uma doutrina da Igreja e uma estrutura da Igreja adequadamente modificadas. A mera conivência passiva por parte do clero não seria suficiente. Se os sandinistas queriam a alma do povo, sabiam o caminho: o catolicismo estava inextricavelmente ligado à urdidura e ao tecido da cultura, da língua, da maneira de pensar e da característica nicaraguenses, e era parte integral de todas as esperanças do povo.

Nesse ponto, Fernando Cardenal, como sacerdote e jesuíta, teve uma influência predominante. Há algum tempo certos teólogos católicos na América Latina — principalmente jesuítas do período posterior à II Guerra Mundial — vinham desenvolvendo uma nova teologia. Eles a chamavam de Teologia da Libertação e baseavam-na nas teorias de seus pares europeus.

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Era um sistema apurado e cuidadosamente elaborado, mas seu princípio central é muito simples: todo o significado da Cristandade como religião se resume a uma conquista — a libertação de homens e mulheres, pela revolução armada e violenta se necessário, da escravidão econômi ca, social e política que lhes era imposta pelo capitalismo norte -americano; libertação essa a ser seguida pela instauração do “socialismo democrático”. Nesse sistema

“teológico”, a chamada “opção” pelos economicamente pobres e politicamente oprimidos, no início chamada de opção “preferencial” pelos bispos católicos

da América Latina em sua conferência de Medellín, Colômbia, em 1968, tornou-se totalmente exclusiva: havia um inimigo — as classes capitalistas, média, superior e baixa, localizadas em sua maioria nos Estados Unidos. Só o “proletariado” — o “povo” — seria fomentado pela imposição do marxismo.

A Teologia da Libertação era o plano perfeito para os sandinistas. Ele incorporava o verdadeiro objetivo do marxismo-leninismo. Partia do pressuposto de que a clássica “luta de massas” marxista ficaria livre de todo o

domínio capitalista. E acima de tudo, o bebê marxista estava, finalmente, enrolado nos cueiros da velha terminologia católica. Palavras e frases carregadas de significado em favor do povo foram cooptadas e viradas de cabeça para baixo. O Jesus histórico, por exemplo, tornou-se um revolucionário armado. O Cristo místico transformou-se em todas as pessoas oprimidas, coletivamente. A Virgem Maria se tornou a mãe de todos os heróis revolucionários. A Eucaristia se transformou no pão feito livremente por operários liberados. O Inferno se tornou o sistema ca pitalista. O presidente americano, líder do maior país capitalista, passou a ser o Grande Satã. O Céu se tornou o paraíso terrestre dos trabalhadores, no qual fica abolido o capitalismo. Justiça passou a ser a extirpação dos lucros capitalistas, que seriam “devolvidos” ao povo, ao “corpo místico" de Cristo, os socialistas

democratas da Nicarágua. A Igreja se tornou aquele corpo místico, “o povo”,

decidindo o seu destino e determinando como venerar, rezar e viver sob a orientação de líderes marxistas.

Era uma síntese brilhante, pronta para ser usada e aguardando ape nas pelos ativistas que se dedicariam a erigir uma nova estrutura sócio - política sobre a sua base, tal como um edifício se ergue de uma planta.

O povo nicaraguense foi a primeira cobaia na qual a t eoria foi usada em caráter experimental. E os sacerdotes que eram membros -fundadores da liderança sandinista — o jesuíta Fernando Cardenal, Ernesto Cardenal, Miguel D’Escoto Brockman dos padres Maryknoll, o jesuíta Alvaro Arguello, Edgar

Parrales da diocese de Manágua — tornaram o experimento duplamente abençoado e com probabilidade de sucesso. Se aque les homens, devidamente ordenados como sacerdotes, conseguissem passar essa nova mensagem “teológica” — segundo a qual a revolução sandinista era, na verdade, uma questão religiosa sancionada por porta-vozes legítimos da Igreja — ficariam com o clero católico e com o povo como aliados numa revolução ao estilo marxista pela violência armada.

Não há dúvida de que o plano tinha sido cuidadosamente elabora

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do, baseado numa análise profunda do povo nicaraguense e seu clero. Também não há dúvida de que os primeiros coniventes com a trama fo ram os próprios sacerdotes; há, até, pessoas que vivem em Manágua hoje e entre destacados exilados nicaraguenses no Panamá, em Honduras, e em Miami, Flórida, que apontam para Fernando Cardenal como o principal arquiteto do plano. Mas as provas que existem indicam que ele não foi o único jesuíta envolvido.

De qualquer modo, o empreendimento sandinista foi constante e bri -lhantemente explicado, comentado com sutileza e incutido nos ouvidos de seminaristas, freiras, estudantes universitários e do povo por um nú mero crescente de seus professores e conferencistas jesuítas, franciscanos e dos padres Maryknoll em todas as escolas da América Central. A época de semeadura foi bem aproveitada, com vistas à doutrinação marxista fi nal. O patético depoimento, num tribunal, do jovem nicaraguense Edgard Lang Sacasa revelou ao mundo, já em 1977, que tinham sido seus educadores sacerdotes que haviam convencido a ele e a milhares como ele a entrarem para as tropas guerrilheiras sandinistas.

De mãos dadas com essa nova Teologia da Libertação seguia, por necessidade, o estabelecimento de uma nova e “maleável” estrutura da Igreja,

para substituir a antiga. Na estrutura tradicional católica roma na, os conhecimentos sobre Deus, Cristo, salvação cristã, moralidade pes soal e destino humano derivavam dos pastores hierárquicos da Igreja — ou seja, do papa e seus bispos. Eram eles a única fonte autêntic a do conhecimento sobre a fé; fora deles, não podia haver conhecimento preciso sobre a Cristandade. A submissão a eles e a aceitação de seus ensinamen tos e leis eram necessárias à salvação.

Era precisamente essa estrutura, na qual o controle supremo pert ence a Roma, que se colocava entre os sandinistas e o povo. E foi precisa mente essa estrutura que os primeiros teólogos-arquitetos da Teologia da Libertação, baseados na Europa, criticaram. Essa estrutura era, diziam os teólogos da libertação, ditada por “uma visão de cima” e “imposta de cima” ao povo

“embaixo”. O teólogo da libertação Leonardo Boff, franciscano, ensinando num

seminário brasileiro, expressou-se em termos que Fernando Cardenal e seus colegas de clero teriam apoiado: “Tem havido um processo histórico de expropriação dos meios de produção por parte do clero, em detri mento do povo cristão.” Boff não estava falando sobre indústria e comércio, mas sobre

teologia e doutrina religiosa; os meios de produção — a “fábrica”, como ele a

chamou — eram a pregação do Evangelho. De acordo com os novos teólogos, a imposição “romana” e, por tanto,

“alienígena” da doutrina religiosa era a verdadeira razão pela qual a injustiça

social e a opressão política floresciam em terras onde essa Igreja hierárquica florescia. Em terras como os países latino-americanos. Em países como a Nicarágua. Além do mais, prosseguia o argumento, a Cris tandade e especificamente o catolicismo não era apenas alienígena em si mesmo e de si mesmo, mas havia sempre acompanhado a invasão de culturas

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alienígenas europeias. Alienígena — esta era a palavra-chave. Para rebater aquela estrutura alienígena, imposta, os novos teólogos

olhavam “de baixo para cima”. Do nível do povo. Da perspectiva da opressão e

da injustiça — porque isto, diziam eles, era tudo o que eles encontravam “embaixo”, entre o povo. A tarefa, em outras palavras, era impor a “opção

preferencial” a todas as pessoas, tanto ricas como pobres. Imediatamente, como Fernando Cardenal e os outros sacerdotes san -

dinistas perceberam com rapidez, nasceu um novo conceito de “Igreja”. O corpo ordinário de crentes, pela definição modificada, iria se tornar a própria fonte de revelação. A fé dos crentes iria “criar” comunidades entre

aqueles crentes. Na Nicarágua e em outros países da Amé rica Latina, essas comunidades são chamadas de comunidades de base. E essas comunidades, reunidas, iriam formar a nova “Igreja”, a “Igreja do Povo”.

Essas comunidades começaram a se formar anos antes da revolução nicaraguense tomar de assalto o palco da geopolítica em 1979. Grupos de homens e mulheres leigos se reuniam regularmente para rezar, ler a Bíblia, cantar hinos, discutir seus problemas concretos locais de caráter econômico e político; escolher não só seus líderes políticos, mas também seus sacerdo tes; e determinar não apenas as soluções para seus problemas seculares, mas a melhor maneira de adorar e em que acreditar.

Era um sonho tornado realidade. Sonho esse expresso em palavras claras pelo mesmo frei Boff: “O poder sagrado deve tornar a ser colo cado nas mãos do povo.” Não seria permitido ensinamento ou direção “vin da de cima”, da

Igreja alienígena, hierárquica. De fato, os próprios símbolos daquela Igreja deveriam ser rejeitados com firmeza. Os símbolos e tudo o mais só deveriam vir “de baixo” . Do povo. De suas comunidades de base — quase 1.000 delas só na Nicarágua, com o correr do tempo; e quase 300.000 na América Latina, ao todo. A ideia das comunidades de base se espalhou pelos Estados Unidos, onde às vezes são chamadas de “reuniões”.

Fernando Cardenal, Ernesto Cardenal, Miguel D’Escoto Brockman, Edgar

Parrales e Alvaro Arguello foram os sacerdotes que formavam o carro -chefe dos sandinistas, os legitimadores intencionais e voluntários dessa nova “Igreja

do Povo”, que iria se apropriar de todas as palavras do catolicismo e redefini -las, enquanto eliminava toda a influência papal da Igreja na Nicarágua. O catolicismo dos nicaraguenses estava para ser “convertido” ao marxismo.

E os sacerdotes sandinistas eram eficientes. À medida que grupos d e dez, vinte e por fim centenas de outros sacerdotes, freiras e irmãos reli giosos por todo o país ficaram inspirados por esse novo fervor, as comu nidades de base se espalharam lentamente e aprofundaram suas raízes o bastante para transformar os sandinistas nos novos hierarcas da sociedade nicaraguense.

Até determinado momento, é justo presumir-se que o papa Paulo VI, em cujo reinado teve lugar a fase mais ardorosa dessa atividade, pudesse

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revertê-la, ou pelo menos puxar-lhe as rédeas. Muito logicamente, entretanto, Paulo dependia da lealdade e da firmeza teológica de superiores jesuítas em Roma e na América Central, sem perceber a tempo que eles estavam sendo complacentes com a atividade de seus subordinados jesuí tas nicaraguenses.

Em 1965, quando conselhos e informações fizeram com que começasse a preparar seu dossiê sobre os jesuítas a sério, Paulo VI estava com muitos outros problemas nas mãos. Ele achava, também, que ainda podia confiar nos superiores da Sociedade para que controlassem seus comandados, como haviam feito os papas durante quatrocentos anos. E de fato, aqueles superiores disseram a Paulo a verdade sobre um aspecto da Nicarágua — o fato de que os bispos católicos, os jesuítas e todos aqueles que tivessem algo de cristão no país estavam unidos contra a mortífera ditadura de Luis Somoza Debayle. Mas não disseram a ele que os sandinistas estavam pretendendo um domínio marxista.

Só em 1973 e 1974 foi que Paulo VI ficou realmente alarmado sobre os jesuítas em geral; àquela altura, porém, o seu controle sobre eles já se enfraquecera. A Nicarágua, enquanto isso, continuava a se ulcerar com revolução, matanças, bombardeios, assaltos a bancos, tortura e mutila ção em todos os lados. Naquele teatro de violência, o forte apoio dos je suítas e a procrastinação de Paulo VI fizeram com que os sandinistas ganhassem um tempo precioso.

Nos Estados Unidos, durante aqueles mesmos anos, com o ditador Luis Somoza ainda livre em sua brutal repressão da população nicaraguense, a influência sandinista e o novo fervor religioso já estavam se infiltrando. Dois ativistas políticos do Partido Democrático, Richard Shaull e Brady Tyson, juntamente com alguns outros, fundaram o Congresso Norte-Americano sobre a América Latina (NACLA). Shaull expôs os objetivos do NACLA de forma sucinta, às Sessões de Cooperação Católica Interamericana em St. Louis, já em 1968: “Para um crescente número de jovens católicos, só há uma esperança: a

organização de movimentos armados de libertação nacional, com todo o sacrifício e o derramamento de sangue que isso envolve.”

O NACLA estava longe de ser o único grupo, nos Estados Unidos, com esse ponto de vista. A década seguinte pareceu desovar organizações e grupos como peixinhos, cada qual apoiando relações abrandadas com Fidel Castro e seus afiliados por toda a América Latina, e cada qual com um lobby atuante em Washington para fazer com que os sandinistas nicaraguenses fossem aceitos pelos legisladores norte-americanos e seus constituintes. Dentre essas organizações, sem contar o NACLA, as principais eram o Instituto de Estudos Políticos (IPS) e seu subsidiário, o Instituto Transnacional (TNI); a Agência de Washington para a América Latina (WOLA); o Comitê Norte -Americano de Justiça para os Prisioneiros Políticos Latino-Americanos (USLA); e o Conselho de Assuntos Hemisféricos (COHA).

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A WOLA, que se tornou, de longe, o mais direto desses grupos de pressão em favor dos sandinistas nicaraguenses, levou dois dos sacerdotes -guerrilheiros do seu carro-chefe para prestarem depoimentos perante comitês do Congresso dos EUA. Um deles foi o irmão de Fernando Cardenal, Ernesto, que àquela altura já se tornara o poeta-cantador da revolução sandinista e um marxista declarado. O outro foi o padre Maryknoll, Miguel D’Escoto

Brockman, menos poético mas sucinto: “Nós apoiamos um novo sistema não -capitalista para a Nicarágua”, disse ele aos legisladores americanos.

A emergência da Washington pós-Vietnã e pós-Watergate produziu um verdadeiro país das maravilhas para aqueles altamente inteligentes, extraordinariamente capazes, e até romanticamente atraentes ativistas - embaixadores entre a liderança sandinista. Era a Washington do governo Carter. Os pontos de vista democráticos de esquerda, encarnados de ma neira mais visível em políticos da estirpe de George McGovern, Birch Bayh, Frank Church, Robert Drinan e Edward Kennedy, dominavam a cena. Os homens de Carter nas Nações Unidas — notadamente Andrew Young e Brady Tyson — exerceram influência sobre o governo, a fim de que ne nhuma das aventuras de Fidel Castro, fosse em Angola, na Etiópia ou na América Latina, provocasse uma reação adversa. “Não entre em pânico por causa dos cubanos em Angola”,

aconselhava Andrew Young a Carter. Um dos principais objetivos do presidente Carter se tornou a conclusão

dos Tratados do Panamá, que há muito eram adiados. O homem forte do Panamá era Omar Torrijos, amigo pessoal e protetor dos líderes sandinistas e de Fidel Castro, de Cuba, e homem pelo qual Carter, por sua vez, nutria amizade pessoal. Torrijos também aconselhou Car ter a não se intrometer nas questões da Nicarágua. A ambição de Carter era assinar o Tratado do Canal do Panamá; Torrijos era uma peça essencial daquela ambição. Torrijos era ouvido, muito embora Carter soubesse que ele estava fornecendo armas e dando asilo aos sandinistas.

Nem todos os objetivos desses competentes porta -vozes e embaixadores sandinistas em favor da revolução marxista em roupagem teológica estavam centralizados em Washington ou mesmo nos Estados Unidos — e é certo que nem todos eram políticos. Foram persuadidas e conquistadas como divulgadoras e defensoras dezenas e dezenas de publicações re ligiosas — jornais, revistas, boletins, circulares — editadas nos Estados Unidos pelos jesuítas, pelos missionários Maryknoll, pelas irmãs de Loreto, p elas irmãs de São José da Paz, pelas irmãs de Notre Dame de Namur, pela Conferência de Liderança de Mulheres Religiosas, pela Conferência dos Superiores Máximos dos Homens e organizações afins. Na Irlanda, na Inglaterra e na Europa, publicações jesuíticas defendiam com denodo a revolução nicaraguense e o papel, nela, dos clérigos.

Em toda parte, ativistas e partidários jesuítas assumiram a causa. Eram dedicados, cultos, capazes e eficientes, inspirados, como disse um deles, “por

uma sensação de que nossa missão, como jesuítas, é promover

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a justiça social e expressar nossa opção preferencial pelos pobres, sob o ponto de vista existencial”. No contexto nicaraguense, tudo isso signi ficava o apoio à “Igreja do Povo”, la iglesia popular.

Ao chegar o ano de 1977, toda aquela atividade já havia proporcionado um avanço realmente grande para os sandinistas. Quando Ernesto Cardenal foi recebido em Washington como convidado da WOLA e do IPS, ele falou com eloquência no programa Mesa-Redonda Sobre a América Latina organizado pelo IPS/TNI sob a direção de Orlando Letelier, que segundo conclusão de pesquisadores era agente cubano. Um simples exame de alguns dos membros daquela mesa-redonda é, também, um exame tanto do apoio quanto das intenções dos sandinistas. Além de Letelier e de sua assistente Roberta Salper, participavam Cheddi Jagan, chefe do Partido Comunista da Guiana, pró -soviéticos; Julian Rizo, membro da organização de inteligência (DGI) de Castro e da polícia secreta de Cuba, e elemento usado por Letelier para fornecer exemplos demonstrativos; e James Petras e Richard Fagan, americanos conhecidos por serem abertamente a favor de revoluções ao estilo cubano em toda a América Latina. Realmente, como Shaull, do NACLA, dissera há nove anos atrás, em 1968: “Cada vez mais, na América Latina, os cristãos e os marxistas estão não só mantendo um diálogo, mas trabalhando juntos.”

Em meados de julho de 1979, o destino da Nicarágua estava selado. Depois de uma prolongada revolução na qual 45.000 pessoas ficaram fe ridas, 40.000 crianças ficaram órfãs, e mais de 1.000.000 de pessoas re duzidas à ameaça de morte pela fome, os sandinistas entraram em triunfo em Manágua, no dia 17 de julho de 1979. Em 19 de julho, toda a oposi ção já havia sido esmagada. Depois de 42 anos de domínio, o ditador Luis Somoza foi deposto pelas três facções da Frente Sandinista para a Liber tação Nacional (FSNL), agindo com a FPN (uma frente ampla de oposi ção), bem como com uma coalizão de organizações de juventude, partidos radicais de esquerda e grupos de trabalhadores.

A vitória, quando chegou, foi um doce consolo para Castro de Cu ba, em parte porque os planos de assalto tinham sido organizados sob sua orientação, e em parte porque a marxista FSNL tinha ficado no topo quando a poeira assentara; mas talvez acima de tudo porque aquela tinha sido a única vitória de Castro naquele ano. Dos quatro grupos guerrilheiro-terroristas que lutavam pelo poder na América Latina na década de 1970 graças às armas e à influência de Castro, os tupamaros uruguaios, os montoneros argentinos e os socialistas porto-riquenhos tinham fracassado. Só o grupo sandinista na Nicarágua obtivera sucesso.

Se Castro estava consolado, Jimmy Carter também parecia estar. O governo Carter contribuiu, imediatamente, com milhões de dólares americanos obtidos com impostos, para o regime sandinista; e Carter posou com o atraente e jovem líder sandinista, Daniel Ortega y Saavedra, e dois outros membros de sua Junta, no Jardim das Rosas da Casa Branca.

Mais tarde, naquele ano, Somoza, seu motorista e seu guarda-costas foram trucidados numa rua de Assunção, capital do Paraguai, por um

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esquadrão sandinista composto de seis homens, usando bazucas e metralhadoras. As 25 balas que perfuraram o corpo de Somoza livraram o novo regime do assustador medo de sua volta. Até fevereiro de 1980, cerca de 2.000 inimigos políticos dos sandinitas tinham sido executados. Uns 6.000 mais estavam na prisão. Por enquanto, tinha cessado toda a oposição a o s

sandinistas. Desde os primeiros dias no poder, a junta sandinista incluiu aqueles

mesmos cinco sacerdotes leais e úteis no novo governo, em cargos a nível de ministério. O jesuíta Fernando Cardenal; o jesuíta Alvaro Arguello; o padre Ernesto Cardenal; o padre Maryknoll, Miguel D’Escoto Brockman; e o padre

diocesano Edgar Parrales. Na sequencia imediata da revolução de julho de 1979, com a aquiescência

do papa João Paulo II, que tinha sido eleito há apenas nove meses antes, os bispos nicaraguenses permitiram que Fernando Cardenal e os outros padres católicos que serviam ao governo em todo o país continuassem em seus cargos políticos “temporariamente, até que o país se recuperasse dos

efeitos da revolução armada”. Os bispos não viam grande dificuldade nisso.

Não tinham eles próprios declarado, em junho de 1979, às vésperas mesmas da derrubada de Somoza, que “ninguém pode negar a legitimidade moral e legal” da revolução sandinista? Na verdade, eles f oram

muito mais além em sua famosa carta pastoral de 17 de novembro de 1979, intitulada O compromisso cristão para uma nova Nicarágua. Nela, eles

apoiavam o “socialismo” e a “luta de classes” e diziam que a revo lução estava introduzindo “uma nova sociedade que é autenticamente nicaraguense, e não

dependente dos capitalistas ou totalitária”. A ingenuidade política e a ignorância sociológica ressaltam de cada uma

das linhas daquela carta. É claro que somos a favor do socialismo, afirmavam com vigor os bispos, se socialismo significar dar preeminência aos interesses da maioria dos nicaraguenses (...), “uma continuada redu ção da injustiça (...) seguir o modelo de uma economia planejada de âmbito nacional (...)”.

Admitiam “a realidade dinâmica da luta de classes que leve a uma justa transformação de estruturas (...)”; mas, acendendo também a outra vela, os bispos se opunham claramente ao “ódio de classes”, por ser contrário ao “dever

cristão de ser governado pelo amor”. Lendo aquela carta, pode-se ter ficado tentado a responder: “Digam isso

aos húngaros, excelências reverendíssimas; os homens da Igreja de les também colaboraram com a revolução ‘socialista’. E o mesmo fize ram os de Cuba.” No

entanto, àquela altura, mesmo uma dessas duchas de água fria não teria feito diferença alguma para os bispos da Nicarágua. Depois da queda de Somoza, uma espécie de euforia para com o marxismo tomou conta da mente de muita gente — bispos, jesuítas, padres e freiras missionários Maryknoll, padres diocesanos e leigos. Tampouco os católicos estavam sozinhos. Cinco pastores protestantes emitiram uma declaração em 1979 alegando que “os cristã os podem usar, com dignidade, análises marxistas sem deixarem de ser cristãos”,

e que “os marxistas podem ter fé em Jesus Cristo sem deixarem de ser

revolucionários”.

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Na verdade, a euforia parecia jorrar como se de várias torneiras, inun -dando o mundo. O sacerdote-poeta Ernesto Cardenal escreveu, na edi ção de abril de 1980 de One World, a revista do Conselho Mundial de Igrejas: “Eis uma

revolução que leva um profundo sinal de amor cristão. Basta que se olhe para os rostos dos jovens sandinistas que andam armados pelas nossas ruas. Neles não há ódio, sua aparência é íntegra, seus olhos brilham e seus corações cantam.”

O reverendo Ian Murray, presidente do Fundo Escocês Católico de Ajuda Internacional (SCIAF), visitou respeitosamente a Nicarágua e olhou pa ra todos aqueles rostos jovens. Deu aos sandinistas o seu “irrestrito apoio”, porque “na

Nicarágua é quase como se tivesse sido feita uma tentativa de implementar as Bem-aventuranças”.

O padre Carney, um jesuíta que trabalhava entre os mais pobres da Guatemala, escreveu extasiado sobre “esse maravilhoso, popular proces so revolucionário sandinista” e sobre “a íntima relação entre o sandinismo, tal

como é vivido hoje na Nicarágua, e a Cristandade”; e falou sobre o seu trabalho “com os líderes leigos e muitos bons cristãos revolucionários Delegados do Mundo, a maioria dos quais pertence à milícia sandi nista”.

Esse tipo de loucura “ecumênica” deliciava a mente dos jesuítas e de

muitos outros. Encontrava uma expressão lírica, quase poética, em pu blicações religiosas dos Estados Unidos. E produzia um eco acolhedor num personagem da importância do geral jesuíta Arrupe, em Roma. Suas pa lavras “aos nossos

irmãos na Nicarágua”, que estavam “defendendo os pequeninos de Deus”, eram

calorosas e encorajadoras. Os homens de Arrupe na Nicarágua, certos do apoio de seu mais al to

superior na Ordem, ousaram ainda mais. “Se alguém na Nicarágua não estiver

disposto a participar da revolução”, disse o padre jesuíta Ál varo Arguello do seu cargo governamental em Manágua, “o certo é que este alguém não é cristão.” A viravolta estava completa.

Inevitavelmente, bispos nicaraguenses e funcionários do Vaticano per -deram todas as suas ilusões. Ao final de 1980, a lua -de-mel acabou. O investimento sandinista de vida militar e civil na Nicarágua com instrutores, guias e supervisores cubanos e europeus orientais, o conhecido rela cionamento com Moscou e a tática exageradamente brutal dos sandinistas na remoção de todos os obstáculos que estavam em seu caminho — tudo isso e mais — obrigou-os a perder sua euforia pela revolução.

No final de 1980, por insistência de João Paulo II, os bispos nicaraguenses solicitaram aos sacerdotes que estavam no governo sobre os quais exerciam autoridade direta, que saíssem da política e do governo e vol -tassem aos seus deveres clericais. Solicitaram, também, aos jesuítas e su -periores Maryknoll em Roma e na América Central que chamassem de volta Fernando Cardenal e os outros jesuítas, bem como Miguel D’Escoto Brockman,

sobre os quais os bispos não tinham jurisdição. O melhor que os bispos conseguiram provocar com a sua ordem foi uma

luta que lembrava uma gangorra, na qual todo o peso parecia estar

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acumulado na outra ponta. Os cinco sacerdotes em nível de ministro, inclusive os dois jesuítas e seus superiores locais, responderam aos bispos com evasivas. Sim, quando chegasse o momento eles iriam deixar o governo, quando isso não provocasse nenhum desvio no caminho de avanço da revolução cristã da Nicarágua. A insistência continuada e repetida, por parte dos al tos funcionários romanos do papa ou dos bispos nicaraguenses, não conseguiu demover os padres de seus cargos políticos. Tampouco João Paulo conseguiu que o geral jesuíta Arrupe, em Roma, invocasse a obediência religiosa para fazer com que Fernando Cardenal pedisse demissão, ou convencer o geral superior dos Maryknoll a retirar o padre Miguel D’Escoto Brockman, o maquiavélico ministro das relações exteriores da Nicarágua.

Parecia, isso sim, que a linha a ser seguida em lugar dos desejos e exigências papais era aquela traçada no número de julho de 1980 da revista da Missão Maryknoll — um elogio aos “padres que pegam em armas e a outros que aderem à causa daqueles que acham que só o sangue irá redimir a América Central”.

Desde o começo dessa luta com o papa, o jesuíta Fernando Cardenal foi tão essencial quanto tinha sido na própria luta sandinista, mais am pla. Por seus superiores em sua Ordem, pelos jesuítas em geral, e por muitos não -jesuítas e leigos da Nicarágua, dos Estados Unidos e da Europa, Cardenal era considerado como há muito tempo os sandinistas o consi deravam: um modelo para todos os sacerdotes do século XX, um homem inteiramente dedicado a corrigir a injustiça cometida pelos ricos, os capi talistas, contra os pobres de Cristo.

A luta que desenvolvia com Roma deixava Cardenal no seu elemento. Ele estava mais do que preparado para o desafio. Não sendo um desa jeitado opressivo como seu irmão Ernesto, Fernando Cardenal era um “marxista de

classe” esperto, atraente e persuasivo, um “comunista de salã o”, na descrição

que os franceses faziam do seu gênero. Sabia conversar francamente com Fidel Castro em pé de igualdade, e com a mesma facilidade falar com o poderoso secretário de Estado do Vaticano, cardeal Agostino Casaroli — e em cada caso se retirar levando o que queria.

Não que o secretário de Estado Casaroli não estivesse disposto a acei tar os protestos de boa fé de Fernando Cardenal. Ele tinha suas razões políticas e ideológicas muito verdadeiras para mostrar apoio aos sandi nistas e, mesmo, a todos os latino-americanos que concentravam seus esforços no sentido de casar marxismo e catolicismo.

Casaroli adquirira sua experiência diplomática no Secretariado de Es tado do Vaticano à época de Pio XII e João XXIII. Foi ele um dos arqui tetos originais da Ostpolitik, a política do Vaticano para com os estados comunistas europeus orientais e a União Soviética, que começou mesmo durante a II Guerra Mundial com a tentativa de reaproximação com a Rússia de Stalin. Casaroli, juntamente com o futuro Paulo VI (então arcebispo), levara o Vaticano do papa João XXIII a fazer um pacto secreto com o Politburo de Moscou: as autoridades da Igreja Católica Romana

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não iriam denunciar formalmente a URSS, seu ateísmo, ou o seu marxis mo. A preservação daquele pacto era a primeira regra de comportamento diplomático de Casaroli.

Em consequência, o primeiro e mais básico princípio de política ex terna de Casaroli, como secretário de Estado do Vaticano, era claro: não mostrar, por palavras ou ações, quaisquer opiniões que condenassem a União Soviética e o marxismo-leninismo sobre o qual ela se ergue, ou os estados dependentes e representantes da União Soviética.

Que os sandinistas eram protegidos da União Soviética e que seus líderes professavam o marxismo, foi um fato que não passou despercebido por Casaroli. Já em julho de 1979, imediatamente em seguida à derru bada de Luis Somoza pelos sandinistas, Casaroli transferiu o núncio papal de Manágua — monsenhor Gabriel Montalvo, que durante muito tempo se identificara com Somoza — e substituiu-o por um jovem encarregado de negócios, o reverendo Pietro Sambi, que passara três anos em Cuba e acreditava expressamente que a Igreja devia ter tomado parte ativa na revolução.

Os conhecimentos de Casaroli sobre as questões nicaraguense s, bem como sobre todas as realidades geopolíticas, eram muito profundos. Não há como ele — ou, na verdade, o geral Pedro Arrupe — não ter tido ciência dos pactos secretos assinados entre os sandinistas da Nicarágua e Mos cou em 1980. Tampouco poderiam eles ter ignorado as combinações feitas entre a Junta nicaraguense e Fidel Castro, de Cuba, durante a visita deste a Manágua em julho de 1980. Aquela visita foi feita ostensivamente para celebrar o primeiro aniversário da revolução sandinista, mas seus resul tados mais concretos foram os entendimentos abrangendo questões como o embarque de armas, a transferência de jovens nicaraguenses para Cu ba, a fim de serem doutrinados, a nomeação de comissários cubanos pa ra supervisionar a pureza da ideologia marxista nas forças armadas nicaraguenses, e a coordenação com forças guerrilheiras treinadas no mar xismo e já em operação nos estados vizinhos centro-americanos de El Salvador e Guatemala.

De fato, a partir da época da visita de Castro, a Junta da Nicarágua começou com a sua conversa pública e triunfante de “revolução aberta em

todos os países da América Central”. Se fosse necessário um testemunho eloquente do apoio do cardeal

secretário de estado à Junta — inclusive aos sacerdotes que dela participavam — este testemunho surgiu em abril e se repetiu em outubro de 1980, quando Casaroli recebeu o padre Ernesto Cardenal e membros da Junta sandinista no Vaticano e expressou a sua “compreensão do processo revolucionário na Nicarágua e sua importância para toda a Amér ica Central e Latina”.

Com a inspiração e o apoio de poderosas figuras romanas como o secretário de Estado e o geral jesuíta, jesuítas dentro e fora do governo da Nicarágua continuaram a pleno vapor com sua colaboração com a re volução nicaraguense e com as políticas marxistas-leninistas da Junta às

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quais àquela altura eles já haviam unido efetiva e inteiramente a sua doutrina da Igreja modificada.

Apesar das frequentes e abertas objeções de João Paulo II, o número de clérigos em cargos do governo na Nicarágua multiplicou-se, em vez diminuir. Ernesto Cardenal continuou sendo, na Nicarágua, a mais poderosa ponta -de-lança para a Teologia da Libertação, como diretor oficial da Campanha de Alfabetização. Em 1983, na verdade, ele se tornou ministro da Educação da Nicarágua. Fernando Cardenal, enquanto isso, ocupava -se em garantir o apoio do clero na América Latina e na América do Norte. O padre jesuíta Alvaro Arguello continuou como delegado de Estado Os padres jesuítas Ricardo Falla e Ignácio Anezola eram membros ativos do Ministério do Planejamento. Os padres Antonio Valdivieso e Uriel Molina eram assessores de relações exteriores. O padre Xavier Gorostiaga, como conselheiro econômico -chefe da Junta e arquiteto do Plan’80, o plano oficial de reconstrução econô mica, orgulhava-se em dizer que “estamos projetando uma nova economia”, e que “a

antiga economia dependente dos capitalistas estava sob o domínio imperialista direto”. Só a lista dos jesuítas envolvidos “em obras semelhantes de justiça",

na definição do padre Peter Marchetti, diretor da Comissão de Reforma Agrária, chegaria a quase duzentos.

O valor dos jesuítas para a Junta chegou a ser também medido em dólares e centavos, tanto quanto em valor teológico, ideológico e político. Eles mostraram valer muitas vezes o seu peso em dólares capitalistas vindos diretamente de fontes nos Estados Unidos. O Comitê Evangélico para Ajuda ao Desenvolvimento (CEPAD), nicaraguense, formado por jesuítas e outros clérigos, recebeu 305.000 dólares do Conselho Nacional das Igr ejas só em 1981. O padre Valdivieso começou a receber doações da América do Norte em seu Centro Ecumênico de Manágua (AVEC) em 1981; em 1983, só essas doações já haviam chegado a 176.000 dólares. O padre Gorostiaga que, como diretor do Instituto de Pesquisa Econômica e Social (INIES), estava ocupado “projetando uma nova economia” para substituir o “(...) domínio imperialista

(...) dependente dos capitalistas”; obteve uma doação de 30.000 dólares dos

Metodistas Unidos e do Conselho Nacional de Igrejas em 1 983. O Instituto Histórico Centro-Americano (ICHA), criado pelos jesuítas em

Manágua, conseguiu não apenas fazer uma doação de 36.000 dólares recebidos em 1983 do Conselho Mundial de Igrejas, mas abrir uma filial norte -americana do ICHA na Universidade de Georgetown, para ajudar a sua organização-sede a divulgar a revolução.

Com base em depoimentos das próprias instituições, e em suas ativi dades, era claro que o INIES, o ICHA, o CEPAD e o AVEC não se dedi cavam a atividades religiosas com aquelas quantias. Nas palavras delas e nas de seus benfeitores americanos, todas aquelas organizações estavam “imersas na

revolução” (diretor-executivo do CEPAD), fomentando “a participação de

cristãos no processo revolucionário” (o Conselho Mundial de Igrejas falando do AVEC), e “a serviço dos órgãos de tomadas

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de decisões políticas que buscam a transformação social e política da região”

(o padre Gorostiaga falando sobre as finalidades do INIES). Richard Shaull, do NACLA, fora um profeta sem par em sua decla ração,

feita em 1968, de que cristãos e marxistas na América Latina não estavam apenas mantendo um diálogo, mas trabalhando juntos. Em 1983, os norte -americanos estavam se tornando felizes colaboradores.

É perfeitamente legítimo concluir que Fernando Cardenal era o mais importante sacerdote ocupando um cargo oficial na Nicarágua. Outros clérigos, jesuítas e não-jesuítas, o tinham como inspiração, e suas palavras como justificativa. O sucesso dele em fugir aos desejos de João Pau lo II e às ordens dos bispos nicaraguenses para que ele e os outros sacerdotes pedissem demissão do governo era um brilhante lampejo de sucesso. Sob todos os aspectos, ele continuava sendo uma figura central na Junta sandinista enquanto ela consolidava sua força na Nicarágua e sua posição na p lêiade mundial de “fraternas democracias socialistas”. E, sem sombra de dúvida, Fernando

Cardenal não poderia ter conseguido nada disso, se não fosse o pleno apoio que recebeu de sua comunidade jesuítica local, seus superiores, seu reitor e provincial; e de seus superiores romanos, inclusive o geral, Pedro Arrupe em pessoa.

De sua posição vantajosa em Roma, o papa João Paulo II adquiriu clara percepção do que estava acontecendo na Nicarágua. Ele não fazia objeções a um espírito de auto-sacrifício e cooperação pelo bem nacional, como quando os jesuítas doaram El Charcho, a maior fazenda produtora de leite da Nicarágua, ao governo.

O que João Paulo condenava era a atividade manifestamente políti ca e ideológica dos sacerdotes e a bastardização, por eles, do catolicismo, de sua estrutura hierárquica e de suas doutrinas. O dossiê de informações do pontífice sobre o governo sandinista estava recheado de detalhes. Ele sabia, é claro, que o líder supremo nicaraguense, Daniel Ortega y Saavedra, com seus colegas da Junta e os membros do diretório de nove membros, estava instalando um regime marxista-leninista em íntima colaboração com Cuba, como representante e títere de Moscou no hemisfério ocidental, e com a própria Moscou. Mas suas informações lhe diziam mui to mais. João Paulo sabia que todos os sacerdotes membros da Junta deram o seu consentimento ao acordo partido com partido assinado em 1980 entre os sandinistas e o Partido Comunista Soviético.

Ele tinha conhecimento da presença constante, na Nicarágua, de “as-sessores” vindos da União Soviética e dos satélites soviéticos europeus, e de

peritos em guerra de guerrilhas vindos da OLP, do grupo Baader - Meinhof da Alemanha, das Brigadas Vermelhas da Itália, e da organização basca ETA, da Espanha. Ele sabia que Muamar Kadaffi, da Líbia, depositara cem milhões de dólares no Banco Central da Nicarágua e que os sandinistas receberam 110 tanques soviéticos.

Sabia que, numa imitação do movimento “Pax Sacerdotes” na sua Polônia

e da “Igreja Católica Patriótica” na China Comunista, o plano

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intragabinete da Junta — uma vez mais formado com a colaboração de Cardenal e seus colegas-sacerdotes que estavam no governo — era tirar Ioda a autoridade dos bispos católicos e fazer com que eles saíssem do país e, finalmente, declarar a Igreja do Povo como a única “Igreja Cató lica” permitida

na nova Nicarágua. Ele sabia que, para ajudar a atingir aquele objetivo, a Campanha de

Alfabetização dirigida por Ernesto Cardenal estava sendo usada para Incutir princípios marxistas em todos aqueles que estavam sendo ensinados a ler; e que, para ajudar a promover aquele objetivo, os jesuítas que estavam no governo e seus superiores religiosos uniram-se oficialmente aos sandinistas e sua organização de comunidades de base para condenar, em termos cáusticos, as objeções dos bispos nicaraguenses às violações morais por parte do governo.

O papa sabia que Ernesto Cardenal, em seu papel de ministro da Edu -cação, era também responsável pelo envio de jovens nicaraguenses para a ilha de treinamento marxista de Fidel Castro (para Cuba, ela é a ilha da Juventude; para o resto do mundo, é a ilha dos Pinheiros) para se unirem aos 10.000 estudantes africanos nas dezessete escolas de doutrinação batizadas em homenagem ao presidente marxista Agostinho Neto, de Angola. Ele sabia que os sandinistas, ao chegarem às alavancas do poder, executaram mais de 1.500 prisioneiros políticos e que mais de 3.000 ainda eram mantidos — e alguns torturados — em prisões sandinistas.

Em suma, através de relatórios precisos sobre aquelas e muitas outras atividades, o papa sabia que seus sacerdotes — jesuítas e outros — na Nicarágua estavam em íntima e corporativa colaboração com um regi me que violava direitos humanos e procurava a ajuda de outros cuja his tória daquele tipo de violação era consistente e flagrante. De fato, aqueles sacerdotes estavam no centro mesmo do regime que não só violou as leis da Igreja Católica, mas estava empenhado na destruição sistemática da Igreja hierárquica e na usurpação de sua autoridade, a fim de produzir um Estado totalitário organizado em linhas marxistas -leninistas.

Além disso, nas palavras do próprio Ortega, era intenção da Junta fazer o mesmo em toda a América Central. “Revolução aberta para toda a América

Central”, repetia Ortega com frequênc ia, na expressão resumida de seu programa.

Em abril de 1980, mais ou menos na ocasião em que o seu secretário de Estado, cardeal Casaroli, estava recebendo a visita dos membros da Junta nicaraguense e assegurando-os de seu apoio sensato, o santo padre recebia uma delegação de bispos nicaraguenses. Foi praticamente na mes ma ocasião em que os bispos começaram a retirar o seu apoio aos sandi nistas. João Paulo deixou claro que já via o perigo, e que esperava que seus bispos agissem de acordo com a situação. “Uma ideologia ateísta não pode servir de instrumento para a

promoção da justiça social”, foi o significativo aviso do papa a Suas

Excelências Reverendíssimas. Falando a sacerdotes e clérigos em Kinshasa, Zaire, em maio daque le ano,

o papa expôs o ideal do verdadeiro sacerdote: “Deixem a responsabilidade

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política para aqueles aos quais ela foi confiada. O papel espe rado dos senhores [padres] é outro, magnífico. Os senhores são líderes em outra jurisdição, como sacerdotes de Cristo.”

De volta a Roma, no dia 12 de maio, ele foi mais incisivo em sua linguagem: “Um padre deve ser um padre. Política é responsabilidade de

leigos.” Quando João Paulo fez essas declarações, o tráfego de mensagens

telegráficas do seu Secretariado de Estado do Vaticano já vinha, há quase um ano, prestando informações sobre as triunfantes declarações de membros da Junta sobre a revolução aberta em todos os países da Amé rica Central.

Começou a constituir um enigma para algumas pessoas, devido à ca da vez mais franca desobediência de seus sacerdotes a suas ordens e à insistência do papa em chamá-los à ordem, o fato de João Paulo não agir de forma direta e séria. Mas o fato pouco conhecido é que, não muito tempo depois de suas viagens na primavera de 1980, e mal decorridos dois anos de sua investidura no pontificado, João Paulo começou a fazer pressão sobre os jesuítas que, de todos os sacerdotes da Igreja Católica, eram os únicos que deviam fidelidade e obediência especiais ao papa. A ação dele começou como reação a uma explosão de desobediência notável por seu espalhafato e sua impertinência, mesmo numa Igreja inundada, no mundo inteiro, por atos de desobediência.

O assunto em pauta, dessa vez, não dizia respeito diretamente à Ni -carágua. Mais precisamente, envolvia a prestigiosa revista jesuítica francesa Études, editada pelo padre André Masse, que publicou uma série de artigos, em três partes, escritos pelo padre jesuíta Joseph Moingt. Os ar tigos abordavam o ministério sacerdotal, a natureza do sacerdócio e o ce libato sacerdotal. Devido a seus trabalhos anteriores, os pontos de vista do padre Moingt sobre os mesmos assuntos tinham sido deixados claros demais; por ocasião daqueles primeiros trabalhos, o geral jesuíta Arrupe foi avisado pela Congregação pela Doutrina da Fé (a CDF), de Roma, de que Moingt não deveria tornar a publicar seus pontos de vista. Arrupe havia concordado, mas justificava a defesa de Moingt de um sacerdócio com casamento tendo por curiosa base a afirmativa, por parte de Moingt, de que os bispos do Laos e do Ca mboja tinham solicitado permissão de Roma para que seus sacerdotes se casassem.

Seja o que for que Arrupe tenha transmitido da desaprovação da CDF, o fato é que aquilo nada significou para o editor Masse e o escritor Moingt. Numa violação direta daquela ordem da CDF, e numa excepcional demonstração tanto da petulância de alguns jesuítas como da intri gante recusa de Arrupe a obedecer a seu papa, o editor Masse publicou os artigos em junho, julho e outubro de 1980, no exato momento em que a recalcitrância d os sacerdotes nicaraguenses criava os maiores problemas para a estratégia papal.

O momento escolhido, entretanto, não foi o que constituiu a ofensa. Moingt havia ido muito mais longe, agora, do que simplesmente propor

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um sacerdócio com casamento. Nas palavras de um relatório oficial, ele havia — com prazer — “demolido o [tradicional] conceito católico do ministério

sacerdotal”. Como resultado direto desse incidente, toda a mixórdia de declínio jesuíta

nos últimos quinze anos foi reexaminada por João Paulo . Foi-lhe provado que ele não estava lidando com perigosos grupos isolados de je suítas recalcitrantes, mas que estava sendo preparado um ataque cada vez mais organizado contra ele, partindo de dentro da sua Igreja, e que os responsáveis gozavam de total imunidade junto a seus superiores religiosos.

O geral Arrupe foi informado pelo papa de que a Sociedade de Jesus precisava de uma reforma total nos seus teólogos, nos seus escritores, nos seus ativistas sociais, em seu método de treinar candidatos a jesuíta , em seus colégios, universidades e institutos de instrução superior, nos seus métodos missionários na África e na Ásia, em suas paróquias e no seu apostolado social. Na verdade, impunha-se uma reforma e uma limpeza completa da casa, de cima a baixo, na Sociedade. A própria utilidade do padre Arrupe como geral foi também representada como se estivesse próxima ao ponto zero.

É claro, santo padre, foi a essência da respeitosa resposta de Arru pe. Mas segundo as Constituições jesuíticas, que vários dos antecessores de Sua Santidade naquele abençoado Trono de Pedro tinham aprovado e confirmado muitas vezes ao longo dos séculos, uma reforma daquelas só poderia ser efetuada de maneira normal e juridicamente correta por uma congregação geral de líderes jesuítas vindos de todas as partes do mundo, reunidos no Gesù em Roma com o seu geral — com a permissão do santo padre, é claro. O geral e seus colegas iriam precisar de pelo menos um ano — normalmente levava quinze meses — a fim de se prepararem de maneira adequada para uma congregação geral tão importante assim.

A resposta de João Paulo não mostrou hesitação: convoquem a Con-gregação Geral. E se preparem bem para ela. O problema tinha que ser resolvido. Naquele momento, não se falou em terminar com o mandato de Arrupe como geral.

Em abril de 1980 — o mesmo mês atribulado em que os sandinistas estavam visitando o secretário de Estado do Vaticano e os bispos nicaraguenses visitavam o pontífice — o geral Arrupe notificou todas as pro-víncias da Sociedade no mundo inteiro de que uma congregação geral seria realizada no ano seguinte ou, o mais tardar, em 1982. Os preparativos nas províncias deveriam começar imediatamente.

Na verdade, àquela altura da luta, Arrupe estava perto do limite de suas forças. Suas opções para fugir aos esforços papais para controlar a Sociedade se tinham acabado. Em grande parte, a Sociedade parecia ter chegado a um ponto em que já não era mais possível chamá-la à ordem, mesmo por um papa. Arrupe era o homem mais bem situado para reconhecer isso . Ele havia presidido o crescente e agora irredutível foco de resistência a João Paulo II por parte dos jesuítas. Um rumor bem fundamentado

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que corria no Vaticano dizia que João Paulo iria destituí -lo do generalato, num começo na direção certa. Só Deus sabia que direção era essa. Arrupe estava cansado.

No decorrer de um encontro de dez minutos que lhe foi concedido em agosto de 1980, Arrupe perguntou se o santo padre queria que ele re nunciasse ao cargo de geral dos jesuítas. Não, foi a brusca resposta do papa. João Paulo não disse isso usando tantas palavras, mas havia decidido que ele próprio deveria reter a iniciativa nas mãos, em vez de nomear um sucessor ou curador para agir de maneira independente no lugar do geral. Tampouco tinha o papa qualquer intenção de deixar o geral Arrupe escapar assim tão ileso da confusão que ele havia criado nos quinze anos em que estivera no comando da Sociedade. Arrupe foi informado de que o santo padre não estava falando na simples renúncia de um único homem. O que estava em discussão eram a natureza e a função de toda a Sociedade como a milícia do papa.

Havia muitas possibilidades. O status da Sociedade podia ser alterado. A minuta da mais recente versão da Lei Canônica, preparada pela Igreja, estava em seus estágios finais; um pequeno parágrafo seria o suficiente para tirar da Sociedade de Jesus todos os seus privilégios na Igreja e a sua situação especial em relação ao papado. Ela poderia ser reduzida ao nível de uma congregação diocesana ordinária, governada localmente por bispos. Havia ainda outras e mais drásticas possibilidades. Poderia ser necessário acabar com a Sociedade, pelo menos durante certo tempo, e talvez tornar a formá -la mais tarde segundo seus princípios originais; certos jesuítas de mentalidade mais tradicional já haviam, na verdade, solicitado a Roma que fizesse exatamente isso.

O tom incessantemente ominoso dessa resposta papal não passou des -percebido por Arrupe. Mas para terem a certeza de que a questão tinha sido bem compreendida pelo jesuíta, seus aliados no Secretariado de Es tado do Vaticano explicaram ao padre-geral a causa fundamental da insatisfação do papa: na estratégia do santo padre, decidido a combater o marxismo como sendo a verdadeira ameaça, os jesuítas eram o maior obs táculo; e eram o maior consolo dos inimigos de Sua Santidade. Quer o padre-geral gostasse quer não, aquilo era verdade.

Ostensivamente para limpar a sua ficha como geral e para demons trar que todos os jesuítas estavam alertados da maneira correta e, assim, repudiar qualquer ideia de aprovação oficial jesuítica do marxismo, em dezembro de 1980 o padre Arrupe redigiu, mas — naquelas circunstâncias, curiosamente — retardou a publicação de uma carta sobre o marxismo que poderia ser interpretada como ortodoxa.

Àquela altura, João Paulo II já se tornara um gigante que cruzava a paisagem internacional. Era definitivamente uma personalidade de do mínio público. A atmosfera ao seu redor era cada vez mais tensa, mais carregada de crise. A cada mês que passava, suas intenções e seus atos ficavam mais significativos para os planejadores rivais em Washington e Moscou, bem como para pomposos centros financeiros. Ele dominava

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a atenção do público. Estava, com perícia, provocando o que ainda pu desse existir de respeito ou veneração ou, até, de simples interesse mundano pelo seu cargo de papa.

Moscou observava, com nervosismo, o crescimento do movimento do Solidariedade da Polônia e a decadência do comunismo político na quele país. Washington olhava com nervosismo as ameaças milit ares soviéticas de invadir a Polônia como haviam feito com a Tcheco-Eslováquia em 1968 e com a Hungria em 1956. Washington também se preocupava com a deterioração da situação na Nicarágua e na América Central.

Analistas financeiros e investidores internac ionais começaram a temer que um sucesso do Solidariedade arruinasse todo o sistema de inves timento, empréstimos e produção industrial construído nas economias dominadas pelos soviéticos durante vinte longos anos. As condições da mão-de-obra naqueles países, onde não havia sindicatos, não havia greves e os salários eram baixos, eram uma vantagem. Um Solidariedade que conseguisse liberdade de ação no campo das relações trabalhistas iria eliminar aquela vantagem.

Em 1980, Anatoly Adamshin, titular do Minis tério das Relações Exteriores soviético que lidava com a Itália, França, Turquia e Grécia, teve um encontro com o papa João Paulo II. “Se a Igreja se comprometesse a conter o

ardor dos grevistas poloneses dentro dos limites aceitáveis por Moscou,”

declarou Adamshin, “então Moscou, por sua vez, abandona ria a ideia de invasão.”

Moscou poderia, até, estar disposta a ir mais além. Esse “mais além” era

a grande recompensa diante dos olhos de João Paulo. Com aquela garantia, João Paulo decidiu avançar em suas ne gociações.

Seus complicados esforços atingiram um clímax em fevereiro de 1981, quando Adamshin lhe fez uma segunda visita, dessa vez chefiando uma delegação soviética de alto nível. Outra vez, o assunto foi o Solidarieda de da Polônia. Uma vez mais, o assunto foi o formato no qual Moscou permitiria que o Solidariedade se desenvolvesse. Os resultados foram con cretos: poderia haver concordância soviética com o maior avanço do So lidariedade, desde que o sucesso do Solidariedade deixasse intatos três elementos — o Partido Comunista da Polônia, o domínio da vida parlamentar polonesa pelos comunistas, e as forças comunistas de segurança (exército e polícia). O Solidariedade devia, em outras palavras, limitar -se aos campos da cultura, religião e relações trabalhistas. Nada de política. Nada de militarismo. Nada de sabotagem. Nada de ligações com o fornecimento americano de armamentos por baixo do pano.

Adamshin garantiu a João Paulo que aquela melhoria com relação ao Solidariedade, curando a continuada doença da economia polonesa, atenderia ao interesse direto de seus senhores em Moscou. Acima de tu do, seria de interesse como exemplo a ser seguido em seus outros satélites — os “outros fraternais estados socialistas” — nos quais a economia de mercado fechado estava sempre em dificuldades. Também parece, com base em fontes autorizadas, que Adamshin

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avisou indiretamente a João Paulo: o sucesso do movimento Solidarie dade iria significar o fim de uma força de trabalho industrial de baixo salário, sem greves e livre de impostos. E será que isso não teria efei to direto sobre a internacionalização de produtos manufaturados que se apoiavam naquela força de trabalho, não apenas na Polônia, mas em outros dos fraternos estados socialistas? E será que isso não iria afetar as carteiras de poderosos interesses? Adamshin não se referia apenas ao efeito para os stalinistas de linha dura na União Soviética e em outras partes.

Em abril de 1981, João Paulo II estava empregando ao máximo to das as mais profundas reservas de sua força e engenhosidade, a fim de carregar um terrível ônus duplo.

De um lado, ele se esforçava para manter a fidelidade dos aproxima -damente 350 milhões de católicos na América Latina; para evitar que eles caíssem na rede armada do marxismo, como o convenciam se m sombra de dúvida suas informações, não apenas dos aliados “normais” de Mos cou — Cuba, a Nicarágua sandinista e semelhantes —, mas dos jesuítas influentes, alguns cardeais, alguns bispos e muitos padres e freiras.

De outro lado, ele sustentava e orientava o movimento Solidariedade na Polônia não apenas com conselhos, não apenas com recursos, mas pela intervenção direta junto à sucessão de governos desajeitados em Varsóvia, e aos amedrontados homens do Politburo em Moscou, já metidos até os joelhos no maldito problema do Afeganistão.

Além disso tudo, até os primeiros meses de 1981 o papa João Paulo já tinha conseguido viajar a vinte países espalhados por cinco continen tes, pregando em 23 línguas. Sua mais recente viagem, em fevereiro da quele ano, tinha sido uma estafante maratona de doze dias ao Paquistão, Filipinas, Guam, Japão e Alasca. Em toda parte, sua mensagem era a mesma: este é Pedro, o Apóstolo, em seu 267º sucessor, o vigário de Cristo, anunciando a necessidade de santidade e de justiça para todos os homens em nome de Jesus.

Vista por qualquer ângulo, a atividade total desse papa era colossal. Sobrecarregava a sua resistência física e seus poderes mentais acima dos limites da maioria dos homens.

O geral jesuíta Pedro Arrupe, por outro lado, parec ia não ser capaz nem mesmo de completar os preparativos para a congregação geral de seus jesuítas. Tampouco parecia capaz de conter Fernando Cardenal. Ao contrário, Cardenal — como o papa — viajava por todo canto. Deixara claro, para audiências norte-americanas em sua viagem para fazer conferências — principalmente no circuito de campi jesuítas — a sua capacidade, sua presença imponente e seus pontos de vista políticos e ideológicos. Ele se tornara um porta -voz sandinista tão empolgante e tão divulgado, apesar das repetidas advertências de João Paulo a Arrupe, que em 1981, enquanto o seu papa transmitia constantemente uma mensagem inteiramente diferente e trabalhava por um objetivo totalmente oposto, Fernando Cardenal ficou encantado ao receber uma indica ção para o Prêmio Nobel

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da Paz, apresentada por 133 membros do Parlamento inglês e do Par lamento europeu em conjunto.

Fernando Cardenal não era o único jesuíta que Arrupe parecia inca paz de controlar. Tampouco estavam os jesuítas nicaraguenses sozinhos em sua continuada desobediência organizada e corporativa. Jesuítas na América Latina, na América do Norte e na Europa — às vezes parecia que em todos os cantos — estavam atirando, felizes da vida, contra os ensinamentos sociais e a doutrina religiosa de João Paulo. Eram contínuas as torrentes de reclamações que chegavam ao gabinete papal, todas detalhando as opiniões heterodoxas que estavam sendo ensinadas por jesuítas na Europa e nos Estados Unidos. Havia, além disso, revelações de que certos círculos da seção internacional da Loja Maçônica na Europa e na América Latina estavam empenhados em organizar uma oposição ao pontífice na Polônia; que prelados do Vaticano — uns vinte, ao todo — eram membros formais da Loja italiana; e que, uma vez mais, os je suítas de Arrupe pareciam envolvidos com os círculos maçônicos contrá rios ao pontífice. Em 1965, Paulo VI já havia prevenido Arrupe e os delegados à XXXI Congregação Geral jesuítica contra os perigos de per tencer ao Pacto; começou a parecer a João Paulo que o aviso não estivera longe demais do alvo.

Alguns dos assessores do papa João Paulo de maior confiança começaram a instá-lo a não esperar mais que Arrupe agisse. Havia coisas demais em jogo para permitir que os líderes jesuítas desgarrados conti nuassem a saquear a estratégia papal, a autoridade papal, e as ordens deste papa emitidas com clareza. Por mais tentado que o santo padre possa ter ficado a seguir aquele conselho, o problema era, e ainda é, que fazê -lo poderia ser a mesma coisa que dar um tiro no próprio pé. Muito provavelmente, dados o prestígio dos jesuítas e a generalizada rebelião contra o papado, a tomada de decisão unilateral contra Arrupe e seus jesuítas poderia provocar repercussões que poderiam prejudicar sua política papal e talvez a própria Igreja.

Um dos motivos era que, precisamente devido ao espalhafatoso as pecto marxista e às espetaculosas ligações com Moscou dos jesuítas na Nicarágua em particular, a menos que a retirada obrigada dos sacerdotes que estavam no governo nicaraguense fosse feita com perfeição, poderia ser considerada uma violação aberta daquele pacto secreto celebrado há quase vinte anos antes entre o Politburo de Moscou e o Vaticano.

Além do mais, por ser a observância daquele pacto e todas as suas implicações o princípio orientador do cardeal Agostino Casaroli como se-cretário de Estado do Vaticano, Casaroli poderia muito bem exonerar -se de seu cargo no Secretariado a título de protesto aberto. Nesse caso, João Paulo iria perder um importante jogador na diplomacia “quen te-e-frio”, a política de

“castigo e recompensa” por ele praticada com relação aos soviéticos. Enquanto

isso, o protocolo do Vaticano ainda iria deixar o cardeal Casaroli com muita influência e poder e um tanto menos conti do, se ele se demitisse ou fosse demitido de seu cargo.

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E, além disso tudo, naquela fase ainda inicial de seu pontificado, co mo ele entendia muito bem, João Paulo não sabia quem, no Secretariado e em toda a burocracia do Vaticano, estava realmente do seu lado, nem quantos, dentro do sistema, tinham sido “adquiridos” direta ou indire tamente por Moscou.

Era, em outras palavras, a hora errada para qualquer ação escarificante que tocasse a União Soviética. Os planos de João Paulo para o So lidariedade na Polônia estavam amadurecendo. Os soviéticos estavam a par deles, não os aprovavam ou desaprovavam, mas estavam esperando para ver os contornos nítidos do jogo, a natureza do quid pro quo que João Paulo podia e iria oferecer.

Havia, ainda, mais um elemento a adicionar à cautela do pontífice q uanto a agir contra os sacerdotes sandinistas: o protocolo do Vaticano. Normalmente, um papa consulta seus principais assessores — em especial os cardeais que chefiam todos os ministérios importantes do Vaticano. João Paulo não tinha absolutamente certeza de que pudesse conseguir um consenso em favor de uma ação direta e peremptória contra os sacerdotes que estavam no governo, ou contra os jesuítas em particular.

A brutal realidade da vida para João Paulo, como para qualquer pa pa que não seja altamente dotado de implacabilidade e perito em jogadas do Vaticano, é que ele não pode impor sua vontade a cada um dos pode rosos membros de sua administração no Vaticano. E o fato brutal é, também, que João Paulo, como papas antes dele, está contido por ações de longo alcance de seus antecessores no Trono de Pedro.

Com demasiada lentidão para alguns, então, mas sem dúvida com firmeza, o confronto entre o papa e um crescente número de seu clero, sempre espicaçado pelos jesuítas, foi chegando ao ponto de fervura. Tr ês anos após a eleição de João Paulo II, e apesar dos esforços para bloqueá -lo — esforços nos quais ainda uma vez mais os jesuítas pareciam implicados — o estarrecedor sucesso do Solidariedade da Polônia estava sendo obtido momento a momento em um lado do mundo, enquanto no outro lado a estocada sandinista visando à implantação de uma liderança marxista na América Central e do Sul ia se fortalecendo e resistia a todos os esforços papais para impedir que os jesuítas e outros sacerdotes legitimassem aquela investida.

Com todos os pesos na balança, e por insana que essa ideia pudesse ter sido há apenas quarenta anos, começou a parecer não só que realmen te poderia haver uma guerra entre o papa e os jesuítas, mas que ela seria aberta e sangrenta. E não iria demorar muito.

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3. PAPA BRANCO, PAPA NEGRO

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ob certos aspectos, a reunião realizada em meados da prima - vera de 1981 tinha a aparência de milhares de reuniões de diretoria que tinham lugar naquele mesmo momento em todo país livre do mundo. Por trás de portas duplas de painel de vidro, realizava-se uma conferência entre sete homens. Uma pasta cheia de relatórios estava diante de cada homem. Ao alcance de cada um deles, uma garrafa de água com um copo como tampa. Qualquer pessoa que olhasse por acaso poderia ter dito que os homens ali reunidos estavam absorvidos no tipo de discussão abafada mas livre, típica de reuniões de diretoria em toda parte.

Mas aquilo não era o tipo de reunião a que a maioria das pessoas assistia, ou mesmo espiava através de portas de painéis de vidro fechadas. Aquela sala de conferências ficava no terceiro andar do Palácio dos Papas, na colina do Vaticano. As pastas com relatórios eram de damasco vermelho, adornadas com a Tiara e as Chaves em ouro. Do lado de fora da porta, um secretário e dois guardas suíços com o uniforme tradicional e stavam a postos, para evitar todos os intrusos. Sentados à mesa de conferência estavam o pontífice da Santa Igreja Católica Romana e seis de seus mais poderosos cardeais, os que movimentavam e agitavam o Vaticano, uma pequena amostra de sua mais temida força. E o assunto da discussão entre eles era a vida ou a morte da Sociedade de Jesus: em outras palavras, se a Ordem chefiada pelo geral Pedro Arrupe devia ter per missão para continuar agindo como vinha fazendo, ou ser reorganizada e reajustada de acordo com os desejos de três papas, repetidos com frequência, ou ser oficialmente liquidada pelo poder e sob a autoridade do papa João Paulo II.

Em teoria, o papa não tinha que se reunir com ninguém para toma r uma decisão quanto a essa questão. Em princípio, ele tinha poderes para isso. Todos os poderes. Todos os outros titulares de cargos, inclusive os seus cardeais que se achavam à sua volta naquela reunião, eram nomea dos por ele. E, muito embora só ele, de todas as mais altas autoridades da Igreja Católica Romana, seja eleito, uma vez realizada essa eleição,

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seu poder — o poder do papado — desce até ele vindo diretamente de Deus. Como sempre acontece com o poder, entretanto, teoria e princípio são uma

coisa, e realidade é outra. Todo papa tem que ser suficientemen te forte para ter nas mãos o poder que lhe é conferido, e para usá -lo. Qualquer pedaço desse poder que ele não assumir será, certamente, usurpado e usado por terceiros.

Naquele início de primavera de 1981, por exemplo, João Paulo já havia sentido o efeito, em primeira mão, do enorme poder que havia sido concedido cumulativamente, ao longo de séculos, ao geral da Sociedade de Jesus. Tão grande é esse poder em Roma e no mundo em geral, e tão amplame nte reconhecido, que aquele que exercer o cargo de geral jesuíta também detém o título oficioso de “o papa negro”. Negro, neste caso, não tem por finalidade

indicar uma ameaça de qualquer natureza. É o simples reconhecimento do fato de que, como muitos outros jesuítas, o poderosíssimo geral da Sociedade sempre se veste com trajes pretos, em contraste com as tradicionais túnicas brancas do poderosíssimo santo padre.1

Outro exemplo iria surgir naquela mesma reunião; se tivessem a opor -tunidade, pelo menos três dos seis cardeais àquela mesa com João Paulo II iriam dar ao seu papa uma lição de poder romano. Romanità, é como esse determinado tipo de poder é chamado. É axiomático que qualquer papa que espere ser bem-sucedido tenha que observar pelo menos duas coisas : ter vontade de ferro e ser perito em romanità.

A romanità se apoia sobre um princípio básico: Cunctando regitur mundus. Se você puder estar mais preparado do que todos, poderá go vernar a todos. A marca do contraste da romanità é a moderação na ação e em todas as formas de expressão. É, de certa maneira, o poder em sussurros. São essenciais, para ela, o senso de oportunidade escumado com paciência, uma implacabilidade que exclua a hesitação de emoções, e uma quase-messiânica convicção de sucesso final. Poucos nascem com ela. A maioria dos “romanos” autênticos que

florescem tem que aprendê-la com o correr do tempo. Apesar de toda a sua força de vontade, João Paulo não chegou ao papado

um perito em romanità. E tempo era o único produto de base que a situaçã o na Polônia e a na Nicarágua não lhe davam.

Na reunião daquele dia, Sua Santidade estava sentado à cabeceira da mesa, em sua túnica branca, como um homem cuja força robusta e exuberante estava claramente contida, claramente controlada para não explodir. A os 61 anos de idade, aquele primeiro papa polonês era uma personalidade em ascendência pessoal, respirando empreendimento, envolto num carisma pessoal, já uma figura que era matéria-prima para os meios de divulgação. Com o poder do papado por trás dele, teria dito a maioria, que prelado de sua Igreja poderia fazer-lhe frente?

Romanità ou não, Karol Wojtyla é um homem sagaz. Claro, olhan do para os seis cardeais sentados à sua direita e à sua esquerda, vestidos

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com todos os paramentos vermelho-sangue, ele compreendia onde cada qual se colocava não só naquela questão da Sociedade de Jesus, mas na questão de toda a sua estratégia papal.

Na cadeira imediatamente à direita do papa, sentava -se “Dottrina” o cardeal encarregado de supervisionar a pureza da doutrina católica romana em todo o vasto e variado mundo da Igreja. Um bávaro de fisionomia suave, experiente e em absoluto simplório, Dottrina era um teólogo profissional com toda a confiança do clero intelectual. Aos 55 anos, seus cabelos estavam inteiramente brancos e ele era o mais moço dos presentes. João Paulo sabia que Dottrina daria, sempre, o seu apoio total à vontade papal.

E o mesmo aconteceria, sabia ele, com “Propaganda”, o cardeal res-ponsável por divulgar o catolicismo entre os povos não-católicos da África e da Ásia. Propaganda era um brasileiro descendente de italianos, que aparentava ser mais velho do que seus pares, e parecia um santo. Alguns diziam que ele era simples como uma pomba e não tão esperto quanto uma serpente. Talvez isso acontecesse porque seus colegas cardeais nunca sabiam o que esperar dele. Apesar de sua franqueza e simplicidade de estilo, Propaganda era conhecido por lançar granadas em discussões, com uma desconcertante precisão de mira.

O último aliado do papa João Paulo na sala de conferências, naquele dia, era “Clero”, o cardeal na chefia da Congregação, ou setor, encar regado de todos os clérigos diocesanos católicos.

Dos três cardeais restantes presentes à reunião, um deles não deveria ficar obrigatoriamente contra o papa — mas tampouco obrigatoriamente a seu favor. “ Vescovi”, o cardeal que supervisiona todos os bispos cató licos, era um mestre em romanità. De maxilares largos, astuto, jovem apesar de todos os seus 68 anos de idade, Vescovi chegou, certa vez, quase a ser eleito papa. Ele sabia como obter um preço pelo seu apoio. Poderia colocar todo o poder do lado do papa, se fosse atendido em outras coisas.

“Religiosi”, como supervisor do Vaticano de todas as Ordens Reli giosas de homens e mulheres, um argentino de sangue italiano, deveria, era quase certo, opor-se a João Paulo. Era íntimo de homens em altos cargos que não gostavam de qualquer papa que balançasse o seu barco, e de homens em lugares secretos que não desejavam triunfo algum para o papado em geral e abomina vam aquele papa em particular. Da cabeça bem penteada aos imaculados punhos franceses brancos presos com abotoaduras requintadamente caras, Religiosi dava a aparência de um homem dedicado a uma toalete assética.

O homem mais poderoso que se sentava àquela mesa, fora do próprio pontífice, era ‘ Stato”, cardeal-secretário de Estado para o Vaticano. Stato era o oposto do papa em tudo. Enquanto João Paulo era robusto e atlético, Stato era um italiano nortista baixinho, de rosto encavado, de óculos, que era tão magro, que o apelido que se usava pelas suas costas era de “Caveira”. Sua pele pálida

parecia quase sem sangue, e o contraste dela com a vermelhidão de seus lábios e suas orelhas fazia com que

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parecesse que, em todos os seus 37 anos de diplomacia do Vaticano, ele tivesse recebido de frente um perpétuo vento com fator de resfriamento igual a zero.

De toda a sua geração, Stato fora o único que conseguira certa intimidade e acesso com relação aos líderes da União Soviética e dos seus países satélites. Parece que seus laços soviéticos eram como o seu físico: eram pequenos e pálidos, se comparados aos entendimentos soviéticos que aquele papa eslavo já havia feito. Mas o uso hábil da romanità pode transformar pequeninas penetrações em grandes vantagens. E de qualquer modo, do ponto de vista de Stato, era mais provável que o reinado daquele papa ainda estivesse começando. Cunctando regitur mundus.

O interessante é que aquela reunião não tinha sido solicitada pelo papa, mas por um ou dois dos cardeais presentes, a fim de que pudessem aproveitar aquilo que, nas delicadas cadências da romanità, seria chamado de “esclarecimentos” sobre os planos do pontífice para os jesuítas.

E assim, mesmo enquanto o padre branco abria a reunião com uma exposição de “esclarecimentos” que durou dez minutos, o padre negro, Pedro

Arrupe, parecia uma presença efetiva, um invisível oitavo homem à mesa. Aquele basco de corpo franzino, nariz aquilino, de 73 anos de idade, era conhecido pessoalmente por cada um daqueles sete homens. Não era amado por nenhum deles. Era considerado, por alguns, um aliado de muitíssima utilidade, e detestado por outros, que o consideravam um inimigo muitíssimo perigoso. Sua Santidade havia aprendido a temê-lo.

Ao explicar o que pensava sobre a Sociedade de Jesus, João Paulo fez suas observações principalmente em torno dos cabeçalhos de fidelida de ao papado e propagação da autêntica doutrina católica romana.

Quando o papa terminou, Religiosi deixou claro o seu ponto de vis ta. Como de praxe, ele se chocava com o do pontífice. Afinal, aquilo que o santo padre encontrara de defeito nos jesuítas podia ser encontrado em muitas outras ordens religiosas de homens e mulheres — franciscanos, carmelitas, dominicanos, padres e irmãs Maryknoll, os padres colombia nos irlandeses, e assim por diante. E os mesmos defeitos também podiam ser encontrados nos bispos da América Latina e, mesmo, por toda a Igreja.

Para ilustrar esse segundo argumento, Religiosi citou dois dos exemplos mais óbvios. O ex-bispo de Cuernavaca, México, Mendez Arceo, começava seus sermões dominicais com a saudação de punho fechado da Internacional Comunista e gritava: “Soy marxista!” E o venerável colega, cardeal D. Evaristo Arns, de São Paulo, Brasil, aproveitava todas as oportunidades para critica r severamente o capitalismo rígido e louvar a ideia de uma redistribuição da riqueza a fim de aliviar a pobreza endêmica. E o que dizer daqueles bispos franceses que insistiam em colocar o dia do nascimento de Karl Marx no calendário litúrgico oficial da Igreja, para ser celebrado ao lado dos aniversários de nascimento e morte dos santos e mártires da Igreja? E o que dizer da maneira pela qual os bispos canadenses se utilizavam da análise marxista da luta de classes quando discutiam a questão social?

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Religiosi estava certo de que seu venerável colega Vescovi, sentado ao lado dele à mesa, e encarregado de todos os bispos, poderia confirmar o que ele dizia.

A Religiosi poderia ter parecido que Vescovi ainda não tinha chegado à conclusão sobre onde estava a sua vantagem na discussão, mas isso foi uma interpretação errônea com relação a Vescovi.

Vescovi tinha suas razões para não ajudar Religiosi — boas razões. Depois de Stato, Vescovi podia ser reconhecido como o mais poderoso cardeal da Cúria do Vaticano. Encarregado da Congregação dos Bispos, ele podia — se quisesse — ter influência decisiva na nomeação de bispos cm toda parte, exceto em terras de missões. Lá, Propaganda tinha a voz importante. Mas Vescovi também era presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina, uma posição da qual ele exercia uma influência enorme. Era notório que Vescovi compartilhava de uma opinião dupla com João Paulo: a de que a América Latina tinha que ser salva do marxismo, e que era pouca a diferença que existia entre os r ematados marxistas e o grosso dos jesuítas, dominicanos, franciscanos e padres e freiras Maryknoll. “O que acontecer na América Latina”, dissera Vescovi há dois anos antes, “irá, humanamente falando, determinar o destino da Igre ja no próximo século.”

Não, Vescovi não iria aceitar o convite que Religiosi insinuara. A maioria daqueles bispos esquerdistas da América Latina tinha sido no meada antes de Vescovi pôr as mãos nos controles das nomeações episcopais. Agora, Vescovi continuou calado.

Pouco importa. Religiosi estava perfeitamente preparado para defender os jesuítas, dizendo que eles estavam agindo em completa obediência aos bispos da Igreja que eram, como ele não precisava lembrar aos presentes, os sucessores dos Doze Apóstolos. O Concílio Vaticano II havia enfatizado o papel do Colégio Episcopal no governo da Igreja e na orientação do seu povo. O verdadeiro problema, segundo Religiosi, não estava nos jesuítas. Nem com os bispos, que estavam em campo celebrando, como apóstolos, o culto divino para suas dioceses, lutando corpo a corpo com problemas locais. Para Religiosi, o verdadeiro problema estava no fosso entre todos os 3.567 membros do Colégio Episcopal e a Santa Sé. Religiosi evitou qualquer menção direta da pessoa de João Paulo II. Mas ninguém tinha qualquer dúvida quanto ao que ele queria dizer.

Em sua análise, concluiu Religiosi, o governo e a autoridade de ensino da Igreja deviam ser normal e regularmente compartilhados entre o pontífice e o Colégio Episcopal. Talvez Sua Santidade permiti sse que a reunião se voltasse para aquilo, que era o verdadeiro problema: a falta de coesão — na verdade, a dissensão e a desunião — que existia entre a Santa Sé e os bispos. De qualquer modo, porém, os jesuítas não deveriam ser transformados em bodes expiatórios de outros culpados de faltas mais graves — mais graves porque aqueles outros tinham uma responsabilidade maior do que a dos jesuítas na Igreja universal.

Por franca que fosse a posição de Religiosi, e por profundamente

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contrária à do pontífice que fosse, toda ela foi expressa em termos aceitá veis para a romanità. Nada de gestos. Nada de sacudir dedos. Nada de erguer a voz.

O mesmo aconteceu com a reação dos outros seis. Nenhuma emoção foi traída por um movimento nervoso, um retesar de corpo na cadeira, uma profunda enchida dos pulmões, um franzir de lábios, um franzir de testa. No máximo, um olhar poderia ser erguido para uma rápida olhada para o orador, ou para um amigo ou inimigo.

E é claro que não houve clamor de pedidos para ser o próximo a falar. Em reuniões como aquela, a romanità estava na presidência; e naquela reunião, a romanità apontava seu dedo invisível para Dottrina, o teólogo profissional sentado à mão direita do papa de todas as maneiras, inclusive sua posição de supervisor da pureza na doutrina católica.

Dottrina desejava lembrar seus veneráveis colegas das palavras do Concílio Vaticano II ao descrever o Colégio Episcopal. Citou o documento do Concílio Vaticano sobre o assunto: o Colégio Episcopal deveria “es tar combinado, necessariamente e sempre, com o seu chefe que, no Colégio, mantém na sua integridade o seu cargo de pastor supremo da Igreja universal e de Vigário de Cristo”.

Em outras palavras, insistiu Dottrina, era uma distinção falsa falar, como seu venerável colega acabara de fazer, do Colégio Episcopal como se ele fosse distinto e separado do pontífice romano. Mais exatamente, sem o pontífice romano não havia Colégio Episcopal. Ao contrário, a única distinção verdadeira que poderia ser feita era entre o pontífice roman o e o Colégio Episcopal, que necessariamente incluía o pontífice romano. O pontífice romano podia agir sozinho. O colégio não podia agir sem o pontífice romano. Portanto, quaisquer bispos que estivessem em desa cordo com o pontífice romano — e o venerável colega acabara de assegurá-los de que havia muitos — estavam em desacordo com o Colégio Episcopal. Dottrina estava certo de que Vescovi tomaria as providências — porque, afinal de contas, aquilo era seu dever — para desentocá-los e chamá-los à ordem.

Foi um belo golpe de defesa e ataque no jogo de romanità como não se via há algum tempo. Mas não houve sorriso de vitória ou um franzir de sobrancelhas de derrota quando a ponta da espada atingiu o adversá rio. E na verdade, Dottrina ainda não tinha acabado.

Quanto ao caso dos jesuítas, prosseguiu, era qualitativamente dife rente do dos bispos. O Colégio Episcopal tinha sido criado por Deus. Os jesuítas tinham sido criados pelo pontífice romano. A ele, eles deviam sua existência e sua fidelidade. Estavam, agora, em estado de revolta, segundo Sua Santidade. Assim como um papa os havia criado, um papa poderia moderá -los ou, se necessário, acabar com eles. E aquela modera ção ou extinção dos jesuítas era o assunto a ser tratado naquela reunião.

O desafio de Religiosi a Sua Santidade, para que deixasse a reunião sair de seu caminho, afastar-se da questão do problema jesuítico, tinha sido cirurgicamente amputado.

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Sem quase nenhum hiato na discussão, entretanto, Stato assumiu a defesa. Seu estilo foi muito mais indireto do que o de Religiosi. Stato lembrou a seus veneráveis colegas que estivera com o atual santo padre nas duas reuniões de Sua Santidade com o negociador soviético, Anatoly Adamshin, a mais recente das quais tinha sido no início daquele mesmo ano de 1981. Sua Santidade havia dado aos soviéticos uma garantia de que nenhuma palavra ou ação, por parte de Sua Santidade, da Hierarquia polonesa ou de líderes do Solidariedade, iria violar o Pacto Moscou-Valicano de 1962.

Stato não precisou explicar a seus ouvintes que, em fins da primavera de 1962, um certo cardeal Eugene Tisserant tinha sido enviado pelo papa João XXIII para um encontro com um prelado russo, um certo Nikodim, metropolitano, que representava o Politburo soviético do premier Nikita Khrushchev. O papa João desejava ardentemente saber se o governo soviético iria permitir que dois membros da Igreja Ortodoxa Russa comparecessem ao Concílio Vaticano II programado para ser aberto no mês de outubro seguinte. O encontro entre Tisserant e Nikodim teve lugar na residência oficial de Paul Joseph Schmitt, na época o bispo de Metz, na França. Ali, Nikodim deu a resposta soviética. Seu governo concordava, desde que o papa garantisse duas coisas: que o concílio que se realizaria proximamente não emitisse qualquer condenação do comunismo soviético ou do marxismo, e que a Santa Sé adotasse a norma, para o futuro, de se abster de todo aquele tipo de condenação oficial.

Nikodim obteve suas garantias. O assunto foi orquestrado, depois disso, para o papa João, pelo cardeal jesuíta Augustine Bea, até que o acordo final foi concluído em Moscou e executado em Roma, naquele Concílio Vaticano, bem como nas diretrizes da Santa Sé durante quase duas décadas desde então.

Stato disse ter apenas duas perguntas a fazer. O Concílio Vaticano e dois papas desde João XXIII tinham respeitado aquela garantia. Será que Sua Santidade também iria respeitá-la? E será que a sua Hierarquia polonesa e os líderes do Solidariedade iriam respeitá-la?

A pergunta que Stato não fez estava tão clara para todos, àquela aluíra, que ele não precisou transformá-la em palavras: como poderia João Paulo II acusar os jesuítas pelo seu apoio a pensadores marxistas e guerrilhas comunistas na América Latina, sem condenar explicitamente o mar xismo soviético e seus representantes comunistas? Sem, em outras palavras, violar não apenas o Pacto de Metz, mas a sua própria garantia a Adams hin de que o “Metz” — nome pelo qual o acordo pouco conhecido era citado de maneira geral — seria respeitado durante o seu pontificado?

A mensagem de Stato, então, era clara. Ele sabia, tanto quanto qualquer outra pessoa, que a sede jesuítica de se afastar do ensinamento cató lico podia ser censurada em termos que não iriam violar pacto ou acordo algum. Mas ele protegeria os jesuítas. Iria Sua Santidade brigar por aqui lo? Ou chegar a um meio-termo?

Provavelmente esperando que esta última opção fosse a escolhida,

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Stato assinalou que o geral Arrupe acabara de publicar um artigo demons trando que nenhum católico, muito menos um jesuíta, poderia se apoiar na análise marxista da sociedade e da história humanas para decidir de que lado ficar na “luta de classes”. O cardeal-secretário não salientou que Arrupe havia esperado mais de três meses, de 30 de dezembro de 1980 até 4 de abril, para publicar o artigo; ou que a escolha do momento parecia indicar que Arrupe tinha sido alertado para a questão que seria discu tida naquela reunião muito privada.

A defesa dos jesuítas por parte de Stato havia terminado; o que passou a fazer em seguida foi indicar sua disposição e sua capacidade de levar aquela luta sobre a Sociedade de Jesus diretamente à arena da estra tégia papal. De aumentar as apostas, em outras palavras.

Stato lembrou a todos os presentes que a sua função de secretário de Estado de Sua Santidade exigia que ele mantivesse relações cordiais, embora não-oficiais, com os governos da União Soviética e do bloco orien tal. Eram relações, quando muito, tênues, é verdade. Mas aquilo era muito melhor do que a posição de outros governos em relação à fraternidade socialista soviética. A fim de manter aquelas relações, ele teria que se dis tanciar de qualquer declaração da Santa Sé que ofendesse aquela fraternidade. O aviso de Stato, sua ameaça de demissão e sua franca oposição, eram claros; e os outros sabiam que, por motivos próprios, João Paulo não queria provocar um pedido de demissão ou demitir Stato.

Stato garantiu a Sua Santidade e a seus veneráveis irmãos que nin guém era essencial no vinhedo do Senhor, e que a decisão final cabia a Sua Santidade. Entretanto, até ali, Stato e seu cargo tinham sido de utilidade singular para a orientação e o fomento do Solidariedade por parte de Sua Santidade — em todos os aspectos daquele difícil caso, políticos e materiais.

Homens do nível daqueles presentes conheciam o papel de Stato em canalizar fundos do Banco do Vaticano através de canais neutros — com-panhias holding pertencentes ao Vaticano e a estrangeiros, por exemplo, e financeiras em países neutros nas quais o Vaticano detinha o controle acionário — para os cofres do Solidariedade que estavam sempre ficando vazios. A posição de Stato no Vaticano o tornava membro ex-officio da PECA, a Prefeitura de Assuntos Econômicos do Vaticano. A PECA to ma todas as principais decisões referentes ao movimento de fundos do Vaticano. João Paulo II, enquanto isso, como a maioria dos papas, não está a par da complicada rede de financeiras em países neutros e compa nhias holding dentro da ramificação do Banco do Vaticano. Estritamen te falando, Stato podia vetar qualquer deslocamento subrosa de fundos. E entretanto, se os planos atuais do pontífice dessem certo, haveria necessidade de muito mais dinheiro, e não menos, para o Solidariedade.

Stato tinha apenas mais um comentário a fazer. Sua cooperação com Sua Santidade no último ano, na questão de fundos, havia adquirido um elemento de perigo. O governo italiano estava continuando sua investiga ção do escândalo que havia estourado no Banco Ambrosiano, de Milão,

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enviando ondas de choque por todo o mundo internacional da s finanças. Fossem quais fossem as consequências, o Banco Ambrosiano e seu dire tor, Roberto Calvi, que fora indiciado no escândalo de seu banco, tinham estado ligados àquele importantíssimo fornecimento clandestino de fun dos ao Solidariedade.

É claro que o secretário confiava em que tudo sairia bem para a re -putação da Santa Sé e dos esforços do santo padre em favor de sua queri da Polônia. Ninguém poderia duvidar da devoção que ele dedicava aos melhores interesses da Santa Sé e do santo padre. Era com es se espírito que ele fizera seus comentários anteriores sobre os jesuítas.

Até mesmo a romanità teve dificuldades em digerir a massa dura de ameaças políticas e financeiras que Stato decidira empurrar pela mesa em direção ao pontífice.

Para Propaganda, com aquela sua sinceridade cativantemente simples, parecia ser hora de mudar. Hora, disse ele em tom apaziguador, de discutir algo que ele podia compreender muito melhor do que as comple xidades da política européia-ocidental ou o relacionamento dos jesuítas com os marxistas. Hora para discutir o que acontecia naquela parte da Igreja confiada aos seus cuidados — os campos missionários da África e da Ásia.

Propaganda havia preparado um relatório com antecedência; havia uma cópia em cada pasta de damasco vermelho, e o documento tinha sido lido por inteiro por todos, antes da reunião. Aquele relatório, que ele resumiu em poucas palavras, mostrava em doloroso detalhe até que pon to os missionários jesuítas trabalhando na Índia tinham ido na adulteração da fé cristã. O resumo de Propaganda só abordou o significado deformado de sacerdócio, do batismo, do Sacramento da Eucaristia, e da primazia e da autoridade do santo padre na Igreja, segundo o que os jesuítas ensinavam na Índia. Falou, então, da diluição, para formas irreconhecíveis, das crenças cristãs básicas na imortalidade, Céu e Inferno, no valor da oração, da mortificação e da penitência, no significado da Missa e da salvação.

Propaganda foi muito mais arrasador em suas observações porque parecia não ter interesse pessoal algum. Ele tinha apenas uma pergunta: por quê? Por que haviam os jesuítas adulterado e deformado até mesmo as mais centrais crenças cristãs? Ele sabia que os próprios jesuítas se refe riam a “inculturação”

e “indigenização”. Mas o resultado era uma organizada e Sempre progressiva descristianização daquilo que na Índia fora, certa vez, uma florescente população católica romana de cerca de três mi lhões de pessoas.

Propaganda respondeu à sua própria pergunta no mesmo tom sereno em que a fizera. Os jesuítas, na Índia, haviam se tornado aquilo que eram porque eles e seus superiores romanos tinham continuado a seguir os ensinamentos do padre jesuíta Pierre Teilhard de Chardin. Teilhard de Chardin fora, na verdade, o querido dos jesuítas intelectuais, durante quase quarenta anos, apesar da condenação do homem e seus escritos pela

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Santa Sé, em 1960. Aqueles trabalhos, lembrou Propaganda a seus veneráveis colegas nas mesmas palavras da condenação oficial, “estavam cheios de

ambiguidades, de graves erros, mesmo, ofendendo, com isso, a doutrina católica”. Não era de admirar, então, no entender de Propaganda, que se os jesuítas teimavam em seguir a estrela de Chardin, eles estivessem com ideias contrárias ao bem-estar da Igreja.

Em suma, Propaganda concordava tanto com a condenação do jesuíta de Chardin em 1960, quanto com a acusação da sociedade como um todo pelo santo padre, em 1981.

A princípio parecia que Clero iria limitar sua contribuição a uma am-pliação do elo indicado por Propaganda entre a obra de Teilhard de Chardin e a atividade dos jesuítas na época. Por que seria, parecia ele simples mente meditar um pouco mais sobre o problema, que as faculdades jesuíticas de filosofia e teologia no Centro Sèvres, em Paris, estavam organi zando uma comemoração para o próximo dia 13 de junho, a fim de celebrar o centenário de nascimento de Chardin? Segundo a informação de Clero, eles assim agiam com a bênção de institutos pontificais em Roma e com a aprovação do Secretariado de Estado e do geral dos jesuítas.

A sugestão de Clero era no sentido de que seria melhor que todos os interessados oferecessem missas pela alma de Chardin, em vez de tentarem separar suas ideias ambíguas e de agirem com base em suas teo rias vagas e perigosas. A sugestão de Sua Santidade foi mais incisiva. O pontífice estava certo de que Stato iria comunicar a padre Arrupe a desaprovação, pela Santa Sé, da comemoração planejada.

Como se verificou, Clero tinha uma ou duas outras perguntas. Havia a questão de um desolador relatório recebido no Vaticano há um ano e meio atrás, em outubro de 1979. O venerável irmão cardeal Vincente Scherer de Porto Alegre, Brasil, havia escrito em detalhes sobre o Colé gio Anchieta, jesuítico, naquela cidade. Segundo Scherer, livros didáti cos marxistas eram usados nas salas de aula, princípios marxistas eram inculcados nos estudantes, os Sacramentos da Confissão e da Comunhão eram ridicularizados por serem considerados anacrônicos. O que é que havia acontecido, queria saber o intrigado Clero, àquele relatório? O Colégio jesuítico tinha seguido em frente, todo satisfeito. Por que o geral Arrupe não havia corrigido aqueles graves erros?

E depois, continuou Clero a demonstrar em voz alta sua perplexida de sobre determinados assuntos, havia o estranho caso do padre jesuíta Caprile, que escreveu na revista oficial jesuítica, Civiltà Cattolica, publicada em Roma. Em discussão, para Caprile, estava a proibição católica romana, sob pena de excomunhão, de que um católico pertencesse à maçonaria. A excomunhão era letra morta, escreveu Caprile em seu artigo, e a maçonaria estava aberta a qualquer católico. Aquilo era uma clamorosa solapa das decisões do papa a respeito de moralidade. Como é que Caprile podia publicar uma coisa daquelas, ainda mais com tal impunidade e com as bênçãos de seu padre-geral?

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As duas demonstrações de perplexidade de Clero visavam especificamente a Stato. A aliança entre o cardeal-secretário e a Civiltà Cattolica ora fato conhecido. E era sabido que Stato havia passado a mão no rela tório comprometedor do cardeal Scherer e o enterrara no arquivo morto.

Dottrina achou que aquele momento era adequado para pôr pingos em alguns is. Não era só em Roma, na América Latina e na Índia que aquelas coisas estranhas estavam acontecendo, sempre com j esuítas no meio. Havia páginas de documentação nas pastas de damasco vermelho diante de Suas Eminências, sobre jesuítas ensinando, pregando e agindo consistentemente de maneira que não apenas divergia do ensinamento dou trinário da Igreja e das opiniões explícitas de Sua Santidade sobre as ques tões mais vitais, como os negava.

Ele podia, ofereceu-se Dottrina, apontar, em páginas daqueles rela tórios, uma dúzia de nomes de destacados jesuítas europeus, duas dúzias mais de jesuítas americanos, pelo menos 25 da América Latina, mais ou menos outra dúzia da Índia, do Japão, das Filipinas, da Irlanda e da Inglaterra. Entre todos eles, até onde Dottrina podia entender, a única ameaça comum era a insistência na necessidade de apoio à “luta de classes”. Se isso nã o era marxismo, então Dottrina não sabia o significado do termo. E se aquele fenômeno disseminado não tinha a sanção oficial tanto do padre-geral Arrupe como dos outros superiores jesuítas, Dottrina não entendia o mecanismo da Ordem dos Jesuítas.

Pela parte que o tocava, concluiu Dottrina, toda aquela situação já linha ido longe demais. O santo padre deveria agir com decisão. Agora.

Religiosi fez um segundo esforço para influenciar o resultado da dis cussão em favor dos jesuítas. Ele estava certo de que es tava havendo um profundo mal-entendido. O padre Arrupe havia reconhecido abertamente que a Sociedade de Jesus tinha mudado desde o Concílio Vaticano II. E também dera um bom motivo para aquela mudança: a própria Igreja ha via mudado. Os católicos, a partir do Concílio, passaram a compreender que a Igreja é “o povo

de Deus”, não um órgão hierárquico. O papa Pau lo VI havia tomado para si essa nova visão da Igreja — essa nova eclesiologia. Teólogos e bispos adotaram, com entusiasmo, esse novo ponto de vista. Os jesuítas, como os bispos, estavam simplesmente ouvindo a voz do “povo de Deus”. Seus

inimigos, é claro, acusavam-nos de marxistas; mas na realidade, eles eram os defensores do novo conceito de “Igreja”.

Religiosi compreendia, assegurou ele ao santo padre, que em áreas isoladas da Igreja como a Polônia, aquela que era a mais nova das ideias católicas sobre o que era realmente a Igreja ainda não tinha penetrado. Mas seria apenas uma questão de tempo. Sua Santidade havia sido um participante ativo no Concílio Vaticano; o mesmo acontecera com Dottrina, Clero e Vescovi. Eles tinham aceitado esse novo conceito da Igreja. Como é, então, que podiam os jesuítas ser condenados por agirem segundo aquela ideia? Só os inimigos deles, repetiu Religiosi a sua opinião para dar ênfase, iriam considerar o interesse dos jesuítas pelo “povo de Deus” como aceitação da “luta das classes sociais” marxista.

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Ao tornar a invocar o Concílio Vaticano II uma vez mais, Religiosi havia se colocado novamente na área de especialização de Dottrina.

Dottrina agradeceu ao seu venerável irmão por esclarecer aquela ideia -chave que movia a Sociedade de Jesus do padre Arrupe. A dificuldade, porém, estava em que os jesuítas e muitos bispos pareciam ter -se esquecido do que o Concílio Vaticano II dissera sobre “o Povo de Deus”; ou seja, que aquele

“Povo” devia ser levado e guiado não por seus próprios instintos ou pela teoria

social de Marx ou de qualquer outro. Ele deveria ser guiado pela doutrina e pela lei moral do pontífice romano e dos bispos em comunhão com aquele pontífice. Os jesuítas tinham se esquecido disso, e alguma coisa tinha que ser feita a respeito de uma omissão assim tão séria.

Foi novamente Stato que interveio no duelo entre Dottrina e Religiosi. E uma vez mais ele lembrou a todos os presentes que tinha sido ele quem aumentara as apostas na questão da decisão a ser tomada sobre os jesuítas.

Sim, concordou o secretário, alguma coisa tinha que ser feita com referência à situação. A toda a situação. Era toda a situação da Igreja que Sua Santidade estava tentando melhorar com as suas viagens apostó licas e com o seu experimento polonês com o Solidariedade. Ainda as sim, havia aquela questão do Pacto Moscou-Vaticano de 1962. E talvez fosse melhor assinalar que mesmo aquele pacto de 1962 era apenas uma renovação de um acordo anterior entre a Santa Sé e Moscou.

Stato se referia, continuou ele, às conversações mantidas em 1942, no reinado do papa Pio XII. Foi naquele ano que monsenhor Giovanni Battista Montini, do Vaticano, que mais tarde iria suceder ao papado como Paulo VI, falou diretamente com o representante de José Stalin. Aque las conversas visavam atenuar as constantes denúncias violentas de Pio XII contra o ditador soviético e o marxismo. O próprio Stato estivera a par daquelas conversas. Também estivera a par das conversações entre Montini e o líder do Partido Comunista Italiano, Palmiro Togliatti, em 1944.

Se qualquer um de seus veneráveis colegas à mesa quisesse, Stato se oferecia a fornecer relatórios do Departamento de Servi ços Estratégicos dos Aliados, sobre o assunto, começando, lembrava-se ele, com o Relatório OSS JR-1022 de 28 de agosto de 1944. Era óbvio que Stato havia confirmado suas referências em detalhe antes de ir para a reunião, apa rentemente esperando exatamente a oposição que tinha sido organizada contra ele.

O papa João Paulo pareceu ter ficado sério ao ouvir a informação de Stato. Queria saber se Sua Santidade, Pio XII, tinha tido conhecimen to daquelas conversações e acordos na época.

Não, admitiu Stato. Mas mesmo assim continuava sendo verdade que todos têm que enfrentar duras realidades. Às vezes, os subordinados têm que agir sem o conhecimento de seus superiores, a fim de ajudarem os objetivos de seus superiores. Ora, era claro que o conhecimento dos pac tos

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de 1942, 1944 e 1962 entre Moscou e o Vaticano eram assuntos inter nos da Santa Sé. Assim como as conversações e combinações privadas de Sua Santidade naquele momento, com o governo americano, eram as suntos internos e privados de Sua Santidade e da Santa Sé.

Por isso mesmo, então, os esforços dos jesuítas deviam enfrentar rea -lidades sociais e políticas. Eles não deviam ser pintados de marxistas. Fa ziam parte do fermento na Igreja. E eram uma parte muito valiosa.

Indiretamente, uma vez mais, e sem uma crítica pessoal a João Paulo, Stato tinha chegado aonde queria. Aos olhos de muitos, tratar com os americanos era tão errado, ou pior, do que tratar com os marxistas soviéticos. Todo mundo faz o que acha melhor segundo as circunstâncias. Os jesuítas estavam lidando com situações em que o comunismo já predominava. Talvez os métodos deles fossem tão aceitáveis como quaisquer outros.

Stato apressou-se a acrescentar, porém, que os abusos deveriam ser corrigidos. Com toda certeza, o padre Arrupe e os outros líderes jesuítas poriam sua casa em melhor ordem quando se reunissem em Roma para a sua próxima congregação geral. Já estavam sendo feitos intensos pre parativos. Se houvesse uma espera paciente, na opinião de Stato, toda aquela questão poderia ser regulada e ajustada. A última coisa de que se precisava, na verdade, eram maiores divisões e rupturas.

Stato havia, com efeito, repetido sua oferta de uma chegada a um meio -termo e renovou sua ameaça.

Uma possibilidade dupla daquelas, o prato perfeito para Vescovi, acabou por atrair aquele cardeal a entrar na discussão. Seu único motivo foi o de manter a boa imagem. Afinal, a supressão generalizada dos jesuítas iria criar um grande número de claros em colégios, seminários, missões, universidades e institutos. Muitos bispos ficariam com graves problemas de pessoal. E aquilo iria sacrificar os muitos excelentes jesuítas que conti nuavam sendo destacados defensores do papa e da Igreja. O que Sua San tidade precisava era de uma reforma dos jesuítas. E sem dúvida, como Stato dissera, o melhor seria deixar que o assunto seguisse um curso cons titucional. Deixem que os jesuítas se reúnam para sua congregação geral. Uma vez reunidos os líderes em Roma, Sua Santidade teria o poder jurí dico de intervir e de fazer com que eles legislassem a sua própria reforma. Se necessário fosse, o padre Arrupe poderia ser aposentado. Como disse ra Stato, com paciência tudo poderia ser colocado em ordem.

Dottrina ficara muito pouco satisfeito com a mediação de Vescovi. O papa Paulo VI, salientou Dottrina, cujo nome tinha sido invocado vá rias vezes naquela discussão para justificar os jesuítas, tentara por duas vezes reformar os jesuítas usando os mesmos meios que Vescovi e Stato estavam sugerindo. Por duas vezes, aqueles meios haviam falhado. A situação exigia uma ação mais expressiva.

O que, queria saber Stato, Dottrina consideraria “uma ação mais ex-pressiva”?

Dottrina expôs claramente sua sugestão: uma ação em duas etapas.

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Primeiro, aceitar o “pedido de exoneração” do padre Arrupe. Segu ndo, nomear um supervisor papal para supervisionar os preparativos de uma reforma realmente efetiva dos jesuítas na próxima congregação geral.

Como em geral acontece em reuniões desse tipo, chegara -se ao ponto em que todos os lados reconheciam que o melhor que cada um deles poderia fazer era aceitar uma vitória parcial. Dottrina havia começado com uma esperança de supressão total da Sociedade. Stato havia defendido o laissez-faire. A ação em duas etapas, sugerida por Dottrina, era um meio-termo para os dois. Era o máximo que qualquer um dos adversários podia esperar levar naquele momento.

Fez-se silêncio. O papa João Paulo olhou rapidamente para cada um dos cardeais. Todos eles fizeram sinal de assentimento com a cabeça. O secretá rio de Estado foi o único para o qual o papa olhou mais demoradamente.

Sua Santidade teve apenas uma observação a fazer quando finalmente se ergueu para deixar a sala de conferência: “Ora, meus cardeais precisa ram de oito votações secretas para me elegerem papa. Muito bem.”

Ninguém entendeu aquela observação. Seria algum tipo de ironia? Ou uma referência ao respeito que então era devido à sua figura papal? Ou um aviso de que ele poderia angariar apoio suficiente entre os cardeais a fim de agir sem ligar para Stato e qualquer outro na questão dos jesuítas? Apesar de todas as deliberações e de toda a romanità dos presentes, aquele papa que, como certa vez ele mesmo dissera, tinha “vindo de um país muito distante”, onde estivera

acostumado a neutralizar golpes no duelo com o dragão marxista, conseguira terminar a reunião com uma perturbadora nota de incerteza para seus cardeais de Estado.

Mas de uma coisa todos estavam certos. Muito em breve, o geral Pedro Arrupe receberia uma descrição, golpe a golpe, da reunião. Ficaria sabendo de tudo o que fora dito. Iria saber que aquele santo padre não era nem um Paulo VI cuja fraqueza o tornava maleável, nem um João XXIII cujas esperanças visionárias o cegaram para as maquinações de subordinados. Iria saber que, por enquanto, havia sido neutralizado um ataque de frente à Sociedade, não por amor a Arrupe ou estima pela Sociedade, mas porque aquilo interessava ao plano de ação do atual secretário de Estado e às ambições pessoais de Religiosi e Vescovi.

Com ou sem ataque frontal, entretanto, Arrupe, o papa negro, era tão realista quanto Wojtyla, o papa branco. Seria apenas uma questão de tempo par que o santo padre avançasse sobre a Sociedade de Jesus, para reformá -la de cima a baixo, ou para acabar com a sua existência, possivelmente para sem pre. Em qualquer dos dois casos, dessa vez Arrupe, que se agarrava obstinadamente à convicção de que ele e seus jesuítas sabiam melhor do que o seu vigário o que era bom para a Igreja de Deus, teria que deixar o cargo.

O palco romano parecia preparado para uma batalha de titãs. Acontecimentos imprevisíveis e decisivos despencaram naquele palco, porém, e dan çaram uma jiga de ironias e tragédias.

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No dia 13 de maio de 1981, três semanas após aquela conferência papal particular, João Paulo II foi atingido por duas balas saídas da pistola semi-automática Browning do assassino profissional Mehmet Ali Agca. Por engano, como foi explicado mais tarde, o pontífice foi levado às pressas para o hospital romano de Gemeli, em vez de para a unidade hos pitalar especial organizada unicamente para uso papal. Deram-lhe sangue do banco de sangue público; o estoque particular, mantido de prontidão, nunca foi usado.

Em rápida sucessão, o papa João Paulo foi submetido a duas gran des operações e sofreu as consequências da t ransfusão de sangue impuro: contraiu um caso grave de hepatite. No auge da crise do pontífice, no dia 28 de maio, morreu o cardeal Wyszynski, de Varsóvia.

Quando o santo padre foi atingido pelos tiros, Stato, que na época se encontrava em visita oficial aos Estados Unidos, voltou rápido a fim de assumir o controle da Santa Sé como secretário de Estado do Vatica no. Naqueles dias agitados, carregados de desconfianças, de maio a ju nho de 1981, não havia certeza médica de que o pontífice iria resistir. Como s e verificou, seriam necessários quase seis meses para que o santo padre voltasse ao que se considerava plena atividade. Em retrospecto, muitos são obrigados a concluir que havia pessoas, inclusive Stato e Arrupe, que achavam que o controle de João Paulo sobre os assuntos papais se tinha afrouxado de uma vez por todas. Eles não esperavam que ele se recuperasse, que voltasse ao trabalho cotidiano. Esta é a interpretação mais óbvia do comportamento de Stato e de Arrupe no período imediatamente seguinte ao atentado de 13 de maio.

Um dos primeiros atos públicos de Stato, ao voltar, foi uma violação direta da vontade de João Paulo expressa na reunião papal: enviou uma mensagem altamente congratulatória ao arcebispo Paul Poupard, pre sidente do Secretariado para os Não-Crentes, louvando a obra e o pensamento do padre Teilhard, cujo centenário o Instituí Catholique de Paris estava comemorando. A mensagem de Stato elogiava “o extraordinário eco de sua [de de Chardin]

pesquisa, aliado ao esplendor de seu pensamento”, todos os quais “deixaram

uma duradoura marca em sua época”. Foi uma enorme gafe, de uma arrogância desproporcional. E embo ra Stato

datasse a mensagem de 12 de maio — um dia antes de João Paulo ter levado os tiros —, é evidente que ela foi escrita e enviada depois do acontecimento.

Arrupe seguiu o exemplo quase que de imediato, com o que pareceu um calculado e fraco desrespeito pelas opiniões e ordens de João Paulo. Enviou uma mensagem datada de 30 de maio, e foi muito mais além de Stato em seus elogios a de Chardin.

Em assunto inteiramente separado, Arrupe também ultrapassou Stato no que só pode ser classificado de sua própria arrogância de poder. Du rante os primeiros dias da hospitalização e de convalescença de João Paulo, Vescovi, como presidente da Comissão Pontificai para a América Latina, presidiu uma reunião convocada para discutir as condições centro-

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americanas. Obviamente visados foram os problemas da igreja na Nica rágua e, em particular, o papel dos jesuítas e outros sacerdotes no gover no marxista sandinista; mas, de uma maneira ou de outra, o catolicismo estava em dificuldades em todos os países da América Central. O que preo cupava Vescovi era o que preocupava João Paulo II: os sacerdotes da or dem religiosa, na América Central, estavam se tornando assistentes sociais e ativistas políticos. Esse afastamento da atividade apostólica estava sempre encoberto por uma expressão aparentemente inocente — “diversidade de metodologia”,

“inculturação”, ou fosse lá o que fosse. Na verdade, po rém, os religiosos naqueles países estavam se tornando aliados de todo e qualquer movimento esquerdista, socialista e comunista.

Arrupe foi incluído como participante da reunião. Se tivesse usado de inteligência e aberto os olhos para o precipício à beira do qual vinha andando desde que João Paulo se tornara papa, ele teria apresentado suas escusas — doença ou ausência de Roma — e enviado um inofensivo funcionário subalterno jesuíta, apenas para dar o ar de presença. Mas Arrupe parecia pessoalmente decidido a esmagar a iniciativa de Vescovi.

O geral jesuíta impôs condições para o seu comparecimento à reu nião. Exigiu que lhe mostrassem a agenda com antecedência. Insistiu em convocar testemunhas experientes que conhecessem cada um dos seis paí ses centro-americanos. Argumentou (e venceu a discussão) que a reunião deveria incluir muitos mais participantes — padres e freiras — das ordens religiosas, já que estas constituíam 70% dos padres e trabalhadores “apostólicos” na América

Central. Arrupe, como Vescovi sabia, tinha sido eleito presidente do Conselho de

Superiores Máximos de Ordens e Congregações Religiosas, um dos mais fortes e prestigiosos cargos em Roma. Carinhosamente chamado de “don Pedro”, ele

era considerado um líder, inspirador, desbravador e protetor. A lém do mais, era entre as ordens e congregações religiosas que ainda queimava, na esteira do Vaticano II, a mais ardente forma de mudança e secularização. Os peritos e testemunhas que Arrupe convocou iriam cantar, todos, a mesma canção: A Igreja está se “adaptando”, por uma nova “diversidade de metodologia”, à

crescente cultura dos povos centro-americanos. Naquela reunião, Vescovi sofreu uma derrota e uma humilhação no táveis.

A “diversidade” foi aprovada. A presença de jesuítas e outros sacerdotes no governo sandinista da Nicarágua foi considerada uma realidade temporária e necessária. A culpa por quaisquer problemas de vulto foi colocada na interferência capitalista e eclesiástica (o que significa roma na e papal).

Ao forçar o seu caminho para a vitória naquela reunião, porém, o próprio Arrupe havia esquecido — ou talvez nunca tivesse sabido — o adágio romano Cardinales amici deboles, inimici terribiles. Os cardeais são amigos fracos, mas inimigos terríveis.

Quando João Paulo II recuperou energias suficientes e seus médicos lhe permitiram certa atividade, na segunda quinzena de julho de 1981,

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a decisão de afastar Arrupe por bem ou por mal já tinha sido tomada pelos inimigos dos jesuítas multiplicados na Cúria do Vaticano e na Igreja latino -americana. Era quase certo que Vescovi, Dottrina, Propaganda, Clero, poderosos religiosos latino-americanos como o arcebispo Alonzo Lopez Trujillo de Medellín, Colômbia, e alguns jesuítas mais velhos de tendência conservadora, anti-Arrupe, participaram daquela decisão. Arrupe tinha que deixar o cargo.

João Paulo II concordou prontamente. De fato, quando ficou sabendo como Stato e Arrupe estavam se portando, a reação do papa foi visceral. A título de mais um ferrão na sua reação, ele decidiu não comunicar a Religiosi a sua decisão papal de destituir Arrupe. Foi o equivalente a um insulto: Religiosi era o cardeal diretamente responsável pelo comportamento de todos os sacerdotes religiosos e de Arrupe em particular. Desde o atentado, João Paulo não queria coisa alguma com aqu ele cardeal na vida.

Mas os alvos do papa eram Stato e Arrupe. Rapidamente, ele atingiu Stato com um castigo tipicamente romano por suas transgressões. O Departamento de Imprensa de Santa Sé e o jornal oficial do Vaticano, L'Osservatore Romano — ambos áreas privativas de Stato — foram obrigados por ordem papal a publicar uma declaração oficial corrigindo o elogio que Stato fizera a de Chardin e repetindo a condenação de 1960. A afronta se tornava pública.

Em termos de romanità, a ação papal também era um aviso público, embora indireto, a Arrupe. Mas logo em seguida veio uma ação mais di reta. Stato recebeu ordens de implementar a primeira etapa das decisões papais sobre os jesuítas. Ele deveria exonerar Arrupe do cargo de geral jesuíta.

Antes que Stato pudesse obedecer àquela ordem, dançou-se outro volteio na jiga de ironias. Arrupe estivera fazendo uma visita às Filipinas. Fosse por causa da fadiga daquela viagem, pelo choque de um aviso em particular de Stato sobre a sua iminente aposentadoria forçada assim que voltasse a Roma, devido a alguma outra tensão violenta, ou simplesmente devido a alguma patologia normal da natureza que pudesse ocorrer em um homem de 73 anos, Pedro Arrupe sofreu um derrame cerebral no dia 7 de agosto, ao descer do avião no aeroporto de Roma. O coágulo de sangue no cérebro o deixou paralisado do lado direito e impossibilitado de falar.

De acordo com as Constituições jesuíticas, numa situação dessas o vigário-geral da Sociedade assume temporariamente as funções de padre - geral. Nesse caso, o americano Vincent O’Keefe, escolha pessoal do padre Arrupe para seu sucessor no generalato, e o mesmo homem que havia provocado a ira de João Paulo I em 1978 pelas suas propostas liberais relativas à moralidade católica durante entrevista a um jornal holandês, assumiu o comando da Sociedade de Jesus. Não havia dúvida alguma, na mente de qualquer pessoa em ambos os lados daquela guerra que se desenvolvia, de que se Arrupe não se recuperasse, os jesuítas iriam aplicar a cláusula de suas

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Constituições que previa a incapacidade total do padre-geral. Arrupe pediria sua exoneração; uma congregação geral dos líderes da Ordem seria realizada em Roma; e O’Keefe seria eleito padre-geral.

Em vista da virtual certeza de que Arrupe não iria se recuperar — desde o começo, o prognóstico foi desfavorável — O’Keefe e os outros assistentes-gerais da Ordem fizeram várias tentativas para reatar vários laços que Arrupe cortara com tanta arrogância. Por mais que tentassem, porém, não conseguiram chegar até João Paulo, ou até Vescovi, ou mesmo àquele que já fora aliado de Arrupe, Stato.

No dia 5 de setembro, Arrupe foi liberado do hospital Salvator Mundi e transportado de volta ao seu quarto no Gesù. O assessor jesuíta de im prensa, Jean-Claude Dietsch, S.J., disse aos meios de comunicação que a recuperação de Arrupe iria demorar “uns dois meses”. Mas era apenas uma diretriz de

relações públicas, como aconteceu com a onda de comen tários hipócritas e elogios anedóticos que circulou em torno de Roma e da Sociedade de Jesus em favor de “don Pedro”. Os superiores jesuítas estavam tentando ganhar tempo.

Em fins de setembro, estava claro que, embora Arrupe não fosse mor rer de imediato, nunca iria recuperar a saúde normal, nunca voltaria a governar a Sociedade de Jesus.

E então ali estavam eles, os dois titãs, o papa branco e o papa negro. João Paulo, convalescendo a 36 quilômetros de Roma, na residência papal em Castel Gandolfo, enfraquecido pelo choque das balas disparadas por Agca; enfraquecido ainda mais pelas sucessivas operações e por uma hepatite virulenta; recebendo diariamente informações cada vez mais som brias sobre o destino do seu filho da esperança, o Solidariedade, lá na sua adorada Polônia; e privado da assessoria e do apoio moral do cardeal Wyszynski. E Pedro Arrupe, deitado em seu leito na sede romana dos jesuítas, imobilizado pelo ataque, aparentemente ciente do que se passava à sua volta mas impossibilitado de falar de maneira coerente.

O Conselho de Assistentes, órgão especial de Arrupe, sem saber o qu e estava por vir, ocupava-se em procurar a melhor maneira de obter a permissão papal para convocar uma congregação geral, a fim de que pudesse eleger um novo geral. O fato de o grupo não ter conhecimento da decisão de João Paulo foi um triunfo da confidencialidade. Porque nos ventilados corredores do Vaticano, onde segredos sopram continuadamente em torno dos ouvidos dos que estão sempre na escuta, o verdadeiro segredo é raro. Mas João Paulo II estava zangado; não queria que ninguém tirasse a espoleta de s ua bomba.

Quando ela veio, houve algo de pungente e intrigante no último grande entrechoque entre aqueles dois titãs. Nas circunstâncias, e em termos ro manos, talvez o maior castigo tenha cabido a Stato, que havia, tola e diretamente, transgredido as intenções de João Paulo no momento em que este estivera mais fraco, e fora conivente com a insubordinação de Arrupe. Pois João Paulo decidiu lançar sua bomba sobre Arrupe e os jesuítas pelas mãos do próprio Stato.

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Cedo, no dia 5 de outubro, a figura baixinha do secretário de Estado surgiu, atravessando as Portas de Bronze do Vaticano. Caminhou as poucas centenas de metros até o outro lado da praça de São Pedro, dirigindo -se no número 5 do Borgo Santo Spiritu, e apareceu, sem ser anunciado, diante da porta da frente da casa jesuítica onde Arrupe estava acamado. Levava uma mensagem papal para o padre-geral.

Deixaram-no entrar. Ele subiu as escadas, foi levado até ao quarto de Arrupe, e caminhou até à cabeceira da cama. Ficou de pé ao lado da forma paralítica do velho basco e leu a carta de João Paulo. “Eu queria ter condições

de trabalhar com vocês”, escrevera João Paulo, “nos preparativos da

congregação geral (...)”, mas as balas do assassino no dia 13 de maio e o derrame de Arrupe no dia 7 de agosto tinham aca bado com toda aquela parte do plano. “Por isso, decidi nomear um delegado pessoal (...)”.

Efetivamente, aquela carta excluía Pedro Arrupe do generalato para sempre e exonerava O’Keefe de seu cargo de vigário-geral da Sociedade — e lhe retirava todas as esperanças de ser eleito geral por uma Congregação subsequente.

Não era o controle do poder por parte de João Paulo que havia ter minado. O delegado pessoal do pontífice e superior temporário da Sociedade

era Paolo Dezza. Com quase oitenta anos de idade, quas e cego, uma autoridade em educação superior, antigo mestre de romanità, homem que armazenava em sua memória uma enorme quantidade de fatos e números, Dezza granjeara renome há quase quarenta anos antes, no pontifica¬do do papa Pio XII. Tinha sido confessor dos papas Paulo VI e João Paulo I. Um dos velhos especialistas romanos, Dezza, quase que sem dú¬vida alguma, fora chamado durante as fases finais das consultas entre Vescovi, João Paulo II e os outros notáveis curiais. “O papa”, observou um jesuíta, “está demonstrando seus poderes divinos ao dizer a Dezza: ‘Lázaro! Apareça!’”

Dezza era, realmente, idoso e frágil, mas tinha mais habilidade em seu repertório, mais aço em seu jeito pianissimo, do que muitos milhares de homens mais moços.

Para assistente de Dezza, João Paulo nomeou um sardo, Giuseppe Pittau. Pittau obtivera doutorado em ciência política em Harvard, e ti nha sido nomeado por Arrupe provincial do Japão e presidente da Uni versidade de Sofia, em Tóquio. João Paulo conhecera Pittau em fevereiro da quele ano, durante a sua viagem ao Japão.

A eliminação de Arrupe e O’Keefe, a nomeação de “um delegado pessoal

do santo padre junto à Sociedade de Jesus”, e a incerteza com relação ao

próximo movimento de João Paulo provocaram pânico entre os provinciais jesuítas nos Estados Unidos, que tanto haviam se embre nhado no caminho pelo qual Arrupe os guiara. Eles encaminharam um questionário preocupado a Dezza, mesmo antes de ele assumir oficialmente o cargo. Qual era a posição das Constituições da Sociedade? Suspensas? Totalmente, ou em parte? E agora, o que iria acontecer? Qual a

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constitucionalidade dos atos do papa? Eram legais? Quais os poderes de Dezza? Ele podia passar por cima dos provinciais? Substituí -los? Podia dispensar jesuítas da Sociedade? A congregação geral estava adiada indefinidamente? Quando poderiam eles eleger um novo geral?

No dia 26 de outubro, Dezza despachou longo telex em resposta. Tranquilizou os jesuítas americanos quanto às Constituições. A convocação da congregação geral, entretanto, tinha sido adiada “para que houvesse melhor preparação”.

No dia 30 de outubro, Dezza assumiu formalmente o comando da Sociedade; rezou uma missa concelebrada e disse a homilia no Gesù. Do púlpito, apresentou outro e ainda mais perturbador motivo pelo qual a congregação geral fora adiada pelo papa João Paulo II: “O santo padre achou

melhor esperar até que seja promulgado o novo código de Lei Ca nônica.” Imediatamente, isso provocou temores ainda piores. Na nova lei da Igreja,

será que a Sociedade seria despida de seus privilégios? Talvez colocada sob a jurisdição de bispos locais? Talvez novas leis fossem proibir que os jesuítas fizessem o que estavam fazendo? O pânico aumentou. Dez za, entretanto, continuou imperturbável.2

A intervenção de João Paulo no governo da Sociedade foi uma coisa irritante e um dissabor para Stato e para Religiosi; mas para os colegas de Arrupe naquele governo, foi um ultraje moral e uma devastação, uma total e avassaladora surpresa. “Isso”, disse um advogado jesuíta, “é um pas moso salto de total ilogicidade.”

A maioria dos 26.622 membros da Sociedade em 1981 esperava algum ato papal naquele sentido, a fim de corrigir as desordens entre eles. 3 Mas para os “pensadores avançados” e para os membros da Sociedade em todo o mundo, er a inconcebível que uma maioria recebesse com agra do a intervenção papal. “É

provável que existam apenas cerca de 8% de jesuítas no mundo”, observou um

jesuíta baseado em Roma, “que possam levar a mão ao coração e dizer: ‘Obrigado, papa João Paulo.’”

Um papa, este papa, ousara intervir diretamente na direção dos je suítas. Agora o papel, o dever deles, era resistir enquanto a intervenção durasse.

O fato lamentável e revelador é que a liderança jesuíta e os pesos -pesados intelectuais gritaram como se fossem sócios de um clube exclusivo e autônomo cujas preciosas liberdades fossem subitamente retiradas por uma mão rude e ilegal. A reação daria livros sobre a deterioração da obediência na Sociedade. “Afinal, os papas não são imortais”, era uma fra se consoladora usada com frequência na época.

Como era inevitável numa organização como a Sociedade, o ponto de vista corporativo prevaleceu em público. Mais de 5.000 cartas de pro testos de jesuítas de todas as partes do mundo foram despejadas sobre o Gesù, todas condenando o ato de João Paulo. Na Alemanha Ociden tal, dezoito jesuítas, inclusive o peso-pesado teológico de sua época, Karl Rahner, dirigiram uma carta a João Paulo II, na qual declararam que

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não reconheciam “o dedo de Deus nessa medida administrativa”. Eles estavam “chocados com a falta de confiança dele” em relação ao padre

Arrupe. A atitude de João Paulo “é parte de nossa experiência que nos diz que

nem mesmo a mais alta autoridade da Igreja está imune a erros”. E então veio

a ameaça de retaliação por meio de uma revolta. “A Santa Sé só é superiora da Sociedade dentro da estrutura das Constituições aprovadas pela Santa Sé. Portanto, a interferência de Vossa Santidade põe em dúvida fundamental a nossa lealdade a Jesus Cristo e à Igreja.” Em outras palavr as, se Vossa Santidade violar as Constituições, nós nos sentiremos à vontade para desobedecer a Vossa Santidade.

É claro que, como acrescentou outro jesuíta romano, não se discutia qualquer erro por parte de Arrupe. “Este ato mais recente contra os jesuíta s envolve a submissão do [cardeal] Baggio e do [cardeal] Lopez Trujillo às empresas multinacionais e seus amigos do Opus Dei.”

Houve, de fato, verdadeiros rios de tinta jesuítica despejados em qui -lômetros de papel. Provinciais, professores de teologia e a tivistas escreviam para dizer uns aos outros que estavam “zangados” com a nomeação, por João

Paulo, da equipe Dezza-Pittau, e que estavam “lutando” para dominar aquela

raiva. Em publicações jesuíticas, editoriais e mais cartas anula atacavam o papa, o Vaticano, a Igreja “institucional”, e o gover no e o sistema econômico dos Estados Unidos e da maior parte do mundo livre. “Este caso assinala o

repúdio papal à leitura liberal do Vaticano I (...) Como dizem lá no Oeste, a Sociedade é um espinho sob a sua e la . (...) Esta tentativa de sequestrar a Sociedade. (...)” E iam por aí afora os comentários dos jesuítas.

O Conselho de Superiores Máximos, do qual Arrupe fora o chefe indiscutível e que foi assumido pelo mestre-geral dominicano, Vincent De Couesnongle, planejou fazer o seu vigoroso protesto ao Vaticano. Se o papa podia arrancar Arrupe do cargo, poderia fazer o mesmo com o che fe de qualquer outra Ordem.

Quando Dezza e Pittau enviaram um documento à Sociedade toda dando algumas diretrizes iniciais e bem anódinas para o que chamavam de “renovação”, o alarido foi mais uma vez ensurdecedor. Os superiores das

províncias de Chicago e Maryland, da Sociedade, expressaram sua raiva em termos que pouco deixavam à imaginação. Um destacado superior jesuíta da província de Chicago, homem já conhecido como violen tamente antipapal e anti-Igreja “institucional”, ridicularizou a ideia de voltar à formação

religiosamente rigorosa de jovens jesuítas. “Não podemos voltar ao monasticismo.”

Enquanto isso, a observação mais favorável divulgada pelos jesuítas sobre o velho padre Dezza era a de que ele era antiquado. O epíteto mais brando usado para ele pelos seus estarrecidos colegas era “o Cossaco”.

Por toda a crítica amarga e todas as objeções irrestritas à ação papal corria uma igualmente irrestrita exigência de que aqueles que reagiam com tanta violência e que com tanta arrogância criticavam o papa deviam fi car imunes a todas as críticas contra eles próprios. Aqueles que não de ram

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importância, jesuítas ou não-jesuítas, àquela exigência arrogante, e condenaram os atos rebeldes dos jesuítas que estavam no comando, fo ram imediatamente cercados, virtualmente afogados numa violenta onda de reclamações cm altos brados e depois enterrados sob as reclamações contra a supressão da “dissidência democrática” na Igreja.

Enquanto isso, Stato, que estava ali há muito mais tempo e havia suportado mais provações do que a maioria dos jesuítas, tinha experiên cia suficiente para sentir certo consolo mesmo naquela mais amarga das situações. Ele achava que Dezza e Pittau, cada qual por motivos muitíssimo diferentes, iriam solucionar a “dificuldade” com o papa João Paulo I sem qualquer alteração substancial no status quo.

À primeira vista, a escolha de Dezza parecia ótima do ponto de vista papal. Sua idade, sua associação com Pio XII, sua ficha de religioso obe diente, sua devoção à Santa Sé, seu papel como confessor dos papas Pau lo VI e João Paulo I, tudo augurava bons resultados. Pittau, enquanto isso, era escolha do próprio Dezza e, segundo se dizia, era amigo de João Paulo desde a visita do papa ao Japão. Inconscientemente, porém, João Paulo havia escolhido dois homens que, por mais que quisessem, não poderiam fazer o que ele queria quanto à Sociedade de Jesus.

Em sua idade avançada, Dezza era um jesuíta leal até à medula. E era a encarnação da romanità. Na verdade, ele absorvera a romanità como se ela lhe tivesse penetrado pelos poros. Para ele, o principal objetivo numa instituição como a Santa Sé, onde a realidade dominante é uma realidade “pol ítica” — o poder papal —, era observar os esperados “rituais” e “formas” que davam à

romanità a sua fachada segura. As palavras certas, a necessária declaração de propósito, a repetição oficial de fórmulas sobre fé e padrões morais — eram estes os ingredientes da reconciliação e da paz. Por outro lado, todo e qualquer sinal de desentendimento, rebelião, revolta, ou independência era desnecessário e de rematada estupidez.

Lealdade jesuítica, aliada ao domínio total da romanità, é uma combinação eficaz. Na análise de Dezza, nada havia de errado com a Sociedade como um todo. Não poderia haver. Dezza nem podia pensar que uma reforma dos padrões morais e uma alteração da concepção teológica dos superiores jesuítas e intelectuais pudessem ser necessárias. Se os jesuítas tinham encontrado “dificuldades” junto a Sua Santidade, era porque algum imbecil, em algum lugar, violara os planos gerais de organização, aceitos, pecara “politicamente”,

deixara de perceber e entender que, para Roma, autoridade é poder — como deve acontecer com toda autoridade espiritual autêntica. Em suma, alguém não conseguira entender o supremo valor “político” das relações jesuíticas com o

papa e com o mundo exterior. Para Dezza, então, como para a grande maioria dos superiores má ximos

jesuítas, não havia problema ou dificuldade real, na Sociedade, quanto à doutrina da fé, ao voto de obediência ao papa ou aos ensina mentos morais da Igreja. A verdadeira tarefa de Dezza — e de qualquer

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mente que funcionasse como a de Dezza — era apresentar uma aparência de unidade coesa, de tal maneira que a Sociedade pudesse ser aceita, vol tasse a gozar de seu prestígio e pudesse continuar seu caminho sem ser mais perturbada pela “dificuldade” que João Paulo II havia criado.

Uma pessoa se tornava aceitável ao observar os planos gerais de or -ganização e as convenções da romanità. Com isso, fazia uma bella figura. Isto é, causava “ótima impressão” à Santa Sé porque estava em ordem; ao público em

geral, porque ocupava um lugar de honra no Vaticano; e aos jesuítas do mundo inteiro, porque os superiores romanos da Ordem ocupavam altas posições no Vaticano. Bella figura em toda parte — era o objetivo e o ideal de Dezza.

A solução de Dezza, em suma, tinha tudo a ver com a restauração de relações, e nada a ver com abusos intra-Sociedade. A romanità se especializa na bella figura.

Pittau tinha antecedentes diferentes dos de Dezza. Não era italiano, mas sardo. Atingira a maturidade não em Roma, mas como provincial do Japão, onde havia sucedido Pedro Arrupe naquele posto e depois trabalhara sob a direção e inspiração de Arrupe durante quinze anos. O seu jesuitismo era o jesuitismo de Arrupe. E como Arrupe, ele agora tinha sido chamado das províncias para Roma, aquela capital com cujo poder ele tivera que lutar l á de seu posto distante. Mas ele, como Dezza, sabia aquilatar o valor das relações jesuíticas com o papa e com o mundo em geral.

As objeções do papa, então, na mente de Dezza e Pittau, diziam res peito às aparências de desvio da norma romana. Sim, os jesuí tas talvez tivessem sido considerados egregiamente afastados das fórmulas padro nizadas que Roma espera ver em documentos escritos, em instruções de superiores e subordinados, na repetição periódica de sentimentos de leal dade. Nisso, porém, eles vinham apenas — talvez com um pouco de exagero no entusiasmo — manifestando o espírito da nova Igreja Católica nascido do Concílio Vaticano II de 1962 a 1965. Era “o espírito do Vaticano II” que os levava ao excesso.

Quanto aos jesuítas de ideias mais tradicional istas, aqueles que se opu-nham à maneira pela qual a Sociedade se desenvolvera, eles simplesmen te partilhavam com o papa João Paulo uma teologia que era anterior ao Concílio Vaticano II. Arrupe, Dezza e Pittau, enquanto isso, juntamente com todos os superiores provinciais da Sociedade, marchavam ao som da nova teologia pós -Concílio.

A tarefa que Dezza e Pittau enfrentavam, portanto, era uma tentati va radical de restaurar a bella figura da Sociedade de Jesus. O santo padre teria que ver instruções de Dezza e Pittau a todos os jesuítas enfatizando as fórmulas tradicionais de Roma. Os superiores da Sociedade te riam que fazer reuniões, criar grupos de estudo, realizar assembleias provinciais, discussões internas, e coisas que tais, a fim de mostrarem seu á vido interesse no chamamento à ordem feito pelo papa. De cada supe rior local, os superiores romanos teriam que receber extensos e detalha

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dos relatórios sobre como tudo estava sendo levado adiante. A dissensão dos membros mais tradicionalistas que ameaçava a unidade visível da Sociedade tinha que ser abafada, isolada, retirada dos olhos do público. Se tudo o mais fracassasse, e devido ao fato de que a aparência de unidade era bastante essencial para a “reforma” de Dezza e Pittau, os dissidentes que pers istissem teriam que ser discretamente dispensados da Sociedade.

Continuidade era parte essencial da “forma” que Dezza visava de -monstrar. Dezza insistia, de fato, na “continuidade com Arrupe” e sua

liderança. Ele cumpria a sua missão papal com o conselho e a ajuda dos homens que Arrupe havia colocado em posições de autoridade e sob cu jas direções a Sociedade se deteriorara. Não foi surpresa, para Stato e outros que compreendiam a romanità e a mente de Dezza, o fato de o supervisor papal não ter tocado, de maneira alguma, nos administradores jesuítas que tinham sido responsáveis pela situação política e teológica que provocara a ira de três papas e a intervenção direta de João Paulo na governança da Sociedade.

Não houve exigência alguma, na gestão de Dezza e Pittau, não mais do que houvera na de Arrupe, de obediência, pelos jesuítas, a ensinamentos específicos da Igreja — sobre infalibilidade papal, aborto, homossexualismo, divórcio e marxismo. Eles insistiam, entretanto, bem mais do que Arrupe havia feito, para que os dissidentes mais extremados da doutrina católica na Sociedade calassem suas vozes até que a Sociedade pudesse, uma vez mais, escolher o seu superior-geral, fechando, assim, a porta ao infeliz incidente de intervenção papal direta.

Enquanto isso, Dezza começou uma procura muito discreta, mas cui -dadosamente dirigida, por um candidato adequado para ser o próximo geral. Alguém já estabelecido por méritos próprios, bem-sucedido em sua carreira, de virtude confiável, inteligente no que se referisse a romanità, papas e cardeais. Alguém religiosamente impecável. Alguém capaz, pelo caráter e pelo jesuitismo, de guiar a Sociedade através do período previsivelmente difícil de gestão desse papa polonês.

Cunctando regitur mundus.

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4. A HUMILHAÇÃO PAPAL

A

recuperação de João Paulo II parecia dolorosamente lenta. O ano de 1981 tinha sido devastador não apenas para a sua saúde, mas para o espírito de sua estratégia papal. Com o papa derrubado por balas e depois enfraquecido pela hepatite, e com a mor te do cardeal Wyszynski, seu amigo íntimo e um aliado indispensavelmente confiável no desenvolvimento do Solidariedade como exemplo, o Solidariedade tinha sido detido efetivamente no seu plano de desen -volvimento aberto, público. Nada lhe restava senão a redução da s ati-vidades, o reagrupamento e uma volta a uma existência secreta em sua maior parte.

Ao mesmo tempo, os riscos na América Latina, o segundo maior cen tro da estratégia “na base da força” de João Paulo, tinham aumentado

consideravelmente. Os serviços de informações americanos confirmavam, em 1980, que os sandinistas estavam usando seus recursos, inclusive as liberais quantidades de auxílio dos Estados Unidos que tinha começado a ser prestado sob a gestão do presidente Carter, para canalizar armas para os guerrilheiros marxistas no vizinho El Salvador. Em 1981, o secre tário de Estado norte-americano Alexander Haig havia caracterizado rudemente a Nicarágua como a primeira numa “lista de ataque” soviética de países latino -americanos destinados ao domínio soviético. Naquele mesmo ano, a ajuda americana foi suspensa. Mas em princípios de 1982, o reconhecimento aéreo e terrestre demonstrou, sem sombra de dúvida, que grandes construções militares estavam sendo realizadas na Nicarágua, executadas com dinheiro, material, mão-de-obra e tecnologia cubanos e soviéticos. Simultaneamente, a revelação de que guerrilheiros anti-sandinistas, apoiados pela CIA, estavam operando na Nicarágua e com base na vizinha Honduras amedrontou os sandinistas e provocou uivos de protesto de jornais e periódicos ligados à Igreja nos Estados Unidos, Canadá e Europa.

Para todos os jogadores do jogo geopolítico global de nações, a Ni -carágua se tornara, evidentemente, o carneiro-guia de rebanho do hemisfério ocidental. Aos olhos do ditador de Cuba, Fidel Castro, aos olhos

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dos vigilantes homens do governo Reagan em Washington, e do ponto de vista dos homens que traçavam o curso para o Politburo de Moscou, para onde a Nicarágua fosse iriam todos os países centro-americanos e, por fim, também alguns da América do Sul.

Geopoliticamente, o papa João Paulo II concordava com essa análi se. Mas para ele, a luta era pela própria sobrevivência do catolicismo ro mano no hemisfério sul, onde vive quase a metade de todos os católicos romanos. E, a seu ver, a verdadeira oposição naquela luta estava cheia dos mais perigosos rebeldes da Igreja desde a revolta de Martinho Lutero no século XVI.

Sobre aquele determinado ponto, o pontífice católico romano e a Jun ta marxista da Nicarágua estavam de acordo. A fonte central de força popular para a revolução sandinista era o constante desenvolvimento de comunidades de base, baseadas e sustentadas pela “Igreja Popular”. Os únicos que poderiam dar

certa legitimidade àquele empreendimento ar riscado eram os sacerdotes políticos católicos romanos do Partido Sandi nista. A leal colaboração deles, por trás do jesuíta Fernando Cardenal como o ativista exemplar de destaque, havia se mostrado vital para a manutenção de um impulso à frente na instalação de um regime marxista aceitável pelo povo nicaraguense. Levando-se tudo em conta, tratava-se do ataque mais inteligente à própria alma do catolicismo que já fora armado; e esse ataque prometia livrar o hemisfério, e por fim o mundo, de qualquer presença católica romana efetiva.

Tão confiante ficara a Junta nesse apoio clerical para atingir seus objetivos, que nada a detinha no sentido de silenciar quaisquer religiosos que se opusessem ao conceito de “Igreja Popular” e à instalação de suas

comunidades de base, que eram polit icamente indispensáveis. Não era raro a Junta adotar uma ou duas páginas das táticas da Gestapo, como quan do forjou provas de imoralidade sexual por parte do padre dissidente Bismark Carballo, ou quando enviou um bando de valentões para agredir nada mais nada menos do que a figura do arcebispo da Nicarágua, Miguel Obando y Bravo, que se tornara implacável, embora continuasse sem sucesso, no seu pedido para que todos os sacerdotes pedissem demissão de seus cargos no governo.

Essas táticas parecem não ter provocado nem mesmo rubor às faces de Fernando Cardenal, ou às faces de seu irmão poeta Ernesto, ou de Ál varo Arguello, ou de qualquer dos outros sacerdotes que estavam no go verno. Em 1982, quando as autoridades locais da Igreja na Nicarágua lançaram uma censura eclesiástica sobre os sacerdotes que faziam parte da Junta, proibindo -os de rezar a Missa, ouvir confissões ou realizar quaisquer funções sacerdotais, a resposta de Fernando Cardenal foi impertur bável: “Somos homens livres”,

declarou ele; eles não podiam ser obrigados a se exonerarem. A censura foi, até certo ponto, inócua; muitos dos sacerdotes políti cos já

haviam abandonado qualquer prática de funções especificamente sacerdotais como a Missa e as confissões. Apesar disso, uma onda de protesto

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contra a censura invadiu a imprensa e o rádio sandinista e os meios de comunicação dos Estados Unidos e da Europa, sem falar nas publicações religiosas simpáticas ao movimento.

Parecia que o papa João Paulo ainda tinha esperanças de poder corrigir o que, em sua opinião, havia de errado na ordem jesuítica, e que a própria sociedade, naquele caso, voltaria a exercer o controle não só de homens como Fernando Cardenal e Alvaro Arguello na Nicarágua, mas do enorme quadro dos chamados “homens do papa” pelo mundo inteiro que se haviam colocado, de forma tão resoluta, contra esse papa e, na verdade, contra o conceito mesmo de papado na Igreja Católica.

De qualquer modo, em princípios de 1982, o superior -geral jesuíta temporário, Paolo Dezza, se reunia com os super iores provinciais de todas as partes do mundo na Villa Cavaletti, uma casa jesuíta fora de Ro ma, na colina Albanas. Os quatro assistentes-gerais — Vincent O’Keefe, Horacio de la Costa, Parmananda Divarkar e Cecil McGarry — sugeriram a Dezza que seria uma boa ideia pedir uma audiência com o papa aquela altura, em nome dos superiores provinciais da Sociedade que esta vam reunidos na Villa Cavaletti.

Era ponto de vista corrente entre os assistentes — expresso, com ha-bilidade, e em particular, por O’Keefe — que a principal dificuldade de João Paulo II era o seu passado. Antes de ir para Roma como papa, Karol Wojtyla fora bispo, bem-sucedido e eficiente, é verdade, mas ainda assim limitado a uma diocese, a Cracóvia, na Polônia. No estilo tradicional dos bispos da velha escola, e em especial dos bispos da Polônia, o arcebispo Wojtyla se tinha acostumado à obediência instantânea de seus padres e freiras num simples estalar de dedos. Como papa, na opinião de O’Keefe, Wojtyla ainda se portava

com aquela mentalidade de bispo. Wojtyla precisava entender que a Igreja universal não era apenas uma versão maior da tradicional e submissa diocese polonesa, e que “papar” não era o mesmo que “bispar”. Portanto, qualquer

chance de abrir os olhos do papa polonês tinha que ser aproveitada. A audiência foi marcada para o dia 27 de fevereiro de 1982, no Vati cano.

Na manhã daquele dia, antes da audiência, Pedro Arrupe, que se recuperava o suficiente para se deslocar lentamente com auxílio, e os pro vinciais celebraram a missa na igreja do Gesù. A homilia de Arrupe durante a missa, lida por outro, estava repleta de todas as palavras empoladas o fórmulas com as quais Arrupe havia coberto seu caminho de quinze anos de oposição a ordens papais e de divergência da doutrina papal. Arrupe elogiou “a plena e filial

obediência” com que os jesuítas tinham aceitado a intervenção do santo padre

no governo da Sociedade, e exortou seus colegas jesuítas a obedecerem, não apenas fazendo o que o papa dizia, mas fazendo aquilo “com alegria”.

Quando a missa terminou, o grupo atravessou a pé a praça de São Pedro em direção ao Vaticano e se reuniu na hora marcada para a chega da do papa. Foram deixados esperando durante uma hora, enquanto João Paulo conversava com o presidente francês François Mitterrand.

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Quando João Paulo chegou, saudou Arrupe com grande cortesia, dirigindo-se a ele como “Caríssimo padre generale!” João Paulo leu um discurso de dezoito páginas que começou em italiano, passou para o fran cês, depois para o inglês e terminou em espanhol.

Em muitos aspectos, João Paulo usou luvas de pelica; mas do ponto de vista da liderança da Sociedade, as coisas não se saíram muito bem.

As implicações do discurso foram ameaçadoras e recriminadoras, e evidentemente visavam a todos os 26.622 membros da Ordem. Três quartas partes do discurso (as seções em italiano, francês e inglês) disseram claramente à plateia do pontífice aquilo que ela devia e não devia fazer, bem como as intenções e desejos do papa em relação a ela. Ele deixou claro que “(•••) Não há espaço para desvios (...)” e que, “Já que o pontí fice romano é um bispo e o chefe da hierarquia, os jesuítas devem ser obedientes tanto aos bispos quanto ao papa, chefe de todos os bispos”.

Quanto à vocação jesuíta em si, o papa tinha bastante coisa a diz er. “Os

métodos dos religiosos não seguem os cálculos dos homens. Eles não usam como parâmetros o culto do poder, da riqueza, ou da política. (...)” Os únicos

jesuítas que o papa iria tolerar seriam aqueles que agissem se gundo as tradições das quais a Sociedade não se afastara antes durante mais de quatrocentos anos. “Sua atividade própria não está no reino tem poral, nem naquele que está no campo de ação dos leigos e que tem que ser deixado a cargo dos leigos.” Atenham-se às várias formas do apostolado tradicional, disse-lhes ele. E às regras tradicionais jesuíticas. Na Sociedade, não reduzam o período de treinamento.

As tradições jesuíticas que eles deveriam preservar eram dedicação ao papado e propagação das crenças católicas romanas tal como defendi das pelo papado. “Santo Inácio era, em todos os casos, obediente ao Trono de Pedro.

(...) Os superiores não devem abdicar de seu dever de exercer a autoridade e de aplicar sanções contra membros rebeldes (...).”

João Paulo traçou então, em palavras sucintas, um retrato do que deveria ser o caráter jesuítico clássico. Se alguém entre os que o ouviam ainda sabia o que Inácio fundara como uma Ordem, as palavras do papa devem tê -lo penetrado como uma espada de arrependimento amargo pela glória que a Sociedade já possuíra e pelo ideal que os jesuítas haviam criado. “Bispos e

sacerdotes”, disse João Paulo, “costumavam ver a Sociedade como um autêntico e, por isso, seguro ponto de referência para o qual se podia voltar a fim de encontrar certeza de doutrina, julgamento moral lúdico e de confiança, e alimento autêntico para a vida interior.” O papa fez uma pausa para erguer o

olhar, tendo nos olhos um bri lho de intenção, apelo e esperança, uma espécie de gesto físico para sublinhar o que iria dizer em seguida. A Sociedade, disse João Paulo, poderia atingir outra vez aquele ideal inaciano, mas só através da “leal fidelidade ao magistério da Igreja e, em particular, do pontífice romano

ao qual eles estavam ligados pelo dever”. Na última quarta parte de seu discurso, dita em espanhol, João Paulo

finalmente se declarou a favor de permitir que os delegados jesuítas

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se reunissem — após a devida preparação —, a fim de elegerem um novo padre-geral. O mecanismo da preparação poderia começar em 1982.

A reunião toda, inclusive o discurso papal e as formalidades, durou cerca de 75 minutos. Mais ou menos 65 desses minutos foram um esforço perdido. A última parte do discurso de João Paulo — a permissão papal para que eles convocassem a XXXIII Congregação Geral da Sociedade era tudo o que a maioria da audiência do pontífice queria ouvir. Eles teriam permissão para elegerem o seu jesuíta-geral. As coisas poderiam voltar ao normal. Os provinciais e os superiores romanos atravessaram de volta a praça de São Pedro em direção ao Gesù, e a satisfação reinava entre eles. A espera obstinada, paciente, valera a pena.

Por quanto tempo o papa João Paulo manteve sua atitude esperan çosa de que a Sociedade de Jesus fosse finalmente voltar àquelas tradi ções que ele lhes apontara, não há muita certeza. O que é certo é que tudo o que ele dissera de referência a questões religiosas e espirituais foi interpretado por Dezza, pelo assistente deste, Pittau, pelos assistentes-gerais e pelos superiores provinciais à luz daquele ponto de vista político muito especial adotado por eles. Aquele ponto de vista lhes dizia que aquilo que o santo padre realmente estava lhes dizendo era esplendoroso: “Eu tive que agir de maneira um tanto assustadora,

exonerando Pedro Arrupe e Vincent O’Keefe. Mas agora que estamos juntos, as coisas vão muito bem.”

Em outras palavras, ainda não havia o reconhecimento e, apesar do discurso muito claro do pontífice, talvez nem consciência, por parte dos jesuítas que o ouviram naquele dia, de que João Paulo II estava falando sobre falhas graves da Sociedade; nenhuma ideia de que o pontífice esta va dizendo, com a delicadeza que lhe era possível: “Vocês estão errados. Cometeram erros

graves. Têm que corrigir o seu curso.” Muito pelo con trário, na verdade. O que parecia preocupar muitos dos superiores provinciais que o ouviam era que João Paulo parecia dar a entender que eles teriam que obedecer aos bispos locais. “Isso quer dizer que temos que obedecer a bispos conservadores?”, reclamou

um provincial na intimidade do Gesù. A melhor resposta à pergunta foi dada, provavelmente, a um jorna lista

que, bem-humorado, perguntou a um dos assistentes -gerais jesuítas se “vocês

acabaram por se render ao papa?” A resposta veio com um sorriso: “Não

acredite nisso!” Logo que os delegados provinciais voltaram a seus lares jesuíticos no

mundo inteiro, as informações oficiais eram de que com a sua manei ra papal, peculiarmente polonesa e “episcopal”, João Paulo havia “pedido desculpas” e

“dado satisfações” pelo seu ato extraordinariamente “impróprio par a um homem da Igreja” de exoneração de Arrupe de modo tão precipitado.

O padre jesuíta Gerald Sheehan, um americano que morava em Ro ma e assessorava superiores romanos sobre jesuítas americanos, chegou mesmo a declarar delicadamente que João Paulo havia reconhecido que

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fora mal informado pelos inimigos da Sociedade, e que agora percebia como estavam erradas as informações que recebera. Os jesuítas já não precisam mais ficar zangados com o santo padre.

“Foi uma satisfação termos vindo aqui”, comentou um p rovincial com um jornalista, “e termos ouvido o papa. Agora, vamos voltar para casa e ficar em

silêncio durante algum tempo, evitando quaisquer gestos, publicações ou críticas espetaculares ao papa. Mais tarde, iremos eleger o geral de nossa escolha. E nada mudará.”

A ideia fixa revelada nessas observações e em outras semelhantes pre -pararam o terreno para que os jesuítas abertamente tradicionalistas e or todoxos que vinham lutando contra as modificações na Sociedade pudes sem, agora, levar a culpa pela “má informação”. Enquanto isso, os superiores sabiam, agora, como evitar a provocação de novas explosões papais. A ordem do dia seria: “Vão com calma, mas com um pouco mais de ‘sensibilidade política’ do

que aquela que usamos na gestão de Arrupe.” A Sociedade, em si, tinha sido absolvida.

Um dos assistentes-gerais havia resumido tudo de forma incisiva, quando o grupo saíra da audiência com João Paulo. Perguntado sobre o que achava, ele respondeu com um sorriso satisfeito: “Acqua passata.” Todas as dificuldades e todas as palavras que eles tinham acabado de ouvir eram “água por baixo da

ponte”, que se fora para sempre. Não era de admirar, então, que Fernando Cardenal e os outros je suítas e

sacerdotes que seguiam sua orientação na Nicarágua não vissem necessi dade de deixarem seus cargos.

Por mais que as esperanças de João Paulo para com a Sociedade de Jesus possam ter diminuído ou crescido depois do encontro de 27 de fevereiro, era evidente que o papa não estava disposto a ficar sentado e esperar, ou a se abster de uma ação mais direta no país vital que era a Nicarágua. Tendo perdido o Solidariedade, ele não podia se dar àquele luxo, se a es tratégia “de

força” de seu papado quisesse conseguir um ponto de apoio. Numa carta aos bispos nicaraguenses datada de 29 de junho, João Paulo

denunciou a “Igreja Popular” em termos ásperos e precisos. Essa igreja

“nascida do povo”, disse ele citando os fundadores clérigos da Ni carágua, era uma nova invenção que era “absurda” e tinha um “caráter perigoso”. Só com

dificuldade, continuou João Paulo, ela poderia evitar ser infiltrada por “conotações estranhamente ideológicas seguindo uma linha de certa

radicalização política, para atingir determinados objetivos.

Os líderes sandinistas e seus colegas do clero entenderam perfeita mente o que aquela linha de “radicalização política” representava na mente do papa. A

decisão da Junta, por isso, foi abafar a carta, não permitindo que se desse publicidade a ela.

Uma vez, porém, os bispos nicaraguenses conseguiram frustrar a Jun ta por meio de uma ruidosa manipulação da máquina de propaganda da própria Junta. Tão logo a carta se tornou pública, a reação da Junta foi

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uma tempestade de críticas bem organizadas à carta papal no rádio do governo e em publicações dos jesuítas na Nicarágua e nos Estados Unidos: “Roma”

estava interferindo indevidamente nos assuntos políticos do Estado soberano da Nicarágua. Esse papa estava indo contra os ensi namentos do Concílio Vaticano II, que “rebatizou” a Igreja Católica Romana de “o Povo de Deus”.

Esse papa estava indo contra as declarações dos bispos americanos em Puebla, México, em 1979, onde foi usado exa tamente o título iglesia popular. Esse papa havia alinhado a política do Vaticano com a política do governo Reagan, que fomentava os terroris tas contras em solo nicaraguense. Esse mesmo papa proibia seus sacerdotes de fazerem política e, no entanto, fazia política desavergonhadamente.

As piores e mais ameaçadoras implicações foram publicamente tira das da carta do papa pela Junta; e, lado a lado com a Junta, os superiores jesuítas da Nicarágua tornaram publicamente claro que eles se dissociavam inteiramente do espírito e das declarações contidas na carta de João Paulo.

Sob pressão direta do pontífice, para o qual a rejeição clerical de sua carta não era aceitável, o superior-geral interino, Paolo Dezza, escreveu ao padre jesuíta Fernando Cardenal ordenando-lhe, em nome de seu voto de obediência, que se exonerasse de seu cargo no governo.

Uma medida do ponto até o qual a obediência na Sociedade havia se deteriorado foi o fato de a resposta de Cardenal ser um pedido formal ao superior-geral Dezza no sentido de que expusesse por escrito suas razões para uma ordem daquelas, a fim de que Cardenal pudesse pensar nelas. Uma medida do ponto até o qual a estrutura e a autoridade da Sociedade tinham se deteriorado foi o fato não só de a resposta do superior - geral, datada de 12 de janeiro de 1983, ter sido escrita, mas de ser essa resposta um espelho de fraqueza e vacilação. O tom de Dezza naquela carta foi o de um homem pedindo um favor a um colega teimoso e do mesmo nível. O trabalho de Cardenal com os sandinistas não podia ser censurado, escreveu Dezza, e não havia motivos para pedir a Cardenal que pedisse demissão, a não ser pelo fato de que esse papa estava sempre insistindo para que ele e outros sacerdotes se afastassem do governo e da política. A mensagem, em suma, era clara: não fosse esse papa, nós o deixaríamos em paz, padre Fernando.

Se Dezza havia presumido que Fernando Cardenal era homem de res peitar as exigências de sua preciosa romanità e de encaixar suas ações, ainda que não a substância dessas ações, em algum formato que Dezza pudesse defender em Roma, o velho ficou rápida e rudemente desiludi do. Cardenal comentou publicamente, e com lúcida clareza, a carta de “explicação” de Dezza. “Não

havia razão alguma” (para lhe pedir que saísse do governo), resumiu Cardenal.

“Era apenas uma ordem do papa.” Cardenal não obedeceu. E tampouco seus superiores jesuítas, na Ni -

carágua ou em Roma, insistiram. Apesar de toda a atenção que continuava a dar ao problema dos je suítas,

João Paulo não depositou toda a sua confiança neles, ou em qual

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quer outra estrutura formal dentro da Igreja. Antes de ter sido atingido pelos tiros, antes de Wyszynski ter morrido e antes de o Solidariedade ter fracassado, o papa havia viajado a vinte países. Não apenas na Polônia, agora, onde ele havia lidado com marxistas vindos do berço mesmo do marxismo, mas também nos locais mais diversos e até hostis, ele havia falado por sobre as cabeças de autoridades do Estado e da Igreja; falara diretamente ao povo. E fora ouvido. Não apenas isso; ele mudara as coisas. Apesar do respeito frio e formal do governo mexicano, ele dera uma popularidade à religião em público que o governo não queria ver. Apesar dos maçons na França e dos marxistas em Benin, ele conseguira criar respeito pelo papado. Estava convencido de que poderia fazer as mesmas coisas na Nicarágua, apesar de Daniel Ortega e sua Junta, e apesar do renitente Fernando Cardenal e seus colegas de sacerdócio que participavam do governo.

Enquanto os esforços das autoridades da Igreja para retirar do go verno os sacerdotes políticos da Nicarágua se arrastavam infrutíferos pe lo ano de 1982, o gabinete papal de João Paulo começou os preparativos detalhados para a quarta viagem do pontífice à América Latina em menos de quatro anos. Seria uma estafante excursão de oito dias pela América Central. O santo padre teria seu centro de operações na Nunciatura Apostólica da Costa Rica, mas iria visitar as seis outras nações da área — Nicarágua, Panamá, El Salvador, Guatemala e Belize — e a ditadura insular do Haiti.

A Nicarágua, no entanto, era o alvo principal do papa, com a sua incipiente, profundamente política e herege “Igreja Popular”, seu cl ero ativista, seus jesuítas recalcitrantes, e sua radical Junta marxista puxan do cordões que, na realidade, tinham sido simplesmente esticados para chegarem às suas mãos.

Os preparativos — ou negociações neste caso, talvez, como acontece entre duas nações hostis — para a visita papal à Nicarágua foram realizados entre o representante pessoal do pontífice em Manágua, monsenhor Andrea Cordero Lanza de Montezemolo, e o chefe da Junta da Nicarágua, Daniel Ortega y Saavedra. Desde o início, essas negociações foram difíceis. João Paulo tinha várias condições que queria ver atendidas an tes de concordar com uma data para sua visita a Manágua. E Ortega e a Junta foram quase intratáveis em sua oposição a essas condições.

Algumas dessas condições diziam respeito à missa campal que seria celebrada pelo papa na Nicarágua, como aconteceria em cada uma das paradas papais. Tratava-se de uma prática católica imemorial e, naquele caso, uma condição papal específica, de que um crucifixo fosse colocado sobre o altar para a missa. Além disso, o pano de fundo para o altar não poderia ser um mural revolucionário — isto é, um mural que retratasse a violência. A ausência de um crucifixo nas missas e a sua substituição por murais revolucionários daquele tipo tinha se tornado padrão na nova “Igreja Popular”.

Uma condição mais significativa, do ponto de vista da Junta, dizia

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respeito aos padres e outros religiosos que trabalhavam para o governo sandinista. No governo da Nicarágua àquela época havia cerca de trezentos sacerdotes, inclusive literalmente dezenas de jesuítas, e 750 homens e mulheres religiosos — 250 deles “missionários” vindos da Espanha e dos

Estados Unidos. Pelo menos vinte atuavam como assessores da Junta, e duzentos mais funcionavam como organizadores da Junta nos cam pos de saúde, comunicações, e governos municipais por toda a Nicarágua, que tem o tamanho do estado de Ohio, com seus 2,2 milhões de habitantes. João Paulo, no entanto, assestou sua mira para os cinco sacerdotes inclusive os

dois jesuítas, Fernando Cardenal e Alvaro Arguello — que ocupavam cargos de ministro no governo nicaraguense. “Eles têm que pedir demissão [e voltar à

atividade sacerdotal adequada], ou então eu não irei”, disse o papa a Ortega por intermédio de Montezemolo.

No final, a Junta tornou difícil a escolha para João Paulo. Fernando Cardenal não via finalidade alguma, e apenas prejuízo, para a “revolução

cristã” da Nicarágua, numa visita papal. “Nós não somos poloneses”, disse

Cardenal a certa altura dos preparativos. “Esse papa polonês quer t ransformar a nossa adorada Nicarágua numa outra Polônia.”

O desafio do pontífice lhe foi devolvido em termos inversos: ou ele declinava da sua pretendida visita à Nicarágua — o que era a nítida pre-ferência da Junta — ou abandonava o que a Junta caracterizava como suas exigências “ditatoriais”.

Embora no final tivesse que se conformar com apenas uma de suas condições — o pano de fundo para a sua missa não seria um mural revo -lucionário — João Paulo decidiu ir. Os preparativos foram concluídos. Sua viagem à América Central iria durar de 2 a 9 de março de 1983. Ele passaria o dia 4 de março na Nicarágua.

Para infelicidade de João Paulo, muito antes de sua chegada à Nicarágua, suas intenções e seus discursos planejados e escritos foram, todos, revelados em segredo aos governantes sandinistas por aqueles que estavam na burocracia de vários níveis em Roma — inclusive alguns elementos do próprio Secretariado de Estado do papa — que eram contra esse papa polonês, ou que não eram contra a revolução marxista-leninista que se processava naquele país-chave do volátil istmo centro-americano.

Em consequência desse completo e continuado serviço de informa ções, os sandinistas puderam fazer planos, com meticuloso detalhe, para a estada papal de um dia inteiro. Apesar de toda a fanfarronada na confrontação tom o representante pessoal do papa, eles consideravam João Paulo e o poder do papado que ele personificava uma ameaça imediata e até mesmo mortal para tudo o que haviam construído com tanto esfor ço ao longo de doze anos duros e trabalhosos. Mais do que nunca, o sonho marxista deles se apoiava sobre a plataforma das comunidades de base que resultaram da “Igreja Popular”. Era

precisamente o objetivo da viagem de João Paulo à Nicarágua atacar a “Igreja

Popular” e tirar aquela plataforma das comunidades de base de debaixo dos pés deles, ou pelo menos deixá-la em condições de um enfraquecimento irreparável.

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Enquanto a Junta conhecia tanto as intenções de João Paulo como o texto de seus discursos escritos, duvida-se que João Paulo percebesse quais eram as intenções plenas da Junta, pois o seu serviço de informa ções sobre os preparativos dela tinha sido sabotado. Haveria um teatro de profanação organizada e deliberada tanto da pessoa papal de João Pau lo quanto do sacrossanto Sacrifício da Missa. Haveria um desrespeito e uma oposição institucionalizados não igualados durante muito e muito tempo, mesmo em países dominados por blocos bastante grandes de populações anticatólicas ou não indulgentes, ou em países oficialmente mar xistas. E tudo seria orquestrado até o último detalhe — até o último fio estendido até o mais distante microfone — para a televisão, o rádio e a imprensa internacional que eram parte integrante de toda viagem papal.

Não pode haver nenhuma dúvida séria de que Fernando Cardenal e os outros padres ativistas de qualquer graduação estavam implicados naqueles planos meticulosos. Que eles preferiram não criar uma indesejada imagem pública para si mesmos tornou-se óbvio pela ausência deles das profanações preparadas para começarem no momento da chegada de João Paulo em solo nicaraguense.

A partir do momento em que o DC-10 da Alitalia que levava o pontífice planou em sua aproximação do Aeroporto César Augusto Sandino, de Manágua, naquela manhã de 4 de março, as câmeras que brilhavam ao sol lá embaixo começaram o seu zumbido. Acompanharam o toque em terra e pairaram seu foco sobre o avião até que ele parou perto dos digni tários do regime sandinista e do grupo de espectadores cuidadosamente selecionados — a claque sandinista — que o aguardavam. As lentes aproximaram o foco da porta da aeronave, então, até que por fim ela se abriu e o papa João Paulo apareceu nela, sua túnica branca brilhando quando ele surgiu da escuridão do interior.

O papa desceu para a pista revestida de asfalto e se ajoelhou para beijar o chão, naquele gesto que se tornara tão conhecido de centenas de milhões de pessoas pelo mundo inteiro. Daquele momento em diante, tu do estava nas mãos da Junta.

Daniel Ortega, como líder e porta-voz do governo sandinista, deu as boas-vindas a Sua Santidade com um desaforado discurso contra os Estados Unidos, que durou 25 minutos, vibrando de satisfação porque a chegada do pontífice, coberta ali, como em toda parte, pela imprensa mundial, dava a Ortega sua primeira plataforma realmente internacional. João Paulo escutou, o queixo apoiado em uma das mãos, a cabeça curvada, os olhos no chão. Ele tinha ouvido aquilo tudo antes, de comissários comunistas poloneses e marxistas de aldeias polonesas.

Chegou finalmente o momento de João Paulo falar em resposta ao discurso de “boas-vindas” belicoso e deliberadamente descortês de Orte ga. As observações que o pontífice preparara em louvor do arcebispo de Manágua, Obando y Bravo, foram saudadas com apupos de zombaria, sincronizad os com perfeição, por parte da claque sandinista organizada

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e bem dirigida. Suas palavras denunciando a “Igreja Popular” como “um grave

desvio da vontade e da salvação de Jesus Cristo” foram pratica mente abafadas, do princípio ao fim, por gritos e miados altos e contínuos.

Os líderes sandinistas tinham motivos para uma profunda satisfação: ali, pelo menos, aquele papa não conseguiria falar ao povo passando por cima deles; não teria voz na decisão do destino da Nicarágua.

João Paulo encerrou o discurso de chegada que preparara, com a voz indicando sofrimento e raiva. Passou pela linha de recepção, trocan do apertos de mão maquinais com membros da Junta e com comandan tes do Diretório Nacional. Certos membros do gabinete brilharam pela ausência. O ministro d as Relações Exteriores, o padre Maryknoll Miguel D’Escoto, achara mais

conveniente estar em Nova Déli. O embaixador junto à OEA, padre Edgar Parrales, e o Delegado de Estado, padre jesuí ta Alvaro Arguello, estavam cada um em sua casa vendo os insultos pela televisão. O padre jesuíta Fernando Cardenal também estava ausente. Seu irmão, Ernesto Cardenal, era o único sacerdote a nível de governo pres ente , uma figura de óculos com trajes — camisa branca de algodão simples, folgadas calças azuis e boina preta — que estavam constrangedoramente em desacordo com os seus brilhantes sapatos pretos.

De todos aqueles reunidos para receberem o santo padre naquele país predominantemente católico, Ernesto Cardenal foi o único que tocou o chão com um dos joelhos quando o papa se deteve ostensivamente diante dele. Cardenal tirou a boina e estendeu a mão para segurar a do papa e beijar -lhe o anel. Mas João Paulo não estendeu sua mão. Em vez disso, sacudiu um dedo admoestador para Ernesto.

“Você tem que regularizar sua situação!”, disse o pontífice em voz clara,

e depois repetiu as palavras para dar-lhes ênfase. “Você tem que regularizar

sua situação!” A única resposta de Cardenal foi manter firme o olhar, sorrindo pa ra Sua

Santidade. João Paulo percorreu o restante da fila de recepção e partiu para a

primeira parte do itinerário que planejara na Nicarágua, uma visita à ci dade de León, a cerca de 64 quilômetros a noroeste de Manágua.

A recepção no Aeroporto Sandino foi apenas uma fraca e esganiçada abertura da sinfonia de humilhação que tinha sido orquestrada para João Paulo, a ser executada perante o mundo no clímax de sua visita papal. A missa campal, que era o ponto principal da visita de João Paulo, seria celebrada ao anoitecer daquele dia, na espaçosa praça 19 de Julho, b atizada em homenagem ao dia de julho em que a ditadura de Somoza foi esmagada e a Junta marxista dos sandinistas havia assumido o poder.

O sol poente banhava com seus raios vermelho-dourados uma cena ines-quecível, com João Paulo entrando na praça vestindo seus trajes pontificais, a mitra papal na cabeça, o báculo papal ereto na mão.

A multidão que se apertava na praça, 600.000 pessoas pelas estima tivas oficiais, estava toda dividida e comprimida com perfeição em blo cos

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preparados com antecedência. Um dos lados da praça apinhada exibia um enorme pano de fundo formado por cartazes revolucionários re tratando os heróis da revolução sandinista. De frente para os cartazes, do outro lado da praça, fora construída uma comprida plataforma de ma deira com um gradil. Um altar — uma mesa simples, comprida, coberta com tecido de linho para a ocasião — tinha sido colocado sobre a plataforma. De ambos os lados da plataforma, de frente para a multidão, ficavam dois palanques oficiais, onde a Junta, formada por três elementos, e o Diretório Nacional, formado por nove, esperavam, todos os doze vestindo uniformes de campanha verde-oliva do exército.

Nos lugares mais próximos da plataforma improvisada e dos palanques que a flanqueavam, a Junta havia instalado blocos esp eciais de simpatizantes, aos quais foram fornecidos megafones e um microfone. Por toda parte — no alto de edifícios que cercavam a praça, no alto dos car tazes, nas mãos das multidões, em torno da plataforma e do próprio al tar — havia bandeiras sandinistas com as cores vermelho e preto. Aqui e ali, surgia uma bandeira do Vaticano, em amarelo e branco, e pouquís simas eram as bandeiras nicaraguenses em azul e branco.

Em tom de provocação, Ortega e seus pares ordenaram que se pen durasse, como pano de fundo do altar, um mural retratando em enormes proporções os rostos de Carlos Fonseca Amador, herói -mártir da revolução sandinista, e Augusto César Sandino, o homem em cujo nome os san dinistas tinham feito a sua revolução.

Não havia crucifixo sobre o altar. Aquela imemorial prática católica tinha sido proibida pelos jovens governantes da Nicarágua. Em seu lu gar, fora estendido outro comprido estandarte, com letras do tamanho de um homem que diziam: “ João Paulo está aqui. Graças a Deus e à Revolução/”

Como sempre acontece quando se reúne tal massa de gente, nunca houve um momento de silêncio. As massas, a menos que sejam silenciadas por alguma coisa extraordinária — um orador fascinante, um espetáculo deslumbrante — emitem uma variedade de sons, acentuados por explosões de gritos de aplauso coordenados com perfeição e por ocasionais momentos de canto. João Paulo começou sua missa com tranquilidade; ele estava acostumado com o comportamento das multidões.

Quando chegou o momento de fazer a homilia que havia preparado — um vigoroso ataque à Igreja Popular — ele ficou surpreso pelo fato de que até mesmo o microfone que tinha sido instalado para ele não con seguia sobrepujar a bem ensaiada e belamente coordenada cacofonia que agora vinha da multidão, uma litania ensurdecedora de ritmados gritos de guerra revolucionários.

Na verdade, as claques começaram antes mesmo da homilia. Quan do João Paulo se esforçou para fazer com que sua voz ressoasse acima dos seus concorrentes, a litania das multidões se tornou tão estri dente quanto um trovão e tão regular quanto uma batida de coração:

— Poder para o Povo!

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— Diretório Nacional, dê suas ordens! — Fale-nos sobre os pobres! Aos poucos, mal se ouvia João Paulo. Seus simpatizantes tentavam

protestar, fazer com que fosse ouvido o s eu apoio a ele, mas estavam lo-calizados o mais distante possível da plataforma, e não contavam nem com megafones nem microfones. João Paulo podia ser visto, a mão cor tando o ar em gestos violentos, mas não se podia ouvi -lo acima do incessante ressoar dos gritos de guerra sandinistas:

— Queremos uma Igreja unida do lado dos pobres! — Não há contradições entre cristandade e revolução! O rosto de João Paulo ficou lívido de indignação quando ele perce beu o

que estava acontecendo: ele estava sendo encurralado e anulado num poço de barulho. Com raiva e em desespero, ele afinal gritou:

— Silêncio! Na bem orquestrada sinfonia das claques, a ordem do papa foi apenas um

sinal para aumentar o ritmo dos gritos de guerra. — Silêncio! — gritou João Paulo pela segunda vez. Um novo crescendo

de palavras de ordem o abafou. Uma terceira vez: — Silêncio! — a palavra acompanhada, agora, por um gesto com a mão espalmada.

Seus esforços foram sobrepujados por um coro de uma altura ini -maginável que gritava “Poder para o Povo! Cristo vive na Igreja Popu lar!”. A

multidão estava fora de seu controle. Encolerizado, João Paulo berrou um vitupério em seu microfone, o olhar

furioso lançado à Junta em seu palanque: — Poder aos miskitos! O vitupério atingiu o alvo. Os índios miskitos faziam uma oposição

terrível aos sandinistas, e a Junta vinha fazendo o máximo de esforços para liquidá-los. A reação foi instantânea. Os nove comandantes milita res do Diretório Nacional e a Junta ergueram seus punhos cerrados para estimular os berradores de palavras de ordem a esforços ainda maiores. Simultaneamente, técnicos do governo ligaram os microfones das claques que cercavam a plataforma ao sistema principal de alto-falante, através do qual João Paulo estivera tentando fazer-se ouvir. Feito isso, e para aumentar ainda mais o som que abafava o papa, eles ligaram uma chave para fazer entrar uma fita com uma gravação, feita com antecedência, de multidões cantando palavras de ordem sandinistas.

Por fim, a ruidosa cascata de gritos amplificados derrotou João Pau lo. Ele não terminou sua homilia. Mas mesmo isso não foi o bastante pa ra a Junta. As palavras de ordem continuaram por todo o Sacrifício da Missa, abafando mesmo o seu momento mais sagrado, a Consagração, com gritos de “Poder para o Povo!” e “É possível ser marxista e cristão!” e “Fale-nos sobre a injustiça do capitalismo!”

Ainda assim, a humilhação não estava completa. Quando João Pau lo e sua comitiva tomaram seus lugares no DC-10 da Alitalia no aeroporto de Manágua naquela noite e o piloto avisou à torre de controle que estava pronto para decolar, a Junta ordenou que o avião papal fosse dei xado

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esperando mais dez minutos no solo. Era o último gesto para desta car quem detinha o controle de verdade ali.

Quando, afinal, a humilhação foi tocada até à úl tima nota, a rádio governamental insistia, junto ao povo nicaraguense, que o papa devia pedir desculpas pelo seu comportamento. “A indignação e os protestos espon tâneos de nosso povo foram naturais diante da indiferença do papa”, ex plicou um noticioso. “Este papa é um papa do Ocidente, o papa do imperialismo”,

balbuciou um membro do diretório sandinista. “O papa está tentando converter

a Nicarágua em outra Polônia”, acusou o minis tro do Interior Tomás Borge. “Ele está tentando fazer com que a Igreja cometa suicídio”, acrescentou

piamente um missionário Maryknoll. Como acontecia com frequência, coube ao padre Fernando Carde nal fazer

o mais sucinto e mais claro sumário da posição da Junta e sua justificativa para a degradação do papa, do papado e da Missa católica: “O discurso do

papa”, comentou Cardenal, “foi uma declaração de guerra.”

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5. DESOBEDIÊNCIA SUMÁRIA

A

dmirados ou odiados, o fato é que durante 425 de seus 443 anos como Ordem, os jesuítas eram, aos próprios olhos e aos olhos de todo mundo, os defensores de vanguarda das atitudes da Igreja relativas ao papa e ao papado. Em épocas normais, tivesse qualquer jesuíta se envolvido ainda mais de longe do que Fernando Cardenal numa humilhação que fosse uma fração da que fora lançada sobre João Paulo II na Nicarágua, no dia 4 de março de 1983, esse jesuíta teria sido posto para fora da Sociedade e veria todos os seus membros evitando-o literalmente em poucas horas.

Mesmo em épocas menos normais, como nos quinze anos de generalato de Pedro Arrupe, teria havido, pelo menos, uma encenação de demonstrações de choque e lealdade, uma demonstração de preocupação, uma barragem de garantias de que o assunto seria investigado, aliadas a intermináveis explicações e demoras nas medidas corretivas.

A reação na Sociedade às notícias sobre a humilhação de João Paulo na Nicarágua naquela primavera de 1983, entretanto, parece ter sido sem igual, tanto entre os superiores como entre a maioria dos líderes da Ordem: João Paulo II havia metido a cabeça na jaula do leão e recebera mais ou menos o que procurava. A esperança, agora, entre muitos jesuí tas, era de que o papa tivesse aprendido a lição, abandonasse a sua men talidade de “bispo de gueto

polonês”, e entendesse como era complicado de verdade o mundo grande e

mau. O papa decidira assumir o governo da Sociedade com o ato arbitrário de depor Arrupe e O’Keefe. Muito bem. Agora ele sabia como eram as coisas. Achava-se que João Paulo iria encolher os chifres, afastar-se e lamber os ferimentos.

Essa atitude foi reforçada pela ausência de qualquer reação violenta por parte do secretário de Estado do papa, cardeal Agostino Casaroli, que se contentou com expressar certos lugares-comuns sobre a necessidade de que todos os lados se acalmassem.

Com uma reação assim tão fraca por parte do próprio gabinete papal, os jesuítas não sentiram a menor pressão para chamar às falas Cardenal e os outros jesuítas envolvidos na humilhação papal. Adotou-se

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uma atitude de “esperar para ver”. Aos olhos de muita gente, porém, João

Paulo perdera uma importante batalha. A humilhação sandinis ta preparara o caminho para que imitadores agredissem o papa no fu turo.1

Num sentido claramente definido, aquela atitude de “esperar para ver” só

foi possível devido ao próprio João Paulo. Por um exercício sem pr ecedentes de autoridade papal, ele havia destituído um padre-geral, Arrupe, e colocado dois homens escolhidos a dedo por ele à frente da Or dem dos jesuítas. Tivesse o pontífice pressionado os dois homens por ele nomeados, depois de seu retorno da Nicarágua, ambos teriam que se ter curvado diante da vontade de João Paulo, por mais que isso os desagradasse, até mesmo a ponto de iniciar uma reforma total da Sociedade. Ao receberem ordens precisas e inequívocas — “Expulsem todos os jesuítas que estão no governo nicaraguense!”,

“Chamem de volta todos os superiores centro-americanos!” “Substituam-nos por homens que saibam obedecer!” — é quase certo que Dezza e Pittau teriam feito o que lhes era ordenado. De fato, um ato específico desses, tal exercício ousado de força papal, teria sido interpretado, em termos de romanità, como um aviso: façam o que eu digo desta vez, por extrema que seja a ação, ou então haverá coisa pior — a dissolução da Ordem.

Para consternação de muitos, no entanto, embora João Paulo tiv esse dado o primeiro passo para demitir Arrupe e seu sucessor escolhido, Vincent O’Keefe, não dera o segundo, apesar do fato de que o fiasco nicaraguense lhe tinha dado mais motivos do que nunca. Em vez disso, ele deixara que as coisas ficassem nas mãos de Dezza e Pittau.

Houve resmas de especulação sobre as causas da inação do papa, mas não houve respostas certas. Será que o santo padre desistira? Será que ele fora avisado pelo cardeal Casaroli, seu secretário de Estado, de que já tinha ido longe demais? Será que vacilava em tomar novas providências devido a ameaças de blocos inteiros de jesuítas, de que deixariam em massa a Sociedade?

Casaroli tentou, realmente, conter João Paulo. Blocos inteiros de jesuítas ameaçaram, é verdade, deixar a Ordem. Ainda assim, dado o caráter de João Paulo, parece que o mais provável foi que o papa po lonês cometera apenas um erro: confiara em que Dezza e Pittau fossem fazer o que ele mandara: mudar e reformar a Ordem já. Não no dia seguinte. Não no ano vindouro. Já. Presumi ra que houvesse boa fé e bom jesuitismo por parte de Dezza. Confiava em Pittau. Os dois conheciam o seu pensamento. Ele presumira que Dezza, como dos mais velhos elementos romanos entre os jesuítas, um homem que havia servi do bem ao papado e à Ordem durante quatro décadas, iria não apenas saber o que tinha que ser feito em detalhes, mas encontrar os meios de realizar a tarefa com o mínimo de danos duradouros. Talvez fosse até mesmo lógico que o pontífice presumisse que, sob a direção experien te de Dezza, Pittau, com a sua longa experiência no campo e sua associação com Arrupe, constituísse o parceiro perfeito para tirar a Sociedade

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de Jesus de seu atoleiro de secularização, desobediência e rebeldia em relação ao papado.

Além do mais, pelo raciocínio papal a experiência na Nicarágua devia ter demonstrado a Dezza e a Pittau, muito mais do que a mera insis tência verbal do papa poderia ter demonstrado, a urgente necessidade de reforma. O próprio papa nunca havia visto a gravidade do problema com tanta nit idez quanto na Nicarágua. Mesmo em países comunistas — na Polônia e na Hungria, por exemplo — as poderosas ameaças de tropas marxistas armadas nunca haviam conseguido que o povo gritasse durante horas, como fizeram os nicaraguenses, contra a sua Igreja e o seu papa. Era evidente que, depois do singular desempenho do governo sandinista cm Manágua, não seria necessário que João Paulo insistisse mais.

O juízo do papa com relação a Dezza e Pittau revelou-se inteiramente errado.

Dezza interpretara a questão toda de maneira diferente. Se o papa não lhe deu ordens específicas, então o papa não estava sendo papal. Não estava exercendo a plenitude de seus poderes. Quando João Paulo I esta va vivo e fez um pedido específico a Dezza, relativo à redação do discur so que ele queria fazer para Arrupe e seus jesuítas em 1978, Dezza concordou; ele sabia o que o papa queria. Poucos jesuítas sabiam que a mão de Dezza havia dado forma ao discurso que João Paulo I nunca pronunciou, mas do qual João Paulo II se apropriara.

Agora, em 1982, a falta de explicitação nas ordens de João Paulo I significava, segundo a romanità, que havia algum poder solto na área, e que a mão que tomasse esse poder que não estava sendo usado poderia fugir com ele. Cabia a Dezza decidir o que fazer.

Nesse caso, na verdade, fugir com o poder não foi bem o que Dezza fez; com habilidade, ele o escondeu — manteve-o na reserva, como poderíamos dizer — para o momento em que a ordem jesuítica tivesse permis são para reassumir sua própria governança. Era a essa finalidade — o retorno da Sociedade à sua “forma” adequada — que Dezza dedicava seus esforços.

É certo que João Paulo tinha muito mais problemas para resolver do que o dos jesuítas. Havia a dor contínua da Polônia. Havia lutas in ternas só do Vaticano — sobre o código da Nova Lei da Igreja Universal; sobre a liturgia da Missa; sobre o modo de agir dos missionários nas cul turas asiáticas e africanas; sobre a continuada deterioração da Igreja nos Estados Unidos. Por mais cheia que estivesse a agenda do papa, o desafio direto à estrutura e à autoridade da Igreja lançado à face de seu papado na Nicarágua teria, com toda certeza, colocado a questão dos jesuítas no topo de sua lista de prioridades, não fosse a sua confiança em Dezza.

Quando o jogo de espera de Dezza ficou óbvio — o seu silêncio e sua inércia quanto à profanação nicaraguense e seus preparativos, como se nada tivesse acontecido, para a congregação geral, foram indícios evi dentes — membros da administração papal estavam aconselhando João Paulo II a não intervir num disciplinamento e castigo diretos da Socieda de.

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Era como uma repetição do aviso que Religiosi havia dado ao papa na reunião secreta do Conselho de Estado de dois anos antes. Só que agora o aviso era um coro possante e o problema havia piorado muito: o que afligia a Sociedade de Jesus afligia grandes segmentos da Igreja do papa. Agora, todas as principais ordens religiosas estavam afetadas, junto com um número assustadoramente grande de bispos, teólogos e sacerdotes, para não falar de le igos ativistas católicos e freiras.

João Paulo entendeu muito bem os avisos. Com precisão maior do que a de qualquer homem vivo, ele compreendia o controle precário da tradicional Igreja hierárquica sobre a sua gente. Sabia que o secularismo que animava os jesuítas estava tão disseminado quanto o antipapalismo; que um se alimentava do outro; e que ambos eram amplamente estimulados por homens tão diferentes quanto o sofisticado teólogo dominicano da Holanda, Edward Schillebeeckx, o irritante arcebispo do Brasil, Helder Câmara, o sutilmente maldoso Karl Rahner, S.J., o abelhudo bispo Casey, de Galway, na Irlanda, e o íntegro mas sempre dissidente Richard McBrien, dos Estados Unidos.

Não foi surpresa, para João Paulo, quando Schillebeeckx falou num antipapal comício-monstro holandês, ou que tenha proclamado, lá — por infalível que pudesse parecer —, que a estrutura hierárquica da Igreja não é a vontade de Deus e que a infalibilidade do papa “é, do ponto de vista católico

romano, uma absoluta heresia”. Uma declaração do monsenhor George Higgins, dos Estados Uni dos, só

pareceu mais inócua porque seu estilo é por natureza brando e inofensivo: “A

participação ativa, inteligente e verdadeiramente esclarecida na liturgia é o meio primordial para desenvolver uma consciência social e uma percepção especial entre os católicos — mantidos constantes os demais elementos, uma congregação mergulhada na vida litúrgica da Igreja será mais cônscia do ponto de vista social, e estará mais bem preparada para fazer julgamentos morais bem fundados na vida econômica e política do que uma outra que não esteja nessas condições.”

Segundo o ponto de vista do papa e em toda a história da Igreja, desde a época dos próprios apóstolos, liturgia sempre significou algo to talmente diferente; tem significado a participação do indivíduo nos sacramentos da Igreja. Os Sacramentos não são despertadores da consciência social ou organizadores de grupos, e não preparam o indivíduo para fa zer julgamentos bem fundados na vida política.

A declaração de Higgins foi importante precisamente porque refletia a disseminação, no próprio clero, de um conceito de “liturgia” divorcia da dos Sacramentos e orientada, em vez disso, para a guerra social, políti ca e econômica do dia entre nações. Refletia, na verdade , a secularização de funções divinas exatamente do tipo proporcionado pelo modelo sandi nista; refletia a troca sandinista-marxista da fé e do julgamento pessoais pelo catolicismo “comunitário”; e embora o estilo não fosse brilhante, a declaração

foi um razoável resumo da mais recente forma de heresia, cha mada de modernismo, condenada pelos papas desde o século passado.

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A secularização do divino já tinha ido longe demais, chegando até a descarada declaração por um entendido numa publicação como o Journal of

the Liturgical Conference, redefinindo o próprio Sacramento Cen tral: “Nem

sempre os cristãos têm reconhecido o aspecto político da Eucaristia. No entanto, a Eucaristia é um ato político

Foi mais uma escolha difícil para João Paulo, mas até mesmo al guns de seus assessores pessoais e da maior confiança lhe diziam, no ve rão de 1983, que a podridão havia se espalhado tão além dos jesuítas, que destacar aquela Ordem pela sua infidelidade ao papado e às prerrogativas papais e pela secularização do propósito da religião, iria provocar uma tempestade difícil de enfrentar. Poderia endurecer a oposição a um extremo do qual não haveria retorno, não haveria alívio.

No entender daqueles assessores, o papa dispunha de apenas duas opções se quisesse golpear com o machado diretamente na raiz dos pro-blemas da Igreja. Podia convocar outro concílio ecumênico católico romano no Vaticano — o Concílio Vaticano III — ou tinha que chamar seus bispos do mundo inteiro para o seu lado num sínodo, e com eles emitir um corretiv o completo para o abuso e mau uso das declarações muito alardeadas mas criticamente fracas do Concílio Vaticano II que se havia reunido em Roma de 1962 a 1965. Era, afinal, lembravam repetidas vezes ao pontífice seus assessores, “o espírito do Vaticano II” que continuadamente era invocado para justificar toda e qualquer corrupção da fé e da moral tradicional católica romana, não apenas na Nicarágua, mas nos Es tados Unidos, na Europa e praticamente em toda parte.

Por mais convincentes que fossem as razões de João Paulo para não agir na questão da reforma jesuítica, na opinião de muitos sua fatídica decisão de permitir que a Sociedade reassumisse sua própria governança era também fatal. Do ponto de vista de tais observadores, parecia que a verdade era que o papa havia desistido daquela luta específica, e a Igre ja toda iria pagar as despesas. Num prazo muito curto, ficou provado que tais opiniões eram proféticas.

Quando, por fim, a XXXIII Congregação Geral da Sociedade de Je sus, composta de 220 delegados, se reuniu em Roma em setembro de 1983, seu primeiro assunto em pauta era uma charada. Ela “aceitava” o “pe dido de demissão” do padre Pedro Arrupe. Nos anais jesuíticos não fica ria registrado reconhecimento oficial algum do extraordinário exercício de autori dade papal pelo qual Arrupe tinha sido demitido de seu posto. Assim como uma congregação anterior o havia escolhido em 1965, agora essa congregação alegava estar agindo “com soberania” ao “dispensá -lo” do cargo. Não era

apenas um gesto para consolo próprio; era um tapa jurídico no pulso papal. O segundo item da agenda da congregação era a escolha do sucessor de

Arrupe. Em uma só eleição no dia 13 de setembro, os delegados elege ram Piet-Hans Kolvenbach, um holandês, douto e especialista em ritos católicos do Oriente Próximo, residente há muito tempo em Beirute, Lí bano, e desde 1981 reitor do Pontifício Instituto Oriental, em Roma, di rigido

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por jesuítas. Alto, corpulento, a cabeça coberta de cabelos grisa lhos, rosto sério, óculos semelhantes aos usados por Woody Allen sobre olhos grandes que raramente sorriam, ainda que sua boca o fizesse, uma grande barba branca coroada por um bigode preto, o caráter de Kolvenbach já havia sido notado. Ele era furbo, comentavam os romanos, usando uma palavra que significa va astuto e sonso. Era homem de muito poucas palavras — “ultimamente a Igreja

se tem afogado em palavras”, dizem ter sido o comentário de Kolvenbach

sobre a enxurrada de discursos, comunicações e sermões que começaram a jorrar do papado tão logo João Paulo fora eleito em 1978. Quando Kolvenbach falava, dizia-se, atacava logo a jugular, para usar uma frase popular.

A apressada eleição de Kolvenbach foi, por si só, um fato notável. Os jesuítas tinham tido bastante tempo, a partir da exoneração de Arru pe em outubro de 1981 — o ano em que Kolvenbach foi chamado para Roma — para preparar a candidatura de um homem adequado para o dia em que tivessem permissão para eleger um geral, mas foi um caso sem precedentes na história da Sociedade uma Congregação eleger um novo geral em apenas um escrutínio. Normalmente, são necessários vários pa ra separar os verdadeiros candidatos daqueles que não têm nenhuma chance realista de sucesso. Ninguém que observasse a situação nos anos e meses voláteis que levaram àquele dia de setembro tinha quaisquer dúvidas de que a candidatura de Kolvenbach e sua eleição eram o resultado de um longo e bem planejado processo ao qual os assistentes-gerais tinham dedicado o melhor de seus esforços.

Tampouco tais observadores tinham qualquer dú vida de que o generalato de Kolvenbach seria uma continuação do “espírito de Arrupe” ao leme da

Ordem. Os líderes jesuítas tinham feito uma escolha “defensi va”. Não tinham

intenção alguma de alterar o seu curso de neomodernismo. Não tinham intenção alguma de se colocarem na embaraçosa posição da Ordem Religiosa dos Dominicanos que, mais ou menos na época da eleição jesuítica de seu padre-geral, estava reunida em Roma a fim de eleger o seu mestre-geral, que é como os dominicanos chamam o seu superior máximo. Um dominicano irlandês, padre Albert Nolan, recebeu imensa maioria de votos. Nolan, porém, um ardente inimigo do apartheid na África do Sul e já conhecido ativista, não tinha intenções de colocar a cabeça “na boca do leão”, como observou um

colega dominicano. Ele sabia o que acontecera com o jesuíta Arrupe nas mãos de João Paulo II. A assembleia de líderes dominicanos foi obrigada a escolher outro mestre-geral, outro irlandês, Damian Byrne. Ao se fixarem em Kolvenbach, os jesuítas estavam certos de que não corriam o risco dele se recusar ou dele não aderir ao arrupismo exato.

Kolvenbach não deixou os delegados jesuítas que o elegeram em ne -nhuma dúvida incômoda sobre o seu arrupismo. As primeiras palavras que ele lhes dirigiu como 28º geral da Sociedade de Jesus deve ter sido néctar para suas mentes.

Desde o começo, Kolvenbach foi tranquilizador de uma maneira um

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tanto pesada. “Assumo o cargo [de geral]”, disse ele aos delegados, “com

grande confiança na Sociedade.” O restante de sua fala de aproximada mente trinta linhas foi um desenvolvimento daquele tema. O Senhor não exigia dos jesuítas que mergulhassem em pensamentos fúnebres e sombrios sobre as fraquezas e deficiências da Sociedade. Nenhum jesuíta de veria achar que outras pessoas mandassem nele. Ninguém. Nem as críticas feitas pelo papa Paulo VI nem as feitas pelo papa João Paulo II muda ram os jesuítas ou inverteram a muito bem-vinda mudança que os jesuí tas tinham sofrido desde o final da década de 1960 — ele se referia, disse ele, à sua maior sensibilidade para com as necessidades de justiça e sua maior preocupação com a condição dos pobres e dos oprimidos.

A demissão do padre Arrupe pelo papa não tinha sido uma jogada inteligente, declarou Kolvenbach. Porque, em grande parte, hoje a vida da Sociedade é dirigida pela espiritualidade e pelo zelo apostólico que o padre Arrupe desenvolveu para ela. Toda a inclinação espiritual e apos tólica que o Senhor havia dado aos jesuítas na Sociedade tinha vindo através do padre Arrupe. A Sociedade não iria abandonar a tradição de Arrupe.

Ao contrário, o âmago e a essência da atividade jesuítica tinham si do e ainda seriam dirigidos contra a injustiça no mundo. Esta era e é a missão dos jesuítas hoje.

Esse plano de ação da Sociedade não tem sido bem aceito por algumas pessoas, disse ele. Há, até, alguns jesuítas que veem essa nova mis são da Sociedade de Jesus como um desvio definitivo e perigoso do espírito inaciano. Mas muitos outros jesuítas não concordam.

Essa nova missão também não foi bem aceita pelos papas. Mas ele, Kolvenbach, havia vivido no meio daquela injustiça antes de ir para Ro ma em 1981: ele havia morado em Beirute. “Io ero là”, disse ele, mordaz. (Eu estava lá.) E daquela experiência direta da grave injustiça que os jesuítas estão combatendo, ele saíra livre de quaisquer ilusões. “Não estou preso nem aos

romanos [A Santa Sé], aos Estados Unidos, aos franceses, nem aos latino-americanos”, declarou ele fleumático. “Por isso, agora temos que ver o que

podemos fazer!” Temos, continuou ele, que responder aos gritos de homens que sofrem

injustiça com uma linguagem e com providências que estejam de acor do com a linguagem deles e com suas condições de vida. Assim, podemos “servir

melhor a Deus, à Igreja, ao vigário de Cristo, o papa João Paulo II” — as palavras saíam em staccato — “mas só iremos servir à Igreja e ao papa se, ao

servi-los, pudermos estar a serviço dos homens”. Porque, continuou ele, nossa responsabilidade é para com a Divina

Majestade. Ele queria que seus jesuítas tivessem “uma dimensã o de liberdade interior” que colocasse aquela Divina Majestade em primeiro lu gar, e tudo o mais sobre a Terra — ele quase acrescentou “inclusive a Igreja e o papado” — em segundo lugar. A Divina Majestade era o único “modelo” de que

dispunham para o seu comportamento. Os Evangelhos lhes diziam que fossem vigilantes, que não se cansas -

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sem, como as Virgens Insensatas que se cansaram de esperar pela chegada do Noivo. Alguns jesuítas, admitiu Kolvenbach, pareciam estar ficando cansados de serem vigilantes. Mas todos tinham que ser vigilantes e não se deixarem abater pelo temor. Cristo disse, lembrou-lhes ele, que aquele que quisesse salvar sua vida tinha que estar pronto para perdê-la. j O oposto também era verdadeiro: aquele que se concentrasse apenas em salvar a própria vida estaria destinado a perdê-la. Talvez, na verdade, a congregação geral e a Sociedade viessem a ser obrigadas a perder a vida, se os jesuítas não estivessem dispostos a “irem para o

paredão” pelos decretos e pelos princípios já estabelecidos, e se aquilo que fizerem não for do agrado da Divina Majestade.

A oportunidade atual de combater a injustiça não podia ser perdida. Os jesuítas tinham que tornar a “descobrir” a Sociedade. Desde a desti tuição do padre Arrupe, eles se haviam comportado com um pouco mais de cuidado. Mas nenhum deles estava disposto a alterar suas convicções sobre a moderna missão da Sociedade. Abandonar aquilo, abandonar a luta contra a injustiça, seria abandonar a humanidade de Cristo.

É claro que haveria objeções e críticas de vários pontos, de que os jesuítas estavam se dedicando à política. Na verdade, disse Kolvenbach, o número de jesuítas engajados diretamente em atividades políticas era muito pequeno. Mas grande era o número de jesuítas que indireta mas poderosamente influenciavam a política através de seu envolvimento com sindicatos trabalhistas, organizações de camponeses, movimentos e causas sociais. Alguns jesuítas se tornaram socialistas. Outros, marxistas. Tudo isso provocava “gemidos de

reclamação” dos papas. Mas a Sociedade ainda estava disposta a seguir em frente dessa maneira, com a sua missão de justiça e sua opção preferencial pelos pobres, sem dar muita atenção “aos gemidos de reclamação dos papas”.

Seu papel, como geral, era garantir que os jesuítas não se distraíssem com os gemidos papais e não deixassem de cumprir sua missão entre os homens.

Quando Kolvenbach terminou, não admira que nos dias subsequentes da CG 33 os delegados voltassem a reafirmar os objetivos e os valores do arrupismo. É claro que, pelos decretos daquela congregação e pela transcrição do discurso do padre-geral Kolvenbach aos delegados, João Paulo II pôde ver nitidamente que nada havia mudado na Sociedade. Seus entendimentos subsequentes com o novo geral confirmaram isso.

Durante o restante de 1983 e até a primavera de 1984, o novo pa dre-geral recebeu insistentes pedidos de autoridades da Igreja em Maná gua e em Roma, no sentido de que tirasse Fernando Cardenal de seu cargo político no gabinete do governo sandinista ou da ordem jesuítica. E durante todo aquele tempo, o novo geral continuou o mesmo movimento circular de evasivas delicadas, tolerância de recusas indiretas do próprio Cardenal e de seus superiores jesuítas locais em Manágua, e aquiescência tácita dos protestos e objeções públicas à interferência de Roma, que os sandinistas divulgavam pelos meios de comunicação internacionais.

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A situação entre os jesuítas, de um lado, e os bispos nicaraguenses e Roma de outro, chegou a um novo ponto de ebulição na primavera de 1984. O s bispos nicaraguenses expediram uma carta pastoral da Páscoa, na qual repetiam as palavras do papa João Paulo desancando la iglesia popular e as comunidades de base. A carta atacava com violência todos os clérigos e freiras que negligenciavam suas vocações espirituais em favor de construir “a Igreja

Popular” como parte da infra-estrutura sandinista, e exigia um retorno à normalidade eclesiástica. Em termos secos, os bispos acusavam “um pequeno

setor da Igreja” de ter traído a estru tura apostólica da Igreja de Cristo “a fim

de fomentar o marxismo-leninismo”. A faca penetrou até muito perto do osso dos jesuítas, e a reação foi tão

devastadora quanto previsível. O provincial jesuíta de todos os países centro -americanos, juntamente com um grupo de jesuítas n icaraguenses e habilmente assistidos pelo padre Fernando Cardenal responderam com uma detalhada e implacavelmente mordaz análise crítica da carta pastoral dos bispos. A resposta insistia que a Igreja do Povo era a Igreja de Cristo. Rejeitava sumariamente todas as pretensões episcopais de contro lar aquela Igreja.

Além de tudo o mais que aquela carta era, tratava -se de uma dolorosa medida de imunidade de que os jesuítas pensavam gozar, àquela altu ra, em relação à autoridade de João Paulo II. Afinal, eles haviam fugido até à intrusão papal direta na própria Ordem. Tinham, agora, o seu geral escolhido por eles próprios.

Ao mesmo tempo, o governo sandinista aumentou a sua hostilização aos bispos nicaraguenses, e aos padres, freiras e leigos que apoiavam os bi spos. A hostilização se tornou tão agressiva, que provocou o arcebispo de Manágua, Obando y Bravo, a comentar de público: “O regime sandinista está, agora, mais

brutal e repressivo do que o pessoal de Somoza na sua época.” Como que para mostrar seus dentes contra qualquer movimento para

privá-la de seus colegas padres no governo, a Junta decidiu fazer uma jogada brutalmente clara contra os bispos e contra Roma. No dia 9 de julho de 1984, oficiais e funcionários do governo, armados, chegaram às residência s de dez padres que tinham sido leais aos bispos, prenderam-nos e os transportaram sem-cerimoniosamente para o aeroporto de Manágua. O padre Santiago Anitua, S.J., um dos poucos jesuítas nicaraguenses leais ao papado e à Igreja tradicional, foi apanhado da mesma maneira onde trabalhava e levado direto ao aeroporto. Todos os onze foram deportados na hora, pelo crime de prejudicar a formação de la iglesia popular.

Um destino pior aguardava outros. O padre Amado Pena foi pre so e condenado por tramar a derrubada armada da Junta. As provas apresentadas contra ele consistiam em dinamite e armas colocadas de propósito como se estivessem em seu poder quando seu carro foi deti do no acostamento de uma estrada, enquanto ele saía para atender a um chamado de caso de doença que se revelou um embuste.2 Outro padre,

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um nicaraguense de 55 anos, padre Bayardo Santa Eliz Felaya, foi amarrado a um poste em frente à sua paróquia, juntamente com qua tro de seus paroquianos; jogaram-lhe gasolina em cima e atearam fogo. Por mi lagre, ele sobreviveu para contar sua história à imprensa norte -americana em Washington, D.C., “a fim de depor contra os governantes san dinistas”.

Só para não fazer com que tais ações deixassem qualquer traço de dúvida quanto à posição dos padres no governo, o padre Edgar Parrales, ministro sandinista do Bem-estar, resolveu tornar as coisas bem claras para todos. “Não

é este o momento para retornarmos ao convento”, disse Par rales, categórico, “sermos trancados e ficarmos esperando pelo santo, pelo mendigo e pela Primeira Comunhão.”

Sem contar a repressão e a tortura, a crítica oficial jesuítica da carta pastoral dos bispos foi, no mínimo, um erro tático; colocou nas mãos de João Paulo uma razão concreta para exercer uma renovada pressão sobre o geral jesuíta Kolvenbach, para que tomasse uma decisão final sobre Fernando Cardenal como baluarte da recalcitrância jesuítica, e sobre os outros jesuítas que estavam no governo da Nicarágua.

Em julho de 1984, o geral Kolvenbach, sob essa nova pressão do pa pa João Paulo, obedientemente enviou emissário especial à Nicarágua, para investigar em primeira mão o caso da ousada crítica jesuítica à carta dos bispos. O enviado verificou que a situação era tão grave quanto João Paulo dissera a Kolvenbach. Não havia como diminuir a gravidade da atividade política e do marxismo de Fernando Cardenal e dos outros je suítas que estavam no governo.

Por isso, João Paulo II insistiu em que Fernando Cardenal e os ou tros sacerdotes que detinham postos no gabinete se exonerassem do go verno ou da Ordem até 31 de agosto.

Kolvenbach, instado por seus assessores e por amigos de Cardenal, convenceu João Paulo a não insistir naquela data, mas a esperar para de pois das eleições nicaraguenses no outono, “para não perturbar as coisas sem

motivo”. Uma vez mais, ao concordar com um pedido aparentemente razoá vel e

aparentemente cooperativo para que houvesse demora, o pontífice permitiu que a iniciativa lhe fosse arrancada das mãos. Kolvenbach pas sou um telex a Fernando Cardenal em agosto, insist indo em que ele pedisse demissão de seu cargo, dizendo que Cardenal “não pode ter permissão para cumprir uma missão

[ministerial], devido à incompatibilidade dessa missão com a sua condição de jesuíta”. Mas os resultados foram previsíveis.

A resposta de Cardenal foi uma redeclaração pública e pomposa de independência em relação à sua Igreja e ao seu superior -geral: “A realização de minha vocação jesuítica só pode ser obtida com o meu compro misso com a revolução.” Ele enviou um pedido urgente ao seu gera l, de um encontro dos dois nos Estados Unidos, onde Kolvenbach tinha uma visita programada para o outono seguinte.

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No período que decorreu até lá, surgiu uma oportunidade de Kolvenbach deixar clara sua posição na luta entre João Paulo II, de um lado, e Fernando Cardenal com seus colegas da Teologia da Libertação em toda a América Latina, do outro. A ocasião foi um documento divulga do, sob autorização de João Paulo, pelo cardeal Joseph Ratzinger, dirigente da poderosa Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), do Vaticano, o ministério romano encarregado de supervisionar a pureza do ensinamento católico. O documento da CDF criticava a Teologia da Libertação e seus praticantes por adotarem a análise marxista da história, e pela insistência na “luta de clas ses” e na revolução do

proletariado como partes integrantes da Cristandade autêntica. Nas entrelinhas do documento, apesar dos avisos anteriores de Stato, estava a rejeição implícita do marxismo-leninismo soviético.

Em resposta, o geral Kolvenbach fez uma coisa que não se parecia com qualquer das outras coisas que geral algum já fizera. Falando em caráter oficial do cargo que exercia, ele divulgou uma crítica do docu mento do Vaticano, acusando-o de ser demasiado negativo e expressando a confiança de que fosse divulgado pela CDF de Ratzinger um tratamento mais equilibrado da Teologia da Libertação. Os ensinamentos da Teologia da Libertação, escreveu Kolvenbach, devem ser “reconhecidos como possíveis e necessários”.

Ao emitir uma refutação tão direta e franca do documento oficial de Ratzinger, Kolvenbach estava não apenas testando sua força e a fra queza de João Paulo; estava redobrando o pressuposto, por parte de Fer nando Cardenal, de imunidade perante a autoridade de João Paulo II demonstrada na primaver a anterior. E estava agindo com a certeza de que contava com pelo menos dois poderosos aliados contra o cardeal Ratzinger e o papa João Paulo.

De fato, o principal aliado dos jesuítas em Roma, o cardeal -secretário de Estado Agostino Casaroli, entrou em ação mais ou menos ao mesmo tempo. Disse o secretário que em breve haveria outro e mais bem redigi do pronunciamento sobre a matéria. Enquanto isso, disse ele, lançando sua bomba ameaçadora na cara do papa João Paulo, ele, como secretá rio de estado, teria que colocar uma distância entre si e o documento de Ratzinger.

Num discurso subsequente, o secretário de Estado se deu o trabalho de elogiar o predecessor de João Paulo, o papa Paulo VI, como o paladi no papal e ideal de diálogo com países do chamado social ismo verdadeiro.

Casaroli estava com um olho em seus amigos do outro lado da Cor tina de Ferro que haviam desancado o documento de Ratzinger, classifi cando-o de “a

desgraça da nossa era”. O secretário desejava dizer àqueles amigos que ele

estava em total desacordo com a política de João Paulo para com a União Soviética e seus satélites. Como dissera ao pontífice, ele pretendia alimentar e proteger suas linhas de comunicação com Mos cou e seus satélites europeus; isso significava um tratamento carinhoso do marxismo e de seu ventre moderno, a União Soviética. Aos olhos de

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Casaroli, a maior desgraça seria ele se tornar persona non grata naqueles setores.

O segundo aliado de vulto do geral Kolvenbach, nessa questão, era o arcebispo de Lima, Peru, cardeal Juan Landázuri Ricketts. Landázuri era arcebispo de Lima há 32 anos e gozava de prestígio realmente enorme não apenas em Lima e em toda a América Latina, mas em Roma. Além disso, era amigo pessoal e admirador do homem, o padre jesuíta Gustavo Gutierrez, que havia publicado o manual básico da Teologia da Libertação na década de 1970.

No que pareceu a época mais oportuna, do ponto de vista de Kol venbach, Landázuri desceu em Roma naquele outono levando a reboque uma comitiva de seus bispos peruanos. Em demoradas entrevistas com João Paulo e o cardeal Ratzinger, ele conseguiu proteger o jesuíta Gu tierrez da condenação ou da censura.

A estratégia era oportuna: é verdade que Gutierrez não exercia cargo no gabinete do Peru; mas analisou, realmente, a “teologia” à luz da teoria marxista da luta de classes; chefiou, realmente, o grupo de estudos Las Casas que pertencia à Izquierda Unida (IU), o equivalente peruano à coalizão sandinista. Se João Paulo não podia censurar um homem co mo Gutierrez, dizia o raciocínio, sua mão estaria enfraquecida se ele ten tasse tratar de outros jesuítas aliados a marxistas em outros países.

O próprio Cardenal, enquanto isso, continuou muito ativo na refre ga. Em conversações e correspondências durante todo o outono de 1984, Fernando lutou desesperadamente para permanecer em seu cargo no governo e para fornecer ao padre-geral os motivos adequados para se recusar a ceder à exigência de João Paulo no sentido de que ele, Cardenal, se retirasse da política ou fosse “retirado” da Ordem dos Jesuítas. Até mesmo em 21 de outubro, quando teve seu encontro cara a cara com Kol venbach em Nova York, ele parecia ter esperança verdadeira de que pudesse manter o colarinho de jesuíta e a pasta de ministro. Cardenal saiu de seu encontro com seu geral dizendo aos amigos: “Achou-se uma solução.”

Mas não era assim. Apesar do franco apoio de Casaroli, Landázuri e outros mais, as mãos do padre-geral Kolvenbach estavam atadas. João Paulo II estava insistindo para que Fernando Cardenal pedisse demissão de seu ca rgo no governo ou fosse dispensado de sua Ordem, e que a mesma exigência se aplicasse a todos os outros padres políticos da Nicarágua. Todos escolheram a dispensa. Só restava expedir os documentos formais.

No dia 4 de dezembro, Fernando Cardenal recebeu um aviso oficial de seu geral comunicando-lhe que estava sendo destituído da Sociedade e encorajando-o “a pensar bem em algum outro caminho da vida no qual pudesse

servir a Deus com maior tranquilidade”. Ao mesmo tempo, e pela segunda vez em sua curta gestão, Kolvenbach

tomou uma providência sem precedentes nos anais jesuíticos. Es creveu uma carta oficial a todos os superiores provinciais jesuítas em todo

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o mundo “explicando” a saída de Cardenal e reconhecendo -lhe o “conflito de consciência”. Devido ao fato de que o insistente argumento de Cardenal tinha sido, o tempo todo, o de que só permanecendo em seu cargo no governo ele poderia ajudar os pobres, Kolvenbach expressou a esperança de que ninguém, entre os jesuítas, chegasse à conclusão, com base na decisão de Cardenal, de que para ajudar os pobres era preciso deixar de ser jesuíta.

O que Kolvenbach não incluiu em sua carta de explicação à Socieda de foi qualquer menção da vontade do santo padre. Ele não entrou em detalhes ou mesmo se referiu ao profundo conflito sobre a estrutura da Igreja e a autoridade da Igreja na Nicarágua. Tampouco invocou a ques tão da obediência jesuítica — a sua, a de Cardenal e a de toda a Sociedade — ao papa. Em vez disso, parecia que uma boa charada para disfarçar a destitui ção de Pedro Arrupe merecia outra para disfarçar a de Fernando Cardenal.

Com efeito, dizia a carta de Kolvenbach, a decisão de ir embora era do próprio Cardenal e ele a tomara porque havia uma incômoda Lei Ca nônica da Igreja, nº 285, que proíbe que os sacerdotes ocupem cargos de governo sem permissão especial da Santa Sé. A Santa Sé, o que queria dizer o santo padre, havia se recusado a fazer uma exceção no caso do padre Fernando Cardenal. Não houvera “destituição” propriamente di ta, apenas um acordo mútuo, segundo o qual Cardenal só podia seguir sua consciência fora da Sociedade de Jesus. Na verdade, a reação de Cardenal à sua saída — “Eles não estão me

afastando pelos meus pecados, mas pelo que sinto como chamado de Deus por mim” — foi confirmada pela carta de Kolvenbach.

Quando a notificação oficial da saída de Cardenal foi expedida pela sede dos jesuítas em Roma, no dia 11 de dezembro, o comentário e a rea ção oficial e oficiosa dos jesuítas seguiram, como era de se prever, o mo delo e o espírito da carta petulante e sem precedentes do geral aos superiores sobre o caso todo.

O padre Johannes Gerhartz, secretário-geral da Sociedade, concordou plenamente que a “saída” de Cardenal não era um ato penal, puni ção, não era uma demissão de verdade. Tampouco laicizava Cardenal; ele ainda era um sacerdote de prestígio, mas sujeito, agora, à autoridade do arcebispo Obando y Bravo de Manágua, em vez da dos superiores da Sociedade. Tampouco houvera, continuou Gerhartz inacreditavelmente, qualquer pressão por part e do “Vaticano” (a palavra-código aceita para indicar João Paulo) sobre o geral para que solicitasse o “afastamento” de Cardenal.

Joseph McHugh, S.J., secretário-jesuíta de comunicação e informação em Washington, D.C., inclinou-se em direção à verdade, mas a inclinação foi muito oblíqua. McHugh reconheceu que “Cardenal teve per missão para sair”,

porque havia “fortes realidades políticas em ação aqui”. Mais tarde, ele

esclareceu aquelas “realidades” com o termo “organizacionais”, uma referência

da pressão papal sobre a Sociedade. A saída de

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Cardenal, observou McHugh, “foi um fato muito triste” e havia criado “um

senso de pesar” entre seus colegas jesuítas que conservavam “um sentimento de

lealdade de família” para com Cardenal. A Rádio Vaticano, que é operada por jesuítas para a Santa Sé e se encontra

diretamente na área de influência do secretário de Estado, car deal Casaroli, foi ainda mais pródiga e pessoalmente carinhosa em seu tratamento de Cardenal. Fernando, anunciou a Rádio Vaticano, referindo-se a ele quase que afetuosamente pelo primeiro nome, havia partido “numa atmosfera de estima e

respeito mútuos por parte de todos os envolvidos; mas era evidente que, para Fernando e para muitos outros jesuítas, o caso era doloroso”.

Cartas escritas aos meios de comunicação por jesuítas da Europa e das Américas salientavam, a ponto de se mostrarem desafiadoras, que Car denal não podia ter negado o acesso à sua comunidade jesuítica em Bos ques de Altamira, em Manágua. “Isso pode significar”, admitiu uma dela s com ressentimento, “que Fernando tem que morar numa barraca no fundo do quintal.”

De qualquer maneira, os colegas jesuítas de Cardenal na América Cen tral não aceitaram o aviso de seu naufrágio. Nas palavras de Valentin Menendez, S.J., provincial jesuíta para toda a América Central, “Nosso objetivo é tentar

acompanhar o povo nicaraguense ao longo de seu difícil caminho e em suas grandes esperanças, de nossa posição de religiosos je suítas na Igreja”.

A charada foi de eficiência tão profunda, e seus frutos se disseminaram tanto e foram tão consistentes que, a menos que se prefira acusar pelo menos alguns jesuítas trabalhando longe de Roma de propagarem inverdades sobre o caso, o melhor retrato que se pode pintar é o de igno rância, entre os jesuítas em geral, a respeito de Cardenal. Isso é o melhor que se pode presumir com relação a comentários como os do jesuíta americano Tennant C. Wright, feitos em junho de 1985, de que “embora o papa e o cardeal de Manágua tenham pedido

aos sacerdotes em postos do governo que se demitissem, não insistiram na demissão”. Em tal ex tremo, porém, parece sem sentido ficar -se preocupado quanto ao que se deve questionar: a veracidade de um homem ou a sua ignorância.

Fernando Cardenal, talvez tendo pressentido o que iria aconte cer mais cedo do que se dispunha a admitir, havia redigido uma declaração muito antes de receber seu aviso oficial de desligamento no dia 4 de dezembro. “Carta a

Meus Amigos”, foi o título que deu à declaração; enviou -a no auge da reação ao seu caso.

Apesar de sua “destituição injusta”, disse Cardenal em sua carta, sua

consciência compreendia, “como se numa intuição global, que meu

compromisso para com a causa dos pobres na Nicarágua vem de Deus. (...) Eu cometeria um pecado grave perante Deus se abandonasse, nas atuais circunstâncias, minha sacerdotal opção pelos pobres”. Por outro lado, “a Santa

Sé, no caso da Nicarágua, parece estar presa a concepções na esfera política que recebeu das traumáticas experiências de conflitos

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no Leste europeu (...)”. A desrespeitosa insinuação sobre João Paulo, embora abafada pela comparação com a humilhação durante a visita do papa há quase dois anos, era clara.

Cardenal expressou profunda gratidão a todos os seus colegas e su periores jesuítas, dando a entender claramente aquilo que parece ser verdade, ou seja, que todos os que tinham importância na Sociedade de Jesus, inclusive o geral Kolvenbach, teriam desejado que ele continuasse seu tra balho em seu cargo no governo e como jesuíta. “O único que se recusou de maneira c ategórica (...) foi o papa João Paulo II.” Só esta frase está repleta de insolência não -católica. Mais adiante, Cardenal acrescentou outra observação humilhante. “Há uma

coincidência entre as políticas do presidente Reagan para com a Nicarágua e as políticas do Vaticano para com a Nicarágua.” A palavra Vaticano, nos lábios de Cardenal, é a sua expressão tardiamente discreta para indicar João Paulo II.

Ainda não contente, Cardenal foi mais fulminante numa entrevista que deu no dia 14 de dezembro de 1984. “Não somos poloneses”, disse ele. “O

Vaticano é incapaz de reconhecer qualquer coisa nova, a menos que venha da Europa. (...) Reconheço o fato de que o papa fez pressão para que eu fosse demitido da Sociedade. Continuo achando que sou um jesuíta (...) de modo que um dia serei recebido outra vez pela Sociedade.”

Embora no sentido oficial o caso de Fernando Cardenal estivesse en -cerrado, o geral Kolvenbach tornou a deixar clara sua agora famosa “op ção preferencial pelos pobres e oprimidos”. Ao fazê -lo ele esclareceu também suas próprias dúvidas e sua falta de convicção relativa aos Sa cramentos e às mais básicas crenças da Igreja Católica.

Quando recebemos a Eucaristia, disse o geral num discurso em Ca racas, Venezuela, cerca de um mês depois da destituição de Cardenal, entramos “em

solidariedade com Seus [de Cristo] irmãos e, em especial, com Seus irmãos preferidos, os pobres (...)”.

Nos ensinamentos da Igreja, nem a pobreza nem a riqueza conferem união e solidariedade com Cristo. Só a graça do próprio Cristo r ealiza isso. A graça está aberta a todos, e não exclusivamente ou, mesmo, “es pecialmente” aos

pobres. Dizer o contrário seria, como sem dúvida sabia o erudito religioso Kolvenbach, uma heresia condenada pelo menos duas vezes pela Igreja. Dizer que uma pessoa não pode receber a Eucaristia, “sem lutar contra a pobreza

através do sacrifício pessoal, vendendo os seus bens e buscando a solidariedade com as vítimas da miséria”, é mais do que simplesmente má

teologia; é teologia a serviço da teoria econômi ca e obscurecida pelo preconceito contra o capitalismo como modo de viver. É, por fim, uma doutrina condenada pela Igreja Romana já no sé culo XV.

Seja o que for que seu treinamento formal e sua erudição lhe possam ter dito, o geral Kolvenbach foi franco, naquel e discurso em Caracas, sobre uma grande dúvida e um dilema ainda sem solução em sua mente de jesuíta. “É

fácil”, reconheceu ele, “a pessoa se atirar numa luta de clas ses de um lado, ou se refugiar na espiritualidade desencarnada da pobreza. (...)

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É difícil, e estamos apenas começando a aprender como (...) man ter as duas demandas.” Gerações anteriores de jesuítas tinham tido meios admiráveis de

satisfazer ambas as obrigações. A tentativa de Kolvenbach de formular um ideal moderno era um modelo de obscur idade: “(...) a integral liberação do

humano que é a Cidade de Deus dentro de nós.” Kolvenbach parece ter estado ciente de como era diferente a “opção

preferencial pelos pobres” como brilhante ideal jesuítico, quando com parada ao ideal inaciano que permaneceu sólido e praticamente inalterado na Sociedade de Jesus até 1965. Numa carta datada de 3 de março de 1985, a todos os jesuítas, Kolvenbach continuava a lutar com aquela diferença. Observou que a “opção preferencial pelos pobres” da Sociedade havia causado conflitos entre os jesuítas (uma rara, ainda que oblí qua admissão de que nem todos os jesuítas, até ali, tinham aderido à linha oficial da Sociedade) e com autoridades locais da Igreja e dos governos. Não sabemos, assinalou ele, quais foram “todas as consequências concretas disso [a opção preferencial] para o ministério pastoral”.

É difícil entender uma luta dessas, a menos que se presuma, como muitos observadores passaram a fazer, que Kolvenbach, como tantos je suítas, havia deixado de perceber o que significava o seu voto de obediência — e obediência como virtude.

Por angustiadas que fossem as reações à saída de Fernando Carde nal da Ordem depois de cinco longos anos de luta, o resultado não signi ficou vitória para o papa João Paulo II. Mal se haviam passado dois meses do discurso de Kolvenbach em Caracas, João Paulo foi lembrado de co mo pode ser amargo o fruto da demora e da indecisão, e do quanto a rede do modernismo defendido pelos jesuítas se espalhara. Dessa vez, o lembrete não veio dos jesu ítas, mas da ordem dos Frades Menores, popularmente conhecidos como franciscanos, que se reuniram em Assis em maio de 1985 para eleger um novo ministro -geral, o equivalente franciscano ao geral jesuíta.

João Paulo estava ciente de um movimento, na assembleia, para eleger o padre da Califórnia John Vaughn para chefiar a Ordem. Vaughn era muito conhecido como progressista a favor das Comunidades de Base, da “colaboração com os marxistas”, das celebrações “litúrgicas” progressistas, e de toda a gama de ideias teológicas modernistas que os papas vêm continuamente condenando como incompatíveis com o catolicismo romano tradicional. O papa João Paulo enviou seu representante pessoal, o arcebispo Vincenzo Fagiolo, para bloquear a eleição de Vaughn.

A tentativa foi um desastre para João Paulo, tão grande quanto ti nha sido a congregação geral jesuítica de setembro de 1983. Fagiolo foi isolado e tratado como estranho intrometido. Vaughn foi eleito minis tro-geral por 117 votos, de um total de 135; isto é, com 87% dos votos. Os frades emitiram boletim, de fato, dizendo a João Paulo que não iriam abandonar as práticas que haviam adotado: “É tarde demais para recuarmos. Como franciscanos, não podemos começar tudo outra vez. Não vamos sair em busca de nossa identidade (...).”

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Os franciscanos e Vaughn passaram, então, a embelezar sua respos ta exatamente como os jesuítas tinham feito, praticando a mesma escamoteação teológica. Adotavam tranquilamente a Teologia da Libertação, com toda a sua “opção preferencial pelos pobres”, sua postura de “anti- consumismo” pela

qual se indicava o anticapitalismo, e sua escolha de uma estrutura “não -hierárquica” de igreja, tudo isso disfarçado em linguagem ótima e otimista sobre “a Conferência Africana”.

3 O truque máximo, realizado com a ajuda de uma imperturbável versão eclesiástica de desinformação, foi declarar que aquela “identidade” franciscana — que jamais passara pela mente dos franciscanos desde que foram formados no século XIV — sempre fora deles, “o fruto de séculos de história, doutrina, tradições e compromisso para com o mundo”.

Em carta oficial dirigida ao papa, Vaughn e o ministro-geral que saía, Onorio Pontoglio, brindaram Sua Santidade com o mesmo uso liberal de frases consagradas que tinham sido aperfeiçoadas pelos jesuítas nos últimos vinte anos: “(...) fidelidade aos tradicionais valores da Ordem de fra ternidade e pobreza evangélica (...) um desejo unânime de (...) absoluta fidelidade ao Evangelho, que constitui a nossa identidade e a razão da existência da família franciscana.”

Mais tarde, no verão de 1985, os líderes franciscanos receberam um manual de serviço preparado pelo Departamento de Justiça e Paz da Or dem. “A atitude da Igreja para com o marxismo mudou de simples con denação para um diálogo crítico. (...) Os cristãos, com perfeita consciência dos riscos, passaram a entender que existem diferenças dentro do marxis mo. (...) Muitos deles [cristãos] estavam, há muito tempo, insatisfeitos com os males do capitalismo.”

João Paulo II não tinha, agora, como responder. Estava colhendo o rodamoinho de sua inatividade na questão da reforma dos jesuítas. O sabor inato não-católico e protestantizado daquele sentimento — “fidelidade ao Evangelho, que constitui a nossa identidade e a razão da existên cia da família franciscana” — rejeitando, como fazia pelo menos impli citamente, qualquer aceitação dos ensinamentos e da autoridade da Igre ja, pôde gozar de sua liberdade sem ser perturbado. Não houve rejeição da carta de Vaughn ou dos sentimentos da Assembleia. Não houve afirmação alguma de que a Santa Sé, e apenas a Santa Sé, era a razão e a causa da existência e da identidade franciscana, como era de toda ordem religiosa católica.

Talvez houvesse, entre os que apoiavam João Paulo, uma leve espe rança de que o fato de ele ter forçado a mão dos jesuítas no caso de Fer nando Cardenal, apesar de tardio, pudesse provocar uma espécie de “aceiro” que

acabasse por deter o incêndio da religião secularizada. Até esta data, não há sinais de que qualquer esperança desse tipo fosse justificada.

A informação que agora chega até ao geral Kolvenbach pelo malote diplomático e por informações da boca de jesuítas que visitam a Nicará gua faria com que qualquer homem fizesse uma pausa. Talvez ela o faça

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refletir sobre a atitude oficial dos jesuítas para com o “padre Fernando”.

Porque Cardenal e os outros padres políticos ficaram na hierarquia do terror, a nomenclatura sandinista, gozando de todas as mordomias do poder e do privilégio de uma elite marxista. Moram em casas desapropriadas da classe média que tinha sido deposta, em confortáveis subúrbios de Manágua como Las Collinas. Fazem compras em lojas especialmente designadas que só recebem em moeda forte e dólares, nas quais não há nenhuma “opção preferencial pelos

pobres”. Jantam em res taurantes de luxo restritos a autoridades do Partido, e almoçam em seus gabinetes do governo, comendo as rações diárias, entregues por furgões oficiais, de presunto, lagosta e outros acepipes que não são encontrados em nenhum outro lugar da Nicarágua sandinista. Descansam em camarotes reservados no estádio de beisebol, recebem fornecimento ilimita do de gasolina e água, que são racionados para o povo, e passam férias nas mansões da dinastia Somoza, devidamente rebatizadas pelos sandi nistas de “casas protocolares”. Viajam pela sua Nicarágua com guarda-costas pessoais cubanos e alemães orientais que andam armados com automáticas soviéticas, ostensivamente para serem apontadas para assal tantes em potencial mas, é de se presumir, igualmente eficientes contra um padre ativista que possa vacilar em seu entusiasmo pela política do tipo sandinista.

Com tais incentivos para alimentar o seu ardor “teológico”, Fernando

Cardenal e seus irmãos sacerdotes excursionam por outros países lati no-americanos organizando a revolução, e voam a jato, à custa dos soviéticos, em missões diplomáticas nos Estados Unidos, no Oriente Médio e na Europa.

Essas missões praticamente não são menos eficientes agora, do que eram antes de os padres políticos serem afastados de suas ordens e de seus cargos diocesanos. O presidente da Conferência Nacional de Bispos Ca tólicos dos Estados Unidos, bispo James Malone, de Youngstown, Ohio, enviou palavras calorosas ao padre Miguel D’Escoto, que pertencera à Ordem Maryknoll e

ainda é o ministro do Exterior sandinista: “Sua folha de ministro distinto e dedicado é fonte de enorme orgulho para nós, bispos, hoje. Espero que saiba (...) que os bispos dos Estados Unidos ofe recem apoio maciço ao seu trabalho.”

Documentos diplomáticos do Vaticano continuam a registrar, todos os dias, que, em Washington, as organizações fomentadas com tanto cui dado pelos sandinistas ao longo dos anos ainda continuam sendo fomen tadas. WOLA, NACLA, IPS, TNI, USLA, COHA, todas continuam bombardeando os legisladores para que recusem a ajuda militar aos Contras, os novos guerrilheiros da Nicarágua, que somam cerca de 4.000 homens, que preparam seus explosivos, treinam seus quadros e planejam suas operações contra um governo repressivo, tal como certa vez os sandinistas fizeram.

Los Muchachos, é como os Contras são chamados pelos homens e mulheres que se reúnem à noite em casas às escuras e amaldiçoam a Junta

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e seus padres e freiras ativistas, tal como haviam amaldiçoado o regi me Somoza. Eles só podem fazer isso quando as pa trulhas e os “inspetores”

sandinistas não estão presentes. Só então podem rezar para a Virgem de Guadalupe em favor de Los Muchachos, como já haviam rezado pelos sandinistas.

Dezenas de publicações editadas por ordens religiosas mantêm o mes mo fogo cerrado que a WOLA, o NACLA e grupos desse tipo; os franciscanos estão longe de serem a única Ordem a seguir o modelo jesuítico. A esta altura, na verdade, trata-se de uma vasta, bem coordenada, bem financiada e coerente operação; uma teia na qual os tipos como Fernando Cardenal se tornaram fios pequenos, ainda que simbolicamente importantes.

Enquanto isso, João Paulo não se sente bem com os boletins de no tícias enviados por seus representantes centro-americanos, que relatam em minúcias que o sistema “sandino-comunista”, tão bem defendido por tanto tempo por

superiores jesuítas e pensadores avançados, segue em frente com rapidez. Alguns informes dizem respeito à rede nacional de Comitês de Defesa Sandinista, criados segundo o modelo cubano, funcionando cm tod os os bairros. Outros informam sobre os grupos de controle cria dos para profissionais, mulheres e operários. Existe, até, a Associação de Crianças Sandinistas. Há notícias oficiais de grupos de valentões sandinistas, que o regime, com um pouco de blasfêmia venial, chama de “divinas turbas”, que

continuam a intimidar os nicaraguenses que vão votar em eleições. O regime tem olhos e ouvidos em toda parte, na verdade — nas ruas, no local de trabalho, nas escolas, na cozinha e no quarto de dormir.

No interior, o regime pode operar com liberdade ainda maior do que nas cidades. Esquadrões de extermínio do governo continuam a liquidar índios miskitos e outros dissidentes com a mesma impunidade de quando João Paulo se virara para Daniel Ortega, na missa papal em 1983, e gritara “Poder aos

miskitos!” Segundo a contagem do Vaticano, quase 30.000 índios miskitos,

sumee e rama não dizimados foram obrigados a abandonar suas fazendas e todos os seus pertences, e a ver tudo ser explodido às suas costas. Outros 50.000 camponeses nicaraguenses foram igualmente evacuados de zonas nortistas. Em toda parte, jovens agricul tores são recrutados para treinamento militar. Oficiais do governo incendeiam casas e destroem o gado dos camponeses que resistem à coletivização.

O resultado desse brutal e rígido controle central é tudo, menos uma “opção preferencial pelos pobres”. Em vez disso, a produção de algo dão, açúcar e carne da Nicarágua, que já fora vital, entrou em colapso. Crianças nuas, os estômagos dilatados pela fome, procuram comida nas ruas e nos campos. Contas bancárias são confiscadas. Cartões de racio namento para a compra de feijão são distribuídos aos habitantes de al deias segundo a “lealdade” de cada um; mas mesmo cartões de racionamento não podem compensar o declínio de 71% nos salários reais desde

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1979. E nada podem fazer para reviver o córdoba da Nicarágua, uma das moedas mais desvalorizadas do mundo; ou evitar que a Nicarágua deixe de cumprir os pagamentos dos juros, já vencidos há muito tempo, ao Fun do Monetário Internacional.

É de se presumir, no entanto, que não haja causa para desânimo em tudo isso para Fernando Cardenal, que se havia preocupado, numa Carta a Meus

Amigos, que pudesse cometer um pecado grave perante Deus se abandonasse sua opção sacerdotal pelos pobres. Pelo contrário, não há motivos para supor que ele não tenha tomado parte nas homenagens sandinistas, que duraram três dias, pela morte de Konstantin V. Chernenko da União Soviética, em março de 1985. Chernenko foi um “grande estadista e lutador incansável pela causa da paz e da solidariedade mundial”, declarou a rede sandinista.

Àquela altura, 50.000 refugiados do terrorismo sandinista se com-primiam em Honduras; a “Pequena Moscou” tomava forma na Améri ca Central; e o papa João Paulo tinha amargos motivos para refletir sobre o julgamento de homens como Fernando Cardenal e seus colegas padres, feito pelo maior ateísta do século XX — Vladimir Ilyich Ulyanov. “Se um padre

vier cooperar conosco em nosso trabalho”, escreveu Lenin, “podemos aceitá-lo nas fileiras da social-democracia. Porque as contradições entre o espírito e os princípios de nosso programa e as convicções religio sas do padre poderiam, nessas circunstâncias, ser consideradas como uma questão na qual o padre contradiz a si mesmo. (. ..)”

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2ª PARTE

A SOCIEDADE DE JESUS

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6. IÑIGO DE LOYOLA

É provável que não seja possível avaliar a visão de Pedro Arrupe de como a Sociedade de Jesus e a Igreja Romana deveriam r e s p o n d e r ao desafio da nossa era sem certa compreensão de pelo menos três coi sas: o próprio Inácio de Loyola; sua visão de como a mesma Igreja, na sua época, deveria responder ao mesmo desafio que Arrupe enfrentou; e que tipo de Sociedade Inácio construiu a fim de fazer a mesma transição decisiva que Arrupe teve pela frente.

É curioso o fato de que Iñigo Lopez de Onaz y Loyola, mais conhecido, agora, como Inácio de Loyola, e Pedro de Arrupe y Gondra, conhecido na grande maioria das vezes, entre seus jesuítas, apenas como Pedro, são os únicos bascos que foram eleitos para o cargo supremo de padre-geral nos 446 anos de história da Sociedade de Jesus.

Mas há uma ligeira ironia, então, no fato de que no século XVI o primeiro basco construiu a mais eficiente e competente organização ja mais colocada à disposição do papado para a sua defesa e propagação dos ensinamentos espirituais e sobrenaturais do catolicismo romano; en quanto que no século XX o segundo basco dedicou todos os seus esfor ços para afastar a organização do destino do papado, que parecia em decadência, e atrelá -la — juntamente com toda a Igreja — à aparentemente iminente criação de uma sociedade humana mundana, voltada para o momento presente, novíssima.

Há outro fato curioso com relação a esses dois bascos jesuítas, e é muito mais importante do que a terra natal que os dois tinham em comum. O desafio lançado à Igreja Romana que Loyola conhecia há quase quinhentos anos era idêntico ao desafio à Igreja que Arrupe e todos nós conhecemos. O século XVI de Loyola era uma era “limiar” tão turbu lenta, em todos os detalhes, quanto a nossa. A mente e a perspectiva do mundo de Loyola foram tão súbita, tão abrupta e tão profundamente arrastadas para fora de seu habitat medieval de mil anos quanto o nosso mundo foi arrastado de seu estado colonial do século XIX para a era pós-II Guerra Mundial, atômica e eletrônica. As comportas de novidades, então, eram a alta Renascença, a descoberta das Américas, a fúria da revolta

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protestante, a ascensão do capitalismo, o nascimento da nossa tecno logia científica ocidental. As águas que jorraram por aquelas comportas inundaram os homens e mulheres de sua época.

As irresistíveis marés enchentes da novidade que levam nossas gera ções atuais através de outro limiar são múltiplas: a nova genética que afe ta as fundações de nossa sociedade humana, novos métodos de guerra em massa e massacre industrial de milhões, comunicações globais instan tâneas, interdependência financeira e econômica internacional, a entrada do homem no espaço sideral, cujas fronteiras recuaram infinitamente pa ra o desconhecido.

O desafio à Igreja Romana, no limiar conturbado da época de Loyola, foi tão forte, claro e ineludível quanto na nossa; foi, na verdade, exatamente o mesmo desafio: como poderia a Igreja Romana se adaptar à nova era e, no entanto, não esquecer os pontos essenciais de suas crenças e de sua moralidade?

A curiosidade está não em que os desafios da época de Loyola e da nossa sejam paralelos, mas em que a reação de Arrupe e da organização dos jesuítas ao desafio de nossos dias foi, em todos os pontos, oposta à de Loyola.

A vida de Iñigo de Loyola parece ser uma vida fácil de se contar. Ela não exibe nenhum gesto espetacular ou elementos que fizessem a ter ra tremer, nada que nossos diplomados educadores assinalassem como precoces “sinais

de gênio”. Talvez, de certa maneira, o maravilhoso, para nós, deva ser o fato de que Iñigo, sozinho, projetou uma organização tão importante para os destinos não só da Igreja, mas do mundo inteiro, como provou ser a Sociedade de Jesus.

O que mais aquieta a nossa curiosidade sobre esse homem é a maneira aparentemente fácil de podermos dividir em compartimentos estanques os seus 65 anos. Houve um primeiro período de 29 anos durante o qual ele cresceu e se entregou às loucuras da mocidade; houve um segundo pe ríodo de arrependimento que durou oito anos; depois, um período de do ze anos de estudo e preparação; e, finalmente, os quinze anos que ele levou para criar a sua Sociedade de Jesus.

Retrospectiva, e superficialmente, foi um padrão prosaico. Ele nun ca pôs os pés fora da Europa, a não ser numa curta visita a Jerusalém, e pouco ou nada tinha a ver diretamente com grandes homens de sua época. No entanto, em influência de longo alcance, influência que literalmente modelou o nosso mundo do século XX, Iñigo ultrapassa até mesmo os maiores de seus contemporâneos — Carlos V da Espanha, Henrique VIII da Inglaterra, Ivã o Terrível, da Rússia, Lutero, Calvino, Suleiman o Magnífico. Porque aquilo que ele construiu ainda está no lugar, ainda funciona, e ainda é considerado tão importante que regimes inteiros, revolucionários ou não, amarram seus destinos à sua influência.

Iñigo de Loyola nasceu em 1491, sendo o mais moço entre cinco ir mãs e oito irmãos. Como acontece com outro grande contemporâneo seu, Cristóvão Colombo, não sabemos nem o dia nem o mês de seu nascimento

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na Casa Torre, o lar dos Loyola que ficava no Vale Iraurgi entre duas cidadezinhas, Azpeitia e Azcoitia, na província basca de Guipúzcoa, ao norte da Espanha.

Os Loyola, cavaleiros e guerreiros por profissão, eram propri etários de terra educados, mas pobres. A mãe de Iñigo, dona Maria Saenz, morreu quando ele ainda era bebê; ela e o marido, don Beltrán, estavam casados há 25 anos quando do nascimento de Iñigo. Iñigo foi batizado na igreja de São Sebastião, em Azpeitia. Foi amamentado por uma vizinha agricultora, Maria Garin, e criado por Magdalena de Aráoz, esposa de seu irmão mais velho, Martin Garcia.

Suas mais antigas recordações eram da Casa Torre, situada entre ár vores frutíferas e campos atapetados de flores; e do marido de Maria Garin, um ferreiro, torrando castanhas de Azpeitia no fogo de sua forja e contando histórias intermináveis sobre os grandes acontecimentos que ti nham lugar no mundo fora de sua adorada Guipúzcoa.

Aqueles grandes acontecimentos iriam rapidamente fazer entrar um novo mundo que iria envolver toda a Europa. Para os Garin, para os Lo yola, para todos os bascos, o isolamento e auto-suficiência de outrora de Guipúzcoa já haviam acabado quando Iñigo nascera. Como podemos ver em retrospecto, hoje, aqueles acontecimentos tornaram inevitável o sur gimento da nova era na qual Iñigo iria se tornar um dos grandes.

O primeiro dos acontecimentos de que Iñigo ficou sabendo daquela maneira agradável, semelhante a um livro de histórias, tivera lugar há uns quarenta anos antes de ele nascer. A queda de Constantinopla diante dos turcos otomanos, em 1453, era assunto adequado para a hora de contar histórias, porque levou à destruição de metade — alguns diriam que a metade mais valiosa — da civilização cristã. Constantinopla não havia sido apenas a capital do império bizantino que tinha 1.000 anos; era o único elo vivo da Europa com o mundo grego antigo e o único depositário de uma inestimável expressão da tradição cristã.

O efeito mais profundo da queda de Constantinopla foi sobre a civilização cristã da Europa. Certas partes valiosas da civilização bizan tina foram levadas para a Europa por aqueles que escaparam à conquis ta otomana. O resultado primordial, então, foi a inundação da mente de europeus por imenso s tesouros da literatura, das belas-artes e das artes decorativas, da filosofia, da engenharia, da arquitetura, da teologia e da ciência, todos os quais Constantinopla havia preservado e desenvolvido durante o seu longo reinado. Os indícios da Renascença, manifestados durante a primeira parte do século XV, recebiam agora uma infusão de vigor e inspiração que tornou possível o dilúvio da alta Renascença.

Grande parte do que precedera a cristandade em Roma e na Grécia ficou à disposição do que havia sido o fechado mundo medieval de fins dos anos 1400. A imaginação e as ambições dos homens, sua natural cu riosidade sobre este mundo e seu instinto de progredir eram mais fortes do que os antigos laços pelos quais eles haviam ficado presos numa espécie

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de isolamento cultural. De repente, durante a vida de Iñigo, o mundo já não seria visto como o centro físico do cosmo. Em vez disso, estarrecedoramente, era visto como heliotrópico, como apenas mais um planeta que girava em torno do sol.

Aquele cosmo rearrumado chamava atenção para si. A cristandade romana, nos primeiros 1.000 anos de sua história, havia encerrado os eu ropeus numa casa exclusiva, auto-suficiente, só deles, fora dos limites para qualquer pessoa ou quaisquer ideias vindas de fora, e dominada pela ideia central da eternidade de Deus. Surgia agora, na Europa, um rufar e uma batida insistente, um clamor constante por maior liberdade, por experi mentação pelo risco, à medida que os homens percebiam a riqueza e a amplitude da mente pré -cristã. Sob o impulso dessa nova infusão, os europeus estavam a ponto de saírem daquela casa para sempre e entrarem nas convulsões do mundo em geral. Estavam prestes a saírem da história paroquial e entrarem na história propriamente dita e, na impressionante imagem de Robert Penn Warren, “na

terrível responsabilidade do Tempo”. Em trinta anos, a contar do nascimento de Iñigo, as autoridades da Igreja

na Europa tornaram-se cientes de que não conseguiam se comuni car com essa nova mentalidade; que estavam, na verdade, perdendo o devotamento de milhões porque já não podiam falar a eles de forma inte ligível, já não compreendiam o que os animava, o que os inspirava, e não podiam responder aos ataques dos reformadores da Alemanha e da Inglaterra. O novo espírito que estava entre os homens de toda parte prometia mudar tudo. Para que o Evangelho e a religião de Roma fossem comunicados com sucesso àquela nova mentalidade — a mentalidade pós-medieval e renascentista — era preciso um método de explicação totalmente novo.

Até aquele momento, a província basca de Guipúzcoa e a pequena cidade de Azpeitia, na qual nascera Iñigo, continuavam, como tantos outros lugares provincianos da Europa, inteiramente isoladas. Limita da ao norte pela baía de Biscaia e pelos Pireneus, e ao sul pelas muralhas das montanhas de Aralar e Aritz, seguros em seus 1.200 quilômetros quadrados, com San Sebastián como sua maior cidade, Guipúzcoa e seus bascos achavam que as Vascongadas — o país basco — eram tudo o que importava. Era um país pequeno, é verdade; de fato, em muitas maneiras era o país pequeno típico. Mas os bascos que o habitavam nunca tiveram uma mentalidade tacanha. Pareciam compreender o vasto mundo lá de fora e à sua volta, com uma amplitude de visão ao mesmo tempo perceptiva mas arredia — mais porque eram perfeitamente auto-suficientes do que devido a qualquer medo paroquial do desconhecido. Pa ra eles, havia poesia e beleza suficientes nas florestas de carvalho e de castanheiras de sua região e ao longo de suas escarpas de rocha calcári a. Havia variedade suficiente na disposição combinada de vale, serra e pradaria formada pelos rios Urumea, Urola e Aria que corriam para o mar. Havia lei e ordem suficientes nos tradicionais fueros, a legislação basca,

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para tornar a vida segura. Os nomes mágicos de cidades como Mondragon, Rentería, Vergara, Roncesvalles (onde os bascos haviam feito em pedaços a retaguarda de Carlos Magno no ano 778 A.D.) nunca dei xavam que os bascos se esquecessem de sua história ininterrupta de independência e ufania.

Quando Iñigo nasceu, Guipúzcoa, juntamente com todos os outros pontos isolados da cultura medieval, já estava se abrindo para a nova era.

O segundo grande acontecimento a influenciar Iñigo lhe foi resumido numa palavra que tinha uma conotação quase místi ca para ele e seus contemporâneos: Reino. Há cerca de 750 anos do nascimento de Iñigo, a Espanha tinha sido invadida pelos muçulmanos. Os espanhóis os cha mavam de mouros, porque vinham do que então se chamava Mauritânia, que compreendia partes do Marrocos e da Argélia modernos.

A longa luta para expulsar os mouros da Espanha durou seiscentos anos. Famílias inteiras, como os Loyola, calculavam sua história em ter mos de batalhas em que seus membros tinham lutado, de condecorações ganhas por bravura, de mortes trágicas em combate. Quantas histórias Iñigo deve ter ouvido de Maria Garin e seu marido, de seus irmãos e de seu pai, sobre aquelas gloriosas batalhas!

Para os espanhóis, o Reino e seu destino eram todo o seu mundo. Em 1481, só a cidade e fortaleza sul ista de Granada ainda continuava em mãos mouras. O resto da Espanha estava unido sob a bandeira de Suas Mui Católicas Majestades, Fernando de Aragón e Isabel de Castela. O Mui Católico Reino só estaria seguro e integral quando o último centro de poder “inf iel” de Granada

estivesse livre do soberano muçulmano. A segurança e a integridade do Reino estavam na mente de todos num país onde geração após geração continuava lutando e morrendo por ele.

O inimigo, o mouro, era visto como atarracado, de rosto moreno, que espalha a morte, astuto, fingido, covarde, alojado em sua fortaleza rochosa, fazendo ameaças de guerra, pilhagem e escravidão.

O mui católico rei era retratado como alto, de rosto claro, nobre e ilustre, ao chamar todos os seus súditos para lutarem pel o Reino e, assim, entrarem com ele na glória da vitória.

O pai de Iñigo, don Beltrán, e três de seus filhos responderam àquele chamado.

Para os mouros, porém, Granada era muito mais do que um ponto de apoio militar na Europa continental. Granada era um antegosto sagrado e uma encarnação do paraíso.

O paraíso onde os muçulmanos acreditavam que Alá permitisse que os muçulmanos fiéis entrassem depois da morte — em especial depois de uma morte sofrida pelo bem do Islã — iria proporcionar tudo o que as áridas, causticantes areias e estepes do deserto sempre negaram a eles e a seus ancestrais árabes: vegetação verde e exuberante; campinas atapetadas de flores de uma beleza inimaginável; fontes limpas, claras, frescas e sempre em atividade; brisas refrescantes; sombra confortadora embaixo de agradáveis palmeiras; alimentos em abundância; doces prazeres com

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belas mulheres; escravos em quantidade, para atenderem a todos os seus caprichos e desejos; nada de noites frias ou dias fervendo de calor, mas, em vez disso, o etéreo perpétuo; e os sons tranquilos da música típica do deserto, tocada por anjos em liras celestiais.

Mas em primeiro lugar entre todas as bênçãos paradisíacas estava o único artigo que no deserto, por ser deserto, tem sempre que faltar: água. A água , como o ar, é necessária à própria vida. Segundo a sagrada lei muçulmana, o Sharia, uma pessoa precisava de água para se lavar antes de rezar; e tinha -se que observar o Sharia, tinha-se que rezar pelo menos cinco vezes ao dia. Caso contrário, não se atingiria o paraíso após a morte. Era exatamente por isso, na verdade, que os muçulmanos chamavam sua lei sagrada de Sharia; literalmente, Sharia significa “a estrada para o bebedouro” e, assim, “o caminho para o

paraíso”. Ora, Granada proporcionava tudo que o paraíso depois da morte prometia

aos crentes devotos. Ficava no colo da Serra Nevada, na Andalu zia, a fértil região sul da Espanha. Era construída e decorada com suntuosidade, em cima e ao redor de dois montes entre os quais corria o tranquilo rio Derra. Em torno da cidade, os mouros haviam construído mesquitas e moradias que se erguiam adequadamente em sombrias alamedas que davam cidras, romãs, figos, maçãs, tâmaras e laranjas. Por toda a sua volta havia nutritivos vinhedos, hortas de legumes e prados. E acima deles, o sol era benigno no céu azul -anil.

Para os mouros, Granada era o paraíso na Terra, ou o que mais se aproximava disso. Não era de admirar, então, que eles protegessem a pe riferia de sua província com cidades e aldeias fortificadas, e com t orres de vigia guarnecidas por cavaleiros mouros sempre prontos com suas cimitarras.

A cadenciada música do deserto flutuava no ar, tranquila, em torno do paraíso de Granada até que os cavaleiros e as legiões de Suas Majestades Católicas finalmente acabaram com todo aquele cordão que a cercava, com uma batalha atrás da outra, um massacre atrás do outro, e reduziram Granada às suas fortificações centrais.

Foram necessários dez anos de sangrenta guerra envolvendo espa nhóis de todas as partes do reino — três dos irmãos de Iñigo morreram lutando no que era uma guerra sagrada pelo Reino — até que Boabdil, o último rei mouro, apelidado na história pelo seu próprio povo de EI Zogaybi o Desventurado, decidisse capitular. Ele assinou a entrega de sua adorada Granada no dia 25 de novembro de 1491, o 897º ano da hégira muçulmana. E no dia 6 de janeiro do ano seguinte, ele partiu com um salvo-conduto, em companhia de sua família real e de seu séquito real de criados.

A despedida daquele paraíso terrestre foi de cortar o coração, e mais tarde inspirou muito páthos e muita poesia. Antes de a comitiva real perder Granada de vista, ela fez uma parada às margens do rio Xenil. Os muçulmanos que partiam queriam olhar pela última vez para as torres vermelhas do Alhambra e sua fortaleza, que já fora inexpugnável, de Alcazaba.

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Naquele exato momento, viram a bandeira da Sagrada Cruzada Cristã, com sua brilhante cruz prateada, tremular na grande torre de vi gia, a Torre de la Vela. Ouviram os gritos dos vencedores, que evocavam o nome de seu padroeiro, São Tiago de Compostella, ecoar do Pátio dos Leões, no Alhambra: “ Santiago!

Santiago!” Iñigo era apenas uma criança de colo no dia em que Boabdil e sua família

lançaram aquele demorado último olhar para sua adorada Gra nada. Quando ele cresceu um pouco mais e tinha condições de compreender, sua família deve ter-lhe repetido as últimas palavras de lamentação que chegaram, num grito de dor, aos ouvidos dos cristãos vitoriosos que estavam no Pátio dos Leões: “Ay

de mi! Granada!”, gritavam os muçulmanos ao se afastarem. Mais tarde ainda, devem ter mostrado a Iñigo aquele ponto, próximo ao Xenil, que os espanhóis desde então chamam de el último suspiro del Moro. A segurança do Reino, seu orgulho e sua beleza, estavam ligados a lugares ass im pelo folclore e pelo fervor religioso, bem como pelo amor à Espanha.

Iñigo ainda não tinha completado dois anos de idade quando se deu o terceiro grande acontecimento influente em sua vida. Cedo, no dia 15 de março de 1493, depois de oito meses de arriscada viagem marítima, a caravela de cinquenta pés de comprimento, a Nina, entrou no porto espanhol de Los Palos transportando um cansado mas triunfante Cristóvão Colombo de volta de sua descoberta do Novo Mundo, acontecimento que marcaria época. A embar cação irmã, Pinta, chegou poucas horas depois. A nau-capitânia de Colombo, a Santa

Maria, afundara ao largo de Hispaniola, a ilha que hoje está dividida entre o Haiti e São Domingos.

As novidades de Colombo eram espantosas e emocionantes para os espanhóis e, posteriormente, para todos os europeus. Agora, percebiam eles, existiam milhões de outros seres humanos — já existiam há centenas de anos — além-mar, em imensas terras novas cheias de riquezas inima gináveis. Tudo aquilo pertencia à Espanha pelo direito da primeira descoberta, era o que pensavam os espanhóis. Da noite para o dia, o reino se tornara um império. Tudo tinha que ser assegurado pela conquista. Todos tinham que ser civilizados pela conversão à cristandade.

Para nós, é difícil imaginar a súbi ta expansão de mentalidade e pers-pectiva que aquela descoberta impôs aos homens e mulheres da época de Iñigo, a menos que façamos uma comparação entre ela e nossas especu lações sobre a vida extraterrestre. A geração dele foi a primeira a crescer com os p rincípios da perspectiva genuinamente global. A terra inteira se tornara, agora, a herança deles e o campo de exercício de seus esforços.

O acontecimento teve um significado pessoal para Iñigo. Quando Co-lombo partiu em sua segunda viagem para este maravil hoso Novo Mundo em 1493, um dos irmãos de Iñigo, Martin Garcia, marido de Magdalena de Aráoz, embarcou com ele. Certamente que Magdalena atenuou sua solidão contando ao Iñigo de dois anos de idade histórias fabulosas sobre o Novo Mundo. As histórias sobre como a Cruzada Sacra conseguira a segurança do Reino contra os mouros, de como este cavaleiro ou aquele

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soldado servira fielmente Sua Mui Católica Majestade, líder dos exérci tos de Deus, eram agora ampliadas para incluírem o império e o mundo inteiro.

A ideia de serviço no Reino foi apenas enfatizada e mais refinada pela carreira de Iñigo de menino e adolescente. Aos dezesseis anos de ida de, aproximadamente na época em que seu pai, don Beltrán, morreu, ele foi nomeado pajem da residência real de verão de Arevalo. Iria passar os dez anos seguintes de sua vida na pompa e no formalismo da vida na corte e dos meios aristocráticos.

Foi praticamente nessa época que a rainha da Espanha, Germaine de Foix — uma princesa francesa de quinze anos com quem o rei Fernando de Aragón, de 52 anos, havia se casado depois que sua primeira mu lher, Isabella de Castela, morreu — começou a frequentar Arevalo. Germaine, petulante, gorda, que bebia muito, agia baseada no fato de que era sobrinha do rei de França. Ela virou a corte real de cabeça para baixo.

Iñigo, o pajem, foi designado para servir à nova rainha espanhola taças de vinho à mesa, iluminar à luz de velas o caminho dela pelos corre dores do castelo, e carregar a longa cauda de seu manto. Em outras pala vras, para servi-la.

Como todos os demais, Iñigo foi dominado por aquela Germaine de Foix — pelos seus adereços franceses em trajes de seda, suas toucas de linho, seus lençóis perfumados, seus magníficos trajes, perfumes e cos méticos, seu modo real de se portar, e pela estouvada alegria que ela instalou numa corte que antes fora dominada por Isabella, que considerava tudo aquilo perverso e anticristão. Servir àquela mulher que substituía a sombria e séria Isabella era, na verdade, servir à grandiosidade e à gló ria. Na mente de Iñigo, servir era amar. Amar era servir. O primeiro amor de Iñigo foi Germaine de Foix.

Automaticamente, ao atingir determinada idade, ele foi convocado para as fileiras dos jovens cavaleiros e escudeiros da corte real espanhola. Dali até completar 26 anos, a vida seria uma interminável sequencia de exercícios marciais com espada, pistola e lança; uma vida de caçadas, dan ça, frequentar prostitutas, namoros, duelos, festanças, beber, brigar; e, por fim, apaixonar -se desesperadamente por uma determinada dama “de classe nada comum”, como

escreveu ele mais tarde em sua autobiogra fia, “mais uma condessa ou duquesa;

mas de uma nobreza muito superior a todas elas”. É provável que Iñigo visasse um casamento e servir ou à arrebatadora

Germaine de Foix, àquela altura já viúva de Fernando, ou à princesa real, Catarina, filha da rainha Joana da Espanha. Era uma característica dele: nunca se contentar com o que estivesse em segundo plano.

Iñigo se tornara um cavaleiro de 1,55m de altura, olhos negros, de ba rba, armado de adaga, espada e pistola, vestindo calças de malha jus tas e botas de cano longo, de couro macio, ao estilo córdoba, e um traje de cores espalhafatosas. Seus abundantes e brilhantes cabelos louros caíam

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de seu gorro de veludo vermelho, do qual balançava uma vistosa pena cinza. Sua educação era limitada. Ele não sabia nada de latim, falava um pouco

de patois francês. Falava o espanhol basco e o castelhano, lia bem, e sabia escrever o suficiente para assinar o nome e compor, penosamente, despac hos militares ou cartas de amor.

Seu caráter teve uma formação muito má. Ele era um dos “jovens turcos”

de sua época cuja juventude, época gloriosa, e orgulho nacional os estimulavam. Faltava-lhe escrúpulo moral em sua conduta, a ponto de finalmente a lei, na figura do corregidor, o juiz correcional de Azpeitia, acabar pegando-o em suas travessuras. Depois de “crimes cruéis executados durante a noite [do carnaval de 1515 em Azpeitia] com premeditação e envolvendo emboscada e traição”, a polícia prendeu Iñigo com seu irmão, Pedro Lopez, que também estava envolvido.

Atrevido, insolente, mentindo por todos os poros, culpando outros, descrito como “o criminoso”, como “vergonhoso no trajar, pior na con duta”,

Iñigo foi transferido para a prisão do bispo em Pamplona, que ficava perto, e por fim conseguiu a liberdade e o encerramento de seu ca so por um juiz que nos diz, em seu relatório ainda existente, que “ Iñigo de Loyola era astuto, violento e vingativo”. A inflexibilidade de sua von tade férrea fazia-se notar: Iñigo de Loyola era insolente até à morte quando se tratava de sua honra ou de seu interesse. Uma vez tomada uma deci são, nada podia abalar sua determinação ou afastá-lo de sua execução.

Em 1517, com 26 anos de idade, ele ainda nutria desejos de encon trar a glória a serviço do Reino e, assim, dar expressão a sua ainda não exigida obediência incondicional — bem como ganhar a mão de sua dama. Entrou para o exército do vice-rei de Navarra, o duque de Najera. Seis anos depois, viu -se defendendo uma posição impossível na cidadela da cidade de Pamplona contra um irresistível exército francês. No dia 20 de maio de 1521, uma bala de canhão francesa passou-lhe por entre as pernas, estilhaçando a direita e ferindo a esquerda. A luta acabou.

Os cirurgiões do exército francês foram tão inábeis ao porem no lugar os ossos de sua perna direita, que quando Iñigo chegou em casa seus médicos tiveram que quebrá-los e recolocá-los todos no lugar. Mas ainda assim os ossos se soldaram de maneira incorreta, deixando uma horrí vel protuberância. Se ela ficasse, ele não poderia usar a elegante bota mili tar, nem poderia dançar ou curvar-se com graça. A elegância física fazia parte do equipamento pessoal de um verdadeiro cavaleiro.

Cumprindo ordens suas, os médicos serraram a protuberância; mas verificaram, então, que ele mancava ao andar. Por isso, amarraram-no num cavalete cirúrgico, onde ele ficou imóvel semanas a fio, sofrendo dores excruciantes, tudo na vã esperança de que a perna pudesse ser esticada até voltar ao seu comprimento normal.

Iñigo sofreu todas essas quatro operações sem anestesia e sem um murmúrio ou sinal de protesto “além do cerrar dos punhos”. Mais tar de, ele descreveu aquilo tudo de maneira incisiva, como tendo sido uma

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“carnificina”. Mas seus motivos eram c laros. Como poderia ganhar o coração de sua amada se sua aparência fosse deplorável? Como poderia sobressair -se na luta pelo Reino e ao servi-lo?

Como acontecia com frequência, porém, na vida de Iñigo, uma porta se fechava e outra começava a se abrir. Durante as longas semanas de convalescença no verão e no outono de 1521, ao ler a vida de santos para passar o tempo, ele sofreu o que é conhecido na linguagem da experiên cia religiosa como profunda conversão. Segundo a teologia e a crença ca tólica, Iñigo recebeu a graça divina — comunicações especiais, sobrenaturais, de força de vontade, esclarecimento da mente, e orientação do espírito. Foi uma purificação inicial. Assim que se recuperou o suficien te, em princípios do Ano Novo de 1522, ele saiu da Casa Torre de Loyola para sempre, a fim de encontrar nova vida.

Passou a maior parte dos seis anos seguintes, de 1522 a 1528, culti vando a vida do espírito que se abrira para ele — fazendo terríveis peni tências físicas pelos seus pecados, praticando a contemplação de mistérios divinos, realizando obras de caridade e codificando, por escrito, sua no va perspectiva de vida num livro curto sempre conhecido como Exercícios espirituais.

Raro tem sido o devoto espiritual que sofreu dores do espírito tão devastadoras quanto Iñigo sofreu naqueles anos, correndo paralelas com comunicações sublimes com o Deus que ele agora adorava e o Cristo em cuja salvação ele agora acreditava. Mais rara ainda, porém, era a capaci dade especial de Iñigo para acompanhar minuciosa e exatamente, durante sua peregrinação íntima, as várias disposições de espírito e movimentos que estavam sempre alterando a atmosfera e a tensão de seu ser psicofísico.

Fustigado pela depressão agora, exaltado depois por uma felicidade incontida, de repente atormentado por crescentes dúvidas sobre Deus, Cris to, a Igreja, sobre a sua sanidade, sobre tudo, ele procurava cuidadosa mente dissecar a textura de seu íntimo que se alterava. Porque acreditava firmemente que aquilo que afetava e alterava suas condições psicofísicas era obra de um espírito-agente — de Deus ou de Lúcifer — para afetar e alterar sua alma, para incapacitar ou encorajar sua vontade, para escurecer ou iluminar sua mente.

Com base nessa minuciosa e impiedosa auto-observação, Iñigo formou um conjunto de regras pelas quais uma pessoa podia discernir qual a ação que se passava em seu espírito e testar quem era o espírito -agente que atuava sobre sua alma. Lado a lado com essas regras práticas, ele reuniu uma série de meditações, contemplações e considerações.

O processo era torturante. Havia momentos em que parecia que o conflito íntimo seria demasiado para sua sanidade. Pelo menos numa oca sião, nas profundezas de sua miséria, ele ficou decididamente tentado a cometer suicídio, atirando-se num precipício. Mas pelos meios espirituais que já criara e pela heroica autodisciplina na aplicação de tais meios a ele próprio, reconheceu aquela inclinação a tempo, como sugestão daquele que Jesus havia descrito como “assassino desde o início”.

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Desse cadinho de provação, auto-exame e angustiada ânsia por paz e luz, surgiu em Iñigo de Loyola aquele equilíbrio de espírito e matéria, de mente e corpo, de contemplação mística e ação pragmática que desde então tem sido reconhecido como típica e especificamente “inaciano”, para distingui-lo da espiritualidade de, digamos, São Benedito, São Domingos, São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila.

Iñigo não desejava nada mais ardentemente do que conhecer o Cristo Ressuscitado em pessoa em seu corpo glorificado, e venerar c ada um dos ferimentos de Cristo — em suas mãos, seus pés, seu lado, beijar aqueles ferimentos e adorá-los, cobri-los com seu amor e sua adoração expressos por seus lábios, seus olhos e suas mãos. Ele havia descoberto aquele se gredo do misticismo cristão que o torna tão diferente do desencarnado quase antimatéria — misticismo dos budistas; um segredo que, na nossa era, tem escapado à mente e à experiência de homens muito mais ilustres, humanamente falando, tais como Aldous Huxley, Teilhard de Chardin o Thomas Merton.

Automaticamente, a promessa de Cristo foi cumprida: “Quem me vê, vê

ao Pai.” Através da própria humanidade de Cristo, Iñigo foi introduzido no ser imaterial, eterno, da Trindade — aparentemente subindo, como Paulo de Tarso em seu êxtase fora do corpo, ao “Terceiro Céu”, para participar dos mais

recônditos segredos da divindade para os quais a linguagem humana não tem palavras. Deus o Pai, o Filho, o Espírito Santo, como Três e como Um, admitiu Iñigo a uma intimidade da qual poucos mortais se aproximam enquanto vivos nesta terra.

Essa característica de autêntica devoção cristã — ascensão a um espírito imaterial, Deus, através da humanidade de um homem de verdade, Jesus — é um obstáculo para a mente não-cristã. Mas é a pedra de toque pela qual se pode descobrir o que é autenticamente cristão ou não-cristão no torvelinho da religião de hoje.

Quando acabou de passar por todo esse trabalho do espírito e atin giu o equilíbrio que iria sempre marcar o método inaciano — equilíbrio entre espírito e matéria, entre contemplação dos mistérios divinos e implementação do significado desses mistérios em atos concretos — Iñigo também havia terminado a organização de seu livro de Exercícios espirituais. Estava pronto, agora, para testar em ação seus ideais de serviço no Reino. Suas categorias básicas de julgamento continuavam sendo as do início de sua vida: amor pelo líder, serviço no Reino, guerra contra o Inimigo no campo de batalha do mundo, recém-aberto, necessidade absoluta de educação total, e amor expresso em serviço incondicional. Mas na sua conversão, aquelas suas antigas categorias foram preenchidas com ideais e dimensões totalmente diferentes.

O próprio Iñigo descreveu minuciosamente como via, agora, todas as coisas. O Inimigo era aquele “assassino desde o início”, Lúcifer, “o principal

de todos os inimigos [que] convoca inúmeros demônios e os es palha pelo mundo inteiro para prender os homens com correntes [de pe cado]”. O Reino

era “toda a superfície da terra habitada por tantos povos

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diferentes. (...) As Três Pessoas Divinas [da Trindade] olham com des prezo toda a extensão ou circuito da terra cheio de seres humanos (...) alguns brancos (...) alguns pretos (...) alguns em paz (...) alguns em guer ra, alguns chorando, outros rindo, uns com saúde, outros doentes, uns chegando ao mundo, outros morrendo (...)”.

Aos chamados de Suas Mui Católicas Majestades, ele já não atendia mais. Era Cristo, o Líder Supremo, que agora o estava chamando, e “(...) como é

muito mais digno de consideração Cristo Nosso Senhor, o Rei Eterno, diante do qual o mundo inteiro está reunido”.

A questão dominante para Iñigo, agora, se referia ao extremoso serviço de seu novo líder, Cristo. De que modo ele poderia servir? E onde? Sozinho? Se não sozinho, então com quem? Como é que e le iria saber que serviço Deus exigia dele?

Em 1523, em busca de respostas, ele fez uma peregrinação a Jerusa lém. Quando voltou, havia se decidido: decidiu que o primeiro passo se ria tornar-se padre. Para isso, precisava estudar.

Começou seus estudos na Espanha, aos 33 ou 34 anos de idade; mas em 1527 conseguiu passar para a maior e mais renomada universidade de sua época, em Paris. Foi ali que decidiu ser chamado de Ignatius: a matrícula na Sorbonne era escrita em latim, e Ignatius era o equivalente lati no mais próximo do basco Iñigo.

A Universidade de Paris era umas das aproximadamente quarenta universidades da Europa na época. Tinha 40.000 estudantes em cinquenta faculdades. Era um centro de estudos e um viveiro de ideias revolucio nárias e teologia avançada. A escolha de Loyola, de ir para lá, foi uma decisão sábia e profética. Ele se mudou da vida intelectual comparativa mente protegida de Alcalá, Barcelona e Salamanca, onde começara seus estudos; foi atirado de cabeça no fermento que era a Paris daquela época. Lá, pode-se dizer, enfrentou pela primeira vez a nova mentalidade dos homens da Renascença. Essa era a mentalidade que estava lentamente se alienando do mundo medieval, à medida que se orientava de forma cada vez mais exclusiva para novos concei tos de homem, de sociedade e do cosmo.

A maioria daqueles que viam Inácio todos os dias no estreito “Beco dos

Cachorros” entre as faculdades de Montaigue (onde ele estudava gra mática vulgar) e de Santa Bárbara (onde ele estudava teologia) não pode ria ter reconhecido o antigo fidalgo. Ele estava, agora, magérrimo, era um homem de aparência velhusca que usava uma comprida túnica preta e uma barba emaranhada e descuidada.

Tanto anteriormente na Espanha, como outra vez em Paris, ele fi cou sob suspeita de heresia e foi examinado pela Inquisição. Foi sempre absolvido, mas passou algum tempo na prisão. Estava, é claro, eterna mente sem dinheiro; durante três anos seguidos, fez visitas a Bruges, a Antuérpia e a Londres, onde conseguiu obter recursos de ricos comerciantes espanhóis.

Quando terminou seus estudos e saiu de Paris em abril de 1535 como

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licenciado em Artes, Inácio já havia reunido à sua volta um grupo básico de sete dedicados companheiros e estava pronto, tanto intelectual como espiritualmente, para se lançar no caminho de seu extremoso serviço de Cristo. Tornou-se padre em 1537.

Desse ponto em diante, na avaliação do progresso de Iñigo, não é possível uma análise racional dos motivos de suas decisões. Podemos re lacionar suas qualidades mais evidentes: aquela vontade de ferro observada pelo juiz correcional anos antes, e uma grande engenhosidade que o mesmo juiz havia considerado astuta. Havia, também, aquela quase assustadora força motriz de sua ideia de que havia penetrado e domado as terríveis pro vas espirituais pelas quais passara e que resultaram nos Exercícios espirituais.

Podem-se fazer, também, listas do que ele decidiu antes e durante seus anos de estudo; e pode-se descrever o que fez. Pode-se, até, ligar tudo isso às suas experiências e lições anteriores, de modo puramente sequencial. Se você tiver fé, poderá atribuir à luz eterna que emana do Espírito Santo a um candidato dócil — e Iñigo era exatamente isso.

Ainda assim, depois disso tudo, não poderá explicar, no que hoje seria aceito como forma racional, o elo entre as experiências anteriores de Inácio e o novo conjunto de decisões que ele agora tomara. Ele pode ria ter-se tornado eremita, entrado para um mosteiro fechado, voltado à vida de cavaleiro, ou procurado uma carreira culta na comunidade acadêmica ou na Igreja. Em vez disso, ele tomou uma direção totalmente inesperada. No final, talvez devamo -nos contentar em dizer o que muitos têm dito sobre ele: com muito poucos paralelos na história, Iñigo possuía um dom natural de penetrar fundo nas fundações mesmas da natureza humana, tanto de indivíduos como da sociedade. Isso determinou o seu curso de ação.

Em 1535, a visão de Iñigo do mundo que o cercava já estava definida e era definitiva: havia, no âmbito universal, uma guerra em andamen to. Ela não deveria ser confundida com guerras locais — como, por exemplo, os turcos que, sob o comando do sultão Suleiman o Magnífico, haviam chegado às muralhas de Belgrado em 1521, ou o exército imperial espanhol que havia saqueado Roma e o Vaticano em 1527. Não era nem mesmo a guerra que estava sendo feita contra os luteranos, os calvinistas e outros que se haviam revoltado contra a autoridade e os ensinamentos do papa romano. Tampouco era a guerra que estava sendo travada por umas poucas almas dedicadas e piedosas contra a pobreza, a doença e a injustiça endêmicas que caracterizavam as condições sociais das massas por toda a Europa de sua época.

A guerra que Iñigo via era a guerra contra Lúcifer, chefe dos anjos do mal, que percorria o meio ambiente humano procurando destruir — fosse pelo homicídio da guerra, pela destruição da cultura religiosa, ou pela degradação da pobreza, da injustiça e do sofrimento — a imagem de Deus e a graça do Cristo nas almas de homens e mulheres de todas as partes. Como a gu erra de Lúcifer contra Cristo e sua graça e salvação

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era universal, assim a guerra contra Lúcifer e seus seguidores tinha que ser igualmente universal.

Iñigo tinha, portanto, um princípio básico de ação: Quo universalius, eo

divinius. (Quanto mais universal sua ação, mais divina ela é.) Consequência imediata desse princípio foi que não podia se tratar de um

apostolado de um homem só. Desde sua conversão religiosa em 1521, ele agira sozinho. Agora, se quisesse prestar serviços de comunica ção naquela guerra, se quisesse ser tão divino quanto possível em sua efi ciência, teria que agir em conjunto, precisaria de uma equipe de homens que pensassem como ele, trabalhando com os mesmos objetivos que ele, mas no mundo inteiro.

Antes de deixar Paris em 1535, Iñigo já havia reunido aquele grupo básico de sete homens. Mas não podia, agora, se satisfazer com uma as sociação livre baseada na amizade e igualdade de ideais. Tampouco se contentava com apenas uma conversão religiosa e uma reforma da vida deles. Uma certa percepção — classifique-a de instintiva, se quiser — lhe disse: você tem que subjugar e transformar o intelecto, as convicções reli giosas, as percepções de si mesmo e do mundo, e todos os desejos de cada um dos homens. Tem que fazer isso de acordo com suas ideias do Reino de Deus e da guerra que cada um desses homens está travando por aquele Reino. Só assim eles irão prestar o serviço necessário e extremoso.

Além do mais, como a guerra que Iñigo se dedicara a travar era ex-clusivamente pela posse de almas, o espírito de cada homem e mulher do mundo era o galardão. A única arma garantida por Cristo como sendo eficiente naquela guerra era a graça sobrenatural que só Cristo podia e administrava exclusivamente através de seu representante pessoal vivo na terra: o papa em Roma. Iñigo tinha, portanto, um segundo princípio básico: trabalhar diretamente para aquele papa romano e sob o seu comando. Quanto mais preciso e íntimo for o elo de uma pessoa com o papa, raciocinava ele, mais íntimo será o seu elo com o líder , Cristo, e mais eficientes as ações dessa pessoa nessa guerra universal e perpétua.

Com esses princípios claros e bem definidos na mente, Iñigo impôs a cada um de seus sete companheiros iniciais o rigoroso regime de seus Exercícios

espirituais, porque aquele livro era e sempre continuou sendo seu principal instrumento de treinamento espiritual, como serviu para aque les que vieram depois dele. Cada um dos homens emergiu daquele regime que durou semanas como um lutador espiritual completamente conquis tado para a guerra, desejoso de uma unidade corporativa sob a liderança de Iñigo, e um servo obedientíssimo do papa.

A última faceta do empreendimento a ser examinada era a maneira de garantir a eficiência dessa nova corporação de homens engajados na guerra pelo mundo inteiro. Como poderia ele unir e solidificar um grupo de homens que poderia somar centenas, vivendo e trabalhando em todas as partes do mundo em tarefas diversas? Como poderia ele fazer com que homens individuais, separados por centenas ou milhares de quilômetros, com as comunicações entre si no mínimo difíceis, constituíssem uma or ganização

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uniforme e funcionando com perfeição? Aquela “uniformida de”, na mente de

Loyola, dizia respeito à uniformidade com os desejos e intenções do papa; e “funcionamento com perfeição” significava a execução exata das instruções do papa no espírito de Cristo. Como garantir isso tudo nas circunstâncias dissipadoras, com as grandes distâncias e o tempo necessário para se comunicar a distâncias assim tão grandes?

Sabiamente, Iñigo iniciou uma discussão desse problema com o seu grupo básico de sete homens: “Seria, ou não, mais vantajoso para o nos so objetivo ficarmos tão unidos e ligados em um só corpo que nenhuma distância física, não importa qual seja, nos separasse?” Foi esta a ques tão que eles debateram juntos.

Sob sua liderança, a decisão unânime de todo o grupo era perfeita mente coerente com a solução de Iñigo: obediência absoluta. A decisão foi de que eles, em conjunto, iriam colocar-se à disposição do papa para qualquer missão em qualquer parte do mundo, fossem quais fossem as condições, a qualquer hora, por mais curto e desagradável que fosse o aviso.

O primeiro princípio, então, era uma obediência incondicional a quem quer que fosse o papa, como ao próprio Cristo. Obediência tão passiva e tão disponível, nas palavras de Iñigo, “quanto a bengala de um velho ou quanto

um cadáver”. Eram estas as imagens dramáticas que ele usava para transmitir,

com a clareza que lhe era humanamente possível, a sua definição de obediência absoluta.

Essa orientação papal sem igual era, na verdade, a “missão” da So ciedade no seu sentido mais amplo, mais pleno e mais prático.

Iñigo colocou por escrito aquela proposta de unidade corporativa de seu novo instituto em absoluta obediência ao papa, e intitulou-a Fórmula do

Instituto, ou Primeiro Esboço da Instituição que ele e seus compa nheiros desejavam fundar. Essa Fórmula esboçava a estrutura fundamental da organização e autorizava a redação de leis e estatutos detalhados. Pos -teriormente, estes seriam redigidos por Iñigo e seriam chamados de as Constituições da Ordem dos Jesuítas.

Por enquanto, porém, a única tarefa que faltava era obter a aprova ção papal para aquela Fórmula. Só com essa aprovação é que eles poderiam tornar-se uma ordem religiosa católica.

No terceiro parágrafo da Fórmula, Iñigo descreveu a mentalidade e a atitude que ele imaginava — na verdade, exigia — para o jesuíta. É uma descrição que tanto os amigos como os inimigos dos jesuítas teriam reconhecido prontamente como um retrato perfeito do jesuíta que o mundo inteiro conheceu até às décadas dos sessenta e dos setenta deste século:

Todos aqueles que exercerem a profissão nesta Sociedade deverão compreender, na época de sua admissão, e além do mais ter em mente enqua nto viverem, que esta Sociedade e os membros individuais que nela exercem sua profissão estão em campanha em favor de Deus, sob fiel obediência a Sua Santidade o papa Paulo III e seus sucessores

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no pontificado romano. O Evangelho, de fato, nos ensina e sa bemos, pela fé ortodoxa, e sustentamos firmemente, que todos os fiéis em Cristo estão sujeitos ao pontífice romano como seu chefe e como o vigário de Jesus Cristo. Mas apesar de tudo julgamos que o procedimento a seguir será sumamente proveitoso para cada um de nós e para quaisquer outros que venham a adotar a mesma profissão no futuro, para o bem de nossa maior devoção em obediência à Sé Apostólica, da maior abnegação de nossa vontade própria e de uma direção mais segura por parte do Espírito Santo. Além daquele vínculo comum dos três votos, deveremos estar obrigados, por um voto especial, a exe cutar o que quer que o atual e os futuros pontífices romanos nos pos sam ordenar que se relacione com o progresso das almas e com a propagação da fé; e a ir, sem subterfúgio ou desculpa, tanto quanto for possível, para quaisquer províncias a que eles decidam nos mandar.

Obediência ao papa — de fato, nada menos do que um voto especial obrigando os jesuítas a fazerem o que o papa quisesse, em qualquer região do mundo —, assim se resumia um jesuíta desde o início. E assim nasceu o que pode corretamente ser chamado de jesuitismo, a completa submis são de tudo o que um homem é, pensa, sente e faz, a um ideal prático atingível no mundo que o cerca, em absoluta obediência e submissão à mente e às decisões do papa romano, o vigário de Cristo.

A mais preciosa cena na fiel memória jesuítica é plena de realidade e desejo devoto. Ela nos mostra um papa sentado numa cadeira de espaldar alto e cercado por onze homens ajoelhados: Iñigo e seus dez companheiros foram obter a bênção do papa para a sua “Companhia”. Naquele época e naquele

ambiente, os rostos daqueles onze homens eram estranhamente novos. Cada rosto era asceticamente magro e, no entanto, na da tinha do tradicional aspecto “monacal” ou “clerical”. Aqueles homens estavam, na nossa expressão

moderna, prontos para viver na selva de pedra. Sabiam o que se passava no mundo à sua volta.

Foi na manhã de 27 de setembro de 1540, num salão de recepções particular do Palácio dos Papas na colina Vaticano, em Roma. O papa era Paulo III, um Farnese dos nobres Farnesi e romano da gema; 73 anos de idade; seis anos no Trono de Pedro. Era esguio, de altura mediana, pele clara, olhos negros pequenos e vivos, um comprido nariz aquilino, a testa franzida do intelectual e uma barba grisalha cheia. Na cabeça, o camauro papal, um chapéu vermelho. Uma brilhante estola escarlate, a mozetta papal, cobria-lhe os ombros, e por baixo dela percebia-se o belo traje papal de cetim. Sua voz tinha tom grave e seus movimentos eram lentos. Com a mão comprida e magra, ele apresentou um documento que acabara de assinar.

Iñigo de Loyola, de nariz aquilino, rosto magro, baixo e quase careca, ergueu-se e se adiantou para apanhar o documento da mão do papa. Como os outros dez, ele usava uma batina limpa, surrada, preta. Sua perna direita estava deformada e ele mancava ao andar. Curvou-se sobre um dos joelhos, beijou o anel papal e apanhou o documento da mão do pa pa.

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Ninguém poderia prever, então, mas ao aprovar aquele documento A Fórmula do

Instituto, na qual Iñigo havia descrito a organização que ele queria colocar à disposição do papado — o papa Paulo III estava dando início à mais eficiente e mais leal organização que a Igreja Católica Romana criou em toda a sua história de quase 2.000 anos. O documento estava em latim e, como todos os documentos romanos desse tipo, unha como título as primeiras três palavras, Regimini Militantis Ecclesiae, O Militante da Igreja. Criava a Sociedade de Jesus e autorizava Iñigo a fazer uma convocação inicial de até sessenta novos membros.

Há vinte anos, desde 1520, todo o mundo católico de Paulo II vinha desmoronando à sua volta, numa conflagração ensurdecedora. A revolta protestante na Alemanha e na Inglaterra havia corroído a Fr ança, a Holanda, a Bélgica, a Áustria, a Suíça e a Tcheco-Eslováquia, e infetara todos os outros países. Havia destroçado a autoridade papal, que já fora aceita em âmbito universal; atacara, com sucesso, teorias católicas básicas a respeito do sacerdócio, da Eucaristia, dos Sacramentos, da graça e do cargo episcopal; esvaziara milhares de conventos e mosteiros; liquidara a unidade da fé católica; convertera nações inteiras à nova fé; e inspirara alianças militares e políticas visando à destruição física do papado de Paulo I I I .

Os esforços de Paulo III para deter a maré contra ele e reafirmar a fé tinham sido dificultados por uma larga e fétida faixa de corrupção cle rical que envolvia todas as categorias da Igreja, de obscuras freiras em conventos morávios até os empregados papais em Roma, uma corrupção tão difundida e aceita como normal, que provocou a ira e o ódio justos dos católicos que pensavam em reforma, e a revolta total de milhares.

Como armas espirituais e morais para defender a si mesmo e ao pa pado, Paulo III tinha apenas algumas sobras de épocas medievais. Or dens religiosas fundadas há muito tempo, com regras antiquadas para os trajes e atividades, animadas por um espírito restritivo, misturado a uma mentalidade opaca ao significado dos cataclísmicos acontecimentos à sua volta, atacanhado pelas tradições, sem capacidade para o vale-tudo da controvérsia nas ruas e nas praças. Procedimentos papais desajeitados, Burocracias papais inflexíveis. Métodos antiquados de pregação. Livros de doutrina expr essos em conceitos inacessíveis à mentalidade comum, num latim não entendido pelo ouvido popular, e em fórmulas latinas pouco compreendidas e mal adaptadas aos problemas atuais. Direitos adquiridos incrustados, visando apenas à autoperpetuação.

Nenhuma dessas armas era diretamente adaptável ou de utilidade ade -quada contra a nova e terrível ameaça ao papado e ao catolicismo roma no. O fogo universal continuava a devorar as velhas áreas católicas centrais.

Entra esse basco, chamado Iñigo, ou Inácio, o baixinho que mancava, junto com seus dez companheiros.

— Santo padre — podemos parafrasear com exatidão a proposta obs -tinada deles a um Paulo III sitiado —, o papado e a Igreja Católica Romana

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estão numa angústia mortal. É preciso uma arma moderna para lutar nesta guerra totalmente nova. Dê, a nós que somos um grupo de companheiros, uma carta constitucional como nenhuma carta dada antes a uma ordem religiosa de homens. Livre-nos da estrita vida monástica, de suas regras, de seus trajes formais, de seus métodos tradicionais. Faça- nos independentes de todas as autoridades locais e diretamente responsáveis somente a Vossa Santidade. Organize-nos como um grupo especial de homens do papa, de seus soldados. Com um novo propósito: servir sob as ordens de Vossa Sant idade, o pontífice romano, para defender e propagar a Fé. E deixe-nos vincular-nos de forma nova a Vossa Santidade e a todos os sucessores de Vossa Santidade ao papado. Permita que façamos um voto especial de obediência absoluta, sobre o nosso juramento sagrado, diretamente a Vossa Santidade, de que, sem hesitação ou protesto, iremos a qualquer parte, a qualquer hora e com qualquer risco pa ra a vida e o nosso conforto, a fim de fazermos o que quer que Vossa Santidade ache necessário para a defesa e a propagação da fé.

— Nisso há a mão de Deus! — diz-se ter sido a resposta de Paulo. Era, afinal, exatamente daquilo que ele precisava. Assim, formalmente e com a assinatura papal, o papa aprovou a nova “Companhia”, como Iñigo chamava a si mesmo e seus dez companheiros. Na verdade, ele a chamava de Companhia de Jesus. O nome passava pelo latim Societas Jesu, e saía do outro lado como Sociedade de Jesus ou — um apelido derrisório que seus inimigos lhe deram logo — os jesuítas.

Em 1542, Iñigo já estava instalado na primeira casa jesuítica em Roma, um velho prédio de pedra no Borgo Santo Spirito. Num curto espaço de tempo, ele conseguiu construir uma residência na qual contava com três pequenos cômodos, de teto baixo, à sua disposição. Do outro lado da rua, em frent e à casa, havia uma pequena capela dedicada a Santa Maria della Strada. Naquele ambiente, no centro de Roma e bem perto do Palácio Apostólico em que morava o papa, Iñigo iria viver, trabalhar, morrer e ser enterrado.

Iñigo estava, agora, com 51 anos de idade, com uma saúde muito fraca, mas com uma feroz capacidade de trabalho. Dormia muito pouco. Seus dias passavam em duas ocupações: redigir as Constituições e administrar as crescentes atividades da Sociedade de Jesus que se expandia, por meio de volumosa correspondência. Naqueles últimos quatorze anos de sua vida, ele escreveu e ditou mais de sete mil cartas, todas assinadas por ele. Recebia extraordinárias graças místicas e praticava um tipo de contemplação espiritual que não teve outro maior do que ele registrado na história da espiritualidade. Ao mesmo tempo, estava imerso em deta lhes concretos, em decisões práticas. Contemplação e ação pareciam enredar-se à perfeição em seu ser, de modo que só podemos nos maravi lhar diante da justeza de julgamento que o entrelaçamento perfeito produzia.

Temos conhecimento de detalhes suficientes sobre o seu intenso tra balho durante aquele último período de sua vida — nada era fácil para

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Iñigo; ele literalmente labutava e suava estudando cada detalhe — de modo que o seu método de projetar as Constituições de sua Sociedade se torna muito claro para nós.

Basicamente, era um processo simples, mas exigia espírito gigantes co para executá-lo com sucesso e não terminar num narcisismo horrível, auto -enganador, e um paroquialismo sufocante. Ele analisava minuciosamente suas próprias reações a acontecimentos no mundo que o cercava que afetavam profundamente a sua época. Depois, formulava a verdade central daquelas reações de uma forma impessoal, descartando o que era particul ar e passageiro, elevando aquelas reações a um plano universal a fim de que, como princípios de ação, elas se tornassem aplicáveis por outros homens — seus seguidores e membros de sua Sociedade, por toda a comunidade de nações em culturas radicalmente diversas e eras vastamente diferentes. Ele criou, assim, um dos mais eficientes sistemas organizacionais que o mundo já viu.

Mas tudo isso ele só realizou porque estava disposto a pagar o custo humano em termos de sua própria autodisciplina e sua auto -abnegação. A fim de chegar a ideias e princípios de ação universalmente válidos, ele havia dissecado, literalmente e sem piedade, suas próprias reações aos acontecimentos de seu mundo contemporâneo, abandonando o que fosse puramente subjetivo, egoísta, provinciano. Aquela fria análise pessoal cobrou dele um tributo próprio, como fez a desgastante paciência com de moras da burocracia clerical e das intratáveis paixões de corretores de poder eclesiástico na Roma dos papas.

Além de seu trabalho diário nas Constituições, havia as exigências de seu posto como líder e supremo tomador de decisões na jovem Socie dade que, muito rapidamente, obtinha alcance global. Necessariamente, Iñigo tinha que tomar decisões em vista das condições internacionais de sua época. Os fator es políticos dominantes não apenas ditavam suas linhas de ação; provocavam nele reações políticas quando se tratava da religião. Por exemplo, a menos que o tumulto na Alemanha fosse pacificado, a Europa não ficaria em paz, declarou Iñigo; seu enviado à Alemanha, Peter Canisius, recebeu devidamente suas instruções quanto ao que ele, Canisius, como jesuíta, poderia fazer naquela pacificação.

Outro exemplo: a existência da Europa Cristã e suas comunicações com o Novo Mundo e com o Extremo Oriente estavam ameaçadas pelo islamismo. O imperador Carlos V, o mais poderoso regente cristão na épo ca de Iñigo, foi aconselhado por Iñigo a enviar uma esquadra para o Mediterrâneo oriental.

A concentração de homens e recursos, por parte de Iñigo, na Índia, no Japão, na China, na Etiópia, no Congo e no Brasil foi prática e deli berada e encontrava justificativa exclusivamente na percepção de que, pela primeira vez em sua história, a Igreja Romana tinha uma chance quase exclusiva de se tornar verdadeiramente universal.

Sua atenção, portanto, estava dirigida a questões que ultrapassavam os indivíduos e os interesses ligados a vastos espaços de terra e a povos

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inteiros. Cuidar de uma organização dedicada a tais atividades não é a mesma coisa que cuidar de um indivíduo. O impessoal estava, com frequência, em concorrência com o pessoal; com a mesma frequência, era o bem impessoal de toda a Sociedade que tinha que ganhar o pessoal. Es te é sempre o ponto crítico nas organizações e instituições.

Em 1551, ele já terminara um primeiro rascunho das Constituições, ¹ e em 1552 um grupo de jesuítas em quantidade para dar peso à decisão, reunido por ele em Roma, aprovou em caráter preliminar a minuta como sendo um modelo experimental. O documento entrou em vigor de imediato. Iñigo continuaria a incorporar novos elementos a ele até morrer em 1556. 2

Todo aquele processo de fundar e administrar a sua Sociedade e sem pre estar de olho no quadro maior da Igreja universal, teve um efeito ine vitável sobre Iñigo, provocando gradativamente uma a lteração bem evidente para seus íntimos companheiros em Roma.

À medida que ia ficando mais velho, aqueles que o cercavam comen tavam sobre a feição tranquila, quase inexpressiva, que seu rosto assumia durante todas as extenuantes rodadas diárias de cartas a serem ditadas, consultas a seus assessores, documentos a serem compostos, decisões in flexíveis a serem tomadas sobre a designação de jesuítas para esta mis são, aquele trabalho e aquela outra tarefa. Decisões, sempre decisões, e praticamente sempre tomadas tendo como condicionantes as normas papais, a política local e a logística da viagem e das comunicações a serem tomadas — isso lhe enchia os dias.

O efeito de tudo isso sobre ele se tornava cada vez mais óbvio. Du rante alguns anos antes de sua morte , seus companheiros tiveram a impressão de que o rosto, a voz e a aparência que eles tinham conhecido como sendo de Iñigo haviam desaparecido. Sentindo que seu pai — assim o chamavam — iria morrer em breve, providenciaram para que um dos conhecidos pinto res da época, Giambattista Moroni, fizesse um retrato dele a óleo.

Iñigo não iria aprovar, disto seus companheiros estavam certos. Por isso, fizeram Moroni entrar na casa escondido. Para pintar o seu mode lo, o artista espiava por uma porta entreaberta quando Iñigo estava dormindo em seu quarto nas horas da sesta. Moroni, cujos retratos são famosos e hoje se encontram expostos em museus e galerias de Detroit, Minneapolis, Cleveland, Chicago, San Francisco, Washington, Londres, Paris e em outros lugares, r asgou cinco tentativas de pintar Iñigo e desistiu. “Deus não quer que esse homem seja

retratado”, foram suas palavras ao se retirar. Apesar de toda a mudança que sofreu, Iñigo não se tornou um iceberg de

frieza inabordável, nem um autômato arrogante e r eservado, impermeável a emoções. Muito pelo contrário, na verdade. E o amor e veneração de seus companheiros aumentou.

Quando alguém foi lhe dizer, um dia, que um inimigo declarado da Sociedade, o cardeal Gian Pietro Carafa, tinha sido eleito papa Paulo I V,

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Iñigo ficou visivelmente abalado. “Sua fisionomia se alterou e, como fi quei sabendo pouco depois,” nos diz um de seus biógrafos e de seus ínti mos, “seus

ossos vibraram. Ele se levantou sem dizer uma palavra e foi para a capela rezar.” No fim, Paulo IV mostrou que não era tão hostil assim. Como papa, ele descobriu o que suas ambições e sua atividade mundana como um Carafa não lhe tinham permitido ver: Iñigo e seus jesuítas eram uma dádiva caída do céu para o seu papado.

E Iñigo nunca perdeu o toque de intimidade pessoal com aqueles que o cercavam. Com base em palavras escritas sobre ele por homens que o conheciam bem, podemos ver seus olhos se iluminarem com compreen são; seus lábios podiam se abrir num luminoso sorriso de puro prazer; mas acima de tud o sua expressão nunca perdeu aquele profundo reflexo de luz interior que cada um dos membros de seu séquito competia com os outros para ver todos os dias.

Cada um dos companheiros de Iñigo era testemunha de seu gênio e participante da reverência da presença da santidade que o acompanhava a toda parte. Alguns costumavam encontrá-lo sentado no telhado da casa à noite, olhando para as estrelas silenciosas, lágrimas correndo-lhe pelas faces. Outros estavam presentes quando ele rezava a missa e ficavam dominados pela emoção diante de sua reverência ao tocar na Hóstia e no Cálice. Outros, ainda, ouviam -no aconselhando os desobedientes e os teimosos, e sabiam que aquilo era o mais perto que poderiam chegar ao alcance dos tons e do espírito de Jesus ecoando numa voz humana. “Não cederei a criatura alguma da face da terra de

Deus”, disse ele a um recalcitrante membro de sua Companhia, “em meu amor

por você.” Um dos homens de Iñigo persuadiu-o a ditar os detalhes simples de uma

autobiografia. Ele começou em 1553, mas trabalhou apenas em trechos curtos. Revelou certos detalhes torturantes de como Deus favorece ra sua alma com conhecimentos dos mistérios do ser divino — sobre o amor interior das Três Pessoas Divinas, que inundava o seu ser durante sua estada no santuár io espanhol de Manresa e às margens do rio Cardoner em 1522; sobre as pessoas de Jesus e sua mãe, Maria, e sobre o servi ço futuro de Iñigo a eles quando ele passou a entendê-lo no santuário à beira da estrada, La Storta, a 24 quilômetros de Roma, em 1527; sobre a natureza do jesuitismo como forma de serviço pessoal a Deus através do papa, apurada por ele ao longo daquele período de quatorze anos enquanto compunha as Constituições e guiava sua Companhia de servidores.

No entanto, sua linguagem ao descrever tudo aquilo era tão esparsa, que só desperta na gente uma fome que sabemos nunca será satisfeita, pelo menos do lado de cá da eternidade. Como seus primeiros compa nheiros, nunca se terá conhecimento da tessitura de seu êxtase vivo ou da fibra de suas int enções.

Presume-se que Iñigo tinha suas razões para ser reticente — uma razão prática, pelo menos. Seus homens deveriam ser ativistas — “contemplativos em ação” é a frase consagrada. Ele não queria estabelecer como exemplo

relevante de espiritualidade jesuítica a forma mais elevada de oração

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mística. Nem todos podiam praticar isso e ainda, como ele, levar uma vida plenamente ativa. A atração inerente da contemplação mística e da absorção em Deus pode paralisar e eliminar todo o desejo e inclinação de te r alguma coisa a ver com o mundo material.

Fossem quais fossem as mudanças que ocorreram nele ao longo dos anos, Iñigo continuou simples até o fim; gostava que todos os chamas sem de Iñigo. Não se incomodava se zombassem dele, como quando um jovem protegid o seu, Pedro Ribadineira, que mais tarde se destacou como um perfeito jesuíta, seguia atrás dele imitando o seu mancar. Iñigo gostava daquilo, mantendo-se sério como parte de seu papel na brincadeira.

Ele nunca perdeu o seu senso de humor ou o seu sentimento pelos outros. Certa vez, quando as finanças do grupo estavam em baixa, o cozinheiro serviu um jantar pobre, de ovos fritos acompanhados de palitos, observando com ironia que os palitos poderiam vir a ser muito úteis. Iñigo achou a observação hilariantemente cômica, nas circunstâncias. Quando havia bastante comida, por outro lado, ele gostava de convidar para a mesa um membro da Ordem já bem obeso; ele tinha satisfação em ver o homem comer bem.

Ele mesmo comia pouco, por princípio, e bebia muito pouco vinho; mas fazia piadas sobre a sua dieta. Durante um ataque muito doloroso do que parecia gastrenterite, o cozinheiro lhe ofereceu um pouco de vi nho. Iñigo, sagaz, citou uma frase de São Paulo, modicum vinum non nocet (um pouco de vinho não faz mal), mas substituiu, rindo, a palavra vinum por venenum.

Mas com isso tudo, a erosão de si mesmo continuou para Iñigo. De fato, a verdadeira fonte da alteração em sua aparência era o cada vez maior esgotamento de toda consideração por si mesmo. Sua morte, quando c hegou, estava em concordância com isso.

O trabalho em torno do gabinete de Iñigo na quinta-feira, 30 de julho de 1557, era intenso, porque na sexta o correio partiria para a Espa nha. Já havia jesuítas trabalhando na Espanha, em Portugal, no Japão e no N ovo Mundo. O correio tinha que pegar os navios da Mala Real que saíam da Espanha e de Portugal para aquelas partes distantes do mundo.

Havia três dias que Iñigo vinha sofrendo intensamente de um ataque de vesícula. Mas enfrentou o trabalho do dia. Em meio à redação de uma carta muito difícil, na tarde daquela quinta-feira, porém, uma onda de saliva provocou um gosto caracteristicamente amargo em sua boca. Ele sabia o que aquilo significava.

Comunicando a seu secretário, padre Polanco, que estava para mor rer, Iñigo pediu a ele que atravessasse correndo a praça de São Pedro e fosse procurar o papa, para obter a bênção de Sua Santidade.

O secretário, sem acreditar nele, esquivou-se estupidamente, alegando a pilha de serviço a fazer, prometendo que conseguiria a bênção no dia seguinte, sexta-feira.

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— Eu preferiria que você a conseguisse hoje — respondeu Iñigo —, mas faça o que achar melhor.

A correspondência foi despachada a tempo. Pouco depois da alvorada, na sexta-feira, 31 de julho, Iñigo gritou

rezando. Era frequente ele rezar em voz alta enquanto dormia, porém, e por isso ninguém ligou.

Quando o enfermeiro destacado para tomar conta de Iñigo verificou suas condições ao amanhecer, viu imediatamente que o doente estava em sua agonia final. Polanco, chorando, correu para obter a bênção papal. Ele a levou de volta tarde demais. Nem a bênção papal nem o Óleo Sa grado da Extrema-Unção seriam de Iñigo enquanto ele ainda estivesse vivo e consciente.

Sua partida para longe de seus companheiros e do mundo foi teste -munhada apenas por dois jesuítas. O retraimento da pessoa que era Iñigo estava completo. Quando o mundo todo passasse a saber de sua existência, seria como Inácio de Loyola. Nove entre dez pessoas comuns, e três entre cinco jesuítas não iriam nem mesmo saber o seu verdadeiro nome.

Após a sua morte naquela sexta-feira, seus companheiros que ficaram tentaram outra vez — várias vezes, na verdade — mandar fazer um retrato de Iñigo. Chamaram o famoso artista Jacopino del Conte, um ex- penitente de Iñigo. Um membro desconhecido da comunidade mandou fazer uma máscara mortuária; e com base nessa máscara Alonzo Sánchez Coello, pintor da corte do rei Filipe II da Espanha, tentou reproduzir um retrato de Iñigo. Mas nem del Conte nem Coello tiveram sucesso onde Moroni fracassara anos antes. Todos aqueles que tinham conhecido Iñigo intimamente durante tanto tempo examinavam as tentativas. “Não”, diziam eles, “este não é o nosso pai.”

Juravam que nenhum daqueles dois trabalhos nem a própria máscara mortuária eram remotamente parecidos com Iñigo em vida; que nenhum deles captara o seu ar tenso de energia incansável e de infinita determinação. Sentimos falta, reclamavam eles, da paz e da calma que cobriam suas feições aristocráticas.

Os retratos tradicionais de Iñigo são, segundo aqueles que o conheceram, “fictícios”. Foi como se o desejo que ele tinha de ser o irreconhe cível, o despersonalizado — se possível, o desconhecido — arquiteto de sua Companhia fosse atendido por um afetuoso Senhor Jesus que dá à humildade e ao recato em suas criaturas um valor maior do que a qualquer outra realização humana.

Na noite de sábado, 1° de agosto, os restos mortais de Iñigo foram enterrados na pequena capela de Santa Maria della Strada, em frente à casa que ele ocupara nos últimos dezesseis anos de vida. Em 1587, a capela foi substituída pela famosa igreja jesuítica do Gesù, e seus despojos foram ali enterrados. Mal haviam se passado setenta anos de sua morte, ele foi canonizado como santo pelo papa Gregório XV.

O preço do enorme sucesso de Iñigo foi alto apenas em termos humanos. Já antes de sua morte em 1556, os jesuítas só em Roma chegavam a cerca de 150; a Ordem possuía mais de cem casas em doze regiões dife rentes

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do mundo. Iñigo havia fundado 35 faculdades para a educação superior da juventude. Os jesuítas trabalhavam em lugares tão distantes um do outro quanto o Japão e o Brasil, estavam penetrando em países tão opacos à mentalidade do século XVI quanto a Etiópia, e eram aceitos em todas as principais assembleias da Igreja como vozes autênticas da doutrina e da autoridade do papa católico romano.

O futuro de sua Sociedade estava tão garantido quanto o de qual quer outra instituição da Igreja existente. Iñigo tivera capacidade de escolher o homem certo para o trabalho certo na hora certa e enviá-lo para o lugar certo. Mandou um holandês fleumático, Pie ter de Houndt, mais conhecido pela forma latina de seu nome, Peter Canisius, para a Alema nha em 1550, com dois únicos companheiros. Quando Canisius morreu em 1597, deixou atrás de si 1.110 jesuítas naquela área e uma cadeia de colégios jesuítas na Áustria, Alemanha e Hungria, e havia recuperado províncias inteiras do protestantismo. Imperadores, reis e governos que ainda estavam por nascer tiveram que contender com o que Canisius forjou décadas e séculos antes de eles entrarem em cena.

Fundamental e intimamente, entretanto, foi Iñigo, lá na sua pequena casa de pedra em Roma, a causa disso, como foi do sucesso singular da Sociedade de Jesus no mundo inteiro e pelos séculos afora .

Sejam quais forem as realizações dos jesuítas, e sejam quais forem as mudanças e adaptações que a Sociedade de Jesus decidir fazer na pas sagem dos séculos e na sucessão de novas eras do desenvolvimento huma no, será possível discernir o real valor dessas realizações, mudanças e adaptações usando-se uma norma, e apenas uma norma. Esta é a conformidade dos jesuítas — como Ordem e como indivíduos — ao papalismo original de Iñigo expresso naquela Fórmula do Instituto.

No dia em que houver guerra entre o papado e a Ordem dos Jesuí tas, nesse dia pode-se ter a certeza de que os membros da Sociedade re nunciaram ao modelo peculiarmente inaciano e tomaram um caminho que Inácio e a Igreja nunca determinaram para os jesuítas.

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Q

uando Iñigo de Loyola recebeu seu mandato de Paulo III e se instalou em sua casa romana com os primeiros companheiros, o mundo que ele conhecia era estarrecedoramente parecido com o nosso em muitos pontos. Se qualquer um de nós, hoje, fosse andar pelas mesmas ruas pelas quais ele andou e conversar com as pessoas que ele conhecia, é provável que fosse sentir -se bem à vontade na volátil mistura de mentalidade desbravadora e temor de guerra e de extermínio. Mas a solução de Iñigo para os problemas que o mundo apresentava já estava clara em sua mente; e essa solução era estarrecedoramente diferente de qualquer outra já apresentada, e de qualquer outra que jesuítas imaginaram e implementaram nos últimos vinte anos deste século.

É precisamente nessa diferença que se pode ver com maior nitidez o lendário sucesso do jesuitismo inaciano — o modelo inaciano da Sociedade e de cada um de seus membros.

Se fosse possível um moderno repórter apresentar um daqueles do -cumentários in loco sobre o mundo que Iñigo enfrentou entre 1521 e 1556 , iria levar suas câmeras de televisão e seus microfones sobre rodinhas a qualquer número de centros mundiais e levaria em consideração toda uma série de revoluções estonteantes. Na Espanha, França, Holanda, Bélgica, Inglaterra, Alemanha e Itália, ele iria gravar entrevistas in loco com o Novo Homem de olhos brilhantes, rebelde, onicurioso, de tendências ro mânticas, da Renascença europeia, para o qual todas as questões estavam em aberto. Em toda parte, o repórter iria registrar espanto e expectativa. Acima de tudo, iria registrar o senso empreendedor que os homens tinham de realizações e descobertas totalmente novas que dominavam e, às vezes, confundiam a geração à qual Iñigo pertencia.

“O que é que está acontecendo?” De uma forma ou outra, esta seria a

pergunta que o nosso repórter faria em cada lugar aonde fosse. E não é difícil imaginar as respostas que iria receber.

Na Alcalá, na Salamanca e na Barcelona da Espanha de Iñigo, ele não iria ouvir falar sobre múltiplas sondagens de Vênus, é claro, ou de

7. O MODELO INACIANO

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planos para operações de mineração na lua ou avanços científicos na microbiologia e na genética. Mas em resposta à sua pergunta “O que é que está

acontecendo?”, iria descobrir o nosso mesmo senso de descoberta e expectativa

de grandes mudanças: “Ora, você não soube? Descobrimos um mundo estranho além de nossos mares ocidentais! Está cheio de recursos que irão mudar nossas vidas para sempre, e de criaturas que não sabíamos que existiam. Ora, é a criação da noite para o dia, de todo um novo império! É de deix ar a gente louca!”

Em Paris, onde Iñigo havia estudado, e nas faculdades teológicas em outras partes da França, Holanda, Inglaterra e Bélgica, a conversa não seria sobre a Teologia da Libertação, como é nos nossos dias, ou sobre os direitos das mulheres na Igreja, ou sobre o Povo de Deus como a última fonte da eterna salvação e a única de confiança. Mas haveria equivalentes religiosos e teológicos muito próximos: “Ora, você não soube? Um monge alemão,

Martinho Lutero, e o rei inglês, Henrique VIII, desafi aram Roma! Eles dizem que querem nos libertar da superstição papista, livrar nossas mentes da escravidão a falsas doutrinas fabricadas pela mente alatinada. Dizem que iremos converter o mundo, agora que sabemos que a Igreja e o papa não têm mandato de Cristo e nenhuma doutrina a nos ensinar exceto o que está na Bíblia. É de deixar a gente louca!”

Da mesma forma, na Gênova e na Veneza da época de Iñigo, “O que está

acontecendo?” não provocaria comentários sobre mísseis sovié ticos instalados na Europa Oriental, ameaçando a destruição nuclear do Ocidente, ou sobre a OTAN como a defesa “do Ocidente” contra o “Les te”. Mas o temor geopolítico

não era tão diferente assim: “Ora! Você não ouviu falar dos turcos? Todo o

nosso mundo cristão poderia ser extinto pelo sultão otomano e seus turcos de Constantinopla que odeia os cristãos. O que está acontecendo é nada menos do que a guerra pela sobrevivência da cristandade — a vida ou morte do coração cristão. É de deixar a gente louca!”

Se o nosso repórter frequentasse, como fizera Iñigo, os salões e as casas dos muito ricos — os aristocratas, o clero mais graduado e as classes privilegiadas — iríamos ouvir o que Iñigo tinha ouvido. Ele iria es barrar com toda a força no individualismo desenfreado estimulado, até se t ornar uma chama brilhante, pela redescoberta da literatura e da civili zação greco-romana. Iria reconhecer e concordar com a moda renascen tista de “humanizar” todas as

coisas. E como um homem do século XX, iria sentir -se perfeitamente à vontade.

Frases como “crescimento criativo para a integração” e “Cristo, o

Revolucionário Combatente pela Liberdade” não eram ditas naquela épo ca. E não havia discussões sobre os benefícios sociais do aborto e da eu tanásia legalizados.

Mas falava-se muito sobre um Jesus transformado à la Grecque num belo Apolo ou num sábio Platão. Sobre Deus, o Pai, sendo chamado de Pai Zeus; e o Céu, de Campos Elíseos; e os anjos e santos, de ninfas e

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dríades; e o Inferno, de Hades governado pelo infernal cão de caça Cérbero. “Ora!”, qualquer pessoa poderia responder à pergunta do repór ter, “Você não

soube? A vida toda é, no final das contas, exatamente o que os gregos antigos diziam que era: uma peça de acontecimentos caprichosos e fortuitos. Tudo se resume a nada mais do que o choque entre príncipes temporais. Inclusive o papa. É de deixar a gente louca! Finalmente o homem percebeu que o que interessa é quem sai vencedor no entrechoque dos impérios — os ingleses, os franceses, os espanhóis, os venezianos, os austríacos, os alemães. E se você quiser saber o que significa bondade, significa ser rico. Mal significa ser pobre. A pobreza é a essência do mal.”

Depois que o nosso repórter tivesse feito todas as entrevistas, depois que as fitas tivessem sido montadas e terminado o roteiro, o seu resumo final da busca do homem de conquistar e dominar o seu cosmo não trata ria de coisas como Fundo Monetário Internacional, comunicações globais, os Jogos Olímpicos, o crescente consenso sobre as finanças e o comércio internacionais, ou a exploração econômica do espaço sideral. O que ele iria destilar como as atitudes proeminentes, porém, soaria aos nossos ouvidos como um acorde familiar e até agradável: “O que este repórter encontrou foi a verdade ainda

viva que nos foi dada pelo antigo filósofo gr ego, Pitágoras. O homem é, afinal, a medida de todas as coisas. Este repórter viu isso na nova teologia. Também vi isso na tensa situação internacional entre o “Leste” e o “Oeste” — lenta, dolorosamente, cristãos e turcos estão tentando encontrar uma man eira de cada um viver a sua vida. Acima de tudo, porém, eu vi isso nas maravilhosas aventuras gêmeas da nova ciência que desabrocha em Paris, em Cambridge, em Bolonha e em Göttingen; e nas descobertas de novíssimas terras estranhas. O homem está apenas começando a medir forças com imensos horizontes novos através de viajantes no Oriente, na África e no Novo Mundo. Até a medir forças com as estrelas no céu através dos novos astrônomos. O mundo do homem da Renascença já não tem a Terra como centro. O ho mem está finalmente partindo por conta própria para conhecer e domi nar o seu cosmo. Todo ele!”

Num sentido muito verdadeiro, quando Iñigo de Loyola começou o minucioso trabalho de formar a sua Sociedade de Jesus, já fizera aque la mesma pergunta: “O que é que está acontecendo?” Já tinha visto e ouvido tudo o que o

nosso repórter imaginário teria visto e ouvido. Ele compreendia a fascinação de seus contemporâneos pelas poderosas aven turas, descobertas e novas liberdades; e os sentimentos muito confusos que acompanhavam tudo aquilo.

O que o interessava, entretanto, não era uma simples descrição jor -nalística de novos acontecimentos e de novas reações a eles. Ele não via uma nova teologia de humanismo levando a uma nova era do homem no horizonte. Tampouco estava preocupado com a interminável guerra en tre o seu mundo cristão e o Império Turco.

Enquanto a maioria das pessoas apenas se preparava para medir for ças

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com o pano de fundo da novidade, que se ampliava, Iñigo já pensava em termos universalistas e na condição de todo o cosmo do homem.

Para ele, tudo recuava para o único elemento comum em todo o vas to oceano de mudanças; o único elemento que, em sua essência, nunca mudava: a guerra cósmica entre Deus e Lúcifer. Assim como em todas as épocas antes da dele, aquela guerra ainda estava sendo travada em toda parte e todos os dias. Ela impregnava todos os acontecimentos, todos os elementos de agitação, de expansão. E dizia respeito a apenas uma coisa: a salvação eterna de todo ser humano.

Através da morte sacrificial e da ressurreição de Cristo, e pela fundação da Igreja Católica Romana, Deus tornara possível que todo ho mem e toda mulher fizessem opções piedosas em vida, e por intermédio dessas opções alcançassem o Céu depois da morte. Naquela guerra cósmica e constante, Cristo era o líder da campanha de Deus; e o represen tante pessoal e visível de Cristo entre os homens era o papa romano. O objetivo de Lúcifer na guerra — o objetivo de Satã como adversário — era garantir que o maior número possível de seres humanos não atingisse aquele objetivo eterno do após -vida.

A menos que se admita que essa guerra cósmica era tudo o que realmen te tinha importância para Iñigo, que ela era muito mais importante e verda deira do que a guerra entre cristãos e turcos, não se t erá como compreender como Iñigo foi bem-sucedido em seu empreedimento. Ele interpretava não apenas a sua história contemporânea mas também o que ele sabia do passado e o que planejava para o futuro à luz daquele paradigma. O que realmen te estava acontecendo era aquela guerra, e era ela o que importava de verda de. E foi a sua compreensão daquela guerra que lhe deu a sua firme inde pendência das reações vigentes e fragmentárias de sua geração às mudanças de fundamental importância sofridas pelo mundo daquela geração. Por sua vez, foi aquela independência de pensamento que lhe possibilitou criar o modelo inaciano para a sua Ordem e seus membros individuais.

Não que a sua visão da guerra fosse, em si, inovadora. Sua ideia de batalha entre Deus e Lúcifer como a suprema realidade da vida humana era o ensinamento muito antigo e autenticamente cristão segundo o qual cada ser humano é o acalentado objetivo daqueles dois agentes que lhe são exteriores: Deus e Lúcifer. Para a espiritualidade de Iñigo era funda mental a crença dogmática de que, enquanto vivo neste mundo, ninguém pode escapar das atenções constantes de Deus e de Lúcifer.

Por antiga que fosse essa crença, entretanto, ela estava sendo traga da numa única geração pelo novo fascínio que homens e mulheres encontravam no aqui e no agora; numa vida temporal mais emocionante do que nunca; na pressa de adaptar-se àquela vida e mudar com ela; e acima de tudo, no novo grito humanístico da Renascença de que “o homem é a medida de todas as coisas”.

Para Iñigo, o próprio grito apontava para um deslocamento da campanha corrente da guerra constante. Aquilo era a mais recente manobra de Lúcifer, a sua versão moderna de “Não me submeterei”.

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Inácio via sua Igreja Católica Romana e seu papado como objeto de páthos naquela súbita fase nova da guerra. Não houvera tempo, no abrupto desabrochar do novo mundo da Renascença, para que a Igreja e o papado criassem instrumentos hábeis e específicos para enfrentarem problemas que nunca os haviam assediado antes.

Não há dúvida de que a Igreja já possuía uma maravilhosa plêiade de ordens religiosas. Mas nenhuma delas fora formada ou treinada até mesmo para compreender, e muito menos enfrentar, as tarefas que agora se apresentavam com tanta urgência. Uma famosa ordem religiosa da época de Iñigo, por exemplo, tinha como objetivo constitucional a liberta ção de reféns mantidos em escravidão pelo “Infiel”. Outra, a dos domi nicanos, era primordialmente uma ordem para ensinar e pregar. Os franciscanos tinham por profissão celebrar a glória e a alegria da pobreza como sinal do amor de Cristo por todos os homens e da sua intenção de salvá-los das armadilhas dos vínculos terrenos. Outras ordens, tais como a dos beneditinos, dos carmelitas e dos cartuxos, foram formadas para levar uma vida pelo menos parcialmente afastada do trato com o mundo movimentado dos homens e para se ocuparem em cantar louvores a Deus, rezar individualmente e, assim, aperfeiçoar suas almas. Mais de uma ordem foi fundada como corpo de defesa para os lugares santos da c ristandade em Jerusalém e outras partes do mundo. Outras ordens ainda fo ram fundadas para executarem serviços de enfermagem, hospitalares e para aquilo que os cristãos sempre chamaram de obras de caridade — cuidado com os moribundos, com os indigentes e com os famintos; organização de centros de reabilitação de prostitutas, colônias de leprosos e abrigos noturnos.

O detalhe para Iñigo, porém, era que toda ordem religiosa romana foi constitucionalmente formada com apenas um determinado objetivo. Os membros de cada uma delas se aperfeiçoavam apenas para cumprir sua finalidade específica. Além disso, todos os membros de uma ordem deviam, normalmente, viver, trabalhar e morrer em determinadas casas e comunidades, suas vidas reguladas por normas específicas detalhadas em Constituições. E embora as Constituições de cada ordem fossem examinadas e aprovadas pela autoridade papal, uma vez feito isso nem mes mo um papa podia ou iria normalmente violar o modo de vida de uma ordem ao requerer que seus membros agissem fora das tarefas específicas daquela ordem.

Tanto quanto Iñigo podia perceber — o que era mais do que qualquer outra pessoa de sua época — aquilo deixava a Igreja e o papa trancados numa estrutura verdadeiramente medieval de rígidas ordens reli giosas no exato momento em que a mais dolorosa característica da guer ra era a estonteante variedade de novos problemas introduzidos no com bate.

Armado com a coragem de pensar como ninguém havia pensado an tes dele — sempre uma coisa perigosa de se fazer — e com uma notável versatilidade nesse pensamento, o que Iñigo propôs foi tão verdadeira

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mente revolucionário quanto qualquer outra coisa da revolução mundial que o rodeava. Ele argumentava que aquela plêiade compacta de diferen tes problemas que estava diante da Igreja exigia um novo corpo de voluntários sem precedente, que se dedicassem profissionalmente a lutar ao lado de Cristo. Eles teriam que ser treinados não para uma tarefa, mas para centenas. E não poderiam ficar confinados a uma casa ou comunidade, mas teriam que estar dispostos a ir aonde a luta os levasse. Às vezes ainda seria exigida uma vida sedentária; o próprio Iñigo nunca saiu de Roma depois que Paulo III aprovou o seu plano. Mas com a mesma frequência, uma estratégia de deslocamento rápido seria a chave do sucesso. A “especialidade” deles, em outras palavras,

seria a capacidade de desempenhar qualquer tarefa com perfeição, de imediato, tão logo estivesse envolvido o interesse vital da Igreja.

A primazia, entretanto, não era da versatilidade ou da mobilidade da Ordem, mas do seu propósito único, a primeira e única razão de sua existência: ser uma unidade de combate de elite, ao lado de Cristo — e, portanto, ao lado do representante de Cristo, o papa — na guerra entre Cristo e Lúcifer. Esse Romanismo, como passou a ser chamado às vezes, seria, portanto, a primeira marca de excelência preeminente do modelo jesuítico, um romanismo que iria significar algo de diferente para os jesuítas em relação a qualquer outra ordem religiosa. As outras, também, estavam sujeitas à autoridade do papa romano, afinal de contas — nesse sentido, eram romanistas. Mas por isso mesmo seus vários regulamentos determinavam aquilo que qualquer papa podia e normalmente iria lhes pedir. O romanismo deles tinha limites.

O romanismo de Iñigo era total. Ele queria atender à única exigência nova do papado, ou seja, a sua urgente necessidade de poder chamar qua dros de homens religiosamente treinados e religiosamente dedicados e po der, o mais rapidamente possível, lançá-los para enfrentar praticamente qualquer problema que o papado enfrentasse em qualquer lugar, a qualquer hora.

Isso significava um vínculo jurídico especial, nunca imaginado an tes, entre o papado e os jesuítas, que desse a qualquer papa o direito de utilizá -los da maneira que lhe parecesse melhor, onde e quando quisesse. Antes de tudo o mais, e no final de contas, os jesuítas seriam “homens do papa”, romanistas

fervorosos. O segundo elemento essencial do modelo inaciano estava implícito no

primeiro. Se o verdadeiro propósito da Ordem era ser o que hoje cha maríamos de Força Especial, seus membros não deviam ser apenas ho mens de treinamento religioso e de devoção religiosa; tinham, também, que ser treinados em toda uma gama de outras coisas, novos ramos de conheciment o, novos setores de atividades. Tinham que ser como um es toque de talentos vários, afiados e refinados ao nível dos melhores que o mundo tivesse a oferecer. O segundo elemento essencial do modelo ina ciano era, então, a sua polivalência. Os jesuítas seriam padres religiosos. Mas também seriam qualquer coisa e tudo o mais exigido pelas necessidades

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papais — químicos, biólogos, zoólogos, linguistas, exploradores, professores de segundo grau, professores universitários, geógrafos, astrô nomos, matemáticos, pregadores, diplomatas, confessores, agentes secre tos, mensageiros especiais, filósofos, teólogos, peritos em relações públicas, escritores populares, especialistas em comunicação social, artistas, swamis indianos, mandarins chineses, agricultores, arquit etos e até comandantes do exército.

O terceiro elemento essencial do modelo jesuítico era exigido pelos dois primeiros. Se o mundo inteiro em volta de Iñigo estava sendo atraído para longe de Cristo e de sua Igreja por meio de todas as novidades e inovaç ões e do materialismo das atividades humanas, o que é que iria evitar que a mesma situação corrompesse seus jesuítas? Como poderiam eles fazer tudo o que estava sendo feito no mundo e ainda continuar romanistas autênticos, genuinamente homens do papa?

A resposta a essa pergunta foi dada pelo rigoroso ascetismo que Iñigo resumiu de forma incisiva em quatro palavras latinas que deram à sua Ordem o seu lema e seu monograma: Ad Majorem Dei Gloriam. A.M. D.G. Para a maior glória de Deus.

A intenção dele era simples: o que quer que seus jesuítas fizessem, iriam fazê-lo com uma intenção cristianizadora e, basicamente, romanizadora. É claro que eles seriam tão bons quanto seus equivalentes secula res — e melhores, se possível — em ciência, no estudo de artes sociais , e tudo o mais. Iñigo sempre visava ser o primeiro. Mas o que quer que seus jesuítas realizassem seria por um motivo espiritual, com o interesse papal em mente.

Ao definir o asceticismo jesuítico, Iñigo se baseou na tradição milenar de sua Igreja. Ainda assim, até nisso ele foi inovador. Aplicou os princípios daquele antigo asceticismo cristão de novas maneiras, a fim de que pudessem funcionar no clima inteiramente de Novo Mundo.

Iñigo já havia passado pelo duro processo de íntimo e doloroso exa me de todas as facetas de seu interior durante os anos em que reformara sua vida, e depois começara orientando as vidas espirituais de seus pri meiros companheiros. Ele havia aprendido que, na guerra que Deus e Lú cifer travavam pela alma do indivíduo, há uma espécie de campanha de propaganda cósmica para atrair novos recrutas. Embora Deus possa, nessa campanha, comunicar -se por meios imateriais, sobrenaturais, totalmente espirituais, em geral Ele fala por intermédio de acontecimentos. Em termos do indivíduo, Deus pode introduzir, e introduz, imagens através de dados sensoriais — através de acontecimentos externos, palavras e ações no mundo que rodeia cada pessoa.

Lúcifer, enquanto isso, só pode agir através daquela ordem natural. Ele é criatura, não criador. Ele é preternatural, mas não sobrenatural. Como todas as criaturas sem a graça sobrenatural, ele existe e se desloca e leva sua existência completa e definitivamente fora do sobrenatural, que é domínio exclusivo de Deus. O método de impacto de Lúcifer, portanto , é inteiramente através de dados sensoriais — através de eventos, palavras

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e ações. São esses os meios que ele usa para fornecer as ideias, as imagens e os motivos que gostaria de ver como íntimos interiores do indivíduo, os reguladores de suas decisões e seus atos.

O poder do indivíduo em tudo isso é crítico. É dele o poder de fazer uma escolha; o poder que reside em todos os seus atos de vontade; o po der de aceitar ou rejeitar qualquer ou todas as coisas que são oferecidas. Na verdade, como em qualquer campanha de propaganda em qualquer guerra, o mesmo acontece com a campanha cósmica na guerra cósmica: é essencial descobrir de onde os dados vêm e o que realmente significam, para que possam ser feitas as opções e tomadas as decisões.

Traduzida para os termos do modelo ascético de Iñigo para os seus jesuítas, a campanha de propaganda cósmica significava que cada mem bro teria que aprender a analisar os dados de sua atividade interior dos quais ele tivesse ciência. Fossem quais fossem as formas básicas que o indivíduo admitisse e alimentasse deliberadamente no seu teatro íntimo de consciência, dizia Inácio, elas se tornariam inevitavelmente os reguladores das decisões desse indivíduo e, portanto, de seus atos exteriores. Falando no sentido prático, portanto , a tarefa de Iñigo era desenvolver um processo pelo qual cada indivíduo conseguisse uma percepção consciente de que tipo de espírito — o espírito bom de Deus ou o espírito mau de Lúcifer — estava atuando sobre ele, motivando-o e instigando-o. Esse processo, Iñigo chamava de “discernimento de espíritos”.

Mas percepção e análise não eram fins em si mesmas. A verdadeira característica do exercício estava no fato de que os jesuítas de Iñigo estariam empenhados numa febril atividade exterior pelo mundo inteiro . A regulamentação, por parte de cada jesuíta, de sua atividade interna, seria importantíssima. O asceticismo próprio da Sociedade de Jesus, portanto, daria a cada membro o meio de controlar o que entrasse em sua consciência através de seus sentidos e de sua imaginação, a fim de que pudesse continuar romanista e ativista. Para que ele pudesse fazer o que fizesse “para a maior glória de

Deus”. Era a essa finalidade que o treinamento básico e ascético de cada je suíta

visava. Todo membro da Sociedade deveria ser formado e treinado de maneiras muito específicas. Iñigo criou regras minuciosas — as Regras de Modéstia, por exemplo, e regras para as orações, bem como dezenas de outras instruções. Todo noviço jesuíta precisava ter, e aprender como usar, o silênci o — um período de isolamento do movimentado e ativo mundo fora dele. Ele precisava de ordem em seus hábitos de vida e disciplina na maneira pela qual passava horas de silêncio e solidão, bem como suas horas de atividade.

Esses elementos, entretanto, tinham sido incessantemente reconhecidos na tradição ascética cristã como pré-condições essenciais para a formação e o progresso espirituais. Eliminá-los — como foi feito em muitas partes da ordem jesuítica que são vitais fases de treinamento dos jovens — teria sido fugir diante de uma das mais sólidas tradições daquela mes ma Igreja universal que Iñigo se dispusera a servir, defender e propagar.

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O que era novo em relação a esse asceticismo, além da rigorosa auto -análise que se tornava uma segunda natureza para todo jesuíta, era o frio e racional desprendimento que ele parecia dar aos jesuítas, tal como dera a Iñigo. Era uma característica que todo mundo notava. Nas acesas batalhas em que eles entraram quase que de imediato quando a Socieda de se lançou numa existência e numa contenda ativas, os jesuítas eram freq uentemente admirados por aquele frio desprendimento. Com a mesma frequência, entretanto, seus adversários apontavam para aquela qualidade como prova de uma astúcia calculada.

A crítica era justa, de certa maneira, porque os jesuítas falavam melhor, argumentavam melhor, escreviam melhor e superavam em estratégia os mais formidáveis adversários em todas as áreas; e no entanto continuavam teimosos no propósito singular pelo qual cada um deles decidira entrar para a sua Ordem.

Dada a mentalidade medieval dos clérigos seus contemporâneos, a “invenção” de Iñigo, a Sociedade de Jesus, salta como um golpe de gê nio audacioso. Nem o romanismo total nem a polivalência do modelo jesuítico tinham precedente preciso nem folha de realizações comprovadas. E por mais rigoroso e doloroso o seu método ascético, não havia prova de que ele suportaria a investida do humanismo. O empreendimento to do poderia ter sido um desastre. Analisado agora, o seu sucesso foi tão fenomenal, que coloca Iñigo entre os poucos inovadores autênticos na his tória da organização humana. Ele não teve predecessores; mas teve mui tos imitadores.

Deve ter sido francamente desconcertante, na verdade, para aqueles que achavam que, afinal, tinham sobrepujado aqueles tacanhos e supers ticiosos católicos romanos. De repente, surgiram homens que haviam do minado os novos conhecimentos. Homens que sabiam falar a nova linguagem daquela época, mas que continuavam totalmente atentos às ordens do pontífice romano. Homens para os quais o homem não era nem por um momento a medida de todas as coisas; Cristo é que era.

Como Iñigo, nenhum jesuíta tinha o menor interesse em desenvolver seus talentos e seus poderes para proveito próprio. Como Iñigo, os jesuítas rejeitavam logo a preocupação renascentista com a grandeza do indi víduo. Todas as suas informações no modelo inaciano, tão meticuloso e rigoroso e cheio de atenções para com o detalhe, continuavam sempre dirigidas apenas para duas coisas: a guerra entre Deus e Lúcifer por cada indivíduo, e a necessidade do papa de servos dedicados.

E assim foi por mais de quatrocentos anos. De fato, sem contar aque la aparência tranquila que dava aos jesuítas, o fruto mais tentador do precioso modelo inaciano sempre foi a audaciosa independência que Iñigo primeiro conseguira para ele mesmo e depois sistematizara para seus companheiros e seguidores. Em todas as sucessivas ondas de modas pas sageiras e inovações às quais o mundo vem febrilmente procurando se adaptar desde a época de Iñigo, não foi feita uma só concessão nos elementos essenciais do jesuitismo até que o modelo inaciano foi destroçado

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por aqueles que melhor o conheciam e compreendiam: os próprios jesuítas. Por todos esses séculos dos fabulosos e fascinantes sucess os da So-

ciedade, era inevitável que os que estavam de fora — comentaristas a favor e contra — esquadrinhassem e analisassem as Constituições de Inácio repetidas vezes, numa tentativa de expor aquilo que René Fülöp-Miller chamava de “o

poder e o segredo” dos jesuítas. Eles partiam do pressuposto de que aquelas Constituições são a essência da Ordem que Iñigo fundou.

Iñigo deixou claro que um pressuposto desses estava errado: — O que é que você faria — perguntaram-lhe certa vez depois de

terminado o longo trabalho de redigir, testar, revisar e aparar as Constituições —, se o papa abolisse a Sociedade, destruísse as Constituições, liquidasse tudo o que você construiu?

— Eu precisaria de um quarto de hora na Presença do Santíssimo Sacramento — respondeu Iñigo —, para ter de volta a minha paz de espí rito. E então, começaria tudo de novo.

Em outras palavras, ele ainda ficaria com o seu ideal de como Cristo e o papa deviam ser servidos. Ele sempre falava sobre uma iluminação interior que apontava o caminho. Para ele, não era questão de estudar a história ou a psicologia de seus contemporâneos. Era uma questão de inspiração divina rigorosamente testada no cadinho da dura realidade para produzir o modelo inaciano — o “poder e o segredo” que tornavam grandes os jesuítas.

Não adianta alegar ou fingir, entretanto, que uma resposta como es ta pudesse satisfazer os peritos mais sofisticados de hoje; e pela primeira vez desde a época de Iñigo, não há jesuítas nem mesmo para travar o debate.

Nenhum psicólogo, por exemplo, teria probabilidade de discernir — ou de admiti-lo, se o fizesse — uma iluminação interior ou uma inspiração divina em Iñigo. Ele não iria compreender a realidade tal como Iñigo encarava a realidade. Toda a ideia da luz eterna do Espírito Santo pro metida por Cristo a seus discípulos — uma ideia central que animava Iñigo — seria inaceitável, por ser considerada uma superstição ultrapassada.

E quanto a uma guerra universal de Deus-feito-homem contra um Arcanjo do Mal pela salvação espiritual de almas — ora, temos remédios para gente que fala desse jeito hoje em dia. Do ponto de vista profissional, os psicólogos não podem afirmar que é a luz diabólica daquele Ar canjo do Mal, adversário de Cristo na guerra, que faz com que homens como Lenin, Stalin e Hitler p ossam enfeitiçar e escravizar a mente e o espírito de milhões. O que promove esse tipo de homem e seus regimes, explicam os doutos de hoje, não é a opção deles entre imagens, ideias e motivos que sejam “bons”, e aqueles que sejam “maus”,

mas uma pletora de aberrantes sistemas sócio-políticos instalados sobre a Terra e as mentes doentias ou deformadas daqueles líderes.

Chegando ao ponto principal, então, uma guerra cósmica tal como

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Iñigo a imaginava, e sem dúvida qualquer menção de “discernimento de

espíritos” ou de controlar o que penetra na consciência, seriam sintomas de

alguma coisa muito menos lisonjeira do que santidade ou gênio. Apesar desses elementos “negativos” — dessas “superstições” —, porém,

parece ter sido lamentável, para muitos, que um poder extraordinário de análise prática como o que Iñigo possuía fosse perdido por completo. Afinal, Iñigo viveu mesmo em outra época. Em especial à luz do caminho que a Sociedade de Jesus vem seguindo nos últimos vinte anos, talvez fosse justo (não há dúvida de que é inevitável) que o historiador secular, o psicólogo secular e os demais analistas seculares dessem uma outra olhada, uma olhada, desta vez, “realmente objetiva”, nas Constituições de Iñigo. Talvez seja o momento de tornar a perguntar se os princípios de Iñigo não deveriam ter exatamente a mesma eficiência sem o elemento sobrenatural que era tão básico para ele e que constituía o coração e o centro do modelo jesuítico que ele criou.

A resposta a essa pergunta está na própria história. O ideal de j esuitismo de Iñigo, tão notável e tão poderoso, sempre provocou não apenas curiosidade, admiração e desdém, mas uma estranha série de pretensos imitadores. A maioria queria descobrir aquele misterioso segredo do su cesso jesuítico oculto com tanta inteligência em alguma parte daquelas Constituições e dos Exercícios

espirituais. A ideia era espremer, como se fossem esponjas, aquelas páginas e tirar delas as regras e os procedimentos meticulosos; livrá-las do plano divino que Iñigo via como a causa de seu sucesso e da influência de sua Sociedade como modeladora da história. O que sobrasse deveria ser a chave para a excelência jesuítica, ainda que não dos jesuítas.

O reichsführer Heinrich Himmler, o mais íntimo colaborador de Hitler no regime nazista da Alemanha, fez algo parecido com isso. Tomou a seu cargo reunir uma extensa biblioteca sobre a Ordem dos Jesuítas. Chegou até a sonhar, a certa altura, em treinar suas tropas de combate de elite, as Waffen SS, ao estilo dos jesuítas; chegou até a enviar os principais oficiais para o Castelo Wewelsburg, na Vestfália, onde sugeriu que eles fizessem uma forma de Exercícios espirituais de Iñigo — adaptados, entretanto, a uma louca mistura do novo culto nórdico de Vótan, Siegfried, do Santo Graal, e dos cavaleiros teutônicos de antigamente. O que ele ambicionava não era a devoção espiritual, mas aquela sujeição interior da vontade e do intelecto que Iñigo provocara em seus jesuítas. O plano nunca obteve sucesso, mas até Adolf Hitler tinha conhecimento dele e se referia a Himmler, pilheriando, como “o nosso Inácio

de Loyola”. Por curioso que pareça, dados os acontecimentos recentes, o mais próximo

paralelo histórico do jesuitismo de Iñigo de Loyola é encontrado no leninismo de Vladimir Ilyich Ulyanov que, com o pseudônimo de Lenin, fundou o Partido Comunista Soviético e ali impôs o câncer do marxismo aos povos que agora chamamos de União Soviética.

Tanto Loyola como Lenin, quando comparados a outros grandes ho mens, vieram do nada, como se diz por aí. Nenhum dos dois nasceu em

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berço de ouro. Nenhum dos dois herdou um nome já grande na política, na literatura ou nas artes. Nenhum dos dois tinha exércitos ou burocra cias à sua disposição. Cada qual criou, literalmente, o seu sucesso e os meios para esse sucesso. Cada qual concebeu uma ideia; racionalizou essa ideia com uma lógica que não fazia concessões, implacável; por si mes mo moldou os meios de implementar essa ideia; e depois executou essa ideia programaticamente com uma tenacidade sem precedentes. Nenhum dos dois iria ou poderia se afastar de seu objetivo. Como resultado, cada um desses dois homens revolucionou os sentimentos, os pensamentos, o comportamento e o destino de centenas de milhões de seres comuns.

Há mais em comum, então, entre o fanático católico romano do século XVI e o supremo ateísta do século XX do que a quase idêntica esta tura abaixo da média, seus olhos penetrantes, suas frontes poderosas, as conotações notavelmente adequadas de seus primeiros nomes (Vladimir costuma ser interpretado como “dono do mundo” — precisamente o que Lenin visava; e Iñigo ou Inácio significa “defensor” — o papel escolhido por Iñigo era exatamente este).

Onde os dois inovadores, Loyola e Lenin, coincidiam de modo mais significativo, entretanto, era na nítida percepção da única maneira pela qual a história pode ser feita de propósito e os destinos humanos podem ser materialmente alterados. Ouro ou prazer não irão fazer o milagre; pe lo menos, não por muito tempo. Lenin sabia tanto quanto Loyola que não são as cegas forças econômicas, o peso dos números ou mesmo o acesso ao poder que possibilita aos homens fazerem a história. Só um ideal faz isso. Um ideal pelo qual é ganha a vontade dos indivíduos. Um ideal pelo qual as pessoas se convençam de que vale a pena lutar e sacrificar tudo — até a vida. São homens sob o controle completo e a influência permanente desse ideal aceito sem reservas. Homens, em outras palavras, cujo interesse próprio comum é transformado por uma ideologia numa devoção arrebatadora injetada de um intenso romantismo.

O que Loyola e Lenin compreendiam, então, era que é preciso fazer o contato por meio de imagens atraentes para possuir a mente e a imagi nação dos indivíduos; porque é através da mente que se agarra e controla a vontade deles. Com essa forte união de vontades à sua disposição, cabe a você fazer a história.

Até mesmo nas linhas básicas da organização que cada qual fundou — Lenin com o seu Partido Comunista, Iñigo com a sua Sociedade — as similaridades são tão óbvias, que fica-se tentado a acusar o ditador de todas as Rússias do século XX, que subiu por esforço próprio, de ter plagiado o santo do século XVI.

No seu famoso panfleto de 1901, O Que Se Deve Fazer?, Lenin esboçou em poucas palavras o que ele achava necessário para a vitória total do co munismo: um partido único de revolucionários profissionais, todos inteiramente sob absoluta obediência às ordens do Comitê Central do Par tido Comunista, e todos unidos por uma disciplina militar. Uma única organização; obediência absoluta a uma autoridade central; disciplina militar.

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Foram estes, também, os elementos organizacionais que Iñigo adaptara de forma tão brilhante a uma ordem religiosa, há séculos atrás. “Com quadros

assim”, observou Lenin, “seria possível virar a Rússia toda de cabeça para

baixo”; e, poderia ter acrescentado, o mundo inteiro. Nesse ponto, é claro, os dois homens se separam. O ideal de Lenin

— o “paraíso sem governo dos trabalhadores” — não era apenas inteiramente materialista, mas carregava dentro de si a sua própria contradi ção. Sua utopia seria obtida através de vários estágios dolorosos — notadamente através da “ditadura do povo” — até que o governo tivesse “definhado”, deixando apenas

o proletariado em sua total liberdade e felicidade. Isso era o que Lenin prometia.

A contradição que havia no ideal de Lenin era que ele exigia a renúncia a todas as recompensas materiais em favor do povo, mas ao mes mo tempo atirava-o em gritantes condições materiais. E isso mostrou ser a ruína do leninismo. Manietou e confinou o potencial econômico do regime totalitário da União Soviética. Forçou os astutos sucessores de Mao Tse -tung a seguirem pela estrada do capitalismo. Mas a principal lição que os filhos de Lenin estão aprendendo a duras penas é clara: não se pode fazer os homens felizes a não ser por aquilo que os eleve acima das condições materiais da existência humana.

O ideal de Loyola era exatamente este. Era essa a sua promessa. Por isso, foi ele que melhor formulou aquela percepção básica de como levar os homens a fazerem a história. Programaticamente, foi ele que melhor atingiu esse objetivo. Primeiro, treinando seus companheiros de modo a que pudessem atingir a desejada unificação de muitas vontades, todas elas concentradas num ideal espiritual sobre-humano. Depois, fornecendo-lhes um plano de conjunto e enviando-os para uma conquista da mente e da vontade de seus contemporâneos.

Iñigo poderia ter caído com facilidade na armadilha da qual Lenin não escapou. Ele percebeu que, porque a mente dos homens tinha sido virtualmente assaltada e imensamente alterada pela revolução que era a Renascença, a Igreja Romana já não podia falar com o seu povo como havia falado durante centenas de anos. Linguagem, visão, pensamento — na verdade, tudo o que era essencial para a comunicação — havia mudado, por assim dizer, num piscar de olhos da história.

A sua percepção foi um exato paralelo da de Lenin no começo do século XX. O velho regime da Europa que Lenin conhecia estava nos estertores da morte. Regime esse construído sobre títulos hereditários, p oder de latifúndios, ambições imperiais e superioridade de classe social que já não podia, àquela altura, falar ao homem comum ou satisfazê-lo. Alguma coisa o acordara de seu sono submisso.

Os dois homens, portanto, situavam-se sobre linhas divisórias de pro-fundas alterações na sociedade humana. Lenin analisou a mudança co mo sendo sócio-política, e aproveitou o momento apenas nesses termos.

Iñigo, no entanto, embora percebesse a mudança como sócio-cultural — portanto, já uma análise mais universal do que a de Lenin —, estava

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convencido de que a mudança era, também, e de maneira mais evidente, uma nova fase na guerra de Cristo com Lúcifer.

Quer queira, quer não, aquele plano divino que Iñigo via com tanta intimidade e clareza, salvou-o da armadilha da simp les “adaptação”. Omi ta isso como a explicação abrangente e a verdadeira causa do sucesso de Iñigo e da influência da sua Sociedade como formador da história, e não restará nenhuma outra explicação satisfatória das realizações dos jesuí tas. Omita isso, e o melhor que Iñigo poderia ter realizado teria sido uma espécie de leninismo de sua época. Ele teria “se adaptado à situação”. Seus homens poderiam ter

sido os melhores em elevar e efetuar a mudança sócio-cultural que vinha chegando correndo, mas certamente não a teriam transformado. O ideal teria sido o maior homem da Renascença, não a maior glória de Deus. O conquistador, o Príncipe de Niccolò Machiavelli, o todo-poderoso doge de Veneza, não teria vencido Inácio, mas todos eles teriam estado jogando o mesmo jogo. O ideal de Iñigo, em outras palavras, teria sido materialista. E esse materialismo teria sufocado Iñigo e suas propostas. Seus seguidores teriam se afogado em tentativas materialistas. E com o tempo, também, seu objetivo original — divulgar a missão sobrenatural do seu papa e de sua Igreja — teria sido abastardado.

O que separa Iñigo de Lenin e outros “gênios” desse tipo é o fato de que

ele se recusou a se adaptar, qualquer que seja o sentido que possa mos dar a este verbo. De acordo com o seu raciocínio, adaptar-se à modernidade da sua ou de qualquer outra época não significava permitir que essa modernidade ditasse como se comportar, o que pensar, e quais deve riam ser seus objetivos. Muito pelo contrário, na verdade. Adaptar -se era escolher, por motivos sobrenaturais, um papel e uma atividade que trans formassem a modernidade e suas condições — isso os transformava em alguma coisa que eles não tinham sido e que não poderiam ser apenas por si.

Se você seguisse Iñigo, em outras palavras, você não estaria apenas seguindo uma orientação espiritual; seria um realista obstinado e práti co. Você não se tornava o que a modernidade exigia na vã ilusão de que, assim que tivesse imitado os modelos da modernidade, pudesse fazer meia -volta e transformar aqueles modelos naqueles que você deixara para trás.

É esta, entretanto, como Iñigo parecia compreender com uma clareza presciente, a armadilha de especial sutileza que aguarda o estudante de religião — jesuíta e não-jesuíta — na exortação do psicólogo e do engenheiro social para “adaptar-se”. É muito fácil ser persuadido — como muitos jesuítas da época de Pedro Arrupe parecem ter sido — a compreender a “adaptação” não

no sentido inaciano, mas naquele sentido moder no de ajustar-se para encaixar-se, para “ir na onda”, como os “filhos da flor” das décadas de 1960 e 1970

tanto gostavam de dizer. Presume-se que Iñigo evitou essa armadilha porque, enquanto um Lenin

ou um Hitler, ou um Stalin ou um Mussolini era motivado pelo orgulho, pelo temor ou pela ambição materialista, Iñigo era levado pelo amor. A esta altura, mesmo a promessa do leninismo, a mais poderosa

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das “adaptações” sócio-políticas do século XX, já mostrou, na história fria de populações inteiras, ter sido uma ilusão quase satânica, uma trans -formação de nações numa série de infernos dos quais gerações inteiras não conseguiram achar saída. Muros de pedra e armadilhas de aço foram os meios de Lenin para o fim para o qual ele exigia absoluta obediência c submissão.

A promessa do jesuitismo, enquanto isso, durou enquanto os próprios jesuítas se mantiveram fiéis aos princípios de Iñigo, enquanto o modelo inaciano se mirava na interpretação que eles davam a suas Constituições, e enquanto eles honraram a fé que sublinhava todas as palavras de Iñigo. O fracasso que os jesuítas tiveram neste século tem suas origens no mesmo passo em falso que Lenin deu. Na década de 1970, a Ordem adotou uma norma de adaptação sócio-política que levava à mesma contradição inerente que garantiu o fracasso final do leninismo.

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8. A COMPANHIA DE INÁCIO

A

estrutura funcional da companhia de Iñigo é a realização milagrosa da transformação, feita por Iñigo, de seus contemporâneos do século VI, de homens que achavam que “o homem é a medida de todas as coisas”

em homens dedicados a um Deus e Salvador que envolve todas as coisas.

Seus contemporâneos estavam marinados na fantástica novidade da vida em sua época, com todas as suas possibilidades de ouro. Sua reação foi deixar para trás as velhas formas de pensamento e modelos de comportamento, as velhas maneiras de viver, até mesmo os antigos lugares onde tinham vivido e as antigas verdades pelas quais eles ali tinham vivi do — tudo o que haviam herdado de seus antepassados medievais.

Face a face com aquela mentalidade, Iñigo traçou os planos para a sua Companhia de Jesus sobre um modelo ainda mais antigo do que a Idade Média, ou seja, o princípio básico da própria cristandade: subordi nação. A subordinação do cosmo e de tudo o que nele estivesse — desde as pedras e a terra inanimada até as plantas, os animais, os seres humanos, anjos e arcanjos, dentro de um princípio hierárquico de ser — à Trindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Não há democracia nessa hierarquia, nenhum objetivo comunal de iguais; só inferiores e superiores. Não há o individualismo que tenta se auto-aperfeiçoar; não há integração pessoal. Há uma hierarquia de partes ordenadas; há indivíduos destinados, cada um deles, a complementar o outro; há integração de cada parte no todo na medida em que cada parte seja subordinada. Porque ser uma parte desse sistema é ser subordinado. A única igualdade permitida era a subordinação. Todos eram subordinados. Dentro daquele sistema hierárquico de ser e de existir, cada objeto tinha o seu lugar. O Criador de tudo arrumou tudo numa certa harmonia e ordem.

Foi isso o que Deus revelou no início aos Filhos de Israel através de seus profetas. Foi isso o que Cristo revelou em toda a plenitude. É essa a base de toda a antropologia cristã, que difere — e a ele se opõe — do darwinismo do século XIX, genético, social e político. Nenhum desenvolvimento humano, por mais novo que seja, e nenhuma modernidade

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— seja a da Renascença, seja da era atômica, tecnotrônica — pode suplantar aquele sistema.

Iñigo destinou sua Sociedade a reproduzir em sua existência de atividades aquele princípio hierárquico segundo o qual “o subalterno se sub mete ao superior” e no qual todos os elementos estão unidos no reconhe cimento da autoridade maior e, portanto, prontos a obedecer. Ele pre tendia que os membros de sua Ordem ficassem unidos por uma união mís tica de corações e vontades em subordinação voluntária, sujeitos aos superiores, os superiores ao geral, o geral a toda a Sociedade, a Sociedade inteira ao papa, o papa a Cristo, de quem ele é o representante terreno.

A Companhia de Iñigo era, portanto, extremamente simples em sua estrutura — tão simples, que seus inimigos estavam sempre convencidos de que o jesuitismo era muito mais do que aparentava na verdadeira es trutura da Sociedade.

Era uma pirâmide de autoridade. No seu topo, ele colocou um homem, que atendia pelo título de geral ou padre-geral. O título não foi tirado do código militar. Esse alto funcionário tinha autoridade sobre a estrutura geral e governava toda a Sociedade. Não tinha obrigação de seguir conselho algum ou de procurar o consentimento de qualquer outro jesuíta quando desse ordens. Ele era o “superior” geral, diferente de todos os outros “superiores” da

organização, que eram locais e encarregados de determinadas seções. Só ele, de todos os superiores, obtinha o seu cargo mediante eleição; todos os outros superiores eram nomeados por escolha dele ou, pelo menos, com a sua aprovação; e, uma vez eleito geral, ele continuava no posto até morrer, a menos que razões muito graves recomendassem a destituição do cargo. Sua autoridade era absoluta sobre a Sociedade toda, suas várias partes e membros. Podia afastar qualquer pessoa da Ordem, e não era necessário qualquer julgamento formal ou processo similar. Iñigo foi eleito por unanimidade, em abril de 1541, o primeiro padre-geral da Sociedade.

O corpo da Sociedade era composto de quatro categorias, ou graus, como são chamadas na Sociedade; os membros eram distintos, de ma neira geral, pelo grau de acesso às importantes posições de governo e direção do pessoal e dos recursos da Sociedade. Na prática isso significava a sua proximidade ou distância do geral na pirâmide de autoridade e poder.

Primeiro, em relação a isso, estava a categoria ou grau de padres pro -fessos. Os jesuítas desta categoria eram aprovados em rigorosos testes escolásticos e nas provas de sua qualidade religiosa; faziam três solenes votos de pobreza, castidade e obediência (votos comuns a todas as ordens reli giosas católicas); e faziam um voto especial de obediência ao papa. Enquanto todos os jesuítas tinham obrigação de obedecer ao papa, os professos se comprometiam por aquele quarto voto, especial. Só esses professos tinham acesso ao cargo máximo de geral, e aos postos mais imediatos abaixo do generalato. E só eles podiam participar da eleição de um geral.

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O que Iñigo exigia dos professos era difícil. Em princípio, só podiam ser professos os jesuítas “selecionados por seu espírito e sua erudição, inteira e

minuciosamente testados, e conhecidos por todos com edifica ção e satisfação depois de várias provas de virtude e de abnegação”. Real mente, tratava-se de um ideal elevado.

Mesmo entre os professos haveria distinção de função e, portanto, de poder. Assim, um jesuíta professo encarregado de todos os jesuítas na Colômbia não estava tão perto do padre-geral quanto o padre professo em Roma que era o assistente do padre-geral para todos os países sul- americanos, inclusive a Colômbia.

Os padres professos integravam as faculdades de filosofia e teolo gia, chefiavam as casas jesuíticas de treinamento de candidatos a jesuítas e os escritórios locais da Ordem pelo mundo inteiro. De acordo com o plano original de Inácio, os professos deveriam viver em casas que não tinham receitas fixas, nenhuma dotação que produzisse rendimentos regulares. A prática da pobreza pelos professos deveria ser tão perfeita quanto possível.

A segunda categoria ou grau abaixo do geral era composta por pa dres que faziam votos simples, não solenes; e não faziam o quarto voto, especial, em relação ao papa. Eram chamados, por tradição de coadjutores espirituais porque, na concepção de Inácio, ajudavam e coadjuvavam o trabalho dos professos. Aos olhos de Inácio, os membros dessa classe iriam dedicar -se primordialmente ao ministério sacerdotal junto ao p úblico e a supervisionar a organização material das casas jesuíticas.

O terceiro grau ou categoria na pirâmide dos jesuítas era o dos ir mãos leigos; estes nunca se tornavam padres, mas faziam os três votos simples e ficavam encarregados do trabalho manual nas casas jesuíticas — cozinhar, limpar, trabalho agrícola, lavagem de roupa, guarda -roupas, fazer as compras, consertos, manutenção, cuidar dos doentes e dos debi litados.

A quarta categoria era a dos jovens seminaristas jesuítas, em geral chamados de escolásticos, porque o seu preparo era feito através das vá rias “escolas” — humanidades, filosofia, teologia, ciência — de saber. Ao término de seu escolasticado, eles eram ordenados padres e, depen dendo de como tivessem se saído durante o aprendizado, juntavam-se às fileiras dos professos ou dos coadjutores espirituais. Eram, então, postos a trabalhar.

Quando Iñigo morreu em 1556, havia quarenta padres professos de um total de 1.000 jesuítas.

Iñigo projetou apenas um elemento em sua sociedade acima do padre - geral que recebera dele poderes tão amplos. Foi a Congregação Geral: uma assembleia internacional de jesuítas, todos eles padres professos, es colhidos entre o quadro de membros, e reunindo-se em Roma com os superiores máximos da Sociedade. A congregação geral é o órgão legislativo supremo da Sociedade, responsável somente perante o papa, não perante o padre -geral. Na verdade, ela pode depor um padre-geral por justa causa.

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Ela elege todo novo padre-geral; e este fica sujeito aos decretos da congregação geral. De fato, normalmente, sua administração deve con sistir em administrar os decretos que a congregação geral aprovou por votos que podem ser secretos ou abertos. Apesar da superioridade legis lativa da congregação geral, em geral as congregações dão poderes muito amplos ao padre-geral. Apesar de tudo, para onde a congregação for, a Sociedade toda vai.

Ao aceitar candidatos para uma posição em sua Sociedade, e ao ga rantir que, uma vez aceitos, eles adquirissem a mente e o espírito da Sociedade, Iñigo se apoiava principalmente na eficácia religiosa de seu livro Exercícios

espirituais. Os candidatos, uma vez admitidos como estagiários, eram submetidos aos Exercícios por um período de tempo que variava entre oito e trinta dias. Era então que se fazia com que eles compreendessem a vocação de um jesuíta por meio da meditação sobre as ideias fundamentais inacianas do Reino, do divino Líder, do Arcanjo Inimigo e da Guerra, bem como dos ideais jesuíticos de obediência aos superiores e ao papa.

Certos comentaristas, tendo examinado os Exercícios e o processo de noviciado montado por Inácio, têm sido inteiramente anacrônicos, des crevendo todo o processo em termos desse horror moderno, a lavagem cerebral. Mas uma análise cuidadosa do processo revela como princípio fundamental a doutrina central de Inácio sobre a suprema importância da vontade humana. Fosse lá o que fosse que ele usava como imagens físicas, metáforas, símbolos — até mesmo posturas físicas ao rezar — tudo tinha um propósito: atrair a escolha daquela livre vontade humana.

No noviciado não havia assalto direto algum ao cérebro, ou mente. Ao contrário, o noviciado visava diretamente dissecar o que tem sido co nhecido classicamente como a vontade do candidato em suas partes componentes, examinar essas partes, eliminando o que fosse indesejável, purificando o que fosse adaptável e útil, e cimentando tudo com a ideo logia do Reino, do Líder e da suprema obediência.

Tendo passado pelos Exercícios a contento do jesuíta supervisor, e desde que ainda estivesse decidido a se tornar membro da Ordem, o candidato se tornava noviço. Todos os candidatos faziam, então, o mesmo noviciado, passando dois anos em aprendizado básico. Cada um deles aprendia a rezar, a se disciplinar e a obedecer ordens. Travava conhecimento com o mundo do espírito e com os detalhes da espiritualidade je suítica. Durante todo esse tempo, seus defeitos e seu caráter geral eram estudados. No final, todos os noviços aprovados faziam três votos simples de Pobreza, Castidade e Obediência. Alguns tornavam-se irmãos leigos; outros passavam para escolásticos, para mais treinamento para serem professos ou coadjutores espirituais; ao término desse aprendizado, faziam os Votos Finais. Os professos acrescentavam aquele quarto voto, o voto especial .

O pessoal da Sociedade era organizado em “províncias”. Quando da morte

de Iñigo em 1556, havia doze: Andaluzia, Aragón, Brasil, Castela,

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Etiópia, França, Baixa Alemanha, Alta Alemanha, as Índias, Itália, Portugal e Sicília. A criação de uma província numa determinada localidade dependia do número de jesuítas que ali trabalhavam e da extensão c importância do trabalho a ser feito.

Em geral, várias províncias eram agrupadas com base na identidade cultural ou na contiguidade geográfica e o grupo era chamado de Assistência. Assim, as províncias de Andaluzia e Castela pertenciam à assis tência espanhola. Com o correr do tempo, à medida que as províncias se multiplicavam, o potencial humano aumentava e a Sociedade era re quisitada para uma missão ou outra, haveria uma assistência inglesa, uma assistência francesa, uma assistência americana, e assim por diante.

Desde o início, Iñigo havia insistido para que a sua Sociedade fosse diferente de todas as ordens religiosas até então sancionadas pelo papa do. Seus membros não eram obrigados a cantar o ofício divino juntos, em coro, por exemplo; não tinham trajes que os distinguissem, como as ordens mais antigas, tais como os beneditinos, os carmelitas e os domini canos, eram obrigados a usar. Tampouco havia quaisquer castigos corporais.

A governança de casas e províncias também era diferente. Não esta va nas mãos de um “Cabido Geral” de membros da Ordem eleitos pelos votos de seus

irmãos religiosos. Em vez disso, superiores individuais, ao longo da cadeia de comando, tomavam as principais decisões. O objetivo de Loyola era livrar seus homens daquele tipo de obrigação para com uma assembleia, a fim de que a mobilidade deles — os superiores poderem dar ordens por iniciativa própria, e os membros obedecerem a um só homem — para trabalharem para o bem da Igreja chegasse ao máximo.

Ele também se recusava a ter o que muitas ordens mais antigas ti nham: uma Ordem correspondente de mulheres jesuítas, segundo o mo delo das freiras dominicanas, freiras beneditinas, freiras carmelit as e freiras franciscanas. Um dos episódios mais amenos do início da história dos je suítas envolveu a admissão temporária, por Iñigo, de cinco mulheres — elas foram as únicas mulheres, em 480 anos, a se tornarem membros da ordem dos jesuítas — para a profissão de votos. Isabel Roser, de Barcelona, umas das primeiras patronesses de Inácio, forçou-lhe a mão ao persuadir o papa Paulo III a permitir que ela e três companheiras fizessem votos solenes de obediência na Sociedade em 1545. Essa boa e santa mulher havia ajudado Inácio em seus anos mais difíceis; era impossível não satisfazer, pelo menos num gesto simbólico, o seu desejo de fazer parte daquilo que ela ajudara a fundar, tão logo o papa desse o seu consentimento. Depois de muita amolação e um caso de julgamento público, todas as quatro foram liberadas de seus votos pelo papa em 1546. Em 1555, sob uma fortíssima pressão da corte real, Iñigo admitiu a rainha Joana de Castela, filha do rei Fernando de Aragón e Isabel de Castela, à profis são de votos simples na Sociedade. Conhecida como Juana la Loca (Joa na a Louca) devido a uma instabilidade emocional que se percebia nela, ela também foi liberada daqueles votos pouco tempo depois. Inácio tinha

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feito aquelas exceções por motivos especiais, mas calculara com precisão que nenhuma daquelas mulheres acabaria se integrando à sua Sociedade.

Os principais tipos de trabalho realizado pelos jesuítas eram a prega ção do Evangelho em terras não-cristãs, a educação dos jovens, ministérios clericais, produção literária, pesquisa e missões especiais a eles confiadas pelo papa. As casas de uma província eram, em geral, de seis tipos: as residências (para os doutos, para os escritores, para os superiores locais, para os membros aposentados e doentes, ou para jesuítas dedicados a serviço externo); casas de estudo (para jovens jesuítas); um noviciado (onde os candidatos a entrar para a Sociedade naquela província eram examinados e preparados para a admissão). Além disso, havia escolas e faculdades dedicadas à educação do público leigo e casas de retiro espiritual, para onde os leigos se dirigiam em busca de conselhos espirituais e com fins de devoção.

A cadeia de comando de cada casa, por pequena e remota que fosse, até o padre-geral, tinha um ordenamento nítido. Cada casa tinha um padre superior. Acima dos superiores de todas as casas de uma província, havia um padre provincial. Acima de todos os provinciais de uma assis tência, havia um assistente que normalmente vivia em Roma, na residência central jesuíta com o padre-geral. Os poderes e as limitações dos poderes de cada superior estavam nitidamente delineados. Por sua vez, cada superior tinha um grupo de consultores, de caráter consultivo mas cujo consentimento era necessário na tomada de certas decisões. O superior de uma casa escolhia seus consultores entre os seus subalternos na casa; um provincial, da província; um assistente, de sua assistência; e o geral tinha seus assistentes, além de outros que pudesse querer empregar.

Em cada casa dos jesuítas havia uma série de cargos de superiores menores: um superior menor ficava encarregado das finanças da casa; ou tro, chamado de padre espiritual, ficava à disposição da comunidade pa ra conselhos e orientação espiritual; outros superiores eram prefeito da bibliotec a, prefeito de estudos e prefeito da saúde; se necessário, haveria um supervisionando a fazenda. Todos esses superiores menores que atua vam dentro das casas obtinham sua autoridade do padre superior da casa.

Numa província ou em toda uma assistência, quando necessário, havia os “procuradores”, homens designados para superintender determi nadas necessidades da província ou da assistência.

Enviados pelo geral em Roma, em determinadas épocas chegavam os visitadores, nomeados para examinar como uma província ou uma assistência estava indo sob o aspecto espiritual, financeiro, escolástico, so cial ou político.

A ramificação de superiores maiores e menores na Sociedade era com-plexa, mas nunca difícil de manejar. Não havia elementos supérfluos. Cada funcionário, não importava seu nível, servia na solidificação ativa do ór gão mundial.

A obediência e o comando sensato por parte dos superiores eram gran demente facilitados pelo que Iñigo chamava de “exame de consciência”.

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Em essência, trata-se de uma entrevista privada e confidencial entre superior e subalterno — entre, por exemplo, o padre-reitor de uma casa e um dos membros da casa; entre o padre provincial e um membro de sua província; entre um noviço e seu superior imediato, o mestre de noviços; entre o padre -geral e qualquer membro da Sociedade.

Inácio não exigia que o “exame de consciência” fosse o mesmo que uma

confissão, embora o segredo confessional pudesse ser invocado por qualquer pessoa. Ele pretendia que o subalterno falasse com sinceridade sobre suas fraquezas e suas forças, suas esperanças e seus desejos, e sua prática da virtude religiosa; que o superior, ouvindo e falando com ele, ficasse nas mais perfeitas condições de decidir o que de melhor o subalterno poderia fazer na Sociedade a fim de que o seu caráter de jesuíta fosse desenvolvido no serviço à Igreja que era característico da Sociedade.

O “exame de consciência” foi criado por Inácio para ser a expressão

máxima do relacionamento entre pai e filho que ele desejava que existisse entre o superior jesuíta e o jesuíta subalterno. Era um sistema francamente paternal o que ele tinha em mente. Era o meio que ele tinha de garantir que o amálgama de sua Sociedade, a obediência, seria exercida pelo su balterno e usada pelo superior com o máximo de compaixão possível por parte do superior e com o maior contentamento por parte do subalterno. Nem a mera obediência de execução nem obediência da vontade, mas o que deveria ser obtido era a obediência da compreensão.

O “exame de consciência” também levava a um método de governo altamente pessoal. Porque o superior, como tal, devia ser procurado, tratado e obedecido como se fosse Cristo. A regra da vida normal de um jesuíta era o encontro direto de apenas duas pessoas. Nenhum jesuíta ti nha que enfrentar um “cabido” ou assembleia de seus irmãos, como nas ordens mais antigas, para responder por seus atos e ouvir decisões sobre o seu destino. Assim, o individualismo do jesuíta isolado em seus deveres, seus direitos, seu desenvolvimento pessoal e sua carreira era estimulado. A unidade coletiva de tais membros era garantida pela obediência sistemática que fomentava aquele individualismo. Assim era obtida a intimidade e a característica vida na Sociedade do jesuíta.

O governo interno e a unidade de mente e ação dentro da Sociedade eram levados adiante por uma prática regular, aprovada e sistemática, de relatórios: de superiores menores a superiores maiores; de superiores provinciais a assistentes romanos; dos assistentes ao padre-geral; do padre-geral a toda a Sociedade; e dos provinciais a seus membros indivi duais da província. Os relatórios tratavam dos méritos e deméritos de membros da Ordem, da conduta e do progresso deste ou daquele proje to, das condições financeiras e espirituais desta ou daquela seção da Sociedade, ou de um trabalho confiado à Sociedade.

Desde a época do próprio Iñigo, também se estimulava um intenso fluxo de informações entre os jesuítas, porque isso ajudava o que ele cha mava de “o

vínculo de vontades, que é o amor e a caridade mútuos que ele s [os jesuítas] têm uns pelos outros (...) ao obter informações e novi dades

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entre si e (...)” muita intercomunicação ao mesmo nível de “segui rem uma mesma doutrina e de serem uniformes em tudo, tanto quanto possível”.

Tendo exposto a mera estrutura que Iñigo imaginou para a sua Sociedade, entretanto, é evidente que, por eficiente que fosse, não era sufi ciente para unificar ou solidificar todas as partes para transformá -las num todo — um todo inaciano. O que fazia isso — o que unia todos os muitos jesuí tas, divididos que estavam em quatro categorias de padres profes sos, coadjutores espirituais, irmãos leigos e escolásticos; e distribuídos entre muitas partes do mundo e entre muitas funções em toda a estrutura da pirâmide — eram os vínculos gêmeos de autoridade e obediência.

Estes eram, na verdade, dois aspectos da mesma coisa. A obediência era central, juntamente com a subordinação de que ela precisava. Todo jesuíta estava subordinado a alguém.

“Os superiores individuais”, escreveu Iñigo, “deveriam ter muita au-toridade sobre os subalternos, e o geral sobre os superiores; e por outro lado, a Sociedade muita autoridade sobre o geral.” Assim, “todos pode rão ter plenos poderes para sempre” e, no entanto, estar sob certo con trole.

Quanto ao voto de obediênc ia, “une os indivíduos a seus superiores, os

superiores locais entre si e aos provinciais, e superiores locais e provin ciais ao geral”. Assim, a “subordinação de uns a outros é diligentemente preservada”.

Aos olhos de Inácio, a sua Sociedade deveria distinguir-se pela qualidade da obediência de seus membros. “Os outros líderes religiosos po dem nos superar em jejuns, vigílias de oração que durem a noite toda, e outras austeridades na alimentação e no vestuário. Nossos membros têm que primar pela verdadeira e perfeita obediência e pela renúncia voluntá ria ao julgamento privado.”

Esse princípio fundamental de obediência jesuítica era difícil de im-plementar. De fato, Inácio achou necessário sistematizar num documen to especial exatamente o que ele entendia por Obediência Jesuítica. Em 1553, levado por sérias dificuldades entre os jesuítas portugueses, de vá rios dos quais tivera que descartar-se, Inácio escreveu sua Carta sobre a obediência; nela, ele foi de uma clareza cristalina quanto ao que chama de “ver dadeira obediência”.

Todo superior tinha que ser obedecido como representante de Cris to. Obedecendo a esse representante, estava-se obedecendo ao Cristo; estava-se fazendo a vontade de Cristo.

A obediência poderia ser uma entre três tipos. O grau mais bai xo é o da “obediência em desempenho”: você faz o que mandarem, muito em bora possa discordar de tudo, achar que o superior é um tolo, ou achar que sabe o que ele deveria ter mandado você fazer. Você obedece; mas com relutância. Opinião de Inácio sobre esse grau de obediência: “muito imperfeito”.

Há um segundo grau de obediência. Você ainda pode pensar que o

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superior é um tolo e que você sabe o que ele deveria ter mandado fazer, mas, por obediência a Cristo, você decide que irá fazer de boa vontade o que ele diz. O detalhe, aqui, é que você está tão preocupado em agradar a Cristo, que sua obediência se transforma de relutante em solícita. Com efeito, você decide querer o mesmo que o seu superior. “Nesse estágio”, comenta

Inácio, “já existe alegria na obediência.” Ainda existe mais um, o mais alto grau de obediência. Você não ape nas

faz o que lhe mandam como não demonstra qualquer oposição decla rada. Nem meramente decide querer o que o seu superior quer, faz de bom grado o que ele exige. Agora, você concorda mentalmente com o seu superior; você tem a obediência do intelecto. Incondicionalmente, pensa como o seu superior. Submete o seu discernimento ao do seu superior “na medida em que só a

vontade abjurada pode controlar o intelecto”. Esta mais elevada forma é o que Inácio chama de “obediência cega (...) a renúncia voluntária ao discernimento

privado”. Os graus de obediência, é claro, estão dispostos segundo o grau em que a

vontade do indivíduo está engajada nessa obediência — segundo, em outras palavras, a “disposição” do indivíduo. Inácio escreveu em poucas linhas o seu ideal do jesuíta obediente:

De modo geral, não devo desejar pertencer a mim mesmo, mas ao meu criador e ao seu representante. Devo deixar-me ser conduzido e deslocado como um pedaço de cera se deixa amassar. Devo ser como o cadáver de um homem, sem vontade ou discernimento; como um pequeno crucifixo que se deixa ser deslocado sem dificuldade de um lugar para outro; como um bastão nas mãos de um velho, para ser colocado onde ele quiser e onde ele me possa usar da melhor maneira possível. Assim, devo estar sempre à mão, a fim de que a Ordem possa me usar e me aplicar da maneira que lhe parecer satisfatória (...)

A frase “como o cadáver de um homem”, em latim perinde ac cadaver, provocou o termo “obediência cadavérica”; e, interpretada de maneira errada, foi usada

para ridicularizar, até mesmo difamar a obediência jesuítica. É preciso ter discernimento para compreender o que Inácio quis dizer; e o que ele quis dizer era, em si, revolucionário.

Até a sua época, o voto de obediência nas ordens religiosas (bem co mo os outros dois votos, de pobreza e castidade) visavam ajudar os mem bros daquelas ordens a atingirem a felicidade pessoal e, no final, a salvação eterna.

A obediência jesuítica tinha por finalidade primordial formar um corpo firmemente unido e disciplinadíssimo com homens amplamente sepa rados pelo mundo inteiro; homens que eram dirigidos por planos e estratégias feitos por grupos coordenados e interligados de superiores; ho mens cujo trabalho visava primordialmente ao mundo à sua volta.

A passividade e a característica de semelhança com um cadáver des sa obediência, a maleabilidade da cera, a adaptabilidade do bastão do ve lho,

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e impotência do pequeno crucifixo — tudo isso eram imagens que se referiam a apenas um processo: a escolha do objetivo e o meio de atin gir esse objetivo.

Como os jesuítas provaram acima de qualquer sofisma, a obediên cia inaciana nunca afetou a riqueza de recursos, o ativismo perene, a engenhosidade, o uso extensivo de realizações e dons pessoais por membros da Ordem.

Realmente, a obediência jesuítica, ao longo do tempo, tornou-se uma característica quase lendária dos membros da Ordem. Seus amigos e ad -miradores a louvavam. Inimigos a parodiavam, reclamando que os jesuítas eram obrigados, pelo voto de obediência, a fazer qualquer coisa que o superior mandasse — assassinar um líder, dinamitar um edifício, roubar, corromper, mentir, cometer suicídio. Mas isso é pura calúnia. Iná cio exclui de forma explícita da obediência qualquer coisa que cheirasse remotamente a pecado. Assim também faz a lei geral da moralidade ca tólica.

Esse aparentemente gritante contraste entre a obediência “cadavérica” de

homens arrumados em camadas piramidais de um lado e, do ou tro, a riqueza de recursos, a engenhosidade e outros dons individuais tão evidentes em seu ativismo, sempre deixou intrigados os inimigos da So ciedade. Diziam eles que não havia nada para se ver. “Nada”, como reclamou desesperado o racionalista francês do século XIX que se dizia ateu, Edgar Quinet, “a não ser provinciais,

reitores, examinadores, consultores, admonitores, procuradores, prefeitos de coisas espirituais, prefeitos de saúde, prefeitos da biblioteca, prefeitos do refeitório, criados e despenseiros.” Como é, então, que uma organização anódina dessas podia ser um inimigo tão temível para os inimigos de Roma, um ativo tão valioso para o papado?

Toda a estrutura piramidal erguida sobre a “obediência cadavérica” devia,

concluía-se, ser um disfarce para uma elite letal e com sede de poder mas oculta, tramando por trás dessa fachada banal tirar as liberdades e os bens de todos os homens livres, ou para aquilo que um escritor pro testante chamou de “artes mágicas secretas pelas quais os jesuítas realizam coisas estranhas em determinados dias (...)”.

“Mostre-me, em meio a tudo isso, a alma cristã!”, reclamava Qui net. E embora Quinet e muitos iguais a ele ao longo dos séculos não con seguissem entender, o verdadeiro segredo dos jesuítas de Inácio era precisamente a alma cristã; o seu aprimoramento e purificação em cada membro da Ordem. Embora todos os regulamentos estivessem expostos com clareza por Inácio nas Constituições e outros trabalhos seus, só quando se compreende esses regulamentos à luz da dimensão divina e espiritual do modelo inaciano clássico é que se pode começar a compreender o jesuitismo: aquela combinação peculiar de individualismo altamente desenvolvido em cada membro, coordenado dentro da estrutura da coesão da organização em torno dos super iores; coesão formada pela obediência jesuítica. A rígida disciplina íntima gerava a unidade interna. A liberdade

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individual abençoada pela obediência dava aquele tremendo impulso que nunca foi igualado por outra organização.

Muitas pessoas, inclusive jesuítas da fase inicial da Sociedade, usavam metáforas militares para descrever a natureza e o método operacio nal que Inácio projetou para a sua Sociedade. A cadeia de comando em forma de pirâmide, a divisão dos jesuítas em categorias, a sua ideia da obed iência jesuítica são elementos que, é certo, são reproduzidos em gru pos militares. Mesmo o nome que Inácio usou para designar o seu grupo, Companía de Jesus, parecia, a muita gente, derivado da estrutura do exército.

No entanto, na mente de Inácio é certo que a sua ideia do que a Sociedade de Jesus e seus jesuítas seriam teve como modelo direto aquilo que a teologia e a filosofia católica têm apresentado tradicionalmente co mo a condição, revelada por meios divinos, de todas as coisas criadas — a subordinação dentro de uma ordem predeterminada. O pecado e Lúcifer haviam violado aquela ordem das coisas criadas. O grande empreendimento de Cristo era restaurar aquela ordem. O termo Companía, que sem dúvida tinha por trás um emprego militar, queria, apesar disso, na mente de Inácio, sublinhar o fato de que ele e seus associados eram, antes, compañeros, companheiros, naquele grande empreendimento; e indicar que, através de sua subordinação, eles estavam ligados diretamente a Cristo.

Uma vez rompido qualquer dos elos subordinadores — quer dentro da Sociedade, quer entre a Sociedade e o representante de Cristo, o pontífice romano — a própria natureza da Sociedade de Jesus seria alterada.

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9. O CARÁTER DA SOCIEDADE

A

ssim que Inácio morreu (no dia 31 de julho de 1556), a força de sua personalidade e o exemplo de sua presença desapareceram com ele. Agora que ele se fora, aqueles dentre seus companheiros originais que ainda viviam e os membros mais recentes acharam necessário formalizar e regulamentar a vida de cada jesuíta com regras e práticas predeterminadas. O que Inácio havia mantido como esprit de

corps tinha, agora, que ser garantido por outros meios. Ele havia deixado para seus seguidores as Constituições, mas estas proporcionavam apenas uma estrutura jurídica. O espírito de Inácio tinha que ser fomentado, a fim de que o caráter de um jesuíta, tal como Inácio pretendia, se desenvolvesse e florescesse.

Durante um período de tempo após a morte dele, pode-se ver como os companheiros chegaram a uma maneira uniformizada de viver e a uma pers-pectiva exposta sistematicamente, destinadas a perpetuar o caráter inaciano da Sociedade. Eles conseguiram isso através de decisões comuns transforma das em lei, proporcionando, assim, a estrutura de treinamento e de estilo de vida por meio da qual cada membro da Sociedade iria obter, fomentar e aperfeiçoar o seu companheirismo religioso. Algumas dessas regras e leis — por exemplo, um tempo fixo, todos os dias, para orações obrigatórias — Inácio havia examinado mas se recusara a adotar. Com toda a franqueza, Inácio nunca percebeu bem o impacto que ele causava pessoalmente. A sua própria existência, até mesmo uma carta sua, em geral era mais do que suficiente para manter seus jesuítas na linha e entusiasmados. Certos padrões de santidade e zelo tinham dependido do impacto pessoal de Inácio em vida. Os companheiros que sobreviveram a ele acharam necessário, para o bem-estar da Sociedade, adotar o que Inácio rejeitara.

Em 1581, 25 anos depois da morte de Inácio, várias regras novas já regulavam o estilo de vida religioso dos então 5.000 membros da Socie dade. Todos os dias, cada membro era obrigado, pelo regulamento, a fa zer uma hora de oração privada (“meditação”). Ele só comparecia a apenas dois tipos de

atividade comunitária: refeições em comum e as “litanias” (ou orações aos

Santos) no fim do dia.

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Àquela altura, também, o treinamento dos novatos havia sido apri morado. Antes, os noviços eram treinados em residências comuns de jesuítas. Agora, um estabelecimento em separado, o noviciado, havia sido criado, porque nos primeiros cinquenta anos da Sociedade só o recrutamento crescia a cada ano que passava, e os problemas de espaço aumentavam na mesma proporção. No início, o período de aprendizado para os novos variava; mas mais tarde , na história da Sociedade, a extensão normal do treinamento para um jesuíta (exceto para aqueles que entravam já ordenados) foi fixada em dezessete anos.

A era de ouro do jesuitismo começou com a eleição de um italiano de 37 anos de idade, Claudio Acquaviva, para padre-geral, em 1581. Ao longo de um período de 34 anos no cargo, Acquaviva deu os toques finais no caráter clássico dos jesuítas.

Além de ser um administrador de primeira classe, Acquaviva possuía aquela “intrepidez” tão elogiada por escritores da Renascença. Em qualquer pessoa não dotada dos dons de Acquaviva, teria sido incapacidade, um estúpido descaso pelas forças que ele enfrentava. Mas ele era, por natureza, um homem de grande poder pessoal. Sua mente, em geral, era mais perspicaz do que a de qualquer outra pessoa com a qual tinha que lidar, fosse papa, imperador ou bispo. Informado de que o papa, Gregório XIII, ficara surpreso por ele, o novo geral, ser tão moço (“Ele ainda não fez quarenta anos”) e ter tão pouco tempo de

vida religiosa (Acquaviva era jesuíta há apenas quatorze anos), dizem que Acquaviva declarou, em proveito do papa, que sabia que aquilo era uma falha, mas prometia trabalhar para saná-la “até mesmo enquanto eu estiver dormindo”.

É preciso ter muita confiança em si mesmo para mandar uma resposta dessas ao supremo pontífice.

Seus colegas jesuítas reconheciam a sua força e, mesmo quando reunidos na congregação geral, seguiam a sua liderança. A mesma congregação que o elegeu geral também decretou que em circunstâncias normais era o geral que iria explicar o que se queria dizer com o texto das Constituições. Era, sem dúvida, um voto de confiança em Acquaviva.

Num período de 34 anos, passando pelo reinado de oito supremos pontífices, nem todos amigos da Sociedade, Acquaviva apertou os vínculos de obediência e coesão interna em toda a Ordem. Instituiu um sistema de relatórios regulares enviados por todos os superiores ao gabinete do geral, relatórios sobre membros individuais, seus desempenhos e suas deficiências, e sobre as realizações da Sociedade. Determinou ainda mais o caráter do jesuíta, organizando um currículo de estudos tanto para jesuítas em treinamento como para escolas e faculdades onde jesuítas ensinavam a terceiros.1

Em 1594, outra ideia de Acquaviva foi adotada como regra da Sociedade: Santo Tomás de Aquino e Aristóteles deveriam ser as principais fontes para a teologia e a filosofia dos jesuítas. O objetivo da educação jesuítica era mostrar como os dados da ciência e as pesquisas sobre a na tureza podiam ser harmonizadas com os dados da fé; haveria ampla liberdade

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para as pesquisas positivas. Ao mesmo tempo, Acquaviva fez com que o caráter jesuítico fosse inculcado em detalhe cada vez maior promovendo o uso dos Exercícios espirituais de Inácio por não-jesuítas (clero e leigos). Esse esforço, por sua vez, fez com que os jesuítas se tornassem mais entendidos de jesuitismo, mais instruídos sobre ele. Disso resultou toda uma tradição de práticas piedosas e devotas na Sociedade.

A direção firme e o rigor administrativo de Acquaviva provaram a verdade da percepção original de Inácio: se você conseguir realmente fundir a mente e a vontade de milhares de homens, se você lhes fornecer disciplina, treinamento e diretrizes inteligentes para o local e o tipo de traba lho serão poucos os limites para o que você poderá realizar. Quando ele se tornou padre -geral, seu gabinete já estava provido de assistentes que faziam todo o trabalho árduo e minucioso, deixando-o livre para cuidar dos problemas maiores. Seu sucesso foi fenomenal. Na sua época, o número de membros da Sociedade passou de pouco mais de 5.000 em 1581 para mais de 13.000 em 1615. Só entre 1600 e 1615, houve um aumento de 5.000. Os jesuítas trabalhavam por toda a Europa, em alguns países africanos e no Oriente Médio; expandiram-se até as Filipinas, a Indonésia e a Indochina; tinham grandes missões no Canadá, no Paraguai e no Japão. Ao todo, tinham 370 escolas e faculdades, 33 províncias, 120 residências jesuíticas e 550 comunidades.

Existe uma outra razão para que os jesuítas considerem a era de Acquaviva como a Era de Ouro. Os seus santos mais conhecidos: Robert Bellarmine, Peter Canisius, Aloysius Gonzaga, Peter Claver e Alfonzo Rodríguez; seus doutos preeminentes: Francisco Suarez, Molina, Lessius, Francisc o de Toledo; seus renomados escritores espirituais: Alvarez De Paz, Luis de la Puente, Antoine le Gaudier; todos floresceram naquela época. Esses nomes podem não ser muito conhecidos hoje, mas houve época em que eram.

Em obediência sistemática, nas formas que modelaram o caráter jesuítico, na ideia jesuítica de conciliar fé religiosa com ciência, na criação de modelos para a devoção popular, bem como no serviço direto e submisso da Santa Sé, pode-se dizer que Claudio Acquaviva se destaca entre todos os 27 padres-gerais que governaram a Sociedade desde a morte de Inácio em 1556. Ele foi, em certo sentido, o segundo fundador do jesuitismo.

Com o tempo, todos os países da Europa e das Américas sentiram a influência jesuítica como elemento principal na maneira de ver as coisas e na linguagem de seus líderes e de seus povos. Através do caráter da Sociedade imaginado por Inácio e consolidado por Acquaviva, os jesuí tas como indivíduos e a Sociedade como instituição adquiriram uma identidade fixa aos olhos das populações a que serviam. Com aquele ritmo lento, firme e uniforme de aprendizado; com suas tradições nunca interrompidas de erudição, zelo no ensino, formação do caráter por meios provados, ortodoxia geral de crença, e regularidade de práticas e estilos de vida, os jesuítas não apenas formavam sacerdotes e teólogos, formavam

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e orientavam espiritualmente (e às vezes politicamente) príncipes e reis, mulheres e amantes de reis, líderes políticos de todos os níveis e, é claro, bispos e papas.

Esse caráter transparecia nos vários papéis que os jesuítas representavam, as diversas “casacas” que usavam: o jesuíta professor, o jesuíta confessor, o

jesuíta pregador, o jesuíta cientista, o jesuíta teólogo, o jesuíta humanista, o jesuíta missionário, o jesuíta escritor, o jesuíta emissário, o jesuíta guia espiritual e diretor.2 Mas apesar da multiplicidade de papéis representados e das “casacas” usadas, a qualidade central do caráter jesuítico era especificada por um determinado traço: devoção à pessoa de Jesus — ao Jesus de Nazaré e da História, que viveu, morreu e ressuscitou dos mortos; que agora vive para sempre como salvador e Deus de todos os homens; e que está representado na Terra por um homem vivo, o bispo de Roma, o papa da Igreja Católica.

Essa qualidade central do caráter jesuítico originava-se diretamente da espiritualidade pessoal e dos ensinamentos de Inácio.

Todo jesuíta entrava para a Sociedade com a convicção de que ti nha sido chamado pessoalmente por Jesus para se tornar um dos aliados de Jesus; literalmente, para se tornar um dos companheiros de Jesus. Daí, a Companhia de Jesus. E daí a nota jesuítica estritamente individualista: o chamado foi feito a mim pessoalmente; e minha resposta foi dada a essa pessoa, Jesus. Eu disse sim a Jesus. Com base nesse sim, fui admitido em sua companhia e na companhia daqueles já intimamente associados a Ele em sua campanha como salvador pelos tempos afora, pelos espaços afora. Os associados íntimos eram, principalmente, a Virgem Maria, os anjos, os santos e, depois deles, meus companheiros na Sociedade.

Tudo em relação à Sociedade visava fortalecer aquele chamado e, ao mesmo tempo, diferenciá-lo de outros chamados. Do chamado, por exemplo, de cristãos comuns para que obtivessem a salvação em ocupações humanas comuns; do chamado do monge ou da freira para viver num mosteiro ou num convento fechado; do chamado de um “cristão que tornou a nascer” no século

XX. Ele também era diferente do chamado sentido por muitos, hoje em dia — inclusive alguns jesuítas — que professam uma crença apenas no que chamam de “Jesus da fé” e declaram que estamos desligados para sempre do “Jesus da

história” e “de Nazaré”. Inácio e toda a tradição jesuítica teriam tratado tal pro -fissão como aquilo que ela é: um artifício semântico para trivializar aquela pessoa, Jesus.

Essa devoção era dedicada àquela pessoa. Eu havia garantido a co -municação com Ele.

O Jesus ao qual eu, como jesuíta, respondi com a minha afirmação e meu compromisso pessoais, podia ser ouvido e obedecido pessoalmente através de hierarquias de superiores, cada qual falando, segundo o seu mandato individual, com a voz e a autoridade daquele Jesus a quem eu havia respondido. O primeiro e mais alto superior era o único vigário de

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Jesus na Terra, o papa. O superior em segundo plano era toda a Sociedade encarnada em todos os outros companheiros e vogal na congregação geral da Sociedade, cujas decisões eram definitivas e obrigavam todos os jesuítas. Vinham, então, as hierarquias mais baixas de superiores: o padre -geral de toda a Sociedade; o padre provincial de minha província específica da Sociedade; o padre-reitor da casa para a qual fui designado; e cada superior menor naquela casa, do homem designado para me dar o dinheiro da passagem, ao irmão leigo encarregado da lavagem da minha roupa. “Eu posso estar aqui só

para distribuir com parcimônia salsichas para o seu café da manhã e penitências na hora do seu jantar”, disse um zangado padre-ministro a um escolástico petulante, “mas, por Deus, você vai aceitar tanto as salsichas como as penitências como se viessem das mãos de Cristo!” No seu aborrecimento, o

padre-ministro estava resumindo de maneira absurda mas exata o caráter básico e específico de um jesuíta.3 Aquela especificação básica do fato de eu ser um jesuíta — a devoção que jurei

à pessoa, Jesus, e minha associação a seus companheiros - introduziu-me ao jesuitismo. Para chegar até esse ponto, me disse o mandato de jesuitismo, eu primeiro tinha que ser chamado por Jesus e encontrá -lo na Sociedade.

O segundo mandato do jesuitismo me disse que, juntamente com aqueles companheiros, eu tinha que adquirir, da maneira mais completa possível, o meio mais atualizado, mais moderno, adequado ao meu ta lento, para converter o mundo, o mundo todo à nossa volta, à mesma postura de devoção pessoal de Jesus. Eu, como os outros companheiros de Jesus, queria que todos os homens e mulheres dessem a Ele essa submissão e esse tributo de suas mentes, seus corações e suas vontades — essa glória que era pessoal d’Ele e pública com

relação a Ele. Nada que não fosse o melhor ou que fosse de segunda mão serviria. Resultados parciais não eram o suficiente; resultados simplesmente bons não eram o bastante. No jesuitismo, como disse o filósofo, o melhor é inimigo do bom. Os resultados tinham que ser melhores do que bons; a glória para Jesus tinha que ser maior do que a glória comum com a qual os homens se contentam e contentam a sua vaidade — e, na verdade, maior do que a glória que outros concedem a Jesus. A Sua maior glória, era o que eu queria como jesuíta, tal como padre Inácio nos ensinara.

Em outras palavras, na múltipla e complicada maquinaria desse grupo de homens altamente organizado e concentrado, o caráter da Sociedade era uma expressão conjunta do caráter individual de Iñigo, o ex-fidalgo convertido pela graça de Jesus em Inácio o Santo. Porque em todos aqueles anos que ele labutou naqueles três aposentos da casa de pedra em frente à Capela de Maria della Strada, em Roma, aquelas poderosas palavras queimavam em sua mente e sua vontade: “Para a maior glória de Deus.” Nunca, antes ou depois de Inácio,

encontramos o fundador de uma organização que encarnasse, com tanto sucesso, o seu caráter pessoal num grupo

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de homens recrutados de dezenas de nações diferentes ao longo de uma era de civilização em mutação e inconstante, e em cada um dos membros daquele grupo diverso e heterogêneo.

Como aquele a quem eles chamavam de “nosso pai”, cada jesuíta lutava e

era estimulado a vida toda a aprofundar seu relacionamento pessoal com o Jesus vivo; a elevar-se, pela oração e pela devoção entrelaçadas com o trabalho árduo, incansável, para chegar a um amor ardente por aquele que o poeta jesuíta Gerard Manley Hopkins saudou como “herói do Calvário (...) Cristo, Rei, Líder (...) Jesu, alegria do coração, Jesu, filho de virgem (...) Cristo do Pai piedoso (...)”.

Como o de Iñigo em sua época mortal, aquele amor era altamente pessoal. Era Jesus, a pessoa divina em corpo humano, que deveria ser amado. Todo jesuíta deveria desejar beijar cada uma das cinco chagas de Jesus em adoração; consolar o seu coração de Deus-homem; expiar pessoalmente os insultos e as rejeições que Ele e Seu amor sofreram nas mãos de homens e mulheres descrentes e infiéis; ser identificado completamente com Ele como o salvador do mundo.

Para isso, não seria suficiente apenas observar a Sua lei e se compor tar como uma criatura obediente a Deus. Esta era a condição mínima pa ra a submissão. Com referência ao voto de santa pobreza, por exemplo, para mim, como jesuíta, não seria suficiente ser apenas indiferente e neutro em meus sentimentos sobre o poder, os prazeres e as posses deste mun do a ponto de não me importar o fato de tê-los ou não. Um monge budista, um swami hindu, o sufi muçulmano, muitos outros também, poderiam atingir, e a tingem, essa indiferença. A minha esperança de jesuíta, como escreveu Hopkins, “vira para

Cristo o espelho da mente / para assumir cada vez mais a Sua adorável semelhança”.

4 Idealmente, para a total identificação com meu adorado Senhor Jesus, eu, como jesuíta, iria querer ser exatamente como Ele era. Como jesuíta, eu preferiria — e, se pudesse optar, escolheria realmente — ser coberto de opróbrio; ser condenado sem ter feito coisa alguma para merecer a condenação; ser classificado como inútil e como tolo, um insignificante aos olhos do mundo, por uma razão apenas: foi assim que meu Senhor Jesus me salvou e salvou todos os homens e mulheres do mundo da condenação eterna. “Desprezado e rejeitado

(...) despojado (...)”, foi como São Paulo expressou o ideal. S er apenas semelhante a Ele — era o meu único motivo. Por quê? Porque eu o amo. Porque Ele era assim. O amor sempre faz com que você fique ansioso por ser como a pessoa que você ama.

Mas mesmo ser semelhante a Ele não era o bastante. Como jesuíta, eu queria alimentar um desejo cada vez maior de encontrá-lO em toda parte.

I kiss my hand To the stars, lonely, asunder Starlight, wafting him out of it... [Glow, glory in thunder;}

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Kiss my hand to the dappled-with-damson west. Since, tho’ he is under the world’s splendor and wonder, His mystery must be instressed, stressed For I greet him the days I meet him, And bless when I understand.*5

Não se trata de palavras bonitas mas isoladas, nem para o jesuíta que as escreveu, nem para qualquer jesuíta. Elas expressavam o cerne de sua vida, não importam quais fossem os seus talentos ou o seu trabalho. Todos os companheiros da Sociedade estavam ansiosos e ocupados em encontrar todos os sinais de Deus e da obra de Deus por todo o cosmo onde Ele, Deus, o Artesão, o deus faber dos místicos medievais, estava sempre criando, preservando em existência, renovando. Como Inácio, eu, como jesuíta, queria elevar -me para um amor de Jesus como Deus, o Artesão. Para mim, não era suficiente ser grato pelas Suas dádivas a mim, pessoalmente, e ao meu mundo. É claro que eu via Deus trabalhando em todas as coisas — vivificando, embelezando, refrescando e acelerando a entrada dos seres humanos e de toda a natureza em ciclos alimentadores da vida. Sob todos os aspectos, eu via, assim, Deus em todas as

coisas. Mas mais do que isso, eu me esforçava, com meu espírito e todo o meu ser,

para chegar ao apogeu do amor onde pudesse ver todas as coisas em Deus; vê-las mais exatamente como manifestações do Seu poder e de Sua beleza, como raios de luz descendo do sol, como cursos d’água sal tando da fonte. Nada na criação escaparia desse ponto de vista — a temível simetria do tigre, o ridículo espiral do rabo de um bacorinho, perfumes, cores, gostos, o silêncio audível instalado no topo das montanhas, as figuras traçadas por uma dançarina, os gritos de crianças brincando, o canto dos pássaros, a labuta dos insetos mais insignificantes.

Vendo todas as coisas em Deus, com sua natureza e sua beleza, as escamas iriam cair de meus olhos restringidos pela carne. Tranquilamente, irresistivelmente, coerentemente, tudo seria absorvido n’Ele, para mim; e a

poeira e as cinzas da mortalidade deles e da minha própria seriam consumidas no inoxidável brilho de Sua eterna existência e beleza.

Se mesmo isso fosse tudo, porém, eu ainda não seria uma jesuíta, Eu poderia, na verdade, ser um perfeito monge cartuxo, acalentando mi nha associação pessoal e viva com Jesus na minha solidão. Mas como je suíta devo, como pretendia Inácio, ser um ativista mantido pela contemplação — um contemplativo dedicado à ação. Como Inácio presumia que

*Beijo minha mão às estrelas, bela-distante

luz das estrelas, espargindo-o para longe dela; e

[brilham, alegram-se orgulhosas com o trovão;]

beijo minha mão ao ocidente com tons de ameixa;

porque, embora Ele esteja sob o esplendor e a maravilha do mundo,

seu mistério tem que ser introenfatizado, enfatizado;

porque eu o saúdo nos dias em que o encontro e abençoo quando compreendo.

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todo jesuíta iria ter essa preocupação perpétua de encontrar Deus em todas as coisas, ele se recusou a prescrever um tempo determinado, todos os dias, para ser dedicado a orações. Seus jesuítas estariam numa oração constante o dia inteiro, disse ele. Ele exigia que cada um fizesse uma pausa duas vezes ao dia, ao meio-dia e ao anoitecer, a fim de examinar a consciência. Exigia que cada um deles atacasse objetivos bem palpáveis e concretos em seu trabalho: que fossem ativistas dedicados, realizadores dedicados e, ao mesmo tempo, mantivessem firme o olhar íntimo, nunca permitindo que ele se desviasse da bem-aventurada solidão daquela contemplação.

Quando tudo estivesse encaixado na minha vida diária de jesuíta, eu iria ver, cada vez mais, que aquele mesmo Jesus, como humano e divino, diviniza e santifica a vida toda para sua glória inefável. Com tudo o que fosse bom no cosmo, eu estaria absorto em Deus através do amor daquela glória.

Em consequência, o tema da vida de cada jesuíta era dedicação à gló ria de Cristo e uma entrega de si mesmo segundo a oração favorita de Iná cio:

Aceitai, Senhor, e recebei Toda a minha liberdade, minha memória, meu intelecto, E toda a minha vontade... Tudo isso tenho e possuo. Vós me destes tudo isso. A vós, Senhor, eu devolvo. É tudo vosso. Disponde de tudo segundo a Vossa vontade. Dai-me Vosso amor e Vossa graça. Para mim, serão o bastante.

A Sociedade e os jesuítas tiveram a muito boa sorte de, bem no início de sua longa história, esse caráter orientado para Jesus da espiritualidade e da perspectiva jesuítica receber uma confirmação literalmente caída dos céus — na verdade, equivalia a uma incumbência para os jesuítas ordenada pelos céus. Só a autoridade infalível da Igreja Católica poderia garantir a autenticidade daquela incumbência.

Ela chegou através de uma freira da Ordem da Visitação. Seu nome era irmã Margaret Mary Alacoque. Em seu convento de Paray-le-Monial, na França, ela foi a receptora de revelações divinas especiais que começa ram por volta do ano de 1670. Seu caso é um dos relativamente raros na história da Igreja em que a autoridade de doutrina de Roma confirmou a autenticidade de revelações feitas a uma única pessoa.

As revelações giravam em torno do amor que Jesus tem pelos homens e pelas mulheres, e a negligência com que esse amor era tratado por eles. Nas revelações, como símbolo desse amor, o coração físico de Jesus era sempre mostrado à freira. Além do mais, nas revelações, Deus pedia a ela que divul -gasse uma devoção específica a Jesus sob aquele símbolo, a fim de que os fiéis, pela sua piedade, reparassem a negligência e a ingratidão da maioria.

Num desses acontecimentos que são mais do que mera coincidência,

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um jovem jesuíta de 34 anos de idade, Claude La Colombiòre, foi nomea do capelão de Paray-Ie-Monial em 1675. Ficou lá apenas dezoito meses, mas naquele período a freira lhe comunicou as revelações que tinha, e ele mesmo teve revelações confirmadoras. Nos seis anos que lhe restavam antes de morrer aos 41 em 1681, ele conseguiu transmitir os desejos divinos a seus superiores e, através deles, às autoridades romanas. Roma aceitou as relações da freira e o testemunho de Claude La Colombiòre e instituiu um dia de festas anual para a Igreja universal, com missa e uma liturgia de orações especiais para serem usadas pelos sacerdotes naquele dia.

Dessas ações simples por parte de duas pessoas obscuras (*6), brotou uma devoção e um novo aspecto de pensamento teológico sobre a pessoa de Jesus e sua terna redenção de homens e mulheres dos efeitos mortais do pecado. A partir do momento em que Roma aceitou a autenticidade das revelações de Alacoque em fins do século XVII,7 os jesuítas aceitaram oficial e entusiasticamente a missão de divulgar essa devoção. Nenhuma imagem iria dominar tanto a piedade e a devoção dos fiéis comuns como aquela que passou a ser chamada, em toda parte, de o Sagrado Coração de Jesus; e nenhuma outra devoção ascética passou a ser reconhecida como tão tipicamente jesuítica como a devoção àquele Sagrado Coração, o símbolo perfeito do ideal jesuítico em santidade pessoal.

O cultivo deliberado dessa nota especificamente jesuítica — devoção pessoal a Jesus, em especial sob a imagem de seu Sagrado Coração — nos membros da Ordem, enquanto eles se espalhavam pelo mundo e trabalhavam nas mais diversas tarefas com diferentes talentos, técnicas e re sultados, explica o que muitos perceberam com curiosidade a respeito dos jesuítas no passado: o alto grau de individualismo entre eles e, ao mesmo tempo, aquela comunidade estranhamente cativante e impressionante que os envolvia como grupo.

A chave que soluciona o enigma dessa identidade comum em tanta diversidade era aquela nota específica: o chamado pessoal de Jesus a ca da um deles, para que sirva usando o máximo de capacidade pessoal. E fazer isso nas fileiras de companheiros que receberam, todos, aquele mes mo chamado específico de dedicação; e que cada qual obedecia através das suaves (e, às vezes, não tão suaves) vozes que chegavam até ele por intermédio das hierarquias de superiores maiores e menores. Dos lábios de Deus para os ouvidos de cada jesuíta. Eram todos bons soldados de Cristo, como escreveu São Paulo. Não importa onde estivessem ou o que estivessem fazendo ou como funcionavam, eram todos companheiros na Companhia de Jesus; e, assim, todos participavam da glória de Jesus.

Isso acontecia com o assessor do governo, com o emissário papal, e com o padre da paróquia na cordilheira dos Andes. Era verdade no que se referia ao paciente professor de escolas e faculdades, ao pastor residen te numa favela de Dublin ou de Bombaim, ao cientista pesquisador num labora tório atômico. E era verdade quanto a cada um dos elementos das “linhas de frente”, os

“briguentos”, aqueles que ficam sozinhos em Katmandu como testemunhas

mudas, isoladas, de Cristo, ou participam da vida

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sem objetivo de refugiados num acampamento na fronteira da Tailândia. Nem todos os jesuítas eram do mesmo nível a serviço da glória de Jesus,

pelo menos aos olhos dos homens. Mas o reconhecimento da gló ria de Deus em todos e a solidificação da obediência mantinham cada um no seu lugar, contente e ativo.

Não importa que calúnias se diziam sobre eles, não importa o fra casso pessoal de um jesuíta, por um motivo qualquer, a reputação da So ciedade e do caráter jesuítico mantinha-se firme. Até mesmo o anticlerical e, na maior parte de sua vida, agnóstico Voltaire teve que admiti-lo. Os jesuítas que o educaram no Colégio Clermont “dedicavam todas as horas do dia à nossa educação e ao cumprimento de seus votos rigorosos. Como prova, apelo para o testemunho de milhares que, como eu, foram educados por eles”. Sendo educado pelos jesuítas no Colégio Balley, escreveu o poeta e estadista Alphonse Lamartine, “ali

aprendi o que se pode fazer de seres humanos, não por compulsão, mas pelo estímulo. (...) Eles [os jesuítas] tornavam atraentes a religião e o dever, e n os inspiravam com o amor de Deus (...) começaram por me fazer feliz — de boa vontade teriam feito de mim um homem bom (...)”. Coube àquele mes tre da diplomacia, Talleyrand, resumir o que amigos e inimigos apreciavam com relação aos jesuítas. “Quer você concorde com eles, quer não, todos encontram nos jesuítas aquela preciosa nota de razão. Eles são razoavelmente severos, razoavelmente indulgentes, razoavelmente morais, razoavelmente hostis, razoáveis até mesmo em sua devoção ao papado. Sempre, aquela no ta de razão. Toujours cette note de raison.”

É historicamente certo que nos primeiros trezentos anos da vida da So -ciedade o ideal jesuítico de caráter foi verdadeiramente desenvolvido e vi vido por milhares de jesuítas. Estamos falando, aqui, da autentici dade da obediência jesuítica ao papa e da autenticidade da ambição jesuítica de se assemelhar a Jesus em todas as coisas, em especial nas humilhações, nas acusações injustas, nas grosseiras decisões injustas dos tribunais, e dos malentendidos que Jesus sofreu de bom grado como parte integral de seus sofrimentos a fim de redimir a humanidade do pecado e suas consequências.

Dois acontecimentos momentosos nos convencem dessa autenticidade. O primeiro dizia respeito à penetração jesuítica na China nos século s XVII e XVIII. O segundo foi a abolição da Sociedade por um papa. Em todos eles, a reação jesuítica de obediência e a perseverança, à semelhança de Cristo, na humildade e na esperança, são mais admiráveis. Os jesuítas que suportaram o choque daqueles dois acontecimentos foram heróis, qualquer que seja a definição que se dê ao termo.

Em fins da década de 1600, missionários jesuítas na China já haviam feito um grande progresso em prol de converter o imperador da China e poderosos mandarins e nobres. Haviam criado, também, uma Igreja com vários milhões de membros.

A penetração jesuítica na China, com enorme consumo de homens, equipamento e tempo, foi uma manobra proposital baseada no exame das forças geopolíticas que dominavam o Extremo Oriente. O Império do

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Meio, como a China era chamada, dava o exemplo no que se referia à cultura e ao poder ao Japão, ao Sudeste da Ásia, à Indonésia e ao Tibet. O respeito pelo Império do Meio em sua cultura e seu poder imperial era tão grande, e a população de “chineses de além-mar” em todo o Extremo Oriente já era tão apreciada economicamente, que uma conversão da corte imperial de Pequim e seus súditos deveria provocar ondas de efeito em toda a região. Francisco Xavier, o primeiro missionário jesuíta no Japão, havia compreendido isso com seus convertidos japoneses; mas morreu esperando pela oportunidade de entrar no Império do Meio. A China era prêmio. Continua sendo, hoje em dia.

Uma das adaptações que os jesuítas fizeram no curso de suas tentati vas na China dizia respeito às cerimônias ou ritos chineses homenageando o imperador, Confúcio, e os antepassados dos chineses. Missionários anteriores tinham condenado esses ritos, classificando-os de pagãos e de irreconciliáveis com a cristandade. Os jesuítas pensavam o contrário. Alegavam que os ritos em questão eram mal compreendidos por ocidentais que não entendiam bem a língua chinesa. Os jesuítas analisaram a composição e o significado de cada ideograma chinês usado pelos chineses para escrever o que entendiam por “veneração” e “ritos”. Parece que os adversários dos jesuítas nem mesmo

entenderam os argumentos. Ainda assim, os jesuítas continuaram na luta. Com base num estudo da

língua falada e da língua escrita, provaram, disseram eles, que aqueles ritos não veneravam, de maneira alguma, o imperador, Confúcio, ou os antepassados dos chineses como divindades, mas apenas como o imperador, como Confúcio o Sábio, e os antepassados de cada um dos chineses! Os chineses nunca iriam aceitar a cristandade se aqueles ritos fossem proibidos. Além do mais, alegavam os jesuítas, se esse elemento pudesse ser absorvido pela cristandade, a China inteira iria seguir o imperador ao entrar para a Igreja.

Durante mais de quarenta anos, a controvérsia campeou, com homens bons e dedicados, egoístas e ignorantes de ambos os lados da cerca. A atividade jesuítica em Roma em favor dos ritos só era igualada por contraconspirações e cabalas burocráticas contra eles na corte papal. Por fim, o papa Clemente XI baniu os ritos em 1704 e 1715, como fez o papa Benedito XIV em 1742.

O resultado imediato e de longo alcance foi a perda daquela magní fica oportunidade de abrir a China à conversão nacional ao catolicismo — e com ela todo o Extremo Oriente foi perdido pela Igreja. Irromperam perseguições sangrentas e a população chinesa católica foi dizimada. Uma vez tomadas as decisões papais, no entanto, os jesuítas obedeciam, alguns com a mera obediência de execução, a maioria com a obediência da vontade, outros, certamente, com a obediência da compreensão. Com frequência, essa obediência custava a vida a muitos.

A decisão papal foi errada, como ficou demonstrado. Quase dois séculos depois, em 1939, o papa Pio XII sancionou um decreto romano per mitindo que católicos tomassem parte naqueles mesmos ritos. O que era

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permissível em 1939 devia ter sido declarado permissível em 1704. Mas o ponto substancial de obediência ao papa era o fator de decisão para os jesuítas. A obediência não lhes proporcionava ganhos mundanos — seus inimigos, ao sentirem esse gosto do sangue dos jesuítas, estavam apenas estimulando o seu apetite para o golpe final que viria mais tarde naquele século. Mas para os jesuítas ela garantiu aquele substancial. Era isso, em última análise, tudo o que importava: que a Sociedade fosse fiel ao seu caráter, obediente ao papa, paciente quando condenada errada e injustamente. Portanto, à semelhança de Cristo.

O segundo acontecimento que testou o caráter jesuítico foi a supres são formal da Sociedade de Jesus por um ato oficial de um papa, Clemente XIV. Na percepção tardia da história, o historiador de hoje tem pouca dificuldade em destacar os fatos proeminentes do acontecimento daquilo que ainda continua sendo intrigante e problemático.

Não há dúvida, na cabeça de ninguém, de que o impulso e a determinação de varrer a Sociedade de Jesus da face da Terra tiveram apoio e intercessão muito fortes de poderosos membros da corte papal em Ro ma; apesar disso, porém, a estocada imediata e irresistível contra os jesuítas partiu direta e principalmente e, como se viu, com sucesso, dos inimigos não-clericais, leigos, dos jesuítas.

Os atacantes da linha de frente foram os membros da família real dos Bourbon — todos católicos romanos — que ocupavam os tronos da Espanha, de Portugal, da França, de Nápoles e da Sicília. O trono dos Habsburg da Áustria acompanhou os Bourbon, devido ao medo de ser excluído dos parceiros em casamentos reais. Os melhores desses parceiros eram Bourbon ou dependentes dos Bourbon. Podemos achar difícil, no nosso mundo de duas enormes superpotências, os EUA e a URSS, imaginar aquele distante mundo da década de 1700. Mas o fulcro da riqueza, do poder e da cultura mundiais situava -se no antigo coração da Europa Cristã — precisamente aquelas áreas dominadas pela “família dos irmãos Bourbon”.

Também é historicamente certo que a “família” tinha feito o “Pac to”, como

era chamado: um acordo entre eles para agirem em uníssono em assuntos que afetassem a todos. Por algum motivo, a existência da Sociedade de Jesus afetava a todos, garantiam eles, de forma adversa. Eles tinham que se livrar da Sociedade. Os ganhos econômicos ou financeiros da “família” com uma

supressão geral da Sociedade foram insignificantes. Da mesma forma, não houve nenhum ganho político substancial com aquela supressão. Resta -nos o desejado triunfo de alguma ideologia como o fator instigante por trás da determinação da “família” em acabar com os jesuítas.

A razão para a decisão letal daqueles inimigos é intrigante, a menos que admitamos como razão a existência de alguma hostili dade profunda para com a Igreja Católica Romana e sua principal defensora e baluarte na época — a Sociedade de Jesus. A hostilidade só podia ser ideológica.

O último elemento do que ainda continua um enigma histórico é

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proporcionado pela maçonaria europeia no contexto do Iluminismo europeu na década de 1700. Naquela época, os estadistas mais poderosos pertenciam necessariamente à loja maçônica. É certo que os principais consultores junto aos príncipes de Bourbon eram membros ardorosos da loja maçônica. O marquês de Pombal, consultor real de Portugal; o conde de Aranda, ocupando o mesmo cargo na Espanha; o ministro de Tillot e o duque de Choiseul, na França; o príncipe von Kaunitz e Gerard von Swieten na corte de Habsburg de Maria Teresa da Áustria. São nomes que já não significam coisa alguma para nós, os modernos, mas constavam e ainda constam das listas de membros maçônicos em lugar de honra. Cada um daqueles homens ocupava um cargo de confiança no governo, e cada qual desejava declaradamente a morte da Sociedade. Eles viam nos jesuítas “os inimigos jurados da maçonaria”, os “mais argutos inimigos da

tolerância” e “os piores corruptores da liberdade”. O ódio aos jesuí tas era intenso e, quanto às palavras, nobre: “Reconheço os esforços que eles os

jesuítas fizeram”, escreveu Choiseul a José da Áustria, “para espalhar a escuridão pela superfície da Terra e para dominar e confundir a Europa, do cabo Finisterra ao Mar do Norte.”

O maior tom patético naqueles últimos anos da Sociedade pré -Supressão é dado pelos próprios jesuítas: segundo cartas e documentos da época, vê -se claramente que eles sabiam quem se empenhava em eliminá -los.

Não há dúvida de que o papado via na maçonaria europeia um inimigo mortal, e por uma razão muito boa. Em 1735, se não antes, as principais lojas maçônicas europeias eram inimigos jurados da jurisdição papal centralizada e dos ensinamentos dogmáticos católicos romanos. Os obje tivos gerais da maçonaria como tal, a partir do segundo terço do século XVIII, eram fundados em várias premissas inaceitáveis para o catolicismo: Jesus não era Deus; não havia céu ou inferno; não havia Trindade de Pessoas divinas — só o Grande Arquiteto do Cosmo, ele mesmo fazendo parte daquele cosmo; os seres humanos eram aperfeiçoáveis durante suas vidas nesta Terra. O que arruinava a cultura humana e pervertia a civilização era a alegada autoridade da Igreja Romana.

Essa transformação da maçonaria de associação originalmente de crentes cristãos num corpo de homens resolutamente opostos à antiga fé da Eur opa foi efetuada, principalmente, pela nova onda de descobertas científicas. Naquele “Século das Luzes”, os homens chegaram à conclusão de que a inteligência humana era infalível, que a revelação já não era necessária, e que só as desinibidas investigações e pesquisas humanas eram necessárias à felicidade humana.

Toda uma galáxia de brilhantes pensadores e hábeis escritores surgiu defendendo essa nova atitude — La Mettrie, Diderot, d’Alambert, Montesquieu,

Helvécio, Ia Chalotais, Voltaire, Barão d’Holbach. O Iluminismo invadia, agora, os salões das pessoas de destaque na sociedade, as reuniões reais, as reuniões de chefes de partidos políticos, e assembleias de universidades. A Igreja Romana, o papa romano e a Sociedade de Jesus

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foram estigmatizados desde o início como os três grandes obstáculos ao precioso Iluminismo.

Por essa razão, Clemente XII (1730-40) condenou a maçonaria como incompatível com o catolicismo e penalizou com a excomunhão to dos os católicos que entrassem para as lojas maçônicas. Essa condenação tem sido mantida repetidas vezes por Roma mesmo até princípios da primavera de 1984. Seria ridículo alguém negar que o zelo maçônico daqueles em íntimo contato com os príncipes de Bourbon na qualidade de consultores não visava incapacitar o papado ao acabar com a sua arma mais potente, a Sociedade de Jesus.

A razão ideológica, portanto, para se livrar dos jesuítas estava presente. Não há necessidade de supor que uma trama formal foi maquinada e que conspiradores juraram sigilosamente acabar com a Sociedade de Jesus. Todos aqueles líderes do Iluminismo eram membros da loja maçônica, bem como membros destacados da classe dominante em seus círculos políticos, financeiros, literários e sociais. Quer se reunissem na loja de Paris, chamada de “Nas Nove Irmãs”, na loja de Madri chamada “Espadas Cruzadas”, quer em

jantares oficiais ou reuniões financeiras, todos pensavam da mesma maneira, como “Irmãos da Pirâmide”. O irmão Pombal, o irmão Choiseul, o irmão

Kaunitz enviavam mensagens uns aos outros e aos demais irmãos sobre a necessidade de atacar o papado através dos jesuítas.

Os jesuítas estavam demasiado cientes do que estava acontecendo para não sentirem o cheiro de sua morte que se aproximava nos fortes ventos que já tinham começado a soprar contra o seu Instituto. Que os jesuítas daquela época estavam cônscios do perigo mortal que tinham pela frente está claro na declaração oficial de seus líderes, feita quando eles se reuni ram em Roma entre 9 de maio e 18 de junho de 1758: “Se, com a permissão de Deus devido a Seus desígnios secretos que só nos cabe adorar, viermos a nos tornar o alvo da adversidade, o Senhor não irá abandonar aqueles que permanecerem ligados e unidos a Ele; e enquanto a Sociedade puder ir para Ele de alma aberta e com sinceridade no coração, para ela não será necessário nenhuma outra fonte de força.”

Pode-se ouvir, por entre essas palavras, a voz da velha Sociedade de Jesus repetindo os temas básicos do jesuitismo: submissão e obediência; aceitação da condenação e da desgraça; relacionamento pessoal entre a Sociedade e Deus.

Pombal começou, em Portugal, o rolo da destruição. Entre 1759 e 1761, todos os jesuítas que estavam em Portugal e seus domínios de além- mar foram presos, transportados por navios da marinha real, e deposi tados nas costas dos estados papais da Itália. Todas as propriedades dos jesuítas — casas, igrejas, colégios — foram confiscadas.

Agora era a vez da França. Grave erro de julgamento tático por par te dos jesuítas deu a seus inimigos vigilantes de lá a chance que estavam procurando — cuidar do caso LaValette.

O padre LaValette era superior da missão jesuítica na ilha de Martinica.

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Para garantir o financiamento de que precisava para a missão, La -Valette havia utilizado crédito comercial a fim de realizar grandes empreendimentos comerciais. Ao fazer isso, infringiu as regras explícitas da Sociedade. Ainda em 1751, superiores jesuítas tinham reiterado a proibição de que jesuítas participassem de qualquer negócio como chefe ou sócio. O próprio Inácio havia estabelecido essa proibição.

Chegou o dia em que ele não pôde pagar às companhias de crédito, em especial uma firma comercial de Marselha cujos prejuízos a débito dele somavam 2,5 milhões de francos. O superior provincial francês e o padre -geral, Lorenzo Ricci, recusaram-se a pagar as dívidas de LaValette, alegando que ele violara as regras da Sociedade e, portanto, que a Sociedade não era responsável.

Foi uma tática errada. A firma levou a Sociedade aos tribunais, alegando que ela era responsável. O tribunal decidiu em favor da firma querelante. Os jesuítas apelaram, como era de seu direito, ao Parlement francês.

Este foi o segundo erro grave. O Parlement não apenas decidiu contra a Sociedade no caso LaValette; recomendou e decidiu, no dia 6 de agosto de 1762, que a Sociedade fosse expulsa da França como incompa tível com o bem-estar do estado. É óbvio que por trás daquela decisão havia mais do que a dívida de LaValette. O consentimento do rei Luís XV foi obtido — principalmente, dizem, porque sua amante, madame marquesa de Pompadour, tivera recusada a Santa Comunhão pelo confessor do rei Luís XI, padre Perusseau, e ela nunca esquecera aquele desrespeito à sua honra. Foi Pompadour que venceu os escrúpulos de Luís quanto à assinatura do decreto. O decreto do Parlement tornou-se lei. Os jesuítas fecharam todas as suas escolas, casas e igrejas. Alguns ficaram na França na clandestinidade. Outros foram para o exílio.

Uns meros seis anos depois, numa só noite entre 2 e 3 de abril de 1767, todas as casas, colégios, residências e igrejas pertencentes aos jesuí tas em toda a Espanha e nos domínios espanhóis na América foram inva didas por tropas reais espanholas. Cerca de 6.000 jesuítas foram presos, amontoados como arenques nos porões de navios de guerra espanhóis, e transportados para os estados papais na Itália, onde foram descortesmente despejados nas praias, estivessem eles vivos, morrendo ou já mortos. Toda a operação espanhola, que exigiu mais de catorze meses de planejamento, foi um triunfo do segredo burocrático e da precisão militar.

Pouco depois, os reinos dos Bourbon de Nápoles e Parma fizeram o mesmo e, ainda mais tarde, a Áustria também. Todos expulsaram os jesuítas e confiscaram seus bens. Só restava, agora, a Sociedade ser liquidada pelo papado.

Quando um conclave papal de cardeais se reuniu em 1769 para eleger um novo papa, a “família” dos Bourbon deixou claro que só aceita ria como papa alguém que garantisse liquidar os jesuítas. O cardeal Lorenzo Ganganelli deu sua garantia quanto a isso aos embaixadores das cortes reais de Suas Majestades. Foi eleito como papa Clemente XIV.

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Foi exercida, então, uma pressão direta sobre o papa Clemente XIV para que cumprisse a promessa que fizera como condição para receber o apoio dos príncipes Bourbon à sua eleição. Ele acabou concordando, fechando o seminário da Sociedade em Roma em 1772, depois todas as casas e igrejas nos estados papais e, finalmente, divulgando um documento papal intitulado Dominus ac

Redemptor, em 21 de julho de 1773, que eliminava por completo a Sociedade de Jesus. “A Sociedade de Jesus já não está em condições de produzir aqueles ricos

frutos e notáveis vantagens para os quais foi instituída É “inteiramente

impossível manter uma paz verdadeira e duradoura dentro da Igreja enquanto essa Ordem existir. (...) Pelo presente, extinguimos a Sociedade de Jesus (...)”.

Não podia haver dúvidas quanto à obediência ao édito papal. A simples obediência de execução foi imposta pela força das armas. Mas os je suítas praticavam a obediência da vontade. Aceitaram, fiéis até mesmo naquela situação extrema ao caráter de sua Sociedade, a extinção; não fingiram ser ainda uma Ordem de homens chamada de Sociedade de Jesus. Os jesuítas da Europa que foram dispersados agrupavam-se, então, em núcleos que recebiam novos nomes — a Sociedade do Sagrado Coração de Jesus, os Padres da Fé, a Sociedade da Fé de Jesus e semelhantes. Os ex-jesuítas da Espanha e de Portugal tinham grupos próprios.

Dois soberanos, Catarina da Rússia e Frederico da Prússia, recusa ram-se a promulgar o decreto do papa. Legalmente, portanto, e canonicamente, a Ordem não foi extinta em nenhum dos dois territórios. Ali, os jesuítas se reuniram e formaram um núcleo, elegendo um vigário-geral temporário, o padre lituano Stanislaw Czerniewicz. Quando o papa Clemente XIV morreu um ano depois de extinguir a Sociedade,8 Czerniewicz escreveu ao seu sucessor, Pio VI, perguntando a Sua Santidade o que devia fazer.

Pio VI foi enigmático mas estranhamente encorajador, dizendo a Czerniewicz que esperava que “o resultado de suas orações, tal como prevejo e

o senhor deseja, seja um resultado feliz”. Era uma clara referência à

restauração, em futuro próximo, da Sociedade. Os jesuítas da Rússia realizaram cinco congregações interinas entre 1782 e

1805. Cada vez que elegiam um novo vigário-geral, este era autorizado pela Congregação a agir como superior até que a Sociedade de Jesus fosse “universalmente restaurada”. A restauração não demorou a chegar. Em 1801,

Pio VII transformou o então vigário-geral, o lituano Franciszek Kareu, em padre-geral dos jesuítas. Na gestão do geral-no-exílio seguinte, o polonês Tadeusz Brzozowski, foram criadas duas províncias oficiais: Rússia e Itália. Por fim, no dia 7 de agosto de 1814, o papa Pio VII restaurou formalmente a Sociedade de Jesus na Igreja universal. O padre Tadeusz Brzozowski foi o padre-geral; como não podia sair do território russo, ele era representado em Roma por um vigário-geral, Mariano Petrucci.

O que se seguiu nos cinquenta anos seguintes foi uma quase-ressurreição da Sociedade como era antes. Todos os elementos da Sociedade

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pré-extinção foram adotados uma vez mais: as Constituições inacianas; o conjunto de regras comuns; o uso de noviciados formais e casas de trei namento em separado para os escolásticos; a prática e o uso dos Exercícios espirituais; o apoio oficial à devoção oficial jesuítica, o Sagrado Coração de Jesus; o uso de uma forma renovada da velha Ratio Studiorum. Abriram-se colégios e universidades jesuíticas. O número de membros da Sociedade aumentou regularmente de algumas centenas em 1814 para dois mil em 1830, para mais de 5.200 em 1850 e para quase 12.000 em 1880.

O caráter tradicional da Sociedade foi assentado uma vez mais, por assim dizer, em concreto pelo padre-geral que governou entre 1853 e 1887, o belga Pieter Beckx. Beckx considerava um ato seu como o ponto máxi mo e focal de seus 31 anos de governo da Sociedade. No dia 9 de junho de 1872, ele consagrou solenemente a Sociedade inteira ao Sagrado Coração de Jesus. Isso deu novo ímpeto ao caráter jesuítico clássico, com a sua nota de ligação pessoal com Jesus. Por todas as províncias, os jesuí tas instalaram uma série de organizações para pessoas leigas dedicadas a essa devoção jesuítica; houve um fluxo contínuo de estudos sobre o assunto. Beckx e os gerais que se seguiram até o século XX estavam sempre enfatizando a centralidade dessa devoção para os jesuítas. Durante muito tempo depois de ter pedido dispensa por questões de saúde — ele o fez em 1884, mas viveu outros oito anos, até à idade provecta de 97 anos — Beckx se lembrava daquele dia de consagração, na Igreja, do Gesù em Roma.

Com a renovação desse precioso caráter jesuítico, era inevitável que surgisse uma ênfase na ortodoxia de doutrina católica romana. Isso, jun tamente com a fidelidade ao papa, era a principal preocupação dos superiores. A lição mais importante aprendida na extinção foi que sem sólidos pés de apoio na Santa Sé, não havia volume de trabalho que pudesse livrar a Sociedade dos contratempos. Os Bourbon foram os inimigos da Sociedade, e a maçonaria também. Mas alguns de seus inimigos mais ferrenhos estavam entre burocratas romanos de mentalidade secular; e, no final das contas, fora um papa que chegara à conclusão de que a Sociedade era um perigo para o papado e para a própria Santa Sé.

A ortodoxia, portanto, era a chave para uma segurança maior. Não apenas a ortodoxia clássica de Santo Tomás de Aquino, mas a ortodoxia desenvolvida do romanismo papal. Tudo o que podia ser feito oficialmente e pelos superiores era feito com esse objetivo. A teologia e a filosofia de São Tomás foram proclamadas como o ensinamento oficial da Sociedade. Mas acima de tudo, o lema em toda a Sociedade era uma nova ênfase, nela como o instrumento dócil e eficiente do papado e da Santa Sé.

Os membros da Sociedade seriam os destacados “ultramontanos”. Esta

deveria ser a marca de excelência e a glória deles como indivíduos e como grupo. Esse rematado romanismo deu os toques finais no restaurado caráter da Sociedade.

As circunstâncias do século XIX foram feitas sob medida para permitir

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que a ênfase final, a nota máxima de virtude, do romanismo fossem acrescentadas ao caráter da Sociedade. Foi em 1869 que o Concílio Vati cano I definiu a infalibilidade do papa e destacou com o mais nítido relevo, como princípio de fé, que o vigário de Cristo na Terra deveria ser perpetuamente identificado, por associação, com um único ponto geográfico — Roma. O romanismo verdadeiro incluía essa “verdade romana”, como era chamada, aliada

à infalibilidade do papa e à primazia — superioridade — do papa sobre cada um dos outros bispos e sobre todos os bispos juntos. Os jesuítas se tornaram os defensores dessa estrutura hierárquica romana.

Os maiores inimigos que esse romanismo enfatizado enfrentou no século XIX foram os teólogos e filósofos que se classificavam de moder nistas. No fundo, o seu princípio fundamental era a perpétua necessidade de modernizar a Igreja e a mensagem da Igreja. Caso contrário, como poderia a Igreja ser compreendida e aceita? Era preciso uma ponte, diziam eles, entre o Evangelho muito antigo e a mentalidade e a cultura de homens e mulheres, sempre em mutação. Essa ideia não era estranha à Igreja ou aos jesuítas. Mas os modernistas atravessaram aquela frágil ponte com uma carruagem pu xada por duas parelhas. Adaptação, em suas bocas e sob suas penas, significava renúncia a doutrinas básicas. Significava que a Igreja podia negar numa determinada época aquilo que afirmara numa época anterior como dogma essencial. Significava, em suma, que não havia princípio de fé permanente, não havia dogma, não havia uma crença fixa. Porque os dados da ciência podiam e deveriam ter permissão para ditar aquilo em que homens e mulheres deveriam acreditar. O modernismo era e ainda é a total atrelagem da crença e da prática religiosas aos usos culturais e caprichos de civilização de qualquer época determinada.

Era uma flecha conhecida, apontada diretamente para o coração do romanismo e da Igreja hierárquica. Para o modernista, a Igreja de Cristo não era uma instituição hierárquica criada de forma permanente, concen trada no bispo de Roma como o pastor supremo. Aquela Igreja era, na realidade, uma coisa muito mais “espiritual”, uma reunião de comunidades individuais de crentes nos quais o espírito de Cristo criava continuadamente formas puras e novas de veneração, crença e moralidade. Talvez o modernismo e o catolicismo não pudessem viver na mesma casa religiosa. A mente papalista dos superiores jesuítas romanos, portanto, não iria tolerar o mais leve desvi o modernista que pudesse ser visivelmente detectado em seus jesuítas. Até mesmo o mais leve cheiro de modernismo perceptível num professor ou num escritor jesuíta era suficiente para garantir a sua exoneração.

Deve-se dar ênfase à palavra perceptível, porém; porque, embora essa severa posição oficial com relação ao modernismo fosse preservada até meados do século XX, a mente modernista entre jesuítas e religiosos não morreu. Simplesmente se tornou imperceptível. Passou a agir na clandes tinidade e desenvolveu métodos e estratagemas para a sua autoperpetuação.

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Porque, mais ou menos àquela época, em vista da crescente impor tância da “questão social”, do crescente impacto do comunismo marxis ta, e do grande salto das ciências naturais, a Sociedade decidiu especializar seus jovens nos novos ramos do conhecimento tais como a física, a química, a paleontologia, a antropologia, a fisiologia, a assiriologia, religiões orientais, egiptologia, sociologia e biologia. Sem que fosse percebido, começou a surgir em toda a Sociedade uma fraternidade não expressa mas muito unida de especialistas acadêmicos altamente treinados. Raramente, se é que o faziam, eles expressavam de viva voz seus verdadeiros sentimentos e ideias; mas achavam cada vez mais difícil reconciliar os dados de seu treinamento científico e erudito com as doutrinas tradicionais e a moralidade propostas pela Igreja Católica Romana e defendidas oficialmente pela Sociedade. Em seu trabalho, eles conviviam com doutos não-jesuítas, não-católicos dedicados a estudos semelhantes aos deles, liam seus resultados e desenvolviam uma compreensão para o ponto de vista deles, que quase sem exceção era anticatólico e teologicamente modernista.

Dois ramos da ciência secular causaram um impacto especialmente profundo na cultura teológica jesuítica: a pesquisa arqueológica, linguística e histórica no Oriente Próximo, o berço da cristandade; e pesquisas modernas em antropologia e paleontologia. A latente mentalidade mo dernista ditava que deveria ser procurada uma reconciliação entre os princípios dessas ciências e os princípios tradicionais da Revelação cristã. Reconciliação era a palavra mágica, a fórmula “abre-te-sésamo”. É claro que era um erro fatal de julgamento processual. Porque reconciliação significava “interpretar” os princípios da

Revelação de modo a deixar intatos os da ciência. Aqueles princípios, afinal, tinham sido “provados” cientificamente.

Nunca ocorreu e ainda está por entrar na mente modernista que o único procedimento certo era procurar no depósito de tesouros da tradição cristã aquilo que a Revelação de Cristo tinha a dizer sobre aqueles princípios “provados”. Assim, o modernismo nunca imaginou uma an tropologia cristã, uma sociologia cristã. Os modernistas acabam procurando o significado de Revelação naqueles dados “provados” da ciência, sem perceberem que provado, como termo usual em ciência, muitas vezes significa “aceito como hipótese” até

que um novo conjunto de dados empíricos refute aquilo que antes foi “provado”.

Os dados da Revelação não são dessa natureza. Enquanto a corrente modernista seguia silenciosa e firmemente ao encontro

do seu dia do destino, era mantida e fomentada uma fachada oficial tanto na Igreja Católica Romana como na Sociedade de Jesus. Houve, assim, um último e bem longo período de aparente uniformidade e de crescimento externo do número de membros da Sociedade e da Igreja.

Foi durante os 29 anos de generalato do padre Wlodzimierz Ledóchowski (1915-44) que o tradicional caráter da Sociedade recebeu a marca mais firme e a mais clara definição desde o generalato de Claudio Acquaviva nos séculos XVI e XVII. Poderíamos até dizer que Ledóchowski

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era um homem de tanto poder pessoal quanto o fora Claudio Acquaviva. Como Acquaviva, Ledóchowski insistia na fidelidade à estrutura de obediência jesuítica, era um disciplinador quase implacável, e mantinha um fluxo de instruções para toda a Sociedade, sobre todos os detalhes da vi da jesuítica e dos ideais inacianos. Ele sabia exatamente o que os jesuítas deviam ser segundo as Constituições e as tradições da Sociedade; e sob as mãos fortes de dois papas bem autoritários, Pio XI e Pio XII, ele restabeleceu os estreitos laços que certa vez haviam unido o papado e o generalato jesuíta. Ledóchowski, na verdade, deu novo significado àquele antigo apelido romano do padre-geral jesuíta, “o

papa negro”. Assim como Pio XII pode ser descrito como o último dos grandes

papas romanos, Ledóchowski pode ser chamado de o último dos grandes gerais romanos dos jesuítas.

De fato, parecia não haver, naqueles anos de Ledóchowski, papa Pio XI e Pio XII, um limite real para aquilo que o jesuitismo e o catolicismo romano em geral pudessem conseguir. Até mesmo — deveríamos dizer especialmente — nos reflexos do longo reinado de Ledóchowski e entrando pelo generalato de seu sucessor, o belga Jean-Baptiste Janssens, o mágico poder do impulso parecia continuar. A mesma congregação geral, ou reunião de líderes jesuítas, que elegeu Janssens em 1946 também consagrou formalmente a Sociedade ao Imaculado Coração de Maria — devoção que surgiu como paralelo à devoção central católica ao Sagrado Coração de Jesus. Aquela congregação também afirmou sua adesão ao dogma da Assunção da Virgem Maria, segundo a definição a ser feita quatro anos depois pelo papa Pio XII. Maria, segundo a fé católica, morreu, mas seu corpo nunca sofreu a decomposição do túmulo. Em vez disso, foi “assumido”, erguido e levado para a glória transformadora de seu

filho divino. O ventre que concebera Deus feito homem, os seios que o alimentaram, as mãos que o seguraram, o corpo que trabalhara para ele, nunca deveriam ser profanados por vermes e ratos.

O tradicional caráter jesuítico, com seu precioso relacionamento du plo com Jesus e com o seu vigário, o papa, parecia nunca ter sido tão vibrante, tão próspero. Tudo culminou naquela última era de prosperidade espiritual e religiosa católica romana do período imediatamente seguinte à II Guerra Mundial.

Foi uma época, também, em que o catolicismo norte-americano em particular pareceu atingir a maior idade. Enquanto a arregimentação aumentava, aumentava, aumentava no mundo inteiro, tanto na Sociedade como em outras ordens religiosas, o número de jesuítas cresceu de 17.000 por volta de 1917 para mais de 35.000 em 1964 e mais de 36.000 em 1965. Os catól icos romanos americanos passaram de 17 milhões em 1917 para 37 milhões em 1945 e 47 milhões em 1954. Juntamente com o seu número, o prestígio e o poder dos católicos romanos na América tiveram um aumento enorme. Até mesmo aquele fanatismo inato americano — o anticatolicismo — sofreu tremenda derrota. Católicos romanos podiam chegar à Casa Branca. A sua Legião da Decência podia afetar a indústria

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cinematográfica. Seu voto municipal e estadual era cortejado. Como es creveu Will Herberg, a população dos Estados Unidos devia, agora, ser dividida em “católicos, protestantes e judeus”. Herberg acrescentou “e alguns outros”, mas

nesse grupo não inclui os modernistas, católicos e protestantes ou judeus. Eles ainda não eram “realidade” na autoconsciência americana .

E o modernismo também não era uma realidade na consciência geral dos jesuítas nas décadas de 1950 e de 1960. Ninguém parecia perceber que estranha e radical alteração estava acontecendo no jesuitismo. Apesar dis so, aquela nota específica por parte de jesuítas, de ligação pessoal com Jesus, estava sendo solapada silenciosa e discretamente. Um dos maiores gerais da Sociedade enfatizou essa nota específica sob forma de aviso.

“Podemos medir o grau de nossa fidelidade ao chamado de Nosso Senhor à

sua Sociedade”, escreveu o padre-geral Ledóchowski numa de suas cartas a toda a Sociedade, “pela importância que essa devoção ao Sagrado Coração de Jesus

tem em cada um de nós e na Sociedade como ordem religiosa.” Sem esmiuçar as causas que aniquilaram aquela importância da devoção ao

Sagrado Coração de Jesus como centro do caráter jesuítico, podemos ter uma ideia muito pungente da profundidade da alteração daquele caráter clássico do jesuíta no início da década de 1970, ao ler as palavras do padre-geral Pedro Arrupe em 1972.

Como aquele ano era o centenário da consagração, pelo padre -geral Beckx, de toda a Sociedade ao Sagrado Coração de Jesus, Arrupe planejou uma comemoração. Mas quando abordou o assunto de viva voz e em cartas com os outros superiores e principais jesuítas em Roma e outros locais, ele descobriu — como, com toda certeza, já devia ter percebido ao menos ligeiramente — que os jesuítas, de modo geral, haviam simplesmente perdido o interesse pela devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Alguns a consideravam pueril, primitiva, ingênua, repulsiva, indigna de uma mentalidade moderna. Alguns a achavam até vulgar e sensual. Outros haviam decidido que a mente moderna não podia aceitar uma devoção dessas, embora eles mesmos vissem certo mérito nela para pessoas muito simples — criancinhas, camponeses e semelhantes. Outros, ainda, alegavam dificuldades teológicas. Poucos viam qualquer ligação entre es -sa devoção e o caráter inaciano dos jesuítas. Em suma, Arrupe já não conseguia achar, entre os seus jesuítas, uma convicção comum a todos de que a Sociedade tinha uma comissão divina dada por Cristo através de Santa Margaret Mary Alacoque e da Santa Sé, de propagar essa devoção.

Apesar de tudo, Arrupe levou seus planos adiante. Sua carta a toda a Sociedade sobre as comemorações do centenário faria chorar os anjos.

Arrupe começou por admitir que “[são] encontradas, hoje, opiniões

conflitantes na Sociedade com relação a essa devoção”. Falou da “indi ferença”

de alguns, da “aversão subconsciente” de outros, da “aversão, quase repugnância”, de outros mais, relativas a essa devoção. Alguns,

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acrescentou ele, “preferem manter silêncio respeitoso e aguardar os acon -tecimentos”. Sua carta, portanto, consistia em um esforço para resolver “os

problemas ascéticos, pastorais e apostólicos que a devoção ao Sagrado Coração apresenta hoje”, embora ele achasse esse assunto “difícil de ser discutido”. Não

disse por que achava o assunto difícil. A carta, em resumo, recomendava que os jesuítas desenvolvessem “ampla

compreensão” da devoção, que pusessem de lado “exageros in justos ou reações puramente emocionais” e, na verdade, permitissem que cada jesuíta agisse como

quisesse. Em suma, a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, como devoção oficial

da Sociedade, estava bem morta. Mas Arrupe, em suas próprias palavras, sentia “obrigação pessoal” de falar no assunto. Ele poderia ter acrescentado que o

então papa, Paulo VI, havia enviado uma carta à Sociedade em maio de 1965, sete anos antes, precisamente alertando Arrupe quanto à necessidade de reavivar essa devoção na Sociedade. Porque já naquela época, tanto na Igreja de modo geral como na Sociedade, essa devoção estava sofrendo o mesmo destino de outras práticas de piedade na década de 1960.

Uma característica persistente de Pedro Arrupe é revelada em suas comunicações com os jesuítas sobre a devoção ao Sagrado Coração: a aparente deferência que ele sempre dedicava às predileções e aversões, às antipatias e aos desvios dos homens colocados sob seu comando como geral jesuíta. Suas cartas e instruções sobre quase tudo eram meramente convites a pensar como ele pensava. Ele nunca pareceu capaz de ordenar, como tinham feito todos os gerais antes dele. Tinha força, mas não estava disposto a tomá-la nas mãos, usá-la para corrigir desvios, quer da ortodoxia romana, quer do que fosse jesuítico por tradição.

Era uma falha fatal em seu caráter e um erro sumário no uso da au toridade jesuítica. Em todos os casos semelhantes, Arrupe se curvava à opinião majoritária. Ele levava esse defeito ao ponto do suicídio religioso quando surgia qualquer problema envolvendo o superior máximo da Sociedade, a congregação geral de líderes jesuítas que se reúne periodicamente em Roma. Eu digo “ao

ponto de suicídio”, porque durante o generalato de Arrupe a congregação geral fez exatamente isso com o jesuitismo clássico da Sociedade; e Arrupe, em concordância com o clima de sua carta sobre a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, declarava-se mero servidor daquele superior máximo naquela autodestruidora linha de ação adotada pela congregação geral.

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O

mundo que testemunhou os altos e baixos do jesuitismo nos últimos quatro séculos e meio nunca soube, até recentemente, do papel capital representado pelas congregações gerais da Sociedade de Jesus — as reuniões formais de superiores jesuítas de todas as províncias do mundo em Roma, com o padre-geral jesuíta e seus assistentes e auxiliares. As congregações gerais acontecem com relativa infreq uência — houve só 33 em 445 anos.1 Mas quando qualquer congregação geral está reunida, ela é segundo a própria vontade de Inácio, superior a todo jesuíta da Sociedade, inclusive o padre-geral.

Só nesta era de meios de comunicação em massa e comunicação ins tantânea foi que se tornou mesmo vagamente visível, para o mundo em geral, que uma congregação geral da Sociedade de Jesus pode ter vontade própria, distinta da vontade de muitos jesuítas por si, e da vontade do papa. No entanto, mesmo com os meios de comunicação em massa para estarem de olho no que elas fazem, o funcionamento de qualquer congregação geral é protegido contra os exames minuciosos por parte do público — na verdade, contra qualquer tipo de exame.

Ao redigir as Constituições de sua Sociedade, Inácio dedicou sete capítulos inteiros à congregação geral: sua composição, como deveria se reunir, seus métodos de tomadas de decisões, seus plenos poderes legislativos. Ele nunca descreveu a congregação geral como um superior. Os superiores, em sua opinião, eram todos homens. Mas os poderes que ele conferiu à congregação geral colocavam-na acima de todos os homens que eram superiores em sua Sociedade. Só o papa estava acima da congregação geral em autoridade.

Quando chega a hora de convocar uma congregação geral — quando um novo padre-geral tem que ser eleito ou se tem que fazer alguma alteração que requeira a opinião de todos os setores da Sociedade, por exemplo — o padre-geral ou vigário-geral da Sociedade pede permissão ao papa para a reunião. Uma vez dada a permissão, começam os preparativos.

Muito antes do começo de uma congregação, os superiores romanos

10. O SUPERIOR MÁXIMO

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solicitam propostas — que são chamadas de postulados — das diversas províncias, missões e vice-províncias da Sociedade. O padre-geral e seus assessores em Roma ficam encarregados de analisar minuciosamente todas as propostas. Os postulados refletem o pensamento da Sociedade em geral e fornecem as matérias para discussão, decisão e transformação em decreto formal na congregação.

Importante parte dos preparativos consiste em pôr ordem nos postu lados — sempre há coincidências parciais e repetições; e às vezes há o que parece tratar -se de problemas muito insignificantes, até mesmo ridículos, postulados inviáveis ou sem pés nem cabeça. Na CG1, realizada após a morte de Inácio, os delegados discutiram solenemente a questão de usar barba. Embora hoje esse problema possa parecer tão inconsequente quanto o de lápides deitadas versus lápides em pé para os veteranos de guerra, decidido por voto oral na Câmara dos Deputados dos Estados Unidos no dia 20 de maio de 1985, ele tinha um objetivo: será que os jesuítas deveriam imitar Inácio, que usara barba a vida inteira? Os delegados votaram contra a proposta.

Uma das mais importantes razões para se convocar uma congrega ção geral é eleger um novo padre-geral. Se uma congregação for convocada com esse propósito, grande parte dos preparativos que antecedem à reunião consistem na coleta de dados, informationes, sobre possíveis candidatos. Como acontece com os cardeais-eleitores que escolhem um dentre eles para ser papa num concl ave papal, e que vão para cada conclave com certos papabili (papáveis) nitidamente em mente, é costume entre os superiores de nível mais elevado na Sociedade ter pronta uma lista limitada de possíveis candidatos ao posto de padre-geral. Essa lista é um assunto da maior confidencialidade. Uma indicação da liberdade exercida pelos delegados é o fato de que apenas dois padres-gerais — o próprio Inácio em 1541 e o 12º padre-geral, o belga Charles de Noyelle, em 1682 — foram eleitos por unanimidade.

Os jesuítas que se reúnem em Roma com o padre-geral para a congregação geral são eleitos como delegados por seus colegas jesuítas em suas províncias. Até bem recentemente, eles tinham que ser jesuítas professos (homens que, além dos três votos de pobreza, celibato e obediência, fizeram o quarto voto de obediência especial ao papa). Originalmente, só as províncias tinham o direito a eleger e enviar delegados. As missões e as vice-províncias adquiriram esse direito só em 1946, na CG29.

Ao se reunirem para a congregação geral, os delegados ouvem o padre-geral falar sobre a situação da Sociedade, seus sucessos, seus fracassos, suas dificuldades; e examinam os postulados. Ao votarem — numa congregação geral, tudo é decidido pelo voto — eles escolhem certos procedimentos para facilitar as discussões. Podem criar comissões, subcomissões ou grupos de estudo especiais, cada qual incumbido de preparar as matérias para as discussões comuns, anotar as discussões havidas, apresentar novas propostas ampliadas e, por fim, apresentar o texto final dos decretos que a congregação irá votar em definitivo. Só na CG30 a

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votação foi realizada por meio de um painel “elétrico” exibido a todos os

delegados, cada um dos quais usou um botão de “sim” ou “não” pa ra registrar seu voto.

Logo depois que a congregação termina, todos os decretos que foram aprovados por voto são publicados como as Acta daquela congregação.

Qual a forma que deveria ter a discussão entre os delegados, uma vez reunidos na congregação geral? Felizmente, sabe-se o que Inácio pensava a esse respeito. O modelo, para ele, tinha sido fornecido pelo primeiro debate prolongado que ele e seus primeiros oito companheiros realizaram entre si na primavera e princípios do verão de 1538, ao se prepararem para apresentar ao papa Paulo III o projeto para a formação da Sociedade. Eles moravam juntos numa casa abandonada perto da ponte Sisto, em Roma, e naqueles meses de solidão e oração elaboraram com esforço, em conjunto, a “plataforma” ou

princípios básicos da Sociedade. Todos eles eram indivíduos de personalidades muito diferentes, e a

princípio os debates sobre a “plataforma” foram desorganizados — “de-mocráticos”, nesse sentido — e um tanto românticos. Ficou logo eviden te que eles tinham que tomar uma decisão quanto a uma di sciplina. Primeiro, fizeram uma lista de perguntas que deviam responder sobre suas intenções e aspirações. “O dia inteiro”, descreveram alguns deles mais tarde, por escrito, “nós nos

acostumamos a refletir e meditar sobre essas [perguntas] e pesquisá -las piamente.” À noite, uns diziam aos outros o que haviam pensado sobre as

perguntas, e todo ponto de vista era discutido. Quando achavam que determinada questão já tinha sido discutida o suficiente, faziam uma votação. Uma maioria simples de votos era bastante para garantir uma decisão em comum.

Não há dúvida: esse método de discussão era “democrático” em mais de

um sentido. Cada homem podia dizer o que pensava. Ninguém era considerado como tendo uma primazia de opinião que excluísse alguns ou todos os outr os. Votar em comum e decidir por maioria simples também eram formas “democráticas” de comportamento. Uma simples leitura de como eram feitos

aqueles primeiros debates nos convence que a troca de ideias entre eles era absolutamente franca, às vezes muito enfática, mas nunca inflamada.

Ainda assim, depois de se dizer isso, cobriu-se o ponto até o qual os debates deles eram democráticos em qualquer sentido que se encaixe no nosso uso moderno do termo. Porque uma coisa é usar meios “demo cráticos” de

discussão e tomada de decisões quando os participantes per tencem a uma democracia secular, um sistema no qual em princípio e, tanto quanto possível, na prática o governo é feito para o povo, do povo e pelo povo ou pelos seus representantes livremente eleitos. Assim funciona a democracia republicana dos Estados Unidos da América.

É uma coisa completamente diferente homens usarem os mesmos meios “democráticos” de discussão e de tomada de decisões a fim de melhor

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servirem dentro de um sistema estritamente “monárquico”, um sistema criado para a propagação da verdade religiosa e construído em torno de uma pirâmide de poder na qual o poder absoluto está concentrado no ápice; e na qual todos os outros exercícios de poder no sistema são derivados por permissão, e não por direito, vinda daquele ápice. Porque, num sistema desses, a concentração de poder significa que certa ideologia governa o uso desse poder.

Era essa a posição daqueles nove homens, Inácio e seus oito compa -nheiros, como é a posição dos delegados a uma congregação geral da Sociedade. Suas discussões livres e suas tomadas de decisões por maioria simples podem ser democráticas. Mas todas as discussões — na verdade, os próprios assuntos discutidos e as conclusões permitidas — são estritamente reguladas não pela opinião “democrática”, mas pelas normas es tabelecidas por aquele ápice monárquico.

Colocado em seus termos mais simples, os participantes de uma de -mocracia republicana secular podem discutir e votar livremente na pró pria natureza de sua democracia e em suas leis básicas. Num sistema monárquico que serve de canal de coisas divinas, os participantes não podem fazer isso. Só podem discutir e decidir sobre os meios de melhor servirem ao seu sistema. O sistema é sacrossanto.

Como aqueles companheiros em seus primeiros debates, portanto, os delegados a uma congregação geral participam de discussões e votam em decisões finais com base num ponto de vista inalterável e inconteste, uma mentalidade de grupo que não permite nenhuma variação individual. O jesuitismo proporciona essa mentalidade.

Na parte das Constituições em que descrevia a congregação geral, Inácio limitava suas diretivas à essência das normas de procedimentos, as convenções exteriores a serem observadas a fim de que se pudesse di zer que uma congregação agiu legalmente. Em nenhum ponto de sua abordagem da congregação geral ele precisou tocar na mentalidade, na atitude mental que deveria caracterizar os delegados quando estivessem dedicados às discussões e aos assuntos próprios da congregação. Ele partia do pressuposto de que eles — em sua imensa maioria padres professos da Sociedade e distintos por aquele quarto voto especial ao papa — teriam como premissa maior de sua atividade aquilo que ele explicara em detalhe noutra parte como sendo a mentalidade e perspectiva permanentes de seu “padre professo típico da Sociedade”. Ele

pressupunha a existência do modelo inaciano. Sua declaração na Fórmula do Instituto é clara; e ele achava que era

suficiente:

Todos aqueles que exercerem a profissão nesta Sociedade deverão compreender, na época, e além do mais ter em mente enquanto viverem, que esta Sociedade toda e os membros individuais que nela exercem sua profissão estão fazendo campanha em favor de Deus em fiel obediência a Sua Santidade o papa Paulo III e seus sucessores no pontifica

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do romano. (...) Deveremos ser obrigados, por um voto especial, a executar o que quer que o atual e os futuros pontífices romanos pos -sam ordenar que se relacione com o progresso das almas e a propa -gação da fé. (...)

A função do papa como superior máximo da Sociedade, de tudo o que ela faz e de todas as suas aspirações, não podia ser mais clara. Inácio queria que seus seguidores fossem, em certo sentido, fanaticamente devotados ao que ele repetidas vezes chamava de “a verdadeira Esposa de Cristo Nosso Senhor, nossa santa Madre, a Igreja hierárquica”. Ele insistia em que aquela devoção jesuítica

a essa “Igreja hierárquica” fosse tão extrema, que “aquilo que parecer branco

irei acreditar que é preto, se a Igreja hierárqu ica assim o definir”. Aquela

hierarquia, em sua mente, era composta pelo papa romano à frente dos bispos católicos romanos da Igreja.

Parece, portanto, que essa deveria ser a mentalidade com a qual o corpo oficial da Sociedade, a congregação geral, executasse suas deliberações e chegasse a suas decisões e seus decretos. Era esta a “missão” da Sociedade de

Iñigo. Não há indicação alguma, nos escritos de Inácio, de que ele pudesse prever o dia em que a congregação geral, falando e legislando por toda a Sociedade, iria se desviar resolutamente dos ditames daquela missão jesuítica geral.

Não há dúvida de que Inácio instituiu a congregação como um ele mento para contrabalançar o poder absoluto do padre-geral e os amplos poderes dos superiores menos graduados. Ele também a criou porque tinha a certeza de que, numa assembleia geral de seus seguidores, seria menos provável que houvesse o perigo de que idiossincrasias pessoais e táticas minoritárias assumissem a direção de sua Sociedade.

No funcionamento de sua instituição na prática, porém, o elemento da congregação geral também munia seus jesuítas — e a propósito, o papado — de um obstáculo. Roma e seu papado seguem, normalmente, linhas jurídicas. O papado, portanto, não trata com um padre-geral jesuíta como indivíduo. O papado tem que tratar com a Sociedade, cuja posição oficial é expressa pela congregação geral. O padre-geral é eleito e instruído pela congregação geral e é o seu representante pessoal. Ele continua responsável perante cada congregação durante toda a sua vida de geral. O geral não pode, estritamente falando, obrigar qualquer congregação a fazer qualquer coisa — nem mesmo a obedecer ao papa, muito menos a obedecer a ele próprio.

Em outras palavras, a Sociedade, na opinião romana, é uma entidade legal. Só essa entidade legal pode falar pelos jesuítas; e fala por intermédio da congregação ou do geral.

Segundo a teoria inaciana, é claro, o papa é o superior máximo da Sociedade. Ele deve ter meios coercitivos para exercer sua autoridade co mo superior, se houver necessidade de coerção. A coerção por meios jurídicos seria perfeitamente exequível, se um papa estivesse lidando com um grupo de homens que não exercem muita influência na Igreja universal.

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Mas quando um papa tem que lidar com a Sociedade de Jesus, vê-se diante da mais poderosa e engenhosa organização que o papado jamais criou dentro da Igreja Católica Romana.

A coerção de uma entidade tão poderosa assim pode se tornar uma faca de dois gumes. De fato, tentativas por parte de papas e depar tamentos papais de coagir a congregação geral da Sociedade e, através dela, a própria Sociedade, mostraram ser uma ocupação francamente perigosa. Exemplos históricos parecem mostrar que é, também, uma tarefa infrutí fera; porque, sem dúvida alguma, as disputas entre papas e congregações gerais têm sido um fator periódico na história da Sociedade, e mais de uma vez o papado perdeu.

As piores crises entre os dois antes de Clemente XIV extinguir a So -ciedade em 1773, quase sempre diziam respeito a um desejo ou uma decisão do papa que a congregação geral, como a “cabeça e a voz” da Sociedade, não

achava que devia aceitar. Esses tipos de problemas surgiram em sua plenitude logo na primei ra

congregação geral, cm 1558. O papa Paulo IV informou aos delegados reun idos que, ao contrário do que Inácio havia estabelecido nas Constituições, aquela congregação geral (CG1) deveria adotar um período de três anos para cada generalato, em vez da vitaliciedade determinada por Inácio, em que os jesuítas deveriam, como todas as outras ordens, cantar o Divino Ofício em coro. A congregação protestou contra o papa. Paulo IV manteve suas ordens. Os jesuítas obedeceram até Paulo IV morrer um ano depois; então, reverteram à letra das Constituições, com o consentimento do papa seguinte.

Um papa ulterior, Sisto V, informou ao padre-geral jesuíta Claudio Acquaviva, em 1590, que não aprovava os pontos de vista que teólogos jesuítas haviam adotado sobre certos pontos de doutrina. A julgar pelos fatos, está claro que Sisto estava sendo arbitrário e até mesmo mal-intencionado. Está igualmente claro que Acquaviva não exerceu a obediência da mente, nem da vontade, nem de execução. Ele simplesmente ameaçou Sisto numa carta: “Se

Vossa Santidade impuser essa humilhação à Ordem [ao impor seus pontos de vista teológicos], não haverá como eu possa garantir que dez mil jesuítas não irão pegar suas penas para atacar esse decreto de uma maneira que deverá ser prejudicial para o prestígio da Santa Sé.”

Acquaviva não estava fazendo uma ameaça vã. Sisto sabia disso e recuou. Se Sisto tivesse ido em frente e imposto sua opinião, Acquaviva teria escrito uma instrução formal e sutilmente redigida a toda a Sociedade, comunicando a todos os jesuítas a decisão do papa, pedindo orações para ter forças para obedecer à ordem do papa, e exigindo a conformidade jesuítica aos pontos de vista do papa. Teria havido, então, um dilúvio.

Outra vez cm 1590, o mesmo papa, Sisto V, decidiu mudar o nome “Sociedade de Jesus” para “Ordem Ignaciana”. Usar o nome de Jesus no t ítulo de uma simples ordem religiosa, diziam Sisto e muitos outros, era “ofensivo” a

ouvidos devotos. “Toda vez que se diz o nome desta

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Sociedade”, queixava-se um cardeal, “é preciso tirar o chapéu e curvar a

cabeça.” Claudio Acquaviva reclamou a Sisto, salientando que aos olhos dos

jesuítas o próprio nome da Sociedade pertencia aos “pontos substanciais” da

Sociedade. Nem ele, nem uma congregação geral de jesuítas podiam mudar o nome.

Sisto manteve sua decisão e ordenou que seus provisores papais redi -gissem um decreto mudando o nome.

Naquelas circunstâncias de coação, Acquaviva fez a única coisa que lhe restava fazer: organizou uma novena pelos jovens noviços jesuítas para pedir a graça de Deus para ele e para toda a Sociedade, a fim de que pudessem submeter-se à desagradável ordem do papa. Sisto morreu no nono dia. Seu sucessor, Urbano, abandonou o projeto.

Naquele confronto com um papa, Acquaviva estava provando um argumento quanto a disputas em geral com o papado e a Santa Sé. Nem ele, nem a congregação geral tinham poderes legais para tocar naqueles pontos substanciais.

Apesar de tudo, Acquaviva comprovou outro argumento — relativo à obediência. Ele estava preparado para aceitar a mudança de nome, se Sisto tivesse vivido o suficiente para impô-la.

Acquaviva havia implementado o que Inácio, em todas as suas regras redigidas com severidade sobre a obediência, havia prescrito: o direito e o dever do sujeito — quer o sujeito fosse um jesuíta, quer fosse toda a Sociedade — de argumentar com o superior, fosse ele superior residencial, provincial, o padre-geral ou o papa. A contra-argumentação era oficial, por assim dizer, e consistia em explicar por que o sujeito achava que não podia obedecer à ordem dada ou, pelo menos, não lhe obedecer da maneira pela qual o superior desejava que ele obedecesse. As objeções do sujeito poderiam ser pura e simplesmente por questões de prudência: ele poderia achar insensato cumprir tal ordem; ou poderia basear-se numa vivida apreensão de consequências prejudiciais devidas à execução da ordem dada — fracasso dos esforços, por exemplo, ou exigência indevida por parte do sujeito.

A condição geral e explícita que Inácio incluiu em suas instruções era que nenhum superior poderia dar uma ordem válida para que o sujei to fizesse alguma coisa pecaminosa, fazer alguma coisa legal mas por meios pecaminosos, ou fazer alguma coisa legalmente mas com motivos pecaminosos. Em qualquer desses casos, o sujeito estava desobrigado quanto à obediência.

Fora daqueles casos, entretanto, o sujeito estava obrigado — “em virtude

da santa obediência”, como dizia a frase — a obedecer à ordem pelo menos executando-a, esperava-se que de bom grado, o ideal sendo que ele a cumprisse levado por uma convicção nova de que a ordem era a melhor coisa a realizar . A rebelião e a recusa a obedecer de acordo com as circunstâncias estabelecidas não estavam incluídas no regulamento de Inácio. Desde que obedecesse, você podia fazer o possível para conseguir que o superior revogasse a ordem.

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O próprio Inácio dera um excelente exemplo disso em vida. Quando o papa Paulo III lhe impôs a obrigação de aceitar cinco mulheres devotas na Sociedade, ele obedeceu, recebeu-as, e tentou viver com aquele esquema com o qual não concordava. Ficou comprovado que havia uma impossibilidade prática. Então, ele trabalhou para que se desse a saída das cinco mulheres com o consentimento do mesmo papa. O trabalho todo lhe custou caro, mas ele conseguiu.

Até recentemente, verifica-se que em todos os confrontos entre o papado e os jesuítas aquela regra de obediência inaciana foi observada com variações. Ocasionalmente, encontramos o que parece um ato de pura ar rogância, como quando Acquaviva ameaçou enterrar Sisto V debaixo daquela pilha de dez mil tratados teológicos atacando a teologia de Sisto. Mas Sisto foi um dos mais arrogantes papas que já sucederam a São Pedro em Roma. De vez em quando, os jesuítas apelavam para estratagemas — intercessão de poderosos homens da Igreja e importantes personagens seculares, por exemplo — quando achavam que o papado estava mandando fazer alguma coisa insensata. Uma vez mais, o próprio Inácio havia feito isso. Mas só na história recente da Sociedade de Jesus houve um momento em que o papado e os jesuítas divergiram violentamente so -bre a natureza da Igreja, sobre os privilégios e poderes do pontífice romano, ou sobre as regras católicas romanas básicas sobre moralidade. Nesses casos, Inácio não dava espaço para “protesto” nem pa ra recuo no caso de o papado manter sua posição e confirmar a ordem dada.

Segundo a mentalidade do fundador da Sociedade, para dar um exem plo convincente, se a congregação geral adotasse uma posição contrária àquela adotada e defendida pelo papado, com relação a questões funda mentais como poderes do papa, doutrina católica básica, ou regras de moralidade, a congregação geral, como superior máximo, estaria funcionando fora do sistema monárquico do qual recebe o mandato para deliberar e decidir sobre quaisquer assuntos, e fora do sistema de cujo bem-estar depende não apenas a determinada missão que estiver sendo contestada, mas a própria existência da Sociedade.

Nessas circunstâncias, que nem sequer foram imaginadas por Iná cio, a congregação geral iria tornar-se um autêntico obstáculo tanto para os jesuítas subalternos quanto para o papado. A obediência é o amálgama da Sociedade; obediência e união de corações dentro da Sociedade, todos eles com o pontífice romano.

Ao mesmo tempo, e dada a rígida tradição de obediência e a absolu ta impossibilidade de um indivíduo — ou mesmo vários — resistir aos decretos e opiniões da congregação geral, pode-se dizer que não há um modo prático para que tais indivíduos resistam com sucesso à vontade da congregação geral. O instinto de “falange” dos superiores mais categorizados — eles próprios devendo obediência ao padre-geral e, com ele, sob estrita obediência à congregação geral — mais a absoluta impossibilidade jurídica de fomentar um ponto de vista contrário uma vez resolvido

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o debate por voto majoritário, levariam um membro dissidente a se calar e agir como os outros ou sair da Sociedade.

Teoricamente, de fato, não poderia surgir entre o papado e a Socie dade uma diferença assim tão violenta sobre pontos fundamentais católi cos romanos. Só enquanto os delegados à congregação fossem fiéis à sua missão geral como jesuítas — instrumentos dóceis para defender o papado e propagar a doutrina católica romana tal como proposta com autoridade pelo pontífice romano — a congregação poderia funcionar admiravelmente como Inácio planejara.

Quando se acompanham as diversas posturas da Sociedade refletidas nas atas das congregações gerais, da CG1 em 1558 até a CG30 em 1957, 2 percebe-se que cada congregação, composta por homens diferentes em épocas diferentes, parece estar falando com o mesmo ponto de vi sta de todas as suas predecessoras. Elas refletem, constantemente, o ideal inaciano de serviço ao papado e propagação da doutrina católica romana tal como proposta pelos papas. Sejam quais forem as mudanças e adaptações que elas fizeram no Instituto original de Inácio, foram realmente calculadas para preservar e melhorar aquilo que Inácio chamara de “pontos substanciais” do Instituto, dadas as circunstâncias concretas

de uma determinada época. Vê-se, também, que congregações gerais periódicas refletiam f ielmente a

situação da Sociedade. A legislação tinha por objetivo atenuar problemas recém-aparecidos. As congregações também serviam para proteger os membros subalternos da Sociedade das aberrações pessoais e idiossincrasias de determinados padres gerais.

Quando a Sociedade esteve submetida a um padre-geral, Tirso Gonsalez de Santalla, da Espanha, que era a favor de uma abordagem muito rigorosa, “calvinista”, da moralidade e era enérgico (para dizer o mínimo) na apresentação de seus pontos de vista, nenhum jesuíta desobedeceu ao padre-geral. Apesar de tudo, a congregação geral e os jesuítas do mundo inteiro se recusaram a acompanhar a personalista atitude religiosa do padre-geral que, de uma maneira ou de outra, não rimava com a espiritualidade e a prát ica pastoral inaciana.

A congregação geral mostrou, constantemente, ser um fidedigno in dicador de dificuldades futuras. No início do que tem sido chamado de Iluminismo na década de 1700, a CG 16 retornou uma vez mais à afirmação da filosofia tomista como essencial para o pensamento e a educação jesuíticos. Quando ela insistiu no uso da Física de Aristóteles, isso não foi uma tentativa de se opor à nova física que nascia no mundo ocidental; os próprios jesuítas estavam dedicados a ela com destaque. A insistência deles parecia um desafio à cultura contemporânea que afirmava, entre outras coisas, que qualquer coisa tão medieval quanto o tomismo era inaceitável para mentes “modernas”. Mas o que

a congregação estava assinalando na física aristotélica era o seu reforço metafísico sobre a causalidade divina e a necessidade de um Primeiro -Movedor no cosmo criado do homem; e o que gostava, em relação ao tomismo, era de sua

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abordagem racional de coisas divinas. Os jesuítas se opunham não à abor dagem metódica da “Ciência”, mas à crescente onda de agnosticismo naquela era de descobertas no mundo físico. Sua espiritualidade e seus ideais sobrenaturais eram seus melhores baluartes. O tomismo e o aristotelismo proporcionavam uma sólida estrutura mental.

Aquela espiritualidade inaciana construída em torno das duas devo ções — a Jesus como o Senhor e ao papa como seu vigário na Terra — era um dos “substanciais do Instituto”. Outro era a prática da pobreza; e um terceiro era

todo o conceito de obediência jesuítica. À medida que as nuvens negras se colocavam em torno da Sociedade de 1750 em diante, encontramos as duas congregações gerais daqueles anos cheias de decretos e recomendações visando preservar a doutrina católica romana ortodoxa, fomentar o ideal inaciano de serviço ao papado, e defender a vida espiritual de cada jesuíta. Esse caráter jesuítico persistia o tempo todo. Mesmo depois de seus 41 anos de supressão, de 1773 a 1814, a Sociedade tornou a entrar em ação em todas as frentes, ainda firme no modelo jesuítico imaginado por Inácio.

Pode-se acompanhar com muita clareza, em todas as congregações gerais dos 150 anos seguintes (CG20-30) um esforço contínuo de reafirmar no mundo o viço pleno daquele caráter inaciano da Sociedade como um todo e de seus membros. Depois de um período inicial de dez anos (1820-30) com o padre-geral Luigi Fortis — membro da Sociedade anterior à extinção — seguiram-se dois fortes padres-gerais, Jan Roothaan e Peter Beckx, que ao todo governaram a Sociedade por 58 anos. Foram anos de continuidade e de firme propósito.

Quando o papa Pio IX lançou dois importantes documentos contra o modernismo, a Sociedade adotou-os, entusiasmada, como cartas constitucionais de seu pensamento e de suas ações. Nas CG23, 25 e 26, os decretos formais dos membros não deixavam dúvida quanto a isso. Mas pela primeira vez, e já na CG23 em 1853, outra voz — ainda fraca, embora já insistente — fez-se ouvir de maneira sucinta. Parecia que uma nova fonte de decomposição e corrosão do jesuitismo clássico se alojara no seio da Sociedade àquela altura.

A voz foi o que um delegado descreveu mais tarde como a mentali dade do tipo “Sim, mas...” manifestada por certos delegados à CG23. Os modernistas

cometiam erros, realmente, admitiram aqueles delegados. Mas, também alegavam eles, os modernistas estavam tentando atingir a verdade. Por trás dos seus erros havia uma certa verdade. Não seria melhor dialogar com eles e, assim, estabelecer relações estreitas com eles? Afinal, aquele modernismo era uma mentalidade muito comum entre cristãos não-católicos, entre muitos protestantes, no mundo ocidental. Eles podiam ser maus filósofos e teólogos que cometiam erros, mas tinham nas pontas dos dedos os magníficos dados da ciência.

Essa voz “Sim, mas...” foi abafada na reafirmação, pe la congregação geral, da posição incondicional do papado contra o modernismo. O modernismo era como a Morte Negra e exigia não apenas quarentena to

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tal, mas a derrubada implacável de qualquer pessoa contaminada. Os mo -dernistas deveriam ser completamente excluídos da Igreja — e da Sociedade, se por alguma infelicidade alguns jesuítas se tornassem modernistas.

Ninguém, nas CG23, 25 e 26, poderia ter previsto que no século se guinte o modernismo estaria correndo em todas as artérias da Igreja e da Socieda de. No entanto, os delegados às três congregações gerais seguintes, CG27-29, não encontraram um motivo óbvio para enfatizar o perigo do modernismo ou a possibilidade de que uma corrosão interna estivesse atacando as partes vitais da Sociedade de Inácio.

Pelo contrário, depois do término da II Guerra Mundial, percebia -se um vigor e um crescimento renovados. Parecia ter nascido uma espécie de Época de Ouro para a Sociedade. Julgado à luz da quantidade, pela importância dos postos do Vaticano ocupados por jesuítas e pela extensão de seu trabalho educacional e missionário, o futuro parecia sem nuvens.

No entanto, bem no meio do que verdadeiramente parecia uma nova Época de Ouro — ou, pelo menos, o início de uma — deu-se um fato estranho. A voz do papa Pio XII ergueu-se queixosa, reclamando dos perigos para o jesuitismo; dos abusos na Sociedade; sobre o pecado máximo para qualquer jesuíta, a revolta contra a obediência. Aquilo pareceu uma anomalia tal, na época, que o jesuíta comum não lhe deu importância, classificando-o como uma aberração por parte do papa Pio XII. O fato perturbador aconteceu em 1957, quando os 185 delegados da CG30 foram convocados para se reunirem para deliberações de setembro a novembro.

Haviam surgido, de maneiras das quais ninguém se recorda agora, certos costumes em torno dos preparativos para qualquer congregação geral. Além de procurar o santo padre para pedir a permissão de Sua Santidade para convocar a congregação, o geral jesuíta também pedia ao santo padre que falasse aos delegados reunidos, e oferecia ao santo padre a colaboração de um ou dois redatores jesuítas para ajudar Sua Santidade no rascunho e na redação final do discurso papal.

Quando o padre-geral Janssens agiu segundo essas normas, o papa Pio XII respondeu na afirmativa aos primeiros dois pedidos: sim, os padres poderiam reunir-se na congregação; e sim, o santo padre iria dirigir-se a eles. Mas, não, disse Sua Santidade, ele não precisava de nenhuma colaboração de jesuítas designados pelo padre-geral.

Houve um toque de ironia — evidente para poucos — na maneira pela qual as coisas se passaram naquela congregação. Primeiro, o geral Janssens leu uma apresentação muito detalhada da Sociedade, falando de províncias, casas, aumento do número de membros, da prática da disciplina religiosa, de dificuldades comuns encontradas na vida religiosa e de possíveis remédios. Abordou em detalhes as áreas nas quais a Sociedade estava obtendo sucesso e aquelas em que ela sofria uma clara perseguição ou coisa pior. Pediu uma franca troca de opiniões e grande liberdade de debates.

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Toda a sua apresentação foi paternal, encorajadora, otimista e dis creta. Nenhum dos delegados esperava palavras inspiradoras por parte do padre Janssens. Eles conheciam o seu padre-geral. Ele não tinha o talento para provocar animação ou grande entusiasmo. Tinha o jeito tranquilo de um religioso profissional. Mas, para todos os que o ouviram, foi um desempenho louvável, apresentado no vocabulário e segundo as fórmulas mentais habituais nas comunicações intra-Sociedade. Estava tudo bem: esta era a mensagem. E mais: temos que nos esforçar mais. Para a maior glória de Deus.

No dia 10 de setembro, Pio recebeu o padre-geral Janssens e os 185 delegados numa audiência privada, no Vaticano. O papa de 81 anos de idade tinha pouco mais de um ano para viver, e a devastadora doença que o castigava continuadamente desde 1950 havia exigido muito de um físico que nunca fora robusto. Física e espiritualmente, a impressão do etéreo que ele sempre dera estava, agora, gravada em alto-relevo.

Em contraste com a sua fragilidade física, porém, o discurso do pa pa Pio foi duro, um catecismo de palavras precisas sobre o que os jesuí tas deviam ser e, por implicação direta — às vezes, no texto, por citação explícita — o que infelizmente eles não eram, aos olhos do santo padre.

Desde as primeiras palavras de seu discurso em latim, Sua Santidade adotou o tom de um pai dizendo a seus filhos o que deviam fazer e como deveriam ser; e o que não deviam fazer e como não deviam ser. Seguiu uma disposição muito precisa de assuntos; era óbvio que, para ele, tratava - se de questões em relação às quais os jesuítas não vinham sendo observantes, mas negligentes ou mesmo desobedientes. Era isso o que dava a entender.

A ordem em que Pio abordava aqueles assuntos indicava a importância relativa deles em sua mente. O tom do pontífice era severo, às ve zes bem peremptório. E como sempre acontecia com Pio, ele parecia estar falando com os olhos fixos em alguma visão celestial.

Em destaque entre as coisas que os jesuítas tinham que proteger e melhorar estava a ortodoxia doutrinária, o acordo com a autoridade dou trinária da Igreja e do pontífice romano. A Sociedade pelos seus superiores, continuou Pio, a começar com a congregação geral, teria que se esforçar para assegurar que os jesuítas esposassem e ensinassem a doutrina e a moralidade corretas. É verdade que dois terços dos 185 delegados àquela congregação geral nunca podiam ter imaginado que se pudesse fazer à Sociedade de então uma acusação quanto àquela questão.

Imediatamente em seguida à ortodoxia, Pio levantou a questão da obediência, pela qual Inácio quisera que seus filhos primassem. O pontí fice queria obediência fiel por parte deles; obediência àquela Santa Sé, obediência às suas regras, Constituições e tradições, obediência aos superiores intermediários. Uma segunda surpresa para os delegados. Até então, nos onze anos de generalato de Janssens, ninguém na Sociedade havia reclamado mesmo de uma falta de obediência por parte dos jesuítas.

A deficiência da disciplina religiosa veio em seguida. Não bastava,

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disse Pio, vilipendiar a disciplina jesuítica e o caráter repetitivo de seu método, tachando-a de formalista demais e, portanto, inadequada à pessoa moderna. O que ele queria dizer estava claro: alguns jesuítas queriam afrouxar as normas de Inácio. A natureza humana, continuou Pio, não havia mudado desde a época de Inácio. Ora, a base de toda disciplina religiosa era humildade e espírito de sacrifício verdadeiros. Humildade para reconhecer os erros e a dependência pessoais; espírito de sacrifício para conter o orgulho e a vaidade, para realizar os exercícios inacianos de oração e exame de consciência e penitência. A vida de um jesuíta deveria parecer-se com a vida de Jesus ao “carregar a cruz” do trabalho, da obscuridade e da obediência, porque só assim os jesuítas seriam instrumentos hábeis nas mãos de Deus agindo através da Igreja e dos superiores.

A prática da pobreza na Sociedade também deixava muito a desejar, deu a entender o papa. Havia excesso de viagens de férias, e de férias passadas fora das casas jesuíticas. Havia excesso de acúmulo de bens sob a forma de equipamento supostamente necessário para o trabalho apostó lico; e também excesso de abusos como o uso de fumo. Pio foi o mais p eremptório possível em relação a esse detalhe aparentemente pequeno. Seu latim foi curto: Auferatur hic

abusus de medio vestrum (que o abuso seja varrido do vosso meio). Assim, dareis um bom exemplo aos outros.

Os delegados da Holanda e aqueles que conheciam as casas jesuíticas da Holanda ouviram com os olhos vidrados aquela repreensão. O fumo era tão disseminado e aceito na província holandesa, que era possível fumar em toda parte, exceto na capela. Para os holandeses, era o mesmo que o papa tivesse mandado que eles parassem de respirar 23 de cada 24 horas.

Pio continuou sem se perturbar. Em toda a sua vida religiosa, dis se-lhes ele, lembrem-se do ideal de pobreza do Evangelho; e lembrem-se, também, de que têm naturezas degradadas devido ao Pecado Original e, portanto, estão sujeitos a desvios da regra da bondade.

O detalhe final de Pio foi o mais importante. A Sociedade de Jesus, disse ele, tinha uma forma de governo monárquica. Era um dos “pontos substanciais”

do Instituto inaciano. Se os jesuítas não fossem fiéis a esse “substancial”, se se

comportassem de qualquer outra maneira, a Sociedade aprovada pela Igreja por inúmeros pontífices no passado deixaria de existir.

O que calou fundo em muitos durante e depois daquela impressionante audiência papal não foi o fato de Pio ter falado num estilo tão ad-moestatório assim; os delegados esperavam mais ou menos isso. A percepção mais sufocante era a de que a Sociedade de Jesus descrita por ele em seu discurso como desejável não correspondia, em muitos pontos, à Sociedade que os delegados sabiam que ela era, quer nas províncias em que eles viviam, quer na sede romana. Foi a primeira vez que muitos delegados tinham sido obrigados a perceber como era grande a distância que se abrira entre o ideal inaciano do caráter jesuítico e a prática entre os jesuítas.

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O que era especialmente de aturdir para alguns era o pensamento de que não tinha sido trocada palavra alguma das regras da Sociedade ou na maneira pela qual os jesuítas descreviam seu trabalho e a Sociedade descrevia a si mesma para eles e para terceiros. No entanto, o significado que eles davam àquelas palavras enquanto as viviam diferia muito do significado que Pio lhes dava. As fórmulas tradicionais da Sociedade se tinham tornado insinceras nos lábios jesuítas.

Para a maioria dos delegados, porém, a reação foi a repulsa: Pio es tava falando da irrealidade. No entanto, nenhum dos delegados presen tes desconhecia que pelo menos nas principais escolas teológicas jesuíticas professores jesuítas contornavam tanto quanto possível — se não passassem por cima — as regras romanas de ortodoxia. Na França e na Alemanha, os professores tinham um conjunto de anotações para mostrar às autoridades romanas como a substância de suas palestras, e outro para uso na sala de aula. Funcionava, de forma generalizada, uma espécie de “caixa 2”.

Os delegados compreenderam que, nos lábios de Pio, correção e or todoxia de teologia e filosofia significavam adesão a normas romanas. Mas já para muitos jesuítas, Roma e seu papa e sua burocracia do Vaticano pareciam estar presos a uma mentalidade que já não existia fora da Igreja em geral. Pio havia falado para uma dura e nova realidade. Havia algo de estranho, para os jesuítas, em relação a Roma e ao romanismo.

De fato, mesmo elementos essenciais da vida jesuítica como a prática da disciplina religiosa nos exercícios espirituais diários, a prática de uma hora de orações e o exame de consciência estavam em estado fluido. Muitos superiores já não tentavam fazer cumprir as regras que obrigavam os jesuítas à residência em casas jesuíticas, e tão logo alguém estivesse se especializando em matéria científica, esse alguém também poderia ficar isento de outras regras, como as que diziam respeito à prática da pobreza e da vida comunitária.

Principalmente, porém, foi quando Pio os estava prelecionando sobre a obediência religiosa e a adesão à vontade do papa e à doutrina que ele proclamava, que os delegados sentiram a mais profunda diferença qua litativa entre o ideal de um jesuíta segundo Pio e o modo pelo qual os jesuítas se desenvolviam nas províncias. Foi este o principal motivo de “a forma

monárquica de governo” que Pio descrevera como sendo da Sociedade ter

parecido estranha. É claro que o superior era o superior; mas muito poucos delegados teriam usado de bom grado o termo “monárquico” para descrever a

ideia que faziam do governo da Igreja ou da Sociedade. Pio parecia estar propondo uma visão de vida religiosa, de obediência religiosa e de “papalismo”

que era antiquada, e que por um motivo qualquer já não encontrava eco nas vidas dos jesuítas tal como os delegados as conheciam.

Em síntese, parecia que naquele outono de 1957 o caráter de um je suíta e o caráter da Sociedade tal como descritos no discurso do papa pa reciam intragáveis no mundo de hoje. O pontífice e os jesuítas divergiam

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na sua definição de jesuitismo. A maioria não sabia por que isso aconte cia; todos ainda eram jesuítas, e todos queriam continuar a sê -lo. Apesar disso, o estado de espírito dos delegados ao final do discurso ia de desanimador a ligeiramente indignado.

A contragosto, o discurso de Pio XII teve aprovada a sua inclusão na ata da CG30 pelos delegados. Mas o estado de espírito da congregação havia mudado. Muitos haviam ido a Roma com ideias e propostas que, agora, achavam que não podiam expor francamente com liberdade democrática. Não há sinal algum, na ata publicada da CG30, de qualquer inclinação por parte dos delegados de fazer a pergunta muito profunda: por que o santo padre fizera aquele tipo de discurso para eles?

Extra-oficialmente, muitos quiseram saber quem — e, se jesuítas, quais — tinha colaborado com Pio na redação do discurso. Pio contava, na época, com três principais colaboradores jesuítas, todos alemães. Cer ta culpa foi lançada sobre eles em particular, como bodes expiatórios alternativos; e outros jesuítas mais velhos também foram acusados — homens da posição de Paolo Dezza, que há muito tempo era colaborador do papa.

No fim, porém, ninguém foi acusado especificamente. Achava -se que a Sociedade tinha sido tratada de maneira bastante rude, suas intenções tinham sido mal interpretadas, e Pio havia se dirigido de uma ótica fantasiosa a homens que estavam mergulhados na essência de um mundo em mutação onde métodos “monárquicos” e devoções “medievais” não tinham lugar.

Uma virtude que a Sociedade ainda mantinha era a paciência jesuíti ca. Com o passar do tempo, haveria um novo papa. Haveria outras congregações gerais. As coisas iriam melhorar.

Aqui, a principal personagem a condenar, se alguém podia ser condenado, era o padre-geral Janssens. É verdade que ele era, ex-officio, um servidor da congregação. Mas sua posição de geral impunha-lhe a obrigação moral da liderança. O ideal teria sido que o padre Janssens tivesse alterado a situação e levado os delegados a raciocinar em detalhes e de forma concreta sobre o que o papa dissera a respeito da condição dos homens em toda a Sociedade. Mas o padre Janssens era essencialmente um homem das devidas formas e fórmulas que os burocratas consideram como sua maneira adequada de desempenhar suas funções. Além disso, era um homem tímido, um homem que nunca se sentia à vontade falando italiano. Nunca se sentia à vontade em Roma. Nunca pôde se adaptar à romanità. Em vez disso, refugiava-se numa maneira muito formal de pensar e falar e lidar com os problemas, que substituía a liderança poderosa. Dele, não se podia esperar inspiração.

A CG30 terminou sem quaisquer decisões de importância fundamental ou novas diretivas inovadoras. O ardor fora amortecido; a liberdad e de expressão tinha sido refreada — era este o sentimento geral. A Roma e o Vaticano de Pio não eram lugares hospitaleiros para os jesuítas.

A única nota ligeira — mas com ligeiro toque antipapal — foi dada

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ao se dar sequência aos resultados da CG30 e foi proporcionada pela condenação pelo papa ao uso do fumo. Segundo a tradição, o padre-geral escreveu uma carta a toda a Sociedade sobre a congregação geral e o discurso do santo padre. Os desejos do santo padre, tanto na questão do fumo como de outras co isas, deveriam ser implementados. O geral esperava que todos os provinciais o informassem sobre a implementação. Os superiores locais — provinciais, em sua maioria — tinham que tomar providências concretas por meio de uma carta a todos os membros de suas províncias que desse uma satisfação burocrática às autoridades romanas de que os jesuítas tinham levado a sério as admoestações do papa.

Provinciais diversos estabeleceram normas diversas; alguns chegaram até a transformar em condição para a entrada na Sociedade a promessa do candidato de não fumar ou, se ele já fosse fumante, que deixasse de fumar. O provincial holandês escreveu uma carta a seus subordinados que foi copiada em grande quantidade e passada de mão em mão praticamente por toda a Sociedade como sendo um documento clássico. Os fumantes eram divididos em diferentes classes: os inflexíveis, os incessantes, os principiantes, e assim por diante. Eram dadas receitas para lidar com cada classe. Os fumantes velhos e inflexíveis podiam ser deixados em paz; tinham um vício repugnante, mas estavam velhos demais para mudar; eram incorrigíveis. Os jesuítas de meia -idade tinham que enfrentar o problema da meia-idade. Os “jovens”... e ia por aí. No fim, os

homens da província holandesa continuaram a fumar enquanto seguiam seu caminho até à eternidade, como sempre fizeram.

Nunca mais poderá haver uma congregação do tipo da CG30, e por uma razão muito boa que só pode ser percebida pela percepção tardia. Uma pequena maioria, mas ainda assim uma maioria, de delegados à CG30 já era muito progressista em seus pontos de vista e suas práticas. O que paralisara os delegados àquela CG30 fora a súbita percepção de que aquele papa, Pio XII — embora tido como amigo pessoal de jesuítas de alto nível e seriamente dependente de jesuítas para serviços essenciais prestados a ele em caráter pessoal3 — havia se irritado com eles, acusando-os, em termos práticos, de traírem sua vocação de jesuítas. Mas o que intimidara os delegados à CG30 não fora o fato da desaprovação por parte daquele papa, mas sim o de que eles não podiam aceitá-la nem encontrar um meio qualquer de contorná-la.

Sabia-se que Pio era autoritário e que não tolerava recalcitrância; e parecia estar amplamente informado sobre a agitação interna provocada na Socie dade pela recalcitrância.4 Isso fora um fator inibidor. Outro foi o fato de que a recalcitrância já desenvolvida na Sociedade na década de 1950 ainda não tinha encontrado saída legítima. Oficialmente, ela não exis tia. Não tinha voz. A reação mal-humorada e de falta de disposição para colaborar, que a CG30 teve diante do catecismo do pontífice, foi praticamente tudo o que a congregação pôde fazer naquelas circunstâncias.

A CG30 terminou em novembro de 1957. Menos de um ano depois, Pio havia morrido e seu sucessor, João XXIII, fora eleito. Os jesuítas

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holandeses apressaram-se a assinalar que o novo papa ainda fumava cigarros. Os americanos observaram sua paixão pelas viagens. Os franceses o descreviam, de forma ferina, como une bonne fourchette — o novo papa era um bom garfo à mesa.

A facção progressista da Sociedade, entretanto, observou o libera lismo de João. Segundo o ponto de vista deles, a situação toda havia mu dado por completo. O novo papa, raciocinavam os progressistas — um não-romano, um homem que era conhecido por não ser autoritário — poderia proporcionar o egresso de que eles precisavam de uma existência clandestina.

As expectativas deles foram amplamente realizadas. Três meses depois de sua eleição para o Trono de Pedro, “o bom papa João” já anunciara o Concílio Vaticano II. O que se seguiu, tanto antes da abertura daquele concílio em 1962 como durante os seus quatro anos de existência, não se parecia com outra coisa a não ser um ataque de furacões sobre a cidade dos papas. A vez seguinte e m que delegados jesuítas se reuniram — para a CG31 em 1965, oito anos depois da CG30 — os furacões da mudança haviam varrido tudo. Um espírito diferente reinava entre os de legados; um geral muito diferente estava no cargo; uma atmosfera muito diferente ench ia a Roma dos papas; e o jesuitismo já havia recebido um novo modelo.

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11. FURACÕES NA CIDADE

C

oloque-se na posição do morador de uma cidade que nasceu e cresceu nela e que segue para o trabalho pelo caminho que você tem usado todas as manhãs nos últimos vinte ou trinta anos. Segue por uma longa avenida, depois dobra uma certa esquina e segue por outra avenida que parece que nunca mudou. É isso. Você tem feito isso centenas de vezes, cinco dias por semana, quem sabe por quantas semanas, ano após ano. A manhã é como todas as outras manhãs, numa cidade que é exatamente como sempre foi para você ontem, no mês passado, e lá até onde você pode se lembrar.

Por isso, você anda praticamente sem perceber os pontos caracterís ticos e todas as coisas que você conhece tão bem e que lhe dizem que você ali está em casa — as calçadas, os cruzamentos de ruas transversais, os sinais de tráfego, árvores, postes, lojas, prédios; o ritmo crescente e de crescente dos carros, ônibus e caminhões; as bancas de jornais, o homem de sempre mendigando em seu posto permanente, a mistura de sons de vozes e de máquinas, os cheiros no ar, até mesmo as usuais variações do tempo; as multidões de homens de negócios, funcionários de escritórios, operários de construções, donas de casa passeando com seus cachorros, mensageiros, turistas, gente fazendo compras, ociosos, vadios.

Tudo é tão esperado, tão previsível, tão tranquilizador, que não importa o nível do barulho ou movimento irregular das coisas da rua, num certo sentido tudo aquilo garante a sua paz de espírito. Dobrando aquela conhecida esquina, tudo será como sempre foi. É isso que você presume inconscientemente. E com razão, porque certas coisas não mudam. A vida é baseada nessa premissa, em especial os atos insignificantes da vida como ir a pé para o trabalho.

Mas imagine-se dobrando aquela esquina e sendo subitamente apanhado por trás por uma rajada de vento forte que parece ter surgido do nada e em sua passagem furiosa despedaça prédios, derrubando alguns deles, atirando pessoas para todo lado, enchendo as calçadas de destroços, arrancando árvores e sinais de trânsito, transformando o céu sobre a sua cabeça com uma cor de crepúsculo, e torcendo a retidão da avenida

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que permitia uma visão clara e deixando-a parecida com um saca-rolhas, enquanto leva, a contragosto, você e todos e tudo mais em direções es -tonteantes. É uma mudança tão total, tão abrupta, tão irresistível mes mo, que você já não sabe onde está, para onde está indo, e o que está acontecendo.

Antes que você tenha tempo de perceber que não consegue se orientar, outra forte rajada de vento misturando-se à primeira vem gritando de forma incoerente nos seus ouvidos e, para deixá-lo ainda mais em pânico, parece afetar a maioria das pessoas que o cercam com uma espécie de prazer estático, de modo que elas se atiram sem resistir nas violentas lufadas daqueles dois ventos que agora levam todo mundo, inclusive você, para um lugar de onde não se avista nenhum dos velhos pontos de referência conhecidos. É tão estranho o efeito da segunda lufada, que mesmo com toda a sua violência e confusão, a coisa mais desorientadora de todas, para você, é a estranha euforia de expectativa e de prazerosa confiança que parece tomar conta da maioria das pessoas que estão sendo atiradas de um lado para outro enquanto você e elas são empurradas numa viagem desconhecida e não registrada nos mapas.

Um elemento bizarro dessa euforia perturbadora é a maneira pela qual as pessoas começam a conversar, quer entre si, quer com Deus. Parece que, num instante, elas aprenderam uma nova linguagem, estão pensando em tudo com conceitos disseminados em massa e pré-fabricados. “Não adore na vertical!

Adore na horizontal!” “Tudo o que ajudar o crescimento criador para a

integração!” “Precisa-se de facilitadores!” “Como está o seu desempenho

interpessoal?” E, como se isso já não desorientasse o bastante, um tom quase maníaco, num volume que quase chega à histeria, penetra de vez em quando na vasta confusão, quando homens e mulheres, alegando o dom de línguas do Espírito Santo, começam a emitir sons sem sentido com rapidez. “Ik bedam dam

bula” — ou coisa parecida — ouve-se um cardeal católico romano dizer extasiado, garantindo a confusão no mais alto posto. Gloriosa confusão. Eufórica confusão.

Por um instante, você fica tentado a juntar-se a todos e entrar num mundo mágico, fictício. Mas dúvidas absurdas o assaltam, sem que haja respostas consoladoras. Por que não houve aviso? Onde estavam aqueles ventos há momentos antes de atacarem? Estariam escondidos o tempo todo? Lá acima das nuvens, talvez, ou pairando em algum ponto longe das ruas e dos prédios? Ou será que vieram de regiões estranhíssimas e distantes? Por que estão todos tão euforicamente confiantes no futuro, mesmo enquanto estão sendo arrastados nas costas desses ventos? Será que o seu alegre salto à frente para a escuridão está iluminado por anseios e informado pelo seu instinto do divino? De onde vieram seus novos conceitos? E sua nova língua?

Quaisquer que sejam as respostas, você sabe que não pode voltar para o que era antes. Ninguém terá condições de voltar outra vez para os velhos locais conhecidos. As coisas nunca serão as mesmas em sua cidade natal.

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Talvez seja aquela perfeita percepção que subitamente faz com que uma coisa pareça certa e clara em sua mente: de onde quer que tenham vindo, aqueles dois violentos furacões — o que derrubou tudo o que lhe era familiar, e o outro que meteu aquela estranha euforia na cabeça das pessoas — não eram tempestades normais.

Esse cenário, por fantástico e surrealista que pareça, mal é suficiente para dar ideia da totalidade e da rapidez da mudança e da estranha eufo ria que arrebatou os católicos romanos — e, surpreendentemente, também os jesuítas — na década de 1960. Porque todo um sistema tradicional de vida e prática religiosa foi aparentemente eliminado com aquela rapidez, sem aviso. Uma mentalidade de séculos foi levada na enxurrada de um furacão de mudança. Em certo sentido, um determinado mundo de pensamento, sentimento e atitude deixou de existir — o antigo mundo católico centrado na autoridade de um pontífice romano; a rígida alternativa entre apenas duas opções do dogma e da moralidade católica; o comparecimento à missa, a frequência da confissão e da santa comunhão; o Rosário e os vários atos piedosos e devoções da vida paroquial; a militância dos leigos católicos romanos em defesa de valores católicos tradicionais. Todo esse mundo foi aniquilado, por assim dizer, da noite para o dia.

Quando a violência dos ventos passou e o novo dia amanheceu, as pess oas olharam à sua volta e descobriram que, de repente, o latim uni versal da missa havia desaparecido. Ainda mais estranho: a própria missa romana desaparecera. Em seu lugar havia um novo rito que se parecia com a missa antiq uíssima como um barraco se parece com uma mansão palaciana. O novo rito era dito numa babel de línguas, cada qual dizendo coisas diferentes. Coisas que pareciam anticatólicas. Que apenas Deus, o Pai, era Deus, por exemplo; e que o novo rito era uma “ceia comunitária”, não uma representação da morte de Cristo na cruz; e que os padres não eram mais sacerdotes de um sacrifício, mas ministros à mesa servindo a convidados numa ceia comum de amizade.

É verdade que o papa que presidia tais enormidades de aberração doutrinária, Paulo VI, tentou recuar um pouco em direção à primeira e única Missa Romana. Mas era tarde demais. O caráter anticatólico daquele novo rito persistiu.

A devastação daqueles furacões não tinha parado ali. Igrejas e cape las, conventos e mosteiros tinham sido despojados de imagens. Altares de sacrifício tinham sido removidos ou, pelo menos, abandonados, e em vez disso tinham sido colocadas em frente ao público mesas de quatro pés, como se preparadas para uma ceia agradável. Sacrários foram reti rados, juntamente com a crença fixa sobre o sacrifício de Cristo como a essência da Missa. Paramentos foram modificados ou postos inteiramente de lado. Balaustradas para a comunhão foram removidas. Os fiéis foram instruídos a não mais se ajoelharem quando recebessem a Santa Comunhão, mas ficarem de pé como homens e mulheres livres, e a receberem o Pão da Comunhão e o Cálice do Vinho da Comunhão em suas

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mãos democráticas. Em muitas igrejas, membros da Congregação eram imediatamente expulsos por “perturbação pública da adoração” se tivessem a ousadia de genuflectir ou, ainda pior, ajoelhar-se, para a Santa Comunhão no novo rito. A polícia era chamada para expulsar os infratores mais graves, aqueles que se recusavam a cooperar e se recusavam a sair.

Fora das igrejas e das capelas, missais romanos, cartões de comunicação de missas fúnebres, livros de orações, crucifixos, as vestes de alta res, paramentos da missa, balaustradas para comunhão, até púlpitos, imagens e genuflectórios, bem como Estações da Via-Sacra eram atirados em fogueiras e depósitos de lixo das cidades ou vendidos em leilões públicos onde decoradores de interiores os arrematavam a preços irrisó rios e lançavam um “estilo

eclesiástico” na decoração de apartamentos e de casas elegantes dos subúrbios.

Um altar de carvalho esculpido dava uma “penteadeira” tão original...! A reação a tudo isso não foi apenas imediata; foi turbulenta e cons tante.

Mas não pense, por um minuto sequer, que foi uma reação de hor ror, de inquietação, de insistência para que se acabasse com a barbaridade que as coisas sagradas e sacrossantas fossem restauradas. Muito pelo contrário.

O comparecimento à missa diminuiu imediatamente, e em dez anos havia caído 30% nos Estados Unidos, 60% na França e na Holanda, 50% na Itália, 20% na Inglaterra e no País de Gales. Outros dez anos, e 85% de todos os católicos da França, Espanha, Itália e Holanda nunca foram à missa. A população dos seminários teve queda vertical. Na Holanda, 2.0 padres e 5.000 irmãos e freiras religiosas abandonaram seus minis térios. Existe, hoje, 1986, em média um novo padre ordenado por ano naquele país, onde antes havia uma média de dez. Quedas semelhantes foram registradas em outros países. Nos doze anos de 1965 a 1977, cerca de doze a quatorze mil sacerdotes no mundo inteiro solicitaram dispensa de seus deveres, ou simplesmente foram embora. Sessenta mil freiras deixaram seus conventos entre 1966 e 1983. A Igreja Católica nunca sofrera perdas assim tão devastadoras num espaço de tempo tão curto.

Muitas freiras professoras simplesmente se desfizeram de seus hábitos religiosos, compraram logo trajes leigos, cosméticos e joias e deram adeus aos bispos locais que até então tinham sido seus superiores, decla raram-se constituídas como educadoras americanas comuns, decentes e íntegras, e seguiram suas carreiras. O número de confissões, comunhões e crismas diminuiu no mundo inteiro a cada ano, de uma média de 60% de católicos praticantes em 1965 para um número situado nalgum ponto entre 25% e 30% em 1983. As conversões ao catolicismo diminuíram dois terços.

Aqueles que ficaram — leigos e clérigos — não estavam satisfeitos com a tentativa de abolição da Missa Romana tradicional, com as alterações gerais do ritual e da adoração católica, e com a nova liberdade de lançar dúvidas sobre todos os dogmas. Aquilo não era o bastante. Elevou-se

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um clamor em favor do uso de anticoncepcionais, da legalização das relações homossexuais, de tornar o aborto opcional, da atividade sexual pré-marital sob certas condições, do divórcio e novo casamento dentro da Igreja, de um clero casado, da ordenação de mulheres, de uma rápida união improvisada com as igrejas protestantes, da revolução comunista como meio não apenas de resolver a pobreza endêmica, mas de definir a própria fé.

Passou a ser moda uma nova forma de blasfêmia e sacrilégio. Para os católicos homossexuais, o “discípulo que Jesus amava” adquiriu no vo significado. Não tinha aquele amado discípulo “se apoiado no peito de Jesus” na

Última Ceia? Com isso, o amor do homem pelo homem es lava consagrado, não? Sacerdotes homossexuais em paramentos cor de alfazema rezavam missa no novo rito para suas congregações homossexuais.

E se podia ser assim para os homossexuais masculinos, o que dizer do amor da mulher pela mulher? Só as mulheres católicas da geração da década de 1960 foram suficientemente inteligentes para perceberem que eram vítimas do preconceito sexual eclesiástico; para elas, chegara finalmente o dia do acerto de contas com a antiquíssima Igreja preconceituosa em matéria de sexo. Surgiu, então, a Igreja feminina — um desses medonhos e populares termos que significava reuniões de mulheres em apartamentos particulares onde Ela (Deus, a Mãe) era adorada e recebia agradecimentos por ter enviado o seu Filho (Jesus) pelo poder fertilizante do Espírito Santo (sendo Ela mesma a Mulher primoprimordial).

Apoiando essa variegada plêiade de mudanças e mudadores e vira -casacas, lá veio marchando toda uma falange de irrequietos “peritos”. Teó logos, filósofos, peritos litúrgicos, “facilitadores”, “coordenadores sócio-religiosos”,

ministros leigos (masculinos e femininos), “diretores de práxis” — fossem quais fossem seus títulos divulgados em massa, estavam todos procurando duas coisas: convertidos à nova teologia e briga com os maltratados tradicionalistas que estavam em retirada. Um dilúvio de publicações — livros, artigos em revistas, novas revistas, boletins, cartas-circulares, planos, programas e resumos — inundou o mercado católico popular.¹ Os “peritos” questionavam e

“reinterpretavam” todo dogma e toda crença, tradicional e universalmente esposados pelos católicos. Tudo, na verdade, e em especial as coisas difíceis da fé católica romana — penitência, castidade, jejum, obediência, submissão — ficou sujeito a uma modificação violenta, da noite para o dia.

Em outro nível, enquanto isso, acontecia em todos os seminários, colégios e universidades católicos uma depuração mais sutil mas ainda evi dente. Homens mais velhos, de ideias tradicionais, foram aposentados prematuramente ou simplesmente se afastaram desgostosos.2 Eles só eram substituídos por partidários fervorosos da “Renovação” (a palavra era sempre escrita com inicial

maiúscula naquela primeira fase). Os seminaristas eram expulsos se achassem a novidade abominável.

Para acentuar as cores de crepúsculo naquela cena varrida pela tempestade,

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veio uma segunda tempestade, a onda de euforia. Surgiu, entre os que restaram, a magnífica, embora nem sempre convincente, ideia de que o futuro do catolicismo, tão abruptamente reduzido em sua prática e no número de adeptos, era agora um tanto mais brilhante do que nunca. O que parecia um monte de destroços era, na realidade, uma imensa renovação pentecostal em marcha; a verdadeira Igreja de Cristo estava para surgir em toda a sua beleza e verdade.

Aquelas esperanças — todas as esperanças — se concentravam, agora, na comunidade. “O Povo de Deus” estava, agora, distinto e sepa rado da antiga e inflexível hierarquia do papa, bispos, padres e freiras na rígida solidificação da disciplina romana. Mais do que isso, dizia-se agora que aquele Povo de Deus — todo ele, bem como em cada pequeno grupo de fiéis — era a verdadeira Igreja, a verdadeira fonte de revelações, o único legitimador da moralidade, a única fonte daquilo em que se deve acreditar. Em questões de fé, moral , dogma e prática religiosa, Roma, do estado da Geórgia, tinha a mesma autoridade que a Roma dos papas. A autoridade central estava desaparecendo como verdade ca tólica prática.

Se alguém olhasse à sua volta, na primeira fase da tempestade, para se orientar, nenhuma pessoa isolada e nenhum grupo isolado pareceriam responsáveis pelo surgimento daquela eufórica convicção. Mas ela avan çava como um incêndio descontrolado pelas igrejas, afrouxando os laços entre os leigos e o clero, entre freiras e superiores eclesiásticos, entre padres e bispos, entre bispos e papas.

Consequência imediata foi a insistente exigência de que a democrati zação substituísse a autoridade central e pusesse uma nova e muito necessária ordem por toda a Igreja. Os padres se organizaram em ligas, associações, senados e sindicatos, em bases nacionais e regionais. As freiras fizeram o mesmo.³ Os leigos, homens e mulheres em separado, também. Todos emitiram declarações bem delineadas de seus direitos e exigências. Todos exigiam que método s democráticos fossem usados não apenas no governo da Igreja Romana, mas até mesmo para “decidir” no que se deveria acreditar. Toda uma nova burocracia ativista surgiu da noite para o dia, cheia de carreiristas que lançavam atividades sempre mais novas e mais impetuosas.

Durante toda essa vasta transformação, aquela alegre, micawberiana convicção de grande sucesso muito próximo nunca diminuiu. E aque la convicção febril é que parecia provocar a euforia. Às vezes provocava o que agora, olhando-se para trás, parece um circo cheio de palhaços inconsequentes zombando com estripulias da dignidade, da posição, do poder e da graça em que eles ainda se apoiavam, ainda que apenas para efeito teatral. Toda uma gama de carreiras inteiramente novas abriu-se para clérigos que não tinham interesse em ouvir confissões, batizar bebês, procurar pecadores e rezar missa.

Com uma velocidade surpreendente, a cena contemporânea assumiu um aspecto ridículo, cômico, que parecia pedir uma exploração em filmes

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do tipo “pastelão” e por cômicos de casas noturnas. Padres com rosários simbolizando paz e amor faziam pressão sobre os bispos, dedilhando violões e cantando “Sonhar o Sonho Impossível”. Freiras usando maquiagem, joias e roupas da moda sorviam coquetéis em suas “convenções” anuais em salas de

estar de hotéis. Bispos estampavam em suas cartas pastorais a foice e o martelo em alto-relevo, em vez dos símbolos normais da Cruz e da Igreja. Teólogos davam saltos mortais metafóricos sobre a cúpula da Basílica de São Pedro, em suas tentativas de saltarem para longe de toda e qualquer regra romana de moralidade e fé. Um arcebispo americano subiu serenamente ao púlpito para pedir à sua congregação que parabenizasse e rezasse por seu bispo-auxiliar que no dia seguinte iria deixar o episcopado para se casar. Um bispo americano, que mais tarde se tornou cardeal, organizava “comitês de bolinhos” em todas as

paróquias de sua diocese, para fazer bolinhos e sonhos tostados para serem usados como pão da Comunhão no novo rito que substituiu a Missa Romana. Um arcebispo mexicano começava regularmente seus sermões dominicais com o punho cerrado erguido em saudação e com o grito desafiador da Internacional Comunista, “Soy marxista”, nos lábios.

O público em geral não deixou de perceber a atmosfera circense. Pela primeira vez na história da indústria cinematográfica e de televisão ame ricana, o padre católico, a freira católica, o seminarista católico, os rituais católicos tornaram-se presa fácil para risadas gratuitas e dramas horripi lantes. Como o pastor anglicano na Inglaterra de Noël Coward e os rebbe judeu na Europa das décadas de 1920 e 1930, aqueles personagens católicos romanos, antes intocáveis — freira, padre, bispo, papa, seminarista — entraram para o cartaz mundial de matéria de entretenimento.

E a euforia continuava. De algum modo, tudo aquilo, também, era interpretado como parte da promessa de um futuro dourado para o cato licismo.

A substância tanto da euforia como da confusão nunca foi retratada mais literalmente do que por dois artistas romanos, Ettore de Conciliis . — sem dúvida um nome com um toque de ironia histórica — e Rosso Falciano. Nos últimos dias do Concílio Vaticano II, contratados para decorar as paredes de uma nova igreja em Roma dedicada a São Francisco de Assis, Conc iliis e Falciano pintaram uma rodopiante montagem de ros tos de perfil. Foi como se uma barafunda disparatada de retratos tivesse sido colocada naqueles mesmos ventos fortes, àquela altura adquirindo rapidamente a plena força de um furacão. O papa João XXIII, o ditador comunista Fidel Castro, o ateísta professo Bertrand Russell, o líder do Partido Comunista Italiano Palmiro Togliatti, a atriz excomungada Sophia Loren, o presidente Alexei Kosygin do Conselho de Ministros soviético, o prefeito esquerdista Giorgio La Pira, de Florença, o ditador comunista Mao Tse-tung, da China, e, sabe-se lá por que razão, Jacqueline Bouvier Kennedy.

Nem Conciliis nem Falciano eram comunistas. Mas estavam conven cidos de que, com o Vaticano II, estava tudo mudado. Ninguém estava

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errado; todos estavam certos. Tal como a Igreja, São Francisco, o poverello de Assis, podia abraçar a todos. Porque agora o impossível acontecera. A Igreja Católica Romana tornara-se humana; e, portanto, nada que fosse humano podia ser visto como alheio a ela. Renovação era a maneira, a verdade, e a vida do catolicismo romano. E sua mensagem era levada nas asas de seu próprio delírio: se a Igreja hierárquica pudesse mudar, pudesse se adaptar à humanidade da Renovação, a Era de Ouro da Cristandade ir ia nascer.

Realidade, disse certa vez Jean-Paul Sartre, é um balde de água gelada. Ela o deixa sem respiração, incapaz de falar. Tão repentinos e tão esmagadores foram aqueles dois furacões, que expressões articuladas de surpresa ou choque pareciam impossíveis para a grande maioria de homens e mulheres — tanto testemunhas quanto participantes. A mudança foi uma mudança de verdade. A euforia era euforia de verdade. Ninguém discutia a autenticidade de nenhuma das duas. Sua realidade ultrapassava qualquer ficção ou pretensão, em termos de estranheza, incongruência ou espírito inventivo. Mas embora houvesse indivíduos e grupos de pessoas aqui e ali que gritassem um equivalente a “Esperem aí! O que é que está acontecendo? Por que estamos mudando tudo?”,

era como se ninguém pudesse ouvi-los por causa do barulho da tempestade dupla que assolava o catolicismo.

Como no nosso cenário surrealista, com o tempo aquelas perguntas começaram a ser feitas por um maior número de pessoas. De onde tinham vindo aqueles furacões? Por que a euforia? De onde vinham os novos conceitos e a nova linguagem? Até o papa Paulo VI, em cujo reinado a devastadora mudança e a ingovernável euforia atingiram a força de furacão, pensou nessas perguntas, como era seu dever. Àquela altura, porém, a reflexão de Sua Santidade era sobre causas elementares: “A Fumaça de Satã penetrou o Santuário e envolveu o

Altar.” Na época como agora, a maioria das pessoas, entusiasta ou condenatória

em relação à mudança, parecia achar que fora tudo o resultado di reto do Concílio Vaticano II do papa João XXIII, que reunira mais de 2.500 bispos católicos romanos em Roma para quatro sessões separadas entre 1962 e 1965. Mas o Vaticano II, como todo concílio, deixou um registro claro em seus documentos. E nada é mais certo do que o fato de que aquele concílio reiterou aquilo que dois concílios ecumênicos anteriores haviam proclamado, especialmente com referência à primazia e à infalibilidade do papa, ao caráter hierárquico da Igreja Romana e ao caráter sem igual do sacerdócio. Quanto à Missa Romana, o concílio decretara que ela, também, deveria ser preservada. Todos os pontos essenciais deveriam continuar inalterados e sacrossantos. Só foi permitido que certas orações menores da missa fossem ditas no vernáculo. As tradicionais devoções da Igreja foram enfatizadas.

Em outras palavras, não importa como você os torça, os documen tos do Concílio Vaticano II nem mesmo sugerem, muito menos autorizam, o furacão de mudanças; tampouco criaram ou justificaram a euforia

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— a curiosa expectativa de novidade instantânea em tudo — que parecia convencer homens e mulheres de que destruir os próprios vestígios do ca -tolicismo seria introduzir a Época Dourada do catolicismo.

Não foram os documentos do Vaticano II que autorizaram os bisp os a fazerem justamente o oposto do que Roma mandava na questão da comunhão na mão; na questão de mulheres leitoras na missa; na questão de meninas sacristãs substituindo meninos sacristãos e de meninas e mulheres distribuindo a Santa Comunhão; nas questões da prevenção da gravidez e de uniões homossexuais. Os documentos do Vaticano II não deram aos teólogos carta branca para interpretar ou negar dogmas de fé como bem entendessem. O Vaticano II foi conservador em suas declarações e tradicional em sua teo logia e moralidade. O concílio não recomendou direitos dos homossexuais, dançarinos com roupas de malha dando saltos pelo santuário, bispos rezando missa vestindo calções e tênis, a abolição da clausura rígida para as ordens contemplativas, ou o uso dos bolinhos ingleses da Thomas como Pão da Eucaristia.

É evidente que o impulso para a mudança e a inovação, a própria euforia e a quase infantil convicção de que renovação consistia em jogar fora práticas sagradas antiquíssimas e rejeitar a voz autoritária de Roma devem ter sido, todos, o resultado de outro processo.

Que processo foi esse? A pergunta é vista com maior clareza quando se olha para o efeito dos

furacões da mudança e da euforia sobre a Sociedade de Jesus. Os jesuítas não são católicos comuns; são de uma qualidade excepcional entre inteligências de alto calibre. E a Sociedade a que pertencem não é um mero grupo paroquial, mas uma organização internacional com sede em Roma. Para culminar todas essas qualificações excepcionais, na década de 1960 os jesuítas tinham o que pode ser chamado, com toda certeza, de um venerável instinto corporativo testado pelos séculos, em favor da Igreja, do papado, e dos pontos essenciais do catolicismo de moralidade e dogma.

E tinham a sua magnífica folha de serviços. Quando alguns ou todos os bispos e clérigos da França, da Bélgica, da Alemanha, da Áustria, da Holanda, da Inglaterra e dos Estados Unidos decidiram, em várias épocas nos quatro séculos anteriores, opor-se ao ensinamento do papa romano, os jesuítas não abandonaram o papa uma só vez. Quando governos locais, em vingança contra Roma, tentaram criar igrejas “nacionais” em oposição à Igreja universal

governada de Roma, os jesuítas nunca se desviaram de seu voto de obediência e fidelidade ao papado. Nem tortura, nem ameaça de prisão, de exílio, de morte; nenhum agrado com poder, dinheiro, privilégio; nem mesmo a extinção de sua Sociedade por motivos injustos e pelo próprio papa romano; nada, em outras palavras, jamais levara a Sociedade ao ponto de romper o voto de submissão e serviço ao papado.

Se até os jesuítas, então, foram alterados por aqueles furacões — e foram mesmo — como se justifica isso? Se foram contaminados por aquela euforia — e foram mesmo — como aconteceu isso? Fatos realistas,

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denunciadores, poderiam ter sido vistos como avisos por homens como os jesuítas. Eles estavam, afinal, acostumados a vigiar o horizonte à procu ra das bandeiras vermelhas da história anunciando a chegada do perigo. Como poderiam ter deixado de perceber a rapidez incomum com que o número de membros e de admissões começou a cair? Em 1914, havia 17.0 jesuítas no mundo inteiro. Em 1965, 36.038. A sequência deveria ter sido de crescimento — em especial se havia uma renovação geral do tipo alardeado tanto por jesuítas como não-jesuítas.

Em vez disso, em 1966, aquele crescimento continuado inverteu -se; o número de membros caiu para 35.929. Uma perda de 109 homens em um ano era anormal — foi, na verdade, o primeiro declínio substancial em 54 anos. Os superiores jesuítas, sensíveis a s inais de dificuldades muito mais sutis e muito mais distantes, deveriam ter-se erguido de um salto e perguntado: por quê? Deveriam ter-se feito a mesma pergunta, com apreensão cada vez maior, até o final da década, porque em apenas cinco anos a Sociedade perdeu subitamente mais de 6.000 homens. Por quê?

O patético é que alguns dos superiores jesuítas fizeram realmente es sa pergunta; e que a responderam dizendo que a Sociedade precisava ab dicar do relacionamento com o papado, que tinha sido estabelecido p or um juramento, e mudar a natureza do jesuitismo. A Sociedade precisava da renovação que estava reduzindo a Igreja a destroços visíveis diante de seus olhos. Como resposta jesuítica, esta era da classe da insanidade autodestruidora.

Não há dúvida de que os jesuítas foram afetados pela euforia geral daquela época avassaladora, pois a característica geral daquela euforia era o abandono confiante e inquestionável daquilo que sempre fora sagrado e valioso e considerado essencial. Qualquer característica desse tipo tinha sido estranha não apenas à Sociedade de Jesus desde a sua criação, mas à essência — à própria razão da existência — do jesuitismo.

De fato, se você explicar satisfatoriamente o motivo pelo qual os je suítas — a Sociedade de Jesus como corporação — foram na direção em que foram, terá avançado bastante no sentido de encontrar algumas respostas para aquelas perguntas provocadas pela aparente rapidez súbita de mudança e pela euforia desvairada em toda a Igreja Católica Romana de 1965 em diante.

Entre 1965 e 1975, a Ordem realizou duas congregações gerais, CG31 e CG32. Quando a CG32 terminou em março de 1975, a Sociedade havia sofrido oficialmente e nas mãos de seu superior máximo — a congregação geral — uma completa transformação, do ideal inaciano clássico para um novo jesuitismo. No final da década, a Sociedade, em sua nova forma, estava em franca e completa oposição ao ocupante do Trono de São Pedro, depois de ter sido severamente criticada pelos dois sucessores daquele papa. Tinha sido declara da uma virtual guerra entre o papado e os jesuítas.

Não se pode supor sensatamente que os delegados à CG31 e à CG32 passaram, de repente, sem aviso prévio, por uma transformação tão completa

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assim, e relativa a duas questões tão fundamentais quanto a nat ureza da Igreja Católica e o significado da salvação. Tampouco se pode supor racionalmente que uma tradição de quatrocentos anos fosse posta de lado sem sofrimento ou espontaneamente.

Não. Aquela transformação devia estar sendo preparada há muito tempo. Mais de cem anos antes da década de 1960, para falar a verdade, uma nova e revolucionária corrente havia penetrado nas artérias do corpo católico romano, afetando particularmente a intelligentsia da Sociedade de Jesus. Essa corrente caracterizava-se por um desejo de ficar livre do controle, ter liberdade para fazer experimentos, para se adaptar à modernidade, para sair da exclusividade católica romana e unir-se à grande massa de homens e mulheres. Numa palavra: Libertação.

Embora essa corrente revolucionária tivesse feito muitas voltas, tinha sido rapidamente reconhecida pelos papas no século XIX pelo que era realmente — uma facada direta, assassina, no coração vivo do catolicismo romano. Os papas a denunciaram. A Sociedade, oficialmente, condenou-a, chegou até a combatê-la. Mas todos os esforços no sentido de se livrar daquele perigo só conseguiram levá-lo à clandestinidade.

A corrente ainda fluía em silêncio e dissimulada no início do século XX.

Levantou sua cabeça abertamente por um momento nos anos imediatamente subsequentes à II Guerra Mundial, mas a figura autoritária de Pio XII voltou a fazê-la recuar. Já em 1946, ele denunciou a corrente numa carta encíclica. 4 Apesar disso, a corrente ficou um pouco exposta à visão pública na CG29 em 1946 e na CG30 em 1957. Mas ela se retirou, quase de imediato, para sua posição oculta. Parecia que a escolha do momento certo tinha sido errada. Mas, àquela altura, já era uma questão apenas disso: escolher o momento certo.

Os originadores daquela corrente de “liber tação” — um destacado jesuíta, num acesso de zelo profético, certa vez os chamou de “os Liber tadores” — tinham feito bem o seu trabalho. “Lá do além de seus obscu ros túmulos, eles irão se esforçar por alcançar a vitória”, observou o mesmo jesuíta em rela ção a eles. De fato, Pedro Arrupe e sua geração de jesuítas — todos líderes do catolicismo — que prazerosamente mergulharam no novo jesuitismo das décadas de 1960 e 1970, só puderam fazer isso por causa daqueles Libertadores que tinham chegado antes.

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3ª PARTE

OS LIBERTADORES

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12. A DOUTRINA CATIVANTE

Q

uase que exatamente há cem anos, a cultura ocidental na Europa e nos Estados Unidos sofrera a sua primeira e única mudança religiosa radical desde o século IV, quando o imperador romano Constantino proclamou que o cristianismo era a religião do Império, e essa cultura nasceu. Aquela mudança, aparente entre europeus e americanos na década de 1880, era uma coisa novíssima: a descrença em Deus como opção aceitável.

Gostando ou não, nós, no final do século XX, aceitamos essa opção como ponto pacífico que faz parte de nossa cultura. Porque o fato de alguém declarar que não acredita em Deus não irá provocar nenhum erguer de sobrancelhas, além de certa surpresa por alguém ter-se dado o trabalho de provocar o assunto. Porque a descrença se tornou alternativa aceita e viável hoje em dia.

Sem dúvida, quase sempre tem havido agnósticos, ateístas, descrentes professos — e mesmo profissionais — e aqueles que Cotton Mather juntava vigorosamente em seu saco de gatos de “toda sorte de apóstata e filho de Satã”.

Mas essas pessoas eram sempre consideradas excêntricas; por certo nunca aceitas como constituintes e elementos normais da cultura.

Ao contrário, uma admissão básica sempre mantida na cultura ocidental era de que um poder sobre-humano chamado Deus com “D” maiúsculo era, de algum modo, responsável pelo cosmo e tudo que nele existe. As pessoas podiam diferir nas explicações daquela admissão básica, mas não era permitido — mais, era inimaginável — negar a existência de Deus.

No último quarto do século XIX, a descrença “assumiu sua posição atual

como opção plenamente admissível na cultura americana”1 e sua equivalente

europeia. Ela não afastou a crença. Não arrefeceu o ardor das renovações do fervor religioso. Foi simplesmente que a “continuada ausência de uma

convicção de que exista um poder sobre-humano [como Deus]”2 tornou-se,

então, e continua até hoje, uma atitude perfeitamente aceitável para com a religião, em igualdade de condições com a própria crença.

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Como James Turner mostra em seu livro Without God, Without Creed (Sem Deus, sem credo), essa mudança vinha sendo preparada durante pelo menos dois séculos. Mas a análise que ele faz demonstra um argumento que é mais importante quando se trata de pensar naqueles dois furacões simultâneos da década de 1960: a mudança não ocorreu como uma “vitória” direta do zelo

puramente secular sobre a crença religiosa. Não foi a ascensão da ciência, a secularização da educação e da política, a industrialização generalizada , ou o surgimento do comunismo e do marxismo que impôs a descrença à nossa cultura como opção aceitável.

Essa mudança radical foi devida diretamente à reação dos próprios líderes religiosos à modernidade. Diante da eficiência da razão aplicada a tudo — à industrialização da vida do homem; à pesquisa crítica das origens do homem; ao exame exato da natureza do mundo; à tecnologia da medicina, da produção de alimentos e da ciência social que vinha numa melhoria progressiva — os pensadores religiosos entraram em passo de marcha em fileira cerrada. Esforçavam-se por incluir Deus satisfatoriamente em todos aqueles novos modos de pensar e de viver. Ciência, tecnologia e artes aplicadas foram aceitas como manifestações do zelo religioso do homem e como se estivessem se preparando para um iminente milênio na Terra. “Líderes religiosos confiavam à

religião, funcionalmente, a tarefa de fazer com que o mundo ficasse melhor em termos humanos e, intelectualmente, maneiras de conhecer Deus que servissem apenas para uma compreensão do mundo.”³

Ao assumirem esses novos compromissos, os líderes religiosos saí ram de suas trincheiras. Enquanto o mundo corria para adaptar -se à sua nova cultura, os homens da igreja deixaram de realizar a única tarefa que sempre foi a marca d e excelência de grandes pensadores religiosos: fermentar, modificar e dar um significado transcendente às realidades da vida no mundo visível. Deixaram, em outras palavras, de concentrar a luz sobrenatural de sua fé nos novos critérios revolucionários que inundavam a mente dos homens no século XIX.

Em vez disso, se adaptaram. Consentiram em pensar e raciocinar sobre Deus e a verdade religiosa segundo as novas regras pelas quais o secularismo moderno fazia o seu muito impressionante progresso. Em suma, el es se renderam à modernidade. “Deus”, declarou Gilbert Burnet, bispo de Sarum, “é

uma Providência em desenvolvimento.” Em 1875, um orador na Universidade de Wisconsin podia declarar em

público que “a ciência social é aquela que cura, a messiânica purifica dora da raça humana, impulsionada pela vida. Ela é o arauto no enevoa do topo da montanha proclamando por toda esta terra oprimida que o Reino do Homem está próximo”. A descrença estava na moda. Era perfeitamente respeitável. Não acreditar era um direito igual a acreditar. Agir com base nessa descrença nos vários setores da vida — casamento, educação, política, questões sociais, psicologia, sexualidade — tornou-se uma questão puramente secular, uma parte dos direitos civis.

A nova atitude religiosa da descrença tinha atrativos só seus,

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principalmente para os intelectuais. Estes eram, afinal, a nata, a inteligência, os espíritos orientadores. Não eram simplesmente modernos para a sua época. Eram a modernidade. Ditavam o andamento. Não se tratava de inteligências de segunda categoria. Alguns deles eram os principais pensadores em seu mundo, e suas especialidades — ciência, conhecimentos bíblicos, as artes, história — eram altamente respeitadas.

Havia mais razões ainda para se ser atraído, quer quisesse quer não, pela nova atitude dos descrentes. Essa nova e revolucionária casta de ho mens parecia tão humana em sua compreensão e tão divina em seu instin to! Eles alegavam ser não-sectários e democráticos em seu espírito de tolerância — em casos em que um protestante e um católico estariam tentando estrangular um ao outro, o descrente podia ser amigo de ambos, sem tomar partido. Ele não pretendia decidir sobre questões religiosas debatidas com entusiasmo. Sua alegação era, ao contrário, de estar acima delas. Sua atitude parecia tão tolerante e aparentemente tão livre de preconceitos, tão doce e tratável, tão cativante e amante da paz, tão simpática, que para muitos, realmente, parecia ser a mais autêntica e mais nobre das atitudes que um cristão crente poderi a adotar. Mesmo quando um Lord Burleigh exclamava, como fez certa vez, que “qualquer homem com mais de cinquenta anos que acredita em Deus deve ser uma besta”, podia-se debitar isso ao puro aborrecimento com a mesquinhez incapaz de derreter, de espíritos menores e mentes mais estreitas. Sua Excelência, na verdade, não se importava se alguém tivesse vontade de acreditar em Deus.

Ainda assim, o novo estilo mal poderia ter gozado de sua adoção ma ciça — embora fosse limitada durante algum tempo — entre pessoas cultas se não fosse por um obscuro monge hindu sobre o qual a maioria dos adeptos da doutrina cativante nada sabe. Numa breve ascendência à fama, semelhante a um cometa, o swami Vivekananda4 fez com que o futuro deles se tornasse rosado quando participou do Parlamento Mundial de Religiões em 1893, em Chicago. De turbante e com uma túnica laranja e vermelho, de barba, olhos grandes, com um sotaque exótico e um olhar hipnótico, o swami falou sobre a singularidade da existência, a divindade da alma humana, a harmonia de todas as religiões e a singularidade de Deus.

Ainda assim, não foi tanto o que o swami disse; foi a maneira de ele fazer com que aquilo se encaixasse maravilhosamente bem no caminho da ciência e do humanismo em direção a uma nova ideia de perfeição material. “O homem

não está viajando do erro para a verdade”, decla rou Vivekananda à recém-receptiva mentalidade ocidental, “mas subindo de verdade em verdade, da verdade que é inferior para a verdade que é mais alta. (...) O verme de hoje é o Deus de amanhã (...).”

O swami de Calcutá levou de roldão os acadêmicos e a alta sociedade. Foi tratado com honrarias em Boston, Nova York e Filadélfia; foi homenageado pelos filósofos e teólogos de Harvard e Chicago. Aonde quer que fosse, de fato, ele deixou um toque indelével na corrente sanguínea dos pensadores acadêmicos entre os quais a doutrina cativante já fincara pé.5 Porque ele forneceu a teoria de que o que importava não era

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a religião em geral ou qualquer religião em particular, mas o espí rito. Ser espiritual — esta era a chave. “Se uma religião for verdadeira”, disse ele,

“então todas as outras têm que ser verdadeiras (...). A arte, a ciência e a

religião são apenas três maneiras diferentes de expressar a verdade úni ca (...). Tudo se eleva para o espiritual O importante, para os pensadores engajados em recodificar o mundo, foi que o swami forneceu um vocabulário para expressar aquela espiritualidade. O mais importante de tudo, porém, ele consagrou a vida do indivíduo como a única coisa que importava: “Quem pode ajudá -los para o Infinito? Até mesmo a mão que se estende para vocês na escuridão terá que ser a sua própria”.

O swami venceu onde os líderes cristãos haviam falhado. Deu ao no vo culto da descrença um estado mental abrangente, unif icador e inteiramente aceitável.6 Que esse estado fosse religioso no sentido pagão da palavra, não tinha importância. O seu atrativo estava em que repisava a dignidade do homem, o privilegiado poder de seu raciocínio; e deposi tava confiança total apenas na natureza humana, de modo que se cada pessoa estivesse livre de toda a inabilidade e intromissão por parte da re ligião organizada, poderia conseguir sua própria felicidade. Cada qual estava por sua própria conta: “(...) a mão que

se estende para vocês na escuridão”, como disse o swami, “terá que ser a sua

própria.” A nova descrença havia descoberto uma maneira de enfatizar aquilo que

reunia as pessoas, e não aquilo que as separava. Agora, ela podia dizer a homens e mulheres o que eles poderiam se tornar, o que estavam destinados a se tornar, não aquilo que não deviam se tornar. Alguns de seus defensores se distinguiram na solução de problemas cruéis: alguns dos primeiros abolicionistas, dos primeiros lutadores em prol dos direi tos civis dos negros, aqueles que lutaram contra a crueldade para com animais e crianças, e aqueles contra o trabalho infantil e contra os senhorios das favelas, foram fontes de encorajamento para o novo ponto de vista.

Como cidadãos, os novos descrentes não davam motivos para censura — eram afáveis, trabalhadores, generosos, pagando os impostos em dia, mantendo boas relações com os vizinhos e lutando por seu país quando este era ameaçado por um inimigo. Quando morriam — preferiam chamar sua morte de “transição”

— tudo o que pediam sob a forma de homenagens póstumas era que uma pessoa viva fizesse uma caridade para com outra pessoa viva, em memória deles. Porque a lembrança deles era tudo o que sobrevivia. Fora isso, eles haviam entrado para o nada. Eram, levando-se tudo em conta, totalmente civilizados, como se di ria hoje em dia. Os cristãos convictos iriam chamá-los, com indulgência mas assim mesmo com admiração, de “pagãos obviamente esclarecidos”. A nova casta não

gostava desse termo pagão, porém, nem de ateu; as conotações negativas eram negativas demais e óbvias demais. E de qualquer modo, a verdade, na opinião deles, era que eles eram espirituais. Porque alegavam serem levados pelo espírito da moralidade e sua consciência, que os instavam a fazer o que lhes fosse possível por outros seres humanos.

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Apoiavam todo o bem moral que as religiões formais professavam e realizavam, e propagavam amizade, amor, reconciliação e paz. O fato de também afirmarem a sua falta de fé — como profissão formal — era uma diferença demasiado pequena, a seu ver.

Nós, os humanos, poderiam eles comentar injustamente, sempre te mos desejado mais do que aquilo que nos falta. E, na realidade, o que importa se não tivermos um deus? Nós toleramos todas as crenças reli giosas; não aceitamos nenhuma. O swami não tinha dado a melhor definição? “Se uma

religião for verdadeira, então todas as outras têm que ser verdadeiras.” Assim, a nova religião da descrença havia adquirido um éthos ou estado de

espírito e um vocabulário na virada do século. Havia, tem havid o e ainda há centenas de milhares de homens e mulheres, só nos Estados Unidos, que no fundo do coração são descrentes. Como bons cidadãos, eles observam as amenidades da vida pública, civil e familiar, pertencem a este ou àquele grupo religioso; nunca pensariam, nem em sonhos, em atacar a fé religiosa formal. Mas no fundo do coração, adotaram a descrença.

Pelo fato de a nova atitude, a descrença, defender a nossa natureza humana, ela podia ser descrita como humanismo — mas, em absoluto, não o mesmo humanismo que havia surgido na Renascença europeia três séculos antes.

“O homem é a medida de todas as coisas”, declarara com orgulho o

humanista renascentista ao erguer a cabeça para falar com Deus. “Nós, os seres humanos, temos o nosso lugar de direito no longo drama

que ainda se desenrola, a aventura biológica que é o desenvolvi mento cósmico”, disse o descrente do século XIX, erguendo os olhos de seu

microscópio. “Do verme ao homem! Venham! Juntem-se a nós!” O novo humanismo sublinhava o nosso privilégio de se rmos humanos

juntos em um cosmo puramente material. Defendia a participação humana nesse cosmo como algo inerente à história cósmica, uma casualidade que datava de princípios remotos na primitiva “sopa” de produtos químicos

inanimados numa manhã antiga, até chegar à postura ereta do Homo sapiens, e ao cientista, ao erudito trabalhando com fósseis e átomos, e seus colegas de mentalidade mais prática, os novos engenheiros sociais. Somos “irmãos dos

penedos, irmãs das estrelas”, nas palavras de um cientista dos nossos dias. Tudo em relação à nova descrença era diferente do passado. Em seu auge

durante o século XIX e três quartos do século XX, os novos des crentes e aqueles que os compreendiam chamavam a nova atitude ou ponto de vista de “ser moderno” ou “modernista”. O modernismo tornou-se a nova maneira de pensar adequado aos descrentes das nações ociden tais. A mente modernista prevê todo tipo de “coisas boas” para a humanidade e um desenvolvimento muito espetacular, se as pessoas consenti rem que haja mudanças.

O único obstáculo àquele espetacular desenvolvimento mantido que

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o modernismo prometia era uma certa resistência teimosa à mudança, uma certa estabilidade de fé religiosa, o fato de muitos se apegarem a dogmas antiquados. É claro que qualquer religião organizada apresentava tal obstáculo. Mas, para a nova raça de descrentes e modernistas, as igrejas cris tãs e, em especial, a Igreja Católica Romana eram as principais criadoras do obstáculo.

Nenhuma igreja, entretanto, tivera a história da Igreja Ca tólica nesse assunto, porque durante centenas de anos Roma realmente alimenta va, regulava e controlava todo o desenvolvimento intelectual e artístico na Europa e na América Latina. Ao término do século XIX, a regulamentação clerical católica da cultura, da pesquisa e da investigação havia tido uma longa história marcada por experiências amargas de controle eclesiástico dos destinos humanos.

A nova casta de descrentes teve, automaticamente, profunda antipa tia por aquele controle dos clérigos. Tal control e havia retardado o progresso do homem, diziam eles. Ofendia a dignidade humana. Os próprios clérigos estragavam a unidade natural dos homens com a sua grosseira dissensão, e suas discussões sobre ideias, proposições e dogmas abstratos — formulados por outros homens há muito já mortos e desfazendo-se em pó — impediam a modernidade. Pior do que tudo, os clérigos proi biam a mudança. Não permitiam adaptação alguma. Se aquele clericalismo e aquele controle eclesiástico pudessem ser liquidados, os homens estaria m livres para progredir e enfrentar os desafios de um novo mundo.

A atitude, essa descrença cada vez mais militante, anticlerical, repre -sentava o que passou a ser chamado de humanismo secular.

A descrença, por si só, não podia destronar a fé popular e a f idelidade à religião tradicional entre as massas de pessoas comuns. A língua em si que ela falava era ininteligível para a mente comum. Por sua própria natureza, era uma evolução que se adequava às mentalidades sofisticadas dos cultos, dos bem-educados.

Para os clérigos, por outro lado, como para outros líderes religiosos e pensadores, teólogos e cientistas sociais, a nova atitude representava um copo de água fresca, borbulhante que lhes era estendido no que se torna ra, para muitos, um maçante, cansativo e repetitivo deserto. Na verdade, verificava-se uma perceptível lassidão, uma falta de imaginação, uma mes mice e uma monotonia no pensamento dos pensadores católicos romanos de princípios do século XIX. O traço predominante era uma mentalidade sitiada. Acontecimentos históricos — a Revolução Francesa; as guerras napoleônicas; a ascensão de grandes potências protestantes como os impérios britânico, alemão e holandês e a União Americana; o fanático anticlericalismo predominante na Europa — reduziram a atividade intelectual católica às reações espasmódicas de revide, refutação e repetição.

Acrescentando um gosto de fel a essa monotonia estéril, estava o pro -gresso óbvio da ciência e a substancial melhoria social obtida por pessoas que eram descrentes ou pelo menos totalmente contra Roma, o romanis mo e a tradição intelectual de Roma.

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Um grande desejo de participar do sucesso, da “nova era”, de ser colega

daqueles que empurravam as fronteiras do conhecimento humano muito além de todos os limites imagináveis, começou a provocar a intelligentsia da Igreja. Não há dúvida, concluíram eles, de que a Igreja também precisa evoluir e, portanto, mudar. Eles também estavam (nas palavras do swami) “subindo da

verdade para uma verdade que é superior”. Não é de surpreender que a única organização visível e conhecida que

percebeu claramente o mal que aquele modernismo poderia causar à sua própria alma foi a Igreja Católica Romana. Porque se o modernismo fosse aceito, a espinha dorsal do catolicismo romano seria quebrada, e dentro de pouco tempo seu corpo se tornaria uma ruína eviscerada.

O catolicismo romano foi erguido sobre um dogma e uma fé fixos, e estava irrevogavelmente ligado à tradição segundo a qual o represen tante pessoal de Deus na Terra vivia num pequeno mas dis tinto encrave às margens do Tibre em Roma, Itália. Dali, ele sustentava, com autori dade, verdades fixas sobre fé e moralidade. Havia toda uma gama daqueles ensinamentos tradicionais tratando de todos os aspectos da vida humana, de antes do ventre até além-túmulo e além, na eternidade de Deus. Essas tradições não podiam ser modificadas sem alterar o catolicismo por completo.

Já na década de 1840, o filósofo italiano Vincenzo Gioberti declarou categoricamente que “a Igreja terá que se reconciliar com o espí rito da época (...) e com os tempos modernos (...)”. Caso contrário, disse ele, a Igreja iria

perecer. Dentro de trinta anos após a morte de Gioberti em 1852, destacados eruditos católicos na França e na Itália haviam sucumbido ao poder e aos encantos do novo ponto de vista. O contínuo progresso da ciência, um novo modelo para os estudos dos eruditos bíblicos, a extraordinária moda da evolução darwiniana estavam começando a fazer seus efeitos. A revelação e o conhecimento sobrenaturais, escreveu monsignor d’Hulst, reitor do Institut

Catholique de Paris, não deviam apenas parecer razoáveis; tinham que ser “razoáveis, se quiserem entrar na vertente mestra”.

Na prática, é claro, esta e outras declarações como esta significavam que, se surgisse um conflito de ideias entre os ensinamentos da Igreja e a ciência, a Igreja deveria modificar ou acabar com o seu ensinamento.

Em vez disso, porém, a Igreja Católica Romana atacou o modernis mo diretamente e pelo nome, como sendo uma crença herética ao mesmo nível que importantes heresias de épocas anteriores, como o arianismo e pelagianismo lá nos séculos III e IV. Expôs ao ridículo o princípio es sencial do modernismo, segundo o qual tudo numa religião muda, tem que mudar, como tudo numa cultura, à medida que os homens progridem e se tornam melhores em suas qualidades humanas. A Igreja de Roma proibia qualquer pessoa, mesmo matizada com o modernismo, de ocupar a função de professor em seus seminários e universidades. As autoridades da Igreja perseguiam aquelas pessoas, tirando-as de todas as

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posições de influência. Impunham um juramento solene de abjuração do modernismo a todos os seus teólogos. Pública e oficialmente, o moder nismo não tinha chance alguma de resistir ao ataque papal dentro dos limites da Igreja.

Apesar disso, embora dissimulado, o modernismo fez suas incursões na Igreja. Para o intelectual, para o culturalmente sofisticado, persistia aquela cativante atração do descrente — bem como a sua modernidade. Mente modernista era a das centenas de pessoas que ajudavam maciçamente a melhorar o destino do homem. Ela deu origem a uma legislação socialmente benéfica. Os modernistas defendiam os oprimidos. Não de monstravam nem um pouco do ódio que grassava entre religiões diferen tes. Não reivindicavam a infalibilidade. Com certeza, argumentavam teólogos católicos, devia haver alguma verdade em muitas das coisas que os modernistas propunham.

Sabemos que dezenas e dezenas de pensadores e teólogos católicos romanos achavam que a proibição que sua Igreja impusera ao modernismo mostrava falta de imaginação, era míope, uma reação de medo. A maioria foi punida. A maioria submeteu-se — alguns sinceramente, outros por uma questão de forma — a fim de sobreviver e esperar por um dia melhor. Passaram a agir na clandestinidade.

Temos também registrado qual foi a atitude na Sociedade de Jesus quanto à questão do modernismo mais ou menos naquela época. Na CG23, que se reuniu em Roma de 16 de setembro a 23 de outubro de 1883, os delegados deram apoio irrestrito à condenação papal do modernismo. Instruíram o então padre-geral, Anton Anderledy, da Suíça, no sentido de que “adotasse todos os

meios para manter esta praga fora da Sociedade”. De maneira clara, porém, os registros mostram que a atração da no va

atitude de descrença, esse modernismo, fizera-se sentir na Sociedade. Alguns delegados à CG23 alegaram que a Igreja existia para salvar os ho mens, não para condenar erros. Os modernistas descrentes, argumenta vam, estavam tentando fazer o bem. Não seria melhor adotar uma atitude mais simpática e mais compreensiva com relação a esses modernistas? De que outra forma poderia o homem moderno na década de 1880 ser leva do “suave e docemente” a

pensar em Deus e na sua salvação? É claro que aquelas vozes que defendiam o que chamavam de uma

abordagem “positiva” foram abafadas pela esmagadora maioria de delega dos. O papado havia falado. O assunto estava decidido. Mas o som daquelas vozes seria ouvido mais alto, mais claro, e muito mais dominante apenas cem anos depois. O mesmo argumento em favor de uma abordagem simpática seria usado para excluir a fidelidade à vontade e à decisão do papado.

Um dos resultados da atitude em favor do papa da época foi, sem dúvida, que no treinamento formal dos jesuítas e em seus trabalhos publicados não havia defesa do modernismo. Mas pode-se dizer, com a mesma certeza, que por volta daquela época uma linha de pensamento modernista penetrou na tradição intelectual da Igreja Católica Romana e da Sociedade de Jesus.

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O modernismo nunca foi, durante o período intermediário — os primeiros cinquenta anos do século XX — professado publicamente ou aber tamente ensinado. De fato, nenhum corpo religioso oficial foi mais dedicado na promoção da extirpação do modernismo pelo papa do que os superiores mais graduados da Sociedade até meados do século XX. Ainda assim, existia uma mentalidade modernista como o “teto superior do pensamento”, sob o qual

muitos eruditos católicos, inclusive os jesuítas, ensinavam fielmente as tradicionais doutrinas de Roma. Muitos também aderiram ao movimento clandestino dos criptomodernistas. Havia sempre a possibilidade de que um dia as circunstâncias permitissem que aquela mentalidade oculta furasse além daquele teto e fizesse experimentos no “além azul”, se ao menos “a velha

Igreja” cedesse ao bom senso e se fragmentasse em sua mentalidade de cerco defensivo.

Aquele sonho nem sempre era uma coisa passiva. Os mais destaca dos e ativos daqueles teólogos e pensadores católicos criptomodernistas davam vazão a seus esforços para apressar a chegada daquele dia tão esperado. Surgiu entre eles uma verdadeira fraternidade. Eles trocavam cópias reservadas de suas especulações e teorias, encontravam-se em congressos católicos “científicos”

internacionais, realizavam debates em segredo, promoviam os pupilos e livros uns dos outros, e trocavam longas cor respondências entre si. Sua atitude foi bem resumida por um de seus mais brilhantes membros, o famoso historiador francês monseigneur Louis Marie Olivier Duchesne.7

Numa carta consoladora e conselheira a um membro da fraternidade, Pierre Hébert, diretor da influente École Fénelon de Paris, Duchesne disse a ele que agisse com cautela, não tentasse “reforma” alguma dos ensinamentos

“medievais” da Igreja Romana, porque “o único resulta do dessas tentativas seria ele ser atirado pela janela (...)”. Não, continuou Duchesne, Hébert “devia

ensinar aquilo que a Igreja ensina. Mas deixar que a explicação abrisse o caminho em caráter privado (...)”. Depois, expressou a esperança nutrida em segredo pela fraternidade: “Pode ser que, apesar de todas as aparências, um dia

o velho edifício eclesiástico se desmorone... Se isso acontecer, ninguém irá nos culpar por termos sustentado o velho prédio o tempo que foi possível.” O

cinismo inabalável das palavras de Duchesne é óbvio. Quando nos lembramos da reputação e da posição de Duchesne co mo um

erudito católico romano, e da enorme influência que ele exercia através de seus escritos cultos, tanto sobre teólogos e professores de teo logia de sua época como sobre sucessivas gerações de seminaristas — os futuros padres e bispos de sua Igreja — começamos a perceber que a nova erupção do modernismo nos anos sessenta deste século não foi um acidente, não foi simples coincidência. Tinha sido semeada há muito, e cuidadosamente, por agentes ocultos como Duchesne.

Mesmo depois de uma segunda e mais violenta arremetida contra os modernistas e seu modernismo pelo papa Pio X nos primeiros dez anos do século XX, o trabalho clandestino continuou. Um grupo de jovens jesuítas

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que se intitulava La Pensée (O Pensamento) floresceu nos anos vinte; eles se reuniam em caráter privado nos momentos de folga, a fim de dis cutirem os mais avançados pensadores da Sociedade. Uma tentativa de seus superiores jesuítas para dissolver o grupo em 1930 fracassou. Ao longo dos anos que durou a II Guerra Mundial e até fins dos anos quarenta, “eles nunca cessaram de progredir

em suas teorias sobre Cristo e a cristandade”, recordou mais tarde o padre

Teilhard de Chardin, um dos destacados membros do grupo. Em meados da década de 1940, começaram a chegar aos ouvidos sen síveis

do papa Pio XII rumores estranhos sobre a aceitação de facto, dentro de grupos isolados da Igreja, de novas teorias sobre a criação; sobre contestação dos ensinamentos da Igreja sobre o Pecado Original, a divindade de Jesus, a primazia e a infalibilidade do papa. Pio publicou duas encíclicas — Mediator

Dei e Humani Generis — atacando erros que, aos olhos da Igreja aberta, visível, do dia-a-dia, pública, não se encontravam em parte alguma. Ele condenou aqueles que queriam fazer uma grave mudança no cerimonial da liturgia católica romana (“eles querem tirar o Sacrário do altar”), e aqueles que queriam

deixar que as hipóteses de cientistas relativas à origem do homem determinassem aquilo em que os católicos deveriam acreditar. O papa reafirmou todas as doutrinas básicas tradicionais da Igreja.

Só muito mais tarde é que se tornou claro que seus alvos eram teólo gos e pensadores em seminários que, às escondidas, estavam não só fa zendo experiências com as novas teorias, mas também comunicavam, às escondidas, aquelas teorias a seus alunos. La Pensée estava sofrendo um ataque papal.

“Os membros de La Pensée irão manter -se fiéis a suas posições (...)”,

profetizou de Chardin (com a mesma obstinação que se tornaria, mais tarde, a marca de autenticidade de seus colegas jesuítas), “e acabarão por se impor.

Porque só eles estão realmente ativos e são capazes de transmi tir seu pensamento, já que só eles se adaptaram ao novo método (...).”

8 Por serem os seminários jesuíticos franceses considerados focos do

modernismo que desabrochava, o padre geral jesuíta Janssens mandou, em 1948, um destemido conservador, o jesuíta belga Edouard Dhanis, para uma visita aos seminários e casas de estudo daquele pa ís. Ao completar sua visitação, Dhanis recomendou a demissão de vários professores e a retirada de certos livros das bibliotecas dos seminários. Aparentemente, porém, seus esforços foram inúteis. La Pensée, de uma forma ou de ou tra, comportou-se como Teilhard de Chardin profetizara. Em consequência, numa assembleia internacional de jesuítas em 1950, Janssens proferiu uma reprimenda, em palavras ásperas, dirigida aos intelectuais da Sociedade que estavam agindo errado. Eles eram negligentes, disse ele, na interpretação da doutrina da Igreja, e tinham-se mostrado sem entusiasmo pela defesa das encíclicas do papa que abordavam diretamente o relacionamento entre a ciência e os ensinamentos da Igreja sobre as origens da raça humana.

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Embora mais cinco professores fossem “exonerados” de seus cargos na França, para os membros da fraternidade tratava -se, agora, nitidamente, de um jogo de espera; e o que eles esperavam era o falecimento do papa autoritário, Pio XII, e a chegada de um regime mais tolerante à Igr eja. Enquanto isso, começaram convulsões semelhantes na Ordem dos Dominicanos. O padre -geral deles teve que censurar dois destacados teólogos, Marie -Dominique Chenu e Yves Congar, porque eram heterodoxos demais para a segurança doutrinária, em seus pensamentos e seus ensinamentos.

Não havia maneira, nenhuma maneira racional, de explicar a conversão, aparentemente da noite para o dia, para uma posição modernista da Sociedade de Jesus em seus pensadores, superiores e principais ativis tas nos anos sessenta deste século, a menos que se aceite que, na verdade, não foi uma coisa da noite para o dia, e se entenda que uma corrente modernista havia penetrado na tradição intelectual da Sociedade lá nas últimas décadas do século XIX e vivera escondida entre os membros da “fraternidade” em grupos clandestinos

como La Pensée, esperando pelo seu dia de sorte à luz do sol. Em sua longa e oculta preparação, o modernismo dentro da Igreja e da Sociedade de Jesus simplesmente amadurecera; criara um ponto de vista entre a intelligentsia da Igreja e da Sociedade; e agora só precisava de liberdade de ação para demonstrar sua importância e sua aceitabilidade.

Praticamente não há dúvida de que a “fraternidade” trabalhou às ocultas

durante aqueles primeiros anos com essa final idade. Entre os vários sinais que indicam isso, três são tão vitais que requerem atenção. Ca da qual é mais forte do que o anterior no contexto do jesuitismo clássico.

Houve, primeiro, o exemplo do jesuíta George Tyrrell, que acabou sendo condenado por Roma e afastado da Sociedade por causa de suas ideias modernistas. Tyrrell foi dominado pela “prestimosidade” dos mo dernistas comparada com a atitude dura, inabalável, na base de “ou está comigo ou

contra mim”, do papado e da Igreja. Acima de tudo, os no vos peritos em estudos da Bíblia o convenceram de que a fé católica romana estava baseada numa leitura mítica, não exata, da Bíblia. De modo geral, essas ideias, ou pelo menos muitas delas, são adotadas pelos jesuí tas hoje. A correspondência entre os dois pontos de vista — o do jesuíta Tyrrell e os dos jesuítas modernos — é muitas vezes de uma proximidade de dar medo.

Outro sinal do efetivo progresso do modernismo durante a sua exis tência oculta foi o ainda mais estranho caso do padre jesuíta Pierre Teilha rd de Chardin. Teilhard ficou fascinado pelo que os cientistas alegavam provar com relação à pré-história — aquele período enormemente longo em que o nosso cosmo atual estava em gestação geofísica. Para ele, a hipótese da evolução proposta por Darwin era um fato comprovado. Passou a adaptar o catolicismo romano àquela “realidade”. Elaborou toda uma nova teoria sobre o catolicismo

e a cristandade. O estranho deste caso está no fato de que os jesuítas, cujos reconhecidos poderes intelec tuais

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poderiam ter reduzido a picadinho o trabalho de Teilhard, em vez disso adotaram-no como seu vanguardeiro em questões filosóficas e teo lógicas que se referissem vitalmente à sua fé católica; e que, hoje, acima de tudo, ele ocupa um lugar de honra no quadro de jesuítas ilustres, bem como exerce influência sobre o pensamento jesuítico.

O terceiro, e mais estranho, desses sinais mais significativos da in fluência oculta, logo no início, do modernismo sobre a Sociedade foi proporcionado por aquilo que conhecemos, hoje, como Teologia da Libertação. Propriamente falando, a Teologia da Libertação foi uma criação jesuítica; e dominou as decisões práticas das últimas três congregações gerais da Sociedade. Com o surgimento da Teologia da Libertação e suas aplicações concretas ao mundo visível da pobreza na América Latina e ao ensino de teologia em toda a Igreja universal, a corrente até então subterrânea do modernismo na Sociedade jorrou com plena força de seus canais subterrâneos e se espalhou longa e amplamente à brilhante luz do sol. O seu dia do destino, há muito esperado, havia chegado.

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G

eorge Tyrrell nasceu na Irlanda, de pais ingleses, em 1861. Depois de convertido da Igreja Anglicana para o catolicismo romano em 1879, entrou para a Sociedade de Jesus na Inglaterra um ano depois. Uma vez terminada sua formação jesuítica, ensinou filosofia a jovens aspirantes a jesuíta no Stonyhurst College, jesuíta, durante dois anos, de 1894 a 1896. Nunca houve dúvida quanto ao seu zelo religioso, e nenhuma falha foi encontrada em sua prática do asceticismo jesuítico normal. Ele foi, além do mais, um homem que fazia profundas e duradouras amizades e provocava uma devoção pessoal por parte daqueles que ele aconselhava e ajudava espiritualmente.

No princípio de sua carreira de professor, entretanto, surgiram dú vidas quanto ao seu julgamento em assuntos intelectuais; e apesar de sua conversão, que fora sincera, ele às vezes dava a impressão de que na realidade nunca chegara a entender os alicerces da fé católica. Fosse o que fosse que não estivesse bem ajustado, ele e seus superiores decidiram que ele ficaria melhor num ambiente mais ativamente apostólico. Por isso, mudou-se para Londres e morou na residência jesuítica de Farm Street, como um dos padres jesuítas vinculados à igreja que ficava ao lado.

Na época em que se mudou para Londres, já ficara enamorado pela teoria professada pelos modernistas europeus de então. Estava desiludi do com as políticas oficiais de seus superiores jesuítas relativas ao moder nismo, com a imobilidade de seus companheiros jesuítas como um todo, e com as políticas do papado e da hierarquia romana de sua época. Na glória da Inglaterra vitoriana e da Pax Britannica, o que Tyrrell achava ser a mentalidade isolacionista de Roma parecia muito indigna do homem e de um atraso inútil. O Concílio Vaticano I, que terminou em 1870, havia declarado que a infalibilidade do papa era um dogma revelado no qual todos os católicos deviam acreditar com fé. Isso era totalmente inaceitável para os modernistas. Mesmo antes disso, o papa Pio IX havia divulgado dois documentos angustiantes contra o modernismo, reiterando todas as velhas — e, para Tyrrell, repletas de chavões — doutrinas e “medievalismos"

13. GEORGE TYRRELL, S.J.

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da velha Igreja. Tudo isso resultou num autoritarismo defensivo na mente de Tyrrell.

Na sua época de estudante, Tyrrell ficara muito impressionado com os resultados da “crítica de alto nível” dirigida à Bíblia, e com a promes sa da ciência de descobrir o universo. “O modernista”, escreveu ele mais tarde,

“exige absoluta liberdade para a ciência no mais amplo sentido do termo.” Ele

se recusava a deixar “que a teologia ficasse amarrada a quais quer declarações estereotipadas, mas apenas às experiências religiosas das quais certas declarações são as expressões espontâneas”. Os dogmas fixos de Roma eram o seu alvo.

Durante algum tempo, a sua verdadeira opinião e ponto de vista es -caparam a qualquer observação mordaz ou condenação. Ele parece ter tido uma agenda só para ele, partindo do princípio de que numa séri e de publicações poderia apresentar, sem que ninguém percebesse, a substância de suas ideias de reforma do catolicismo e de sua atualização — para “modernizá-lo”. Assim,

a ironia e o estilo sinuoso de seus primeiros cinco livros encobriram o seu significado pleno. Um artigo seu sobre o Inferno, escrito em 1899, provocou realmente críticas acerbas por parte de seus censores jesuítas, mas nenhuma crítica profunda de para onde ele estava seguindo do ponto de vista intelectual.

Durante algum tempo, então, suas opiniões e pontos de vista escaparam de qualquer condenação. Os católicos da época, inclusive jesuítas in gleses, não tinham probabilidades de considerar condenável a maior parte do que Tyrrell dizia e escrevia — mas apenas excêntrico. Ele estava, afinal, tentando ajudar as pessoas de mentalidade moderna a acreditarem. Roma, tão distante da Inglaterra, parecia envolta no seu próprio formalismo.

Inevitavelmente, porém, um dos trabalhos de Tyrrell sofreu forte cen sura por superiores jesuítas na Itália, por ser extremamente perigoso e chegando próximo à heresia. Ele foi advertido. Impávido, começou a pu blicar e circular seus trabalhos sob forma reservada, às vezes usando pseu dônimo. Por fim, em 1906, sua posição tornou-se crítica. Tyrrell foi solicitado, pelo padre-geral, a renegar formalmente suas ideias. Ele se recusou e, por isso, foi expulso da Sociedade. Retirou-se para uma residência privada em Starrington.

Como lhe fosse negado o acesso aos sacramentos, ele presumiu que tinha sido excomungado pela Igreja. Mas, pelo menos em público, não foi expedida contra ele nenhuma nota de excomunhão. Seus ex-superiores jesuítas queriam evitar o escândalo público de um jesuíta em declarada revolta contra o papa. Além do mais, embora se achasse que alguns jesuítas e bispos ingleses tivessem uma simpatia secreta por suas ideias, jesuítas e bispos temiam o rancor de Roma; a tendência de ambos os lados, portanto, foi de encobrir o caso tão silenciosamente quanto possível. O que ninguém dizia em voz alta era que Tyrrell, ao se recusar a renegar suas ideias modernistas, havia incorrido numa excomunhão automática; havia deixado deliberadamente a igreja Católica Romana. Não poderia receber os sacramentos da Igreja.

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Um dos amigos modernistas de Tyrrell, o padre franc ês Henri Brémond, escreveu-lhe zombando da excomunhão, classificando-a de “uma pequena

formalidade romana” sem significado eterno. É provável que esse fosse o

ponto de vista do próprio Tyrrell. Para ele, para Brémond, e para todos os modernistas, Roma já não tinha importância. A Igreja, para eles, era algo diferente da instituição hierárquica católica romana, algo com novas leis e uma estrutura totalmente diferente.

Tyrrell, portanto, continuou a publicar, a fazer palestras e a dar as -sistência espiritual com intrepidez, até sua morte prematura e inesperada em 1909, com a idade de 48 anos. Entre as últimas palavras que pronun ciou — ele ficou impossibilitado de falar por uns dias, até morrer no dia 15 de julho — foram uma firme recusa a renegar suas ideias modernistas, que àquela altura já eram do conhecimento de todos.

O bispo local de onde Tyrrell morreu negou ao seu corpo um enterro cristão no cemitério católico, assim como se recusara a permitir que o mo -ribundo recebesse os últimos sacramentos da Igreja. Aceitar a ele ou seus restos mortais em caráter oficial, com rituais católicos formais, teria sido um sinal claro de que uma revolta total contra Roma, seus bispos e sua doutrina promulgada não fazia qualquer diferença; que era possível ser modernista e ainda assim ser considerado membro da Igreja com prestí gio. Era exatamente isso que Tyrrell tivera a esperança de provar, e que os modernistas visavam inculcar: que a época da primazia e liderança de Roma na Igreja chegara ao fim.

Apesar da proibição do bispo, entretanto, alguns padres que eram amigos e companheiros de Tyrrell administraram os últimos sacramentos ao moribundo e rezaram junto ao seu túmulo.

A razão de sua expulsão pelos jesuítas e da recusa, por parte do bis po, dos últimos sacramentos e de um enterro cristão, foi, portanto, a inflexível recusa de Tyrrell de renegar suas ideias modernistas. Tyrrell era realmente aquilo que se intitulava com orgulho: um modernista. Apesar disso tudo, porém, não deixava de ser crítico, e podia até ser muito sa rdônico ao zombar de seus colegas modernistas mais nebulosos. Depois de ouvir o superficial barão Friedrich von Hugel uma noite toda, ele disse que para von Hugel “nada

é verdade, mas a soma dos nadas é sublime!” Durante toda a sua curta vida,

Tyrrell ficou em contato estreito com seus colegas modernistas da França, da Itália e da Inglaterra; ele se dedicou totalmente à causa.

O que dá ao caso de Tyrrell enorme relevância em qualquer avalia ção de um grande número de jesuítas hoje em dia — bem como de um número igualmente grande de teólogos e bispos — é a fantástica semelhança entre os pontos de vista deles e os de Tyrrell, entre a atitude deles para com o papado e a hierarquia da Igreja e a atitude de Tyrrell. A sur preendente e vital diferença é que, hoje, são muitos os Tyrrells, que ainda gozam de bom prestígio — que, ao contrário do próprio Tyrrell, eles ainda se encontram em seus cargos de professores em seminários e universidades; ainda são mantidos na Sociedade de Jesus; ainda chefiam suas

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sés. Em outras palavras, enquanto Tyrrell, visto em retrospectiva, fez a triste e patética figura de um homem (para citar um provérbio eslavo) que tentou “inverter o fluxo do rio Danúbio com um garfo”, a podridão que o tornou um

pária àquela época tem, hoje, uma penetração mais firme e mais ampla na Sociedade de Jesus e na Igreja Católica Romana. O crédito por isso pertence, como se pode perceber, a Tyrrell.

Todas as dificuldades de Tyrrell e sua queda final em grave heresia giravam em torno daquele elemento básico da Igreja Católica Romana: a hierarquia e a autoridade doutrinária do papa e do bispo e, por fim, do padre. Como a Igreja é estruturada e funciona, essa hierarquia trans mite dogmas e outras formulações de fé ao povo, para a fiel adesão des te. Os teólogos podem pesquisar e fazer especulações sobre os dados de fé. Podem investigar novos caminhos de pensamento. Mas só esta trindade — papa, bispo e padre — forma a Igreja que ensina. O povo, os teólogos inclusive, forma a Igreja que acredita.

A adesão da Igreja que acredita à doutrina exposta única e autorita -riamente pela Igreja que ensina é, e sempre foi, considerada o ponto cru cial para ser um bom católico, um membro da Igreja Verdadeira.

Tyrrell atacava a estrutura e a função da Igreja hierárquica. O que a Igreja havia produzido, dizia ele em essência, era apenas “uma unidade dirigida” que

nada tinha a ver com a verdadeira unidade espiritual. Nada mais era do que um produto do medievalismo. O medievalismo, dizia ele, sempre se apega às mesmas ideias e instituições gastas. O modernismo, por outro lado, “desliza

com as linhas” do desenvolvimento humano. Tyrrell se apresentava

descaradamente como antimedievalista e moder nista. Ele era meticulosamente explícito e voltava aos pontos básicos. “A

religião”, dizia ele, “é mostrada como sendo o resultado espontâneo das

irreprimíveis necessidades do espírito do homem que encontra satisfação na experiência íntima e emocional de Deus dentro de nós.” Porque o Es pírito de Deus está em todos nós. O espírito humano desperta para a consciência de si mesmo e reconhece sua semelhança com aquele Espírito que se esforça por expressar-se no processo histórico da ciência, da moralida de e da religião.

Cristo não ensinava dogmas, ideias ou teorias, afirmava Tyrrell. O inspirador tema central de sua pregação era o seu próprio retorno próxi mo, em glória, como o Filho do Homem para julgar o mundo inteiro. Mas nisso, segundo Tyrrell, Cristo errou no cálculo. A espera revelou -se longa. Enquanto isso, Cristo serviu para chamar de novo o homem para a “interioridade” e a

verdadeira “vitalidade da religião”. Ao contrário do que diz o ensinamento da

Igreja, Jesus não prescreveu a existência de uma instituição como o papado, e tampouco acreditava no futuro ou sabia o futuro.

O que foi que aconteceu, então? Isto é, se a Igreja não foi instituída por Cristo, de que modo ela foi criada e qual a sua verdadeira natureza e função?

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Para Tyrrell, a resposta estava em que o mesmo Espírito que criara Cristo criara a Igreja como uma fase passageira do contínuo processo religioso. Quando a verdadeira inspiração da pregação de Cristo desapareceu com a morte do último dos doze Apóstolos que haviam conhecido Cristo em pessoa, surgiu uma série de comunidades de fiéis livremente federadas — aquilo que hoje seria chamado de comunidades de base — vivendo uma vida rigorosamente democrática e com autoridade recebida diretamente do Espírito para ensinar aquilo em que se deveria acreditar. Aos poucos, o atual “império eclesiástico

altamente centralizado” da Igreja Católica foi imposto pela astúcia e pela ambição humanas. A autoridade para ensinar foi erroneamente deslocada das comunidades de fiéis para esse “império eclesiástico” de papa, bispos e padres.

O argumento é mortal para a fé católica e, se aceito, leva diretamente a uma expressão perfeita de modernismo: o dom e a verdade da fé — o que é chamado de o sedimento da fé — foram confiados, originalmente, ao povo. Fundamentalmente, a “Igreja” (aquela federação de comu nidades) é democrática; e a única norma de fé é o consenso democrático do povo. Quer dizer: o “povo”, e não o papa, é o vigário de Cristo. Nem o papa nem os bispos

canalizam a palavra de Deus para o povo. O povo já tem a Palavra. A vida religiosa coletiva do povo é o critério máximo da verdade.

Em consequência, “o que faz um católico não é esta ou aquela teo ria abstrata da Igreja romana, mas uma crença na Comunidade Católica histórica como um desenvolvimento vivo da missão apostólica”. A fé no mundo se torna,

assim, mais fundamental do que a fé na Igreja; por que o mundo — a humanidade — é, pela definição revista, a mais plena e abrangente revelação de Deus.

Além do mais, à medida que cada época chega e vai embora, os ho mens inventam fórmulas que refletem apenas um estágio no crescimento do espírito na humanidade. Com outra era, novas fórmulas têm que ser inventadas. A própria fé, portanto, se modifica. Este é o verdadeiro pro cesso religioso. Nenhuma verdade intelectual, nenhum dogma nos foram dados por Deus para nossa aceitação permanente. Foi-nos dada apenas “uma maneira de viver”, a

mais elevada vida da alma. Toda e qualquer fórmula ou dogma dos clérigos não tem mais autoridade, para os indivíduos, do que as fórmulas dos cientistas sobre antropologia, átomos ou história. Todas elas mudam, porque todas elas progridem, à medida que a humanidade progride.

E a Igreja Católica Romana? Ora, ela foi um experimento. E, justi ça seja feita, numa etapa perigosa para a revelação de Deus na primeira fase, ela foi uma coisa necessária a fim de manter vivas as lembranças de Cristo. Mas aquela fase terminara, dizia Tyrrell. A humanidade havia progredido. O ideal, hoje, seria que o papa e os bispos apenas formulassem os sentimentos e crenças dos fiéis. O papa, propriamente falando, deveria ser o expoen te final, publicamente aceito, dos sentimentos e da fé do povo. Mas, levando -se tudo em conta, o experimento eclesiástico

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conhecido como Igreja hierárquica romana havia ultrapassado o seu pe ríodo de utilidade. Ela agora representava “uma perversão e uma estultificação de um sistema que outrora prometera coisas muito grandiosas para o bem da humanidade”.

Para simplificar, era chegada a hora de seguir em frente. Em toda a sua caridade, a esperança modernista era de que a Igreja parasse de ale gar origem divina e doutrinas imutáveis e um governo fixo pelo papa e pelos bispos. Se ao menos oferecesse seus serviços espirituais à civilização, a Igreja também poderia tornar a entrar no processo religioso da humanidade e, assim, ajudar para que se atingisse o objetivo máximo.

Que objetivo? O “ideal católico de uma religião internacional e uni versal inspirada pela ideia de democracia como a constituição original da Igreja”. A

Igreja Católica Romana, dirigida pelo clero, teria que aceitar as leis de ferro do processo religioso que levava inexoravelmente àquele objetivo.

Tyrrell admitia que em tudo isso seria preciso enfrentar uma dura realidade: a Igreja Católica Romana poderia ter que morrer “para que possa

tornar a viver de uma forma maior e mais esplêndida”. Por quê? Porque sem contar com a caridade modernista, não havia esperança ter rena de que as autoridades eclesiásticas mudassem suas doutrinas medievalistas à luz da modernidade — à luz das novas descobertas do homem na religião, na antropologia, na psicologia, na ciência física e na medicina. A Igreja Romana deveria, portanto, perecer como todas as outras ten tativas fracassadas de descobrir uma religião universal tão católica quanto a ciência. Porque a ciência representava a universalidade ideal: pertencia a todos os homens.

Tyrrell, como todos os modernistas, acreditava na possibilidade de uma síntese entre a verdade essencial de sua religião e as verdades essen ciais da modernidade. Para o modernista, o catolicismo pode e deve ser conciliado com os resultados da crítica histórica. Tyrrell exigia, portan to, garantias para a liberdade de cada cristão contra os abusos dos clérigos que declamavam dogmas. Ele protestava contra a centralização do governo por parte do papado e dos bispos, que privavam o povo de sua parte no governo da Igreja.

Já estão claros os paralelos entre a teologia modernista de George Tyrrell no século XIX e a teologia de hoje de um homem como, por exemplo, Fernando Cardenal, que declarou que a sua verdadeira missão é a libertação política dos oprimidos. Como jesuíta, seu sacerdócio não significava outra coisa. Nem o papa em Roma, nem os bispos locais da Nicarágua tinham qualquer importância, segundo seu ponto de vista. Mas os paralelos entre Cardenal e Tyrrell não terminam com alguns pontos de controvérsia com a Igreja. Tyrrell não deixou coisa alguma intocada ou inalterada.

Tyrrell deve ter sido exposto a todo o treinamento, piedade e devo ção de um homem formado pela Sociedade de Jesus em fins do século XIX. No entanto, está claro pelas suas declarações explícitas, ele havia

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abandonado o conceito básico de espiritualidade inaciana e os motivos propulsores do zelo jesuítico: o Reino de Cristo, o Líder, em guerra com o arqui-inimigo da Salvação Humana; e obediência jesuítica ao vigário de Cris to na Terra, o papa. Ler os livros de Tyrrell é compreender que nada disso tudo penetrava a urdidura de seu pensamento e de sua crença. De fato, algum tempo antes de seu rompimento aberto com os jesuítas e com Roma, ele admitiu que a Sociedade de Jesus e tudo o que ela representava tornara-se “poeira e cinzas”

em sua boca. O rompimento de sua vinculação ao ideal inaciano não poderia ter sido mais evidente. O resto veio em seguida.

É certo que Tyrrell não acreditava que Jesus era Deus feito homem. Tampouco acreditava na ressurreição do corpo ou na existência do Infer no ou do Céu. Em nenhum trecho de seus onze livros principais se pode descobrir que a missa fosse, para Tyrrell, o Sacrifício de Cristo no Calvá rio. De fato, Cristo não aparece como um Salvador vivo morrendo na cruz para realizar a Salvação do mundo. O amor pessoal de Cristo por todos os homens e mulheres não aparece. Em vez disso, Jesus é reduzido ao tamanho de um pigmeu. “Não

podemos regular nossa mente de acordo com a de um Carpinteiro judeu do século I”, escreveu ele.

Não é de admirar, talvez, que falte, em toda a obra escrita de Tyrrell, qualquer sinal daquela devoção à pessoa de Jesus que era fundamental para a espiritualidade, a piedade, a missão e o zelo jesuíticos. E não ad mira, também, que haja uma semelhante falta de devoção à Virgem Ma ria ou aos santos. Não admira — exceto pelo fato de que a ausência dessa devoção fosse impressionante e sintomática em um homem educado e for mado pela Sociedade de Jesus em fins do século XIX.

Se Tyrrell foi apenas indiferente à Virgem e aos santos, ficava sim-plesmente injurioso e insolente quando se tratava do papa, da burocracia do Vaticano e dos bispos. Ele não estava apenas criticando defeitos ób vios; os católicos fiéis fazem isso quase que o tempo todo. O que ele fazia era negar abertamente a infalibilidade do papa, a autoridade da hierar quia quanto aos ensinamentos, a inspiração divina da Bíblia, a existência do Demônio e toda a gama de outros dogmas definidos da Igreja Romana. Para Tyrrell, o papado e os bispos tinham tanto a ver com a Igreja e a verdadeira religião quanto a faculdade acadêmica do All Souls College da Universidade de Oxford tinha a ver com a criação de porcos em Uganda. Ele não podia aceitar a Igreja hierárquica como ideia ou como realidade.

A mente de Tyrrell estava inteira e exclusivamente concentrada no momento presente. Sua voz era o eco autêntico não do jesuitismo que ele escolhera ostensivamente, mas da descrença que nascera mais ou me nos na época em que Tyrrell nascera. Para ele, a crença em Cristo não implicava fé em Cristo como “um pregador e em sua doutrina, mas [me ramente] uma percepção de sua personalidade que se revelava dentro de nós”.

O verdadeiro católico, segundo Tyrrell, “acredita na humanidade;

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acredita no mundo. Negar que Deus é o autor primário de todo progres so intelectual, estético, moral, social e político parece, à mentalidade mo dernista, a mais sutil e perigosa forma de ateísmo”. Com um só movimento de sua pena,

Tyrrell abrangera, assim, pelo menos implicitamente, várias importantes e antigas heresias há muito consideradas refutadas e conde nadas pela sua Igreja.

Pouco importa, porém. Porque Tyrrell insistia em que não havia co mo defender a Igreja Católica Romana como a única Igreja verdadeira. Uma opção mais gloriosa se oferecia à humanidade. “Sentir a relação de fraternidade entre

os vários membros da família religiosa (...)” — Tyrrell tinha em mente religiões cristãs e não-cristãs — “(...) é ser católico”; porque “o modernismo

reconhece, entre as religiões do mundo, uma certa unidade na variedade”. Ao mesmo tempo, entretanto, não havia “unidade orgânica entre as várias

formas de religião como se todas elas complementassem umas às outras”.

Porque, em última análise, a verdadeira religião nada mais era do que “uma

adaptação de nossa conduta a um mundo transcendental”. Fosse lá o que isso

quisesse dizer, todas as formas de religião deveriam agir de acordo com isso ou perecer. De fato, todas as crenças e fórmulas de credo de todas as religiões eram consideradas por Tyrrell adaptações passageiras, e todas estavam destinadas a desaparecer à medida que o homem progredisse de plano mais elevado para plano mais elevado. Não havia “guerra” alguma pelo “Reino”,

mas apenas um “desenvolvimen to do Espírito de santidade” em toda a

humanidade, à medida que ela atravessasse seus vários estágios. O swami Vivekananda não poderia ter sido mais claro.

Muitos dos destacados teólogos e bispos da Igreja de hoje deveriam poder reconhecer em George Tyrrell um verdadeiro ancestral seu. Os entusiastas da Teologia da Libertação como o padre jesuíta Gustavo Gutierrez e Juan Luis Segundo estão seguindo o exemplo de Tyrrell na sua insistência de que a teologia não deve vir “de cima” — da Igreja hierárquica — mas “de baixo” — do “povo de Deus”.

Da mesma forma, a alardeada “nova” ideia de Comunidades de Base* como a unidade autêntica dos crentes e como a única fonte de con fiança de fé e revelação, nada mais é do que uma ressurreição da propos ta de Tyrrell, de que a verdadeira “igreja” era formada por um agrupamento de tais comunidades.

De fato, praticamente toda figura importante da Igreja que condena a autoridade doutrinária de Roma hoje não precisa procurar além de Tyrrell pelo seu modelo. Ensinando com uma impunidade negada a Tyrrell, homens respeitados como Karl Rahner, Hans Küng, Charles Curran, Leonardo Boff, Jon Sobrino, Edward Schillebeeckx — para citar apenas uns poucos autonomeados luminares e autoridades da Igreja —

*No Brasil, Comunidades Eclesiais de Base. (N. do T.)

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alegam, como fazia Tyrrell, que o espírito de Deus se revela em indiví duos e em grupos locais, e que esses indivíduos e grupos, portanto, têm autoridade própria. Não precisam dar ouvidos à voz de Roma.

Tyrrell propôs o modelo modernista não apenas para a autoridade doutrinária e a autenticidade da fé, mas para a missão religiosa. O total abandono, por Tyrrell, do ideal inaciano de uma guerra travada pelo Reino de Cristo será reconhecido por Fernando Cardenal e seus compatriotas e por todos os outros jesuítas que substituíram aquele ideal de espiritualidade inaciana por um ideal sócio-político — em geral, o ideal socialista/marxista.

A influência de Tyrrell não pára com a estrutura e a missão na Igre ja. Necessariamente, a natureza e a função básicas do sacerdócio na Igreja Católica são discutidas.

Na doutrina católica, o sacerdócio é um Sacramento dado a um in divíduo através da Igreja. Receber o Sacramento da Ordenação sacerdo tal, tornar-se um sacerdote, significa que, pessoal e individualmente, a alma do agraciado está habilitada e algo lhe é acrescentado. Outra dimensão lhe é acrescentada pela graça de Deus. É uma dimensão de poder que corresponde exatamente à sua moda limitada e criada, à dimensão de poder que pertencia à alma humana de Jesus como Deus-homem salvador e alto-sacerdote da salvação.

Essa dimensão de poder, eternamente irremovível, tem duas princi pais áreas de atividade: o sacerdote pode oferecer o Sacrifício da Missa como uma reprodução do sacrifício, por Jesus, de sua vida humana no Calvário, e o sacerdote pode perdoar outros homens pelos seus pecados. Além dessas duas áreas, existem outras — pregar a boa-nova do Evangelho, dar assistência espiritual a terceiros, dominar espíritos maus, percep ção teológica, julgamento moral, e assim por diante.

Um sacerdote é, fundamental, essencial e inateravelmente, um mem bro da Igreja que se sacrifica, absolve e prega, e cuja autoridade e cujo sacerdócio chegaram a ele vindos de Deus através do chamado dos Após tolos — os bispos da Igreja dos quais o papa é o chefe e o supremo garantidor da autenticidade de cada sacerdote.

Na doutrina modernista tal como exposta por Tyrrell, toda essa dou trina católica é atirada pela janela da intervenção humana. Nem a divin dade de Jesus nem o sacrifício de seu ser físico pela Salvação dos homens têm qualquer lugar no estágio máximo da verdade religiosa do modernismo.

O que se passa no sacerdócio, segundo a teoria modernista — a de Tyrrell e de todos os outros Tyrrells que surgiram desde então e flores cem em nossos dias — é expresso com o máximo de exatidão por um xará de George Tyrrell, George Wilson, S.J., um americano cujos trabalhos escritos tiveram amplo impacto e refletem a mentalidade de toda uma ge ração de teólogos jesuítas.

Para o jesuíta Wilson, “a ‘Igreja’ não é, em primeiro lugar, uma ins -tituição mundial, mas sim uma aculturada realidade sacramental local.

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A ‘Igreja Local’ não é, em primeiro lugar, uma unidade administrativa de uma

organização maior [na qual o foco poderia ser dirigido, portan to, com muita facilidade, para o bispo], mas sim a vida de todo o povo reunido, com todo o seu éthos sem igual, vivido inicialmente em comunidades significativas onde as pessoas experimentem a realidade da reconciliação/salvação; a família e a paróquia e, de forma secundária, aquela igreja local que chamamos de diocese”.

Embora ele não seja nada poético, está claro que na mistura de so ciologia e antropologia que entrou na formação da “nova teologia” da “Igreja” de

Wilson, a autoridade doutrinária pertence ao povo, não aos bispos e ao papa da Igreja Católica Romana. Isso é puro Tyrrell.

Onde Wilson dá a sua contribuição, subindo nos ombros de Tyrrell, por assim dizer, é na utilização de tantas palavras para dar o significado de tudo aquilo para o sacerdócio.

“O sacerdócio”, explica Wilson, “não é, em primeiro lugar, um dom

pessoal atribuído a um indivíduo isolado, mas um dom coletivo dado a um grupo de pessoas para a edificação dessas igrejas locais.”

De imediato, Wilson resolveu um dilema modernista. Se se ac abar com o sacerdócio, não haverá a mínima possibilidade de manter unida qualquer coisa que se pareça com uma igreja organizada tal como a Igre ja Católica sempre alegou ser. Mas se já acabou com Jesus como Deus e, portanto, com os seus dons sacramentais atribuídos a padres individuais, permitindo, assim, que eles o substituam — para darem o Seu perdão e o Seu Sacrifício — ora, o embaraçoso problema é, obviamente, o que fazer com o sacerdócio.

A resposta é tão simples quanto devastadora. O sacerdócio já n ão é mais dado a um indivíduo; é dado a uma comunidade, ou talvez resida numa comunidade. E sua finalidade já não é sacrifício e absolvição; é a “edificação”

social da comunidade. Mas então, é claro, tem-se um problema a respeito dos pecados. O que acontece com eles? Será que desaparecem com a “evolução”?

Ou se diz que existe apenas “pecado social”, mas não há pecados realmente

“pessoais”? Nem Wilson nem Tyrrell têm uma solução. Há ainda outra nota impressionante de similaridade entre o caso de

George Tyrrell e de seus descendentes, os modernistas da nossa era: a no ta de fundamental e perigosa contradição na maneira pela qual eles se penduram nas saias da Igreja que desprezam. Até o fim de seus dias, Tyrrell sofria porque não tinha permissão para continuar na Igreja Católica Romana. Ele mantinha um violento vínculo com aquela Igreja — entendida, é claro, no sentido que ele lhe dava — e um violento desejo de ajudá-la na transição do medievalismo para o modernismo.

A par com sua profunda convicção modernis ta, sem dúvida ciente mas parecendo indiferente à contradição, ele insistia em que a Igreja Ca tólica de Roma “tem, de maneira geral, preservado a mensagem de Cris to com mais fidelidade do que qualquer outra (...) e nela se pode encontrar o germe daquela futura religião universal que todos nós procuramos”.

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Tanto assim que, “se Roma morrer, as outras igrejas poderão encomen dar seus caixões”.

Para Tyrrell, então, todas as outras igrejas eram “obra do diabo, um

embuste, uma impostura, uma evolução espúria”. E “Jesus podia ser o que

fosse, o que ele não era um protestante liberal”. De acordo com tais sentimentos, a mais violenta condenação de Martinho

Lutero, João Calvino e os outros reformadores protestantes do sé culo XVI por parte de Tyrrell era de que eles não deviam ter-se revoltado, mas deviam ter permanecido na Igreja e trabalhado para a sua modificação de dentro para fora, como ele ansiava por fazer.

Como Tyrrell teria invejado modernistas do século XX como Hans Küng, e todos os muitos outros que desejam ser conhecidos como católicos romanos mas que usam essa condição para eviscerar e transformar o catolicismo! De fato, hoje o caso de Tyrrell talvez seja mais notável pelo fato de que ele foi expulso da Sociedade de Jesus e excluído dos sacramentos da Igreja. Porque, nos nossos dias, o espírito modernista de George Tyrrell tem poder absoluto. Por todas as hierarquias nacionais, e de modo geral entre jesuítas, carmelitas, dominicanos e padres e freiras Maryknoll, bem como entre cerca de duas dúzias de outras ordens e congregações religiosas, o ponto de vista modernista é abertamente declarado e posto em prática todos os dias. Os superiores — tanto religiosos como episcopais — não tentam se livrar dos modernistas que estão entre eles. Nenhum dos últimos três papas foi suficientemente forte ou ameaçador para forçar a mão daqueles superiores tolerantes; e somos forçados a desconfiar de que os próprios superiores compartilham das ideias modernistas.

Sem dúvida, se Tyrrell fosse vivo hoje, não estaria fora dos limites, mas ativo numa cátedra de professor numa universidade ou num seminá rio jesuítico.

Mas o seu destino não foi esse. Assim que passou a agir de público, tornou-se uma ameaça tanto para os amigos como para os inimigos. Seus superiores jesuítas tinham medo do que o poderoso papa da época, Pio X, iria fazer se a Sociedade de Jesus sancionasse Tyrrell quando este se retirasse. Ele morreu, portanto, magoado.

Se alguém visitar o seu túmulo hoje, verá a cabeceira tal como ele próprio desenhou antes de morrer: a Hóstia e o Cálice em cima; embaixo, suas datas de nascimento e morte e as palavras “Um padre da Igreja Católica” — o cargo que ele tanto desejara.

Hóstia e cálice; sacerdócio e Igreja. Não importa, parecia ele dizer, que estes já não possam ser aceitos como os instrumentos práticos que Jesus forneceu para ver seus servos no lugar da glória eterna de Deus. Ele ainda podia venerá-los como queridos artefatos culturais identificando George Tyrrell, S.J., como pertencente a uma fase do longo desenvol vimento do “espírito no homem”.

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S

em um conhecimento de Pierre Teilhard de Chardin, S.J., seria muito difícil para qualquer não-jesuíta compreender o tipo de mudança pelo qual passou a Sociedade de Jesus, o modo quase perfeito de recalcitrância a todo e qualquer desejo papal que a Sociedade aprendeu a praticar, a absoluta sinceridade dessa atitude e a distância que agora separa o ponto de vista jesuítico do ideal inaciano original e da fé comum da Igreja Católica Romana.

Teilhard, como costumava ser chamado, nasceu na França vinte anos depois de George Tyrrell, em maio de 1881. Aos dezoito anos, tornou -se seminarista jesuíta. Aos trinta, foi ordenado padre. Seus estudos espe ciais se concentraram na paleontologia e na b iologia. Apanhado em Pequim pela eclosão da II Guerra Mundial, ele voltou para a França ao término da guerra e viveu alguns anos por lá, mas de 1951 até sua morte em abril de 1955, aos 74 anos, morou em Nova York.

Ao longo de sua vida, alcançou posição e notoriedade em círculos científicos devido aos seus amplos conhecimentos e às suas teorias origi nais que entrelaçavam evolução biológica e religião. Mas sua mais alta posição foi alcançada quando se tornou quase um oráculo e um ícone do que devia ser um jesuíta do século XX.

Talvez ajudasse o fato de Teilhard ser alto, de ar aristocrático, de aparência distinta, ser perspicaz, ter tom enérgico. Nunca lhe faltaram amigos dedicados que colocassem suas casas à disposição dele e o ajudas sem em seu “exílio”, como ele se referia aos últimos anos de sua vida passados nos Estados Unidos . Era francês até à medula, e adversário temível numa discussão. Nunca perdeu a simplicidade — certa vez, num jantar em Nova York, ofereceram-lhe o que, extasiado, descreveu como “um foie gras importado diretamente de Perigord e gostoso de fazer chorar”.

Não há dúvida, ele era movido por um messianismo que às vezes bri lhava na intensidade negra do seu olhar e que sempre atraía e exigia res peito.

14. PIERRE TEILHARD DE CHARDIN, S.J.

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Conscientemente, ele se identificava com o astrônomo do século XVI, Galileu Galilei, fazendo sua a frase mística atribuída a Galileu. “A Terra gira!”,

exclamava Teilhard,¹ dando àquelas palavras o significa do da mudança evolucionária. “Estamos morrendo hoje”, disse ele, “do fato de não t ermos ninguém que saiba dar a sua vida pela Verdade.” Como o general de Gaulle, ele às vezes se referia a si mesmo na terceira pessoa, como quando elogiava um de seus tios “como um dos mais teilhardianos e o mais inteligente” de

todos os seus parentes. Havia uma arrogância em sua atitude que nunca desagradava às pessoas, porque era uma expressão de sua extrema certeza.

Ainda assim, não foram tanto seus notáveis atributos pessoais que lhe deram posição de oráculo e ícone, mas um jogo de circunstâncias. Em certo sentido, era o seu destino, dados todos os fatores em ação.

Havia, nos primeiros cinquenta anos da história jesuítica no século XX, um papel à procura de um herói, um empreendimento que precisava de um pioneiro. Um herói e um pioneiro para os jesuítas t inha que exibir certas características: alto intelectualismo, estatura junto a poderosas fi guras seculares, um definido toque de poesia e misticismo, um traço de perseguição por homens de estatura inferior, espírito de independência de Roma e de revolução por questões de princípio, e associações experientes que lhe dessem “classe” e certo grau de qualidade própria dos “as tros” — internacionalismo.

Pierre Teilhard de Chardin demonstrava todas essas características em alto grau, e tinha mais uma suprema vantagem que o consagrava como ícone. Ele sentia, nele e em certos contemporâneos seus, um cer to tédio em relação ao status quo. A atmosfera, naquela época, estava cheia da convicção de que a história humana acabara de dobrar uma esquina definitiva e que um bravo mundo novo aguardava homens e mulheres.

No período imediato após a II Guerra Mundial, a física e a tecno logia deram passos enormes e empurraram para trás antigos horizontes do conhecido em todos os campos. O poder mundial era, agora, condicionado pela física — a bomba A e, logo depois, a bomba H. Crick e Watson revolucionaram a genética ao revelarem a estrutura do ADN. Descobertas do “homem” pré -histórico — na maior parte obra da família Leakey na África — excitaram a imaginação popular. O gênio, porque se tratava de gênio, mesmo, de Teilhard estava na sua capacidade de injetar naquela nova era uma nova filosofia e nova excitação, e um romantismo profundamente atraente. Ele era tão potente como figura de proa e ícone da “doutrina cativante” de “todas as coisas novas e renovadas”,

que se pode dizer que aquele pensamento jesuítico — em especial entre os delegados que compareceram às CG31 a 33 — tinha ficado impregnado com suas teorias muito antes daquelas congregações gerais se reunirem.

A justificativa conhecida de Teilhard, embora não seja a mais efi ciente, para o seu papel de liderança, baseava-se primordialmente na sua

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teoria da evolução, que era muito progressista. O raciocínio e a lingua gem de Teilhard podem ser extremamente complicados e obscuros.2 Para transmitir suas ideias, ele criou uma série de termos novos. É necessário fazer -se uma breve exposição de sua teoria, mas esta exposição terá que omitir muitos refinamentos e detalhes.

Os católicos romanos sempre defenderam que o surgimento do Homo

sapiens era o resultado direto de um ato separado de criação de Deus, segundo descrito na narrativa sobre o Jardim do Éden no livro de Gêne se. Porque o homem, na doutrina católica, tem uma alma espiritual e imor tal que não poderia “evoluir”, em qualquer sentido aceitável, de formas materiais, nem mesmo de “animais superiores”. Este ainda é o ensinamento da Igreja Católica Romana. Quando eruditos católicos romanos que aceitavam a Evolução como fato tentaram reconciliar a doutrina ofi cial com a Evolução, partiram do pressuposto de que Deus, o Criador, interviera num determinado momento no processo evolucionário e introduzira uma alma espiritual e imortal num “animal superior” já altamen te desenvolvido.

Tratava-se de uma frágil suposição sobre uma suposição, e Teilhard fez uma censura sardônica ao cardeal Ruffini, de Palermo, que a men cionou como uma maneira possível de reconciliar a Evolução e a criação divina da alma humana. “O cardeal ainda está convencido de que Evolu ção dá a entender que Deus soprou uma alma para dentro de um macaco”, comentou Teilhard,

mordaz. “É irreconciliável com o que sabemos, com base na biologia, que a

nossa espécie humana deve ser descendente de um casal.” A imagem da cabeça

de Deus, puramente espiritual, inclinando-se sobre um macaco peludo e comatoso numa selva primitiva, era exatamente o que Teilhard queria evocar para ridicularizar Ruffini.

A teoria de Teilhard contornava a dificuldade. Seu ponto de partida era a Evolução darwiniana — ele sempre “personalizava” a palavra com uma inicial maiúscula — que ele aceitava como fato, não teoria. O cosmo e tudo que havia nele se desenvolvera de princípios inertes, sem vida, através de etapas sucessivas de desenvolvimento e com duração de bilhões de anos. Em determinado momento, os homens — o Homo sapiens — apareceram. Começara a história humana.

Em essência, porém, Teilhard usou aquele ponto de partida darwianiano como uma catapulta, redefinindo a Evolução — e também adotando aquele novo vocabulário de sua invenção. A espécie humana, disse ele, surgiu da matéria devido à inata conexão entre a matéria e o espírito — “para nós, não

há essa coisa de matéria pura ou espírito puro”, escreveu ele. A consciência

estava “presente” no momento em que qualquer coisa existia e era composta de duas partes. A verdadeira religião, disse ele, ha via começado naquele momento em que aquela consciência básica estava “presente”.'

Tão logo homens e mulheres apareceram em cena em vários grupos díspares por todo o globo, teve início um longo e úl timo estágio de desen-volvimento em direção a uma unidade total de todos os indivíduos no

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“Ponto Ômega” da história. Ainda estamos no meio desse desenvolvi mento. Uma vez atingida a unidade completa, Cristo — que será o Ponto Ômega — irá aparecer; o homem será, então, mais do que homem, será o que Teilhard chamava de ultra-humano; o cosmo será transformado; e será estabelecida a glória de tudo.

É óbvio que uma teoria dessas impõe o abandono ou a completa trans -formação de todas as doutrinas básicas do catolicismo romano. Criação, pecado original, a divindade de Jesus, a redenção pela morte de Jesus, na cruz do Calvário, a Igreja, o perdão dos pecados, o Sacrifício da Mis sa, o sacerdócio, a infalibilidade papal, Inferno, Céu, graça sobrenatural — até mesmo a existência e a liberdade de Deus — tudo terá que ser re-formulado, e talvez abandonado em grande parte.

Os escritos de Teilhard foram severamente censurados pelos supe riores romanos; mais de um de seus livros nunca viu a luz do dia enquan to ele viveu. O fato de ele ter sido finalmente deixado em paz por seus superiores e ter tido permissão para exercer suas atividades eruditas até morrer é um tributo à sua agilidade mental, sua astúcia, e ao poder de suas ideias.

A maioria de seus colegas jesuítas e, de fato, a maioria daqueles que liam a melíflua, complexa e às vezes poética prosa que Teilhard produzia em livros, artigos de revistas e palestras, nunca chegou a compreender perfeitamente a sua teoria da Evolução.

Ele próprio preferia os termos cosmogênese e antropogênese. Seu vo-cabulário criado por ele era estonteante — amorização, hominização, cristogenia, cristificação, pleromização, excentração, biogenia, são exemplos de uma litania muito mais longa. Muitas vezes Teilhard hesitava ao defi nir com precisão o que significavam seus termos híbridos. Ainda assim, seus seguidores podiam perdoar isso; eles achavam que em geral podiam perceber as linhas gerais de pensamento através das quais ele transforma va suas ideias em teorias. Tão certos desse sentimento es tavam muitos de seus devotos, que eles adotaram aquelas linhas gerais do teilhardismo e as aplicaram a suas situações concretas.

A mais dominante dessas linhas era a afirmação de Teilhard de que uma nova humanidade estava surgindo de forma tão inexorável e certa quanto o fato de a noite se seguir ao dia. Porque, afinal, isso era cosmogênese -antropogênese contínua, não era? Ali, pelo menos, estava um cien tista honesto, e ainda por cima jesuíta, dando uma “base” aceitável ao que o pobre e patético George

Tyrrell tentara dizer o tempo todo mas que nunca conseguira: tudo o que era antigo — modelos de pensamento, costumes, dogmas — tinha que acabar, tinha que mudar.

Uma segunda linha dominante do pensamento de Teilhard era a len ta e igualmente inexorável unificação de todos os diversos seres humanos subindo, subindo, subindo, através de todos os tipos de lutas sangrentas, até atingirem o Ponto Ômega de perfeita unidade. Unificação e igualação eram os fortes sobretons aqui.

Teilhard aplicou, mais de uma vez, essa linha de raciocínio à situação

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sócio-política de sua época. Sua alienação do capitalismo e sua orien tação para “o povo” eram bem patentes. Para ele, evolução implicava evolução também na

distribuição de bens, uma igualação da propriedade que o capital ismo tornava impossível. “A sociedade humana tem sido cada vez mais tomada por uma

ânsia de justiça verdadeira (...) uma libertação dos grilhões [da pobreza e da dependência provocadas pelo capitalismo] nos quais há gente demais ainda presa”, escreveu ele.

Como a própria evolução, essa dimensão sócio-política de seu pensamento não era teoria, mas um fato para Teilhard. Em seguida à II Guerra Mundial, por exemplo, as ordens religiosas dos jesuítas e dos dominica nos permitiram que alguns de seus membros se tornassem padres operários. Esses homens comiam e dormiam, viviam e trabalhavam nas mesmas condições do operário comum. Se seus colegas operários entravam para células comunistas, eles também entravam. Se seus colegas operários faziam arruaças ou demonstrações em frente a edifícios do governo, os padres operários também faziam.

Com o tempo, essas associações e atividades provocaram tantas bai xas e abandonos da carreira, que os superiores jesuítas e dominicanos fo ram obrigados a retirar seus padres daquele trabalho. Obrigados é a palavra apropriada, porque é virtualmente certo que eles não teriam se retirado por vontade própria. Tampouco seus superiores os teriam retira do, não fossem os relatórios enviados para Roma pelo núncio apostólico de Paris, o ar cebispo Angelo Roncalli, o futuro papa João XXIII, nos quais ele indicava laconicamente que, levando-se tudo em conta, a Igreja não havia ganho uma só alma com aquela extensa produção de força de trabalho, mas que os partidos Comunista e Socialista tinham se beneficiado enormemente dos padres operários, o mesmo acontecendo com vá rias mulheres francesas, que haviam arranjado marido.

Autoridades romanas convocaram os superiores jesuítas e impuseram-lhes uma chamada oficial para que seus homens voltassem. Mesmo então, porém, cerca de metade dos padres operários se recusou a obede cer à ordem de regresso e optou por entrar para o Partido Comunista. A maioria deles já deixara, àquela altura, de rezar missa ou exercer quais quer deveres sacerdotais. Abandonaram o sacerdócio.

A reação de Teilhard a tudo isso era tão certa e inequívoca quanto o próprio homem. Ele ficou angustiado com a intervenção de Roma: “Nes sas circunstâncias, e num mundo capitalista, como é que uma pessoa con tinua sendo cristã?”, perguntou ele. “Os padres operários encontram, diante de um

marxismo humano, não apenas justiça mas esperança e um sentimento pela Terra que é mais forte do que a ‘humanidade evangéli ca’.” Para Teilhard, o

marxismo não apresentava dificuldade alguma. “O Deus cristão lá no alto”,

escreveu ele, “e o Deus do Progresso marxista estão reconciliados em Cristo.”

Não admira que Teilhard de Chardin seja o único escritor católico romano cujas obras estão expostas ao público junto às de Marx e Lenin no Salão do Ateísmo em Moscou.

A terceira e mais ominosa linha do pensamento de Teilhard dizia res peito

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ao essencial elemento estrutural do cristianismo que todos os mo dernistas autênticos — Tyrrell e Teilhard não são exceções — têm que ter como alvo principal: a sua hierarquia de bispos unidos ao papa como seu chefe. As Três Pessoas da Trindade constituem a hierarquia suprema. O papa e os bispos constituem uma segunda grande hierarquia. O geral da Sociedade de Jesus e seus superiores, maiores e menores, consti tuem uma terceira. No Céu de Deus há hierarquias de anjos, e no Inferno de Satã, hierarquias de anjos maus. No corpo social, há a hierarquia da família. A hierarquia é uma nota essencial do catolicismo romano.

Não havia como, do ponto de vista do puro raciocínio, qualquer u ma dessas hierarquias sobreviver no teilhardismo estrito. A baixa mais notá vel era Jesus.

“Eu vim, não para destruir, mas para cumprir a lei”, afirmou Je sus. Teilhard interpretou isso literalmente e, para ouvidos devotos, blasfemicarnente como: “Eu vim não para destruir, mas para cumprir a Evolução.” Em outras palavras, como passava a explicar a teoria de Tei lhard, à medida que homens e mulheres da Igreja ficam cientes do movi mento perpétuo da Evolução para a frente — temos, aqui, outras invenções de pa lavras de Teilhard de estontear: “convergência físico -biológica-mental” — a consciência desses homens e mulheres “provoca, de modo irresistível, um total

renascimento da teologia mística e da Fé em todos os níveis”. Ou, expresso nos

termos mais simples possíveis, Jesus e a fé cristã em sua Encarnação no ventre da Virgem Maria há cerca de mil novecentos e oitenta e seis anos tornou-se um problema. Porque, no sentido teilhardiano, Jesus ainda não tinha sido encarnado de verdade — isso só acontecerá no Ponto Ômega; e mesmo então não estamos falando de Jesus de Nazaré, mas de Cristo “o essencial Motor de

uma Hominização que leva a uma Ultra-Hominização [ou o homem tornado maior do que o homem]”.

Teilhard chamava esse acontecimento de Pancristicismo. O único pr o-blema, dizia ele, era “como inserir o mistério da Encarnação na história móvel

da humanidade”. Isso era uma linguagem codificada que expres sava outro problema gigantesco: como reconciliar toda aquela teoria com os dados da fé católica?

A última linha dominante de seu pensamento estava saturada de poesia e de um misticismo especial que gerava em Teilhard uma excitação romântica estranha e nova, lado a lado com um certo tipo de desprezo pelo indivíduo.

A julgar pela sua correspondência, está claro que Tei lhard não ficava demasiado chocado com o derramamento de sangue, que considerava a violência como concomitante da Evolução, e parecia ter gostado da guer ra — do que viu dela.4 A morte, sangrenta ou não, era o que ele chamava de “mutação”. Apesar dessa característica, Teilhard foi descrito insensatamente pelo teólogo americano David Tracy como “um poeta da ciência — um raro tipo cultural”. Mas o próprio Teilhard declarou que “para o meu objetivo, seria

melhor ser uma sombra de Wagner do que

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uma sombra de Darwin”. O Götterdämerung dos alemanni era mais requintado do que a monótona “evolução da espécie”.

A consequência da preferência de Teilhard por mitos era clara. Se guir e aceitar as teorias de Teilhard significava a expectativa de um gran de acontecimento quase apocalíptico inserido na natureza como parte da maneira pela qual as coisas, na natureza, atingem os objetivos que lhes foram indicados, numa nova era que estava muito próxima. A aceitação desse romantismo inventado — Teilhard tinha uma pena lírica, não há dúvida — significava uma rejeição da fundamental crença cristã de que todo derramamento de sangue, toda selvageria, toda animalidade gene ralizada, a lei do cão da selva, a guerra automática entre animal e homem (e também entre homem e homem), juntamente com todos os elementos destruidores do cosmo — terremotos, inundações, furacões, doenças, veneno, e a própria morte precedida pelas misérias do envelhecimento — toda essa massa de sofrimento era devida a uma ofensa primordial a Deus pelos fundadores da raça humana. O Pecado Original de Adão e Eva não tinha lugar no poético e romântico apocalipse de Teilhard.

Com referência a esse detalhe da “natureza da natureza”, Teilhard era

bem pagão. Quando viu os famosos ciclotrons no campus de Berkeley da Universidade da Califórnia, ele se encheu “não de terror, mas de paz e alegria”

diante daqueles tremendos “ventres de mudança”. Parece que o que ele viu ali

não foi o fantasma do Dia do Juízo Final, mas a possibilidade de que o Dia do Juízo Final fosse o ventre do Ponto Ômega.

Enquanto esperava o cataclismo romântico, tudo o que trazia a mar ca da mudança, por menor que fosse, era fascinante e encantador para Tei lhard. Em certa ocasião, por exemplo, uma certa Miss Lattimer da zona leste de Londres, Inglaterra, pescou por acaso um peixe raro — o Crossopterygian (agora com o sobrenome Lattimeria) — que fascinou todos os paleontologistas. “Foi -me mostrado pela própria srta. Lattimer”, escreveu, encantado, Teilhard, “um

espetáculo extraordinário! Um enorme ganóide de mais de dois metros de comprimento, com barbatanas lobadas!” Ele podia se manifestar com a mesma

eloquência sobre tudo, do movimento de partículas subatômicas à arquitetura de cristais de gelo depois de uma tempestade de gelo no Leste da China. Havia um tom lúgubre, de causar calafrios, não de todo natural em alguns de seus prazeres. “Teilhard”, observou um de seus primeiros companheiros, “tem um

sangue muito frio.” Tem-se que admitir que havia, no que Teilhard escrevia, um otimis mo

contagiante, quase jovial. Sempre e em toda parte, ele falava e se comportava como o visionário com uma inabalável certeza quanto ao futuro. Mas apesar de tudo, não existe uma só linha sua que dedique o mesmo entusiasmo contagiante à celebração do Sacrifício da Missa; às oferendas ao Sagrado Coração de Jesus; à defesa dos direitos do papado; a absol ver os pecadores de seus pecados; a ensinar o catecismo às crianças; ou a consolar os oprimidos. Ele estava, por inteiro, envolto em sua versão da “doutrina cativante”, na

glória impessoal que caberia a todos os homens com a chegada do “Ultra-Humano”.

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Tão impessoal se tornou a sua fé, e tão caracteristicamente certo de si mesmo estava ele, que com o passar do tempo surgiu nele certa amar gura e reprovação para com qualquer pessoa que se apegasse ao que ele considerava como os dogmas e devoções antigos e obsoletos do catolicismo tradicional. Ele contou, numa carta de 1952, que foi ouvir o arcebis po Fulton Sheen pregar na catedral de São Patrício na cidade de Nova York. “Um dos pontos fortes de Sheen”, observou secamente, “era poder viver e ver uma religião sem mistérios, exceto os de teologia.” Tei lhard, que adorava os mistérios da natureza, concluiu sardônico: “Para ele [Sheen] tudo está revelado.”

Noutra ocasião, visitando um novo convento para freiras beneditinas enclausuradas em Connecticut, ele observou que uma grade tradicio nal tinha sido instalada para separar as freiras enclausuradas do mundo exterior. “Que

pena! Que pena!”, murmurou ele, e achou que valia a pena ex por numa carta o quanto achava idiota toda aquela ideia de vida enclausurada a essa altura da Evolução.

Certo dia de Natal, o espírito de festividade em Nova York o deixou revoltado. Mas era evidente que, para Teilhard, o problema não estava no lado comercial.

“(...) faço o possível para me imbuir do espírito do Natal”, mas tu do “me

deixa sufocado”, o “estado de agitação”, a “tocante boa vonta de mútua”, toda a

confusão nesta Nova York que era “tão sofisticada” e tão “infantil”. Em Teilhard não havia nada de delicadeza, de compaixão, de impar-

cialidade, de percepção sensitiva. À luz de tudo isso, como se pode analisar Teilhard de Chardin como

católico romano e como jesuíta? A influência desse homem sobre o pen samento jesuítico e os teólogos católicos, bem como sobre os processos de pensamento dos cristãos em geral foi e ainda é colossal. Felizmente, temos o testemunho do próprio Teilhard sobre esses importantes assun tos — o impacto que ele esperava causar na sua Igreja e na Sociedade de Jesus. 5

Com relação à Igreja Católica Romana — seu papado, sua hierarquia, suas formulações doutrinárias, sua devoção, seu lugar no cosmo hu mano — Teilhard estava sumária e completamente desiludido. No presente momento da história humana, disse ele, “nenhuma religião nos oferece explícita e oficialmente o Deus de que precisamos”. O problema da Igre ja, dizia ele, era que “ela

continua a viver num universo em que nós, os demais, não vivemos”. Porque

ela, “a Protetora da Chama do monoteísmo moderno, recusa -se a dar ao mundo o Deus que ele está esperando”. Essa Igreja “acusa o mundo de estar ficando

tépido, enquanto que são realmente eles, os líderes, que estão deixando que o Deus dos Evangelhos (...) esfrie em suas mãos”. O seu clero celibatário

parecia, ao mundo, ser os “falsos irmãos” da humanidade, “meio-irmãos” que

acusavam a humanidade de pecados. A Igreja não dava vida verdadeira a seus adeptos.

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Em consequência, quando Mao Tse-tung e seus comunistas dominaram a China em 1949 e, com ela, a Igreja Católica de três milhões de almas, Teilhard pôde pronunciar um julgamento na base do “eu bem que disse”: “Não é devido

ao seu catolicismo que os fiéis chineses estão mais bem preparados para enfrentar o marxismo de Mao Tse-tung.” De fato, em última análise, “a Igreja

não tornará a recomeçar seu ritmo conquis tador” enquanto não se decidir “a

reexaminar as relações entre Cristo e um universo que se tornou fantasticamente imenso e orgânico”.

A mudança que Teilhard exigia da Igreja era total. A ideia tradicional do Sobrenatural (uma “idéia monstruosa”, dizia ele) deveria ser subs tituída pela sua teoria científica de que a humanidade, como um todo, estava chegando a um ponto de total autoconsciência. A questão central para a religião era, agora, a relação de Cristo com o cosmo material, sobre o qual a Igreja se calava. Deus tinha que ser visto como alguém que, por natureza e para continuar sendo ele mesmo, tinha que se tornar o Deus da Evolução. Deus não tinha liberdade para criar ou não criar o cosmo. Para ser Deus, ele tinha que criá-lo. Porque Teilhard não acreditava no “Deus que está morto” de Nietzsche nem no Deus

imutável da Igreja, mas num “Deus que se modifica”. Como acontecia com o conceito de Deus, tudo o mais da Igreja ti nha que

ser repensado, segundo Teilhard. Ela tem que se aliar à ciência, porque “isso

iria ajudar a afastar os obstáculos que impedem que a Igre ja conheça a sua própria verdade”. A menos que a Igreja convidasse a humanidade a

desenvolver seus poderes humanos por meio da ciência, “ela não irá recuperar

o interesse da humanidade”. Ela precisava, por tanto, realizar “um completo

repensamento de velhos valores e institui ções, a fim de que o espírito possa ser liberado”; e precisava abandonar “o juridicismo, o moralismo e todas as coisas

artificiais, a fim de viver na função mesma do chamado ao amor de Deus que tanto eleva nossas energias”.

A teologia da Igreja deveria ser completamente atualizada — tudo, desde o significado do Sinal-da-Cruz (não sofrimento e morte transformados em vida e glória eternas, mas o triunfo da Evolução) até o sacerdócio (uma função de ser verdadeiramente humano). De fato, “sábios são sacerdotes”, e a “pesquisa

científica é oração (talvez o mais elevado tipo de oração)”. Todos os homens

são, na realidade, sacerdotes, dizia ele. O sacerdócio não é, em essência, a oferenda da Missa e o perdão do pecado; consiste em ser ainda mais humano.

Teilhard ridicularizava a ideia católica da continência sexual, zombando das “colônias de virgens” e das “correntes de continência no ca samento”. A ordem de Deus a Adão e Eva, para “crescerem e multiplicarem-se” já não

vigorava. Devíamos, agora, usar a eugenia para visarmos o ótimo no nascimento, e não o máximo na reprodução. Porque “amanhã serão métodos

desse tipo [meios mecânicos inventados pela ciência] que serão empregados para controlar a vida ou a nova biologia”. Enquanto isso, declarou Teilhard, temos o “direito absoluto de tentar tudo

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até o fim — até mesmo na questão da biologia humana” (sexualidade,

eutanásia, concepção in vitro, homossexualidade). Parece extraordinário que jesuítas que estavam ficando tão dedica dos à

ideia de combater a opressão sócio-política não ficassem horrorizados com os fantasmas que uma ideia daquelas provocava, em especial depois dos experimentos humanos de Hitler exatamente com o mesmo propósito. Mas o entusiasmo e a euforia da época trabalhavam em favor de Teilhard.

O próprio Teilhard, enquanto isso, não era desviado de seu caminho por coisa alguma. Ele tinha resposta para tudo em sua Igreja. Não fez objeção em 1950, por exemplo, à definição do papa Pio XII para o dog ma da Assunção física da Virgem Maria ao Céu. A definição da Assunção como Dogma foi inoportuna para Teilhard e para muitos, uma vez que só podia desagradar ao mundo científico; todas as celebrações “Ma- riais” da Igreja romana, como ele

as chamava — “desfile, pelas ruas, de uma imagem de Nossa Senhora de

Fátima pelos continentes”, congressos “Mariais”, “comícios-monstros emocionais”, e outras práticas romanas do gênero — eram estas as suas expressões de desagrado em relação às manifestações de devoção católica a Maria.

Mas a definição deste Dogma não foi um problema muito grande para Teilhard. Ele simplesmente redefiniu o Dogma de acordo com o seu pensamento. A definição do papa, corrigiu ele a Sua Santidade, nada tinha a ver com o fato de a Virgem ser a mãe de Cristo. Desde que se consi derasse uma afirmação dessas como meramente “uma necessidade biopsicológica” para

compensar a excessiva “masculinidade de Jeová” no An tigo Testamento, tratava-se de um dogma que podia ser aceito.

Levando-se tudo em conta, parece justo e sensato dizer, com base nas evidências, que surgiu em Teilhard uma certa insensibilidade às piedades tradicionais e à devoção individual a Jesus que só podia ter sido tornada possível por um colapso da fé autêntica. Outro pequeno inciden te é chocante pela irresponsabilidade que ele demonstrou. Um certo je suíta, padre Doncoeur, membro da sempre presente “fraternidade”, reuniu alguns outros jesuítas

também membros e pessoas leigas numa casa particular para celebrar a Páscoa em 1951. Em lugar da Hóstia regulamentar feita de pão sem fermento, Doncoeur e seus companheiros “consagraram” uma galette, um bolo folhado. Depois, cada um tirou um pedaço da galette sobre uma taça de vinho. Foi esta a missa deles de renovação pascal. Em termos de teologia católica tradicional, essa “missa” seria considerada não apenas herética; seria condenada como um ato de idolatria pagã e um sacrilégio. Quando Teilhard ficou sabendo disso, não houve sinal algum de desagrado ou horror. O sacrilégio perdera todo o significado para ele. Sua reação foi um muxoxo de satisfação. Sua mente esta -va dedicada a coisas mais sérias.

O que realmente importava, agora, dizia Teilhard, era que “uma nova

humanidade está nascendo pela força natural dos acontecimentos, que bradam em direção a um novo Deus e a favor dele”. O “verdadeiro pro blema",

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agora, era “encontrar um combustível, um excitante e, por fim, um Deus” para

a Evolução. Teilhard definiu literalmente aquele “combustível” que faltava,

criando-o. “Um humanismo atualizado”, declarou ele, “um neo -humanismo é,

portanto, uma necessidade” que estará “excitando corações e mentes e

inspirando a humanidade.” Para essa “aventura humana”, teremos “o Motor

Divino” da Evolução “que sustenta a sede pela vida”. Assim, finalmente, “surgirá uma Ciência do Homem, menos ridícula do que aquela que nos

sobrecarrega neste momento [os ensinamentos da Igreja]”. Com um Motor divino no lugar e o combustível do neo-humanismo para

mantê-lo roncando, Teilhard não tinha dificuldade em definir a ta refa da Igreja. Essa tarefa era: ensinar uma nova fé, “fé na promessa da tecnologia, fé

no destino final da humanidade, que ultrapassava a si mes mo”, enquanto “o

grupo biológico humano se levanta em direção a um objetivo final”. Não deveria mais haver fé no sobrenatural, mas apenas no que Tei lhard

chamava de “o ultra-humano”; na “ultra-humanização”; no fato de o homem se

tornar mais do que humano pelos seus estímulos inatos. A regra era: “Onde o homem for mais ele mesmo, ali deverá estar Deus.” O amadurecimento do

mundo humano seria, em grande parte, “o fruto dos esforços do homem”.

Porque “chegará o dia em que o Homem irá reconhecer que, para ele, a ciência

não é uma ocupação acessória, mas a forma essencial de ação”. Não se pode deixar de ficar impressionado com a oração de Teilhard para

o seu novo deus, a humanidade, a que ele se referia como “Je rusalém”.

Jerusalém, levante a cabeça. Veja a imensa multidão daqueles que constroem e daqueles que procuram. No mundo inteiro há homens labutando — em laboratórios, em estúdios, em desertos, em fábri -cas, no vasto crucifixo social. O fermento que acontece como resul -tado da instrumentalidade desses homens na arte, na ciência e no pensamento está acontecendo para o seu bem. Abra, então, seus braços e o coração, como Cristo nosso Senhor, e receba bem as águas, o Dilúvio e a seiva da humanidade. 6

Quando se examina a piedade e a prática da crença religiosa pessoais de Teilhard, é-se finalmente obrigado a concluir que mesmo lá nos seus primeiros anos de treinamento para jesuíta ele havia perdido a sua fé católi ca romana. Continuou sendo jesuíta e membro da Igreja devido, em parte, à inércia, talvez; mas em parte, também, por motivos estratégicos — os mesmos motivos estratégicos que George Tyrrell tinha para se agarrar com tanta força nas salas de Roma.

Durante parte de sua vida, Teilhard teve um amigo jesuíta muito che -gado, o padre Auguste Valensin. Valensin era conselheiro espiritual, filó sofo, homem muito culto, e mais erudito do que a maioria de seus

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contemporâneos. Ao longo de um período no início da vida de Teilhard, os dois amigos tinham conversas frequentes. Em 1951, porém, Teilhard descobriu que Valensin achava a “aventura evolucionista” de Teilha rd desprovida de qualquer atrativo. Teilhard, por sua vez, descrevia Valen sin como um homem “de fé

quase pueril” e, porque Valensin não queria aceitar a sua “aventura

evolucionista”, um homem de “completo ceticismo intelectual”. As observações subsequentes de Teilhard são alarmantemente reveladoras

de sua perda de fé. “Se eu fosse ele [Valensin],” disse ele, “eu teria deixado de

acreditar há muito tempo. (...) Um Deus que não seja a Energia da Cosmogênese (esta é a coisa fundamental em que eu acredi to), e um catolicismo que se recusa a aceitar seu lugar como um filo da natureza na qual se pode fazer a mais alta descoberta de Deus, nada significam para mim.” É

positivamente óbvio que Teilhard deixara de acreditar como católico. “Já não

posso conceber uma religião que não amplie e não intensifique a nossa visão da criação. (...) Não consegui encontrar uma forma de expressão do Deus a quem adoro intimamente, um Deus no qual se juntam o Cristo da Evolução, o Pessoal e o Universal.” Em vez disso, Teilhard tirava sua inspiração e suas intuições, bem como seu ímpeto não de um chamamento inaciano ou sacerdotal, mas porque

Há tanto tempo que eu olho para a natureza, e amo tanto sua fisio -nomia, que posso ler-lhe o coração; esta é minha cara e profunda convicção — uma convicção tão doce quanto tenaz, a mais humilde mas a mais profunda de minhas certezas. (...) A vida não acaba em qualquer caminho. Tampouco erra quanto ao seu Fim. (...) Ela nos mostra por que caminho virão todos aqueles que não são mentirosos nem falsos deuses; ela nos mostra para que ponto no horizonte devemos nos dirigir se quisermos ver a Luz se levantar e encher o céu.7

Escrevendo em 1928 a um amigo, ele já emitia o tom lírico que passou a reservar para “a natureza”. Tenho procurado, disse ele, “divulgar um certo

gosto, uma certa percepção da beleza, do páthos, e da unidade de ser”. Tivesse o

swami Vivekananda vivido para ler essas palavras, elas teriam provocado lágrimas de alegria até mesmo em seus olhos. 8

Com relação ao seu jesuitismo e à sua vocação jesuítica, Teilhard era menos romântico; era, na verdade, um perfeito realista. “Verifico”, escreveu

ele, “que não posso deixar de perceber outra vez (e de forma ainda mais

profunda) o tamanho do abismo que separa minha visão reli giosa do Mundo e a visão que está nos Exercícios de Inácio (vista no modelo no qual os membros da Igreja situados em elevadas posições ainda pensam que podemos nos encaixar!) (...).”

No entanto, observou ele com uma previsão visionária, bem que se ria possível pegar aqueles Exercícios espirituais de Santo Inácio e “transpô-los em termos de um universo em Gênese no qual temos que abrir espaço

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para o Ultra-Humano. (...) Hoje, homens que as circunstâncias afasta ram do arcabouço de imaginação que a teologia havia construído , estão todos procurando um novo Deus — um Deus que seja ao mesmo tempo ‘Pessoal’ e

‘Ultra-Humanizador’.” (Este último termo enfatiza a oposição ao “Sobrenatural” dos teólogos, que Teilhard chamava de fictício.) “É à

compreensão do Deus Ultracristão que estou irrevogavelmente decidido a dedicar os últimos anos de minha vida.”

Teilhard havia começado sua carreira editorial a sério com a publicação de O

meio divino, em 1927. Desde o início, houve sérias críticas do então padre -geral Wlodzimierz Ledóchowski. Teilhard já havia publicado mais dois livros quando foi avisado de que, no pé em que andavam as coisas, a Ordem não queria que ele publicasse mais livro ou artigo algum. Quando voltou para Paris, vindo da China, depois que a II Guerra Mundial terminou, e le se viu privado de qualquer foro para transmitir suas ideias. O novo padre-geral, Jean-Baptiste Janssens, não suspendeu a proibição que o padre Ledóchowski baixara.

Teilhard ficou agastado com aquelas restrições. Seus superiores fran ceses também ficaram indóceis; eles não compartilhavam das suspeitas dos superiores romanos. Todos os interessados sabiam que os ensaios de Teilhard não publicados — os seus “clandestinos”, como ele os chamava — estavam circulando de mão em mão. Ele acabou iniciando uma troca d e correspondência com o padre Janssens sobre a discutida ortodoxia de seus pontos de vista e sobre o problema de como exercitar seus talentos nas circunstâncias.

O padre Janssens tinha que argumentar com o papa de então, Pio XII; e os assuntos preferidos de Teilhard, evolução e antropologia, eram precisamente o que estava provocando a vigilância daquele papa. De fa to, ele estava preparando uma encíclica à Igreja universal exatamente so bre aqueles assuntos. Janssens fez com que Teilhard visse que não havia como o Vaticano de Pio XII pudesse dar a ele (Teilhard) carta branca para publicar trabalhos e fazer palestras. Ele não deveria disseminar suas ideias; elas eram suspeitas.

Os dois chegaram à conclusão de que a Europa, de fato, não era o lugar ideal para Teilhard. Os Estados Unidos acabaram sendo a escolha definitiva; Teilhard poderia entrar para equipes de pesquisas lá e fazer suas pesquisas. Mas não poderia publicar trabalhos, fazer palestras públicas ou ensinar a jovens jesuítas.

Será que Vossa Reverência não podia modificar algumas de suas opiniões mais controvertidas, perguntou, implorando, Janssens em uma carta, pelo menos que dissesse respeito às palavras? Apegar -se a elas e fazê-lo de modo explícito poderia resultar numa tragédia maior... Os dois estavam pensando na possivelmente necessária exclusão de Teilhard da Sociedade. E ambos afastavam-se assustados dessa alternativa — Janssens devido à revolta que fermentava nas fileiras jesuíticas, Teilhard porque achava que a Sociedade e a Igreja precisavam dele.

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Escrevendo ao padre-geral Janssens em sua própria defesa no dia 12 de outubro de 1951, Teilhard ofereceu àquele pobre superior atormenta do uma opção dura:

Penso que o senhor terá que se resignar a aceitar -me tal como sou, mesmo com a qualidade (ou fraqueza) congênita devido à qual, desde minha mais tenra infância, minha vida espiritual tem sido sempre dominada por uma espécie de profunda “sensibilidade”

com relação à realidade orgânica do mundo (...) um preciso e predominante senso da convergência geral do universo sobre si mesmo. É esta a situação psicológica básica da qual se origina tudo o que faço e sou. É uma característica que não posso mudar mais do que posso alterar minha idade ou a cor de meus olhos.

(...) Acho necessário insistir na minha dedicação cada vez mais forte (...) ao valor sem igual do Homem no caminho do surgimento da Vida; à posição axial do catolicismo no feixe convergente das atividades humanas; e, por fim, à essencial função consumadora assumida pelo Cristo em Ascensão no centro e no topo da criação. (...) Reconheço plenamente que Roma pode ter suas razões para acreditar que na sua forma atual minha visão da cristandade é prematura ou incompleta. (...) Apesar de certas aparências, estou determinado a continuar sendo “uma criança

obediente”. (...) Não posso deixar de explorar esse caminho por

minha conta. Mas (...) já não estou mais ocupado com a propagação de minhas ideias, só em aprofundá-las dentro de mim mesmo (...).

A carta de Teilhard foi franca apenas pela metade, e teve apenas por finalidade fornecer ao seu superior um documento para os arquivos que dissesse que ele se submetera à “santa obediência”. Escrevendo a um ami go, ele foi muito mais honesto e revelador: “Para lhe dizer a verdade, estou perfeitamente c iente de que não sou assim tão inocente. Mas como posso parar o que estou fazendo sem falhar nos meus deveres perante Deus e o homem? (...) Estou perfeitamente ciente de que todos os hereges disseram isso...”

Quanto à sua palavra a Janssens de que já não se ocuparia com a propagação de suas ideias, isto também parecia mais fábula do que realidade; porque em outra ocasião ele escreveu sobre sua nomeação para o prestigioso Institut de France como “uma plataforma da qual posso lan çar meus projéteis (...) e [que] irá me proteger contra certos ataques”.

Janssens, também, estava ciente de que todos os hereges invocavam a obediência ao dever perante Deus e o homem, sem dúvida. Mas Tei lhard estava acima de suas forças. Muitos jesuítas de destaque, entre os quais superiores, simpatizavam com os pontos de vista dele. A carta de Janssens em resposta ao apelo de Teilhard foi de “reconciliação”. Dali para a frente, Teilhard não foi

mais perturbado pelas tentativas disciplinares dos superiores jesuítas. Nem mesmo se exigiu que ele morasse numa residência jesuítica.

Conscientemente, e apesar da impressionante liberdade com que

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falava e publicava seus trabalhos, Teilhard se achava pertencente à “frater -nidade” para a qual “pensar livremente na Igreja, hoje em dia, signi fica agir na clandestinidade. Pensando bem, é isso que tenho feito há trinta anos...”. Ele

entrou para a versão jesuítica do samizdat soviético, ou sistema clandestino de publicações; falava livremente dos “meus clandesti nos” (seus escritos

clandestinos que circulavam de mão em mão); e ficou radiante quando foi atacado numa monografia de 1950 — “mas nenhum de meus clandestinos mais

recentes são citados nela”. As autoridades tinham sido enganadas. Apesar de sua imagem muito romântica de si mesmo como exil ado em

benefício da verdade, um fugitivo na clandestinidade intelectual, quan do surgia a ocasião ele não hesitava em fazer prosélitos mesmo entre seus colegas jesuítas. “Nós os padres, nós os jesuítas”, proclamou ele nada menos do que

numa reunião internacional de jesuítas em Versalhes em 1947, “temos que

acreditar na pesquisa, porque pesquisa realizada com fé é o terreno próprio para a criação da mística humano-cristã que pode criar unanimidade [entre os homens].” A pesquisa, disse ele — e nos lábios de Teilhard isso significava especificamente pesquisa científica — estava destinada a se tornar “o ato

essencialmente humano e a mais direta forma de cristificação e adoração”. É claro que uma declaração dessas — como os principais princípios do

pensamento de Teilhard — era irreconciliável com o jesuitismo tradi cional e com o catolicismo que os jesuítas juravam defender. “Mas eles [os

Libertadores] já chegaram e estão aqui”, observou ele certa vez, dan do a entender que a chegada deles era, também, sua defesa e justificativa. “Eles

irão livrar a Igreja do que evita que ela avance (...) do seu além-túmulo, eles estenderão os braços para a vitória.”

Nessa declaração, pelo menos, Teilhard foi profético. Num sentido verdadeiro, ele mesmo estenderia, de seu túmul o, os braços para a vitória. Teilhard morreu de maneira inesperada no Domingo de Páscoa, 10 de abril de 1955, na casa de uns amigos em Purchase, Nova York. Suas exéquias foram realizadas na igreja jesuítica de Santo Inácio, na Park Avenue da cidade de Nova York. Seu corpo foi vestido, para o enterro, com as vestes sacerdotais. Quando seu caixão baixou à sepultura num cemité rio de Poughkeepsie, Nova York, a terra ainda estava gelada devido ao longo e rigoroso inverno.

A morte foi um dos dois únicos problemas que Teilhard não abordara nem mesmo para satisfação própria em sua brava teologia de mudança e de evolução. De fato, só na presença da morte o confiante otimismo e a certeza que eram a marca pessoal desse homem pareciam enfraquecer -se. “Agora, o

que é que ele ‘vê’? Eu gostaria de saber”, escreveu Teilhard de pois da morte de um amigo; “E quando chegará a minha vez?” Por ocasião da morte de outro amigo: “O que é que irei ‘ver’?” O fato de ele colocar a palavra “ver” entre

aspas não mostrava convicção de que iria ver Jesus, o Pai e os Santos. Era o sentimento do agnóstico profundamente empenha do, para cuja falta de fé as palavras comuns não são suficientes.

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O ato de morrer e a morte para ele, dissera, eram apenas os meios de fundir -se com o universo.

O mundo em que vivo se torna divino. No entanto, essas chamas não me consomem, nem essas águas me dissolvem porque (...) o pancristão, estou percebendo, coloca a união nos termos de uma árdua diferenciação. Só me tornarei o Outro sendo absolutamente eu mesmo. Só atingirei o Espírito liberando completa e exaustivamente todos os poderes da matéria. (...) Reconheço que, ao seguir o exemplo do Deus encarnado que me foi revelado pela minha fé católica, só posso ser salvo ao me fundir com o universo.

Dentro da perspectiva tradicional da clara visão do catolicismo sobre o que acontece a todo ser humano após a morte, fica -se imaginando que tipo de choque Teilhard experimentou quando, naquele dia de Páscoa, finalmente “viu”

o Deus de seu eterno amanhã, o Deus-homem que morrendo não se tornara “parte do universo”, mas continuara sendo seu soberano Senhor.

Cinco anos após a morte de Teilhard, em 1960, autoridades romanas sob a direção do papa João XXIII expediram um documento avisando a je suítas e católicos em geral que as ideias de Teilhard eram extremamente perigosas para a fé católica. Era o mesmo que uma condenação. Àquela altura, entretanto, seu nome e suas teorias gozavam de uma aceitação que não podia ser rompida por meros documentos eclesiásticos. O pensamento de Teilhard tornara-se parte do pensamento da liderança intelectual da Sociedade de Jesus.

A única dificuldade deles com o teilhardismo tinha a ver com o se gundo problema que Teilhard não desenvolvera de forma adequada en quanto vivia. Ele não apresentara nenhum objetivo tangível no momento presente para sua poesia e suas propostas “científicas”. Apesar da defe sa de Teilhard dos padres operários há mais de duas décadas antes, na realidade ele não havia indicado qualquer espaço no qual o seu romantismo da evolução pudesse ser testado.

Essa falha foi rapidamente preenchida por uma nova iniciativa je suítica que começou por volta da época da morte de Teilhard. Assim co mo Teilhard preenchera o vazio dos suportes científicos para a nova teologia de George Tyrrell, S.J., a Teologia da Libertação — defendida em grande parte por jesuítas latino-americanos — fornecia um objetivo tangível para as novas teorias de Pierre Teilhard de Chardin, S.J.: a liquidação do imperialismo econômico capitalista e transnacional (o que quer dizer americano). E aqueles mesmos jesuítas proporcionaram, também, um espaço real para experimentos com a instalação e o fomento da “nova Humanidade”: todos os países da

América Latina e do Terceiro Mundo.

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15. A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

O lhando para a Sociedade de Jesus de fora, à época da morte de Teilhard de Chardin em 1955, qualquer pessoa ficaria impressionada, sem dúvida, com os sinais de seu vigor, do número de membros ainda crescente à sua influência cada vez mais ampla no mundo inteiro.

Lá dentro, porém, a bruta realidade era que o “senso de missão” jesuítica

— aquela notável e mesmo explosiva mistura inaciana de con templativo em ação que havia tornado a Sociedade da Força de Ocupa ção Rápida da Igreja — já não podia ser satisfeita dentro dos moldes tradicionais.

O tomismo, o sistema oficial de teologia e filosofia da Igreja Católi ca Romana, já era, no pensamento de muitos — jesuítas e não-jesuítas —, um sistema tão estéril, tão morto e tão dissecado quanto a cratera lu nar de Copérnico. Tyrrell e Teilhard tinham sido punidos, em parte, por dizerem que a Igreja devia jogar fora toda a velha bagagem da filosofia escolástica medieval. Mas há muito tempo antes de eles entrarem em cena — de fato, desde a Reforma do século XVII — os inimigos da Igreja haviam transformado o seu obstinado uso do tomismo numa ultrajante acusação contra ela.

Na década de 1950, as insatisfações e as expectativas da outrora dis creta e oculta “fraternidade da clandestinidade” haviam-se espalhado por todo canto. Dada a longa tradição de contato íntimo e correspondência entre os jesuítas, e o fato de Tyrrell e Teilhard, duas das figuras modernas mais recentes e importantes da “fraternidade”, serem jesuítas, talvez a Sociedade não pudesse

ter como escapar a uma desgastante convicção de que as coisas tinham que mudar.

Com essa decisão mental como pano de fundo, a única dificuldade verdadeira para os jesuítas com a poesia teórica e com as profecias quiméricas de gênios como Teilhard era que elas ainda deixavam tudo tort urantemente no ar. Teorias e especulações eram muito boas; formavam uma fascinante nuvem de tons brilhantes envolvendo-lhes a cabeça, segurando-lhes o coração. Mas não lançavam luz alguma sobre como todas as

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ótimas ideias podiam ser implementadas de forma concreta. Elas simplesmente não eram práticas.

Por outro lado, a atração daquelas especulações e teorias estava em que elas tinham conseguido um certo pé de apoio nas mais remotas — ainda que manchadas — margens de respeitabilidade. Não era que humanismo ou modernismo de qualquer tipo fossem aceitos pela Igreja; não era. Era mais uma questão de sua própria tenacidade. Àquela altura, o humanismo, de uma forma ou de outra, tinha uma longa e bem estabelecida tradição que recuava para além de Tyrrell, ao século XVIII — ao catolicismo liberal na França associado a nomes que todo jesuíta conhecia, como Robert de Lamennais, Marc Sagnier e Emmanuel Mounier. A enorme importância de Tyrrell foi, precisamente, pelo fato de ele se recusar a continuar na clandestin idade; ele insistia em subir à superfície. Qualquer que tenha sido o custo disso para ele, do ponto de vista pessoal — e aquele sacrifício tinha certo apelo romântico próprio, na tradição jesuítica —, ele foi o primeiro humanista da Igreja Católica Romana a se revelar ao público e a se recusar a ser silenciado.

A atração de Teilhard de Chardin foi outra coisa, e sua importância foi de outro tipo. Para muitos jesuítas, ele passou a ser visto, sob certo sentido, como o novo Inácio, o homem que eles estavam esperando durante aquela época de transição que tanto se parecia com a de Loyola. Porque como Inácio, Teilhard descobriu toda uma nova maneira de falar com o mundo. Como Inácio, ele deu toda uma nova mentalidade aos jesuítas e aos líderes intelectuais de sua época.

Teilhard havia completado seu trabalho seminal mais importante na década de 1920. Durante trinta anos, com ele ainda vivo, jesuítas em seminários do mundo inteiro usaram seu vocabulário, por arcano que fosse, e suas teorias, por obscuras e difíceis que fossem, para explicar tudo.

E mais, Teilhard, ao contrário de Tyrrell, conseguira permanecer na Sociedade de Jesus e não fora proibido de receber os Sacramentos da Igre ja. As tentativas do padre-geral jesuíta Janssens para mantê-lo sob controle não eram segredo; o fato de essas tentativas fracassarem coroava o trabalho de Teilhard com uma vitória tácita que o humanismo nunca obtivera em sua longa e, na maior parte, oculta luta com a Igreja hierárquica de Roma.

Na esteira do impressionante trabalho de Teilhard na década de 1920 e na quase-respeitável tradição do catolicismo liberal francês, surgiu ou tro francês na década de 1930 — o filósofo católico Jacques Maritain. Maritain escreveu um dos mais influentes livros dos crescentes anais do humanismo. Humanismo

integral, foi o título que ele deu ao livro; e nele codificou o chamamento humanista da “fraternidade” à Igreja Católica Romana para que se identificasse

com as aspirações revolucionárias das esforçadas massas da humanidade. Para Maritain, o grito da Revolução Francesa — Liberdade! Igualdade!

Fraternidade! — foi “a erupção do pensamento cristão na ordem

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política”. A esquerda política, para Maritain, representava tudo o que era da

maior significação do ponto de vista histórico. De fato, Maritain adotou uma espécie de teologia da história, como se poderia chamá -la, baseada na filosofia marxista: a verdade religiosa se encontrava exclusi vamente nas massas do povo.

Embora muitos anos depois Maritain renegasse o desafio de Humanismo

integral, na época ele foi rapidamente adotado e abertamente imi tado mesmo dentro da hierarquia da Igreja. De fato, nada menos do que uma pessoa da estatura do arcebispo Giovanni Battista Montini — o futuro papa Paulo VI, que iria sofrer tanto em suas confrontações com os jesuítas — escreveu cortesmente o prefácio para a edição italiana de Humanismo integral. Montini continuou um ardente admirador de Maritain a vida toda, fato que um dia teria consequências que iam muito além da Sociedade de Jesus.

Apoiando-se nos ombros dos grandes inovadores humanistas, homens menos importantes causaram seus efeitos. Houve, por exemplo, o padre dominicano Chenu, um tanto mais moço do que Teilhard e aluno dele, que mais tarde ensinava a seus alunos que o progresso visível e aparente mente irresistível do socialismo estava criando “uma comunidade da hu manidade que se torna a própria substância do crescimento da comunidade da graça de Deus em Cristo”.

Outro dominicano, padre Congar, contemporâneo de Teilhard, fez melhor do que seu irmão dominicano Chenu. Para Congar, o cristianismo não podia cristianizar a humanidade — a coletividade dos povos do mundo — sem se tornar aliado político do povo. Para ele, cada passo de progresso temporal no mundo secular, cada povo que se libertava do domíni o da direita ou dos capitalistas, representava um passo no desenvolvimento do Reino de Deus. A Igreja tinha que se tornar o sacramento universal da nova salvação cósmica que estava sendo introduzida no mundo do homem, não por uma graça sobrenatural, mas pelos esforços materiais do homem para melhorar sua posição econômica e social.

Não há a mais ligeira dúvida de que a corrente oculta do modernis mo, fluindo pelos subterrâneos desde o século XVIII e alargando-se cons-tantemente século XIX adentro até que George Tyrrell forçou uma saída para ela, à semelhança de um gêiser, percorreu um caminho muito longo para fermentar os espíritos e preparar para a mudança as mentes que es tavam na expectativa. Mudança rápida. Mudança profunda. Mas o mo dernismo dos humanistas integrais criou uma fome crescente para cuja satisfação ele ainda não conseguira encontrar meio. À medida que o au toritário pontificado de Pio XII (1939-58) chegava ao fim, e depois de 29 anos sob o comando de seu padre-geral de mão de ferro, Wlodzimierz Ledóchowski (1915-44) e do reinado igualmente autoritário do predecessor de Pio, Pio XI (1922 -39), a inquietação na Sociedade tornou-se quase palpável. O problema que Teilhard não atacou, o problema de um objetivo prático e de uma arena prática onde persegui-lo, era como uma terrível coceira que ninguém aprendera a mitigar.

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Houve experimentos promissores e experiências com uma nova mis são, mesmo sob Pio XII. O projeto do padre operário dos anos pós -II Guerra Mundial foi um deles. Houve simpósios e diálogos ocasionais com os marxistas. Mas nada disso atendeu à necessidade.

Porque a necessidade era: não ser mais diferente e não ficar mais afas tado do grande mundo lá de fora, não ser mais uma elite em separado. A necessidade era: integrar-se com a humanidade, ser uma parte ativa e efetiva da luta do homem para ser ele mesmo. E a necessidade era: um catalisador que tornasse isso possível.

De repente, segundo parece, sem se fazer acompanhada de nenhum acontecimento espetacular ou deslumbrante, e tão di scretamente quanto um floco de neve caindo, surgiu a América Latina. É claro que ela estive ra sempre ali, o tempo todo. Mas só no início dos anos sessenta foi ela notada em toda a sua deplorável nudez, seu triste ressentimento, seu entristecedor protesto e súplica comovedora de que, finalmente, alguém tinha que se interessar, alguém tinha que aliviar a miséria endêmica de mais de 300 milhões de homens, mulheres e crianças.

De imediato, a América Latina foi como um meteoro espalhando luz, enchendo mentes e corações, afinal, com aquele fluido mágico chamado “missão”. Acima de tudo, ela revelava bem perto a única coisa que esti vera faltando a todas as teorias e conjecturas modernistas de humanismo secular: uma ocasião verdadeira para a práxis — uma maneira concreta para acertar o passo com o mundo; para converter o mundo; para fazer parte do mundo. A “missão” era, agora, pragmaticamente possível.

As vozes que responderam àquele apelo — e que definiram a nova missão — foram, no início, locais e díspares. Mas em pouco tempo se reuniram num coro em voz alta e fundiram-se no que passou a ser chamado de Teologia da Libertação. Quase antes de receber um nome, porém, ela se espalhou como fogo, incendiando as mentes de muitos, antes de tudo na América Latina, mas espalhando-se rápido pela Ásia, Índia, Coréia do Sul, Taiwan e a África subsaariana. No início da década de 70, ela já havia invadido seminários teológicos dos Estados Unidos e da Europa. Em muito pouco tempo, até mesmo os grupos de pressão política uniram-se ao coro em contente harmonia.

Há uma crença comum em que a Teologia da Libertação começou em 1973 com a publicação do livro Uma teologia da libertação, escrito por um padre jesuíta peruano, Gustavo Gutierrez. Há certo apelo român tico nessa ideia, em especial porque colocaria mais outro jesuíta no pan teão dos libertadores, ao lado de Tyrrell e Teilhard — um terceiro jesuíta a erguer bem alto a chama do humanismo secular.

Aqueles que são menos românticos, porém, ou que conhecem um pou co melhor a história da Teologia da Libertação, poderão salientar que a obra de Gutierrez foi inspirada por uma conferência de bispos latino-americanos realizada em 1968 em Medellín, perto de Bogotá, na Co lômbia, onde os delegados deram destaque à situação dos pobres e à n ecessidade de se remediarem suas condições, que eram horríveis.

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De qualquer modo, quaisquer que sejam os detalhes, a crença comum — mesmo entre muitos teólogos da libertação — é de que a Teologia da Libertação é, por natureza, origem e propósito, um produto da situação latino-americana. De fato, pode-se compreender a necessidade de uma ideia dessas; de que outra forma Fernando Cardenal e seus irmãos sacerdotes na política na América Latina poderiam cobrir de escárnio, com um efeito tão popular, a Roma “alienígena” e seu papa “alienígena” e a Igreja “europeia” do papado?

Apesar de tudo, é muito mais correto dizer que a América Latina serviu de laboratório vivo para experiências com as várias teorias e fór mulas que se reuniam sob o nome de Teologia da Libertação; que a inspiração da Teologia da Libertação, sua formulação primordial, e seus principais defensores eram todos europeus;1 e, por fim, que seus mais dedicados propagandistas eram norte -americanos, em especial jesuítas e os religiosos Maryknoll. Foi a Congregação Maryknoll, de fato, que fundou a Orbis Books, a principal fonte editora para a grande quantidade de livros simpáticos e parciais sobre o assunto.

Em essência, a Teologia da Libertação é a resposta àquele chama mento dirigido à Igreja codificado tantos anos antes por Maritain — para que se identificasse com as esperanças revolucionárias das massas. A diferença, talvez, se é que existe, é que enquanto Maritain adotara uma teologia da história baseada numa interpretação errada da filosofia marxista, os teólogos da libertação adotaram uma teologia de política baseada em táticas soviéticas. Em essência, os propagadores da Teologia da Libertação pegaram a corrente de pensamento teológico desenvolvida na Europa e aplicaram-na à situação muito concreta da América Latina. De repente, a teoria teológica e filosófica se transformou em propostas pragmáticas e programas reais para alterar a face de todas as instituições sociais e políticas da América Latina.

O apelo da Teologia da Libertação era dominante para os jesuítas. Sua atração estava nas promessas diversas que fazia.

Uma primeira promessa era livrar a mente católica do passado anti quado e dos restos teológicos. A Teologia da Libertação voltou as costas para todo o campo da Teologia Escolástica, inclusive para o que era bem fundado em Maritain. Não baseava seu raciocínio nos ensinamentos papais, na velha tradição teológica da Igreja, ou nos decretos dos concílios ecumênicos da Igreja.

Na verdade, a Teologia da Libertação se recusava a começa r de onde concílios e papas sempre haviam começado: com Deus como Ser Su premo, como Criador, como Redentor, como Fundador da Igreja, como Aquele que havia colocado entre os homens um vigário que era chamado de papa, como o Supremo Recompensador do Bem e Punidor do Mal.

Em vez disso, a premissa básica da Teologia da Libertação era “o povo”,

às vezes realmente “o povo de Deus”. “O povo” era a fonte de revelação

espiritual e autoridade religiosa. O que importava, na teologia,

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era “o povo” no presente, nas realidades sociais, políticas e econômicas do mundo material que evoluía. A “experiência do povo era a matriz da teologia”,

era a frase consagrada. De um só golpe, portanto, a Teologia da Libertação aliviou mentes

preparadas e inquietas de toda uma gama de conceitos, dogmas e processos mentais antigos governados pelas regras fixas do raciocínio tomista, e das diretrizes da voz autoritária de Roma. Os teólogos ficaram livres das antigas censuras formais e da mentalidade na base de discutir quan tos anjos podem dançar na cabeça de um alfinete. De fato, a Teologia da Libertação não era uma teologia no sentido católico romano da palavra. Ela não tratava, primordialmente, de Deus, da lei de Deus, da redenção de Deus, das promessas de Deus. A Teologia da Libertação estava interessada em Deus revelado hoje através dos povos oprimidos. Em Deus puro e simples, praticamente falando, nenhuma Teologia da Libertação autêntica estava interessada.

A segunda promessa da Teologia da Libertação era ainda mais emo-cionante do que a liberdade da teologia de Roma. Era a promessa da al mejada participação na Nova Humanidade; no novo mundo que surgia em volta dos homens neste limiar de uma nova era no século XX. Era a promessa de evolução com as condições de homens e mulheres que evoluíam; de mudança fundamental com a sociedade do homem que se achava fundamentalmente em mutação. Eram os modernistas — Tyrrell, Teilhard, Duchesne e todos os demais — trazidos finalmente para o mundo prático da realização visível.

Ambas essas promessas — liberdade da teologia antiquada de Roma e participação, com “o povo de Deus”, do empreendimento da evolução e da

revolução sociais — estavam encerradas no termo libertação. Não passou despercebido por Gutierrez, seus simpatizantes e defen sores,

o fato de a própria “libertação” ser um tradicional termo católico; ou que o seu

significado católico sempre tinha sido uma liberdade daque las deficiências morais que evitavam que um indivíduo agradasse a Deus e conseguisse a vida eterna. Primordialmente, segundo o ensinamento tradicional católico, Cristo efetuara essa libertação através de seus sofrimen tos, sua morte e sua ressurreição. Por tradição, em outras palavras, a libertação é uma libertação espiritual de indivíduos, grupos, nações, raças e todos os seres humanos, de modo que todos fiquem em condições de atingirem a vida eterna com Deus após a morte.

A libertação da nova teologia, por outro lado, era especificamente ficar livre da opressão política, da carência econômica e da miséria aqui na Terra. De modo ainda mais específico, era ficar livre da dominação política pelo capitalismo dos Estados Unidos.

Aos olhos dos teólogos da libertação, a carência endêmica e a misé ria da América Latina, juntamente com o seu domínio político por líde res de mão-forte e oligarquias monopolísticas, eram culpa direta do capitalismo. Do capitalismo americano. O objetivo mais específico, imediato e prático da Teologia da Libertação, portanto — o centro mesmo

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de sua “missão” — tornou-se a libertação dos latino-americanos da opressão por parte do domínio ianque transnacional, capitalista.

Mesmo antes de o jesuíta Gutierrez escrever Uma teologia da libertação, essa nova ideia “teológica” de libertação era baseada na análise que Karl Marx

fizera da situação sócio-econômica e política do que ele chamava de “o

proletariado do mundo”. A preocupação de Marx era com a mão -de-obra com seu valor e seus direitos. As massas — o proletariado — nada possuíam a não ser o valor de seu trabalho, e eram obrigadas a trabalhar sob o controle da elite capitalista, a minoria, e com matérias-primas a ela pertencentes. Para Marx, a tarefa histórica do proletariado era lutar contra os capitalistas e livrar o povo de sua opressão.

A “missão” da Teologia da Libertação, em outras palavras, era a “luta de

classes” de Marx. A batalha que a Teologia da Libertação dizia a seus devotos

que lutassem e vencessem não era a batalha inaciana dos seguidores de Cristo contra o Inimigo, mas a batalha de uma classe mundial de homens e mulheres contra as armadilhas do capitalismo. Como teólogo da libertação, a sua “opção

preferencial pelos pobres” engajava-o como defensor dessa classe que luta com dificuldades. Como teólogo da libertação, seus aliados mais próximos, mais organizados e mais amplamente espalhados eram os comunistas e os marxistas. “A face humana do marxismo”, como dissera Teilhard de Chardin, lhe

prometia “a esperança da vitória.” A associação da Teologia da Libertação

com os marxistas metia você, de imediato, no supremo problema político do mundo de hoje: a interminável rivalidade entre os Estados Unidos e a União Soviética. A Teologia da Libertação era teologia que passara a ser geopolítica.

Para a mente religiosa já fermentada pela doutrina do humanismo integral, era a situação perfeita. O que é que aqueles continuados levantes envolvendo as massas dos pobres em países do Terceiro Mundo e os empresários capitalistas podiam significar, a não ser que uma Nova Hu -manidade se esforçava por surgir no processo evolucionário em direção ao Ponto Ômega de perfeição? A Teologia da Libertação colocava você na parte mais ativa de tudo aquilo! Que movimento melhor, mais amplo e humanisticamente mais santo do que este ao qual aderir?

Estava chegando uma nova era, tal como Tyrrell e Teilhard sempre disseram. Mas a teologia católica romana oficial — o tomismo e tudo o mais — não propunha práxis alguma, nenhum meio prático de resolver problemas sócio-econômicos. Não havia uma “missão” prática específica para “a

realidade latino-americana” em toda aquela antiga teologia, diziam os novos teólogos. Os conceitos e as palavras que eles usassem, fossem quais fossem, tinham que ser ditados por aquela “realidade latino-americana”.

Como “o povo” era a fonte da nova “teologia”, e como “o povo”

autorizava crenças religiosas e atos consagrados, que função restava a uma hierarquia “alienígena” de bispos e de seus subordinados sacerdotes, com

compromisso com alguém que morava na Itália? Que função restava a

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um “papa alienígena”? Com toda certeza não era a de lhe dizer se o que você fazia era bom ou mau. Com toda certeza não era lhe falar sobre o que Cristo deseja. “O povo” sabe o que Cristo deseja, sabe em que deve acreditar, sabe o

que deve fazer. A teologia consistia, agora, em observar e ouvir “o povo”. Ao longo do caminho de desenvolvimento da Teologia da Libertação

acontecera uma escamoteação. Desinformação é o termo delicado atual para designar o processo.

Teilhard de Chardin sabia que não estava falando de qualquer coisa remotamente semelhante à doutrina tradicional da Igreja; foi por isso, em parte, que ele teve que inventar o seu complexo e idiossincrático voca bulário. Gutierrez e os outros teólogos da libertação, ao contrário de Tei lhard, acharam mais eficiente e atraente cooptar o tradicional vocabulário católico romano, mas dar a todos os termos um novo significado anti -romano e simultaneamente anticapitalista.

A “opção preferencial pelos pobres”, por exemplo, segundo a expli cação dada por Gutierrez e pelos outros, era baseada na preferência de Cristo pelos pobres, sua preferência pela classe trabalhadora contra a rica. Afinal, Cristo desancou mesmo os ricos. E ele era pobre — “o Filho do Homem não tem onde

recostar a cabeça, enquanto que até mesmo os pássaros do ar têm ninhos e as raposas têm suas tocas”. E não era mais fácil um camelo passar pelo pequenino buraco de uma agulha do que um homem rico — um capitalista — entrar no Céu? E está lembrado de Lázaro, o vagabundo aniquilado pela doença da parábola da salvação do próprio Cristo? Qual dos dois finalmente d escansou no seio de Abraão, e qual aquele que foi torturado na ponta da chama do Inferno?

A atraente e até convincente escamoteação, aqui, consistia de dar ao termo bíblico pobre o mesmo significado que Marx e os marxistas tinham dado ao termo proletariado. Mas isso era tão válido quanto dizer que o que Júlio César queria dizer quando falava sobre ballista era o mesmo que queremos dizer quando falamos de um míssil balístico moderno.

Cristo nunca destacou o proletariado com uma opção preferencial a favor dele. Cristo não agiu com base em teoria sociológica alguma so bre a desigualdade econômica e a oposição política entre classes. Ele não visava a nenhuma revolução armada, nenhuma libertação política. Não tinha maior opção preferencial pelos pobres a ponto de haver uma exclusão positiva — à força ou por outro meio qualquer — dos abastados, do que tinha uma opção preferencial pelas criancinhas a ponto de excluir os adultos.

A opção de Cristo era pela divindade, pela piedade, pela inocência, pela humildade, e pela fidelidade à lei de Deus, onde quer que ele a en contrasse — no pobre ou no rico; na criancinha ou no velho; em seus ami gos ricos como Nicodemos, José de Arimatéia, Lázaro e suas duas irmãs, Maria e Marta; em seus amigos pobres como Zaqueu e Bartimeu, o mendigo cego, ou qualquer um de seus doze Apóstolos.

Porque Cristo era um salvador de pecadores, não um líder secular.

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Não era a pobreza ou a riqueza que tornava ou torna você agradável aos olhos de Cristo. Era o que você fazia na sua pobreza ou na sua riqueza

— que tipo de moralidade você praticava, quais as crenças que você ali -mentava.

Na realidade, a Teologia da Libertação é uma transformação, mais rápida do que os olhos, de uma guerra espiritual numa luta sócio -política; e — se necessário — numa guerra revolucionária armada contra o capitalismo.

É uma transformação insinuada por Teilhard em sua teoria do ho mem que se esforça para evoluir até o Ponto Ômega mediante a obtenção da completa “hominização”, para que pudesse passar para o “Ultra - Humano”. De fato, os teólogos da Libertação foram aqueles que final mente conseguiram dar um significado prático a todos aqueles conceitos quiméricos de Teilhard de Chardin.

Mas isso teria sido de pouca utilidade entre as massas comuns de fiéis, não tivessem os novos “teólogos” conseguido também transpor o signi ficado de todos os termos-chave usados para transmitir as verdades e os ensinamentos básicos do catolicismo romano tradicional. Nos trabalhos escritos por eles, pode-se ver a maneira rápida e hábil com que isso foi feito.

A Igreja tornou-se “o povo de Deus”, não a Igreja hierárquica de Roma.

Pecado não é primordialmente pessoal; é social, e quase exclusi vamente a injustiça e opressões devidas ao capitalismo. A Virgem Maria é a mãe de um Jesus revolucionário — na verdade, de todos os revolucionários que procuram derrubar o capitalismo. O Reino de Deus é o estado socialista do qual a opressão capitalista foi eliminada. Sacerdócio é o serviço prestado por um indivíduo (o sacerdote) que constrói o socialismo, ou é “o povo de Deus” que faz sua

adoração de acordo com seus gostos. A lista dessas expressões católicas adaptadas pode ser do tamanho que se quiser. Porque todo e qualquer termo católico sobre piedade, crença, ascetismo e teologia é encampado pelos teólogos da libertação.

O refinamento desses termos cooptados permite deformações engra çadas e distorções horríveis do catolicismo romano, como quando a jun ta marxista da Nicarágua chama sua turba de arruaceiros armados de “las turbas divinas”.

Fundamentalmente, entretanto, esse uso do vocabulário católico romano, por mais carregado que estivesse de uma profunda atração para os fiéis, proporcionava legitimidade para o plano mundano do futuro que não poderia ser obtida de outro modo. Usado com inteligência, o novo léxico “teológico”

não apenas justifica como determina o uso de quaisquer meios — inclusive a violência armada, tortura, violação de direitos humanos, fraude e profundas alianças com forças professamente ateístas e anti -religiosas como a URSS e a Cuba de Fidel Castro — a fim de conseguir a “evolução” do marxismo e sua

promessa de sucesso material. Sem a corrente desenvolvida de pensamento modernista por trás de les, e sem os modelos de jesuítas como Tyrrell e, acima de tudo, Teilhard,

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é duvidoso que os jesuítas pudessem ser conquistados com tanta facilidade, se chegassem a sê-lo, por aquelas duas promessas da Teologia da Li bertação — liberdade dos pequenos Césares de Roma com suas fórmulas abstratas, decisões jurídicas e hierarquia tradicional; e l iberdade para aderir à mudança da estrutura fundamental da sociedade humana.

No entanto, uma vez que os jesuítas admitiram a atitude de que toda teologia anterior era apenas especulação, e uma especulação inútil, no que dizia respeito à América Latina, deixou de existir toda a necessidade de estudar o tomismo e as tradicionais Teologia Escolástica e filosofia nos seminários jesuíticos. Consequência imediata foi que sacerdotes e teólogos em formação na Sociedade de Jesus foram afastados, por dois atos elimi natórios, dos ensinamentos, da linguagem, da tradição e das devoções da Igreja.

Primeiro, todos os livros didáticos, manuais, tratados doutrinários e outros instrumentos da “velha teologia” foram julgados obsoletos e de veriam ser jogados fora. Os livros didáticos padrão sobre regras e problemas morais, bem como reconhecidos textos autorizados sobre teologia da Igreja e assuntos bíblicos, foram todos abandonados, às vezes até jogados fora ou queimados.

Segundo, porque “o povo” não era a “fonte” da “teolo gia”, os jesuítas começaram a recuar da hierarquia tradicional da Igreja. Com voto ou não, o que é que poderia significar ainda a lealdade ao papado e suas prerrogativas? Como disse o jesuíta Fernando Cardenal, seu sacerdócio teria perdido o significado se ele não resistisse às ordens do papa e não continuasse sendo membro da Junta marxista da Nicarágua.

A ascensão e o desenvolvimento da Teologia da Libertação e a res posta extraordinariamente favorável do clero — e notadamente dos jesuítas — deram à Igreja Católica Romana um prejuízo doloroso e caro não apenas no chamado Terceiro Mundo de países subdesenvolvidos, mas também no Primeiro Mundo de países desenvolvidos.

O gênio de Inácio de Loyola estava no fato de que ao enfrentar o tição do humanismo de sua época, ele inventou uma maneira de sua Igre ja enfrentar as novas situações que haviam surgido em seu mundo do século XVI. Ao fazer isso, ele não abriu mão de nada dos Sacramentos católicos, da teologia, ou da lealdade a Roma. Apenas apresentou tudo aqui lo de uma maneira nova, resolvendo, assim, o dilema da Igreja.

Mas a conversão, nos nossos dias, dos jesuítas — na verdade, da So-ciedade de Jesus — à Teologia da Libertação significa que Roma perdeu os serviços da única organização que deveria ter -lhe oferecido uma solução para o problema da Igreja Católica nos países do Terceiro Mundo.

A perda e o dilema da Igreja podem ser parciais mas devidamente ilustrados pela situação na pequena Guiana.

Outrora colônia da coroa britânica conhecida como Guiana Ingles a, essa planície equatorial de 215.800 quilômetros quadrados com uma po pulação de 900.000 habitantes está encarapitada na costa nordeste da Amé rica do Sul. Em maio de 1966, Forbes Burnham levou esse pequenino país

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à independência com seu novo nome, Guiana. Em 1985, todos os setores do governo estavam em acentuada decadência. A população e a econo mia sofriam de monopólios governamentais, fuga de elementos de alto nível, fraude e corrupção nos altos cargos, e perturbações sociais. Os mé todos totalitários do governo Burnham e a presença de “assessores” cubanos e do leste europeu provocavam estagnação, descontentamento e escassez generalizados. Muita gente morreu de fome num país em que os salários eram, de modo geral, inferiores a três dólares por dia, onde um pão de fôrma custava seis dólares, e onde havia uma quase total falta de serviços médicos essenciais. Mas nesse país em que o povo sofre de opressão política e privação social, não se tem notícias dos teólogos da libertação. A Guiana não é apontada como exemplo de um povo que precisa de “libertação”. Por quê?

Que os teólogos da libertação preferiram não aplicar suas respostas na Guiana é explicado por dois fatos simples: primeiro, o governo de Bur nham já é um governo marxista. E, segundo, os problemas que atormentam a Guiana também atormentam a Nicarágua, onde a Teologia da Libertação, com sua base marxista, seu contingente clerical de colaboradores e sua “missão” ideológica

da luta de classes, é um evidente fracasso segundo todos os padrões econômicos e políticos, enquanto que, segundo os padrões teológicos, religiosos e morais, ela é um desastre.

Por outro lado, tem havido virulenta oposição a Burnham nas igre jas principais da Guiana, que do ponto de vista religioso é primordial mente uma nação anglicana. A diocese católica romana de Georgetown, a capital, tinha cerca de 104.000 membros em 1985, distribuídos entre 25 paróquias e servidos por cinquenta sacerdotes. Oito destes sacerdotes eram diocesanos; os demais 42 eram membros de ordens religiosas. Havia, também, 43 irmãs, seis irmãos religiosos e dois seminaristas. O vigário-geral da diocese era um jesuíta, padre Andrew Morrison, que era nascido na Guiana. Morrison publicava um jornal chamado The Catholic Standard.

À medida que a economia do país declinava e a opressão do governo aumentava, Morrison achou que estava diante de uma opção clássica. Ele podia deixar de publicar o que outros meios de divulgação, por medo, não publicavam. Ou poderia fazer com que The Catholic Standard servisse de conduto nacional de um retrato fiel da devastação que estava sendo infligida à economia da Guiana pelo governo totalitário de Burnham. Mor rison escolheu a segunda opção — “o papel que fomos forçados a representar”, como ele

próprio comentou. The Catholic Standard tornou-se, portanto, o jornal da oposição no sentido

político clássico. Abordava assuntos econômicos e políticos — o moinho de trigo de dez milhões de dólares que estava ocioso; a produção de verduras; a criação de vacas leiteiras; controles de salários; mercado de emprego; fraude em eleições; corrupção no governo. Essa postura de oposição é corajosa; já custou a vida do colega jesuíta de Morrison, padre Bernard Darke, que foi morto a facadas na rua, por membros de um estranho grupo com ares de cul to que se intitula “A Casa de Israel” e

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apoia Forbes Burnham. A postura também é manifestamente política — uma dentre muitas que os teólogos da libertação podem apontar para jus tificar seu envolvimento político.

Ainda assim, para falar a verdade, que out ra coisa a diocese de Georgetown e seu vigário-geral, Morrison, poderiam ter feito, a não ser torna -rem-se a oposição? Pregar a doutrina? Aconselhar paciência? Batizar, absolver de pecado, preparar para a morte... e só isso?

A Igreja Católica Romana não tem uma resposta pronta para um dilema desses; e nem os jesuítas nem outra pessoa qualquer na Igreja Ro mana estão assumindo a direção para encontrar a resposta. A resposta jesuítica é, invariavelmente, política. Se The Catholic Standard não disser o que pensa, ninguém irá dizer. Mas, por omissão, isso deixa a dioce se de Georgetown e seu vigário-geral Morrison metidos na política até à cintura.

O fato de que mesmo sacerdotes bem-intencionados se veem atraídos de forma irresistível para a política não é, entretanto, todo o dilema. É pouco provável que se trate de uma situação sem precedentes. 2

A verdade dos fatos é que, enquanto a Igreja Católica Romana não diz e não podia dizer que tinha uma solução católica pronta para as situa ções econômicas e políticas do Terceiro Mundo, a Teologia da Libertação diz que tem. E o faz fingindo-se de católica romana; e desfilando um grupo de teólogos influentes que ainda são considerados católicos roma nos; e tomando emprestados o bom nome da Igreja e a atraente termino logia, liturgia e autoridade da doutrina da Igreja para fins sócio-políticos.

As táticas dos teólogos da libertação têm, assim, enorme atrativo para crentes leigos católicos, e ao mesmo tempo abrangem um útil e áspero estado de coisas em toda a Igreja, levando, assim, centenas de bispos, sacerdotes, religiosos e leigos a clamarem pela “missão” política por parte da Igreja e pelo

apoio dos clérigos para as soluções socialistas e marxistas. Estes são os dois chifres do dilema nos quais a Igreja Católica está se ndo

empalada, em especial nos países do Terceiro Mundo. A Igreja não tem solução econômica e política para a luta entre capi -

talismo e marxismo. É fato, a Igreja propõe uma pregação social como parte de sua evangelização; mas a solução da luta entre capita lismo e marxismo é uma questão de forças econômicas e poder político que exige jul gamentos prudentes de ordem prática. A Igreja não tem garantia de sabedoria, muito menos de infalibilidade, ao fazer esses julgamentos.

Este é um dos chifres do dilema. O outro chifre é proporcionado pelos teólogos da libertação. Apesar de

dois longos e oficiais documentos sobre a Teologia da Libertação emi tidos pela Congregação para a Doutrina da Fé, do Vaticano, e levando a sanção do papa João Paulo II,3 o Vaticano não conseguiu convencer o povo de que aquela Teologia da Libertação é uma impostura que suga a força de trabalho, a credibilidade e o bom nome da Igreja e, por fim, sua contínua existência.

O único caminho de fuga de um dilema, sempre disseram os dialéti cos

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jesuítas, é encontrar um terceiro caminho entre os dois chifres, por assim dizer. O papa João Paulo II vem tentando exatamente isso, mas até agora não conseguiu. Se os jesuítas do século XX fossem repetir a história de sucesso de Iñigo de Loyola e sua Companhia no século XVI, teriam encontrado aquele terceiro caminho de fuga do dilema e de solução para o problema central. Mas, como indicam todas as evidências, a solução jesuítica está no caminho da escolha entre capitalismo e marxismo, de aliar-se às forças revolucionárias marxistas — política e, se necessário, militarmente.

Os jesuítas de hoje não têm solução para a sua decadência consequente ou para as continuadas perdas da Igreja nos países do Terceiro Mundo. O gênio jesuítico — o carisma primordial de Iñigo e seus companheiros — não fez nenhuma contribuição que seja aceitável. Adotaram a Teologia da Libertação, que está sangrando a Igreja de sua força vital e dessecando o espírito do sobrenatural.

Os jesuítas foram, assim, empalados nos dois chifres do dilema. Como o cardeal Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé do Vaticano, observou na Instrução da CDF sobre a Teologia da Liber tação de 1984, com muitas frequência os revolucionários não têm respos tas para os problemas criados pela sua revolução.

Mesmo com suas linhas de propaganda bem assentadas e com a conivên cia de amigos ocupando altos cargos na Igreja e em governos seculares, inclusive o dos Estados Unidos, porém, a Teologia da Libertação não te ria tido chance alguma de sucesso e os jesuítas não teriam tido justificativa alguma para a adoção dela em massa pelos superiores da Sociedade, se não tivesse acontecido o Concílio Vaticano II.

Uma hábil utilização de certas afirmações ambíguas daquele concílio, juntamente com uma citação totalmente errônea das declarações do Concílio Vaticano sobre convicções católicas fundamentais, possibilitou que os propagadores da Teologia da Libertação alegassem a sanção da quele concílio a diretrizes que estão, sem dúvida alguma, liquidando a verdadeira fé dos católicos e entregando todo o poder aos inimigos ar dentes do catolicismo. É este o serviço prestado pela Companhia de Iñigo à Igreja Católica do final do século XX. A Sociedade tem usado o concílio para justificar seu giro de 180 graus, passando de sua missão como equipe de defensores papais e propagadores da doutrina católica romana oficial para uma organização dedicada a alterar a face do catolicismo romano tradicional e, inevitavelmente, a natureza política de muitas nações.

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16. O SEGUNDO CONCILIO VATICANO

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o dia 25 de janeiro de 1959, três meses depois da morte de Pio XII, o seu sucessor no Trono de Pedro, papa João XXIII, anunciou a surpreendente notícia de que iria convocar um concílio ecumênico (o 21º) da Igreja Católica Romana. Ele ser ia chamado de Concílio “Vaticano”, porque seria convocado para se reunir na

Cidade do Vaticano do papa. Seria chamado de “Segundo” porque

uma vez antes, no século anterior, havia sido realizado um concílio naquela cidade. Esperava-se que todos os bispos católicos comparecessem àquele segundo Concílio Vaticano.

O propósito declarado de João ao convocar o concílio era apresen tar as convicções do catolicismo romano numa forma atualizada, para que ficassem mais inteligíveis do que nunca para o homem moderno. E le também tinha a esperança de que com aquela atualização o mundo contemporâneo dos homens se sentisse atraído para a fé católica, em especial agora que Igreja Romana estava adotando uma posição concilia tória.

“Em todas as épocas”, disse João em sua proclamação, “a Igreja tem

resistido aos erros. Muitas vezes ela os tem condenado, às vezes com severidade. Hoje, entretanto, a Esposa de Cristo prefere o remédio da compaixão em vez das armas da severidade. Ela acredita que as necessi dades de hoje são atendidas da maneira mais apropriada por uma plena explicação do poder de sua doutrina do que pela condenação.”

Daí, continuou ele, seu concílio seria mais pastoral do que dogmático. Não haveria anátemas, não haveria condenações, apenas uma aber tura para o mundo, uma modernização da aparência da Igreja, “deixando intata a

substância da velha doutrina...” À luz da experiência, muitos têm pensado que essas palavras e ideias do

“bom papa João” retroagiam ao princípio de sua vida como o jovem padre e

professor de teologia Angelo Roncalli, quando havia, para dizer o mínimo, certa ambiguidade em suas ideias que levava alguns a desconfiarem que ele tinha tendências involuntárias para o modernismo. Sua car reira de professor romano tinha sido interrompida por causa dessas

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suspeitas. Apesar do fato de que, como núncio papal na Paris dos anos quarenta, foi ele que soou o primeiro alarma sério relativo ao trabalho de Teilhard de Chardin, João nunca chegou a compreender bem o rápido e sutil veneno que era o modernismo.

Ainda assim, a possibilidade de que seu concílio pudesse ser usado numa tentativa de propagar doutrinas e opiniões falsas não escapou ao cauteloso, desconfiado camponês de Bérgamo que tivera aquela rápida escaramuça com a catástrofe doutrinária no início da carreira. Para os que estavam próximos, ele mencionou realmente seus temores de que seu concílio fosse invadido por falsas doutrinas. Mas eles convenceram o pa pa de que, como ele mesmo disse depois, aquelas doutrinas modernistas “estão tão obviamente em con tradição com os princípios corretos e têm dado frutos tão aterradores, que hoje os homens rejeitam espontaneamente essas falsas doutrinas”.

Esta é a voz de Angelo Roncalli. Mas os sentimentos eram daqueles clérigos que eram mais íntimos de João XXIII no ano do concílio; e em par-ticular são os sentimentos do cardeal a quem João XXIII chamava de “o

primeiro fruto do Nosso Pontificado”, Giovanni Battista Montini, que em

poucos anos iria suceder a João no papado, como papa Paulo VI. Montini não estava sendo dúplice. Uma confiança e uma crença totalmente

irrealistas na essencial razoabilidade e bondade do homem eram um princípio daquela mentalidade que Montini havia adquirido de seu men tor francês, Jacques Maritain. Na verdade, o princípio foi desenvolvido ori ginalmente por Jean-Jacques Rousseau no século XVIII, com seu retrato quase teilhardiano do “nobre selvagem” intocado em sua bondade por uma cristandade corrupta e

corruptora, e sua crença no poder do homem para conseguir seus ideais por sua própria razão e sua própria natureza.

Tanto para ele próprio como para o assessor de João, a visão que Montini tinha da Igreja era de que ela devia representar um papel na “fra ternidade universal” do homem. Ela devia ser a “irmã mais velha”, a “inspiradora” de

coisas boas e belas. Devia ganhar a simpatia de seu “irmãozinho”, o mundo do

homem, deixando de ser intransigente, autori tária e isolada. Tinha que tornar a religião aceitável. Tinha que ser prática, não dogmática. No entanto, não se podia chamar um concílio ecumênico de “prático”. Portanto, que o chamassem

de “pastoral”. O concílio que foi reunido no dia 11 de outubro de 1962 realizou quatro

sessões separadas que duraram meses, espalhadas por um período de quatro anos. Quando a primeira sessão terminou, João já sabia, com o seu realismo de camponês, que “a substância da velha doutrina” de sua Igreja, que ele

acreditava que seria protegida, estava sofrendo um ataque violento vindo de dentro do próprio concílio; e sabia que não iria viver para defendê-la. Antes de ser reunida a segunda sessão, o papa João XXIII havia morrido.

Guiado por seus princípios sentimentais e por assessores seus que tal vez fossem menos sentimentais, Paulo VI chefiou o Vaticano II durante as três sessões restantes. Se Paulo era sincero — e era — também era profundamente ignorante e, do ponto de vista filosófico, da mais superficial

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compreensão. Por outro lado, a maioria dos bispos havia ido ao concílio com uma mentalidade quiescente e conservadora, pouco temperada pelo estudo teológico e pela reflexão. Quando o concílio chegou ao meio, porém, havia sido desenvolvido entre eles um consenso em favor de abrir tudo, exceto os pontos essenciais, à mudança e à adaptação.

Esse tempero do ponto de vista dos bispos foi realizado, principal mente, não em obediência às intenções originais de João ou porque eles compreendessem a visão que levara João a convocar o concílio, mas pela influência dos 280 peritos teológicos, ou periti do concílio, como eram chamados. Tratava-se, em sua maioria, de professores de teologia em vários seminários católicos; mais de três quartos deles vinham da Europa e da América do Norte. Um bispo escolhia um, dois, às vezes três teólo gos que conhecia e os levava para Roma, como seus assessores de teolo gia. A finalidade desses periti era suplementar a falta de conhecimento em teologia por parte dos bispos. Inevitavelmente, é claro, eles forma vam as opiniões dos bispos.

Além disso, os periti representavam seus bispos nos vários comitês, subcomitês e comissões que preparavam as minutas dos vários documentos que eram discutidos pelos bispos durante as sessões do concílio. Os periti também tomavam parte nas discussões informais que eram sempre mantidas fora do concílio; fizeram séries de palestras; redigiram trabalhos que firmavam posições. Tiveram, na verdade, enorme influência nos votos finais dados pelos bispos.

Os periti, portanto, foram os agentes perfeitos da mudança. Por tradição, foram escalados para o papel de “homens -cotovelo”, aqueles que se sentavam

ao alcance dos cotovelos de um bispo ou cardeal durante as discussões do concílio e garantiam que o grande homem em questão en tendesse as questões teológicas em jogo e respondesse a elas de forma cor reta. Durante o Concílio Vaticano II, eles exerceram uma influência onip resente e penetrante. Parece haver unanimidade entre estudantes do concílio de que esses periti do Vaticano II tinham, em sua maioria, uma disposição de espírito liberal -progressista.

Pode-se acrescentar, agora, olhando para trás, que muitos dos mais influentes periti — homens como Hans Küng e Edward Schillebeeckx — eram modernistas no sentido mais pleno da palavra. É evidente que am bos os tipos de periti estavam determinados a promover uma Igreja governada com uma liberdade maior, um relaxamento da tradicional exclusividade católica, e uma interpretação mais ambígua de doutrinas católicas básicas — em especial aqueles que salvaguardavam as prerrogativas do papa romano e a natureza da Igreja. Está igualmente claro que a “fraternidade” de modernistas entre jesuítas e outros foi, pela primeira vez em sua história, capaz de sair da clandestinidade e defender — às vezes com sutileza, através de uma linguagem ambígua, às vezes abertamente o ponto de vista que até então correra silenciosa e secretamente.

Algum dia, algum historiador dos assuntos do segundo Concílio Vaticano terá acesso a todos os documentos relevantes — a correspondência

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entre os periti, os trabalhos particulares fixando posições, os esboços de diretrizes — e poderá provar, sem sombra de dúvida, que o concílio de João XXIII foi objeto de um ataque combinado e, como se viu, bem-sucedido, por parte dos líderes modernistas entre os católicos romanos. Por que agora, isso continua sendo uma torturante conjectura justificada pelas provas que temos, mas não comprovada sem sombra de dúvida.

Como o concílio foi realizado sob a direção geral de Paulo VI, não apenas os periti mas praticamente todos os outros elementos da maquinaria do concílio — os debates formais, a franca resistência às autoridades do Vaticano, o apoio e a alimentação de cabalas, a contagem dos votos, a forte presença norte -americana — foram usados para dar a impressão, com uma insistência maior do que nunca, de que finalmente agora a Igre ja de Roma se tornara uma democracia parlamentar; que democracia parlamentar era sinônimo de verdade teológica católica e de virtude cristã; que o velho governo da Igreja “pré -Vaticano” acabara de uma vez; e que entrara um novo governo progressista.

Assim foram semeadas as sementes da revolta entre os próprios bispos. Só nos anos 80 a safra daquela semeadura iria começar a ser colhida, quando bispos de todas as partes tivessem começado literalmente a proclamar doutrina e redefinir dogma sem até mesmo um simples inclinar da cabeça em direção a Roma.

O objetivo modernista no concílio não era, porém, conseguir ascendência, maior poder ou independência para os bispos. A ideia era convencer uma maioria de bispos da ideia de que a Igreja deveria ser uma “Igreja em

mutação”, porque a cultura do mundo em torno da Igreja era uma cultura em mutação; convencer os bispos, em essência — embora ninguém admitisse isso publicamente com tantas palavras — de que o ponto de vista evolucionário de Teilhard deveria ser a sua estrela-guia.

Para fazer justiça aos bispos — e mesmo diante da eficiente “reeducação”

deles pelos periti — o concílio repetiu lealmente aquilo que a Igreja sempre ensinara sobre os pontos essenciais da fé. Ele foi magnífico em sua fidelidade à tradição católica romana. No entanto, em todos os demais pontos, atingiu um grau de ambiguidade e abrangência incoerente em todo o pensamento e textos de seus dezesseis documentos que depois veio se revelar calamitoso. 1

Os modernistas, e em especial aqueles que adotaram os princípios da Teologia da Libertação, têm tirado partido dessa ambiguidade com uma habilidade consumada. Embora tenham sido muitos e variados os usos e abusos infligidos a esses documentos e à mente dos bispos do concílio que votaram pela sua aprovação, os teólogos da libertação têm-se concentrado cm particular em três temas a serem encontrados nos documentos do concílio: a definição da Igreja; o significado de “povo de Deus”; e o papel e a função dos bispos na

Igreja. Por meio desses três temas — e do uso frequente de textos e citações truncados — os novos teólogos têm podido jus tificar três afastamentos radicais do catolicismo romano normativo.

Com relação ao primeiro tema, os bispos em concílio foram claros e insistentes quanto ao que entendiam por Igreja. Ela é, disseram eles,

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“uma realidade complexa que surgiu de um elemento divino e um ele mento humano’’. Há a visível “estrutura social com órgãos hierárquicos” (o humano);

e há o Corpo Místico de Cristo, composto de todos aqueles que são “transformados em um com a unidade do Pai, do F ilho e do Espírito Santo” (o

divino). O concílio foi repetitivo e firme: esses dois elementos — o conjunto visível e a comunidade espiritual — não constituem duas realidades separadas. Eles são unos e coextensivos.

Além do mais, acrescentou o concílio, o conjunto visível — o elemento humano da Igreja indivisível — subsiste na Igreja Católica Romana “que é

governada pelo sucessor de Pedro e pelos bispos em comunhão com ele”. Os

textos das discussões do concílio deixam claro que os bispos usaram de propósito a palavra latina “subsistit” para afirmarem com toda a força possível que há apenas uma Igreja de Cristo e ela é, concretamente, a Igreja Católica Romana. Em outro trecho, no mesmo contex to, o documento do concílio afirma a completa identificação da Igreja que Cristo fundou com a Igreja Católica Romana. O significado de subsistit é inequivocamente básico e simples; quer dizer “existe”, “é encontrado”. Este termo latino não é o equivalente do inglês

subsists, que adquiriu três ou quatro significados que não fazem parte do termo latino do qual se deriva o termo inglês.

Ou os teólogos da libertação modernistas eram latinistas medíocres, ou presumiam que todos os demais o fossem. Precipitaram-se sobre aquela palavra subsistit e deram-lhe um significado moderno mais adequado a seus propósitos. O concílio, insistiam os novos teólogos, não usou uma palavra como “is”, que na opinião deles significaria “está perfeitamente identificada com”. O concílio usou uma palavra, disseram os periti numa sutil tradução errada, que significa “subsistir”. Ora, isso, continua rem eles combinando seu erro de tradução com um erro dogmático, só pode ser um reconhecimento, por parte do concílio, de que, embora substancialmente a Igreja deva ser encontrada dentro da tradição católica romana, outras partes igualmente verdadeiras da Igreja de Cristo devem ser encontradas fora daquela tradição — lado a lado com ela, talvez, mas sem dúvida alguma fora dela.

Nas palavras de um franciscano de ideias modernistas, Alan Schreck, “a

frase [sic] ‘existe em’, que significa ‘está enraizada em, ou ‘vive den tro mas não está limitada a’ foi escolhida com cuidado. Ela significa que a única Igreja

verdadeira de Jesus Cristo é encontrada dentro da Igreja Católica mas não se limita a ela. Os bispos não disseram, de propósito, que a Igreja de Jesus Cristo é a Igreja Católica.”

2 Ou Schreck está precisando de um curso reparador de latim e de leitu ra de

documentos do concílio ou, como a Dama de Copas em Alice no país das

maravilhas, se contenta em redefinir tudo segundo a sua vontade. Qualquer que seja o ângulo de observação, os resultados de seu erro são sombrios; ignorância e redefinição formam o absurdo teológico. Porque o efeito dessa interpretação modernista foi reduzir, se não eliminar, a necessi dade de pertencer à Igreja Católica Romana. Acabou com a necessidade de qualquer

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pessoa se submeter ao pontífice romano até em questões de fé e de prin cípios morais, ou permanecer numa Igreja dominada pela hierarquia de bis pos, pois nem o papa nem os bispos iriam possuir qualquer coisa de valor exclusivo que não se pudesse encontrar em outro lugar qualquer.

Uma vez fixada e amplamente aceita essa interpretação do significa do de Igreja, ela estará pronta e conveniente para ser usada como parte do “espíri to do Vaticano II”. Ela se torna a justificativa, “pelo Vaticano II”, da

desobediência aos desejos do papa; dos desvios doutrinários dos ensinamentos papais; do fato de a pessoa pertencer a outras igrejas; e de uma série de outras mudanças que podem se tornar úteis à medida que a “evolução” continuar.

O teólogo da libertação se desloca rapidamente para o segundo tema dos documentos do concílio, a fim de amparar sua reivindicação de liberda de dos desejos e dos ensinamentos papais — o tema do “povo de Deus”. Neste caso, ele talvez esteja pisando terreno ligeiramente mais firme porque, sem dúvida alguma, a frase o povo de Deus é um termo usado com frequência em textos do concílio para se referir à Igreja. Ele aparece nada menos do que oitenta vezes como descrição da Igreja, enquanto que o Reino de Deus só é usado dezoito vezes para descrever a Igreja. Apesar de tudo, aqui também, entra em ação uma redefinição do significado dado pelos bispos.

O concílio foi perfeitamente claro sobre o que pretendia com o uso d e “o

povo de Deus”. Todos os homens, disse o concílio, são convocados a pertencer ao “povo de Deus”; mas só aqueles que sejam “plenamente incorporados à sociedade da Igreja, que aceitam todo o seu sistema (...) e estejam unidos a ela como parte de sua estrutura visível e, por meio dela, a Cristo que reina através do supremo pontífice e dos bispos” pertencem de verdade ao “povo de Deus”.

Além do mais, segundo o concílio, “os laços que unem os homens à Igreja de

maneira visível são a profissão da fé, os Sacramentos, e o governo e a comunhão eclesiásticos”.

Apesar dessa declaração nítida, os teólogos da libertação aproveita ram-se da expressão o povo de Deus e têm tido sucesso enorme ao dar a ela um significado carregado de acrimônia contra a Igreja tradicional, hierárquica. Os novos teólogos enfatizaram o que o concílio também disse sobre a fé e os carismas dos fiéis comuns; depois, vincularam ao termo o povo de Deus um significado sociológico aproximadamente equivalen te a proletariado, tal como usado na análise marxista. Mais rápidos do que um piscar de olhos, conseguiram proclamar a autonomia e a independência desse novo “povo de

Deus” em relação ao papa e à hierarquia da Igreja. Com sua fé e seus carismas

proclamados pelo próprio concílio, “o povo de Deus” era tido como autônomo

quanto a crença religiosa, prática moral e vida sócio-política. De imediato, outro elemento do muito invocado “espírito do Vati cano II”

se encaixa no lugar. A ascensão das comunidades de base se apoia nessa reinterpretação maciça de “o povo de Deus”.

Um teólogo sumariamente fraco mas ativista cai nessa armadilha com muita facilidade. Um desses homens, por exemplo, é o arcebispo Rembert

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Weakland, de Milwaukee, Wisconsin, ativista de causas políticas li berais e progressistas e presidente do comitê de redação da primeira mi nuta da malfadada carta pastoral dos bispos dos EUA em 1984, que diz em certo trecho: “A Conferência [dos Bispos] dos EUA acredita que a hierarquia tem

que ouvir o que o espírito está dizendo a toda a Igreja. (. ..) O discernimento, não apenas a inovação ou a confiança em si mesmo, se torna parte do processo de ensino.”

Weakland não está sozinho, nem lhe falta precedente. Um destaca do clérigo da estatura do cardeal König, de Viena, tornou-se quase que ridiculamente confuso sobre esse assunto em 1976: “As velhas distinções entre

a Igreja que ensina e a Igreja que ouve, entre a Igreja que ordena e a Igreja que obedece, deixaram de existir”, dizem ter ele declarado. “Os sacerdotes e o

laicado formam uma unidade orgânica.” Pode-se estar certo de que o arcebispo Weakland irá abrilhantar a Sé de

Milwaukee até sua aposentadoria, e que o cardeal König teve uma conversa instrutiva com o papa João Paulo II depois da eleição deste em 1978. Apesar disso, pronunciamentos teológicos assim tão errados têm dado estímulo aos teólogos da libertação, que a esta altura estão plenamente convencidos de que o segundo Concílio Vaticano ensinou realmente que “o povo” é a verdadeira

Igreja, e que a estrutura hierárquica católica romana é uma relíquia ultrapassada de uma era que foi ultrapassada pelo tempo, pela mudança cultural e pelo “espírito do Vaticano II”.

O terceiro tema do concílio de interesse especial para os teólogos da libertação foi o papel e a função dos bispos na Igreja; e uma vez mais, o concílio foi claro ao repetir a doutrina tradicional da Igreja. Os bispos da Igreja, afirmou o texto do concílio, são “os sucessores dos apóstolos em seu

papel de professores e pastores”. Mas “eles não têm autoridade algu ma a menos que estejam unidos ao pontífice romano, o sucessor de Pedro”. Ele, o papa, tem

“pleno, supremo e universal poder sobre toda a Igreja, um poder que ele pode

sempre exercer sem empecilhos”. Os bispos, por sua vez, só “têm uma

autoridade suprema e plena sobre a Igreja universal” quando estão “juntos com

o sumo pontífice, e nunca afastados dele”. Apesar dessa clareza, tem sido divulgada pelos novos teólogos — muitos

dos quais bispos e cardeais — a ideia de que aquele segundo Concílio Ecumênico do Vaticano havia finalmente “liberado” os bispos do “tota litarismo papal”; e que os bispos eram, agora, seus próprios mestres que podiam decidir

sobre fé e comportamento moral sem consultarem o pon tífice romano ou se curvarem à vontade e à doutrina dele.

Embora possa representar um choque para os bispos que morderam a isca, a intenção da nova interpretação desse tema pela Teologia da Li bertação não foi melhorar a situação dos bispos. Longe disso. O objetivo foi e continua sendo desengatar e desmantelar o governo centralizado e hierárquico da Igreja Romana, e com isso reduzir a zero o poder e a in fluência do papa romano.

Embora os resultados dessas tendências — fomentadas ao longo do tempo em grande parte pelo habilidoso uso da livre e ambígua redação

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imposta aos textos oficiais do concílio, bem como pela interpretação imposta ao propósito integral do concílio — não ficassem óbvios de imedia to, uma nova imagem da Igreja foi criada de forma inflexível. Foi uma miragem, de fato, que dançava diante dos olhos de milhões e começou a ditar o pensamento jesuítico e as diretrizes jesuíticas. É difícil exagerar a agitação, o senso de um imenso novo empreendimento, que a simples existência e funcionamento do segundo Concílio Vaticano provocava. A frase “o espírito do Vaticano II”

passou a ser usada como senha e como fórmula para autenticar toda e qualquer mudança desejada.

Em meio à terceira sessão do Vaticano II, no dia 2 de outubro de 1964, o padre-geral jesuíta, Jean-Baptiste Janssens, de 75 anos, ficou incapacitado por um ataque violento do qual obviamente não iria se recuperar. Os dezoito anos de seu generalato tinham sido proveitosos num sentido estatístico. Quando Janssens foi eleito em 1946, o número de membros da Sociedade de Jesus era de 28.000; quando ele sofreu o derrame em 1964, o número estava em 36.000.

Homem que foi mais vítima do que culpado, Janssens tinha tido sua parte de dificuldades. Demonstrara enorme coragem pessoal, autocon trole e engenhosidade quando enfrentou a Gestapo de Hitler em sua terra natal, a Bélgica ocupada durante a guerra. Também se mostrara homem de grande docilidade e santidade pessoal.

Durante a maioria de seus dezoito anos como padre-geral, Janssens conseguira colocar um abafador sobre o modernismo oculto e a revolu ção inovadora na doutrina e na teologia moral que pareciam estar-se espalhando pelas fileiras dos intelectuais da Sociedade. Conhecido de todos os grandes nomes da Igreja de sua época, um minucioso estudante da romanità, um realista por trás da maneira suave que sempre cultivara, Jean- Baptiste Janssens merecia, sem dúvida alguma, um prêmio especial por ter perdurado tanto tempo sob pressão; no mínimo merecia, sem dúvida, mais do que o tratamento que recebeu.

Em junho de 1964, o jornal liberal holandês Die Nieuwe Linie, que contava com três jesuítas entre o seu corpo editorial, discutiu abertamen te a legalidade moral do controle da natalidade, questionando a necessi dade do celibato do clero, e lançando dúvidas sobre a sacrossanta doutrina católica da Transubstanciação — o sacramento da Eucaristia como o verdadeiro corpo e sangue de Jesus. No subsequente tumulto e controvérsia com as autoridades romanas, Janssens ordenou que os três jesuítas que trabalhavam para o jornal e que estavam sujeitos à santa obediência abandonassem seus cargos. Um obedeceu; dois ignoraram a ordem.

Os tradicionalistas entre a burocracia curial de Paulo VI apresenta ram propostas extremas, tanto em relação a Janssens como à Sociedade de Jesus. As coisas ficaram tão feias, que circulou uma história (aparen temente verdadeira) de que quando perguntaram ao segundo homem na escala de comando do Santo Ofício o que ele gostaria que fosse feito, ele respondeu citando as palavras da mãe de Salomé segundo o Evangelho: "Da mihi caput Joannis Baptistae in disco.” (Quero a cabeça de Jean-

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Baptiste [Janssens] numa bandeja.) Era evidente que as relações entre os jesuítas e o Vaticano de Paulo VI estavam se tornando tensas.

Ainda assim, por mais séria que fosse, a controvérsia com o Nieuwe Linie foi apenas um dos muitos focos de fogo que irrompiam e iam queimando aos pés de Janssens. Seus jesuítas se destacavam como periti na progressista minoria que fazia enormes incursões na mentalidade inicial mente conservadora da maioria dos bispos do concílio. No exterior, publicações jesuíticas já começavam a bombardear a mente católica com propostas e planos progressistas.

A idade e a fraqueza faziam com que as nuvens que se reuniam no horizonte jesuítico ficassem muito acima da capacidade de Janssens para enfrentá-las com eficiência. Seu vigário-geral, o canadense John Swain, que havia ajudado Janssens a governar a Sociedade nos últimos oito anos de seu generalato, também parecia incapaz de ser eficiente.

Três dias depois do derrame de Janssens, e vinte minutos antes de ele morrer no dia 5 de outubro, o papa Paulo foi visitá -lo. Quando, a 6 de outubro, Paulo rezou uma missa pela alma de Janssens e enviou telegrama formal de condolências à sede jesuítica, fica-se imaginando se ele compreendia que, com Janssens, o ancien régime da Sociedade de Jesus também havia morrido. Não tivesse ele sido o homem que foi, poderíamos imaginar Janssens sussurrando em seu francês imaculado, como suas últimas palavras de saudação a seus colegas que ficavam, as palavras proféticas de madame Pompadour: “Après

nous, le déluge (Depois de nós, o dilúvio).” Quase que imediatamente após a morte de Janssens, o vigário -geral Swain

convocou uma congregação geral da Sociedade — a 31ª na história da Ordem — para eleger o 27º geral jesuíta e discutir outros assuntos de interesse da Sociedade. Uma medida do grau de “furacão” que caracterizava aquela época foi o fato de que ninguém pressentiu que a CG31 iria fazer com que a Sociedade que Janssens comandara se transformasse numa lembrança do passado, a ser acalentada apenas pelos jesuítas mais velhos que haviam servido na época anterior ao dilúvio do “renovacionismo”.

Embora os detalhes custassem a surgir com clareza, todos os traços modernistas agora bem gastos são discerníveis, olhando-se para trás, na miragem conhecida como “o espírito do Vaticano II”. De repente, a Igreja

podia ser vista como essencialmente uma comunhão fraternal de igrejas locais e grupos de fiéis devotados ao “Cristo-homem”, ao “Cristo para outros”, ao

Cristo que era o amigo e defensor dos pobres proletários, ao Cristo que, ao libertar os pobres, devia ser visto como um revolucionário verdadeiro, vivo, portador de armas, fosse nas selvas da América Central, nas cidades da América do Sul ou nas cidades capitalistas do mundo inteiro. A Igreja Católica com seus governantes — papas e bispos — estava pronta para ser escalada no papel de uma fase postergada de uma época antiga. Seu conluio com potências capitalistas, sua exploração da superstição, suas falsas alegações de que era a única e a única verdadeira Igreja Católica e Apostólica — nada disso, passou-se a dizer, seria suficiente para salvar a Igreja da extinção.

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Um sentido não relevado daquela mentalidade emergente, aquele “es pírito do Vaticano II”, já começara a tomar impulso muito antes de o segundo Concílio Vaticano terminar em dezembro de 1965. Aquele “espírito” provocou

a primeira grande resposta organizada entre os delega dos à XXXI Congregação Geral dos jesuítas, que se reuniu com a aprovação do papa Paulo VI no dia 6 de maio de 1965.

Continua sendo intrigante o fato de que mesmo em 1967, depois que já tivera tempo de analisar o concílio e, é de se presumir, reconhecer a tendência modernista entre teólogos, bispos e jesuítas, o papa Paulo, cega e insensatamente, extinguiu uma regra universal que impunha a todos os teólogos um juramento solene de combater o modernismo. Quem per suadiu o papa a fazer isso? E uma vez mais, mesmo em 1969, quando as primeiras arestas desiguais da mixórdia que se aproximava na sua Igreja e nos jesuítas estavam se tornando dolorosamente visíveis, Paulo VI ainda podia se referir, ofegante, à “onda de serenidade e otimismo” que se espalhava pela sua Igreja.

3 Estas são as palavras de um homem tão desnorteado quanto aos pon tos

essenciais que no mesmo ano, 1969, estava preparando um documento que iria omitir todas as referências ao antiquíssimo caráter sacrificial da Missa Romana; e alterar a função do sacerdote como oferecedor do sacrifício de Cristo para a de um ministro numa “refeição comemorati va” comunal, com uma mesa e o pão da solidariedade.

Tem sido dito, com razão, de Paulo VI, que os primeiros sete anos de seu reino foram os seus “anos de loucura” e os últimos oito foram os seus “anos de

agonia”. Quando “o espírito do Vaticano II” assumiu um controle vi goroso durante os últimos oito anos de seu pontificado, mesmo a mente liberal de Montini não estava preparada para a investida que se derramou sobre sua Igreja como um vagalhão.

A extensão dos danos causados à Igreja pela mentalidade de furacão liberada depois de 1965 pode ser calculada uns meros vinte anos depois. O papa João Paulo II preside, agora, uma organização da Igreja que está em desordem, um clero rebelde e decadente, um corpo de bispos ignoran te e recalcitrante, e uma congregação de fiéis confusa e dividida. A Igreja Católica Romana, que costumava se apresentar como a Única, Santa, Ca tólica e Apostólica, parece agora um grupo eclesial pluralista, permissivo, ecumênico e evolucionário.

A culpa pela abertura a uma deterioração dessas talvez deva s er atribuída primordialmente àqueles próximos a João XXIII, que o convence ram de que “os homens, hoje, rejeitam espontaneamente essas doutrinas falsas”. Pelo

menos um daqueles assessores, Paulo VI, viveu para ver a força apostólica de sua Igreja solapada por aqueles que foram espontâneos em sua adoção daquela falsa doutrina.

Para esses homens — os teólogos da libertação acima de tudo, entre os modernistas da época de Paulo VI e da nossa — a Igreja, a Igreja “verdadeira”,

“o povo de Deus”, não está apenas no mundo; ela é o mundo. O ponto de vista dessa Igreja não é “vertical” — olhar para a eternidade.

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Em vez disso, seu ponto de vista é horizontal, seguindo pela face da Ter ra dos homens. Essa Igreja não existe para ela mesma ou para um objetivo fora des te mundo. Ela existe para servir ao mundo segundo os termos ma teriais e materialistas deste mundo. Não deve ter nenhuma das chamadas instituições católicas, só instituições humanas. Deve ser dominada e dirigida não pelo vigário de Cristo, o papa, com seus bispos, mas pela “comunidade”, que deve

indicar e escolher seus “ministros da Palavra”. De fato, os sacerdotes consagrados à moda “antiga” já não são mais

necessários para celebrar a Eucaristia, por exemplo, ou perdoar pecados, ou decidir o que é moralmente permissível na paz e na guerra, na atividade comercial e na sexualidade. Todos os membros da Igreja, homens e mu lheres da “comunidade”, serão os verdadeiros sacerdotes. Já não são mais necessários

sacerdotes para governar dioceses, ou papas para formular a lei para a Igreja universal. O consenso comunitário decide tudo isso.

Acima de tudo, a tarefa principal desse “povo de Deus”, segundo os

modernistas, é promover as aspirações sociais e políticas do nosso mun do cada vez mais coletivista no qual o arqui-inimigo é o capitalismo, e os aliados preparados são marxistas, enquanto nos deslocamos inexoravel mente em direção à Nova Humanidade e à total liberação do humano que há em todos nós.

Desse modo, um convertido ao modernismo como Eugene Kennedy pode prever, com confiança, que “as mudanças essenciais da próxima déca da não virão de acordos ou documentos assinados e selados por autorida des da Igreja, mas das atitudes e do comportamento já bem estabelecidos da comunidade de fiéis. (...) Estamos sendo chamados a deixar os grilhões para vermos o mundo e uns aos outros mais claramente (...)”. Esta “é a promessa do poder da Igreja

pós-imigrante na era interestelar”.4

O cardeal Eugene Tisserant, antigo simpatizante e partidário de Mon tini, veio com o seu espírito gaulês penetrante, implacável, para comparar a surpresa do papa Paulo VI diante da investida furiosa da mudança na Igreja com a surpresa ofendida do mundo de elite da arte parisiense diante da qualidade rústica, rude, caricatural da primeira exibição de Jean Dubuffet de Vart brut (“arte em bruto”) em 1944. À pergunta escandalizada “Isso é arte?”, a

maioria das pessoas respondia com um “Não!” igualmente escandalizado.

Aqueles que haviam esperado uma Escola de Paris renascida ficaram tão angustiados quanto Paulo VI; angustiados pelas mesmas razões, e tão irremediavelmente, quanto Paulo VI. Eles não puderam impe dir o sucesso de Dubuffet. Tampouco Paulo VI pôde impedir o progresso da desordem na esteira de sua direção permissiva do Concílio Vaticano II.

A comparação de Tisserant foi adequada em mais pontos do que o simples paralelo entre a angústia dos esperançosos defensores da Escola de Paris diante da arte de Dubuffet e a angústia de Paulo VI diante do “espírito do Vaticano

II”. O estilo e o ritmo de composição de Dubuffet eram vigorosos,

propulsivos, irregulares, uma estética de mudança contínua. Ele considerava o passado como “debilitante e prejudicial” e prezava o esquecimento por

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considerá-lo “uma força libertadora”. Queria, dizia ele, uma nova sinc eridade, uma nova autenticidade e um novíssimo terreno para viajar. “A menos que se

diga adeus ao que se ama”, escreveu ele, “e a menos que se viaje para

territórios completamente novos, só se poderá esperar um longo desgaste de si mesmo e, por fim, a ext inção.” Para viajar por aquele terreno novo, ele assestou

sua vitalidade irrequieta, irascível, aliada a uma irreprimível impertinência e insubordinação, contra os seus contemporâ neos. Acabou sendo inteiramente aceito como líder do campo da arte.

Como Dubuffet, os líderes e pensadores progressistas da Sociedade de Jesus estavam entre os primeiros pioneiros a viajarem por seus novos “ter -ritórios”; e como Dubufett, assestaram sua vitalidade irrequieta, irascível,

aliada a uma irreprimível impertinência e insubordinação, contra seus con-temporâneos. O esquecimento deliberado do ideal inaciano livrou -os das tradicionais obrigações do jesuitismo. E, como Dubuffet no mundo da ar te, os novos jesuítas acabaram sendo os líderes aceitos do seu mundo — o mundo religioso habitado pela Sociedade de Jesus e pela Igreja.

A enorme diferença, é claro, está em que uma escola de arte não está na mesma dinâmica que uma organização religiosa, e o papado não pode ser comparado a qualquer elite artística. Para os jesuítas, adota r a mudança como ordem do dia e aceitar o esquecimento de suas responsabili dades inacianas perante papa e Igreja como atitude mental significava cortar os laços que os uniam ao ideal do jesuitismo clássico. E para os jesuítas, a insistência no “novo

terreno para viajar” e um medo de que a enfadonha rotina do mesmo estilo e do

mesmo ritmo iria desgastá-los até à extinção, significavam que eles arrostariam a controvérsia com os desejos e objeções papais e aceitariam essa controvérsia como realidade permanente da vida. Essa aceitação só poderia levar à guerra aberta com o único homem que detém o poder de vida ou morte sobre a Sociedade, e que podia exigir a obediência deles com base nos juramentos solenes que outrora tinham feito por livre vontade.

É uma ironia que teria magoado muito profundamente o papa João XXIII e teria revoltado o corpo e a alma de Inácio de Loyola, se esses homens estivessem vivos na época do término do Concílio Vaticano II. teriam visto claramente que os documentos finais do concílio já estavam sendo usados pelos jesuítas para completar seus planos de uma reviravol ta completa no jesuitismo, de uma conversão da Sociedade de Jesus em algo que Inácio jamais planejara e que João XXIII teria abominado.

Porque, com base na interpretação liberal-progressista do Vaticano II, os jesuítas estavam prestes a decolar para “novos territórios” de for ma alguma incluídos no plano inaciano, e determinados a relegar o papado que João XXIII tinha em honra sagrada a um lugar muito secundário em seus planos e considerações.

Como na maioria das coisas, os jesuítas foram os primeiros, os pionei ros, nessa “renovação” do catolicismo convidando todas as pessoas a da rem adeus ao que João XXIII havia adorado e que Inácio de Loyola havia honrado. Assim sendo, era apenas uma questão de como realizar a tarefa.

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4ª PARTE

O CAVALO DE TRÓIA

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17. O SEGUNDO BASCO

No dia 5 de outubro de 1964, quando o padre-geral jesuíta Jean-Baptiste Janssens morreu, o palco já estava preparado para a entrada da nova cara do jesuitismo — a cara que mostrava os dentes num esgar horrível e humilhante dirigido ao papado de João Paulo II menos de vinte anos depois.

O pano de fundo para o drama demorara muito tempo para ser feito nas oficinas dos libertadores. O espírito da época — uma euforia contagiante e altamente romântica — preparara um elenco enorme para os papéis históricos a serem representados. O Concílio Vaticano II, que realizara a primeira de quatro sessões em 1962, já tinha sido incendiado pelas fagulhas daquela euforia. Por sua vez, as fagulhas foram vistas no mundo inteiro como anúncios pirotécnicos de que novos e grandes acontecimen tos estavam iminentes. Mas não é provável que qualquer jesuíta que fos se vivo na época pudesse prever os dramáticos acontecimentos que, em muito poucos anos, iriam transformar o jesuitismo inaciano. A única coisa que faltava ao drama era um roteiro detalhado. Este só seria escrito depois de terminado o Concílio Vaticano II, nos 84 decretos expedidos pela XXXI Congregação Geral (CG31) da Ordem.

Num simples período de dezoito meses, entre maio de 1965 e novem bro de 1966 — a duração oficial da congregação geral — 226 delegados conseguiram vestir uma série de declarações profundamente importantes e assuntos insignificantes com linguagem e conceitos mais ou menos tra-dicionais. Mas quando o roteiro ficou pronto, era o anúncio de uma no va missão e de um novo espírito.

Nem a missão nem o espírito tinham origem em Roma. Tinham vin do com os delegados das províncias da Sociedade do mundo inteiro. Tu do e qualquer coisa que havia chegado até eles dos 420 anos de história da Sociedade tinha que ser submetido a uma triagem rigorosa, um crivo e uma peneira vigorosos, diante daquela nova missão. Não importava quais fossem a missão e o caráter tradicionais da Sociedade, não importava o que a autoridade papal indicasse como sendo a sua vontade, não impor tava o quanto o trabalho fosse demorado ou árduo, o chamado, agora,

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era para uma transformação fundamental do jesuitismo. Para onde fo rem suas congregações gerais, é para lá que a Sociedade toda vai.

Foi lamentável, do ponto de vista do papado, o fato de a CG31 ter coincidido com o importantíssimo segundo Concílio Vaticano, o evento da Igreja Católica na segunda metade do século XX que serviu de carneiro - guia de rebanho. Quando o vigário-geral John Swain, temporariamente no comando da Ordem jesuítica depois da morte de Janssens, foi procu rar o papa Paulo VI para pedir permissão para convocar a CG31, a atenção do pontífice estava distraída, no mínimo.

Desde o seu início em 14 de setembro de 1964, até seu término a 21 de novembro, a terceira sessão do Vaticano II foi marcada por novas e rancorosas crises entre o grupo progressista de bispos e os tradicionalis tas. Foi durante uma dessas crises que o padre-geral Janssens sofreu o derrame. Paulo VI achou tempo para visitar o moribundo e para providenciar para que seu gabinete enviasse as usuais expressões de pesar e condolências papais depois que ele morreu.

Quase que ritual e mecanicamente, o papa Paulo deu ao vigári o-geral Swain permissão para convocar a CG31; os jesuítas tinham que eleger um novo geral. Paulo teve pouco tempo para perceber os acontecimentos jesuíticos subsequentes no resto do ano. Ele estava atormentado por problemas. Suas energias, sempre limitadas pela sua timidez nata, estavam quase esgotadas e divididas de maneira desigual pelo programa muito aper tado do Vaticano II e a percepção de que o concílio estava fugindo ao seu controle. Quando nada, os debates e as discussões, tanto em público como em particular, abriram para exame assuntos de extrema delicadeza e importância. O ateísmo foi apenas uma questão espinhosa; os problemas iam da natureza da Igreja e o relacionamento dos bispos com o papa quando no exercício do poder na Igreja, ao casamento, ao controle da natalidade e à atitude da Igreja para com os judeus.

Paulo ainda estava preocupado com uma pletora de problemas no Ano -Novo de 1965, quando a carta do vigário-geral Swain, de 13 de janeiro, informou aos jesuítas do mundo inteiro que o dia da abertura da CG31 seria no dia 6 de maio seguinte. Cada uma das províncias jesuíticas realizou uma congregação provincial em que escolheu o seu delegado pro vincial à CG31. Cada uma delas começou o trabalho de reunir seus pos tulados escolhidos, os assuntos que queria que a CG31 discutisse.

A carta de Swain foi recebida nas províncias como o som de uma trombeta, reunindo a Sociedade para a nova missão. Já existia, na Or dem, entre bom número de jesuítas, uma falta de entusiasmo ou compreensão relativa à antiga característica da Sociedade a que pertenciam. Eles já não se consideravam uma Força de Deslocamento Rápido ecle siástica à disposição de seu papa. Pelo contrário, desejavam ardentemen te a “democratização” do

catolicismo e da Sociedade. Fora com a ideia de papa e hierarquia, e de uma fidelidade especial a um único homem, o papa, ocupando uma posição hierárquica em um único lugar, Roma!

Ao chegar a primavera, o vigário-geral Swain e seu estado-maior em

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Roma já haviam recebido um número enorme de postu lados. Eles iriam atingir cerca de 1.900 ao todo, o maior número jamais enviado pelas pro víncias. Para a CG30, em 1957, a título de comparação, tinha havido cer ca de 450 postulados, e na época este número foi considerado elevado.

À medida que a avalancha se despejava, ficou logo claro que os pos-tulados da CG31 se referiam a tudo sobre a Sociedade — sua estrutura de governo, sua missão, seus ministérios, a formação e o treinamento de seus jovens, suas relações com o papado, sua vida de piedade e religião, o desequilíbrio de influência entre jovens e velhos na Sociedade. Até mes mo mudanças no próprio Instituto — a própria definição de jesuitismo feita por Inácio e incluída pelo papa Paulo III em sua Bula de 1540 crian do a Sociedade de Jesus — foram sugeridas por algumas.

Fossem quais fossem os detalhes, ficou claro, acima de tudo, que a maioria dos postulados apontava numa direção inteiramente nova. Elas clamavam por “renovação”. Renovação, como Swain sabia, era o código corrente no Concílio Vaticano II para indicar mudança radical. Ela provocara uma febre que percorrera todas as sessões do segundo Concílio Vaticano e se espalhara com facilidade, por intermédio de muitos assessores jesuítas, aos bispos que estavam no concílio, à própria Sociedade.

Entre os superiores jesuítas em Roma, os sentimentos estavam divi didos. Havia tradicionalistas rigorosos, sem dúvida, mas também havia espíritos progressistas, “antipapalistas”. Todos eles, porém, tradiciona listas e progressistas, ficaram assombrados com o tom progressista, mesmo revolucionário, dos postulados. Todos concordavam que a hora de expressar essa “renovação” na Sociedade ainda não tinha chegado. Mes mo os superiores mais progressistas estavam conscientes de que a escolha do momento oportuno tinha que ser correta.

A atitude prudente a ser tomada por um geral jesuíta interino, nu ma situação dessas, teria sido avisar ao papa e dizer ao santo padre, na verdade: escute, temos um problema. Os postulados partem do pressu posto de que toda a ideia de fidelidade ao papa é antiquada. Para mui tos de nossos jesuítas que lá estavam, o Concílio Vaticano II mostrara o caminho. E para aqueles jesuítas, o significado do Vaticano II está principalmente no fato de que bispos e teólogos comuns da Igreja enfrentaram as autoridades do Vaticano num debate igual, retrucaram, refutaram, foram mais espertos do que eles, conseguiram mais votos do que eles, fizeram com que eles suassem sangue e forçaram a “democratização” da Igreja. Para aqueles jesuítas, o leão romano tinha sido desafiado em sua toca. O Vaticano e sua Cúria foram despojados de sua aura sacrossanta; a palavra deles já não parece decisiva. A CG31 promete ser a mesma coisa.

O vigário-geral Swain não fez isso. Não entrou em detalhes nem com o papa Paulo VI nem com outras autoridades do Vaticano mesmo sobre o rompante mais desenfreado perceptível em grande número de postula dos — vozes anti-romanas, antipapais, anti-hierárquicas, antitradicionais;

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vozes clamando por uma reviravolta na Sociedade para uma fidelidad e sócio-política, e não papal; vozes atacando o Ocidente e o capitalismo ao mesmo tempo em que atacavam o “romanismo”.

Tampouco Swain partilhou com autoridades maiores o único fato que tinha sido muitíssimo surpreendente para os superiores jesuítas de Ro ma: pela primeira vez na memória viva da Ordem, as vozes conservado ras e tradicionalistas, reunidas, perfaziam uma minoria. Para a maioria, de fato, a CG31 estava chegando mais do que na hora. A docilidade e a submissão que haviam caracterizado o generalato de Janssens tinham acabado.

Se Swain tivesse feito soar qualquer tipo de alarma, este não teria caído em ouvidos moucos em Paulo VI. Já no ano anterior, 1963, o nú mero invulgar de reclamações sobre a Sociedade havia feito com que o papa solicitasse a se us representantes em vários países que reunissem um grupo de informações sobre a Ordem e suas atividades. O famoso dossiê que mais tarde chegou às mãos de João Paulo I e João Paulo II já estava ficando volumoso com relatórios sobre jesuítas do exterior que eram seriamente deficientes não apenas em questões de ensinamento bíblico, em questões de experimentações litúrgicas, e em doutrinas básicas como a divindade de Jesus; alguns também eram deficientes na crença sobre dois assuntos nos quais a Igreja Catól ica Romana diferia acentuada e especificamente de todas as outras igrejas: a natureza da Igreja e as prerrogativas do papado.

O dossiê, em si, não alarmou exageradamente Paulo na época, o iní cio da primavera de 1964. Ele compreendia, tanto ou melhor do que qualquer indivíduo, que a sua Igreja estava em efervescência. A seu ver, e apesar do gélido término da terceira sessão do Vaticano II, ainda era uma boa efervescência. No seu liberalismo tímido mas teimoso, Paulo podia ser paciente com a experimentação, com o entusiasmo que insistia no erro, e até mesmo com extravagâncias doutrinárias.

Mas quando o papado era atingido, ou quando a natureza da Igreja tal como ele a imaginava era atingida, Paulo ficava com uma disposição de ânimo totalmente diferente. Se Swain o tivesse colocado em guarda com relação ao grande número de postulados que clamavam pela “renovação” nas relações

jesuíticas com o papado e na fidelidade ao papado, Paulo teria se tornado mais cauteloso na fiscalização dos preparativos para a CG31 e da própria congregação.

Mas quaisquer que tivessem sido os temores provocados em Paulo por alguns dos relatórios em seu dossiê, eles foram dissipados, em sua maioria, pelo vigário-geral Swain. O ponto de vista dos jesuítas expresso nos postulados estava de acordo com a intenção de Swain.

Outros jesuítas, também, garantiram a Paulo que estava tudo em or dem. Esses jesuítas eram homens competentes e de confiança, como o car deal Augustin Bea, o poderoso e amplamente respeitado jesuíta alemão que Paulo conhecia desde os anos vinte e que tinha sido confessor de Pio XII antes de se tornar o patrulha de ponta de João Paulo para assuntos

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ecumênicos no mundo inteiro; e Paolo Dezza, que era confessor de Pau lo e cuja calma lombarda mesmo em momentos de alta tensão era suficiente para cortar os exageros da emoção de outros homens.

Com uma assessoria daquelas por parte de Swain, apoiado pelos seus mais íntimos assessores jesuítas, Paulo ficou tão confiante que, nas reu niões com Swain naquela primavera, levantou todas as restrições quanto a assuntos a serem discutidos e deu permissão para que a CG31 que esta va para acontecer tivesse liberdade para expressar opiniões e propostas sobre qualquer coisa relativa à vida da Sociedade.

“Deixe-os à vontade”, disse Paulo. Foi uma decisão que ele iria lamentar. Os 226 delegados que chegaram a Roma no dia 6 de maio de 1964 para a

abertura da CG31 foram, então, com uma mentalidade radical mente diversa da mentalidade tipicamente romana, da mentalidade jesuí tica clássica, e da tradicional mentalidade católica. Como foi que eles adquiriram aquela mentalidade é outra questão. Mas o fato não está em discussão.

Não se tratava simplesmente de que eles estavam prontos, como ha viam mostrado os postulados que os precederam, a jogar fo ra a bagagem antiga. Era que, em suas mentes, eles já haviam substituído aquela “bagagem” por outra

coisa. Em vez de um mundo e um cosmo arrumados hierarquicamente, onde formas preestabelecidas tinham uma posição sacrossanta, o novo estado de espírito exigia que todas as formas de vida humana fossem relativas; em outras palavras, na vida religiosa, social, política, devota e doutrinária o novo clamor jesuítico era em favor da “democratização”.

Em vez das fórmulas tradicionalmente codificadas e das definiç ões fixas de doutrina e moralidade, a nova mentalidade enfatizava a expe riência — experiência individual e social — como a medida para estabelecer fórmulas e definições ad hoc, temporárias.

Isso queria dizer, entre outras coisas, que não deveria mais hav er dogmas fixos e regras imutáveis. A própria fé já não servia de base para a aceitação racional das fórmulas sensatas e logicamente coerentes da fé e prática católicas.

Ao contrário, o que importava para a mentalidade revolucionária dos delegados à CG 31 eram sensações individuais e necessidades individuais de progresso pessoal.

Talvez a mudança mais revolucionária de todas na nova mentalida de fosse a rejeição da convicção católica de que homens e mulheres se deslocam dentro de um paradigma histórico fechado, a estrutura tradicional da Cristandade: a Criação; o Pecado Original; a Redenção por Cris to e a fundação da Igreja Una, Verdadeira, Santa, Romana, Católica; a longa espera pelo Segundo Advento de Cristo, durante a qual cada indivíduo se dedica pessoalmente à guerra espiritual que campeia entre Cristo e Lúcifer; e tudo a ser superado no Juízo Final dos Vivos e dos Mortos por um Cristo que voltará e, depois, pela eternidade de Deus — um eterno

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êxtase para os Benditos; um eterno, infernal castigo pa ra os Condenados. Na mente dos novos jesuítas intelectuais, cada bloco de construção

naquela história fechada tinha sido sistematicamente afiado, modifica do, esfregado, gasto, lascado, cortado e finalmente desmantelado pela lógica da história e pela mão de ferro dos eventos mundanos.

Agora, dizia aquela nova mentalidade, a vida humana e a história humana eram não apenas adaptáveis às situações, mas naquele exato mo mento se abriam a uma nova era. A única maneira de preparar a Socieda de de Inácio para essa abertura era começar uma transformação substancial da Sociedade quanto a seus objetivos, seus preparativos para agir e seu funcionamento.

Os únicos elementos que deveriam permanecer — por quanto tempo, era outra questão — eram a linguagem e os conceitos tradicionais sempre utilizados pelos jesuítas em seus documentos. Agora, porém, eles seriam usados com significados muito diferentes dos significados que sem pre foram por eles transmitidos. A linguagem tradicional iria, em suma, tornar -se na mais eficiente camuflagem com a qual aqueles novos Solda dos de Cristo poderiam colocar seus canhões em posição para fazer explodir a velha Ordem, com bagagem antiga e tudo o mais.

Paulo VI, como aconteceu com o mundo inteiro, não previu um cen tésimo dessa mentalidade em favor de mudanças. Era inconcebível — e ainda assim parece a muita gente — que alguém pudesse alterar o caráter fundamental dos jesuítas como homens do papa e como muito estritamente católicos romanos. Mas Paulo tomou certas precauções. Quando os delegados da CG31 se reuniram no Vaticano a 7 de maio para o dis curso ritual que os papas sempre fazem na abertura de uma congregação geral, o pontífice teve um desempenho que já era esperado.

Descreveu de forma sucinta o que a Sociedade de Jesus era para o papado e a Santa Sé: “A protetora juramentada da Sé Apostólica, a milícia treinada na

prática da virtude (...) para servir apenas a Deus e à Igreja, Sua Esposa, sob o pontífice romano, o vigário de Cristo na Ter ra (...) a legião sempre fiel à tarefa de proteger a fé católica e a Sé Apos tólica (...).”

É claro, acrescentou Paulo, que havia “vozes discordantes” entre eles;

mas os jesuítas tinham uma harmonia, e “a maioria dos senhores participam

dessa digna unanimidade”. O novo geral iria tomar as provi dências para que aquelas vozes discordantes não perturbassem aquela harmonia, acrescentou Paulo.

Paulo não estava fazendo o papel de adivinho; estava dizendo aos delegados que tipo de homem deveria ser eleito como seu novo padre -geral.

O papa deu, então, aos jesuítas, uma tarefa solene de grave impor tância: “Nós lhes damos o encargo de fazerem uma obstinada, unida re sistência contra o ateísmo (...). Pesquisem (...) colham informações (...) publiquem (...) façam debates (...) preparem especialistas (...) se jam exemplos luminosos de santidade (...).”

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Alterações inspiracionais desse tipo sempre tinham estimulado as maiores realizações dos jesuítas. Outras convocações papais para que agis sem, como aquela, tinham, na verdade, produzido alguns dos maiores lu minares e santos da Ordem — os Robert Bellarmines, os Peter Clavers, os Edmund Campions, os Isaac Jogueses.

Apenas para ter certeza de que o seu pensamento ficasse cristalino para os delegados, Paulo encerrou seu discurso citando, palavra por pa lavra, a descrição do jesuíta escrita por Inácio em 1539:

Todos aqueles que exercerem a profissão nesta Sociedade deverão compreender, na época de sua admissão, e além do mais ter em mente enquanto viverem, que esta Sociedade e os membros individuais que nela exercem sua profissão estão em campanha em favor de Deus, sob fiel obediência a Sua Santidade o papa Paulo III e seus sucessores no pontificado romano. O Evangelho, de fato, nos ensina e sabemos, pela fé ortodoxa, e sustentamos firmemente que todos os fiéis em Cristo estão sujeitos ao pontífice romano como seu chefe e como o vigário de Jesus Cristo. Mas apesar de tudo, julgamos que o procedimento a seguir será sumamente proveitoso para cada um de nós e para quaisquer outros que venham a adotar a mesma profissão no futuro, para o bem de nossa maior devoção em obediência à Sé Apostólica, da maior abnegação de nossa vontade própria, e de uma direção mais segura por parte do Espírito Santo. Além desse vínculo ordinário dos três votos, deveremos estar obrigados, por um voto especial, a executar o que quer que o atual e os futuros pontífices romanos possam ordenar que se relacione com o progresso das almas e à propagação da fé; e a ir, sem subterfúgio ou desculpa, tanto quanto nos for possível, para quaisquer províncias a que eles decidam nos mandar.

Os senhores não devem considerar isso, concluiu o papa, como um pen samento bonito, apenas um benefício espiritual, meramente um privilé gio abstrato. Ele tem que ser prático, “também tem que brilhar através de ações e ser do conhecimento de todos”. Em outras palavras: sejam homens do papa não

apenas no nome, mas de fato. Que seja nitidamente percebido, em seus atos, que os senhores são homens do papa.

Bravas palavras! As palavras do porta -bandeira de Cristo mandando suas tropas de elite se prepararem para uma nova batalha contra os inimigos de Cristo. Mas naquelas palavras havia um temor manifesto embora não mencionado, da mudança que se operava com uma profundi dade cada vez maior por toda a Igreja. Paulo, já escaldado pelos furacões da mudança e profundamente perturbado pela estranha euforia existente em sua Igreja, sabia exatamente do que precisava e o que devia exigir da Sociedade de Jesus. É por isso que a característica central e mais notável do discurso do papa Paulo foi a sua insistência em que os jesuítas fossem fiéis ao papado.

Na época, aquilo pareceu a muita gente uma insistência desnecessá ria,

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semelhante ao caso de um orador perante a Associação Médica Ame ricana insistindo para que os médicos curassem os doentes de seus males. Mas Paulo precisava desesperadamente que a Sociedade de Jesus, na sua forma clássica, aguentasse o impacto de sua batalha pessoal. Romano demais, demasiadamente dedicado à romanità, Paulo decidiu fazer de seu discurso um aviso velado.

Velada ou não, a intenção do pontífice não passou despercebida pe los superiores romanos da Sociedade. Entre os delegados, porém, se al gum aviso foi ouvido, foi de um tipo completamente diferente. A reação da maioria foi negativa. Aquilo os fez lembrar do discurso feito por Pio XII na CG30 há nove anos antes. Naquela ocasião, as críticas censuradoras por parte de Pio e seus avisos de que havia frieza entre o papa e a Sociedade haviam abatido o espírito dos delegados; nada de qualquer consequência fora realizado por aquela congregação.

Dessa vez, segundo o sentimento geral, a situação seria diferente. Tal vez os delegados à CG30 tivessem deixado a presença de Pio XII abati dos, humilhados, calados. Nada disso aconteceria com os delegados à CG31 no ano de 1965, que representava uma encruzilhada; retiraram-se da presença de Paulo VI determinados a seguir em frente de acordo com sua determinação original. Os delegados não tinham ido a Roma para re ferendar as pretensões e os sentimentos do papa, ou para aumentar ainda mais a autoridade e o autoritarismo centralizadores do papado. Tinham ido por um motivo, e apenas um motivo: renovar as Constituições da Sociedade a fim de que os jesuítas também pudessem aderir à vertente mes tra da “renovação”, marchar com os “novos homens e mulheres”, e ajudar bravamente o nascimento da “Igreja” lá

entre “o povo de Deus” no verdadeiro “espírito do Vaticano II”. A principal finalidade pela qual a CG31 fora convocada era eleger um

novo padre-geral. Mas como a maioria dos delegados queria uma mudança na função e no poder do geral — uma alteração em favor da democratização e longe da autoridade absoluta — aquele propósito ficou relegado a um segundo lugar. Não valeria a pena eleger um homem e depois descobrir que ele iria reagir à pressão papal, como fizera o geral Janssens com o Papa Pio XII. Isso seria deter a renovação da Sociedade antes que ela pudesse ser forjada.

Não; o primeiro item da pauta tinha que ser alterar a natureza mes ma do próprio generalato, antes que um homem fosse eleito não apenas para chefiar a Sociedade, mas para liderar aquela congregação, sem hesi tar, no trabalho de longo alcance que ela tinha à sua frente.

De acordo com as Constituições, o generalato era um cargo vitalício. Isso já não agradava mais aos delegados; tinha um leve cheiro de totalitarismo. Deveria haver um mecanismo aprovado pelo qual o pa dre-geral pudesse se aposentar do cargo — ou, se fosse o caso, ser exonerado. Também deveria haver maior representação ativa das províncias do mundo inteiro na administração central da Sociedade em Roma. Essas duas alterações iriam diminuir o perigo de qualquer geral novo

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impor seus pontos de vista, ou os do papa, à Sociedade inteira. Rapidamente chegou-se ao consenso de que a exoneração “ativa” ou

“passiva” do geral deveria ser transformada em lei pela Sociedade. A maior representação provincial era mais difícil de ser conseguida, mas

apesar de tudo não demorou muito. Até 1964, o padre-geral tinha sido assistido em Roma por doze assistentes regionais , cada qual encarregado do governo jesuítico a nível médio, os grupos de províncias chama dos de Assistências. Os delegados à CG31 decidiram que, além desses doze assistentes regionais, o geral, a partir de então, seria não apenas auxi liado mas apoiado, no sentido democrático da palavra, por quatro assis tentes gerais. Estes cargos eram inteiramente novos na Sociedade. Cada posto seria encarregado de algo mais: iriam formar um grupo especial de assessores do padre-geral. Eles não iriam apenas assessorá-lo; iriam concordar (ou não) com o que ele propusesse; iriam sugerir o caminho de ação que ele deveria tomar. Ele iria precisar deles para governar a Sociedade como geral. Eles seriam, em outras palavras, a força compensadora e os democratizadores. Cães de guarda? Sim, isso também.

No pensamento dos delegados era tão importante a necessidade de democratização e tão grande o temor de que um novo geral pudesse, des de o início, trair as pretensões da congregação, que a eleição dos quatro homens para preencherem os novos cargos de assistentes-gerais precedeu a eleição do novo padre-geral. Os primeiros quatro escolhidos para ocuparem os novos postos foram Vincent O’Keefe, dos Estados Unidos; Andrew Varga, da Hungria, um exilado nomeado para Nova York; John Swa in, do Canadá, que, como vigário-geral, sucedera a Janssens no comando temporário da Ordem e se preparara muito bem para a CG31; e Paolo Dezza, da Itália, velho romano experiente e que tinha a confiança de todos.

Com aquilo resolvido e o espírito mais à vontade, os delegados passaram, então, à eleição do novo geral, de acordo com o procedimento tradicional.

Os quatro dias rituais para a coleta de informações sobre possíveis candidatos começaram formalmente a 18 de maio, onze dias após o iní cio da CG31. Na verdade, o processo já havia começado em conversas particulares. Se o nome do padre “X” é mencionado em conexão com as características

desejadas para o padre-geral seguinte, enquanto o nome do padre “Y” aparece

mais ou menos desligado daquelas caracterí sticas, a conclusão é óbvia. Os delegados sabiam, mais ou menos exatamente, o que queriam no novo

geral: um homem que “reconhecesse a profunda inquietação da hu manidade”,

como comentou um delegado; um homem que tivesse dis cernimento e fosse esclarecido, com o compromisso de dominar as lutas de classes e as rivalidades nacionais; um homem pronto para lidar com as incertezas da transição de velhas formas e da velha ordem das coisas para modelos novos e para a nova ordem.

Em nenhum trecho dos discursos, das minutas, ou dos outros regis tros

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da CG31 existe qualquer menção do modelo inaciano como o guia a ser usado por aqueles delegados na sua escolha do geral. Não há men ção de que o candidato deveria ser um obediente filho da Igreja, um ser vo devotado da Santa Sé, o homem especial do papa, o companheiro de Jesus, o contemplativo em ação, o devotado servo do Sagrado Coração de Jesus. Ao contrário, os candidatos com “qualidade de generalato” deveriam ser julgados apenas pela análise da situação concreta da Sociedade no momento presente e precisavam agradar apenas aos jesuítas.

Durante aqueles quatro dias de coleta de informações e discussões, os superiores e membros reconhecidos como “da situação” em cada as sistência chegam, em primeiro lugar, a um acordo s obre se há, ou não, entre eles, um ou mais homens com qualidades de generalato. Rapida mente, representantes de uma assistência consultam os de outra assistência, comparando análises e possíveis candidatos. O processo continua com rapidez até que a disput a fica reduzida a dois candidatos principais, com uma terceira possibilidade na reserva, para o caso de um impasse.

Ainda havia, afinal, duas facções principais na congregação: os renovacionistas, cuja ênfase total era dada à “renovação” proclamada em nome do segundo concílio do Vaticano, e os tradicionalistas, que insis tiam em que a verdadeira renovação que estava sendo muitíssimo neces sária era a renovação da forma clássica do jesuitismo e do ideal inaciano na própria Sociedade. O grupo tradicionalista, embora de longe o menor a participar da CG31, era veemente e persuasivo. Um impasse não poderia ficar fora de cogitação.

No dia 22 de maio, a data escolhida para a votação, a congregação já tinha seus candidatos. Um, a escolha dos renovacionistas, reflet ia o espírito inovador na sua forma extrema: o programa era mudança, mudança imediata, de alto a baixo na Sociedade, de acordo com os ventos de mudança que haviam soprado a fidelidade à autoridade doutrinária de Roma e o lugar privilegiado do papado para longe da mente de muitos bispos, teólogos, sacerdotes e leigos. O outro, o candidato dos tradicionalistas, tinha postura moderada: mudança, sim, mas muito gradativa e estritamente de acordo com o voto papal que os jesuítas haviam feito.

Se nenhum dos dois candidatos reunisse votos suficientes, o candidato de conciliação estava lá. Ele representava a conciliação em apenas um sentido. Era plenamente a favor da mudança, e de uma mudança pa ra breve. Mas a favor de uma mudança com uma preparação adequada, não uma revolução da noite para o dia.

Como de costume, todos os delegados compareceram a uma missa especial do dia de eleição na Igreja do Gesù. Em sua escolha do encarregado do sermão para aquela missa, o vigário-geral Swain mostrou suas inclinações renovacionistas de maneira ainda mais clara do que quando deixara de prevenir Paulo VI sobre o estado de espírito dos jesuítas. Ele escolheu o pa dre Maurice Giuliani, da província de Paris, para o qual, como deixou claro aquele digno renovacionista, “a tarefa mais importante da Sociedade [era] abraçar livremente e defender com força essa renovação da Igreja”.

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Giuliani resumiu numa frase perfeita o tipo de candidato mais indi cado para o cargo de geral jesuíta: o novo homem, declarou ele branda mente, terá que manter a Sociedade “unida ao mundo”. Naquela única frase, Giuliani

afastou por completo o jesuitismo clássico no qual, segundo a definição de Inácio com base nas palavras do apóstolo Paulo, um jesuí ta deveria ser aquele “que é crucificado para o mundo e para o qual o mundo é crucificado”.

Por ter-se afastado tanto assim de Inácio, foi fácil para Giuliani re petir, em vez disso, Teilhard de Chardin. Os jesuítas, disse Giuliani, es peravam que seu novo geral “ajudasse a Sociedade toda e cada um de seus filho s a penetrarem profundamente no mistério da morte que traz realização, a fim de que possamos, nas difíceis circunstâncias do presen te, trazer uma salvação para o mundo”. A única coisa visível através desse pensamento obscuro é a vaga teoria teilhardiana de absorção de todos os seres humanos na evolução em direção ao Ponto Ômega. Nada de qualquer menção da morte de Jesus na Cruz ou da morte do pecado na alma humana.

Giuliani não estava, em outras palavras, falando da salvação já ob tida por Jesus com os seus sofrimentos, sua morte e ressurreição, e oferecida agora e até o final dos tempos através dos Sacramentos de Sua Igreja. A salvação que Giuliani estava pondo nas mãos do novo geral tinha a ver pura e simplesmente com a libertação sócio-política — ou evolução — de homens e mulheres.

Mesmo assim, não importa; uma boa reviravolta merecia outra. Giu liani prosseguiu, dizendo que o novo geral deveria guiar a Sociedade na aproximação da era que nascia, a fim de “penetrar com intrepidez nesses novos

movimentos, avaliar suas esperanças muito difundidas (...)”. Depois de ter-se afastado do ideal de Inácio e da salvação sobrenatural como missão, Giuliani chegara ao ponto crítico de seu sermão: nós, da nova Sociedade, estamos aqui para servir a homens e mulheres enquanto eles se empenham numa nova conquista. Elejamos um homem como geral que nos lidere ao longo desse caminho.

Em todo o seu sermão, Giuliani não fez sequer uma menção polida, muito menos uma exortação, sobre seguir Jesus, o Líder, na batalha con tra o Diabo; ou sobre a fidelidade primordial e lealdade máxima de todos os jesuítas ao vigário de Cristo e à Igreja Católica Romana.

Em tudo e por tudo, o sermão não era de bom augúrio para o suces so da convocação de Paulo VI para que os jesuítas fossem homens do papa no nome e nos atos; nem mesmo representava um bom presságio para a opinião de superiores jesuítas de que a “renovação” do elemento papalista da Ordem

deveria ser abordado com certa delicadeza — com respeito pelo momento certo, se não pelo papa.

Terminada a missa, o padre George Bottereau, como “clusor” ou

“trancafiador”, um papel muito antigo adotado nas eleições da Socieda de, trancou todos os 226 delegados num auditório no Gesù, para que a votação pudesse começar.

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Segundo a antiga prática de eleições na Sociedade, cada eleitor ficava em pé, abria os braços esticados em forma de cruz e repetia seu voto especial de obediência do papa. Depois, escrevia o nome do candidato de sua escolha numa cédula, colocava a cédula num receptáculo, e voltava para o seu lugar. Depois que cada um tivesse feito isso, o escrutínio dos votos era realizado ali mesmo, em voz alta.

Estava prevista, nas normas, a realização de até cinco votações sem sucesso ou sem um eleito. Depois de cada apuração, as cédulas eram des -truídas. Depois de cinco tentativas sem sucesso, podia -se recorrer a uma comissão de onze delegados, eleitos de acordo com a representação geo gráfica da Sociedade em geral. Essa comissão escolhia, então, um padre - geral que era aceito por toda a congregação.

Na CG31, ao final da segunda votação no dia 22 de maio, ficou evi dente que nem o principal candidato dos tradicionalistas nem o dos renovacionistas poderiam obter a maioria de votos. Na terceira votação, o candidato de conciliação, Pedro Arrupe, de 58 anos de idade, obteve a maioria e tornou-se o 27º geral da Sociedade de Jesus e o primeiro basco a obter o cargo desde Inácio.¹

Até aquele dia e hora, houvera apenas um momento de evidência em pú blico na vida de anonimato organizacional de Pedro Arrupe.

Ele nascera em Bilbao, na região basca da Espanha, em 1906, único menino numa família de cinco filhos. Seu pai era um arquiteto rico que também fundara um jornal, Gaceta del Nord.

Tal como Inácio, Arrupe a princípio não queria ser padre. Seu pri meiro amor foi a medicina, que estudou na Universidade de Madri. Mas, outra vez como Inácio, ele experimentou uma profunda conversão. Em 1927, numa visita ao Santuário Mariano de Lourdes, na França, viu com seus próprios olhos três curas milagrosas — um belga foi curado de câncer, um francês de 21 anos foi curado da então temida paralisia infantil e uma freira foi curada de paralisia da espinha provocada pela tuberculose. Arrupe sentiu-se, de imediato, convocado para ser padre. Entrou para a Ordem dos Jesuítas e foi ordenado padre na Holanda, em 1936. Passou outros dois anos num estágio interno nos Estados Unidos.

Parece que ele queria aprofundar seus estudos em psicologia, mas seus superiores decidiram o contrário. Em 1938, foi mandado para o Ja pão, especificamente para um posto missionário na cidade de Yamaguchi, na zona norte de Honshu. Seu apelido delicado, “o padre xintoísta”, data daquela

época. Ele se tornou um japanófilo. Como contou mais tar de, experimentou fazer de tudo que era característico dos japoneses , “exceto o arco-e-flecha dos samurais”. Rezava sentado numa almofada em posição Zen; escreveu haicais;

praticou a caligrafia japonesa e realizava a cerimônia do chá. O princípio de Arrupe em tudo isso era lógico, e estava de acordo com a

tradição jesuítica: tentar penetrar na mente e na alma das pessoas que você foi enviado para converter. É claro que devia haver certa cautela;

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levada longe demais, essa “inculturação” poderia resultar na conver são do pretenso convertedor à mentalidade e até mesmo à reli gião daqueles que originalmente ele se dispunha a converter.

Foi em Yamaguchi que o caráter de Arrupe se tornou conhecido na Sociedade. Ele tinha um vigor extraordinário para trabalhar e se dedica va a isso com o que os colegas descreviam como “um jeito q ue parecia um rodamoinho”. Pela manhã, no inverno ou no verão, ele se banhava com água

fria, saía para uma corrida acelerada e voltava fervendo, sol tando fumaça e suor — “inflamado como uma acha de lenha acesa”, diziam seus contemporâneos.

Organizou um museu para homenagear os mártires de Nagasaki do século XVI. Certa vez, deu um concerto — anunciado como “um grande concerto” — no qual foi o tenor solista, acompanhado ao violoncelo pe lo seu superior, padre jesuíta Lassalle, e por outro jesuíta como violi nista. “Arrupe era, por

definição, um otimista”, disse um de seus colegas, e parecia não haver limites

para sua energia ou para seu entusiasmo. Quando estourou a II Guerra Mundial, Arrupe foi preso pela abominável

polícia japonesa, a KEMPEI-TAI. Eles desconfiavam daquele Keto, aquele “homem dos cabelos coloridos”, que era o termo usado na época para indicar

os estrangeiros. Arrupe passou 35 dias na prisão e foi submetido a 37 horas de interrogatório contínuo — o que era uma sutil forma de tortura — nas mãos de um tribunal militar. Ganhou a admiração do comandante quando, ao final de sua provação, agradeceu a ele pelos “maiores sofrimentos que já tive na vida”,

dizendo-lhe: “O senhor foi (...) a causa deste sofrimento.” Depois de ter sido solto, o superior de Arrupe, o mesmo padre Lassalle

que tocava violoncelo, decidiu que aquele “padre xintoísta” preci sava de obscuridade, e assim enviou-o para o isolamento da residência jesuítica em Nagatsuka, um subúrbio a apenas 6,4 km ao norte do cora ção da bela Hiroshima, aos pés dos montes cobertos de verde que ani nhavam a cidade à beira do Mar Interno. Profética e ironicamente, não seria obscuridade que Pedro Arrupe iria encontrar naquele lugar, mas sua primeira experiência com a ampla publicidade que acompanha os grandes acontecimentos.

Em 1942, Arrupe foi nomeado superior e mestre de noviços em Na -gatsuka. Seu trabalho continuou sendo, na maior parte, intramuros, trei nando os jovens noviços jesuítas e governando sua comunidade jesuítica de dezesseis homens. Com a aplicação característica, ele já havia acrescentado o japonês à lista de outras línguas que sabia falar — espanhol, holandês, alemão e inglês, além do seu basco nativo. Posteriormente, publicou oito livros em japonês. Desenvolveu um novo apostolado em Nagatsuka e se interessou pela religiosidade e práticas piedosas entre os poucos católicos de Hiroshima. Pouco a pouco, travou conhecimento com outros japoneses não-cristãos e foi ficando conhecido e sendo aceito.

Como membro da comunidade jesuítica, enquanto isso, Arrupe se tornou inestimável, uma espécie de centro de gravidade para seus colegas

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de Nagatsuka. Simplesmente falando, as pessoas gostavam de Pedro Ar rupe. Ele tinha uma estatura ligeiramente abaixo da média, com um anel de cabelo em torno de sua cabeça careca. Seu sorriso rápido e radiante revelava dentes da frente ligeiramente salientes e transformava em rugas o que outrora já haviam sido covas. Embora seu rosto lembrasse o de uma coruja — um nariz grosso e curvo sob uma fronte alta, larga, e olhos castanhos-claros — o que ele transmitia era um carisma que atraía jesuítas e não-jesuítas, cristãos e não-cristãos.

De sua parte, Arrupe gostou profundamente dos japoneses; e gosta va de Hiroshima como cidade. Mesmo apesar de o porto marítimo es tar em completo ritmo de guerra — todas as crianças das escolas primárias tinham sido evacuadas; todos os alunos do ginásio tinham sido mobilizados para trabalhar em fábricas de material bélico; a cidade era sede de um dos quatro exércitos imperiais que se preparavam para a esperada invasão americana; e cerca de 90.000 oficiais e soldados estavam aquartelados lá — para Arrupe nada daquilo tudo diminuía o encanto daquela cidade construída no delta formado pelos sete tributários. Suas ruas de pedras arredondadas, as azáleas e as flores das cerejeiras no Parque Hijayama, as dúzias de pontes, o antigo Castelo Mori, tudo isso ele achava lindo. Até a linha da costa — embora soubesse que ela confiscara 4.000 barcos carregados de explosivos à espera do dia em que houvesse o desembarque americano — não perdera nada de sua beleza e atração aos olhos de Arrupe.

Até 6 de agosto de 1945. Às 8:15 da manhã daquele dia, o bombardeador Tom Ferebee, a bordo do B-29 Enola Gay, da Força Aérea dos EUA, abriu o compartimento das bombas a 10.200 metros e viu “Little Boy” (“Garotinho”), a

primeira bomba de urânio da História, escorregar de lado de seu vão e embicar para o alvo — o porto marítimo do sudoeste, Hiroshima.

Quarenta e três segundos depois, a 620 metros acima do solo, “Little Boy”

explodiu numa causticante bola de fogo que brilhava mais do que mil sóis. A partir daquele momento, Hiroshima se tornou algo novo para Pe dro

Arrupe. Tornou-se um exemplo sangrento dos danos que uma sociedade sem Deus podia causar; tornou-se um quadro vivo, talhado com dor e sofrimento, do que a corrupção ocidental podia realizar; tornou-se um comentário patético sobre a incompreensão ocidental da mentalidade ja ponesa que lhe era tão absolutamente estranha.

Às 8 horas, 15 minutos e 30 segundos daquela manhã de agosto, todas as janelas da residência de Arrupe em Nagatsuka foram estilhaçadas por uma ensurdecedora onda de choque e o céu se encheu de uma luz que ele mais tarde descreveu como “esmagadora e funesta”. Quando ele e sua comunidade d e jesuítas se arriscaram a sair uns trinta minutos depois, uma tempestade de fogo, movida por um causticante vento de oi tenta quilômetros por hora, envolvera Hiroshima. Quando ele despachou a primeira equipe de socorro para os subúrbios — a sua equipe médica

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foi a primeira, embora rudimentar, a começar a agir na cidade atingida — uma chuva radioativa lamacenta, pegajosa, começou a cair, transfor mando o calor do ar num frio medonho.

Na noite daquele dia, um dos primeiros sobreviventes a chegar até à casa de Arrupe em Nagatsuka foi um estudante de teologia enviado por um colega jesuíta, padre Wilhelm Kleinsorge, que conseguira sobreviver à explosão no centro de Hiroshima. Dele, Arrupe recebeu seus primeiros depoimentos de testemunhas oculares. Mas viu tudo em pessoa nas semanas subsequentes, quando ele e sua comunidade se deslocavam pela devastação como anjos auxiliadores.

Tom Ferebee havia mirado a bomba na ponte Aioi, em forma de “T”, que

atravessava os rios Honkawa e Motoyasu. Mas “Little Boy” havia enco ntrado o centro de seu círculo mortal nuclear não naquela ponte, mas no pátio do Santuário de Gokuko, bem ao lado da área de desfiles do Quartel -General Regional do Exército de Churgoku.

Quase 80.000 pessoas morreram no calor de 6.000 graus da explo são. Outras 120.000 estavam morrendo. Dos 90.000 prédios, 62.000 fo ram arrasados. Sessenta dos 150 médicos de Hiroshima jaziam mortos; a maior parte dos demais estava ferida e à morte. De suas 1.780 enfer meiras, 1.654 estavam mortas ou irremediavelmente feridas. Instalações hospitalares tinham sido destruídas. Os recursos de Hiroshima tinham sido destruídos e o governo central japonês se manteve efetivamente afas tado nas primeiras sessenta horas.

Arrupe viu toda a mutilação de corpos humanos e a destruição de edifícios. Durante as semanas seguintes de labuta, ao conversar com os hibakusha, os sobreviventes “afetados pela explosão”, ouviu dos lábios deles

coisas inacreditáveis e viu em seus corpos as marcas daquilo que o populacho japonês aterrorizado chamou de genshi bakudan, “a bomba-criança original”.

Talvez de maneira surpreendente, a primeira reação de Arrupe às hor -rendas visões a toda sua volta — a visão de pele pingando de braços e pernas como se fosse cera, ou saindo do tronco como remendos irregula res e camadas de tecido podre; as cabeças sem rosto; as queimaduras; as quelóides características aparecendo por baixo da pele das cicatrizes; os mortos; o fedor da putrefação — não foi uma onda de ódio pela guerra. Horror diante do sofrimento humano, é claro, ele sentiu, e recordou muitas vezes, mais tarde. Mas não sentiu menos horror quando foi um dos poucos ocidentais que testemunharam o linchamento até à morte de um pilo to americano em Hiroshima, na manhã do dia seguinte em que largaram “Little Boy”. O

americano, um sobrevivente de uma B-29 chamada Lonesome Lady (Dama Solitária), foi descrito por uma testemunha como “o rapaz mais bonito que já

vi”, com “cabelos louros, olhos verdes, pele branca como cera, corpulento e

parecendo forte como um leão”. Os japoneses o amarraram a um poste na ponte Aioi, com uma mensagem presa com um alfinete. A mensagem dizia: “Bata

neste soldado americano an tes de seguir adiante.” Na sua humilhação, no seu

sofrimento e na sua

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derrota, os hiroshimenses que passavam agrediram o rapaz com porretes e pedradas fazendo-o gritar até morrer.

Muito mais potente nas narinas de Arrupe do que a terrível putrefa ção dos mortos e moribundos, estava o “odor elétrico” da ionização pro vocada pela explosão da bomba. E infinitamente mais vaticinador, para ele, do que carne apodrecendo ou um linchamento, era a nova força que com tanta facilidade, numa questão de simples segundos, havia transformado as ruas de asfalto em superfícies que pareciam mingau, cozido ba tatas que ainda cresciam na terra, torrado abóboras-morangas que ainda estavam penduradas — havia reduzido uma cidade bonita a um cemitério cheio de destroços.

Vinte e cinco anos mais tarde, ao procurar um adjetivo para descre ver o poder de Cristo, ele iria chamá-lo de “superatômico”. Com o aparecimento de “Little Boy”, ele via “uma nova era surgindo na criação de um novo

humanismo tecnológico” emanando dos círculos e centros de poder ateus do

Ocidente. E via “o aparecimento de um novo tipo de homem”. Até o fim da

vida, Pedro Arrupe nunca perderia aquela sensação de assombro diante daquele novo nascimento.

“Hiroshima”, costumava dizer, “não tem relação com o tempo. Ela

pertence à eternidade.” Em toda aquela catástrofe, ele também viu algo mais. Pôde ver o que

valiam os japoneses. Pôde ver sua capacidade de resistência, sua coragem inquebrantável, sua audácia. As bombas podiam estraçalhar suas cidades, é verdade; mas ele estava vendo que as mentes ocidentais que haviam inventado aquelas bombas não tinham como tocar ou alterar em profund idade o molde da mentalidade japonesa — a disposição de alma que Arrupe passara a reconhecer como especificamente japonesa. Era, acima de tudo, essa impenetrabilidade, essa “inatingibilidade” — irredentismo é o termo clássico para isso — que o impressionava.

Por sua vez, os japoneses nunca se esqueceram do incansável auxílio prestado por Pedro Arrupe na Hiroshima castigada. Nunca precisaram ser lembrados de que tinha sido sua a primeira equipe de socorro a come çar a agir, antes de passada uma hora depois da explosão do mundo, que era o que parecia, por “Little Boy”.

Num curioso capricho do destino, o serviço de Arrupe na cidade pa ra onde ele havia sido enviado para encontrar maior obscuridade lhe deu, pela primeira vez, a chance de sentir o gosto da evidência mundana. Ele e sua ordem religiosa receberam agradecimentos em público por parte dos japoneses. Sem qualquer dúvida, os esforços deles no sentido de ajudar os feridos ajudaram o sucesso dos jesuítas no Japão no pós-guerra.

Durante os vinte anos que Pedro Arrupe passou no Japão depois de 1945 — durante sua carreira como vice-provincial de todos os jesuítas no Japão do pós-guerra — ele continuou sendo uma espécie de celebridade. E continuou mantendo o mesmo ritmo estafante de trabalho — administrar a província, angariar fundos,2 pregar, viajar.

Mas foi naquele curto período em Hiroshima que ele aprendeu uma

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lição fundamental; e a lição se referia, basicamente, àquela inacessibili dade opaca dos japoneses. É claro que foram o seu senso agudo de obser vação e seu sentimento pelo próximo que o ajudaram a aprender essa lição. Mas com a mesma certeza, suas origens bascas também influíram nisso. De qualquer maneira, ele achou que compreendia o motivo pelo qual os japoneses eram tão opacos para os ocidentais. Por mais de 2.000 anos, eles haviam se desenvolvido em completo isolamento das culturas e civili zações altamente especificadas e profundamente personalizadas do mun do ocidental. Quem poderia melhor compreender o significado de uma história dessas do que um homem dos bascos, os principais “separatis tas” da Europa em toda a sua

tumultuada história — “nossos alienígenas convidados da família da Europa”,

como certa vez os chamou Jean-Jacques Rousseau. Vivendo na Espanha, eles nunca se tornaram espanhóis; cercados por europeus, resistiram resolutamente a se tornarem tipicamente europeus. Até a língua era uma anomalia asiática, vibrantemente viva em meio a uma babel de línguas indo-européias. Nem os romanos, nem os visigodos, nem os francos, nem os normandos, nem os mouros tinham conseguido subjugá-los. O general Franco nunca os dominou. Eles tinham a dúbia mas incontestável distinção de serem o primeiro povo a fazer em pedaços o supostamente invencível exército do primeiro grande “europeu”,

Carlos Magno; foi em Roncesvalles, no país basco, que Rolando, o requintado cavaleiro ocidental, morreu lamentavelmente “longe da França e do Carlos de

Ouro”, como cantava a Chanson de Roland. A tradição basca de Arrupe e suas experiências ao trabalhar com os

japoneses na paz e na guerra ensinaram-no que os cristãos ocidentais teriam que fazer mais do que apenas serem eles mesmos — viver, agir e falar como ocidentais — se o objetivo fosse atingir a mente daquele povo inalcançável.

E a mesma lição seria válida para quaisquer entendimentos que os ocidentais tivessem com povos de qualquer cultura muito diferente — hindus, muçulmanos, africanos, chineses, polinésios, por exemplo — especialmente, insistiria Arrupe, com ocidentais que tivessem uma mentalidade e uma cultura inteiramente não-cristã. Quanto a isso, Arrupe tinha em mente um tipo muito específico de ocidental: o ateu.

Ele estava convencido de que o ateísmo ocidental havia produzido, por longo período de tempo, uma mentalidade, uma cultura e uma ma neira de viver tão opacas e inatingíveis quanto a mentalidade e a alma de seus adorados japoneses, e tão “separatistas” quanto seus queridos bascos. Para atingir aquela

mentalidade ocidental não-cristã, Arrupe ficou convencido de que era preciso a “inculturação”, tanto quanto se fazia necessária no Japão, na Índia ou na China. De fato, Arrupe iria codificar aquele processo de “inculturação” em

meia dúzia de fórmulas.³ Em 22 de maio de 1964, quando o destino segurou uma vez mais a mão de

Arrupe para colocá-lo num pináculo de poder no qual literalmente o mundo inteiro da sociedade humana era o seu campo de atividade,

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seu passado no Japão e sua experiência com a “Little Boy” em Hiroshi ma já haviam colocado à sua volta uma aura de vidente ou profeta para seus colegas jesuítas. Ele chegou ao generalato levando atrás de si uma certa mística. “Arrupe viu o Apocalipse”, diziam dele. Com a exceção de não ter tido a morte

de um mártir, ele tinha os dotes do jesuíta clássico: prisão, tortura, várias línguas, capacidade administrat iva, coragem, resistência. De certo modo, tinha tudo.

Bem, talvez nem tudo. Ainda não. Apesar de toda a mística que Ar rupe pudesse ter adquirido, a sua escolha como geral era resultado de con cessões mútuas, e extremamente racional. Antes que pudesse realmente aprender a guiar a Sociedade de Jesus por novos caminhos, ele teria que passar por uma “educação” sobre as grandes e novas realidades da vida dos jesuítas. E sem

dúvida teria que sofrer uma mudança de perspectiva sobre aquilo que os jesuítas deviam estar fazendo.

Imediatamente após a eleição de Pedro Arrupe como chefe da mais alta mente organizada e mais instruída Ordem de religiosos católicos roma nos — 36.000 na época, em todos os cantos do mundo —, que jamais entrara para a longa história de altos e baixos da Igreja, o fato foi comunicado ao papa Paulo VI. A bênção e a aprovação papais chegaram qua se que de imediato.

Pelo futuro previsível, eram estes os dois homens — Giovanni Battista Montini como papa Paulo VI e Pedro de Arrupe y Gondra como ger al da Sociedade de Jesus — que estariam no centro do palco como principais protagonistas do drama que se desenrolava, dos homens do papa contra os papas. Nunca — ou pelo menos raramente — as circunstâncias humanas haviam colocado dois religiosos, um contra o outro, tão profundamente diferentes um do outro e, no entanto, tão inevitavelmente presos entre papado romano e generalato jesuíta.

Nenhum dos dois tinha sido forçado àquele relacionamento por um destino férreo. Montini havia consentido em ser papa em junho de 1963, acreditando ser seu destino e a devida coroação de seus 43 anos de servi ço como um segundo do Vaticano. Arrupe concordara, de boa vontade, em ser o geral em maio de 1965, inteiramente convencido de que por ser um basco, um ocidental muito bem inculturado com uma mentalidade não-ocidental, e um jesuíta com uma perspectiva geopolítica adquirida no calamitoso clarão do Apocalipse em Hiroshima, era o mais qualificado para chefiar a sua Sociedade de Jesus exatamente como Iñigo, o primeiro basco, teria feito se tivesse sido eleito geral pelos 226 delegados à CG31 no dia 22 de maio de 1965, e não pelo voto unânime de seus onze companheiros no dia 8 de abril de 1541.

De bom grado, cada um daqueles homens havia se esforçado pes soalmente para atingir o seu pináculo, fora do alcance de mesquinhos ma nipuladores do poder, um no Vaticano, o outro na Sociedade de Jesus. Agora, porém, de seus píncaros individuais, os dois tinham que lidar um com outro, quisessem ou não.

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Tanto Montini como Arrupe eram sinceros quando acreditavam que seus papéis eram messiânicos, ou pelo menos forjados por um destino mais alto. A mão de Deus estava pessoalmente com eles, cada qual estava cer to; na verdade, certíssimo. E assim ambos assumiram livre e entusiasticamente posições que os colocaram não apenas muito próximos um do outro, mas num relacionamento de dependência um do outro que tinha elos de ferro, tinha sido legalmente forjada e existia há muito tempo. Como vigário de Jesus e companheiro de Jesus. Como pontífice e crente católico. Como criador e criatura. Como mestre juramentado e servo preso por um juramento. Como superior máximo e súdito completo. Como professor supremo e assistente privilegiado. Como papa branco e papa negro.

Na época de sua conjunção na órbita romana, um como papa, o outro como geral, nenhum dos dois poderia ter previsto com alguma certe za o seu entrechoque irreconciliável. O Paulo de 68 anos e o Arrupe de 58 eram da mesma geração, cada qual nascido numa sociedade com es trutura de classes de fins do século XIX e criado por pais extremosos muito antes de aquela sociedade se esboroar e “das luzes se apagarem por toda a Europa” em

1914. Os dois tinham, até, similaridades físicas: estatura abaixo da média, cabeças redondas muito calvas, frontes alta s, orelhas grande, grande olhos luminosos de pálpebras pesadas, narizes aquilinos, lábios finos, maçãs do rosto enrugadas, queixos indicando obstinação, pescoços finos, mãos expressivas com dedos espatulados, frágeis estruturas ósseas, expressões faciais que lembravam uma coruja, uma presença que se impunha quando a pessoa se aproximava deles.

Todos os dois tinham modos afáveis, paternais, em qualquer con versa a sós com outra pessoa. Todos os dois, diante de uma plateia, adotavam a postura “Daquele Que Foi Enviado”, o emissário que arca com ônus proféticos. Cada

qual, sem objeção, insistia em sua dignidade — Paulo, na dignidade do silêncio; Arrupe, na dignidade do clamor. Ambos eram obstinados em suas devoções; cada qual altamente personalizado no estilo de administração. Por fim, nenhum dos dois podia ser descrito como homem simples ou como homem santo, segundo a percepção humana comum. Porque, à sua maneira, cada um estava preocupado demais consigo mesmo e com o seu desempenho para estar totalmente absorvido pelo Deus a Quem ele fora eleito para servir. “Os

grandes”, observou Santo Ambrósio de Milão no século IV, “muitas vezes

adiam o momento de serem humildes, até que a morte os humilhe. É a maneira de chegarem a Deus.”

Depois de ter dito isso, entretanto, a pessoa esgotou todos os traços comuns entre aqueles dois homens. O resto é um díptico de dissonância e desacordo, de antipatia, de incompatibilidade, de oposição, e, por fim, de fracasso. Porque o papa não conseguia mandar, enquanto o geral não co nseguia obedecer. Todo o resto da relação entre eles constitui apenas os destroços mortais de suas vidas.

Em termos de fracasso absoluto, o de Arrupe iria ser o maior. Pau lo, detendo o comando absoluto, fracassou em seus esforços para comandar

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com benevolência. Arrupe, sujeito ao voto de obediência absoluta, fracassou em tudo o que era essencial, com seus esforços para ser desobe diente com esperteza.

No entanto, papa e geral jesuíta, cada qual agia em função da edu cação e das influências que haviam entrado na formação da urdidura de sua mentalidade. Os sucessos que cada um obtivesse e os erros que cada qual cometesse eram característicos daquela educação e daquelas influên cias.

O caráter do Montini italiano de classe média alta foi talhado na sin gular procura do poder a fim de fazer o bem a serviço de Deus. Sua tradi ção era a nortista, não a sulista. Nada do sul da Itália — seu barulho, seu calor, o gregarismo de seu povo e os gritos e a gesticulação deste po vo — combinava com ele. A quietude da dignidade era o estilo nativo.

Montini recebeu a melhor educação proporcionada à fiel burguesia católica que se sentia ofendida com a distância mantida pela aristocracia e acreditava na bondade do homem comum. Essa educação pode ser re sumida em duas palavras: formalismo francês. Ela seguia os modelos franceses — a lógica dos gauleses, sua precisão provocante, seu equilíbrio e seu refinamento. Isso era meio colorido pelo humanismo róseo da Renascença italiana dos quattrocento sem o paganismo, e meio colorido pelo triunfalismo do risorgimento italiano do século XIX, sem o seu traço revolucionário.

O resultado foi como a própria língua. O italiano era bonito e flexí vel. Um pouco de francês falado, como no caso de Paulo, com um forte sotaque, dava charme.

De tudo isso resultou o compassivo intelectualismo do papa Paulo VI, que não compreendia os fanáticos, mas confiava suas esperanças de sucesso nas formas e moldes do discurso sensato. Era a forma que importava. O formalismo sem conteúdo e o triunfalismo sem rebeldia eram os pais de sua mentalidade liberal.

Parte integrante dessa mentalidade era um sentimento de culpa por estar em melhor situação financeira do que os seus subordinados, mas sem intenção alguma de renunciar à sua posição; uma suposição de decência e de motivos decentes naqueles que observavam as formas devi das; uma confiança nos conceitos adequados, nas palavras exatas, a serem usados em cada situação; e uma perpétua esperança de que as virtudes da classe média fossem triunfar sobre o elitismo da aristocracia e a rebeldia das classes mais baixas.

As contradições que estavam à espreita do liberal moderado embos caram Paulo mais de uma vez. Ele implorou com veemência, junto ao ditador Franco, da Espanha, pela vida de um terrorista espanhol conde nado e realmente culpado, que cometera assassinato a sangue-frio.4 Enviou um altivo cardeal von Fürstenberg para participar das condenavelmente suntuosas comemorações, em 1971, do xá do Irã, que se dizia sucessor do imperador Ciro o Grande, que morrera há mais de 2.000 anos. Von Fürstenberg, que não recebeu um pavilhão só para ele entre os outros

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personagens esplendorosos, protestou de maneira violenta contra “aquele

desrespeito à dignidade de Sua Santidade”; Paulo ficou de ple no acordo com o cardeal. Alguns meses antes de morrer em 1978, Paulo redigiu e mandou que lessem em seu nome nas rádios oficiais da Itália um apelo veemente às Brigadas Vermelhas para que libertassem o primeiro- ministro Aldo Moro, que elas haviam raptado, para que o libertassem em nome da decência, da humanidade e da paz.

De modo geral, em outras palavras, o desempenho de Paulo pare cia, com frequência, contraditório. Mas não era. Era tudo uma caracte rística de seu moderado, romântico, digno liberalismo vitalício.

Enquanto isso, Arrupe, de classe média, chegou à sua educação espanhola com uma mentalidade extremamente opaca ao regionalismo pa roquial da hispanidad. O estado de espírito das pessoas instruídas na Espanha de sua juventude podia ser resumido numa frase: “Deus fez a Espanha — e depois veio o resto do mundo.” Os bascos pouco tinham em comum com a calma

sofisticada do norte da Itália de Paulo VI; tinham muito mais a partilhar com os povos sulistas mais estridentes da Toscana, da Calábria e da Sicília.

Nadando em seu ambiente espanhol, os bascos tiravam dele o que precisassem, mas continuavam sempre bascos — obstinadamente inde-pendentes, ardentemente pessoais, orientados para a coletividade e para o país basco, as Vascongadas, mas nunca assimilados pela Espanha como Espanha.

Oposição, na verdade, era um nervo central da constituição basca — oposição a ser espanhol, oposição à hispanidad, oposição à falange dos interesses latifundiários, à erudição tradicional, à instituição clerical da Igreja Católica, e às coalizões entre empresas agrícolas e indústrias que marchavam acompanhando os passos de tudo o que era estranho aos bascos.

Essa têmpera de caráter já dura foi, no caso de Arrupe, exacerbada e refinada nos rigores planejados do antigo treinamento jesuítico — ascético, humanista, filosófico e teológico. Era uma dialética sistemática que já havia produzido um conjunto de homens totalmente bem-educados. Suas capacidades mentais e físicas eram estudadas, trituradas, testadas, desenvolvidas pelos Superiores e depois orientadas para o trabalho que eles tinham que realizar como jesuítas, não apenas na Espanha, mas na imensa vastidão do mundo.

O cultivo do intelecto, no entanto, não era o segredo do sucesso do jesuitismo. O intelecto era apenas uma ferramenta, podia tergiversar, podi a ocupar e abandonar posições sucessivas com facilidade, podia escolher línguas e favorecer poliglotas — como Arrupe. A chave jesuítica era a vontade. A vontade era afiada e polida até ficar bem pontuda, e então engatada numa estocada, sempre para a frente, no mundo inteiro.

Quando chegou o momento dos dois — o papa Paulo VI e o geral jesuíta Arrupe — se comunicarem, não deve causar surpresa, pelo menos olhando-se agora para trás, o fato de entre eles não ter sido possível

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comunicação alguma de verdade. Era o intelecto compassivo, ligeiramente vago de Paulo contra a vontade inteligentemente treinada, sincera e sepa ratista, de Arrupe. Era formalista contra fanático. Diplomata contra cruzado. Burocrata contra ativista. Monoglota contra poliglota. O liberal sempre esperançoso contra o revolucionário calculista. O homem criado para a singularidade contra o homem da coletividade. Uma vela romana que queimava lentamente e projetava uma trêmula luz dourada, contra um maçarico chamuscando os dedos, disparando contra os olhos.

Se havia algum fogo vivo em Paulo, estava escondido lá numa câ mara de seu coração como a pequenina chama da piedade. Em Arrupe havia um fogo — a fogueira da paixão — mas ele explodia em seu cérebro.

Não que ambos não visassem à utopia. Visavam. Mas que diferença! Paulo, fiel ao seu formalismo francês, havia optado, logo no início, pela utopia de seu filósofo francês favorito, Jacques Maritain: a Igreja tinha apenas que cessar a estridência de seus esforços e sua postura aris tocrática, precisava apenas apresentar-se despojada e simples a homens e mulheres, sem o imperialismo da autoridade absoluta, sem a ameaça de castigo. O liberal que havia nele sabia, mas sabia com certeza, que imediatamente todos os homens e mulheres de boa vontade — e não eram assim 99% deles? — iriam aceitar aquela Igreja como o único meio de integrar valores humanos e revelação divina. Humanismo integral!

A dificuldade que Paulo parecia incapaz de ver com antecedência era que o seu formalismo unido ao humanismo de Marit ain não deixava espaço para o Pecado Original e para a horrível maldade do Arcanjo do Mal vis-à-vis a inerente fraqueza de cada ser humano.

Arrupe, levado pela sua vontade, e sem nenhuma raiz intelectual em qualquer ponto do Ocidente, via, na sua visão profética, um fim para todas as classes — na sociedade humana, na Sociedade de Jesus e na Igreja. Via um fim para o domínio do mais fraco pelo mais forte, do inferior pelo superior, dos súditos pelo hierarca, do trabalhador pelo capitalista, do operário pel o empresário, do possuído pelo possuidor, de todos os me nores por todos os maiores.

Paulo e Arrupe só eram semelhantes em um aspecto de suas utopias. Talvez inconscientemente, e sem dúvida por diferentes razões, mas ape sar disso de verdade, eles agiam sob os mesmos impulsos. Tinham a mesma ansiedade vaga pela igualdade; a mesma ênfase na visão humanitária da vida; as mesmas fórmulas sentimentais; a mesma tendência a dissocia rem o conceito do mal do homem e da mulher como indivíduos e a colocarem esse conceito num arcabouço social.

Nessa única similaridade, o papa e o geral, de novo talvez incons -cientemente, davam as mãos ao mais potente cínico do século XVIII, Jean - Jacques Rosseau, c à sua crença na bondade nata do homem. Rousseau dissera que a sociedade organizada — a Igreja e o Estado — é que havia corrompido “o nobre selvagem” que o homem havia sido em sua origem.

Que um papa de Roma e um geral dos jesuítas acabassem aplicando os princípios de Rousseau teria, certamente, provocado um sorriso de des

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prezo do ateu que fez mais, para solapar a religião, do que qualquer ou tra pessoa na Europa nos últimos quatro séculos.

O formalismo inato de Paulo o salvou, pelo menos até certo ponto, quando o empurrão virou tranco. A vontade ardente de Arrupe o derro tou. A luz pode entrar numa mente vazia mais depressa do que a graça pode dobrar uma vontade teimosa. Na época de seu sucesso em declínio, Paulo iria poder abandonar as formas e os moldes sem substância; o des preocupado romantismo italiano já o havia abandonado — tinha sido dissipado pelo crime e pela brutalidade nas ruas italianas, bem como pela traição dos clérigos em que ele confiara. Paulo podia e iria retornar àquela pequenina chama que queimava nos recessos secretos de seu coração católico. Nos seus últimos meses, ele iria balbuciar as orações que havia aprendido no colo de sua mãe e soluçar com frequência. Iria poder ter a esperança de purificação e salvação, mesmo que estivesse deixando sua Igreja em heresia e cisma. Para Paulo, Cristo realmente morrera por ele na cruz.

Arrupe, no entanto, parecia não ter outro recurso a não ser a contí nua dedicação à utopia. Ele caiu todo equipado, em pleno galope apaixo nado. Seu intelecto já não ditava uma posição fixa; e as palavras e conceitos formais que ele herdara do jesuitismo antigo tinham sido esvaziados, em algum ponto de seu caminho, de seu significado inaciano. Ele havia transformado a Ordem dos jesuítas na sua própria semelhança. Daquela simples coletividade de homens, não saía nenhuma luz.

No início de seus reinados individuais, havia certa magnificência em relação a Paulo e Arrupe. Cada um deles foi, às vezes, levado a erros, às vezes à impaciência, e sempre a maiores esforços. Mas havia, naquela primeira fase, um grande encanto que envolvia os dois. Ambos eram sensíveis, extremamente perceptivos, vivamente confiantes, calmos nas tempestades, esperançosos nas dificuldades, impávidos. Ambos contavam com um círculo social dedicado. Ambos fizeram inimigos e críticos inabaláveis — a maior prova de seu impacto.

Aos poucos, Arrupe parece ter-se formado na escola da obstinação. Tornou-se intolerante para com qualquer oposição por parte dos tradi -cionalistas; permissivo em relação a qualquer desvio sério das normas es -tabelecidas; deliberadamente enganador quando encurralado; impetuoso e até caprichoso quando pressionado. Com o tempo, Arrupe se tornou inatingível e intocável pelo mais sagrado elemento que havia nele na qua lidade de jesuíta — seu voto solene de obediência ao pontífice romano.

Esse determinado pontífice romano, Paulo VI, foi decaindo aos pou cos; mas à medida que sua temporalidade e seu fraco apoio no huma nismo foi perdendo a fibra, ele se tornava mais humilde, se bem que mais fraco; e ele se resignou com o seu destino como o único papa que melhor poderia ter detido os destruidores furacões da mudança, mas que não o fizera. O bom coração de Paulo nunca o abandonou. Ele foi açoi tado pelos demônios da desesperança, do abatimento espiritual, da escuridão da mente, da opressão em seu coração. Foi abandonado pela

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calma eminência do grande propósito com o qual havia iniciado seu pon -tificado.

No verão de 1978, sua vida já assumira uma curiosa fragilidade e irrealidade. Quando o dr. Fontana, médico de Paulo, apressou-se a levar um balão de oxigênio para o Castel Gandolfo na noite de 5 de agosto de 1978, foi apenas um gesto. O fim era inevitável. Paulo murmurava repe tidas vezes as palavras do Credo: “Creio numa só Igreja, Santa, Roma na, Católica... Creio numa só... Creio...” Sua febre alta devida à infecção das vias urinárias, sua crescente pressão sanguínea e outras complicações eram apenas sintomas da verdadeira causa de sua morte. Segundo Fonta na, fora o coração de Paulo que se partira. Ele voltou ao seu Deus no dia 6 de agosto. Àquela altu ra, para Paulo foi bom morrer.

O destino de Arrupe foi diferente. Seu sofrimento, quando chegou, não iria acabar em pouco tempo ou com facilidade. Não ficaremos sabendo, do lado de cá da eternidade, que revisões de sua vida e suas reali zações ele conseguira fazer. Mas sabemos o que torna qualquer pessoa agradável ao Senhor da vida e da morte: um coração humilde e contrito.

Em 1965, no entanto, os destinos entrelaçados mas muito diferentes de Paulo e Arrupe, os dois grandes adversários romanos, estavam ocu ltos nas brumas do futuro. Em 1965, o mesmo estado de espírito domina va os dois homens, e era um prazer estar vivo. Em 1965, era hora daquele segundo geral basco instalar-se no imponente prédio da sede jesuítica, o Gesù, como é conhecido, no número 5 do Borgo Santo Spirito.

Ao contrário da pequena casa de pedra onde Iñigo vivera e morrera, o Gesù tem cinco andares e uma seção se eleva a um sexto andar. Como Iñigo, Arrupe teria três aposentos à sua disposição por trás da fachada cinzenta do Gesù em estilo renascentista florentino — gabinete, quarto e capela.

Nos fundos do Gesù, um belo jardim construído em terraços sobre as encostas do Janiculum, decorado com oliveiras, laranjeiras e limoei ros, buxos e parreiras. A rua, Borgo Santo Spirito, faz em frente à casa uma curva que a faz parecer um bastão de hóquei. Saindo pela porta principal do Gesù, Arrupe olhava pela colunata de Bernini e via a praça de São Pedro e o Palácio Apostólico onde vivia Paulo VI. Do terraço no último andar do Gesù, ele via a cúpula da Basílica de São Pedro. Qualquer triunfo, qualquer sucesso, qualquer fracasso que ele obtivesse iria depender de como tratasse o homem que estava naquele palácio apostólico; e do que fizesse com relação à velha fé abrigada por aquela cúpula, como pelo seu próprio tabernáculo terreno.

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18. ROUPAS ANTIQUADAS

U

ma vez completada a sua eleição para padre-geral, o trabalho pesado que a CG31 tinha pela frente era sob medida para Arrupe, aquilo a que ele se acostumara na vida, o perfeito alimento para suas prodigiosas energias e seu lendário entusiasmo.

Obviamente, a primeira coisa necessária era uma maquinaria ade quada para lidar com o enorme número de postulados recebido. E era uma maquinaria pesadona.

O novo padre-geral era apoiado por um secretário com dois assistentes. Presidia as sessões principais pessoalmente ou por meio de um repre sentante. O total de 226 delegados foi dividido em comissões. Aos onze deputados de uma dessas comissões foi atribuída a tarefa de separar todos os postulados que tinham sido recebidos e dividi-los em assuntos gerais — estudos, formação, ministérios, e assim por diante.

Seis outras comissões, cada uma composta por um número que va riava de 24 a 59 membros, começaram a organizar todos os postulados sobre cada um dos assuntos e a examiná-los. Cada uma dessas seis comissões foi mais uma vez subdividida numa série de subcomissões que tinham de três a sete membros; e até as subcomissões foram divididas em comitês.

Além dessas estruturas complexas, mais outro conjunto de subgru pos se fez necessário para lidar com a montanha de postulados a serem examinados. Canonistas, peritos em procedimentos, redatores de texto, editores de estilo, revisores de fórmulas oficiais — estes foram apenas alguns dos especialistas cujos talentos foram obrigados a um serviço pesado.

Detalhe interessante foi o fato de que, sob o comando de Arrupe, com suas extraordinárias habilidades linguísticas e sua convicção da necessidade de penetrar fundo em culturas estranhas, a CG31 foi a primeira congregação jesuítica a experimentar a tradução simultânea das exposi ções feitas nas sessões plenárias dos delegados.

Os objetivos específicos daquele mecanismo complicado eram for necer os textos iniciais para discussão por todos os delegados em suas ses sões plenárias, revisar cada texto depois das discussões, a fim de colocar

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todos eles de acordo com a vontade da congregação, e apresentar, de pois, um texto final sob cada referência que pudesse ser aceito por todos os delegados participantes.

A revelação do processo parlamentar é suficiente para dar uma indicação do desgastante trabalho a que os delegados se submetiam uma vez começado para valer o trabalho da congregação. O progresso de apenas um texto pelas engrenagens dentro de engrenagens dá uma pálida ideia da intensa atividade.

O processo começava quando uma comissão — vamos chamá-la de comissão I — era solicitada a fornecer a minuta de texto sobre um deter minado assunto. A comissão I confiava, então, todos os postulados rela tivos àquele assunto a uma de suas várias subcomissões. A subcomissão designada passava a estudar os postulados relevantes e apresentava a mi nuta A. Esta minuta A tornava a subir a escada para a comissão I, para que fizesse seus comentários, e depois era devolvida escada abaixo à subcomissão, para ser feita a revisão. Nesse estágio, e na verdade em qualquer ponto da linha de preparação, trechos da minuta A também poderiam ser confiados a comitês especializados da subcomissão, para um exame mais detalhado sob um ângulo específico. Quando a revisão — minuta B — estivesse pronta, era enviada aos presidentes de todas as subcomissões, para aprovação. Uma vez aprovada a minuta B nesse nível, lá voltava ela para a comissão I, um membro da qual apresentava a minuta B em outra sessão plenária dos delegados.

Os delegados, por sua vez, tinham três ou quatro dias para fazer seus comentários, e depois lá ia a minuta B de volta à comissão I e suas subco -missões para uma revisão à luz dos comentários dos delegados. O proces so continuava enquanto fosse necessário, até que o texto — a minuta C, D e mesmo E, talvez — fosse finalmente considerado pronto para ser aceito pelos delegados numa sessão plenária.

Por mais complexo que tudo isso possa parecer, ainda não levou em conta as fases intermediárias de discussão e exame, a consulta entre os peritos, a datilografia, a reprodução e todo o resto do serviço de apoio necessário ao trabalho da CG31.

Havia outro assunto — fora a montagem do mecanismo — que precisava ser atacado desde o início da CG31 se ela qui sesse obter mesmo uma fração da “renovação” sugerida naqueles postulados que estavam sendo estudados e

esmiuçados com tantos detalhes, e pela qual muitos delegados clamavam em pessoa. Todos estavam cientes de que, apesar do rigoroso código de silêncio imposto pelas Constituições da Sociedade em relação aos assuntos internos de uma congregação geral, era inevitável que houvesse vazamentos. E Roma se alimenta de rumores. Um papa a quem perguntaram se havia vazamentos no sistema respondeu com um realismo imper turbável: “Não. Vazamentos, não.

Temos apenas um esgoto aberto.” Era de se esperar, por exemplo, que tradicionalistas presentes à CG31 que

pudessem ficar com medo ou alarmados diante de algumas das propostas

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expressas livremente pelos delegados se dirig issem a um ou outro gabinete papal, a fim de transmitir seus receios a autoridades mais altas. De lá, era uma curta distância para repórteres e correspondentes de jor nais que estavam sempre ansiosos por manchetes quentes sobre o Vatica no. Os jesuítas subalternos, nas províncias, poderiam ficar com uma impressão errônea, poderiam ficar alarmados ou aflitos por fragmentos de notícias lamentavelmente divulgados. A própria Santa Sé poderia ser alertada a ponto de ser forçada a sair de sua letargia e autoconfiança.

Tudo se resumia numa questão vital de estratégia: como inovar os projetos de “renovação” que iriam ser a matéria principal daquela con -gregação, sem disparar alarmas no Vaticano, pelas províncias jesuíticas e — através dos meios de comunicação — no mundo inteiro. Manchetes berrando sobre “revolução palaciana”, “modernização”, “revolta con tra o controle papal” ou “alteração das antigas Constituições jesuíticas” eram as últimas

coisas de que se precisava no momento, com um papa inquiridor, uma cúria hostil e um público fascinado observando.

O que era necessário, decidiram os delegados muito no início dos tra -balhos, era um setor de informações, através do qual as versões oficiais dos assuntos da congregação pudessem ser transmitidas à Sociedade em geral por meio de um boletim, e ao mundo todo — inclusive à burocracia do Vaticano — por meio de comunicados e mesmo entrevistas à imprensa.

A norma de segredo absoluto das Constituições foi, portanto, posta de lado e criado o Setor de Informações sob a direção de um membro da Ordem de confiança. Agora, em resposta a quaisquer rumores, ou pa ra contrabalançar quaisquer revelações inoportunas, a Sociedade podia dizer: “Temos uma fonte

oficial de informações, que está autorizada e pode fazer declarações corretas sobre a congregação geral.”

O valor do Setor de Informações, entretanto, não era inteiramente de -fensivo. Uma lição prática aprendida durante as três primeiras sessões do Segundo Concílio Ecumênico Vaticano se referia à importância e ao poder dos meios modernos de comunicação. De fato, tinha sido a utilização hábil dos meios de comunicação que contribuíra, e muito, para o desapon tamento da Cúria Romana, o despertar de um espírito de independência entre os bispos e a criação, entre pessoas comuns fora do concílio, de uma expectativa de que o Vaticano II desse início a grandes mudanças. Tudo isso havia ajudado, por fim, os progressistas a ocuparem o centro do concílio. Foi uma lição que não passou despercebida aos delegados à CG31.

O Setor de Informações, como tudo sob a égide enérgica do padre- geral Arrupe, funcionou bem no seu papel. Seu quadro subalterno era composto de jesuítas — não-delegados, todos eles — que agora tiveram acesso às sessões e reuniões e trabalhavam em íntima colaboração com os superiore s encarregados da congregação. Os funcionários receberam orientações e normas, e graças ao contato íntimo com os elementos que exerciam autoridade adquiriram rapidamente o instinto para saber o que devia e o que não devia ser revelado, e para a maneira aceitavelmente inócua pela qual deveriam ser dadas notícias sobre a congregação.

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Enquanto os delegados se organizavam e se acostumavam à dura labuta diária, as conversações sobre os problemas reais da CG31 já estavam sendo muito intensas. E muito embora os superiores romanos já estivessem, há algum tempo, sabedores do tom e do conteúdo dos postulados aquela deveria ser a primeira vez que eles realmente avaliavam o extremo a que se chegara no desejo de “renovação” e readaptação de toda a Sociedade de Jesus. “Renovação”, passaram eles a entender agora, não significava a simples

adaptação de velhos ideais a novos moldes, ou a criação de novos instrumentos e meios inovadores para abranger os ob jetivos clássicos, tradicionais da Sociedade.

Pelo contrário, até mesmo a essência da Fórmula do Instituto, de Inácio, tão citada por Paulo VI em seu discurso de 7 de maio, foi seria mente questionada. Será que toda essa ideia de obediência especial ao papa não era, agora, um anacronismo? Era o que alguns perguntavam. Em especial à luz do segundo concílio do Vaticano e do documento já aprovado pelo Vaticano II sobre o fato de os bispos da Igreja Católica compartilharem e exercerem o poder com o papa sobre a Igreja universal?

Se houve alguma voz erguida naquelas discussões inteiramente livres para lembrar aos delegados que os jesuítas não eram bispos, que os bispos eram uma instituição de Deus e os jesuítas eram uma instituição do papa, ou mesmo que o documento do Vaticano II que eles invocavam declarava claramente que os bispos não podiam agir independentemente do papa, essa voz tornou -se logo um grito na eufórica selva da “renovação”.

Ao contrário, a ideia toda de um voto especial de obediência ao papa — o famoso Quarto Voto dos membros solenemente professos da So ciedade — foi questionada e atacada como sendo elitista, o produto de uma época morta, uma época em que o papado era, temporal e espiri tualmente, um monarca absolutista. É evidente que uma teoria dessas era tão absurdamente medieval quanto a própria estrutura da Igreja. Não havia dúvida de que já não era compatível com o igualitarismo, a democra tização e o complexo de servo da Igreja anunciado e abençoado pelo Vaticano II — a Igreja como “o Povo de

Deus”. “A distinção [entre padres professos com um voto especial em relação ao

papa e coadjutores espirituais sem aquele voto especial] cheira a aristocracia”,

observou um delegado, “e se tornou completamente inútil.” Se mesmo a essência da Fórmula de Inácio ia ser submetida aos ataques de

todo mundo, então era claro que nada seria poupado de uma aná lise crítica. Estava claro, em outras palavras, que a CG31 não tinha chan ce alguma de se transformar numa congregação geral comum, renovando este setor da atividade jesuítica, contendo aquela tendência ou aquele outro movimento de alguns de seus membros mais obstinados, legislando alterações a que se visse obrigada por circunstâncias externas, aprovando expansão aqui e aconselhando redução ali. Todos os problemas desse tipo tornaram-se brinquedo de criança comparados com o que dominava a mente da maioria dos delegados à CG31. Eles estavam ali para definir

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o que seria a Sociedade na nova era. E insistir no verdadeiro significado de “renovação” para a Ordem. Seria apenas uma questão de adaptar o dínamo já

instalado? Ou deveriam os delegados pensar numa instalação inteiramente nova? Se fosse preciso fazer isso mais tarde, aqueles jesuítas não iriam hesitar. Longe disso.

“Tínhamos que vir a Roma para conversar”, como resumiu um de legado o espírito e a ideia das discussões, “para percebermos que a Sociedade estava usando uma roupa fora de moda.” Um delegado indiano expôs o assunto de

maneira um pouco diferente, de um modo que simplesmen te partia do pressuposto, como acontecia com muita gente, de que Sociedade nada mais tinha a ver com o seu passado: “Qual será, agora, o tecido da Sociedade?”

Esses temas e imagens foram aproveitadas pelo padre-geral Arrupe em suas manifestações subsequentes à CG31. Apesar do estado esfarrapado da Sociedade, disse ele aos delegados, eles iriam fornecer novos fios contínuos para fazer um novo tecido para ela. Ele reconhecia que na mente da maioria progressista ou renovadora, tudo o que havia na Sociedade precisava ser aberto; nada deveria ficar fechado ou isolado, como no pas sado, pelo uso de fórmulas intocáveis ou pela fixação de limites intransponíveis.

Era desejo da congregação tirar a própria estrutura da Sociedade da prateleira onde ficam as coisas sacrossantas, as intocáveis, as permanen tes? Neste caso, isso significava que todas as fórmulas fixas para o trabalho da Sociedade em educação, em missologia (o trabalho organizado de suas missões no mundo inteiro), em seu apostolado social, sua vida espi ritual, sua vida comunitária, seu sistema de membros professos responsáveis pelos demais jesuítas, e seu sistema de acesso a cargos de poder, que dependia da idade, do tempo de casa e da erudição de um homem — tudo tinha que ser submetido a um rigoroso tratamento à vista da “re -novação”.

Pois que assim fosse, então. Mas Arrupe também reconhecia que ainda havia muitos jesuítas que gostavam da “roupa fora da moda”. Havia alguns, na

verdade, que as viam como o próprio emblema da Sociedade. Para fazer com que mudanças assim tão amplas na essência da Ordem fossem inteligíveis e aceitáveis por todos, seria preciso tempo. Os jesuítas subalternos da província não estavam bem preparados para mudanças tão grandes assim, tão radicais assim.

Além do mais, questões que eram de importância vital tinham que ser analisadas com profundidade. Quando a revolução fundamental era o que se precisava fazer, ela não podia ser tratada em sessões de votação, por mais preparadas que fossem, durante algumas semanas ou meses.

E a voz de Arrupe não foi a única a ser levantada em favor da caute la; sua voz ainda era um pouco nova, na verdade, para ter o peso necessário. Havia a força moderadora exercida pelos veteranos romanos entre os jesuítas — homens como Paolo Dezza, o confidente de papas e gerais jesuítas há trinta anos; John Swain, ex-vigário-geral; Pedro M. Abellan,

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procurador-geral da Sociedade; Augustin Bea, cuja posição como cardeal o afastou das fileiras ativas da Sociedade, mas que ainda exercia influên cia considerável e compreensível. Se tivesse que haver mudanças na So ciedade — e tinha —, a atitude daqueles homens era: “Festina lente. (Acelere devagar.)” O

atual santo padre já estava sensível e desconfiado. O que os provinciais jesuítas tinham que compreender era que em Roma tudo leva o quádruplo do tempo normal para ser feito.

O que os superiores romanos tinham que compreender, no entanto, era que aquelas demoras estavam entre as coisas que mais enfureciam as províncias jesuíticas. Desse modo, é provável que o argumento fortíssimo de que o retardamento seria um aliado melhor do que a impaciência tenha s ido o fruto — ou a falta de fruto — dos intensos trabalhos da CG31. A votação de textos definitivos da congregação — os decretos finais discutidos e aprovados — incluiu muito pouco além das providências relativas ao sigilo da CG31 (que incluíram a decisão sobre o Setor de Informações, embora este também tivesse a finalidade de garantir o sigilo); e a inovação dos quatro novos assistentes -gerais, para garantir que o generalato se caracterizasse por uma certa difusão democrática do poder e da autoridade.

Não que essas duas mudanças fossem insignificantes. Longe disso. Acontece, apenas, que tirando esses decretos e as importantíssimas dis cussões, disputas e conversações tanto sobre substância como sobre es tratégia, o período entre 22 de maio e 1º de julho foi estéril. Apesar de todo o estafante trabalho de todas as comissões, subcomissões e comitês, ficou claro não apenas para Arrupe, mas para imensa maioria de delega dos atarefados, que não havia nenhuma esperança razoável ou expectativa prudente de que uma readaptação total — a “renovação” ardentemente desejada — pudesse ser obtida numa única sessão da CG31 no verão.

Mesmo essa aparentemente sensata percepção, no entanto, longe de desanimar a intenção ou o entusiasmo daquela notável congregação ge ral, levou-a a tomar uma decisão sem precedentes na história da Socieda de. Ele decidiu votar a favor de um recesso. 1

O voto, dado no dia 6 de julho, permitiu que os delegados voltassem a suas províncias de origem por mais ou menos um ano e garantiu tam bém que aqueles mesmos delegados iriam voltar quando a CG31 se reu nisse para uma segunda sessão, no dia 8 de setembro de 1966. A supervisão geral dos preparativos para a segunda sessão foi atribuída ao padre Vincent O’Keefe,

como um dos assistentes-gerais de Arrupe. Haveria reuniões intermediárias em Roma, em Paris e nos Estados Unidos, onde se pode riam examinar e preparar melhor as listas do trabalho a ser feito e os textos a serem melhorados. E os delegados teriam, todos, tempo para uma reflexão maior e um est udo mais profundo dos assuntos discutidos naquela primeira sessão.

Alguns comentaristas — participantes ou não da CG31 — têm alegado, muito depois do fato acontecido, embora de maneira não muito inteligente, que a decisão de adotar o recesso foi uma reação à enormidade

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da tarefa de “renovação”, combinada com o excessivo calor do verão romano e

o número extraordinário de delegados. É verdade, o calor romano em junho é, como sempre se pode prever, excessivo — o suficiente para afastar até mesmo os proverbiais cães danados e ingleses do sol do meio-dia, juntamente com todos os demais. Mas congregações gerais antes daquela — tinham sido realizadas no verão — sete das trinta congregações gerais anteriores2 — e tinham terminado seus trabalhos de acordo com os regulamentos.

Verdade, também, que os 226 delegados à CG31 constituíam um comparecimento recorde.3 Esse número significava mais bocas para falar, mais mentes para pensar, mais objeções a responder do que nunca. Sem dúvida que o calor, o número de delegados e a extensão do trabalho a ser feito foram, todos, fatores. O mesmo aconteceu com a advertência dos veteranos romanos para que se acelerasse devagar e a falta de progresso dos delegados. Apesar de tudo, pareceria mais correto dizer que houve outras razões que levaram aqueles delegados, tão impacientes em relação à mudança, a votar em um recesso.

Havia, em primeiro lugar, o novo padre-geral, Pedro Arrupe. Ele era esclarecido, de mentalidade moderna e entusiasmado, disso não há dúvida. Mas ainda não entendia como uma autoridade romana bem- sucedida atinge seus objetivos em Roma. Seria uma tristeza remodelar a Sociedade só para ver sua autoridade mais pública estragar tudo depois que a congregação terminasse.

E ainda havia a considerar a visão que ele tinha do mundo e sua ideia de como as energias da Sociedade poderiam ser mais bem dirigidas para socorrer e servir ao mundo. Ele precisava de tempo para absorver toda a extensão da convicção, entre os delegados, relativa à absoluta necessi dade de tecer um tecido inteiramente novo para a Sociedade.

É verdade que ele já havia entendido algumas das ideias gerais mais importantes da congregação e chegara até a falar com os delegados sobre os novos fios contínuos que a CG31 iria fornecer para fazer um novo te cido para a Sociedade. E de fato, isso indicava uma promessa. No Japão, ele já demonstrara ser o provincial perfeito. Com um pouco mais de adap tação à vontade deles, poderia tornar-se o geral perfeito para eles.

Outra razão em favor do adiamento, e uma razão importante, era o caráter indefinido do segundo Concílio Vaticano. Àquela altura, o concílio era tanto um estímulo quanto uma advertência. Do lado da adver tência, o Vaticano II ainda não fizera, por exemplo, quaisquer declarações definitivas sobre a renovação do espírito entre os religiosos. Os jesuítas eram religiosos. O concílio havia debatido um documento básico sobre o assunto nos dias 11 e 12 de dezembro de 1964. O confronto entre bispos progressistas e tradicionalistas tinha sido bem violento. A questão só iria ser decidida no outono seguinte, na quarta e última sessão do concílio.

Do lado encorajador, eram bons os sinais de que o ponto de vista progressista acabaria ganhando. Não seria melhor esperar por isso? Não

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era um jogo muito perigoso. Se as coisas no concílio corressem como se esperava, haveria uma base conciliar para mudanças na Sociedade de Je sus. Se não, de qualquer modo eles não deveriam ficar numa posição en fraquecida comparada com o momento presente.

Num plano ainda mais amplo, podia-se esperar daquela quarta sessão algo ainda mais revolucionário e libertador. Afinal, os bispos pro gressistas haviam atingido uma maioria e pareciam estar, agora, mais ou menos no controle do concílio. Na famosa “Quinta-feira Negra” de novembro de 1961, quando o cardeal Tisserant anunciou que não haveria voto sobre o documento conciliar sobre Liberdade Religiosa, quase houve um tumulto na praça de São Pedro — ondas de protestos em voz alta, resmungos e distúrbios, bispos saindo correndo de seus lugares e indo para os corredores. Os oradores no pódio não conseguiam se fazer ouvir, tão grande era o alarido. Não havia dúvida de que o papa e sua equipe tinham sentido o impacto da ira dos bispos naquele momento, como sentiriam mais tarde em reuniões embaraçosas e em protestos por escrito.

Para os renovacionistas presentes à CG31, tudo aquilo — em especial a constante inclinação do concílio para os progressistas — vaticinava uma nova era de independência em relação à cúria papal e ao controle do Vaticano. Ninguém podia imaginar a tendência sendo invertida. Ao contrário, era provável que ela ficasse ainda mais forte.

De modo geral, a maré contra o controle papal e a interferência cu rial significaria maior liberdade para a XXXI Congregação Geral estabe lecer suas linhas de “renovação” quando voltasse a se reunir no ano seguinte. Havia forte

esperança de que até lá todos os documentos do Va ticano II estivessem publicados.

Depois de setenta dias da primeira sessão da CG31, então, em 15 de julho, os delegados à CG31 se retiraram por um certo tempo. Até àquela data, tinham conseguido aprovar outros cinco decretos — sobre estudos, ateísmo, o cargo e a duração do mandato do geral, pobreza e o último ano da formação de um jesuíta, chamado de sua “Terceira Provação”. Os delegados podiam manter a cabeça suficientemente erguida ao segui rem para casa para um ano de maiores preparativos.

Depois que os delegados partiram, a 15 de julho, o padre -geral Arrupe e os quatro novos assistentes-gerais que, por assim dizer, agora cercavam o geral, solicitaram — como se esperava que fizessem — uma audiência com o santo padre, a fim de explicar a situação. Durante a pri meira sessão da CG31, de maio a julho, como a congregação esperava quando decidiu formar um setor de informações especial, mais de um delegado havia atravessado a praça de São Pedro para informar os auxiliares diretos de Paulo ou outro setor papal sobre as principais tendências da congregação reunida. Sem dúvida que Paulo presumia que seus visitantes jesuítas estivessem cientes disso; afinal, era assim que as coisas se passavam em Roma.

Contudo, Arrupe ainda não era um romano, fato que a congregação também havia compreendido; e leitura perfeita da mente da CG31 por

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parte de Paulo o deixou perturbado. O pontífice nã o moderou sua linguagem. Cortês como sempre, mas firme e decidido, Paulo sublinhou a importância do elemento papalista que havia no jesuitismo. “Nós esperamos a sua obediência”,

disse o santo padre, “mesmo quando a razão da ordem não lhes for explicada.

Porque a sua obediência deve ser, como o seu padre Inácio disse, como a de um corpo morto. Perinde ac cadaver. O fato de Nós exigirmos essa obediência deve lhes dizer o quanto Nós os estimamos e confiamos em vocês.”

Ele compreendia, disse o pontífice, as razões para o recesso de um ano e, por assim dizer, advertiu os jesuítas para que se certificassem de três coisas: que a Sociedade fosse fiel a si mesma; que enfrentasse com determinação a necessidade de alguma adaptação para atender a novas circunstâncias; mas que, acima de tudo, a Sociedade continuasse realmente fiel ao papado e à Igreja.

Havia uma sensação de constrangimento entre todos os cinco jesuí tas quando deixaram a presença papal. O fato de Paulo lhes ter dito, em termos que não deixavam dúvidas, que fossem fiéis à Sociedade só podia significar que havia uma possibilidade de que Paulo percebesse que mui tos desejavam alterar a natureza da Sociedade; que ele pudesse ter conhecimento das propostas para mudar as próprias “substâncias” da Sociedade, e mesmo afastar-se da devoção tradicional e específica ao papa que formava a razão da existência da Sociedade.

Não foram os desvios da CG31 daquelas normas jesuíticas que per -turbaram o geral Arrupe e os quatro assistentes. A interpretação perfeita de Paulo — o fato de ser tão perfeita — é que era perturbadora. Se eles tivessem visto o dossiê crítico que Paulo possuía e que estava sempre cres cendo, teriam ficado mais perturbados ainda.

A resposta de Arrupe às exortações papais foi respeitosa. Redigiu uma carta a toda a Sociedade. A carta foi datada de 31 de julho, o dia de San to Inácio. Nela, ele repetiu algumas das palavras do santo padre e exor tou seus homens a se prepararem bem para a segunda sessão da CG31, que iria se reunir em setembro de 1966.

No mesmo dia, 31 de julho, o novo geral aproveitou-se do controle jesuítico da Rádio Vaticano para se dirigir a seus jesuítas do mundo intei ro. Sua mensagem, por estar ao alcance também do grande público — inclusive o Vaticano — foi de exortação e estímulo tradicionais.

No dia 27 de setembro, Arrupe teve uma oportunidade realmente ex -traordinária para provar sua têmpera e sua lealdade para com o papa. A quarta e última sessão do segundo concílio do Vaticano estava reunida. Arrupe falou para a sessão plenária dos 2.500 bispos que tinham, nas sessões anteriores, causado grande angústia e dificuldades para Paulo VI. Dessa vez, Arrupe não se colocara sob um foco de luz comum — do tipo a que se acostumara no Japão, por exemplo. Agora, sua voz e seus pon tos de vista seriam ouvidos pela mais internacional audiência que acompanhava todos os movimentos do Vaticano II com uma expectativa eufórica e potencialmente explosiva.

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Olhado ao acaso, lembrou mais tarde um dos padres que estava no concílio, o rosto do novo padre-geral jesuíta parecia liso, apesar de seus 59 anos. Parecia, como escreveu um jornalista, adornado “com a ternu ra de uma freira”. Mas para aqueles sentados perto de Arrupe, o rosto parecia

costurado e suturado com mil tendências. Não será injusto presu mir que pelo menos duas daquelas tendências — sua lealdade para com a Sociedade de Jesus e sua lealdade ao seu papa, que ele havia jurado — estavam em guerra em algum nível de seu íntimo. De qualquer modo, os íntimos daquele basco de nariz adunco, baixinho, “que tinha a coragem de um profeta”, diziam que seria insensato tomá -lo por um simplório clerical, um ingênuo religioso. Dentro dele havia dinamite humana no fim de um longo estopim.

O desempenho do geral diante dos bispos foi de um Arrupe de classe — Arrupe tal como era quando chegou do Japão. E o que ele disse aos bispos causou sensação nos meios de comunicação internacionais. A seu ver, ele estava lançando uma pedra fundamental para o futuro edifício antiateísmo que iria construir em resposta à “tarefa solene” confiada a ele e à sua Sociedade

pelo papa Paulo VI. A Igreja, disse Arrupe, não havia adotado meios adequados para

transmitir sua mensagem ao mundo à sua volta. A mentalidade e o meio cultural daquele mundo eram ateus. Profissionalmente ateus. Além do mais, aquela sociedade sem Deus estava seguindo o que ele chamou de “uma

estratégia traçada com perfeição”. Arrupe acrescentou mais deta lhes ao que queria dizer. “Ela [a sociedade sem Deus] detém um controle quase completo

das organizações internacionais , dos círculos financeiros e no campo das comunicações de massa.”

O remédio? Os católicos tinham que se sentar e traçar uma contra -estratégia que lhes permitisse penetrar em todas as estruturas daquela so -ciedade segundo seus planos cuidadosamente traçados e orquestrados e em absoluta obediência ao santo padre — um autêntico processo de inculturação. Uma vez lá dentro, eles iriam incutir sua moralidade e sua fé naquelas estruturas, mudar e enriquecê-las com valores cristãos e, assim, converter aquela sociedade sem Deus para Cristo.

O discurso de Arrupe, de 2.000 palavras, poderia ter sido feito por um Inácio do século XX, de tão fiel ao ponto de vista e à missão de Iná cio, e no entanto adaptado às diferentes necessidades do mundo de mea dos do século XX no limiar de enormes e inevitáveis mudanças. Foi o tipo de vocação e espírito, mas atualizado, que Loyola havia entrelaçado no tecido da Sociedade de Jesus com resultados tão impressionantes em meados do século XVI.

Aquele discurso de estreia de Arrupe perante os bispos do Vaticano II não foi o único. Ele tornou a falar aos bispos reunidos menos de um mês depois, no dia 7 de outubro, e desancou todo o método de aproxima ção dos povos da Ásia e da África pelos missionários ocidentais. Valendo - se das lembranças sempre vivas, que nunca se apagavam, de Hiroshima, sua linguagem foi causticante — “miopia”, “embuste”, “atitudes infan tis"

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foram alguns dos termos que usou. “O trabalho missionário católi co romano”,

disse ele aos bispos, categórico, “é realizado a um n ível para crianças e analfabetos.”

Alguns bispos classificaram as palavras de Arrupe naquela discurso de arrogantes, condescendentes, e de professorinha do interior. Mas no que se referia aos seus colegas jesuítas, o seu discurso de estreia é que fora o sinal importante. Provara como estavam certos os delegados à CG31 ao julgarem a sua falta de experiência para lidar com Roma e o mundo em termos romanos. Se não disse abertamente, pelo menos ele deu a en tender a uma plena audiência internacional que existia uma organização ateísta universal de verdade, realista. Só isso foi aparentemente ofensivo bastante para garantir -lhe vários momentos desagradáveis durante algumas das entrevistas à imprensa que deu depois — e nas quais negou ter tido ideia, algum dia, de uma organização daquelas, muito menos de ter anunciado isso em público.

A verdade ou a falsidade daquelas ou de quaisquer outras declara ções, entretanto, não foi o que incomodou os colegas jesuítas de Arrupe. O que eles desaprovavam — e com veemência — era o que chamaram de aspereza de sua linguagem, tão oposta ao “espírito do Vaticano II”. O concílio estava tentando dirigir-se “a toda a humanidade” e atrair toda a humanidade com a sua moderação e sua abordagem positiva. E ali estava o seu novo padre -geral propondo uma campanha negativa — um assalto — exposta em terminologia quase militar. Aquilo não podia ser.

O provincial dos jesuítas holandeses reagiu emitindo uma declaração pública deplorando a linguagem inábil e desnecessariamente rude de seu padre -geral. Outros colegas reprovaram publicamente e em particular a atri buição, por parte de Arrupe, de proeminência ao papa em qualquer gran de realização da Sociedade. Aquilo não condizia com o espírito da CG31.

Sob a barragem de críticas, Arrupe começou a contrapedalar. E o fez dedicando-se a uma prática que usaria com muita habilidade em todos os quinze anos no generalato — a entrevista coletiva. Do ponto de vista técnico, foi um bom desempenho. O novo geral respondia perguntas em mais de uma língua. Havia o equilíbrio certo de humor e seriedade. Não se dei xava que nenhuma pergunta ou tema se tornasse embaraçoso ou tenso. In terrogado sobre a incumbência dada pelo papa à Sociedade para combater o ateísmo, Arrupe ridicularizou a ideia de um combate de verdade — de qualquer campanha de oposição ou “anti”. Não; o que os jesuítas iam fazer, disse ele, era dedicarem-se a um proveitoso “diálogo” com os ateístas.

Quando um dos jornalistas — na verdade, membro da Sociedade Hu-manista — aventou que aquilo seria inútil, Arrupe respondeu, com aquele seu sorriso rápido e cativante, que eles poderiam dialogar, então, sobre a inutilidade do diálogo.

E os marxistas? Eles eram ateístas profissionais. A Sociedade ia com bater o marxismo? Aquilo era sempre bom para uma manchete, de uma maneira ou de outra.

Não, foi a resposta de Arrupe. Os marxistas e o marxismo não eram o

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objetivo. Os objetivos, para os jesuítas, eram a “justiça social” (que faltava às

massas) e o “luxo desenfreado” dos poucos privilegiados. E afinal, to dos os bons cristãos e todos os bons marxistas não se opunham àquelas duas pra gas? Sem dúvida, Arrupe pensou naquela resposta com um olho no invisível mas sempre presente pacto de “não-agressão” que o Vaticano havia celebrado em Moscou; e com uma arguta lembrança do que ouvira dos delegados latino-americanos à CG31 sobre a aliança de facto já feita naquela parte do mundo entre os ativistas marxistas e os jesuítas, entre outros religiosos.

Perguntado sobre Teilhard de Chardin e suas teorias que tinham si do rotuladas pela Igreja como condutoras, inevitavelmente, ao agnosticismo e ao ateísmo, Arrupe respondeu com confiança que os “elementos positivos” dos

ensinamentos de Teilhard — o espírito da investigação e o amor pelo mundo de Deus, por exemplo — eram muito mais importantes na filosofia de Teilhard do que quaisquer elementos negativos.

Quando acabou esse primeiro alarido do generalato de Arrupe, ele havia cometido alguns erros. Suas declarações sobre marxismo e sobre Teilhard iriam voltar para atormentá-lo mais tarde. Mas, consideradas do princípio ao fim — desde sua reação às severas advertências de Paulo na audiência papal de 15 de julho, passando pelos seus discursos feitos em setembro e outubro para os bispos do concílio, até seu desempenho na entrevista coletiva — os atos de Arrupe foram um tributo à exatidão com que seus colegas presentes à CG31 o analisaram.

Sempre houvera, em Arrupe, a convicção de que era ele que melhor compreendia o que precisava ser feito em determinadas circunstâncias. Foi precisamente para contrabalançar essa característica que a CG31 de cidiu sobre os quatro assistentes-gerais para cercarem o geral.

Por outro lado, Arrupe também tinha confiança ilimitada no caris ma da Sociedade como instrumento de Deus; e nutria cega obediênc ia à voz das congregações gerais como sendo a voz da Sociedade.

Quando a primeira entrevista coletiva terminou, alguns observado res já comentavam que a ordem original e específica de Paulo aos jesuí tas para que lutassem contra o ateísmo tinha-se transformado, agora — numa questão de semanas — na luta sócio-política das massas. Todo o elemento espiritual e sobrenatural tinha sido habilmente amputado. A voz da CG31 soava com autenticidade nas transcrições da entrevista coletiva, cujas cópias — fortemente sublinhadas em vermelho — chegaram logo ao Santo Ofício e à mesa do gabinete do papa Paulo VI.

Com o tempo, parecia não haver dúvida em dizer -se, e com o tipo certo de estímulo, aquela obediência cega de Pedro Arrupe à Sociedade passaria a ter preferência até mesmo sobre a obediência cega que ele jura ra ao papa, fosse quem fosse este. Só por isso, a CG31 havia agido com critério, de seu próprio ponto de vista, ao requerer um ano de recesso, trabalho e reflexão. Porque para obter a “renovação” completa que era seu objetivo, a XXXI Congregação Geral, e provavelmente as outras que se seguissem, teria que gozar de uma infalibilidade que pudesse rivalizar com a infalibilidade dogmaticamente definida dos papas.

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O

risco que os delegados à CG31 assumiram ao decidir esperar o resultado do segundo Concílio Vaticano compensou além de suas esperanças mais absurdas. O concílio tornou-se a comporta autêntica para a “renovação” e uma justificativa para as mil e uma inovações e experimentos que rapidamente correram pelas eclusas abertas pelo “espírito do Vaticano II”.

Nas palavras de Dom Butler, abade de Downside, Inglaterra, que se tornou voz importante entre os membros do Concílio Vaticano e um apreciado comentarista, o concílio “não ia ser um ajuste superficial, mas um ajuste radical. Ele pretendia uma reavaliação fundamental do catolicismo (...). Este era não só o ponto de vista de uma minoria progressista, mas havia tomado conta do centro do concílio”.

Quando nada, as palavras de Butler eram fracas ao lado da realidade do “ajuste radical” do catolicismo pelo Vaticano II. O concílio aprovara, em primeiro lugar, o Documento sobre Liberdade Religiosa, como os delegados à CG31 esperavam que fizesse. Mas não foi só isso; os bis pos do Concílio Vaticano haviam permitido que os termos daquele documento fossem tão vagos que ele pudesse ser interpretado como uma maneira católica de dizer: não importa em que você acredite; desde que o faça com a consciência tranq uila, isso será religiosamente bom e um direi to seu. Os bispos pareciam dar a todo mundo um “direito natural” de escolher sua religião sem qualquer relação com

o erro. Inevitavelmente, daí surge a ideia de que todas as religiões estão num mesmo nível — algo que o catolicismo não pode admitir. O pensamento do Documento está truncado e mal redigido.

Numa percepção tardia, tem havido discussões acaloradíssimas sobre o que os bispos do concílio pretendiam fazer. Na verdade, porém, essas dis -cussões poucas diferenças práticas fazem, porque o que os bispos realmente parecem ter feito foi arriar a antiga bandeira de sua Igreja que proclamava sua verdade como exclusiva. Em seu lugar, hastearam uma nova bandei ra, proclamando que eles seriam membros do que era nada mais nada me nos do que uma fraternidade humana. Seu trabalho, agora, seria atingir

19. NOVOS FIOS CONTÍNUOS

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objetivos humanos comuns. O caminho há tanto procurado por tantos para livrar a Igreja Católica de sua reivindicação exclusiva da verdade religiosa já havia sido traçado, assentado e pavimentado com pedras lisas pelo Concílio Vaticano cm seu Documento sobre Liberdade Religiosa.¹

Esse documento não estava sozinho como uma espécie de produto anômalo do Concílio Vaticano II. Outras declarações do concílio, igualmente em linguagem vaga, podiam e iriam ser usadas para deixar a Igreja à deriva num mar de opções meramente terrenas e cortar as amarras de muitos, na Igreja, livrando-os de qualquer coisa inconvenientemente sobrenatural. Os apostolados sociais podiam, pela linguagem do concílio, e na verdade o fariam, visar a melhoramentos puramente materiais da condição humana. : A liturgia podia e iria ser reformada para que tivesse formas humanamente agradáveis e aceitáveis. O sacerdócio, o episcopado, o cardinalato e o papado podiam e, pela vontade de muitos, iriam ser transformados em postos de serviços sociais para apoiar e estimular os esforços terrenos da humanidade, fossem eles quais fossem. A sexualidade já não precisava ser um meio de cumprir as obrigações humanas no mundo criado por Deus, mas um meio de prazer ao qua l todos tinham direito. Na verdade, a própria Divindade — tal como Teilhard a conce-bera — podia e, como foi comprovado, iria ser, para muitos, reduzida à apoteose do desenvolvimento humano.

Como se para dar o giro final às rodas que abriam todas aquelas c om-portas, e também como se para afogar qualquer esperança de manter a autoridade de seu papado, muito menos fortalecê -la, Paulo VI decidiu encerrar a última sessão do segundo Concílio Vaticano de uma maneira violentamente estimulante. O discurso do papa no dia 7 de dezembro de 1965 — na verdade, o discurso de encerramento do concílio — foi feito para uma assembleia repleta de bispos e teólogos, observadores católicos, dignitários visitantes e representantes dos meios de comunicação. Foi a última tour de force de Paulo como o discípulo obediente do humanismo integral.

“Qual é”, perguntou o pontífice sentado em seu trono na Basília de São

Pedro, “o valor religioso deste Concílio?” Passou, então, a deixar claro o que

pensava sobre aquele valor. O concílio não se preocupara, disse ele, com as verdades divinas co mo

tais; estivera “profundamente dedicado ao estudo do mundo moder no”. Estivera

preocupado “com o homem — o homem tal como é realmente hoje: o homem vivo, homem todo envolto em si mesmo, homem que se faz não só o centro de todos os seus interesses, mas ousa alegar que é o princípio e a explicação de toda a realidade”.

Nós, na Igreja, enfatizou Paulo, temos “o nosso tipo de humanis mo: nós também, na verdade mais do que quaisquer outros, honramos a hu manidade. (...) Os valores do mundo moderno foram não só respei tados [no concílio] mas honrados, seus esforços foram aprovados, suas aspirações purificadas e abençoadas”. De fato, prosseguiu o pontífice, “tudo neste Concílio se relacionou à utilidade humana”.

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Ainda não satisfeito, e como soubesse que estava cavando uma trin cheira demasiado profunda da qual não pudesse sair, Paulo prosseguiu fazendo inúmeras declarações tão ambíguas que, por melhores que fos sem as intenções, sua linguagem teria sido invejada pelos mais fanáticos modernistas do século XIX e digerida rapidamente, de uma só vez, pelos modernistas do final do século XX.

A religião católica e a vida humana, disse Paulo, reafirmam sua aliança; a verdade é que elas convergem para uma só realidade: “A religião católica

existe em prol da humanidade. (...) Nosso humanismo se tor na a Cristandade (...) um conhecimento do homem é um pré-requisito para um conhecimento de Deus. (...)” A esperança do santo padre, concluiu Paulo, era que a mensagem daquele Concílio fosse “um simples, novo e solene ensinamento para que se

amasse o homem a fim de amar a Deus”. Era o sonho simplista do liberal invariavelmente esperançoso, a ideia de

que se você for bom para as pessoas, mesmo que abandone o mais básicos suportes de sua vida, as pessoas serão boas para você.

Considerados em conjunto, o trabalho do Concílio Vaticano II e o discurso de encerramento do papa Paulo VI, que o coroou, forneceram uma Carta Magna para os delegados que se preparavam para a segunda sessã o da XXXI Congregação Geral da Sociedade de Jesus. No entender deles, o pensamento da maioria progressista da congregação tinha sido amplamente expresso pelo próprio papa Paulo VI. Eles admitiam que Pau lo havia acrescentado uma condição acautelatória aqui e ali. Mas nem ao menos uma vez houvera nos lábios de Paulo qualquer palavra sobre a hierarquia apostólica; não houvera uma única insinuação de seu inefá vel privilégio como único vigário de Cristo, nem sobre a firme fé cristã no triunfo de um Deus -homem crucificado e ressuscitado. Tampouco, quanto a isso, houvera uma única palavra sobre a Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica, centralizada em Roma e na sua persona pública como papa.

Não é de admirar, então, que para as mentes já fermentadas pelo modernismo, já conquistadas pela doutrina cativante, e já impacientes e corcoveando no arnês do apelo de Inácio para que estivesse no mundo do homem mas que não se integrassem nele, o discurso de Paulo era não apenas uma permissão, mas um convite para que se rebelassem.

À medida que os preparativos para a segunda sessão da CG31 entra vam pelo Ano-Novo coordenadas com competência no mundo inteiro pelos superiores romanos da Sociedade, o padre-geral Pedro Arrupe não mostrava sinais de cansaço, nenhum outro sinal de retropedalar. Praticamente falando, o discurso de Paulo eliminara qualquer necessidade de ficar preocupado com o problema de fidelidade ao papado versus fidelidade à Sociedade.

O primeiro grande empreendimento de Arrupe, em abril de 1966, foi um giro de duas semanas, rápido, de costa a costa, pelas províncias da Sociedade de Jesus nos Estados Unidos. Não foi fácil. Quase a quarta

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parte de todos os 36.038 jesuítas do mundo estava nos Estados Unidos; lá, a Sociedade ostentava 28 universidades atendendo a 140.000 estudantes e 56 escolas secundárias com 35.000 alunos.

Na presença do maior número de jesuítas já reunidos no continente norte -americano, Arrupe celebrou a sua primeira “Missa folclórica” na Universidade

Fordham, na cidade de Nova York. Ali também fez um discurso no qual proclamou pela primeira vez em público o manifesto da “nova Sociedade”. E,

tanto na missa como no discurso, bateu nas teclas mais relevantes em favor da “nova” era.

A própria missa foi inovadora para a sua época, e distintamente pós-Vaticano II. Em sua maior parte, foi rezada em inglês e apresentou um guitarrista que se acompanhava enquanto cantava spirituals negros, e a congregação cantava os estribilhos. Depois, à tarde, Arrupe falou no campus para uma audiência de cerca de 2.500 pessoas. Enalteceu o “experimento democrático americano”. Observou que agora, depois do segundo Concílio Vaticano, “a nobre tarefa de construir a terra — um mundo melhor para o homem viver (...)” já não era “um ideal meramente secu lar”. Era cristão, disse ele à sua audiência. Garantiu a ela que teorias como evolução e liberdade religiosa eram, agora, aceitas pela Igreja. Na verda de, exigiu uma completa liberdade acadêmica para a universidade, indo até mesmo à aceitação de “ensinamentos e práticas contrárias ao catolicismo”, porque “(...) caso

contrário setores da experiência humana, de valor incalculável, são inevitavelmente postos de lado (...)”.

Receptividade, total liberdade, ênfase na experiência humana — eram estes os seus temas, como tinham sido os temas do discurso de Paulo en-cerrando o Vaticano II. Mas acima disso tudo, Arrupe clamava por no vas soluções para os problemas religiosos daquele momento; sem aquelas novas soluções, fossem elas quais fossem, disse Arrupe, “receio que pos samos repetir a resposta de ontem para os problemas de amanhã”. Arrupe não disse exatamente que a tarefa de uma universidade católica já não era fomentar o catolicismo, mas era isso o que ele queria dizer. O padre Joseph Tinnelly, da St. John’s University, também em Nova York, achou necessário dizer, no dia seguinte, que a sua universidade “procura fomen tar a religião católica. (...) Caso contrário, não acredito que seriamos uma universidade católica”. O padre

Tinnelly foi um dos poucos a comentar que Arrupe havia proposto que os jesuítas voltassem aos ideais seculares, longe de objetivos específicos e exclusivamente religiosos. Mas a voz de Tinnelly não foi ouvida pelos educadores jesuítas. A euforia do momento não permitia sofismas.

Na verdade, a viagem americana de Arrupe — em especial a missa inovadora na Fordham e seu discurso, lá, com a promessa de liberdade das restrições — começou a levá-lo para o centro do palco de uma manei ra nova que granjeou a simpatia de seus colegas jesuítas americanos. Sua reputação pela temporada no Japão começou a circular; pequenos fatos cativantes, como a instalação que mandara fazer de uma vendedora au tomática de Pepsi-Cola na sede jesuítica em Roma, pareciam feitos sob

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medida para os americanos e eram repetidas com frequência para eles. Seus modos cativantes sobrepujavam o traço um tanto condescendente que ainda fazia parte de seu estilo. Em suma, para os jesuítas americanos que corcoveavam para se verem livres para a tarefa de mudar as coisas na Sociedade e na Igreja, ele parecia o tipo perfeito do geral.

E os americanos não demoraram muito a entrar em ação. Em julho de 1966, menos de três meses depois da revigorante visita de Arrupe, o irmão James M. Kenny foi nomeado para o posto de vice-presidente encarregado de planejamento na Universidade Fordham. Isso fazia parte da nova democratização. Kenny, um irmão leigo, ocupava agora um cargo até então reservado aos padres.

De maneira geral, o recesso valeu a pena para a CG31, em mais de um aspecto e em mais países do que na América. Enquanto o Concílio Vaticano II detonava as sementes de seu “espírito” soprando -as de Roma para o mundo inteiro, os delegados da congregação geral em recesso tinham cavado com pás o seu pedaço de terra para cultivar aquelas sementes.

Em Roma, em agosto daquele ano, Pedro Arrupe caiu doente. Fal tando apenas um mês para que a CG31 se reunisse para sua segunda ses são, o assistente-geral Vincent O’Keefe, que estivera dirigindo os preparativos em âmbito mundial — consultas, reuniões, textos provisórios, e assim por diante — para a congregação, assumiu o leme da Sociedade enquanto o padre -geral se recuperava. Se tudo corresse bem, segundo ideia de Arrupe, um dia O’Keefe iria sucedê-lo como geral.

Desde o início da segunda sessão da CG31, em 8 de setembro de 1966, a atmosfera, segundo alguns, parecia um pouco o período imediatamen te após a Revolução Francesa. Direitos iguais, democracia, fraternidade — e isolamento em relação ao papado — eram os temas e objetivos da congregação agora, e todo aquele que não chamasse os demais de “cidadãos”

deveria ser guilhotinado. Os americanos não foram os únicos delegados ansiosos por entra rem em

ação. Já na primeira sessão, a maioria em favor da “renova ção total já” havia

posto o dedo em três questões de primordial cons equência, questões que iriam afetar tudo o mais na Sociedade. 3 Agora, um ano depois, era grande e generalizado o entusiasmo para se atacar o problema principal; dessa vez, não haveria rodeios com corridas de aquecimento em torno das questões ou votações que tinham papel de testes; tampouco iriam os delegados preocupar -se muito com questões insignificantes cuja solução não fosse ajudar ou prejudicar a “renovação”. Das sessões plenárias às reuniões dos subcomitês e

às conversas particulares entre indivíduos, a conversa séria convergia para aquelas três questões centrais.

A primeira e mais importante era o caráter “pontificai” da Socieda de, isto é, a sua fidelidade, como Ordem, ao papa, jurada em voto especial. A segunda questão de importância central — a posição privilegiada dos padres professos na Sociedade — estava intimamente ligada à primeira,

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precisamente devido ao voto especial e pessoal de obediência aos papas, feito em caráter individual por todo professo. Dada a dimensão democrática considerada obrigatória para a “renovação”, não foi sur presa o fato de que a terceira principal questão também estivesse ligada ao problema pontificai. Ela se referia à elegibilidade de jesuítas para par ticipação nas congregações provinciais, as versões menores regionais (“provinciais”, portanto) das

congregações gerais como a CG31. O que irritava os delegados, neste ponto, era que, como ditavam os

regulamentos jesuíticos, aquelas congregações provinciais não estavam abertas a qualquer jesuíta que não fosse padre professo ou tivesse uma certa idade, ou as duas coisas. Por definição, então, outros jesuítas — coadjutores espirituais, por exemplo, que não tinham feito voto especial algum em relação ao papa e não podiam ser superiores maiores; e sem dúvida os irmãos le igos mais subalternos, que nem mesmo eram padres — tinham negados uma voz na Sociedade e uma entrada cedo no cami nho do poder na Ordem.

Todas as três práticas foram denunciadas, em termos explícitos, como repugnantes para a mente moderna, como contrárias aos objetivos de democratização e fraternalismo exigidos, agora, das questões religio sas, e — a pior ofensa de todas — “ao espírito do Vaticano II”.

Objeções a exigências revolucionárias assim tão profundas foram le -vantadas pelos delegados mais tradiciona listas, sob a alegação de que aquelas “essências” da Sociedade estavam sendo atacadas, e de maneira impiedosa,

com base em argumentos puramente sócio-políticos. Os jesuítas, insistiam aqueles tradicionalistas, não eram um clube sócio-político; não eram, por exemplo, os Cavaleiros de Colombo.

Mas a objeção foi inútil. Aqueles tradicionalistas não tinham a men-talidade própria de “cidadãos”. Tratava -se, afinal, de apenas uma questão de justiça. Os direitos iguais de indivíduos e a democratização da religiã o faziam parte integral da “renovação”. Caso contrário, a “renovação” não poderia ser

religiosamente autêntica ou autenticamente religiosa. Deixados de lado as tautologias e o levantamento de questões, tanto os

tradicionalistas como os renovacionistas entre os delegados compreendiam o que estava em jogo ali. Em conjunto com as mudanças já feitas no cargo de padre-geral, a alteração daqueles três pontos “essenciais” pelos decretos

oficiais da CG31 iria mudar radicalmente a estrutura da Socie dade de Jesus, se comparada com a Sociedade que Inácio havia construído. Mas isso não era nem a metade. Havia muito mais na mente de alguns delegados. Não apenas o “caráter monárquico” da Sociedade estava sendo atacado; alguns delegados e

uma grande quantidade de postulados propunham que se alterasse até o caráter sacerdotal da Sociedade. Por que não aceitar como jesuítas leigos casados? (Talvez os Cavaleiros de Colombo não fossem tão maus assim, no final das contas?) De fato, por que não ter a esperança de que um dia os padres tivessem permissão para se casarem? Por que não, em termos claros, imaginar homens casados como jesuítas ativos?

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O mesmo realismo que havia levado os delegados a entrarem em re cesso no ano anterior indicava que essas tendências eram demasiado e xtremas por enquanto. Vozes tornaram-se cuidadosamente abafadas, e as questões sacerdotais foram deixadas de lado para um momento mais pro pício. O mesmo não aconteceu, porém, com a determinação de mudar o sistema “hierárquico”

da Sociedade. Já em 19 de setembro, uma sessão plenária da CG31 aprovou o texto final

do Decreto nº 4, que dizia, de forma inequívoca, que “a XXXI Con gregação Geral (...) determinou que todo o governo da Sociedade tinha que ser adaptado às necessidades e maneiras de viver modernas; que todo o nosso treinamento em espiritualidade e estudos tem que ser alterado; que a própria vida religiosa e apostólica deverá ser renovada (...) e que a própria tradição espiritual de nosso Instituto, contendo tanto elementos novos como antigos, deverá ser purificada e enriquecida sob nova forma segundo as necessidades de nossa época”.

Inevitavelmente, e quando o processo ainda estava bem no início, a investida da CG31 no sentido de acabar com o sistema monárquico da Sociedade ficou sendo conhecida “ali em frente”, no gabinete papal. Todas aquelas reclamações que ainda chegavam em quantidade, enviadas pelos núncios apostólicos, delegados e legados do papa Paulo para en gordar seu dossiê sobre os defeitos da Sociedade, estavam sendo confir madas pela CG31. A Sociedade como um todo estava ficando imbuída de um espírito de desobediência; o sistema monárquico tinha sido abandonado, em sua maior parte, pelos jesuítas na prática. O Decreto nº 4 iria servir de carimbo de aprovação, a licença oficial que iria transformar o que agora era desobediência num caos aprovado, sem controle possível.

Paulo VI chamou o padre-geral Arrupe à sua presença, e naquela audiência o pontífice não hesitou em demonstrar suas desconfianças e seus temores sobre o caminho que a congregação estava tomando. A imagem da Sociedade que o santo padre traçou para Arrupe não foi lisonjeira. Citou os desvios doutrinários da Sociedade; suas frequentes interpretações não-católicas da lei moral; suas críticas às vezes virulentas e sempre negati vas, tanto à Santa Sé em geral e ao papa Paulo em particular; a inobservância, por jesuítas em toda parte, das leis da própria Sociedade relativas à pobreza, vida comunitária, obediência, viagens, participação de atividades políticas, e formação de estagiários jesuítas. As palavras do pontífice traçaram um retrato vivo de uma ordem religiosa em revolta contra o controle papal e divergindo muito da velha veritas catholica, a Verdade Católica.

A Sociedade queria ou não queria, quis saber Paulo VI, preservar sua posição pontificai? A Sociedade queria ser reconhecida como a servi ço especial do papa e da Santa Sé, ou não? A CG31 queria mesmo dizer que “a

própria tradição espiritual de nosso Instituto (...) deverá ser puri ficada e enriquecida sob nova forma”? Aquilo significava abolir o voto especial de obediência ao papa? Abandonar a estrutura monárquica da Sociedade?

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A ferroada da reprimenda do papa ainda estava por vir, e foi pro funda. Se as coisas continuassem como estavam indo naquele momento, se a Socie dade redefinisse unilateral e arbitrariamente sua posição reli giosa em relação ao papado e às autoridades da Igreja, o papado e as au toridades da Igreja não teriam outro recurso senão redefinir o seu relacionamento com a Sociedade de Jesus. “Não queremos outra Sociedade de Jesus”, enfatizou Paulo, “exceto a

Sociedade que Inácio de Loyola construiu e legou.” Se a CG31 fosse esperta,

iria considerar a distinção de graus na Sociedade — a divisão hierárquica de padres professos, coadjutores e irmãos leigos — como caso encerrado.

As implicações ficaram claras para Pedro Arrupe, como ficaram pa ra os delegados da CG31 quando ele se reportou a eles depois de sua ses são com Paulo. A sabedoria daquilo que muitos dos membros mais velhos da Sociedade tinham andado dizendo aos renovacionistas impacientes tornou-se clara, agora. Sim, os trajes tradicionais da Sociedade podem ter caído de moda; mas, a não ser que quisessem provocar uma reação muito mais violenta e até mesmo destruidora de uma papa teimoso e já enfurec ido, seria melhor os delegados à CG31 contentarem-se com o fornecimento dos “novos fios contínuos” de que

Pedro Arrupe havia falado no ano anterior. Tais fios, levados para a próxima congregação geral — porque a CG32 já se tornara um brilho no olhar da Soc iedade — poderiam ser usados para tecer um novo conjunto de trajes para a Socieda de. E só Deus sabia: talvez, até lá, a Igreja tivesse um papa mais preo cupado com a “renovação”. Cunctando regitur mundus. Se você puder esperar o suficiente...

A ideia da recalcitrância da CG31 e de sua determinação em continuar tecendo aqueles novos fios é dada pelo fato de que mesmo depois da séria re-primenda do papa Paulo, os delegados votaram, no Decreto nº 5, pela cria ção de uma comissão permanente que continuaria a existir depois de encerrada a CG31 e cuja finalidade seria estudar ‘‘toda a questão de acabar com a categoria

de coadjutor espiritual” ou “conceder a Profissão solene tam bém aos coadjutores temporais” (irmãos leigos). Em outras palavras, apesar da

proibição do papa Paulo VI, a Sociedade não ia encerrar o caso das cate gorias ou, mesmo, do caráter “monárquico” da Sociedade. Ou todos os peões seriam

declarados aristocratas, ou todos os aristocratas iriam unir -se aos peões. Fosse como fosse, a Sociedade ficaria sem classes.

Por mais recalcitrantes e determinados que fossem, os delegados ha viam aprendido muitas lições com o Vaticano II. Assim como a ideia ex-traordinariamente valiosa de criar um setor de informações havia se originado nas experiências do Concílio Ecumênico do Vaticano, o mesmo aconteceu com a lição de como redigir até mesmo decretos revolucio nários: era preciso usar a mais vaga das linguagens. As frases deveriam ser tão soltas, que uma carruagem renovacionista, puxada por duas pare lhas, poderia mais tarde passar pela linguagem de aparência tradicionalista das cláusulas. E tudo aquilo deveria ser envolto nos casulos sedosos das formas e fórmulas aceitas da romanità.

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O papa fazia objeções ao Decreto n º 4 e sua determinação para que a vida religiosa apostólica fosse renovada? Sua Santidade também era con trário à purificação da tradição espiritual dos jesuítas? Pois muito bem. Foi fácil acrescentar ao Decreto n º 4 a declaração de que a Fórmula do Instituto — o texto de Inácio no qual se baseia a posição pontificai da Sociedade — “alcançara, de maneira especial, aquela condição de lei pon tificai. (...) Porque a Fórmula mostra a estrutura fundamental da Sociedade. (...)”

Paulo VI havia vencido aquela escaramuça; mas a batalha não ter minara. Até mesmo a romanità não podia encobrir inteiramente a tendência

revolucionária dos decretos da CG31; aquela tendência estava sempre fu rando os casulos da romanità. Em certo texto, por exemplo, a “missão da Sociedade

de Jesus hoje” era declarada como sendo trabalhar sob o comando do pontífice romano; mas, já que “nos encontramos numa nova era”, a CG31 “considera que

as condições da história humana estão profundamente alteradas”. As condições

que afetam a vida religiosa, por tanto, mudaram. Por trás de tentadores leques formados de uma linguagem leve como plumas sobre o afastamento do mundo que os ensinamentos e a vida de um cristão impunham a este cristão, e sobre a miséria sócio-política de milhões, dançavam declarações seminuas de que a CG31 “se oferece inteiramente à Igreja” e se esforçou, em seus decretos, “para

promover uma renovação para que possam ser retiradas de nosso corpo as coisas que possam restringir-lhe a vida e impedir que ele atinja inteiramente o seu objetivo”.

Devido à “incumbência solene” dada pelo papa Paulo à Sociedade, de “combater o ateísmo (...) com a união de forças”, o documento da CG31 sobre

o ateísmo (Decreto nº 3) foi um dos mais importantes. Foi, por isso, submetido a um manuseio especialmente hábil, que desde então tem sido tac hado, com mordacidade, de “tipicamente jesuítico”.

O decreto transcreve a essência das palavras combativas de Paulo:

A mais terrível forma de ateísmo é aquela que é cruelmente agressiva, não apenas ao negar a existência de Deus na teoria e na prática, mas ao usar deliberadamente suas armas para destruir nas raízes todo o senso de religião e tudo o que é santo e piedoso. (...) É tarefa específica da Sociedade de Jesus defender a religião e a santa Igreja nos momentos mais trágicos. Nós atribuímos a ela a obrigação de se opor ao ateísmo com todas as forças concentradas, sob a proteção de São Miguel, o príncipe das hostes celestiais.

Depois, numa demonstração de meia-volta que é tanto verbal como mental, o Decreto nº 3 tira toda a combatividade das palavras de Paulo ao exortar os jesuítas a “darem maior atenção aos ateus” e a “serem cau telosos” ao julgá-los. Afinal alguns ateus possuem “o dom de grandeza de espírito”. Os ateus, na

verdade, devem ser confortados, deixando-se

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que vejam “nossas vidas e nossos atos, nossos modos de viver”. Em algumas frases bem redigidas, o Decreto nº 3 dá a entender que grande

parte do ateísmo é devida a condições sociais injustas e degradan tes, à injustiça cometida contra os pobres e privados de seus direitos. Além do mais, os jesuítas deveriam, “no momento oportuno, ter determinados contactos pessoais

com ateístas” a fim de compreendê -los. Em geral, propõe-se um contato mais íntimo com os ateus, uma avaliação cuidadosa e benévola de sua maneira de pensar, e uma aproximação humana.

O decreto justifica seu fraseado vazio ao estabelecer que enquanto todos aqueles contatos, aquela compreensão e aquela avaliação benévola estivessem acontecendo, o padre-geral deveria perguntar ao papa Paulo o que, exatamente, ele tinha em mente com relação àquela tarefa solene de combater o ateísmo.

Na feitura daquele decreto houve também a participação de uma no va versão de uma ideia muito antiga. No passado, os jesuítas haviam se esforçado para se adaptarem e adaptarem sua mensagem católica à mentalidade alienígena da Ásia e da África. Adaptação era uma palavra de ordem na tradicional missologia jesuítica. A nova palavra era inculturação. A ideia era adaptar-se tanto à cultura dos alienígenas, que o missionário adquirisse a mentalidades daquela cultura, e readaptar a doutrina e a prática moral para que se encaixassem naquela cultura alienígena.

A inculturação lançava, agora, sua sombra sobre o decreto, como aconteceu com a convicção de Arrupe de que o ateísmo deveria ser trata do como qualquer outra cultura alienígena. O que havia de novo, perigo so e não-jesuítico com relação a essa inculturação era o uso dessas ideias para mascarar objetivos puramente sócio-políticos e um ideal exclusivamente temporal.

Tudo isso, mais o uso do sentimentalismo como a linguagem de um importante decreto, juntamente com o recurso a “incompreensões” e pe didos de esclarecimento, sem dúvida serviu de modelo nos escalões mais altos para o padre Fernando Cardenal e outros em sua luta, cerca de quinze anos depois, contra o papa João Paulo II. Mas fez mais do que isso. Proporcionou a abertura através da qual a Sociedade faria passar uma car ruagem puxada por duas parelhas, muito especial e importante. Seria argumentado, nos anos seguintes, que o ateísmo, como tudo o mais, tem uma causa puramente social; que o ateísmo vem da desilusão com os fracassos da Igreja. Como o romanismo havia fracassado junto aos pobres, o ateísmo era culpa da Igreja sediada em Roma. Para livrar o mundo do ateísmo, os jesuítas deveriam fazer “uma opção preferencial pelos pobres”. Isso, por seu turno, iria significar que eles teriam

que combater todos os que não fossem pobres, bem como o sistema que permite que alguns não sejam pobres enquanto deixa os pobres ainda mais pobres. O sistema era o capitalismo do Ocidente. Portanto — prosseguia a argumentação —, a convocação papal para combater o

ateísmo era um chamado para combater o capitalismo. A linha completa de argumentação só seria traçada e exposta em de

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talhes alguns anos mais tarde. Mas o novo aspecto sócio-político da Sociedade nos anos setenta e depois seria talhado dessa maneira e com base apenas nos “novos fios contínuos” a serem tirados dos fusos dos decre tos habilmente ambíguos da CG31.

Um número muito grande de fusos estava envolto por aqueles novos fios antes da CG31 se encerrar. Foram preparadas, por exemplo, certas mudanças estruturais que levariam, inevitavelmente, a confundir qualquer distinção prática entre aquelas odiosas categorias nas fileiras jesuíticas. Arrupe insistia que a juventude devia ser impressionada com uma “nova imagem” da

Sociedade. “Uma tarefa muitíssimo séria”, classificava ele, “destilar todo o

bem contido nas inúmeras propostas e solicitações de nos sos jovens, e canalizar de forma adequada essa força e esse dinamismo (...) é de necessidade absoluta. Estamos lidando com uma lei biológica ou lei social que é irresistível. Não devíamos tentar resistir a ela, a menos que queiramos provocar uma revolução completa.”

Dentro desse espírito, os delegados decidiram que as congregações menores regionais, ou provinciais, não ficariam mais restritas aos padres professos ou outros jesuítas com antiguidade de serviço. Os participantes daquelas congregações seriam, agora, eleitos por todo o quadro provin cial; além do mais, os irmãos leigos e os coadjutores espirituais teriam tanta oportunidade de serem eleitos quanto os padres professos. Não ha veria mais regras relativas à antiguidade na carreira.

Outro assalto — que teria consequências igualmente amplas na Sociedade — foi feito contra a classe “privilegiada” dos padres professos, apesar do fato

de significar mais outra mexida nas Constituições. A questão, dessa vez, se referia ao voto que cada padre professo fazia de nunca alterar as regras da Sociedade quanto à pobreza, exceto para torná-las mais rigorosas. O próprio Inácio havia incluído esse voto nas Constituições, querendo que as casas dos padres professos não tivessem renda ou dotações fixas.

O Decreto nº 18 da CG31 revogou, na verdade, o estabelecido por Inácio e declarou que “o ganho ou a remuneração pelo trabalho feito se gundo o Instituto constitui uma fonte legítima de bens materiais necessá rios à vida e ao apostolado dos jesuítas”.

É claro que essa questão, como as alterações na elegibilidade para participação da congregação provincial, fazia parte dos “pontos substanciais”

da Sociedade. Apesar de tudo, os delegados ainda não estavam sa tisfeitos. Teceram outro daqueles novos fios a serem levados adiante e mesclados ao “novo tecido da Sociedade”. Decretaram que o padre-geral e quatro outras autoridades deveriam preparar uma revisão de toda a le gislação sobre a observância do voto de Pobreza.

Quando a CG31 terminou seus trabalhos no dia 17 de novembro de 1966, havia alterado, ou fornecido os “novos fios contínuos” para alterar, todas as facetas de espiritualidade e ação da vida jesuítica. A lingua gem de seus decretos, de modo geral, usa muito as formas e fórmulas romanas e tradicionais dos jesuítas. Mas a mesma ambiguidade flexível

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exala dos decretos da CG31, como exala dos decretos do Segundo Concílio Vaticano. De fato, dados os vapores inebriantes da euforia e a “reno vação”

ainda vagamente definida que eram a própria essência do “espírito do Vaticano

II”, talvez não seja de surpreender que os delegados tenha m investido contra o guarda-roupas jesuítico de “trajes fora de moda” como adolescentes limpando um vestiário de escola secundária. Encorajados pelo incontido entusiasmo e verve do padre-geral Arrupe, e favorecidos pela direção do novo elemento de liderança que eles próprios haviam instalado em Roma — os quatro assistentes-gerais — os delegados se dedicaram a todos os detalhes da vida jesuítica: educação e atividade escolástica, o apostolado sacerdotal dos jesuítas, instituições pastorais, missiologia e suas missões junto a não-cristãos, ecumenismo, as artes — tudo ficou impregnado com o espírito de “renovação”.

Ao decretar mudanças na formação e no treinamento de jesuítas, por exemplo, a CG31 acabou com muitos dos sistemas estruturados que pa reciam tão misteriosos e, no entanto, eram tão invejados por muitos de vido à sua eficiência. No lugar desses sistemas, a CG31 colocou alguns princípios amplos e adequadamente vagos, insistindo primordialmente na experimentação. As velhas regras jesuíticas de asceticismo e autodisciplina foram enfeitadas com novas exortações sobre auto-aceitação, liberdade de movimentos, equilíbrio emocional e treinamento por psicólogos.

Os superiores foram enfaticamente instados a confiar em seus subal -ternos, em vez de treiná-los. A obediência iria ser modificada segundo um novo princípio de “consulta”. Praticamente falando, o efeito desse princípio

eliminava a obediência sistemática dos jesuítas a qualquer superior, provincial ou não. Cada jesuíta seria, agora, “consultado” sobre se, à luz de seu progresso pessoal, seu equilíbrio emocional, seu direito à liberdade de movimentos e suas necessidades em geral, queria cumprir uma ordem ou uma instrução. Ele podia, com a mesma facilidade, responder “não” ou “sim”, à luz desse novo

princípio de “obediência”. Mais do que isso, porém, essa nova declaração de independência fei ta

pela congregação geral como “o mais alto superior” da Sociedade sig nificava que cada comunidade de jesuítas poderia se manifestar sobre o que seus superiores podiam ordenar. Nessa nova regra, como em outras, estava encerrado o desejo de ser democrático, de deixar o indivíduo à von tade, para que pudesse conseguir a “integração” da maneira que lhe fos se mais adequada.

Juntamente com a velha linguagem e prática de pobreza e obediência, a linguagem tradicional da Sociedade relativa à devoção e à vida in terior do espírito também foi abandonada. Ninguém, na Sociedade, ficaria mais preso a qualquer forma de oração ou a qualquer tempo específico de duração da oração. A devoção ao Sagrado Coração, uma das mais populares e mais difundidas devoções na Igreja universal e que tinha sido estimulada e defendida pelos jesuítas desde o século XVII, deveria ser es tudada (a CG31 não disse “praticada”), a fim de que se descobrisse por que tantos jesuítas a consideravam inútil, se não repugnante.

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Tampouco seria mantida a antiquíssima e devocionalmente eficiente prática de mandar alguém ler um texto adequado para a comunidade du rante as refeições. Entre as matérias estatutárias a serem lidas estavam as Regras jesuíticas e outros documentos fundamentais da Sociedade. De um só golpe, ficou assegurado que as gerações mais novas de jesuítas iriam crescer ignorando documentos básicos da Sociedade.

Tendo construído a base a partir da qual destruir a obediência aos superiores da Sociedade e eliminar grande parte do treinamento e da pie dade dos jesuítas, a CG31 foi adiante e criou todo um cenário para a ex perimentação que era de sua preferência para a “nova Sociedade”. Esse cenário se acha va nas entranhas do mundo. A CG31 manifestou-se contra o conceito tradicional de ter casas de formação jesuíticas, e especialmente o noviciado, separadas das áreas urbanas populosas. Nem os noviços nem os escolásticos em treinamento deveriam continuar a ser mantidos afastados das pessoas comuns ou do mundo secular. Além do mais, toda a questão de a que ministérios os jesuítas deveriam se dedicar — em outras palavras, que trabalhos deveriam fazer especificamente como jesuítas — já não seria mais decidida por superiores e padres professos, mas seria aberta ao exame democrático. Cada província iria formar sua comissão especial para estudar como se poderia alcançar maior flexibilidade nas tarefas e nas missões. Foi aberta, assim, a porta para o individualismo e as decisões comunais, eliminando o comando do superior que antes decidia, com base no quadro geral, onde concentrar seus homens.

Poderíamos dedicar páginas e páginas a essas mudanças. Na verda de, os decretos da CG31 enchem muitas páginas. Mas quando se faz a autópsia, quando toda a romanità é eliminada e os ossos descarnados são retirados das camadas de ambiguidade macia e carnuda e da camuflagem das frases de aparência tradicional, o que se vê na mesa de exame é uma criatura sem cabeça destinada à calamidade. Os decretos da CG31 estavam destinados a levar a Sociedade de Jesus a um caos tumultuoso. Os jesuítas estavam, agora, não só livres em grande parte, mas sendo instados a usar as mãos nas mais diversas tarefas, missões e experimentos, mui tos dos quais pouco ou nada teriam a ver com a salvação de almas. Estava aberto o caminho para converter os jesuítas em assistentes sociais, ativistas políticos e fazedores de campanhas ideológicas.

A mesma ambiguidade flexível, o mesmo “espírito do Vaticano II” e o

mesmo entusiasmo pela “renovação” e disposição para a igualdade que

marcavam os decretos da CG31 iriam tornar -se a marca e a justificativa de jesuítas como Fernando Cardenal e Robert Drinan enquanto de vastavam todas as ideias anteriores de obediência religiosa. E iriam tornar-se a pedra de toque para religiosos não-jesuítas como aqueles que escreveram o manifesto da Teologia da Libertação, que transformou o vi gário de Cristo de líder da Igreja universal num alienígena indesejável nas terras em que o inidentificável “Povo

de Deus” reinava em seu lugar. De caráter mais imediato, entretanto, nas tempestades iniciais que iriam

seguir-se à CG31, a voz da congregação naqueles decretos viria a

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ser um abrigo resistente para o padre-geral Arrupe. A congregação geral, o mais alto superior da Sociedade, havia falado. Ele era simplesmente o seu servo.

A primeira dessas tempestades, embora longe de ser a maior, desa bou sobre a Sociedade no exato momento em que a congregação se pre parava para encerrar os trabalhos.

Paulo convidou todos os delegados para se reunirem com ele na Ca pela Sistina do Vaticano. Lá, ele iria co-celebrar a missa com cinco dos delegados (inclusive Arrupe) e depois falar a todos os participantes da CG31. O ato de Paulo ao convidar a todos foi um gesto paternal de afeição e atração. O gesto dizia: vocês todos são meus filhos, apesar de quaisquer coisas duras que eu tenha dito ou vá dizer-lhes. Façamos tudo sob o teto papal e como uma família.

Sua presença papal, sua bênção papal, a ação unificadora de co-celebrar a missa, tudo falava da esperança de Paulo de que as aberrações do passado pudessem ser exatamente isso — aberrações e passadas. Seu discurso papal que se seguiu à missa, enquanto isso, deu aos delegados a oportunidade de uma olhadela no outro lado da moeda. Muitos dos delegados, talvez levados pelo convite papal a pensar que, afinal, as coi sas não eram tão más assim, ficaram surpresos pelo fato de que as “coisas duras” que saíram dos lábios de Paulo em

seu discurso pudessem estar envoltas no aspecto inofensivo da maneira de receber. Apesar da recalcitrância dos delegados, eles pareciam não ter previsto algumas das coisas que ele tinha a lhes dizer.

Embora Paulo já estivesse sofrendo sérios problemas de saúde, não se esquivou, em seus discursos daquele dia, de um rematado realismo. A CG31, disse o pontífice, tinha um significado histórico especial. Era uma ocasião para papa c Sociedade definirem seu relacionamento mú tuo. Com a franqueza que lhe permitia a romanità, Paulo fez à congregação inteira as mesmas perguntas que fizera nas primeiras semanas da segunda sessão da CG31, quando pintara um quadro desolador daquilo que a Sociedade estava se tornando.

Temos duas perguntas a lhes fazer, disse o pontífice. Vocês, jesuí tas, querem ser jesuítas como Inácio imaginou que os jesuítas seriam e como os jesuítas têm sido até agora? Chocava o fato de que ele parecia admitir uma resposta negativa àquela pergunta. “ Ideias estranhas e sinistras que mudariam a natureza de seu Instituto”, disse Paulo, “estão na raiz de sua recusa. Há, entre

vocês, membros que já não acreditam na Verdade Católica ou no carisma pessoal do papa.” Um ativismo falso e uma enganadora secularidade haviam

substituído aquela Verdade e aquele carisma, para alguns. A primeira pergunta de Paulo e sua própria resposta dura foram se guidas

por mais duas perguntas. Como a primeira, o papa as havia feito a Arrupe naquele encontro privado anterior. E como a primeira, foram argutas e acusatórias:

Qual era o relacionamento da Sociedade com a Igreja e com o papado?

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Será que a Igreja e o papado, hoje, ainda pensavam que a Sociedade era “sua milícia especial e mais fiel” — a milícia que se dedicara, especi-ficamente, a “defender e promover a Igreja Católica e a Sé Apostólica”?

Uma vez mais, fazer perguntas assim tão fundamentais já era res pondê-las na negativa. Paulo foi adiante, entretanto, e deu uma resposta condicional ao papado e à Igreja. Naquela resposta, tocou nos pontos sobre os quais a Sociedade já cometera graves erros, segundo os relatórios que estavam no dossiê papal.

“Enquanto a sua Sociedade estiver dedicada a lutar pela excelência na

doutrina bem fundamentada e na santidade da vida religiosa, e se ofe recer como o instrumento mais eficiente para a defesa e divulgação da Fé Católica, esta Sé Apostólica e, com ela, certamente que toda a Igreja, irá tê -los em altíssima estima.”

Misericordiosamente, Paulo não expôs o outro lado da condição: se a sua Sociedade não lutar pela excelência na doutrina bem fundada, Nós não hesitaremos em abolir e eliminar a Sociedade de Jesus. Dizer isso te ria sido contrário à romanità, que aplica penalidades àqueles que mostram as cartas antes de estarem prontos para usá-las, e que, de qualquer modo, não vê com bons olhos o uso de uma linguagem violenta.

Em vez do castigo, portanto, Paulo usou a recompensa. Vocês po dem voltar a ser grandes, disse ele aos jesuítas reunidos com ele na Sistina. Vão, pratiquem a verdadeira devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Trabalhem com afinco na educação católica da juventude e na conversão de não-cristãos nas áreas das missões.

No entanto, nem todo o resto do discurso do pontífice foi liberalis mo alegre e esperança paternal. Houve, também, outro bom pedaço de presságio bem informado; e dessa vez não foi do tipo esperado ou comum.

Permitam que Nós os façamos lembrar, disse na verdade o pontífi ce, de que apesar de todas as coisas otimistas ditas durante suas delibera ções sobre o mundo que chamava, a nova era e tudo o mais existem neste mundo cujo frescor e cuja modernidade os fascinam, duas classes de pessoas ou, melhor, dois mundos mesclados num só. Há “o mundo do Compacto”, no qual entraram

todos aqueles que dão as costas à luz e à graça. E existe o mundo da “imensa

família humana pela qual o Pai enviou seu Filho, e pela qual o Filho se sacrificou”. Não deixem, disse Paulo aos jesuítas reunidos, de pertencer ao

segundo mundo da família salva por Cristo e de trabalhar exclusivamente para ele, e não para “o mundo do Compacto”.

Paulo, como vários de seus ouvintes sabiam muitíssimo bem, estava pondo o dedo no fato de que vários jesuítas tinham não só se portado e falado como se Cristo não fosse um Deus salvador, mas também entra do para mais de uma organização religiosamente neutra ou religiosamen te hostil ao catolicismo. Na verdade, o paralelo entre esse discurso de Paulo VI e o discurso de estreia de Pedro Arrupe no segundo Concílio Vaticano no ano anterior é notável — fato que talvez não tenha passado despercebido pelos

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delegados que estavam na Sistina. Tivesse Paulo dito em termos rudes — como Arrupe quase havia feito — que havia um complô internacional contra a Igreja dirigido por pessoas que se haviam compactado para for mar uma organização específica dedicada a promover Lúcifer e a causa de Lúcifer, não poderia ter provocado um erguer de sobrancelhas mais cético, um comentário posterior mais causticante, ou uma rejeição mais retumbante ao seu apelo. Na verdade, Paulo havia ido mais adiante; dera a entender que alguns jesuítas tinham entrado para o Compacto.

“Isso não passa de exagero”, declarou mais tarde um destacado mem bro da sede dos jesuítas em Roma, ao negar importância a todo o discur so papal. Não haveria ameaça papal ou apelo apaixonado papal — e o discurso de Paulo ia de um extremo ao outro — que pudesse alterar a determinação da CG31 e de seus líderes.

De fato, até aquele dia de novembro de 1966, um ano depois de Ar rupe ter feito um apelo semelhante à quarta sessão do Concílio Vaticano, o padre-geral já havia alterado, obviamente, sua perspectiva . No dia 24 de novembro, Arrupe deu uma entrevista coletiva para falar das realiza ções da CG31. Pressionado com perguntas sobre as palavras de Paulo na quele discurso de 16 de novembro relativo ao novo tipo de obediência adotado pelos jesuítas, Arrupe se tornou arrogante e mentiroso.

“Não sei”, declarou Arrupe, “o que Sua Santidade quis dizer quan do falou que nossos membros alimentavam ideias estranhas e sinistras de alterar o caráter da Sociedade de Jesus.” E prosseguiu: “Há o perigo de que a situação

possa transformar Obediência em governo coletivo. Mas, se examinada bem de perto, ela nada mais é, na verdade, do que a comunidade e os superiores unindo esforços.”

Em outras palavras, a nova situação não era um governo coletivo porque, examinada mais de perto, era um governo coletivo. Arrupe estava se tornando um mestre na confusa linguagem política.

Estava, também, ficando mestre na arte do esquecimento seletivo. Aparentemente eliminadas de sua mente estavam as vezes, durante a CG31, em que ele tinha sido chamado em pessoa à presença do papa para escla recer aquelas “ ideias estranhas e sinistras” sobre as quais ele parecia, ago ra, muito iludido; ideias sobre a “democratização” da Sociedade, sobre a “consulta” em

lugar da obediência religiosa, sobre todas as propostas aberrações do jesuitismo clássico que chegavam até a pretender a aboli ção do caráter sacerdotal da Sociedade. “Não entendo o que o santo padre quis dizer”, disse

ele, afável, “quando Sua Santidade falou em ideias estranhas e sinistras.” Perguntaram a Arrupe, na entrevista coletiva, se tinha havido entre -

choques entre a Santa Sé e a Sociedade durante a CG31. Claro que não, disse Arrupe, rejeitando uma ideia assim tão ridícula. “Não quero defender quaisquer erros que os jesuítas possam ter cometido; mas o maior erro seria ter tanto medo de cometer um erro a ponto de simplesmente pararmos de atuar.” Mas,

continuou ele, havia harmonia entre Sua San tidade e ele próprio, como geral da Sociedade.

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"Olhar futuro muito próximo"!”, resumiu um repórter italiano o pensamento

dos delegados entrevistados depois da C G 3 1 . “Por meio de tentativas e

experimentos, descobrir o que a Sociedade deveria passar a ser, o que deveria estar fazendo neste mundo dos homens de hoje. Depois, voltar a Roma logo, para a próxima e definitiva congregação.”

O padre-geral Pedro Arrupe expôs o caso em termos de aparência mais tradicional. O trabalho da Sociedade de Jesus, agora, seria prepa rar-se para a CG32; especificamente, desenvolver e fazer uso cada vez maior dos “novos

fios contínuos” fiados pela CG31 para tornar os jesuítas “capazes de darem

nova expressão ao carisma primitivo da Sociedade”. Arrupe e seus colaboradores estavam convencidos de que sabiam exa -

tamente o que queriam dizer com aquelas palavras. Era quase certo te rem em mente um objetivo parecido com o sucesso quase miraculoso da velha Sociedade quando surgira de repente para a vida e o poder no mun do novo que nascia no ano de 1500. Os jesuítas daquela época ofuscaram os olho s de todos com a sua mestria e seus brilhantes dons em todos os campos de atividade. Encheram os ouvidos dos homens com a canção de um humanismo novo e inteiramente cristão, e a mente com um novo intelectualismo. Deram esperança e luz. Foram condutos de graça e de beleza divina. Apesar de todos os seus defeitos, naqueles primeiros 150 anos de existência, os jesuítas venceram em seu grande empreendimento; foram bem-sucedidos acima das mais absurdas esperanças de seus mestres papais, e por certo acima dos l imites que lhes foram fixados pelo ódio e pela oposição violentos de seus inimigos.

Quase que certamente, também, Arrupe e seus colegas compreendiam que aqueles antigos jesuítas venceram porque foram capazes, literalmen te, de inventar um novo estilo para o catolicismo romano — para os papas e os bispos, padres e freiras, teólogos e filósofos e laicado —, seguiram

20. À PROCURA DO CARISMA PRIMITIVO

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“pelo caminho do Senhor Jesus” segundo a doutrina católica e, com is so, enfrentaram o novo mundo que caíra na cabeça dos homens no sécu lo XVI.

Tudo isso estava, sem dúvida, na mente e nos planos de Arrupe quan do ele falou em “dar nova expressão ao carisma primitivo da Sociedade”.

É um tanto mais discutível se ele e os outros líderes jesuítas do sécu lo XX ainda entendiam o carisma — primitivo ou não — como o carisma sempre fora entendido antes: como uma dádiva totalmente gratuita de Deus.

Deus podia dar aquele dom — como deu a Inácio — ao fim de um longo e intenso período de oração em recolhimento, de escrupuloso exa me de consciência, de rigorosa penitência, de atividade humilde e humi lhante, tudo realizado na ausência de qualquer enaltecimento egoísta ou pessoal. Como qualquer dom sobrenatural, em outras palavras, o carisma não seria, com toda certeza, discernível ou atingível por um imenso esforço burocrático olhando não para Deus mas para levantamentos sociológicos, estudos gerenciais, foros de discussões, experimentos doutrinários, moralidade do cargo e tabelas atuariais.

Os peritos em computador de uma época mais adiante passaram a gost ar de dizer: “Entra qualidade, sai qualidade; entra porcaria, sai por caria.” Os

jesuítas, logo em seguida à CG31, poderiam ter inventado um slogan semelhante, embora menos fácil de pegar: entra preparação espi ritual, sai carisma, se Deus assim quiser; entra preparação social e política, saem pregações sociais arrogantes e egoístas.

De qualquer modo, na história das organizações humanas, não há dúvida de que foi estabelecido um recorde pela Sociedade de Jesus entre os anos de 1966 e 1974 no uso máximo de seus recursos materiais, a fim de que a CG32, quando se reunisse em Roma, conseguisse, fosse como fosse, soprar aquele “carisma original e primitivo” em seus decretos e, assim, lançar a Sociedade

para a vanguarda da “nova era em que a raça humana se encont ra”.1 Em

essência, a Sociedade de Jesus passou a se as semelhar a um conjunto, de âmbito mundial, de engrenagens e rodas, carretéis e fusos, dínamos e motores, todos regulados por um enorme volante central na inesgotável pessoa de Pedro Arrupe.

Comunidades jesuíticas conversavam, estudavam e discutiam entre si; coordenavam sua conversa, seu estudo e sua discussão com a conver sa, o estudo e a discussão em outras comunidades de sua província. As províncias, por sua vez, coordenavam-se com comunidades de outras províncias na mesma assistência. Comunidades e províncias da mesma assis tência coordenavam-se com as de outra assistência. E todas as assistências atiravam aquilo que pudesse ter sido produzido por uma coordenação as sim maciça para a sede dos jesuítas em Roma.

Em muito pouco tempo, inesgotáveis linhas impressas em seis lín guas enchiam montanhas de papel. O objetivo final de toda essa meticu losa pesquisa seria a criação de condições adequadas entre os jesuítas de todas as partes, a fim de que pudessem enviar novos delegados a Roma

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cheios da euforia da descoberta e de uma nova confiança na Sociedade — os delegados à “definitiva” XXXII Congregação Geral.

Acontece, porém, que a CG32 não iria se realizar tão cedo quanto alguns haviam previsto com tanta esperança. O trabalho a ser feito antes iria levar oito anos. Ainda assim, considerando-se os enormes efeitos que o trabalho deles provocaria, oito anos era um período extraordinariamente curto.

A primeira tarefa daquele mecanismo coletivo na Sociedade toda c omeçou bem cedo. Em fins de outono de 1966, foi iniciado um maciço “Le vantamento Sociológico” de toda a Ordem, que duraria três anos, de acordo com a

convicção da CG31 de que só conhecendo a si mesmos os jesuítas poderiam descobrir seus papéis certos nesta nova era.

Todos os métodos de avaliação conhecidos foram usados para des cobrir a situação da Sociedade em cada província no mundo inteiro. Con sultores administrativos, unidades de pesquisa de levantamentos e depar tamentos acadêmicos inteiros apresentaram tudo, de perfis psicológicos individuais às tabelas atuariais mais amplas e, no entanto, mais detalhadas.

Só dos Estados Unidos chegou um relatório de cinco volumes, con tendo 140 estudos de pesquisa sobre as províncias americanas. Depois de todos os seus esforços, os dois editores jesuítas daquele estudo tiveram que concluir, um tanto pesarosos, que “só um profundo, interessado e continuado

repensamento de (...) nossas crenças e fundamentos lógicos (no que se refere a nossas pressuposições) poderá fornecer uma base para a unidade e o consenso necessários à sobrevivência”.

2 Talvez aqueles editores vissem mais do que percebessem. Seja como for,

aquilo que eles haviam apresentado não era, é claro, a euforia da descoberta e a nova confiança que iria animar a CG32. Eles pareciam mais preocupados com a própria sobrevivência da Sociedade do que com a recuperação do “carisma

primitivo” de Arrupe. À luz de tal estado de espírito entre os jesuítas subalternos, merece

destaque um projeto iniciado já em 1967. Naquele ano, um grupo de jesuítas de vanguarda e já altamente colocados reuniu-se na Universidade de Santa Clara, na Califórnia. Esses líderes estavam encarregados por seus superiores para nada menos do que escolher “as futuras direções” que a Sociedade iria tomar. Era seu objetivo formar um conceito e um sistema de “desenvolvimento

jesuítico total”. Apesar da enormidade de uma tarefa dessas, o relatório deles

estaria pronto em 1969, apenas dois anos depois. E seria estarrecedor. Quanto ao padre-geral Pedro Arrupe, entrementes, ele estava no seu

elemento. Suas energias pareciam alimentar -se na agitação de trabalho que foi desencadeada. De fato, é provável que tenha estabelecido uma espécie de recorde de dedicação incansável. Fez o que lhe foi possível. Sua pro dução, enquanto literalmente entrecruzava o globo repetidas ve zes, parece quase de atordoar. Aonde quer que Arrupe fosse, tentava se reunir não apenas com os seus jesuítas, mas com os líderes civis de todo tipo e descrição — com U Thant das Nações Unidas; com o presidente

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Marcos das Filipinas; com Whitney Young, presidente da Liga Urbana nos Estados Unidos; com planejadores do governo indiano. Para todos, qualquer que fosse o assunto da conversa, sua mensagem essencial era idêntica à que ele dera a U Thant: “Nós [os jesuítas] temos o compromis so de trabalhar com homens bem-intencionados de todos os credos e raças, para uma sociedade mais verdadeiramente humana, (...) justiça e paz, um senso de família e de esforço conjunto entre as nações. (...)” Sem dú vida, uma magnífica expressão de humanismo secular.

Sua vida tornou-se um giro contínuo de viagens aéreas de Roma para Manila, para Dublin, para Duala, na República Federal dos Camarões, para Bombaim e Goa, para Nova York, para Madri, para Gênova e de vol ta outra vez a Roma, só para partir outra vez em outro giro. Aonde quer que fosse, falava dos assuntos mais diversos, expondo suas ideias sobre ecumenismo, liturgia, justiça social, paz, vocações religiosas, dedicação, educação, comunicações, os Exercícios espirituais de Inácio de Loyola, missiologia, episcopado, sacerdócio, a virtude da pobreza, Sacramentos, problemas sociais, diálogo, generosidade, teologia, os Santos, a causa da paz, envolvimento político.

Lançava torrentes de palavras e resmas de ideias aos jesuítas, alunos jesuítas, não-jesuítas, bispos, religiosos, leigos. Seus trabalhos escritos para a Sociedade e para terceiros multiplicavam-se com rapidez. Em suma, tratava-se de um Arrupe incessante, sempre constante, nunca abaixo de sua capacid ade plena. E ele vicejava com aquilo. Sua exuberância nunca brilhara de forma tão visível. “Seu rosto se ilumina quando ele está via jando”, observou um

assistente. Como sempre, seu entusiasmo era contagiante — e era esse o detalhe do exercício.

O propósito principal de Arrupe, em todas aquelas viagens, conver sas e correspondências, era conhecer seus jesuítas — e fazer com que eles o conhecessem e, através dele, pegar a mesma febre em favor da “reno vação”,

seu entusiasmo no sentido de encontrar e reacender aquele precioso “antigo

carisma” e de levar a Sociedade à frente enquanto seus enormes mecanismos de

estudo tomavam lentamente o impulso que iria culminar na CG32, “a próxima e

definitiva congregação”. Ao mesmo tempo, sua disposição de ver e conversar com praticamente

todos os que cruzavam seu caminho por acaso ou por opção — dele ou deles — não deixava de ter o seu objetivo. Porque o propósito dele também era colocar a Sociedade “no mapa” na mente das autoridades públicas de to dos os lugares, e agarrar aquele sutil mas, apesar de tudo, verdadeiro poder que reveste aquele que se torna uma personalidade internacional.

Em meio a toda essa atividade, as comissões criadas pela CG31 também se puseram a trabalhar, cada uma se concentrando num aspecto específico do jesuitismo atual. A distinção de categorias ou “classes” na Sociedade, por

exemplo, que tinha se tornado um tormento muito grande para Paulo VI, foi matéria de estudo de uma comissão. Os padrões de pobreza entre os jesuítas foram examinados por outra comissão. Várias outras tratavam silenciosamente de questões educacionais e disciplinares.

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O enorme e complicado mecanismo que não deixaria intocado ne nhum detalhe da Sociedade estava tirando os olhetes e bombeando um pouco de impulso de verdade em 1968, quando houve o primeiro grande teste dos frequentes protestos de lealdade jesuítica ao papa apresentados por Arrupe. Foi, também, a primeira indicação clara dos caminhos pelos quais estava seguindo a febril procura do “carisma primitivo”.

Naquele ano, o papa Paulo promulgou a mais famosa encíclica de todo o seu reinado, Humanae Vitae (“Vida Humana”). Nela, Paulo reconfirmava a proibição, por parte da Igreja, de todas as formas de con tracepção, e o fazia sem nuanças, distinções ou exceções. Reiterava a doutrina tradicional: a contracepção era inaceitável; não havia maneira de um católico poder praticá -la na legalidade. A posição do papa era tão absoluta quanto a de qualquer papa antes ou depois dele.

Se a doutrina tradicional estava inteiramente ao lado de Paulo VI na Humanae Vitae, a prática entre os católicos era outra coisa; porque o controle da natalidade havia se disseminado amplamente entre eles na Europa e nas Américas, com a conivência de padres e bispos. Os jesuítas, enquanto isso, na Europa, nos Estados Unidos ou no Terceiro Mundo, não tinham feito segredo de sua aprovação da Pílula que revolucionara o pensamento popular a respeito da contracepção. E Arrupe, que na ocasião já estava há três anos no posto de geral, também não tinha feito coisa alguma para fazê-los observar as normas.

No agitado período que se seguiu ao Vaticano II, a encíclica totalmente tradicional de Paulo foi considerada por muitos — mas não por todos — como intervenção papal num assunto que interessava intimamente a praticament e todos os católicos do mundo; era como um som desafina do de um trumpete interrompendo uma sinfonia que seria agradável sem isso. O que se seguiu àquele trumpete foi um parlamento internacional de um protesto ululante, de recriminações constrangedoras, de franco repúdio, e de ridículo.

Conjuntos nacionais inteiros de bispos — os indonésios, os holandeses, os alemães, os austríacos, para citar apenas alguns — declararam abertamente que, embora, é claro, apoiassem o santo padre, a contracepção era uma que stão de consciência individual.

Entre os intelectuais jesuítas, não houve nem mesmo aquelas tentati vas transparentes de parecerem obedientes ou solidários. A publicação jesuítica dos Estados Unidos, America Magazine, sob a direção de um novo editor, Donald Campion, S.J., publicou dois artigos criticando e atacando a Humanae Vitae. Quase que com a mesma rapidez, o peso pesado teológico da Alemanha, o amplamente respeitado Karl Rahner, S.J., que havia ajudado os bispos alemães a redigirem sua resposta dúplice à encíclica de Paulo, assinou um ataque violento e inequívoco que nada mais era do que um desafio à infalibilidade do papa em assuntos de fé e moral. Todos os argumentos do papa, disse Rahner com desprezo, são “na verdade, material e substancialmente falsos”.

Um grupo de jesuítas — quase toda a faculdade, na verdade — da

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Escola Jesuítica de Teologia em Berkeley, Califórnia (JSTB), publicou um manifesto, novamente na America Magazine, denunciando a Humanae Vitae. O manifesto de Berkeley provocou alvoroço, pois foi respondido por outro grupo de jesuítas leais a Paulo VI, que alegavam que todos deveriam ser obedientes ao papa. Eles, por sua vez, foram respondidos pelo presidente da JSTB, Richard Hill, S. J. Como padre de seu rebanho, Hill escreveu ao arce bispo de San Francisco insistindo em que a dissidência dos membros de sua faculdade jesuítica era necessária porque eles par tilhavam da “angústia” de tantos

católicos. (Quando um funcionário graduado da chancelaria de San Francisco leu sobre a “angústia” do corpo docente de Hill, não pôde resistir a uma piada:

“O que é que aqueles caras têm feito em suas folgas de fim de semana?”) Justiça seja feita, a determinado nível o provincial da Califórnia, Patrick

A. Donahue, repreendeu os dissidentes da JSTB. A um nível mais importante, porém, ele não os castigou por atacarem os ensinamentos mo rais do papa. No entanto, precisamente isso — atacar o papa por motivos morais — sempre fora o crime inimaginável, a transgressão par excellence, na Sociedade, de sua missão e seu propósito.

Aquela desobediência e aquela desordem por atacado na Sociedade acabaram caindo sobre os ombros de Pedro Arrupe. Pessoalmente, ele não concordava com que a contracepção fosse sempre moralmente er rada ou que, ainda que fosse, que a encíclica devesse ser obedecida. Depois de todas as suas viagens até então, ele conhecia muito bem as ati tudes de muitos de seus homens. Sabia, também, que em certas áreas eles promoviam a contracepção e até recebiam doações da Planned Parenthood Federation of America (Federação de Paternidade Planejada da América). 1

É claro que a romanità exigia que Arrupe escrevesse uma carta a toda a Sociedade apoiando o papa naquela questão. Na verdade, ele enviou três cartas circulares aos seus jesuítas. As duas primeiras devem ser consideradas em conjunto como um prodígio de imaginação criadora.

A primeira era um lembrete a seus homens de que eles eram jesuítas, de que o papa era papa, e de que ele era geral. Aquela encíclica do papa precisava de uma “inabalável e decisiva lealdade”, acompanhada como sempre por um

“raciocínio criativo que”, reconhecia ele, “não é, em ab soluto, fácil ou conveniente”.

Na sua segunda carta, Arrupe analisou o que entendia por “raciocí nio criativo”. Não se limitem a ler as palavras da encíclica, disse ele a seus jesuítas, mas mostrem “a disposição de entrarem num curso intensi vo de estudo para descobrir seu significado e sua intenção tanto para o indivíduo como para terceiros”. Neste conselho, tornou-se claro que Arrupe não sabia ou não se importava com o fato de que estava falando aos jesuítas sobre uma regra tradicional e rígida do catolicismo comum; que, em termos crus, sua teologia básica e seu jesuitismo básico eram es sencialmente fracos. “Os pontos de vista

da Humanae Vitae podem não ser, à primeira vista, compatíveis com os nossos”,

escreveu ele, “mas só

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transcendendo a nossa perspectiva individual e que sua correção será re -velada.”

Não foi só a fraqueza de sua teologia ou de seu jesuitismo que pro vocou um pequeno dilúvio de protesto sobre a cabeça de Arrupe, porém, mas sua linguagem empolada e vazia, indecisa, sua possível disposição de fazer uma acomodação com o “passo para trás” do papa naquela ques tão da sexualidade.

Os superiores provinciais das duas províncias jesuíticas da Alemanha, o padre Krauss de Munique e o padre Ostermann de Colônia, repu diaram as duas cartas do padre-geral e contestaram os ensinamentos de Paulo VI sobre a contracepção. Mais de cem jesuítas se reuniram no Co légio São Jorge, de Frankfurt, onde redigiram uma carta dirigida em termos imperturbáveis a Arrupe: “A Sociedade de Jesus não pode aceitar a posição que o senhor achou

de seu dever adotar em suas duas cartas.” Em outras palavras, o senhor não

acredita naquilo que nos manda pensar e fazer. Não aceita a carta de Paulo VI e, por isso, por que deveríamos aceitá-la? Quanto a isso, pelo menos, os jesuítas alemães estavam certos.

Embora o assalto crítico a Arrupe não fosse nada em comparação com a onda que tragava Paulo VI, a resposta de Arrupe fez dele mesmo o exemplo vivo de um velho provérbio nada lisonjeiro: “Escolha um je suíta como confessor, porque ele irá sempre colocar almofadas sob seus cotovelos.”

Arrupe escreveu uma terceira carta. Suas outras duas, disse Arrupe, tinham sido mal compreendidas. Ele não tivera a intenção de de ter a “discussão

científica e objetiva” do assunto. Os jesuítas deviam con tinuar suas “pesquisas

e reflexões” sobre a questão. Era o sinal verde. A partir daquele momento, cessaram todas as pres sões

sobre os jesuítas por parte de seus superiores romanos com relação à Humanae

Vitae. Paulo, enquanto isso, precisava desesperadamente de ajuda de to dos os

tipos. Sua saúde vinha se deteriorando. Numa operação realizada no quarto andar do Palácio Apostólico em novembro de 1967, sua próstata foi extraída. Ao contrário do que se comentava, não tinha havido metástase. Mais misérias do tipo mortal vieram do estado extrema mente artrítico de suas pernas e de sua artrite cervical. Este último problema obrigou-o a usar um colarinho duro por baixo da túnica, a fim de minorar a dor — circunstância que salvou-lhe a vida durante a visita a Manila. O cris brandido pelo pintor boliviano e pretenso assassino papal Benjamin Amor y Mendoza era afiado o suficiente para ter cortado as veias jugulares de Paulo quando Mendoza desferiu dois golpes, um ao lado direito, o outro ao lado esquerdo do pescoço de Paulo. Não fosse o colarinho duro e a rapidez do secretário particular de Paulo, monse nhor Macchi, que agarrou o braço de Mendoza e reduz iu-lhe a força, Paulo teria sido morto. Mas ficou apenas ligeiramente ferido nos dois lados do pescoço.

Em 1968, no meio da tempestade provocada pela Humanae Vitae,

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Paulo não havia recuperado as forças ou a intrepidez. A explosão de re jeição, ódio, zombaria e total traição por parte de seus bispos e clero o deixara tão abatido que, no período imediatamente após a publicação da encíclica, Paulo esteve verdadeiramente quase à morte, por desgosto. Na quele abatimento quase mortal, a reação jesuítica teve um papel dominante.

Com qualquer outro papa, fisicamente robusto ou não, teria havido logo uma violenta reação contra o caminho que a Sociedade de Jesus ha via indicado, agora, que estava seguindo. A posição de Paulo naquela situação ficou enfraquecida, no entanto, por muitas das posições que ele mesmo havia adotado e das causas que havia apoiado em sua carreira de papa, cardeal e arcebispo. Agora, suas próprias palavras podiam ser cita das contra ele. Durante grande parte de sua carreira eclesiástica, ele próprio erguera uma chama liberal. Era seu o tipo sonhador de liberalismo cujo manifesto imagina que quando se é bom para todos, todos retribui rão essa bondade, mesmo quando as coisas forem mal. Aquele manifesto estava sendo feito em pedaços diante de seus olhos, não apenas pelos seus inimigos, mas pelo próprio quadro — a Sociedade de Jesus — que jurou apoiá-lo.

Paulo não estava, então, em plena forma para a sutil luta interna contra ele da qual ele sabia, agora, que Arrupe e seus jesuítas eram capazes. Quando o papa protestou realmente numa série de cartas, Arrupe pôde enviar ao papa uma cópia das cartas que enviara a toda a Sociedade e nas quais defendia o apoio à Humanae Vitae.

Em abril de 1969, um Paulo impaciente estava reduzido a fazer um deplorável apelo a Pedro Arrupe e a uma assembleia de 22 provinciais jesuítas reunidos em Roma: “Ajudem a Igreja! Venham em socorro de suas

necessidades! Tornem a mostrar que os filhos de Inácio sabem o que fazer!” Mais ou menos na mesma época, no entanto, Arrupe esta va envolvido

noutra confusão jesuítica; e a maneira de lidar com ela foi uma res posta claríssima ao erradamente fraco pedido de socorro de Paulo.

Em outubro de 1968, um jesuíta holandês, padre Josef Vrijburg, dei xou a Sociedade jurando que iria se casar em agosto de 1969 mas que iria continuar padre ativo. Suas declarações incluíam uma zombaria da vir gindade e ataques causticantes ao celibato sacerdotal. Vrijburg foi apoiado, no seu ato e em seus pontos de vista, por dois capelães universitários jesuít as. Huub Oosterhuis foi um; ele era um poeta e ensaísta holandês e um dos jesuítas colaboradores na redação do Catecismo Holandês, publicado alguns anos antes, no qual os ensinamentos católicos básicos sobre questões como a divindade de Jesus, a Assunção da Virgem e, claro, o controle da natalidade eram contestados e negados. O outro capelão jesuíta, Ton Van Der Stap, era menos ilustre do que Oosterhuis, mas tão obstinado quanto ele.

Arrupe ordenou que Oosterhuis e Van Der Stap parassem de defen der Vrijburg e seus violentos ataques ao celibato. Em companhia de seu

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provincial, padre Jon Hermans, que agia como escudo protetor, os dois homens viajaram a Roma, a fim de desafiar Arrupe em sua toca no Gesù. O padre-geral disse a Oosterhuis e Van Der Stap que deixassem a Sociedade. Eles se recusaram. O superior Hermans se recusou a expulsá -los.

Por mais clamoroso que fosse o caso, quaisquer que fossem os pa drões, aos holandeses não faltava apoio entre seus superiores romanos. Um dos assistentes regionais de Arrupe, baseado em Roma, o padre suíço Marius Schoenenberger, chegou até a imitar um pouco o geral. Con vocou uma entrevista coletiva na Sala Rosa do Hilton de Roma. Servi ram-se coquetéis aos jornalistas enquanto Schoenenberger anunciava que estava deixand o a Sociedade e explicava claramente que assim o fazia porque a Sociedade estava atrasada naquela questão do celibato.

Provocado, ou não, por aquele ato de Schoenenberger amplamente divulgado, Arrupe expulsou os dois jesuítas da Sociedade e enviou carta a os jesuítas holandeses justificando o afastamento de Oosterhuis e Van Der Stap. Não precisa haver receio, disse Arrupe em essência, de que as demissões tenham acontecido devido a quaisquer ideias divergentes que os dois homens tivessem a respeito de virgindade, celibato e sacerdócio; tratava-se, apenas, de exigência disciplinar. “Peço-lhes que não temam”, garantiu ele aos jesuítas

holandeses, “que eu vá estorvar o seu dinamismo e a sua criatividade Apostólica.”

A garantia de Arrupe fez efeito; a situação voltou rapidamente ao que tinha se tornado normal — os jesuítas da Holanda continuaram aprovando o divórcio, um clero casado, a masturbação, casamentos homos sexuais, aborto e contracepção.

A poeira da controvérsia holandesa ainda não havia assentado quand o surgiu na Espanha o que obviamente era muito mais ameaçador e inacei tável para Arrupe, apesar de suas dimensões lamentavelmente pequenas. O contexto, dessa vez, era contra-renovacionista, e a reação de Arrupe reavivou recordações daquela atmosfera absolutista-revolucionária que abafara todo o sentimento tradicionalista na CG31.

A ação girava em torno de um grupo de cerca de cem jesuítas, espanhóis — de um total de cerca de 3.500 na Espanha — que requereram autorização para voltarem ao jesuitismo original da Sociedade. Implícita num pedido daqueles estava, sem dúvida, a ideia de que, fosse qual fosse a forma que viesse a ter o “carisma primitivo” que Arrupe estava procu rando, não era o carisma de Inácio, e fosse qual fosse a estrada que Arrupe seguisse para encontrar aquele carisma novo, não era a estrada do jesuitismo autêntico.

Isso agora era heresia! Arrupe e seus quatro assistentes gerais apon taram em direção à Espanha como cães de caça grossa cercando um coe lho. O que acabou fazendo com que eles atacassem para matar a presa foi uma reunião dos bispos espanhóis em dezembro de 1969, na qual por uma pequena maioria os bispos endossaram o requerimento do grupo conservador para que pudesse separar-se da Sociedade de Arrupe e voltar ao “método primitivo” .

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Depois de uma investigação completa da vida e da ficha de cada um dos dissidentes conservadores, Arrupe chegou pessoalmente à Espanha no dia 1º de maio de 1970, armado com todos os documentos de que pre cisaria para lidar com o levante. Ao sair, a 11 de maio, ele havia engabelado, convertido, ameaçado, ou arrasado cada um dos membros do grupo. Em absoluto, ele não “estorvou o dinamismo” deles ou sua “criativida de apostólica”. Ele os

esmagou. Todo o clangor e alarido da batalha pública por causa da Humanae Vitae,

que irrompeu em 1968 e o sucesso de Pedro Arrupe em tirar o cor po fora das ordens e dos apelos de um papa fraco e sitiado, pareceram injetar novo vigor em muitos dos decretos da CG31. Um decreto em par ticular parecia ser o primeiro na rapidez de mudança que provocou na Sociedade de Jesus.

No seu decreto relativo à formação de jovens jesuítas, a CG31 havia optado por localizar todas as casas de treinamento em ambientes urba nos. Os noviciados para os principiantes, bem como os filosofados, teolo gados e centros para as humanidades deveriam ser eliminados. “A teologia de

primeira”, como disse um jesuíta, “requer um ambiente co munitário urbano e contatos ecumênicos; ambientes bucólicos podem ser um obstáculo à relevância.” Pouco importa se aquelas escolas “bucólicas” tinham longa

tradição de produzir teólogos relevantes; o que se queria era uma nova espécie de relevância. “A Sociedade está caminhando para um estilo mais pessoal

(...)”, salientou um dos ex-delegados à CG31; “comunidades menores, maior contato pessoal.”

As províncias norte-americanas foram líderes na nova localização de suas casas de treinamento e em grande parte do que se seguiu em conse quência. O que aconteceu nos Estados Unidos, entretanto, também acon teceu nas províncias europeias.(*4)

Até setembro de 1968, fora decidido relocalizar vários grandes cen tros jesuíticos de treinamento para as cidades. A Weston School of Theology foi transferida para Cambridge, Massachusetts, onde dividiria as instalações com o Episcopal Theological College. O St. Mary’s College, de St. Mary’s, Kansas,

foi transferido para a Universidade de St. Louis, uma escola jesuítica cuja propriedade e controle foram entregues a uma diretoria de leigos. Numa mudança semelhante, a Universidade Jesuítica de Detroi t iria transferir, mais tarde, metade das vagas na diretoria a leigos; e no ano seguinte, 1969, a lendária Universidade Fordham, em Nova York, passou o controle da Universidade dos jesuítas para uma diretoria formada por leigos.

Acompanhar a mudança em apenas um desses centros jesuíticos de treinamento relocalizados é, em grande parte, acompanhar a mudança que houve em todos eles.

Em 1969, o Teologado de Woodstock, em Maryland, já tinha um passado de 104 anos de sólida tradição no ensino teológico, na investigação filosófica e teológica, na pesquisa de alto nível e no acúmulo de material de informação. Ele havia produzido gerações de jesuítas

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excelentemente treinados em teologia moral e jesuitismo. Devido ao fato de seu meio ambiente ser bucólico, proporc ionava a milhares a possibilidade de adquirir conhecimentos com calma e treinar o asceticismo. Ago ra, aquela rica tradição ia ser feita em pedaços. Toda a instituição de Woodstock foi transferida para Morningside Heights, perto da Universi dade de Columbia, na cidade de Nova York.

Os escritórios da “Woodstock, N.Y.”, como se chamava agora o

teologado, para distingui-lo de sua localização e seu passado original em Maryland estavam localizados em Manhattan, na esquina da Rua 119 com Riverside Drive, no Centro Ecumênico do Seminário Teológico da União. Residências para a “comunidade jesuítica”, enquanto isso, espalhavam -se agora por vários apartamentos em cinco locais, indo da Rua 95 à Rua 125, no Upper West Side de Manhattan.

A ênfase, agora, era na liberdade pessoal dos jovens jesuítas em formação e no senso de responsabilidade. Inevitavelmente, muitas das “substâncias” da

vida jesuítica foram afetadas. Pobreza, obediência e castidade foram rapidamente postas de lado. Todo jovem jesuíta recebia, agora, uma mesada, abria uma conta corrente e manobrava seu próprio orçamento, exatamente como fazia qualquer nova-iorquino empreendedor.

Talvez fosse inevitável que algumas dessas novas “residências” je suíticas se tornassem nada mais do que pensões temporárias gratuitas e paradas para uma cerveja e um café, onde rapazes entravam e saíam à vontade. Faziam experiências com liturgias heterodoxas na sala de estar, saíam para encontros com mulheres como “sujeitos normais”, e não tinham que dar satisfações a qualquer superior com relação a estudos ou à prática da vida religiosa.

Juntamente com tudo o mais, o decoro pessoal mudou. Barbas, suí ças, cabelos compridos amarrados atrás em rabos-de-cavalo, tudo surgia em jovens que se apuravam ansiosos por se “enturmar”. Suéte res de gola rulê, slacks,

jeans, jeans cortadas curtas e sapatos de tênis, tudo parecia preferível a trajes clericais e colarinhos redondos.

Estava tudo saindo como planejado. Como observou o padre Walter Burghardt, redator-chefe da Jesuit Theological Review, “Experimentar diferentes estilos de vida é indispensável para os nossos estudos para jesuíta, se quisermos prepará-los [os jovens] para um ministério contemporâneo”. O padre

William J. Bryan, como diretor de Educação Prática, concordou, é óbvio: “O novo ambiente favorece o desenvolvimento da maturidade e a engenhosidade.”

Quanto a qualquer coisa que lembrasse uma vida comunitária, a única a destacar eram os jantares, servidos pelo Schrafft’s Restaurant na resi dência no número 220 da Rua 98 Oeste. Lá, 31 apartamentos tinham sido reprojetados, reformados e fundidos num só por Richard P. Hunt, S.J., para o novo estilo de vida dos jesuítas. Hunt passou vários instrutivos meses mergulhado no estudo de tecidos para cortinas, colocação de carpetes, tintas, sarrafos, mobília e luminárias. Hunt, satisfeito, embora um

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pouco inconvincente, descreveu sua experiência como “importante como

processo de aprendizado”. É claro que, segundo o estabelecido pela CG31, já não havia leitura

durante as refeições. Só o abandono dessa prática iria tirar da nova men te jesuíta não apenas toda a justificativa para obediência, pobreza e celi bato, mas qualquer conhecimento do que acontecera antes deles, qualquer modelo especificamente inaciano ou caracteristicamente jesuítico para sua espiritualidade, sua mente, sua missão e suas ações. Com o tempo, os je suítas iriam exibir dois traços notáveis: uma ignorância do que significa va a vida religiosa — e a vida religiosa jesuítica em particular — e uma ignorância semelhante da Sociedade e da Igreja.

Naquele estado de ignorância e liberação, não admira que os homens que ficaram fossem, como seus superiores, inteiramente a favor de “Woodstock,

N.Y.” Sempre presente estava a nota de rebelião e inde pendência. Nas palavras de Gerald Huyett, S.J., jovem jesuíta americano em formação, a força da Sociedade “sempre esteve no fato de que ela operava à margem da Igreja e não

seguia a linha do partido. É verdade que estamos sofrendo uma alteração contínua; mas isso é bom, porque o mundo também está”.

Foi no exato momento em que o processo de relocalização e reforma das casas de estudo dos jesuítas se achava em seu maior período de efer vescência que a conferência dos líderes jesuítas mais destacados e nos car gos mais elevados — que se reunira pela primeira vez em 1967 na Universidade de Santa Clara, Califórnia, para começar a tarefa de for mar um conceito e um sistema de “total desenvolvimento jesuítico” — divulgou seu relatório final.

Em qualquer contexto, esse relatório, escrito como foi p or homens importantes e influentes da Sociedade, teria sido explosivo. No contex to e clima instalados em 1969, foi nada menos do que um plano assom broso para as linhas rebeldes que os jesuítas iriam seguir em sua guer ra com o papado e a Igreja tradicional nos anos setenta e oitenta. O clamor rebelde contra a Humanae

Vitae iria eclipsar-se ao lado da rebelião legitimada, ainda que não disseminada, pelo relatório daquela conferência jesuíta. Ler o relatório é, na verdade, ler um documento redigido inteiramente no espírito do humanismo secular e de sentimentos anticatólicos.

Desaparecera a ideia antiga de um jesuíta — aquele que se encaixava num molde especificamente jesuítico. Ao contrário, a educação e a for mação de jovens jesuítas deveria, agora, ser organizada e dirigida segundo padrões extraídos das tendências contemporâneas da ciência e do humanismo. A Sociedade deveria ser adaptada para convir ao indivíduo na “autodescoberta,

integração e crescimento pessoais” A obediência deveria ser substituída em caráter permanente pela “con-

sulta” e pelo “diálogo” entre todos na comunidade, inclusive (o que era sem

dúvida magnânimo) o superior. A castidade era considerada impos sível sem “a

capacidade de amar que se desenvolve pela experiência do

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amor humano, e que nem sempre se esgota pelo amor de um homem por outro. O amor de um homem por uma mulher e a reação desta podem acrescentar dimensões de sensibilidade que, não fosse isso, poderiam não ser alcançadas”.

A conferência admitia que havia perigos nisso, mas afirmava que era preciso corrê-los. Embora fornicação não tenha sido uma palavra usada no relatório da conferência, os participantes achavam que, em vez do casamento ou da castidade no celibato, deveria ser aberto aos jesuítas um terceiro caminho: relacionamentos íntimos com mulheres que não envolvessem casamento, formal ou pela lei comum.

Em outras questões que sempre tinham sido consideradas igualmen te vitais no jesuitismo original da Sociedade, ficou manifesto o mesmo espírito totalmente novo de humanismo secular. A devoção ao Jesus his tórico era desestimulada: os jesuítas não deveriam dirigir a atenção para “uma criação

imaginativa do Jesus de há 2.000 anos”, mas para “o Cris to vivo, agora presente no seu povo”.

A mais sagrada forma de oração catól ica — a celebração da missa — deveria ser aberta a adaptações e experimentações, apesar do que os bispos ou o papa pudessem exigir. De fato, em lugar do obrigatório comparecimento diário à missa — sem dúvida alguma “contraproducente”, disse a conferência

—, poderia e deveria haver “aulas de sensibilidade dirigidas por profissionais”

para os jovens jesuítas. Na sua totalidade, o relatório da conferência não deixou intocado nenhum

aspecto do jesuitismo — quer os seus pontos substanciais, quer o seu sistema normal de apoio.

Quando ficou completo, o relatório foi lido por jesuítas norte -americanos e estrangeiros e recebeu elogios não apenas dos jesuítas america nos, mas, em especial, dos holandeses, alemães, franceses e latino-americanos. O padre-geral Arrupe louvou a diligência geral dos membros da conferência. Não mencionou, muito menos reprovou, a falta básica de quaisquer princípios jesuíticos ou católicos. Salientou, sim, que algumas das propostas da conferência — a relativa à “castidade no celibato”, por exemplo — iria provocar uma objeção demasiado grande por parte das autoridades da Igreja.

Excetuadas essas objeções sem importância, entretanto, ficou claro que o relatório expressava com perfeição o pensamento dos agitadores da Sociedade em muitas das províncias do mundo e também em Roma.

Não tenham dúvida, a prodigiosa maquinaria instalada na Socieda de, no mundo inteiro, para investigação e análise dela mesma, estava se desenvolvendo numa imensa rede de intercâmbio. A cada ano, aquela re de aumentava sua eficiência, à medida que setor após setor, comunidade após comunidade e todas as províncias e assistências acumulavam resul tados, formavam conclusões e começavam a partilhar da convicção ofi cialmente estimulada de que estava para acontecer uma congregação geral da Sociedade que marcaria época. Já em 1970, de fato — só quatro anos depois de terminada a CG31 —, Pedro Arrupe fez a primeira sondagem semi-oficial para ver se estava na hora de decidir a convocação da CG32.

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A cada três anos, reúne-se em Roma uma congregação de procuradores jesuítas, formada por um delegado de cada província. Os procuradores da Sociedade são homens nomeados para representar um determinado in teresse de determinada província. Em consulta com a Congregação de Pro curadores de 1970, Arrupe decidiu que a Sociedade em geral ainda não estava preparada para a “definitiva” CG32. A lei jesuítica exige que a congregação geral se

realize num prazo específico depois de ter sido ofi cialmente convocada; se Arrupe fosse anunciar a CG32 em outubro de 1970, teria que estar com ela reunida no máximo até abril de 1972. Considerando-se que a Sociedade como um todo teria que estar preparada com antecedência para “as profundas,

realistas e francas deliberações” da CG32, que iria servir “como o centr o de convergência para [a] vasta rede de intercâmbio” ainda em andamento, o fato

era que seria necessário mais tempo. Apesar de tudo, o progresso foi bem rápido, de modo que em abril de 1971 Arrupe sentiu que, pelo menos, chegara a hora de formar uma comi ssão preparatória remota, sob a direção de seus quatro assistentes - gerais. A responsabilidade dessa comissão preparatória remota era orga nizar ainda mais conferências, assembléias, reuniões e fóruns no mundo inteiro, nos quais todos os aspectos da vida jesuítica seriam, uma vez mais, discutidos e dissecados com minúcia ainda maior — mas agora tudo seria feito à luz de um trabalho de mais de quatro anos, e dos frutos de pesqui sas e experimentos dirigidos com persistência; e tudo iria dirigir o foco, numa ação combinada, para o grande acontecimento que iria coroar tudo, que era o que a XXXII Congregação Geral seria, sem dúvida alguma. Que Arrupe não podia conter a sua expectativa quanto àquele gran de acontecimento parecia evidente em sua mensagem de Natal a toda a Sociedade, naquele ano. intitulada “Discernimento Espiritual Comuni tário”,

ela insistia, quase que a ponto de se tornar enfadonha, na manei ra pela qual cada comunidade como um todo podia chegar a intenções e percepções sobre sua missão. Assim como na espiritualidade inaciana, o indivíduo devia monitorar os vários espíritos que lhe fustigam a alma e discernir qual era o espírito bom e qual o mau, agora — segundo Arrupe — uma comunidade inteira deveria monitorar a si mesma do mesmo modo. Não é pr eciso dizer que Inácio nunca pensou numa comunidade jesuítica como Arrupe agora pensava. Arrupe tirou sua inspiração para esse afastamento grave não de Inácio, mas da psicologia moderna. Foi uma tentativa muito ousada mas não bem-sucedida de pegar um dos princípios ascéticos de Inácio sobre o indivíduo e adaptá-lo a um contexto social (e sociológico). Ao chegar o Natal de 1971, aquelas “intenções e percepções” já eram - quase tão numerosas quanto as próprias comunidades e continuaram, nos anos seguintes, a tornar-se tão variadas quanto os costumes e os caprichos sociais dos países onde se localizavam as casas jesuíticas. Os sinais de “vigor”

estavam em toda parte, para quem tivesse olhos para ver. Al guns jesuítas ainda levavam vidas arriscadas; eram encontrados na vanguarda

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da luta pela justiça social em toda parte. No Sudão, por exemplo, do qual missionários jesuítas tiveram que ser retirados de avião em 1964 para terem salvas as vidas, em 1972 jesuítas indianos haviam tornado a penetrar no distrit o de Malakal, na região sul do país. Nas Filipinas, três jesuítas que tinham sido presos em Mindanao por defenderem os direitos dos trabalhadores foram libertados em outubro de 1972.

O próprio Arrupe teve encontros com jesuítas vindos de países -satélites soviéticos e foi informado por eles que “nossos membros gozam de liberdade

considerável (...). Podemos pregar o Evangelho, ensinar a dou trina, até mesmo criticar o governo de forma objetiva e em tons modera dos Por toda parte, jesuítas reagiam à opressão política, à pobreza, à ignorância; e alguns o faziam correndo enorme risco. Na Rodésia, o padre Clemence Freyer e outros jesuítas foram capturados pelos guerri lheiros assassinos de Robert Mugabe, em julho de 1973. Em toda a América Latina, mas em especial na Nicarágua, El Salvador, Guatemala, Chile e Peru, jesuítas se esforçavam por divulgar a nova Teologia da Libertação, treinando estudantes do segundo grau e universitários nas táticas marxistas, fomentando comunidades de base de la iglesia popular, entrando para bandos de guerrilheiros como combatentes.

E era tudo feito por razões sócio-políticas das mais válidas. “Nós, os

filipinos, não devemos mais esperar por milagres”, disse um jovem superior

jesuíta ao defender sua comunidade na área de Negros Occi dental, onde ele se dedicava à missão de ensinar trabalhadores em canaviais a se sindicalizarem. “Temos que agir agora, para levar a justiça social ao povo.”

Não foi só nas áreas das missões que aquele sucesso assombroso ani mou Pedro Arrupe e muitos de seus colegas na liderança da Sociedade. A evisceração da tradição teológica do treinamento jesuítico avançava tan to, a ponto de não ser mais nem mesmo sombra de formação para a vida religiosa.

Em 1971, William V. Dych, S.J., baseado em Nova York, já podia observar pacífica e sinceramente: “É difícil dizer o que os três votos [de

pobreza, castidade e obediência] significam agora.” E de fato, tanto os homens

mais jovens quanto os mais velhos da Sociedade haviam passado a ficar altamente desconfiados de qualquer medida que subordinasse ou sacrificasse seus dotes individuais às necessidades da instituição. “Não vou deixar de ter

um filho só para poder ser prefeito de um salão de estu do”, dizia uma expressão

bem típica, apesar de muito forte, da nova ati tude.5 “Qualquer professor casado

pode fazer isso. Se o superior não tiver em mente nada melhor para mim, e se apenas fica sentado no seu traseiro e me convence de que esta Sociedade é dele, eu dou o fora. Não foi para isso que me inscrevi.”

Não é preciso dizer mais nada sobre obediência, muito menos sobre castidade e sobre uma devoção da vida sacerdotal a terceiros, pelo amor de Jesus e pela salvação — a própria e a dos outros. Mas não tenham receio; porque no lugar daquelas virtudes havia, agora, um emocionante

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senso de aventura. Pelo menos, era assim que o jesuíta americano Gerald Hyett via as coisas: “É proveitoso”, disse ele, em tom bem suave, “estudar teologia num ambiente em que todos os demais não são crentes”, por que “você pode sair

(...) e perguntar a si mesmo se ela [a teologia] faz sentido e se alguém realmente se importa com isso.”

Pelo que se viu, aparentemente um número cada vez menor de pes soas já não ligava — pelo menos para a procura dos jesuítas por um novo “carisma

primitivo’'. O número de jesuítas em formação em Woodstock, por exemplo, em 1969 — o ano em que ela se tornou “Woodstock, N.Y.” — era de 158. Em 1972, caíra para 102, uma redução de 35%. Um ano mais tarde, 1973, despencara para 70 homens — 66% menos do que na época em que a “renovação” do treinamento jesuíta começara, há apenas cinco anos atrás.

A razão meteu a cara pela porta escolástica por um instante, como um antigo aluno ao fazer uma breve visita à sua escola. Levantaram-se dúvidas quanto à sensatez de “Woodstock, N.Y.” Mas os jovens que restavam na época reclamaram que a sugestão de acabar com “Woodstock, N.Y.” era

“demonstração de fraqueza”, como foi logo dizendo um de les. Um outro foi contra: “Sair de Nova York e dizer que aqui não ire mos conseguir nada significa que estamos pedindo muito desses cristãos que vivem e trabalham na cidade.” Os estudos teológicos pareciam ter sido reduzidos a um jogo de

desafios. A queda no recrutamento de jesuítas não ficou evidenciada apenas em

“Woodstock, N.Y.” Em todos os Estados Unidos, onde 350 novatos costumavam entrar para a Sociedade a cada ano, o número diminuíra mais de dois terços até 1972, indo para 100. E o quadro do recrutamento era o mesmo em todos os países ocidentais.

Com otimismo insuperavelmente cego e uma autoconfiança absolu ta, Arrupe justificava sua quase louca procura do “carisma primitivo” olhando,

então, para o retrato da Índia, onde de um total de 3.100 jesuí tas 2.600 eram indianos natos; e onde a Sociedade dirigia uma rede de quatrocentos hospitais, seiscentos dispensários e o único Instituto de Ciência Social da Índia. Era um consolo especial para Pedro Arrupe, dado o seu conceito fora do comum de trabalho missionário, que os jesuítas na Índia estava adaptando, ser “inculturado” no ambiente indiano. Prá ticas cerimoniais da adoração de Kali e Shiva foram integradas à celebração da missa. Os jesuítas entravam para os sanyasi, os homens sagrados. O swami Animananda (“Rejubilando-se com a Imaculada”), S.J., e o swami Amalananda, S.J., viajavam, vestiam-se e viviam como sanyasi, com as túnicas, bordão, tigela para esmolas, e todos os outros apetrechos. O swami Animananda construiu uma capela em Deshunar no estilo de um mandir, ou templo, hindu. Instalou também um banco de pou pança e um banco de sementes para agricultores locais.

Com todo o seu entusiasmo pela “inculturação” e pela adaptação da

mensagem cristã às subculturas indianas, parece que Arrupe nunca per cebeu como a hinduização da Missa Católica estava eviscerando aquela

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cerimônia de seu significado essencial. É evidente que Arrupe, que alegava ser perito em “inculturação”, não viu mal algum na adoção em massa de pratos

indianos, gestos indianos, língua indiana e posturas indianas, muito embora para a mentalidade hindu todas aquelas coisas tivessem sig nificados religiosos específicos que eram irreconciliáveis com o significa do católico da missa. Por exemplo, no “rito indiano” usado pelos católicos em Poona, a genuflexão

diante da Eucaristia foi abolida em favor da “an jali haste”, a profunda curvatura que os hindus fazem aos deuses menores. A prostração (shastangam ou ashtangam) é reservada para o Grande Deus, mas não é feita para Jesus Cristo. Os padres hinduizantes de hoje não fazem nem mesmo a “anjali haste”, mas

apenas um rápido curvar de cabeça, para a Eucaristia. Apesar de um veto específico do Vaticano sobre o assunto, o mantra OM é usado no “rito

indiano”.6 OM, na teologia hindu, é o deus hindu Krishna. O seu uso, aos

ouvidos indianos, significa adoração do Krishna. 7 Não há, entretanto, registro de que Arrupe tenha feito alguma coisa contra

essa abusiva hinduização do catolicismo. 8 Outro consolo certo para o padre-geral foi o sucesso do decreto da CG31

sobre as artes. A expressão concreta do decreto encontrava -se no Instituto para as Artes, jesuíta, fundado em 1969.9 Tinha seu quadro permanente e conseguia seus membros de um círculo internacional que atravessava todas as linhas de religião, cor, raça e ideologia. Embora não fosse tão esmagadoramente importante quanto a “inculturação” na Índia e em outras partes, o Instituto representava um avanço tranquilo de uma ideia muito chegada ao coração de Arrupe: os jesuítas precisavam “penetrar” nas artes modernas e, assim,

tornarem-se homens cabalmente modernos. Havia muito a recomendar o invencível otimismo de Pedro Arrupe e sua

absoluta autoconfiança. Na Páscoa de 1972, o padre-geral e seus assessores decidiram que a Sociedade toda estaria pronta para a CG32 em 1974 -1975. Como mandava a tradição, Arrupe comunicou ao papa Paulo VI sua intenção de convocar a congregação geral, “para a maior perfeição da Sociedade como

instrumento nas mãos de Deus e para a propagação da fé”. É de duvidar-se que, na Páscoa de 1972, Paulo soubesse exatamente o que

fazer com relação a Arrupe e seus jesuítas. Desde 1965 que ele vi nha mantendo contato regular, embora não exatamente frequente com o geral jesuíta, por carta e encontros pessoais. Na maioria das vezes, o assunto era algum jesuíta em alguma parte do mundo que era culpado de uma violação especialmente gritante da doutrina ou da prática da Igreja.

Com Arrupe, no entanto, sempre parecia tratar-se de um caso de con-tradição incontrolável. Todas as vezes que o santo padre reclamava, o geral jesuíta explicava. Dezenas e dezenas de vezes explicava, por assim dizer, de joelhos. Nos lábios de Arrupe, sempre parecia ser um caso de justiça, de imparcialidade, de esperar. Com o tempo, todo caso indivi dual desaparecia. Mas sempre estourava um, dois ou três outros. Pareciam não parar nunca.

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Na gestão de Arrupe, parecia que nunca se resolvia coisa alguma. Com isso, o dossiê de Paulo relativo a transgressões e excessos jesuíticos no mundo inteiro continuava inchando.

Enquanto isso, muito mais perto dali, relatórios privados chegavam a Paulo, enviados por seus informantes “ali defronte” na sede jesuítica, o Gesù. O assunto principal daqueles relatórios era desanimador. Nos pre parativos para a próxima congregação geral, parecia que tudo o que fos se sacrossanto na Sociedade de Jesus deveria ficar sujeito a mudança ou abolição. Paulo havia se pronunciado continuadamente contra essas mudanças com Arrupe; e Arrupe, com a mesma frequência, havia garantido a Paulo que estava tudo bem.

Em conjunto com seus assessores, Paulo decidiu que seria melhor reunir todos os líderes jesuítas em Roma. A esperança era de que aqueles líderes pudessem ser instruídos sobre os abusos que havia e o que deve riam estar fazendo e qual era exatamente a vontade de seu papa. Apesar da guerra sutil que os jesuítas pareciam estar fazendo contra o seu papado, o delicado e sempre esperançoso liberal que havia em Paulo lhe dizia que o inimaginável — uma revolta, autêntica e geral, dos jesuítas — era impossível.

Por essas e talvez por outras razões também, Paulo “acusou” o re -cebimento do aviso de Arrupe sobre sua intenção de convocar a CG32. Isto é, não foi contra. Mas o pontífice enviou a Arrupe uma carta na qual salientava que a CG32 não devia ser usada para mudar o caráter da So ciedade. E uma vez mais Paulo enfatizou a fidelidade e a ortodoxia da doutrina.

Portanto, talvez Arrupe não tenha recebido luz verde de Paulo, mas tampouco recebeu luz vermelha. A Comissão Preparatória Remota, ins talada há apenas um ano antes, convocou agora todos os jesuítas a faze rem um esforço especial de preparação espiritual para a congregaç ão vindoura; “preparação

espiritual” significava que em cada comunidade de jesuítas deveria haver

estudos e discussões sobre a vocação e a missão da Sociedade, sobre o que queria dizer então “serviço apostólico”, depois de seus anos de “renovação” e

busca, e sobre a vida religiosa e comunitária dos jesuítas. Enquanto as comunidades faziam isso, Arrupe completava a chamada fase

remota de preparativos para a CG32. Entre outubro de 1972 e outu bro de 1973, o padre-geral teve um encontro pessoal com todos os superiores provinciais jesuítas. Esses superiores foram divididos em cinco grupos, baseados na língua e na situação geográfica. Houve uma série de cinco reuniões — uma em Goa, Nice e Cidade do México e duas em Roma — nas quais o geral e seus superiores do mundo inteiro debateram exaustivamente todos os pontos principais que com a fervura haviam vindo à tona no caldeirão durante os incansáveis estudos e exames da Sociedade que tinham sido ordenados pela CG31. Foi assim que se traçaram as linhas gerais para a XXXII Congregação Geral.

Arrupe saiu daquelas reuniões de alto nível convencido, afinal, de

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que o momento estava quase ao seu alcance, e que a CG32 seria a congre gação da mudança “definitiva” — que ela iria, na verdade, dar “uma nova expressão

ao carisma primitivo”. Àquela altura de sua carreira como padre-geral jesuíta, talvez Pedro

Arrupe tivesse alcançado o auge de sua percepção do papel dos jesuítas, o papel da Igreja Católica e o papel da religião no mundo material coti diano. Ele já havia passado quase sete anos febris construindo em prol de um ideal. Ao alcance de suas mãos, o destino colocara uma organiza ção de primeira classe, com uma instituição não superada por nenhuma outra, repleta de mentes instruídas e inteligências bem-dotadas do mundo inteiro. Sobre ele, como receptáculo final, tinham sido despejadas as ideias, os ideais, as características e as qualidades de homens pretos, brancos, amarelos e pardos — as emissões de suas aspirações, o suco de suas culturas, as afetações de suas aspir ações. Talvez nenhum homem vivo naquele ano de 1973 pudesse ter uma experiência igual à de Arrupe, pudesse falar com tal conhecimento de primeira mão sobre o mundo e a sociedade humana como um todo. Teria sido realmente difícil encontrar alguém da mesma categoria de um conhecimento detalhado de diferentes culturas, raças, causas, condições sociais e ambientes políticos; difícil porque poucos — provavelmente ninguém — tinham passado o que ele passara.

E, é bom que se diga, ninguém com uma exposição global tão grande às condições humanas tinha sido movido pela ideologia que havia for mado Pedro Arrupe. Quando ele falava com o presidente das Filipinas, com o secretário -geral das Nações Unidas, com o primeiro-ministro do Japão, com o ministro da Energia da Venezuela, com o papa em Roma — com quem quer que fosse —, falava com homens confinados pela própria profissão. Em contraste, ele, Arrupe, via tudo à volta deles, além deles e através deles. Num sentido humano, em qualquer dupla como aque las, ele era o mais alto.

Tudo se uniu para ele naquela primavera e naquele verão de 1973 — o seu caminho, o caminho da Sociedade, o caminho de sua Igreja, o caminho da sociedade humana. Ele já não tinha dúvida alguma. Já não estava confinado por uma cadeira romana, já não estava preso por um nacionalismo, uma ideologia, uma tradição. Não se podia detectar nele qualquer particularismo. Tampouco ficaria intimidado, atemorizado, ou receoso por causa das túnicas vermelhas de um cardeal, do Anel de Pes cador do papa, da coroa na cabeça de um príncipe, ou do poder confiante de dignitários políticos. Ele estava no apogeu. Não temia homem algum. Não tinha medo; o termo não constava de seu vocabulário, e a emoção, ele nunca sentira.

Na ótica social de ângulo cada vez maior, as adoradas particularidades do jesuitismo desapareceram como tantos resíduos e aparas de ma deira sem consequência. Era a tela grande que importava. O jesuitismo deixou de ser para ele a marca específica de asceticismo católico, a tradição fixa e sagrada governada pelas ideias, pelas palavras e pelas regras traçadas pelo primeiro basco que fundara a Sociedade de Jesus. A Sociedade

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era agora, para Arrupe, uma organização que extraía seu significa do, seu valor e seu raio de ação do mundo que a cercava, da sociedade de homens e mulheres.

Aquilo que era especificamente católico — o papado e o papa, a Roma do Vaticano, autoridade exclusiva e exclusivista de ensinamento, o bispo e o padre, o Sacrifício salvador do Deus-Homem e o purificador sacramento da Penitência, a superioridade da virgindade e da contempla ção, a devoção inocente a Maria e aos santos — tudo foi colocado dentro da ótica de grande-angular de Arrupe e reduzido a um significado míni mo, à condição de símbolos ou monumentos comemorativos. A tela grande. ..

Arrupe se esforçou para enunciar a visão mundial que agora tinha do pico a que chegara. No dia 31 de julho de 1973, falou para os ex -alunos jesuítas europeus no X Congresso Internacional Anual do grupo, realiza do em Valência, Espanha. O discurso, como o seu discurso inaugural no segundo Concílio Vaticano, provocou manchetes internacionais. Um tema básico daquele discurso inaugural tornou a surgir: a “rede de domi nação, opressão e abusos (...) que evita que a maior parte da humanidade participe (...) d o desfrutar de um mundo mais justo e mais fraternal”. Mas em Valência, seu

tema principal foi impressionantemente diferente. “Temos que ser homens para os outros. Temos que treinar homens que

sejam homens para os outros. O que eles têm que fazer, e o que t emos que treiná-los para fazer, é humanizar este mundo em que vivemos.” Arrupe estava

expondo para aqueles leigos em Valência a ideia essencial e o motivo propulsor de seu novo jesuitismo.

A libertação dos economicamente pobres e dos politicamente opri midos deveria fazer parte da pregação do Evangelho. Era um “asceticismo social”.

Para fazer aquilo, os jesuítas tinham que usar “tecnologias e ideologias”

modernas, pois “o éthos cristão não deverá poder construir um novo mundo sem o auxílio delas”. E tratava-se, disse Arrupe, de uma questão de construir um novo mundo. Para tanto, os jesuítas precisavam ser “convertidos”. A quê? À

oposição contra a sociedade consumidora; contra aqueles que obtêm lucros de fontes injustas. E depois? Ser agentes da mudança.

Essa, concluiu Arrupe, era a extensão ao mundo moderno da tradi ção humanista jesuítica derivada dos Exercícios espirituais de Inácio.

Sobre Cristo e sua salvação, sobre a Igreja e seu papel divinamente atri -buído, sobre os jesuítas e sua missão supostamente sobrenatural, sobre os Sacramentos, sobre a santidade pessoal, sobre o relacionamento pessoal deles com Cristo, não houve uma só palavra. Nem poderia ter havido, da da a secularização do jesuíta Arrupe; e dado o ideal terreno que agora, na sua grandeza bruxuleante, penetrara em seu ser e explodira em seu cérebro.

Era esse Arrupe — não mais um companheiro de Jesus, mas um homem que era muito um homem para os outros — que havia organizado os preparativos para a readaptação do jesuitismo inaciano, que ele iria supervisionar com cuidado, na próxima congregação geral.

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Arrupe estava tão certo do sucesso, que em setembro de 1973, um mês antes de suas reuniões com os superiores regionais terem terminado, tomou o que mais tarde chamou de a maior decisão de seu generalato. Convocou oficialmente a muito esperada, muito preparada XXXII Con gregação Geral da Sociedade de Jesus para o dia 2 de dezembro de 1974, dali a quinze meses. 10

No dia 8 de setembro de 1973, uma semana após o anúncio de Arru pe da convocação da CG32, chegou uma carta do papa Paulo dirigida a toda a Sociedade.

Na forma original preparada pelo cardeal -secretário de Estado Jean Villot, a carta do papa expressava as dúvidas, reservas e apreensões de Paulo sobre os muitos desvios que se haviam manifestado na Sociedade desde a última congregação geral em 1966. Em especial, Paulo prevenia Arrupe e seus colegas que de nenhum modo e sob nenhum pretexto o sis tema hierárquico de governo da Sociedade deveria sequer ser discutido, muito menos alterado. Paulo estava apenas reiterando o que havia dito em pelo menos seis cartas desde 1966.

A carta papal também deu uma nota ameaçadora: a Santa Sé queria a Sociedade de Jesus tal como estava. Qualquer tentativa de forçar uma mudança em seus pontos substanciais — o sistema de categoria, ou o governo pela obediência, por exemplo — só poderia provocar reação violenta. De modo geral, tinha havido sinais evidentes de que o espírito de religião e ortodoxia estava falhando gravemente. Era a este problema, in sistia Paulo, que a próxima CG32 deveria dedicar a maior das atenções.

Arrupe simplesmente não podia enviar aquela carta, tal como esta va, aos seus jesuítas. Não depois dos últimos sete anos de fervor “renovacionista” e

dos imensos esforços burocráticos nos quais todos os formatos tradicionais de jesuitismo e uma nova Sociedade de Jesus se adap tavam a uma nova era.

Seguiram-se entre o geral jesuíta e o papa prolongadas negociações disfarçadas pelas idas e vindas típicas da política do Vaticano. A alega ção de Arrupe — que acabou sendo aceita — era de que ele precisava de um formato muito mais “paternal” e “benévolo” para a carta papal. Não havia dúvida de

que ele tinha, como o Vaticano sabia bem, que lidar com leões que dariam para encher uma jaula. Para levá-los a Roma com qualquer coisa que se parecesse com um espírito conciliatório, ele precisava de uma carta diferente do santo padre. Uma carta salientando o positivo; encorajadora, de advertência — sim, é claro, em termos gerais; mas pelo amor de Deus, pelo menos de boas-vindas. A revolta, salientou Arrupe, estava logo sob a superfície da vida jesuítica em muitas províncias. Na verdade, ele preferiria suspender a convocação e adiar a congregação geral sine die, do que enviar a carta tal como a havia recebido.

Para Paulo VI, não havia uma alternativa verdadeira. Se Arrupe can -celasse a CG32 naquele momento, depois de ter sido anunciada, haveria um dano ainda maior. Teve que concordar com um formato mais bran do, o formato da carta despachada por Arrupe a 4 de outubro. Nela, Paulo

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dizia que estava escrevendo aos jesuítas “para estimulá -los e enviar Nossos melhores votos de um resultado feliz para a Congregação”. Paulo ex pressava sua felicidade pelos “grandes esforços da Sociedade (...) para adaptar sua vida

e seu apostolado às necessidades de hoje”. É claro, dizia ele en passant, que houvera certas tendências perceptíveis “de natureza intelectual e disciplinar”

nos últimos anos que poderiam “levar a alterações graves e possivelmente

irresponsáveis da própria estrutura essencial de sua Sociedade”. Era até aí,

agora, que ia a admoestação papal. Quanto à advertência papal, não houve. Uma vez feito o anúncio oficial da CG32, a fase de preparação re mota deu

rapidamente lugar às mais familiares atividades e rotinas dos pre parativos oficiais. Em cada província realizaram-se congregações para eleger os delegados à CG32; os postulados, ou assuntos que cada província queria que fossem discutidos na CG32, foram determinados; jesuítas começaram a enviar seus postulados individuais para Roma. Em determinado momento, os 1.020 postulados recebidos no Gesù encheram quinhentas páginas datilografadas.

Os últimos toques burocráticos foram dados em todos aqueles com plexos preparativos no verão e no outono de 1974, quando três comitês preliminares se reuniram em Roma. Com base nas reuniões que Arrupe havia realizado com os superiores provinciais e num estudo preliminar dos postulados, aqueles comitês prepararam a importantíssima lista de tópicos preeminentes a serem discutidos pela CG32. Decidiram, também, que tornaria a haver um setor de informações organizado enquanto durasse a CG32 — na verdade, um setor de imprensa internacional — pelo qual seriam publicados boletins regulares sobre a CG32 em inglês, francês e espanhol, e onde seriam dadas entrevistas coletivas.

Se, à medida que se aproximava a véspera da CG32, Pedro Arrupe e seus colaboradores estavam preocupados de alguma maneira com o con tinuado e aparentemente inexorável declínio das vocações jesuíticas — a Sociedade havia caído de mais de 36.000 membros em 1965 para menos de 30.000 — não havia sinais disso. Ao contrário, a marca da liderança jesuítica era a sua inabalável e quase excêntrica autoconfiança. E num certo sentido, aqueles líderes tinham adquirido o direito àquela autoconfiança. Durante quase oito anos, eles haviam presidido uma transformação de atitudes e de comportamento jesuíticos e tinham conseguido caminhar pelos campos minados das objeções do Vaticano e do desagrado papal.

Não que Paulo VI estivesse quiescente, exatamente, ou não percebesse aquilo que alguns consideravam a crescente onda de fatuidades e estupidez de determinados jesuítas ao longo dos oito anos de busca pelo “carisma

primitivo”. O que provocava a ira do papa, no entanto, mes mo enquanto ele dava sua relutante permissão para que a CG32 se reali zasse, eram os importantes lapsos na administração de Arrupe. Paulo não conseguia compreender, por exemplo, por que Arrupe permitia que Robert Drinan, S.J., funcionasse durante anos no Congresso dos Estados

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Unidos como destacado defensor da livre escolha. Aos olhos de Paulo, isso era uma traição fundamental da moralidade não apenas por parte de Drinan, mas por parte dos superiores de Drinan — e, por último, por parte do padre-geral, que por tradição era o líder daqueles superiores.

Tampouco Paulo podia justificar um caso como o de John W. O’Malley,

S.J. Em 1971, O’Malley publicou um artigo na publicação america na Jesuit

Theological Studies que era um modelo de modernismo descarado. Com efeito, O’Malley expunha a ideia de que o segundo Concílio Vaticano havia liberado a Igreja Católica de seu ponto de vista inflexível, tacanho, antiquado e inadequado sobre a verdade sobre Deus e a salvação. Como a era moderna havia provocado alteração muito profunda nas relações humanas, dizia o argumento de O’Malley, e até mesmo na própria alma do homem moderno, a Igreja Católica tinha que renunciar a qualquer reivindicação exclusiva da verdade — da verdade absoluta ou mesmo relativa. Toda a tendência do homem hoje em dia, insistia O’Malley, era para a busca. O único absoluto era a alteração contínua na cultura, nos fatos históricos — e em qualquer reivindicação da verdade. A verdade e qualquer reivindicação de possuí -la eram apenas parte da busca. Nada mais.

Aos olhos de Paulo e de muitos dentro e fora do Vaticano, O’Malley havia abandonado a doutrina católica romana tradicional e oficial. O incrível em relação ao caso, no entanto, foi que Arrupe não exigiu de O’Malley ou dos editores de Theological Studies um repúdio de um artigo que constituía uma violação de juramentos jesuíticos e que dava curso à forte onda de modernismo no pensamento de milhares de jesuítas.

Paulo estava dolorosamente ciente de que os casos de Robert Drinan e John O’Malley não ocorreram num vácuo cristalino. Os relatórios que continuavam a chegar e seus contatos jesuíticos o mantinham amplamen te informado sobre a maneira pela qual os seminários jesuíticos estavam sendo dirigidos, sobre os ensinamentos divergentes de alguns professores jesuítas que se haviam afastado da doutrina tradicional, sobre os estilos livres de vida dos jesuítas na Europa e nas Américas, e sobre a natureza das novas propostas que estavam sendo preparadas para a CG32.

Aquelas propostas, de fato, eram fonte de enorme preocupaç ão por parte de Paulo. Elas pediam a abolição do Quarto Voto dos jesuítas, de obediência especial ao papa. Pediam apoio total à política socialista e ao fomento da revolução em países do Terceiro Mundo. Pediam a redução do período de treinamento de jovens jesuítas; a filiação formal de casais à Sociedade; a diminuição do caráter eclesiástico da Sociedade; ainda mais mo dificações da questão da obediência jesuítica — ou do que restava dela: o franco apoio aos casamentos homossexuais, ao divórcio e ao aborto , ao sexo pré-marital e à masturbação, a maiores experimentos na disciplina re ligiosa de todos os tipos; a hinduização da Teologia Católica. Parecia não haver fim para o número de tais relatórios sobre os jesuítas que chegavam ao gabinete do papa, nem lim ite para o retrato de excessos que eles pintavam na busca da Sociedade pelo seu renovado “carisma primitivo”.

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E Paulo tampouco precisava confiar inteiramente naqueles relató rios de segunda mão. O próprio papa ouviu Arrupe enquanto este falava com fervor para o Sínodo de Bispos em Roma, em três ocasiões, sobre assuntos como o relacionamento dos bispos e do clero com as ordens reli giosas e o verdadeiro apostolado evangélico. O pontífice ouviu Arrupe advertir os bispos para que “abandonem o paternalismo e as atitudes autoritárias”. Ouviu Arrupe prevenir

os bispos de que “a imagem pública do santo padre sofreu um grande dano em

relação ao sacerdócio e à justiça social”. Paulo ficou imaginando — foi o que ele disse a seu secretário particular — se Arrupe sabia com quem estava lidando.

Com toda a sua autoconfiança, parecia claro que Arrupe sabia bem com quem estava lidando, que há muito havia formado sua opinião so bre Paulo VI. Por exemplo, numa carta que Arrupe escreveu a toda a Sociedade, ele admoestou acerbamente todos os jesuítas no sentido de que “fomentem o amor

e o respeito pela pessoa do santo padre”. Arrupe reclamou que seus homens haviam criticado injustamente Paulo pela Humanae Vitae, pelo seu conservadorismo, pela sua indecisão e pela sua falta de calor pessoal.

Tão grande era a nota de condescendência pessoal de Arrupe naque la carta, que muitos passaram a partilhar da opinião de Jean Danielou, S. J. — íntimo de Paulo que mais tarde se tornou cardeal — de que a carta não era uma admoestação aos jesuítas, mas a maneira não muito sutil de Arrupe dizer a Paulo o que havia de errado nele, Paulo, aos olhos dos jesuítas.

Se Arrupe ficou sabendo da interpretação da carta por parte de Da nielou, não há dúvida de que isso não o preocupou mais do que a den úncia, feita por Danielou em 1972, de que a “renovação” do treinamento e da vida religiosa

jesuíticos provocava uma mixórdia na Ordem. Danie lou recebeu uma resposta ríspida e azeda de Arrupe: a vida religiosa nunca estivera melhor na Sociedade do que naquele momento. De fato, “vida religiosa” podia ser interpretada como

já não tendo mais nada a ver com valores espirituais independentes ou com a salvação. Se “vida religiosa” queria dizer, em outras palavras, colocar Ordens

Santas à disposição de uma ideologia puramente secular, de programas sociais e movimentos políticos, então a resposta de Arrupe a Danielou estava certa; uma longa litania de exemplos deixava isso claro.

Já em 1968, Theophane Matthias, diretor da Associação Educacional da Índia, jesuíta, havia declarado que “salvar almas da condenação eterna já não é

uma teologia válida para os esforços missionários da Igre ja no mundo inteiro”.

Carl Ambruster, S.J., num relatório de 1971 encomendado pelos bispos norte-americanos, demoliu todas as fundações do sacerdócio católico. Depois disso, Ambruster abandonou o sacerdócio.

Naquele mesmo ano, 1971, Peter Brugnoli, S.J., tornou-se o fundador de um novo movimento de padres e leigos em Roma, para fazer opo sição às estruturas e à política conservadoras de Paulo VI. O “Movimento de 17 de

Novembro de 1971”, seu nome em homenagem ao dia de funda ção

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— o dia seguinte ao do encerramento do Sínodo dos Bispos em Ro ma —, incluía cerca de quatrocentos sacerdotes, ex-sacerdotes, teólogos dissidentes e leigos esquerdistas radicais. Eles insistiam em que deviam instalar igrejas rebeldes em toda a Itália, expor as ligações políticas da Santa Sé e acabar com a Concordata de 1929 entre a Santa Sé e o estado italiano, entre outras coisas.

O ano de 1971, de fato, havia produzido uma safra excepcionalmente grande de exemplos dessa “vida religiosa” sob nova definição. O inverno e a primavera daquele ano viram Gerald L. McLaughlin, S.J., participando do governo esquerdista da Jamaica; a defesa dos terroristas porto -riquenhos pelo bispo Antonio Parilla-Bonella, S.J., que os chamou de “heróis”; a culminância

das atividades antibélicas de Daniel Berrigan, S.J., nas alegações de que seu irmão Philip e alguns de seus associados estavam envolvidos numa trama bizarra para sequestrar o secretário de Estado Henry Kissinger e bombardear instalações federais em Washing ton. Em 1972, a “vida religiosa” tinha sido

“renovada” a ponto de superiores provinciais jesuítas co-celebrarem a missa sem as vestes determinadas — o que antes teria feito cair-lhes sobre a cabeça uma punição pesada; agora, aquilo era aceito com notável facilidade.

Quando chegou o ano de 1973, o teólogo jesuíta Daniel Toolan tra çou o que parecia, na época, o único caminho da busca do “carisma pri mitivo” pela

Sociedade: “Se quaisquer elementos desta geração resolverem levar a sério a

jornada espiritual, serão virtualmente obrigados a renun ciar à Igreja de Cristo.” Pode-se alegar que a expressão detalhada mais próxima, dos objeti vos e

da missão da “renovada” Sociedade de Jesus, foi conseguida num documento divulgado em 1972 por um grupo dos Estados Unidos conhe cido como os jesuítas “maoístas cristãos”. O documento, intitulado “Planejamento Nacional e a Necessidade de uma Estratégia Social Revolucionária”, foi considerado em alguns setores como esquisitice, e seus autores como excêntricos. Mas o fato de jesuítas intitulando-se “maoístas cristãos” poderem publicar um documento

sobre planejamento nacional e estratégia social revolucionária numa publicação jesuítica constitui um argumento diferente. E o fato de nenhuma repreensão ou ato disciplinar ter sido adotado contra eles por Arrupe ou por quaisquer superiores americanos é ainda mais significativo.

O documento colocava a “necessidade” de seu título na forma de um desafio: “Se a Sociedade de Jesus procura um papel ativo para derro tar a objetividade alienígena, solidificada, do mundo exterior (...) a So ciedade deverá purgar-se de sua consciência social burguesa e identificar -se com o proletariado. (...) O proletariado simultaneamente conhece e cons titui a sociedade.” Nem semiblasfemo salto mortal que acabou de cabeça para baixo

em algum ponto entre a linguagem tradicional e o chamado de Teilhard de Chardin, o documento observava então que “é a esta altu ra que estamos muito perto de compreender o mistério do passado prole tário do próprio Jesus”.

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Estabelecido isso para satisfação dos “maoístas cristãos”, o docu mento passava a atacar a “estratégia reformista” adotada até então pela Sociedade de

Jesus por levar Band-Aids para vedar os ferimentos do proletariado. Essa estratégia havia fracassado “a nível internacional”. Havia agora, insistia o documento, “um fosso irremediável entre a filosofia da coexistência pacífica e

o programa das vanguardas revolucionárias do Terceiro Mundo”. O que fazer em relação a tudo isso? O documento dava a resposta no es -

boço do tipo de planejamento que a Sociedade de Jesus deveria adotar a fim de adaptar-se ao proletariado e cooperar com ele em sua marcha irresis tível para nada menos do que a purificação de toda a população humana.

Se Mao tinha seus vociferantes discípulos entre os jesuítas em princí pio dos anos setenta, quando a Sociedade corria para a sua congregação “definitiva”, certamente Marx não iria ser superado. Um amigo í ntimo de Pedro Arrupe, padre José Maria Diez-Alegria, há anos que era um conhecido professor de sociologia na Universidade Gregoriana de Roma, dirigida por jesuítas. Arrupe sabia, como sabiam todos, que Diez -Alegría mantinha contato com grupos extremistas na Espanha, Itália, Alemanha Ocidental e em outros países. Na verdade, isso pouco era de se notar. Em 1973, Diez -Alegría publicou um livro que, como provava o título, pre tendia ser um novo credo: Creio na esperança (Yo Creo en la Esperanza), chamava-se o livro. O livro causou sensação, não pelas ideias de Diez-Alegría — afinal, ele levara anos pregando aquelas ideias na Gregoriana e também publicara artigos sobre elas. O que tornou o livro campeão de vendas na Europa foi o fato de que reunir suas ideias naquele determinado momento e armá-las como contracredo em relação ao da Igreja era esbofetear o papa Paulo VI em ambas as faces.

“Marx”, confessava Diez-Alegría, “guiou-me para redescobrir Jesus e o significado de sua mensagem. (...) A aceitação da anális e marxista da história com seus elementos referentes ao significado histórico da luta de classes e da derrubada da propriedade privada dos meios de produção não vai, de maneira alguma, contra a fé e o Evangelho.” A conclusão, para Diez -Alegría, era óbvia. “Temos que juntarmo-nos a todos aqueles que se dedicam à causa revolucionária do socialismo (...).”

Com relação à Igreja Católica Romana, o julgamento era concludente: “Tal como tem existido na história, ela contém pouca coisa de cristã;” a Igreja

demonstrava um “visceral anti-socialismo”. Na verdade, “a Igreja e seu

mecanismo são anticristãos de uma forma burguesa”. Diez-Alegría estava, aparentemente, tão perturbado pela preocupa ção da

Igreja com a castidade entre padres, religiosos e leigos segundo suas fases da vida, quanto pelos pecados sócio-políticos da Igreja. O celibato devia ser abolido, disse Diez-Alegría, porque constituía uma “fábrica de loucos”. Quanto

a quem estivesse preso ao celibato, disse Diez -Alegría, “eu o aconselho a sair

o mais cedo possível”. Tampouco achava qualquer coisa de condenável na

masturbação; é de se presumir que qualquer coisa fosse melhor do que o celibato.

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Embora o que Diez-Alegría tinha a dizer sobre o papado e sobre Paulo VI em particular estivesse no mesmo nível do restante de suas opiniões, é provável que tenha contribuído bastante para os problemas temporá rios que Diez-Alegría enfrentou. A primazia e a infalibilidade do papa, disse ele, eram “meras extrapolações do Novo Testamento”, mas nada mais. Seria melhor o

papa distribuir uma grande parte de sua “desagradável e perturbadora riqueza”. Ao contrário do caso dos jesuítas “maoístas cristãos” que haviam

publicado seu plano de estratégia revolucionária no ano anterior, dizia -se à boca pequena entre aqueles que estavam à volta de Arrupe em Roma que o padre-geral e seus assistentes gerais tinham tido conhecimento an tecipado do conteúdo do livro e sabiam dos planos para publicá -lo. Sendo assim, achava-se que o credo de Diez-Alegría — o seu “Eu creio” para os renovacionistas extremados — poderia servir como balão de ensaio. Desde que não tivesse o imprimátur oficial da Sociedade, não poderia causar dano algum; se necessário — se a publicação do livro provocasse um calor insuportável — os superiores sempre poderiam cair em cima do autor depois.

Como se viu, afinal o calor não foi tanto assim. Arrupe achou me lhor apenas pedir a Diez-Alegría que se ausentasse temporariamente de Roma e suspendê-lo de toda e qualquer atividade por dois anos — não pela blasfêmia de sua proposta de credo, mas por não ter submetido seu livro aos censores da Sociedade antes da publicação.

O contraste com o sufocar, por parte de Arrupe, do “levante” dos mais ou

menos cem conservadores espanhóis em 1971 vem forçosamente à tona, agora; porque nunca houve repúdio oficial de qualquer uma das opiniões de Diez-Alegría, nem ele foi obrigado pelo padre-geral a retirar nem mesmo o seu virulento ataque ao papado. Em vez disso, deixaram que ele vivesse e trabalhasse na Sociedade e que voltasse outro dia pa ra lutar — um dia em 1980 em que ele iria convocar uma entrevista coletiva juntamente com dois outros jesuítas, para denunciar a oposição de João Paulo II ao projeto da lei do divórcio que estava sendo preparado no Par lamento italiano para votação nacional.

O caso Diez-Alegría ainda estava quente em 1973 quando outro je suíta verbalmente ativo levou a luta para o campo papal, em caráter mais pessoal. Peter Hebblethwaite, S.J., que era redator -chefe da revista jesuítica inglesa The

Month, publicou na edição de 15 de maio do London Observer um ataque altamente crítico e até mesmo ofensivo ao monsenhor (mais tarde cardeal de Florença) Giovanni Benelli, o auxiliar mais íntimo de Paulo VI e seu segundo homem no Secretariado de Estado do Vaticano.

Benelli, apelidado por seus contemporâneos como “o Gauleiter” e “o Muro

de Berlim”, entre vários outros epítetos, devido à sua maneira brusca — para não dizer rude — de tratar as pessoas, não era amigo de Pedro Arrupe e seus jesuítas. Na verdade, escreveu Hebblethwaite no artigo para o Observer, Benelli era um “pasquineiro profissional universal",

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tinha “um estilo de operação opaco e impenetrável, é autoritário e alarmista, vê

inimigos debaixo de todas as camas e está mais preocupa do com o prestígio quando muitos de nós estamos tentando tornar a Igre ja um lugar mais simples e mais fraternal para se viver”.

Como no caso Diez-Alegría, dizia-se que o artigo de Hebblethwaite fora publicado com o conhecimento de superiores jesuítas em Roma; na verdade, os rumores desta vez iam muito mais longe, dando a entender que o artigo tinha sido escrito por Hebblethwaite por sugestão direta de seus superiores romanos, a fim de acender uma fogueira debaixo de Benelli. Se isso foi verdade, é claro, tornara o próprio Hebblethwaite um pasquineiro; e mesmo que não tivesse sido assim, o jesuíta mostrou estar pelo menos no mesmo nível quanto à rudeza de comportamento.

Ao contrário do caso Diez-Alegría, dessa vez Arrupe pediu desculpas a monsignore Benelli, a pessoa ofendida. Mas quando Hebblethwaite publicou um segundo artigo sobre o mesmo assunto e no mesmo estilo, o padre -geral não se desculpou. Deixou o assunto, disse ele, nas mãos dos superiores ingleses de Hebblethwaite. Eles, porém, nada fizeram. Aos olhos de Arrupe e outros jesuítas, Benelli era o inimigo.

E era. Seja qual for a opinião que se possa ter sobre a correção da onda jesuítica

em direção à atividade puramente secular, sobre suas aberrações doutrinárias ou sobre qualquer outro ponto, e seja qual for o grau de amor, ódio ou indiferença que se possa ter pela Igreja, pelo papado e por Paulo VI como papa, o fato mais assombroso de todos em toda aquela compli cada marcha para a guerra entre jesuítas e papado foi Paulo ter permiti do que a CG32 se realizasse. Mas Paulo VI havia tomado uma decisão quanto a dois pontos. Era melhor reunir os líderes jesuítas em Roma, onde ele poderia se dirigir diretamente a eles; e, qualquer que fosse a medi da drástica que ele pudesse ser obrigado a tomar, ele iria se certificar de que ninguém pudess e dizer que os jesuítas não tinham sido prevenidos para que não deixassem que as coisas fossem longe demais durante a XXXII Congregação Geral que se aproximava.

Em outubro de 1973, Paulo enviou ao padre-geral Arrupe mais outra carta papal de reclamação e aviso. Havia, escreveu Paulo naquela carta, “tendências

intelectuais e disciplinares entre os jesuítas que, se recebesse apoio, iria realizar mudanças muito graves e talvez irreparáveis na pró pria estrutura da Ordem. (...) Se os senhores adotarem métodos de tomada de decisões que diluam a obediência, o caráter da Sociedade irá mudar. (...) Os senhores têm que evitar inovações que levem a Sociedade para o descaminho. (...) Os senhores têm que acabar com a permissividade. (...) Os senhores têm que levar uma vida austera que torne possível resis tir a um espírito destituído de preocupação com as coisas sagradas, que seja um escravo da moda. (...) A obediência e a disciplina são as fontes do carisma jesuíta”.

Mesmo só esses trechos da carta de Paulo tornavam abundantemente claro que o pontífice tinha continuado a ser bem informado sobre os

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meios e as direções da busca jesuítica pelo “carisma primitivo”, e que não

aprovava nada daquilo — os levantamentos sociológicos, os perfis psicológicos, as revelações pessoais comprometedoras, os esboços de in-tegração pessoal, ou a maior parte do resto da parafernália utilizada para os preparativos para a CG32.

A carta de Paulo também deixava claro que ele via para onde Arru pe e instituição jesuítica queriam levar a Sociedade — e não queria nada daquilo. Esse aviso estava tanto implícito como explícito na carta de Paulo. Uma mudança fundamental na estrutura da Sociedade pela CG32 não se ria mais aceitável do que o fora na CG31, há oito anos atrás. Se se tentas se essa mudança, então “a Santa Sé teria que examinar uma vez mais o seu

relacionamento com a Sociedade”. Aquilo, como Arrupe sabia, era romanità pelo menos em favor de seu afastamento do cargo de padre - geral e, possivelmente até, da supressão da Sociedade.

“Uma vez mais expressamos o nosso desejo”, concluiu Paulo sua carta de

advertência, “de que os jesuítas continuem sendo uma ordem religiosa,

apostólica e sacerdotal ligada ao pontífice romano por um vín culo especial de amor e justiça.”

“Solicitamos-lhe que comunique isso a todos os jesuítas.” Arrupe comunicou a carta papal a toda a Sociedade; e, embora omi tisse

certos elementos que diziam respeito apenas aos superiores mais ca tegorizados — isto é, as possibilidades de que ele fosse obrigado a renunciar ou que a Sociedade pudesse ser extinta —, Roma ficou de imediato fervi lhando com boatos de que o geral jesuíta, com 65 anos de idade, estava prestes a renunciar ou ser “renunciado”.

A reação mundial por parte dos jesuítas à carta papal era previsível. A raiva pelo fato de Paulo “peitar” Pedro — como Arrupe era e ainda é afetuosamente conhecido na Sociedade — foi tão pronunciada quanto a forte determinação de seguir adiante na busca do “carisma primitivo” da Sociedade.

Só por parte de uma pequena e eloquente minoria houve qualquer apoio a Paulo.

Era tarde demais — ou talvez cedo demais — para um retorno a métodos tradicionais de vida religiosa e atividade jesuítica, tal como o papa Paulo estava pedindo. A onda das expectativas de grandes mudanças, de uma Sociedade de Jesus renovada, era grande demais para aceitar qual quer marola que tendesse para a revogação e a tradição. Nem mesmo a possibilidade da “exoneração” de Arrupe provocou hesitação ou recon siderações.

De fato, à medida que se aproximava a tão esperada CG32 , as mudanças já instaladas como questões de prática diária tinham transforma do a Sociedade de Jesus numa nova organização. As experiências com “novos estilos de vida”,

a chuva ininterrupta de dissensão permitida e sancionada em relação à ortodoxia católica, os desvios sistemáticos da moralidade católica — e, talvez acima de tudo, as incessantes críticas e ataques à pessoa do papa Paulo VI, aliadas à diluição da obediência religiosa num acordo segundo o qual cada comunidade jesuítica deveria seguir

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em frente com independência, segundo sua decisão — tudo isso saltava de algo estranho a qualquer coisa conhecida antes na Sociedade de Jesus.

É verdade que frases costumeiras e palavras consagradas eram usa das — “o bem da Igreja”, “a salvação das almas”, “respeito pelo santo padre”, “o

apostolado da Sociedade”, “o serviço da Santa Sé”, “nossa devoção filial ao

Trono papal”. Mas o imenso grosso dos fatos — palavras, atos, propostas — não correspondia aos valores espirituais que tinham sempre sido transmitidos por aqueles protestos e frases.

A eficiência sem igual do jesuitismo original de Inácio tinha se apoiado em sua análise e sua regulamentação deliberadas e científicas das ativida des do indivíduo, de seus motivos, de sua fonte de inspiração, de sua vi são, seus recursos, seus propósitos, suas posições de recuo, e finalmente da amplitude de sua visão e da extensão de seu objetivo. Tudo isso Inácio havia esboçado em seus Exercícios espirituais. Todo o jesuitismo se apoiava naqueles círculos brilhantemente traçados de ascensão ao imaterial, ao divino Ser Eterno; e na descida, outra vez, para o humano, para a reimersão no cosmo da matéria e da preocupação humana com a vida eterna com Deus. Tanto a ascensão como o descenso deveriam ser realizados, segundo Inácio, não por um referendo sociológico, mas através da humanidade e da divindade de Cristo — através da chegada ao divino por meio da santidade pessoal dentro do cosmo humano, e isto num grau de perfeição tão grande quanto lhe permitissem a graça divina, o consentimento pessoal livre e o destino predeterminado do indivíduo. Dentro desses parâmetros, os apostolados dos jesuítas levariam cada indivíduo até on -de o coração independente da Divindade decidisse, no mistério da eterni dade da Divindade. Esta era a doutrina inaciana sobre os jesuítas e o jesuitismo — uma doutrina, nas palavras de Paulo VI, que nunca fora “escrava da moda” mas

era sobrenatural do princípio ao fim. A busca do “carisma primitivo”, por outro lado, tanto quanto se pode

julgar, era baseada em princípios e objetivos intraduzíveis para o modelo jesuítico e, portanto, irreconciliáveis com ele. Mais do que isso, no entanto, o jesuitismo da Sociedade de Arrupe tinha não só perdido o caráter da Sociedade, mas começara até a perder o caráter de ordem religiosa.

Desde que São Domingos fundou a Ordem dos Dominicanos na dé cada de 1200, quase trezentos anos antes da época de Iñigo, tem sido a ordem religiosa em si, e não a casa ou comunidade isolada, a unidade básica de qualquer ordem religiosa. E em qualquer ordem religiosa, todos os membros estão sujeitos a um superior geral e todos os regulamentos levam a marca inconfundível do fundador. Essa também é — ou tinha sido — a tradição na Ordem jesuítica.

Para onde quer que a Sociedade de Jesus se dir igia em dezembro de 1974 ao se reunir para a sua congregação geral “definitiva”, não era em qualquer

direção jamais associada antes com ordens religiosas ou com o carisma primitivo da Inácio de Loyola.

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E

uforia e autoconfiança invencível — era este o estado de espírito dos 236 delegados1 ao se reunirem, finalmente, no dia 2 de dezembro de 1974, para a abertura da XXXII e “definitiva”

Congregação Geral da Sociedade de Jesus. E por que não? Nunca, na história jesuítica, uma congregação gera l tinha

sido preparada com tantos detalhes; nunca as expectativas de dele gados e não-delegados alcançaram tom tão febril. E agora chegara final mente a hora de puxar todo os “novos fios contínuos” fornecidos há oito anos antes pela CG31

para formar “o novo tecido da Sociedade” — de declarar e definir nos decretos oficiais da Ordem a nova substância e o significado moderno de “carisma

primitivo”. Nada menos do que a his tória subsequente da Sociedade — sua estrutura, sua inspiração, sua missão — seria moldada nas semanas seguintes.

Euforia e confiança não eram tudo, porém. Não a partir de agora. Ha via outra dimensão para aqueles delegados, agora — eles estavam calejados. Depois de quase uma década de preparativos e testes, de assombroso sucesso em evitar a pressão e a autoridade do Vaticano, e de um desafio quase constante da vontade papal por jesuítas isolados, por províncias in teiras e pelo próprio padre-geral, os delegados que se reuniam em Roma não seriam postos de lado com facilidade, agora. É compreensível, então, que 2 de dezembro tenha sido um dia repleto de profundas emoções.

O dia oficial começou bem cedo, quando os delegados se reuniram no auditório do Gesù para ouvir o padre-geral Arrupe proferir seu discurso de abertura. Um delegado à CG32 supôs, mais tarde, que nem Arrupe nem aqueles que colaboraram com ele na preparação do discurso tinham qualquer ideia do que eles pretendiam realizar. Devido ao fato de Arrupe e seus assessores terem editado resmas de material e realizado discussões intermináveis precisamente para resumir o espírito e a direção da CG32 num só discurso, é difícil saber o que pensar de uma análise dessas, a não ser o desejo de tirar a culpa dos ombros de Arrupe cobrindo-o com uma cegueira intelectual e espiritual.

De qualquer modo, fosse qual fosse a sua compreensão, o espírito

21. O NOVO TECIDO

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de Arrupe estava tão eufórico e tão confiante quanto o dos delegados que o ouviam. Seu discurso expressava seu entusiasmo e sua expectativa de grandes coisas para a Sociedade.

Das dificuldades e dissensões dos últimos oito anos, Arrupe nada declarou de pomposo ou notável. Não abordou, de maneira alguma, a con tinuada e cada vez maior insatisfação do papa Paulo VI, a franca rebelião dos jesuítas contra a direção papal, ou da crescente tendência da Sociedade de se considerar sui juris e independente da autoridade papal — capaz e com justificativa para agir à sua maneira mesmo quanto aos mais graves dos problemas da Igreja.

Ao contrário, o padre-geral passou em revista os oito anos de trabalho de preparação para aquela congregação. Descreveu o estado de espí rito de seus jesuítas que ficara conhecendo graças a suas viagens, aos estudos sociológicos e psicológicos, aos relatórios de planejamento e aos postulados que tinham chegado a Roma enviados pelas províncias e por jesuítas em caráter pessoal. Fez um esboço dos tópicos preeminentes com base nos quais a Sociedade deveria decidir seu futuro naquele momento — tópicos como estruturas e categorias, formação e treinamento, e mis são de um modo geral. Salientou que os delegados podiam, todos, dedicar-se ao seu trabalho com uma tranquila confiança no Senhor. E, como se Paulo VI nunca tivesse feito qualquer objeção, Arrupe definiu o obje tivo daquele trabalho como “a transformação radical do mundo”.

Arrupe deixou claro que por “transformação” ele não queria dizer incutir

o hábito de oração nas pessoas, evangelização pela pregação sobre Cristo crucificado, ou promoção da devoção aos Sacramentos, ao Sa grado Coração de Jesus, ao santo padre como vigário de Cristo, ou à Igreja. Ele falava do que chamava de “radicalismo inaciano”, que definia como total dedicação jesuítica

à “justiça social e política como sinal da credibilidade da fé cristã da

Sociedade”. Aquela necessidade de efetuar a “transformação radical do mundo ”, em

outras palavras, era básica para a determinação, por parte da CG32, do tipo de serviço que a Sociedade deveria oferecer à Igreja no momento presente. E assim foi que em seu “discurso de orientação geral”, por assim dizer, Arrupe reivindicou para a sua Sociedade um lugar ao sol, concorrendo com socialistas, conservadores, liberais, capitalistas, pregadores sociais e todos aqueles dedicados à construção da Cidade do Homem.

O espírito ebuliente dos delegados e seus superiores romanos pôde ser expresso quando todos compareceram a uma missa comunitária na noite daquele mesmo dia, juntamente com cerca de quinhentos outros je suítas que se achavam em Roma como residentes, para treinamento ou outro serviço. O cenário para aquele momento de glória era a grande e resplandecente igreja do Gesù, construída no mesmo local da primeira capela — que se chamava Santa Maria della Strada — onde Inácio havia celebrado missa nos anos em que exercera as funções de primeiro padre- geral.

A igreja do Gesù só foi construída depois da morte de Inácio. Foi

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iniciada por Giacomo da Vignola e completada por Giacomo della Por ta, para ser um espelho da razão e do propósito da Sociedade: um mostruário para o triunfo do nome de Jesus. Tudo, no interior daquela es trutura, foi projetado como mais um elemento na expressão da fé e da alegria, a felicidade pura e suprema satisfação do espírito romanista que animava Inácio e seus companheiros e aqueles que tinham vindo depois. Seu suntuoso estilo barroco era tão característico, que foi adotado por muitas das igrejas da Sociedade e ficou conhecido como estilo jesuítico.

O gracioso interior é decorado, em todos os pontos, com afrescos de Baciccio e estuques de Raggi, com mármores coloridos e bronzes, com esculturas e dourados. As paredes do andar superior estão flanqueadas por espirais e volutas. No transepto à esquerda do altar principal, sob um enorme globo de lápis-lazúli simbolizando a Terra, e cercado por colunas também decoradas com lápis-lazúli, fica o altar-túmulo de Inácio de Loyola. Embaixo do altar os restos mortais de Inácio estão numa urna de bronze dourada. Acima do altar há uma estátua de Inácio banhada em prata, os olhos parecendo imitar o olhar de pureza reta com a qual Loyola sempre seguira seu objetivo. O original de prata maciça no qual a estátua atual foi modelada foi mandado derreter pelo papa Pio VI, para pagar as indenizações impostas ao papado por Napoleão em 1797.

No transepto à direita do altar principal está o altar de São Francis co Xavier, companheiro de Inácio da igreja do Gesù, como havia sido em vida do fundador dos jesuítas.

Abobadando bem alto, acima do altar principal e do sacrário, a gló ria do teto arqueado supera todas as outras glórias da igreja do Gesù. Porque lá o imenso afresco de Baciccio, Triunfo do Nome de Jesus, banha tudo o que está embaixo dele na sensual sombra e luz de seus rostos e seus gestos, a bravura da exultação e do êxtase engolfando-lhe as figuras. Este é o afresco no qual Keats disse que ouvia o som de “música do outro mundo”.

Naquela noite de dezembro de 1974 não foi a “música do outro mundo”

que encheu a igreja do Gesù, mas o barulho de um salão de reuniões, uma celebração num amálgama devidamente democrático de línguas e es tilos. Tampouco foi a pureza reta do propósito inaciano que Pedro Arrupe celebrou em sua homilia. O padre-geral invocou, é claro, a autenticidade da missão jesuítica tal como Inácio de Loyola a concebera e Francisco Xavier, “Apóstolo

das Índias”, a implementara. Mas a visão, agora, seria a visão da Sociedade renovada.

O momento foi de sincera emoção para todos, e talvez não pudesse ter sido escolhido cenário melhor para a ironia retratada naquela encru zilhada na longa carreira de altos e baixos da Companhia de Inácio de Loyola. Não que os blue jeans usados pelos noviços jesuítas italianos presentes parecessem impróprios para o ambiente rico; o Gesù já viu, sem dúvida alguma, a sua cota de batinas remendadas e surradas. Era mais o fato de que os jeans não eram o equivalente moderno daquelas batinas — não eram um símbolo de santa pobreza —, mas o distintivo social de

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harmonia com uma nova geração no mundo em geral. Era, isso sim, que aqueles delegados, como grupo de homens, já estavam a quilômetros de distância da fé que havia tornado possíveis a alegria e a satisfação naquela criação barroca.

Naquela noite, a nova Sociedade já concebida e embalada na mente e nas intenções dos delegados foi levada o mais perto possível da velha Sociedade expressa na arte do Gesù e no Triunfo do Nome de Jesus, os símbolos visíveis do objetivo geral de Inácio. Aquele objetivo era a razão pela qual a Companhia tinha o nome que tinha. Muito tempo depois an tes daquela noite, no entanto, aqueles que estavam reunidos sob o afresco de Baciccio já haviam traduzido o objetivo jesuítico em termos muito diversos dos de Loyola.

Não eram homens de cujos lábios pudessem sair súplicas apaixona das para que a Sociedade de Jesus procurasse o triunfo daquele nome. Eram homens cuja paixão — cujo rancor, indignação, súplicas e insistência — fora provocada por objetivos já denunciados pela autoridade pa pal como irreconciliáveis com o verdadeiro jesuitismo.

Retrospectivamente, aquela noite foi o ponto alto do generalato de Pedro Arrupe. E foi, talvez, a última vez em que um entusiasmo puro por todo o empreendimento jesuítico iria animar os membros da Socie dade. Quando as luzes brilhantes se apagaram naquela antiga igreja do Gesù, quando o perfume da fumaça azul do incenso se dissipou e a músi ca sacra se calou, o foco se voltou para o auditório que ficava próximo e para o verdadeiro trabalho da CG32.

É certo que Paulo VI estava consciente do estado de espírito de Ar rupe e seus colegas. Entre 1966 e 1974 ele deixara bem claro, para o geral jesuíta, o que pensava sobre aquilo. Estava ciente do “vagalhão”, como os jesuítas chamavam o fenômeno, em favor da autonomia e da união com o “povo de

Deus” que já estava trabalhando com afinco na cons trução do “novo mundo”. O pontífice estava convencido de que sabia para onde se dirigia aquele

“vagalhão”. Paulo via que caminho a Sociedade iria seguir se o sistema de categorias fosse alterado a fim de que o caráter monárquico eclesiásti co da Ordem já não fosse proeminente ou essencial. E via no que a mis são da Sociedade se tornaria se ela, despida de sua essência eclesiástica, se voltasse para o que estava sendo chamado de justiça sócio-política. Não muito longe ao longo daquele caminho poderia haver pelo menos tantos não -sacerdotes quanto sacerdotes na Sociedade; certamente a Ordem já não estaria profissionalmente obrigada a se dedicar a objetivos espirituais e religiosos. Fora contra isso que Paulo fizera uma advertência já em 1966, quando se referira, de maneira tão alarmante, a “ ideias sinistras e distorcidas” — uma frase que Arrupe confessou a jornalistas que não conseguia entender. Agora, o papa precisava apenas olhar para a maneira como os jesuítas se portavam em toda parte — na Europa, nas Américas e no Terceiro Mundo — para ficar convencido de que sua análise tinha razão de ser.

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O pensamento consistente do pontífice sobre a Sociedade não era segredo. Suas cartas a Arrupe, de 26 de março de 1970, de 15 de fevereiro de 1973 e de 13 de setembro de 1973, se tinham tornado públicas; mas eram apenas três entre uma correspondência muito mais volumosa entre o papa e o geral jesuíta. Arrupe e seus colaboradores íntimos sabiam bem como tinham estado perto do desastre nas mãos de Paulo.

Paulo VI decidiu deixar claro, uma vez mais, o que pensava, e dessa vez a todos os delegados reunidos. De fato, uma das razões pelas qua is ele havia permitido que a CG32 se realizasse fora, precisamente, poder dizer o que pensava à liderança jesuítica mundial.

A ocasião foi o costumeiro discurso papal no início da CG32. A da ta foi 3 de dezembro, o segundo dia da congregação. Apesar da complexidade da linguagem papal formal, e da incapacidade de Paulo para falar sem rodeios, o papa foi de uma clareza impressionante.

Era um momento de destino para a Sociedade, disse Paulo; uma época de seriedade especial. Ele, como papa, era o mais alto sup erior da Sociedade. Já havia indicado claramente, por escrito, o que achava de errado e de perigoso nas tendências da Sociedade: o desejo de mexer no sistema de categorias, desvios doutrinários, infrações disciplinares.

Não havia mistério, observou Paulo, sobre a origem dos jesuítas. Eles tinham sido moldados pela mão de Inácio e pela vontade do papado co mo milícia especial à disposição de todos os papas no Trono de Pedro. Da mesma forma, todo mundo sabia o que eram os jesuítas: “Membros de uma Ordem que

é religiosa, apostólica, episcopal e unida ao pontífice romano por um elo especial de amor e serviço da maneira descrita na Fórmula do Instituto.”

Depois de lembrá-los, com tantas palavras, de suas origens e seu pro-pósito, Paulo reconheceu que apesar disso os jesuítas estavam sofrendo de crise de identidade. Até onde ia, perguntou, a fidelidade deles à auto ridade doutrinária da Igreja? Que tipo de fidelidade exerciam na vida es piritual? Para onde estavam indo, agora? Eles tinham que se modernizar, recon heceu Paulo; mas teriam se esquecido do voto inaciano de traba lhar sob as ordens do pontífice romano?

Como se para lembrar àqueles delegados com tendências democráti cas que havia jesuítas que não concordavam com o caminho pelo qual a liderança estava levando a Sociedade, Paulo chamou-lhes a atenção para as contínuas reclamações que recebera sobre a Sociedade. Falou de sua obrigação de velar pela Sociedade em sua congregação geral. Ele não podia, disse Paulo, ouvir apenas alguns (que desejavam mudanças radicais) e desprezar outros da Sociedade que estavam profundamente perturbados e preocupados com o fato de que em nome da necessidade apostólica estivesse sendo abandonada a própria essência do Instituto inaciano. “Não se deve chamar de necessidade

apostólica aquilo que não seria nada mais do que decadência espiritual.” Aquela mais séria das reprimendas papais foi seguida pela recomen dação

de Paulo aos delegados: “Estudem e restabeleçam os pontos

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essenciais da vocação jesuítica de maneira tal que todos os seus colegas possam reconhecer a si mesmos, fortalecer sua dedicação, redescobrir sua iden tidade

Paulo concluiu dizendo que os delegados se dedicassem às tarefas da congregação, com a sua bênção; e com a sua garantia de que estaria ob -servando atentamente todos os passos que dessem.

A reação dos delegados ao discurso de Paulo, e talvez até mesmo suas prioridades para a CG32, poderiam ter ficado um tanto arrefecidas se Arrupe tivesse prevenido seus jesuítas do mundo inteiro, com o que pudesse parecer uma antecedência normal, sobre a mensagem clara de Pau lo, tantas vezes repetidas no período de 1966 a 1974, de que a Sociedade não devia, de forma alguma, tocar no sistema inaciano de categorias. Mas Arrupe não o fizera; tampouco mandara em momento algum dos preparativos para a CG32, e invocando a obediência que lhe deviam, que não tocassem no sistema de categorias. Um dos resultados foi que, quando os delegados se achavam sentados ouvindo as exortações de Paulo no dia 3 de dezembro, 54 de suas 85 congregações provinciais já haviam enviado nada menos do que 65 postulados em separado tratando precisamente daquele assunto proibido — e 45 eram a favor da total abolição das categorias.

Para dizer o mínimo, a reação dos delegados ao discurso de Paulo só podia ser negativa. E foi. Segundo eles, o apelo do papa para que se redefinisse a sua Ordem uma vez mais ao longo de linhas religiosas e apos tólicas ligadas intimamente, como sempre, ao pontífice romano, era “or todoxo”, “tradicional”

e “conservador”. A descrição que eles faziam de si mesmos, enquanto isso, era “heterodoxos”, “novos” e “desafiadores”.

O que torna o comportamento do padre Arrupe particularmente cla moroso nessa questão de não ter comunicado à sua Sociedade a vontade expressa do santo padre é o fato de Arrupe ter-se esforçado muito para que o subterfúgio continuasse a ser usado durante a CG32. No dia 3 de dezembro, o mesmo dia em que Paulo havia falado aos delegados em pes soa, o papa também enviou ao seu cardeal-secretário de Estado, Jean Villot, uma carta na qual repetiu uma vez mais que nenhuma mudança proposta no sistema de categorias seria aceitável por parte da Santa Sé. Isso era uma admoestação e um aviso da mais alta ordem. Arrupe decidiu não dar conhecimento à congregação geral nem mesmo daquela carta, durante duas semanas inteiras. Quando afinal o fez, já se estava em 16 de dezembro, as discussões do assunto entre os delegados estavam bem adiantadas e Arrupe já não precisava se preocupar em deter o “vagalhão”.

Com base no longo silêncio de Arrupe com os seus jesuítas sobre essa questão das categorias e na maneira de ele tratar a carta de 3 de dezem bro de Paulo, e com base também num exame dos documentos pertinentes à CG32 e no continuado atrito entre Paulo VI e Arrupe de 1964 em dian te, praticamente não há dúvida de que a primeira das duas grandes e ra dicais prioridades fixadas pelo padre-geral Arrupe para aquela congregação

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era precisamente transformar a estrutura hierárquica da Sociedade. O dis curso de Paulo tinha sido correto em todos os detalhes. Porque não era só a transformação que Arrupe pretendia, mas a eliminação do sistema de categorias criado por Inácio e aprovado por papas e a sua substituição por um sistema democrático — e, se houvesse qualquer possibilidade, menos eclesiástico.

A menos que aquela primeira grande prioridade pudesse ser executa da, o medo de Arrupe e de seus colegas mais íntimos era de que a segun da prioridade — a concentração de todas as energias da Sociedade na sua nova missão de colaboração na “libertação” de povos da injustiça e da opressão

sócio-políticas — também pudesse murchar. Na verdade, tudo mais a ser discutido e decidido na CG32 estaria condicionado ao que pu desse ser conseguido na luta com o papado sobre categorias e classes — sobre hierarquia e autoridade na Sociedade.

Entre os delegados havia se tornado mais forte do que nunca a sen sação, semelhante a um “vagalhão”, de que a divisão dos jesuítas em al guns sacerdotes que faziam o Quarto Voto especial de Obediência, alguns que não o faziam e outros que ainda eram escolásticos — jovens em treinamento — era um sistema incompatível com os sentimentos modernos sobre igualdade e democracia. Era positivamente desagradável. Afinal, Inácio tinha sido um aristocrata; e sua época era a época de reis e príncipes e de toda aquela desigualdade hierárquica. O segundo Concílio Vaticano havia, com toda razão, enfatizado um sentimento que estivera, de qualquer modo, oculto entre os jesuítas e outros durante muito tempo, um sentimento de que o sacerdócio não era tudo aquilo que se alegava a seu favor. Todo cristão, alegava -se, era sacerdotal — tinha uma parcela no sacerdócio de Cristo. Se esse tipo de argumento significava um giro de 180 graus na doutrina católica do sacerdócio, que assim fosse; muitos haviam feito aquele giro sem dificuldade.

Um dos argumentos entrava tanto no terreno da heresia, que era ape nas um pequeno passo para chegar à conclusão de que o sacerdócio não tinha significado específico algum. E se isso era verdade, por que desta car algumas pessoas como “sacerdotes” e deixar outras de lado, numa categoria inferior,

nessa questão de voto especial? Como acontece com toda heresia, o assunto não terminava nele mes mo. A

questão de categorias e hierarquia tinha, obviamente, que envol ver a Obediência Religiosa. A ideia de um superior mandando nos subalternos, como se fosse um rei mandando em seus súditos, era simplesmen te constrangedora; já estava ultrapassada. Os próprios jesuítas já não tinham mostrado o que se podia conseguir, nas províncias, pelo diálogo comunitário? E não é preciso citar as províncias; a CG31 já não tinha criado um poderoso precedente quando dera ao próprio padre-geral um “conselho” de quatro assistentes eleitos cuja

assessoria e cujo consentimento eram necessários para as decisões de comando? Não havia dúvida, a autonomia acabara, e com ela a obediência.

Agora, só restava convencer o papa Paulo VI.

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A primeira tentativa de lidar com a proibição papal — assim que a CG32 acabou ficando sabendo a respeito dela — foi discreta. No dia 17 de dezembro, um dia depois de revelada a mais recente carta papal, o ge ral Arrupe e dois delegados pediram um encontro confidencial e oficioso com o cardeal -secretário de Estado Jean Villot, através do qual a carta do papa de 3 de dezembro fora enviada a eles.

Uma vez no gabinete do cardeal, os visitantes oficiosos de Villot disseram-lhe, oficiosamente, que, com papa ou sem papa, os delegados da congregação lá no Gesù iam discutir as categorias. Eles não podiam ser detidos. Ora, não seria perfeitamente factível a congregação simplesmente dar conhecimento ao papa, mais tarde, daquelas discussões? É claro que a congregação iria obedecer plenamente ao papa. Mas seria sensato proibir a discussão do assunto, como o papa fizera? O papa não sabia o qu e a congregação pensava sobre o assunto; e o bom senso não indica va que ele deveria saber? Além do mais, proibir a discussão era, na ver dade, anular a congregação logo no seu início. Isso poderia provocar mais problemas do que os que o papa já tivera até ali com os jesuítas. Não seria melhor, então, a congregação prosseguir na discussão da proposta de conceder o Quarto Voto a todos os jesuítas, e depois apresentar suas razões ao papa?

De modo geral, não houve argumento ou ameaça que tivesse sido esquecida naquela abordagem a Villot na base de acenar ora com recom pensas ora com castigo. Mas o fato era que o próprio cardeal -secretário não ligava a mínima para o assunto em discussão. Mas tinha a sua reta guarda para proteger; e não tinha medo de Arrupe.

Sim, respondeu Villot como requeria a romanità, ele iria comunicar oficiosa e confidencialmente ao papa aquela visita oficiosa e confiden cial. Como os superiores jesuítas tinham pedido, nem a congregação nem o mundo exterior nada iriam ficar sabendo da visita . Mas, disse também Villot, a decisão do santo padre já estava tomada e era bem clara.

Poucos dias antes do Natal, Arrupe recebeu um telefonema de Villot pedindo-lhe que atravessasse a praça de São Pedro e fosse ao gabinete do cardeal, ou então mandasse alguém que pudesse falar em seu nome.

Arrupe mandou alguém. A entrevista entre o porta-voz jesuíta e o secretário de Estado foi bizarra.

Havia uma nota esperando sobre a mesa do cardeal quando o porta - voz entrou no gabinete de Villot. Pediram ao jesuíta que a lesse. Ela dizia que o santo padre não queria alteração alguma na questão das catego rias. O jesuíta perguntou se a congregação podia discutir a alteração da legislação da Sociedade sobre as categorias. Aparentemente, havia uma sutil diferença, em sua mente, entre permitir que os delegados discutis sem alterações da legislação com vistas a fazer tais alterações, e permitir que os delegados realmente alterassem a legislação. Talvez, como adolescentes no sofá do papai, era tudo uma questão de autocontrole.

Se o papa havia se decidido — e havia —, Villot, falando em caráter oficioso, não podia concordar que a tênue linha de diferença do jesuíta

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tivesse alguma importância. Oficialmente, recusou-se a fazer qualquer co-mentário sobre a nota que estava em cima de sua mesa, como se ela fosse uma batata quente radioativa. Uma vez mais, ficou acertado entre Villot e o porta -voz jesuíta — a pedido deste — que aquela segunda visita teria caráter confidencial.

Se se estivesse em qualquer outro mundo, exceto em Roma, ou se o padre-geral tivesse sido qualquer outro homem que não Pedro Arrupe, o caso poderia ter sido dado por encerrado. Mas Arrupe pareceu sentir que havia feito uma boa manobra — que talvez tivesse, até, ganho uma fração de polegada. O papa fora avisado de que o poderoso “vagalhão” na congregação geral estava

resistindo à proibição papal, e também que, se a proibição fosse mantida em caráter absoluto, poderia haver problemas de difícil contenção. Além disso, Arrupe poderia dizer que, de uma maneira ou de outra, ele tinha mantido o papa informado. Ele era, afinal, apenas o servo do mais alto superior da Sociedade, que para Arrupe (as regras de Inácio e o discurso de Paulo de 3 de dezembro à parte) não era o papa, mas a congregação geral. Que a missão da congregação era obediência ao santo padre, era estranho para a defesa. O detalhe era que Arrupe conseguira transmitir a ideia de que estava sentado sobre um caldeirão fervendo e fazendo o possível para manter a tampa no lugar.

Aquela ideia de urgência foi transmitida tanto pelo tom secreto, na base do “isso aqui é confidencial”, daqueles dois encontros com Villot, quanto por

qualquer coisa que tenha sido dito de ambos os lados. A jul gar pelo que alguns delegados disseram depois de terminada a CG32, no enta nto, parece que as duas conversas eram um segredo conhecido por muitos dos delegados. Arrupe não estava bem sentado no caldeirão; estava nadando nele.

Tendo ganho uma fração ou duas de uma polegada, Arrupe não era homem de recuar. O passo seguinte para lidar com a incômoda proibição papal à prioridade jesuítica número um era decidir que a proibição papal não estava muito clara. Nada clara, na verdade, se examinada mais de perto. Estaria o santo padre falando de uma mera discussão das categorias, ou sobre a extensão, a todos os jesuítas, do Quarto Voto especial? A intenção dele era rejeitar qualquer discussão? Ou apenas as discussões de teoria com vistas à mudança? Que discussões de teoria?

Bem, o esclarecimento de problemas difíceis sempre fora o interesse principal da Sociedade, não? Rapidamente, portanto, e em mais outra cla -morosa contrariedade da vontade manifesta de Paulo VI, foi criada uma comissão especial da congregação que, com a mesma rapidez, passou a re digir um informe de 54 páginas descrevendo em linhas gerais todas as possíveis alterações do sistema de categorias e hierarquia, “esclarecendo”, com isso,

aquilo que o papa poderia ter pensado em proibir. Enquanto os delegados se ocupavam em absorver o informe, a comissão

já estava preparando a versão final, um resumo das 54 páginas. O debate franco teve lugar numa sessão plenária de 21 e 22 de janeiro de 1975.

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Já calejados, os delegados pareciam não se perturbar com toda aquela atividade febril por causa de um assunto já decidido pelo papa. Tranquilamente decidida a vencer a resistência papal, a congregação se justifica va dizendo que o assunto estava sendo apenas discutido, não decidido; e, portanto, não estava sendo alterado. Literalmente, portanto, eles estavam obedecendo à ordem do santo padre de não mudar coisa alguma.

É claro que não haveria mal nenhum em fazer uma série de votações de ensaio sobre a questão das categorias. Uma votação regular teria vio lado a proibição do papa, mas as votações de ensaio seriam apenas “indicações”

oficiosas de sentimento — e teriam o efeito de aumentar ainda mais a sensação de urgência.

Isso eles fizeram, sem dúvida alguma. Com dez abstenções, a vota ção de ensaio indicou, por maioria de dois terços, que a congregação acha va que devia tratar da questão das categorias, que o Quarto Voto deveria ser estendido a todos os jesuítas, que a Sociedade deveria tomar aquele caminho apesar da proibição de Paulo VI, e que a congregação geral de via enviar uma delegação ao santo padre para informar Sua Santidade das decisões dos delegados. Segundo quase três quartos dos delegados, o fingimento quanto a estender o Quarto Voto a todos os jesuítas devia ser abandonado e as categorias da Sociedade deveriam simplesmente ser abolidas.

O término da votação oficiosa no dia 22 de janeiro trouxe com ele um sentimento renovado de euforia; voto de ensaio ou não, e a despeito de desejos e ordens papais interminavelmente repetidos, o pensamento e as decisões da congregação foram registradas como oficiais. A CG32 estava, afinal, progredindo.

O último passo daquele processo assombroso foi de uma simplicida de notável ou de uma emergência insuperável, dependendo da interpreta ção que se dê. Seja como for, a congregação enviou todo aquele material ao papa Paulo naquele mesmo dia, 22 de janeiro.

No dia 23 de janeiro, a resposta de Paulo voltou como um bumeran gue. Não podia haver dúvida alguma, disse o papa, sobre o que ele que ria. Ele havia deixado fartamente claro, por escrito e de boca, direta e indiretamente, pessoalmente e através de terceiros, recentemente e no passado mais distante, em latim, em francês e em italiano: não deveria haver modificação alguma no sistema de categorias. Por que os desejos do papa tinham sido violados?

A discussão plenária da resposta do papa Paulo à congregação foi um dos mais acalorados e mais francos de todos os muitos debates da CG32. E demonstrou amplamente que Arrupe podia, quando lhe convies se, fazer seus jesuítas se comportarem. Os delegados culpavam o papa por “não deixar clara a

sua intenção”; culpavam-no também pela “confidencialidade de encontros que interessavam intimamente à congregação”. Na verdade, eles o culpavam de

tudo. Sem disposição para ver o “vagalhão” dissipar-se em inúteis expressões

muito agitadas sobre quem tinha a culpa pela cri se deles com o papa

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Paulo, o padre-geral Arrupe entrou com suas vituperações. Mas dessa vez ele não estava atrás do pontífice; em vez disso, censurou a “falta de fide lidade” de

certos jesuítas que “se reservam o direito de aceitar ou rejeitar o que a

Sociedade (...) decidiu decretar (...)”. Ele nem tinha chegado à metade, insistiu

Arrupe. “Será impossível permitir que aconteça outra vez o que aconteceu nos

últimos anos. (...) Alguns [jesuítas] consideravam a CG31 um certo desvio do espírito de Santo Inácio (...) publicamente (...) e em cartas anônimas. (...) [Se isso acontecesse], tornaria impossível o governo da Sociedade. (...).”

Deve-se observar que, por mais acaloradas que fossem aquelas discussões, nem Arrupe nem qualquer dos delegados salientou, em termos claros, que principal erro fora de Arrupe, seus assistentes e os adminis tradores da congregação geral, devido às violações da vontade clara do papa — violações por ofuscação, por confidencialidade artificial, por eva sivas e equívocos, por táticas de retardamento — em suma, por todos os meios que pareceram convenientes.

No fim de toda aquela acrimônia, Arrupe ficou convencido de que tudo tinha valido a pena. Ao término de uma tensa sessão da congrega ção, ele explicou com delicadeza e inteligência aos delegados que eles tinham, agora, uma desculpa muito próxima de legítima para expor ao santo padre suas razões por quererem uma mudança no sistema das categorias! O santo padre havia perguntado por que o seu desejo tinha sido violado. Eles iriam respon der a outra pergunta — por que queriam alterar o sistema de categorias — como se tivesse sido aquela a pergunta que o papa fizera.

Se houve alguns que sorriram diante daquele pequeno triunfo da clás sica “hipocrisia jesuítica”, a alegria durou pouco.

Cerca de uma semana depois, a CG32 enviou a Paulo VI um relato completo de seus debates sobre o sistema de categorias. Em duas sema nas, chegou a resposta de Paulo dizendo que não podia haver mudanças no sistema de categorias. Além do mais, assim que a CG32 acabasse e seus decretos e outros documentos estivessem completos, o santo padre queria todos aqueles papéis para examiná-los antes de serem oficializados e divulgados para a Sociedade.

Paulo parecia estar apertando os parafusos; porque ao ordenar à CG32 qu e submetesse seus documentos ao exame e à aprovação papal, o papa rescindira um antigo privilégio da Sociedade; durante um tempo muito longo, nenhuma congregação jesuítica tinha recebido ordens de sub meter seus documentos à aprovação do Vaticano.

Participantes da CG32 declararam que os delegados estavam “cam -baleando” de consternação e estavam “desconcertados” em relação ao conteúdo

da mais recente carta de Paulo. Arrupe, não. Nunca submisso, ele decidiu dar o seu passo mais ousado até então. Confiante em que num encontro pessoal poderia enganar Paulo ou convencê-lo, ou pelo menos atenuar a raiva do papa e recuperar aquela valiosa isenção de exame, Ar rupe solicitou um encontro com o santo padre.

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O fato de o encontro ter-se realizado não é muito conhecido. Que ele teve a natureza de um ensaio pessoal por parte do papa e do geral, para a guerra franca que tomava aspectos de inevitável entre o papado e a “nova” Sociedade

de Jesus, tornou-se claro num exame posterior. Arrupe chegou para a audiência papal em companhia de assistente-geral

da maior confiança, Vincent O’Keefe. O’Keefe, no entanto, ficou na porta do

local de reunião. Lá dentro, Arrupe encontrou não apenas o papa, mas também o as sessor

de confiança de Paulo, o nêmesis da Sociedade no Vaticano, monsignore Giovanni Benelli. Sem dúvida, Benelli ainda sentia os efeitos dos ataques desrespeitosos e francamente insultuosos que tinham sido divul gados contra ele em 1973 por Peter Hebblethwaite, S.J., no London Observer, e pela flagrante recusa, por parte de Arrupe, de tomar qualquer providência para atenuar até mesmo os epítetos mais pessoais que Hebblethwaite lançara contra ele.

Na mente de Paulo e na de Benelli, o detalhe estava, agora, bem cla ro em toda a sua simplicidade. Pedro Arrupe teria que sair; e le teria que deixar o generalato da Sociedade. Poder-se-ia alegar motivo de saúde — ou outro qualquer. Além do mais, a CG32 teria que entrar em recesso, e sua reconvocação seria adiada sine die.

A discussão tornou-se logo áspera. A voz de Benelli era a única alta — mas aquilo era o seu estilo normal quando posto à prova. Apesar dis so, o encontro passou a girar rapidamente em torno de duas coisas: a so licitação de Paulo e a insistência de Benelli para que Arrupe se exonerasse pelos jesuítas e para o bem da Igreja, e a resistência apaixonada mas sagaz de Arrupe. Foi o momento mais árduo para Arrupe desde o seu ardi loso interrogatório, há trinta anos atrás, pela notória KEMPEI-TAI japonesa.

As razões do papa foram expostas num detalhe constrangedor: a fla grante má administração e desgoverno da Sociedade de Jesus por parte de Arrupe; sua clamorosa desobediência às ordens manifestas e repetidas de Sua Santidade para que a CG32 não tocasse na questão de categorias na Sociedade; sua tolerância sistemática — no mínimo, mesmo, tolerância — quanto à heresia, ao sentimento antipapal e à doutrina moralmente errada e moralmente infundada na Sociedade em geral.

A tempestade contra Arrupe não vinha só de Paulo VI. A liderança do geral desde 1965 tinha merecido reparos de muita gente, tal como a sua liderança da CG32 era, agora, acerbamente criticada por alguns dos próprios delegados.

Paulo não compreendia a clamorosa desobediência de Arrupe, a não ser como desobediência. Não havia como Arrupe pudesse encontrar meio de se justificar, a não ser confessar-se culpado devido à sua devoção à Sociedade corporificada na congregação geral.

Mas Benelli não queria mais saber de frases de duplo sentido. Arru pe tinha que sair.

A resposta de Arrupe: ele fora nomeado constitucional e j uridicamente

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pela congregação geral. A congregação era a única, constitucio nalmente falando, que podia exonerá-lo. Por justa causa.

O argumento de Benelli: havia ampla e justa causa — o abandono jesuítico, sob a gestão de Arrupe, da posição papal sobre a contracepção, como demonstrado pelo ataque quase em massa da Sociedade à Humanae Vitae, oficialmente promulgada; abandono, também, da posição papal sobre a heresia do modernismo. Benelli precisava continuar?

Contra-argumentação de Arrupe: ele podia mostrar um maço — até mesmo um arquivo inteiro — de suas cartas pessoais a todos os jesuítas, endossando e defendendo aquelas posições católicas e papais.

Conclusão de Benelli: o santo padre ainda achava que para o bem da Igreja e o bem-estar da Sociedade, Sua Reverência padre Arrupe tinha que deixar o cargo.

Há quem seja de opinião de que Arrupe estava, finalmente, chegan do ao ponto de desabar; que no seu crescente desespero ele simplesmente usava de todos os argumentos, por desprezíveis que fossem. Se ele t inha que sair, disse Arrupe, então sairia; os jesuítas sempre seriam os primei ros a obedecer. Mas ainda assim, propriamente falando, ele deveria ser mandado embora pela congregação geral, para que tudo ficasse legal e às claras. Todos os jesuítas entravam para a Sociedade com pleno conhecimento das Constituições inacianas. Se ele fosse demitido ali e agora, e de maneira incompatível com as Constituições, como poderia Sua Excelência, o monsignore Benelli, saber o que os jesuítas iriam dizer? Sua Excelência falara no bem da Igreja e no bem-estar da Sociedade. O que pensaria Sua Excelência ao ver um Karl Rahner, S.J., ou um Henri de Lubac, S.J. — entre outros homens de prestígio cujos nomes tinham um peso enorme — repudiar o afastamento de Arrupe pelo santo padre e seu próprio compromisso para com a Sociedade? Será que aqueles homens não iriam chegar à conclusão de que se a Santa Sé — a garantia máxima de toda a ordem devida e do direito constitucional — agira de maneira incompatível com as Constituições, então os jesuítas poderiam fazer exatamente o mesmo? Se as Constituições não tinham importância para a Santa Sé, por que teriam para a Sociedade? E como isso iria servir ao bem da Igreja ou ao bem da Ordem?

Durante o que óbvia mas desnecessariamente se torna ra uma discussão escabrosa, houve uma interrupção imprevista: a atenção do papa era exigida com urgência para outro assunto. Arrupe foi solicitado a esperar lá fora.

Quando o geral se juntou ao assistente para o curto intervalo, seu cansaço era evidente. O que ele precisava era de uma injeção de coragem e reforço. E foi precisamente isso que seu assistente-geral lhe deu. Como é que Arrupe podia esquecer os sete longos anos de preparação que todos eles tinham dedicado à CG32? Como podia esquecer o entusiasmo das duas sessões da CG31? Como podia abandonar seus irmãos, cedendo à animosidade de Giovanni Benelli, ou de Jean Villot, cuja influência provavelmente estava em algum lugar em tudo aquilo? O que aconteceria aos

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programas múltiplos já iniciados por Arrupe e seus homens a fim de que a Igreja pudesse ser ajudada a dobrar a esquina e começar a andar decidi da, acompanhando o passo do homem moderno?

Além disso tudo, lembrou-se a Arrupe, aquela questão das Constituições era de suma importância. Será que Paulo e Benelli percebiam, mesmo de maneira muito tênue, o efeito que a demissão de Arrupe e a demora ou cancelamento da CG32 teriam sobre outras grandes ordens religiosas? Sobre os dominicanos, franciscanos, carmelitas, beneditinos? Como a So ciedade, todas elas estavam em crise, todas estavam seguindo o mesmo caminho que os jesuítas, estavam todas voltadas para a “renovação” da Igreja, da mesma

maneira. Desde 1965, mais de 7.500 homens haviam abandonado o sacerdócio. Será que Paulo e Benelli percebiam que o triplo daquele número iria sair logo, se o papa insistisse? Ora, o alarido em torno da Humanae Vitae iria parecer um coro de cotovias comparado com a cacofonia ululante que cairia sobre a Santa Sé se o papa afastasse Arrupe.

Se tudo isso não fosse suficiente para reanimar Pedro Arrupe, havia, finalmente, o argumento máximo jesuítico. Inácio havia prometido a seus homens a perseguição e a incompreensão por parte de inimigos e amigos. A Sociedade não tinha sido correta em suas várias posições no passado? E no entanto não foi condenada pela Santa Sé? E não tinha a Santa Sé — quando já era tarde demais — reconhecido o seu erro? O próprio padre Ricci, o último geral da velha Sociedade, dissera isso enquan to jazia moribundo na prisão papal de Castel Sant’Angelo.

Realisticamente, e falando em morte, ao próprio papa Paulo não res tava tanto tempo mortal assim. Arrupe tinha que aguentar; era isso aí. Todos os sinais eram de que o próximo papa iria corresponder mais fiel mente à nova tendência da Igreja.

Quando o santo padre chamou Arrupe para a segunda sessão do en contro, o geral havia recuperado sua força. Seu propósito não podia mais esquivar -se do exame papal dos documentos da CG32; ele estava lutando pela sua sobrevivência. Mas isso ele fazia muito bem.

Humildemente, Arrupe propôs um meio-termo. Absolutamente falando, Sua Santidade podia destituir Arrupe do cargo, suspendendo, as sim, temporariamente as Constituições. Arrupe não iria lutar contra aquela decisão; iria obedecer com alegria jesuítica. Era de se presumir que o geral jesuíta seguinte fosse eleito juridicamente segundo as Constituições. Mas Arrupe não podia violar sua consciência como jesuíta e como padre - geral. Em outras palavras, Arrupe não iria obedecer; não pediria demis são.

Paulo e Benelli viram as armadilhas que Arrupe estava armando a seus pés; ele estava apostando que eles não iriam querer pisar nelas. Aque les mesmos dois homens tinham ido longe demais no fomento da ideia da Igreja como “o Povo de Deus”. Benelli havia falado com arrogânci a a católicos tradicionalistas sobre a ideia “antiga” que eles tinham da Igreja comparada

com a “nova” ideia da Igreja. “Temos uma nova eclesiologia”, dissera ele. O

próprio Paulo seguira pelo mesmo caminho com mais

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ou menos a mesma jovial irresponsabilidade: “Ah!”, dissera ele quando um

bispo conservador morrera em 1967, “ele nunca compreendeu o nos so novo estilo para a Igreja.”

Se Paulo agisse por uma ordem absoluta — se agisse como um monarca, para falar francamente —, aquilo iria provocar exatamente a tempestade que o assistente de Arrupe descrevera na sala de espera momentos antes. Ordens religiosas, bispos, padres diocesanos, freiras já “liberadas” e laicado seriam,

todos, envolvidos numa nova e feroz tempestade de fo go de condenação e revolta contra Paulo e o papado.

Mesmo que Arrupe pudesse supor — não podia, mas sua análise era, sem dúvida alguma, completa num jogo tão capital assim — que Paulo fosse correr o risco de provocar uma tempestade na Igreja destituindo-o do cargo de padre-geral, o que aconteceria? Se Paulo permitisse que os jesuítas se reunissem numa congregação geral, como mandavam as Constituições, para eleger um novo geral, haveria alguma certeza de que eles não surgiriam com alguém do “grupo

de liderança” de Arrupe? Alguém ainda mais inaceitável? Ou mesmo com o próprio Arrupe, eleito uma vez mais em triunfo por uma congregação recalcitrante?

Arrupe podia estar, ou não, ciente de que Paulo tinha uma escolha própria para geral, à espera nos bastidores. Mas Paulo sabia bem que uma pal avra quanto à identidade do candidato e, tal como estavam as coisas, o homem não iria receber um só voto e, provavelmente, acabaria seus dias vivendo com o que pudesse levar na mala, numa missão permanente e errante junto aos bosquímanos do deserto de Kalahari.

Arrupe ganhou a sua jogada final, desesperada. Paulo e Benelli re -cusaram, afastando-se daquelas armadilhas. O ensaio para uma guerra aberta deslocou-se temporariamente para um meio-termo. Arrupe iria providenciar, dizia o embaraçoso acordo, para que a vontade de Sua Santidade fosse cumprida. Quanto à insatisfação da Sociedade em relação à sua liderança, Arrupe daria, a título de teste, o passo sem precedentes de pedir à CG32 que julgasse a sua liderança.

Quando Arrupe voltou ao seio da congregação geral, explicou aos delegados uma parte do que acontecera lá em frente, no Palácio Apostó lico; fez com que eles compreendessem o quanto o santo padre amava a todos e dependia deles, e que o pontífice desejava muito ver o geral sem pre que este quisesse ou precisasse consultar o santo padre. E a CG32 tornou-se, de fato, a primeira congregação geral a confirmar um padre- geral no cargo.

E assim o tremendo esforço da CG32 para alterar aquele importan tíssimo ponto substancial da Sociedade — o sistema inaciano de categorias com todas suas implicações para o sacerdócio, para a obediência e para a Igreja hierárquica — acabou se rompendo contra a obstinada von tade do papa Paulo VI.

E o incrível, no entanto, foi que mesmo depois de toda a labuta e todo o sofrimento, ainda restou mais do que um petulante protesto de insubordinação na CG32 sobre o assunto das categorias na Sociedade.

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O Decreto nº 18 ganhou seu lugar nas Atas oficiais da congregação, e embora ele fosse fraco em comparação com a intenção original de Arrupe e dos delegados, havia a esperança de que a CG32 ainda pudesse con seguir seu objetivo por meios “pacíficos” e “legais”, mediante a trans formação da questão das categorias de um caso polêmico em um caso insignificante. Assim, o Decreto nº 18 salientava “a unidade das vocações” na Sociedade. “Unidade das

vocações” era uma espécie de linguagem cifrada; significava que as categorias não tinham tanta importância assim: criar algo como uma “vocação jesuítica”

geral seria colocar todos os jesuítas em pé de igualdade. De fato, o decreto pedia aos jesuítas que evitassem que as categorias “fossem uma fonte de

divisão”. Isso, apesar do fato de que Inácio tivera a intenção de que as divisões

existissem e também advertira seus seguidores para que não transformassem as divisões entre as classes numa fonte de dissensões. Parece que a CG32 entendera a mensagem de Loyola ao contrário. Para evitar “divisões”, os não -professos — os jesuítas sem o Quarto Voto — deveriam ser ajudados a participar “da vida e da atividade apostólica da Sociedade”; e as normas

segundo as quais os sacerdotes eram admitidos na Profissão do Quarto Voto (normas já “mais bem adaptadas” pela CG32, dizia o texto) deve riam “ser

postas em prática”. Sinceramente falando, as normas para obter a al mejada Profissão do

Quarto Voto seriam atenuadas de modo a que com o correr do tempo todos os padres da Sociedade ficassem, assim se esperava, em condições de fazer o Quarto Voto. Se o decreto fosse cumprido de fato, a distinção inaciana das categorias iria ficando cada vez mais diluída. Com o tempo, poderia ser encontrada uma maneira igualmente “pacífica” e “legal” de levar os

escolásticos e os irmãos leigos para o mesmo nível dos padres na Sociedade. O Decreto nº 18 colocava as categorias pelo menos numa trilha, embora não na auto-estrada desejada, em direção ao desuso.

Por mais envolvente e conflitante que fosse a questão prioritária das categorias para a CG32, ela não absorveu toda a atenção dos delegados. E não desviou o propósito da congregação quanto à questão tão prioritária quanto a das categorias: a da missão da Sociedade de Jesus no mundo moderno. Num certo sentido, na verdade, pode-se alegar que o rebuliço em relação ao caso das categorias possibilitou à CG32 sair ilesa com a sua nova definição e compreensão da Sociedade.

“Missão”, neste sentido, era um termo usado para expressar a razão fundamental da existência da Sociedade, semelhante ao que se diz que a missão do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA, por exemplo, é lutar, ou a da Suprema Corte dos EUA é julgar.

Havia, ali, uma inovação de verdade, tanto mais quanto nada me nos do que a definição do novo “carisma primitivo” da Sociedade de pendia agora inteiramente do sucesso da CG32 em resolver a questão da missão jesuítica no mundo moderno. E ao contrário das categorias, essa questão da missão foi tratada com habilidade desde o começo.

É óbvio — como Paulo VI enfatizara em seu discurso aos delegados

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em 3 de dezembro — que a Sociedade deveria ser um corpo “apostólico”; isto

é, deveria ser composto de apóstolos dos nossos dias da Igreja dedicados a ministérios dignos desses apóstolos.

Perto do início da CG32, uma força-tarefa de delegados escolheu oi to tópicos gerais — todos prioridades de certo grau — a serem examinados pela congregação. Dois desses tópicos prioritários estavam no cerne da prioridade geral da nova missão da Sociedade:

Que critérios deveriam ser usados na escolha de ministérios adequa -damente apostólicos?

Como promover a justiça sócio-política entre os homens, hoje? Não era difícil perceber que tais questões prioritárias deveriam estar

ligadas entre si, e que a resposta à segunda poderia essencialmente tornar -se o critério para a primeira. A justiça se tornaria o critério para decidir quais os ministérios que eram adequadamente apostólicos. Se, numa determinada área, batizar recém-nascidos ou ouvir confissões não ajudasse a fundar um sindicato operário ou derrubar um governo injusto, não se devia batizar nem ouvir confissões. Porque justiça significava justiça social; significava libertação política; e significava independência econômica. Não havia, aqui, nenhum sabor de “justiça” bíblica — de ser perdoado pela graça de Deus aos olhos de Deus, de ajudar as pessoas pelos Sacramentos e pregando para obter aquela graça divina íntima.

A vinculação oficial dessas duas prioridades foi realizada numa ses são plenária dos delegados, na qual Arrupe e o conselho da congregação insistiram na criação de uma prioridade de prioridades, formada precisa mente por aquelas duas questões: os critérios para os ministérios apostólicos e a promoção da justiça. Para cumprir a determinação de Paulo VI aos jesuítas, para que combatessem o ateísmo, esta tarefa foi introduzida na prioridade de prioridades. A proposta foi aprovada de imediato.

A tarefa passou a ser, então, a definição e o esboço daquela nova prioridade de prioridades; e nada menos do que quatro decretos foram dedicados ao exaustivo tratamento do assunto.

Juntos, sob o título geral A Resposta da Sociedade aos Desafios de Nossa Era, aqueles quatro decretos formam toda a primeira seção dos decre tos finais e oficiais da CG32. Eles são, portanto, os decretos -chave e sobre eles repousa a interpretação válida de todos os outros. De fato, os doze de cretos restantes da congregação foram feitos para se encaixarem na prioridade das prioridades — o novo conceito do “carisma primitivo” dos jesuítas.

Eram muito poucos os indícios de que pudesse haver liderança ou inspiração inaciana atuando naqueles quatro decretos, muito menos ain da do que a Igreja, na autoridade de seu papado, exigia. Coerente com o título geral daquela primeira parte dos decretos oficiais da CG32, a con gregação procurou redefinir a Sociedade de Jesus em termos daquilo que ela achava que a época exigia. É correto descrever os delegados como fora de si na questão de “promover a justiça”. De fato, é difícil transmitir por simples palavras a

atitude quase messiânica e “inspirada” dos delegados em relação àquele novo foco.

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A premissa básica para o ataque mais importante dos decretos est á embutida com perfeição numa única frase dos parágrafos iniciais.

“O que é ser jesuíta?”, pergunta o texto; e então dá logo a resposta: “É

dedicar-se, sob a bandeira da Cruz, à luta crucial de nossa época: a luta pela fé e aquela luta pela justiça que ela [a fé] inclui.”

Essa última frase, aquele acréscimo gratuito e ilógico, é o elo neces sário com a conclusão desejada: a Sociedade “opta pela participação nessa luta como

o foco que identifica em nossa era aquilo que os jesuítas são e fazem.” Dos quatro decretos que se seguem, o capital — aquele que afinal e

plenamente dá voz ao novo “carisma primitivo” — é o Decreto nº 4, intitulado “Nossa Missão Hoje: O Serviço da Fé e a Promoção da Justi ça”. Nos 81

parágrafos do Decreto nº 4, os autores uniram dois elementos distintos para um propósito muito definido.

O primeiro elemento é a determinação da congregação em decretar a entrada em vigor de uma obrigação jesuítica corporativa e individual de trabalhar para a reestruturação dos sistemas sócio-políticos de nosso mundo moderno.

O segundo elemento é a tentativa de incluir alguma indicação das tra -dicionais espiritualidade e ideologia religiosa dos jesuítas. Normalmente, esse elemento básico, teológico, seria o dominante; nenhum decreto de qualquer congregação pode ser aceito se não existir as verdadeiras mar cas da espiritualidade e da ideologia clássicas da Sociedade. Agora, no entanto, essa dimensão tradicional é pro forma; ela é juntada à primeira como exigência acadêmica, como exercício de protocolo — como “salvo- conduto”, em

essência, para garantir a aceitação de todo o documento. Quando esses dois elementos são desatrelados um do outro, o retra to que

surge no Decreto nº 4 é geometricamente claro. A Sociedade se compromete a uma solidariedade corporativa e pessoal com as vítimas da “injustiça social” e

da “escravização política” — termos que recebem um significado técnico na linguagem do decreto.

O decreto reconhece que a injustiça social e a escravização política estão à nossa volta. “Milhões sofrem de pobreza e fome, da injusta distribuição da riqueza e dos recursos, e das consequências da discriminação racial, social e política.” A dificuldade para os jesuítas, até aquele momento, tinha sido, como

segue dizendo o decreto, o fato de que “a estrutura na qual temos pregado o Evangelho é considerada, agora, como inextricavelmente ligada a uma ordem social inaceitável e, por essa razão, está sendo questionada”.

Agora, no entanto, “está (...) ao alcance da força humana tornar o mundo

mais justo (...). Já não podemos alegar que as desigualdades e injustiças do nosso mundo têm que ser suportadas como parte de uma ordem inevitável das coisas”.

Era o que se tinha a dizer sobre as “alegações” do antigo carisma

inaciano. Era necessário um novo plano. A primeira parte desse plano era “um

firme compromisso de fazer o nosso mundo diferente do que é, fazer dele

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o sinal visível de um outro mundo, o símbolo ‘de um novo Céu e uma nova

Terra’”. Feita essa homenagem à linguagem tradicional, é esclarecida a na -tureza da transformação jesuítica da sociedade moderna: “(...) num mundo em

que o poder de estruturas econômicas, sociais e políticas agora é admi rado, e o mecanismo e as leis que as governam são, agora, compreendidos, o serviço segundo o Evangelho não pode dispensar um esforço cuidadosamente planejado para exercer influência sobre essas estruturas.”

Por estarem essas estruturas da sociedade — os sistemas políticos, os sistemas bancários, os sistemas hospitalares, os sistemas de transpor te, as indústrias de construção, os complexos militares-industriais, os sistemas educacionais — “entre as principais influências formativas do nosso mundo”,

os jesuítas deverão fazer sua, de uma maneira tanto pessoal quanto corporativa, “a luta para transformar essas estruturas no interesse da libertação espiritual e material dos seus semelhantes (...)”.

Não se faz alusão ao fato de que os jesuítas haviam abdicado, pouco tempo antes, de sua “influência formativa” em muitos dos sistemas edu -cacionais e que o resultado tinha sido o caos. Pelo contrário, a nova missão é abraçada em termos candentes: os jesuítas irão “prestar solidariedade aos

desprovidos de voz e de poder”. Para ter certeza de que todos os jesuítas iriam compreender a impor tância

do decreto, foi enfatizado que a promoção da justiça “não era mais uma área

apostólica” entre outras; não apenas “o apostolado social”. Ela deveria ser a

preocupação de “toda a nossa vida e uma dimensão de todos os nossos esforços

apostólicos”. Os jesuítas deveriam então estar comprometidos com a

construção de uma nova sociedade material e, enquanto faziam isso, com o combate à “injustiça institucionalizada” que está “embutida nas estruturas

econômicas, sociais e políticas que dominam a vida de nações e a comunidade internacional”.

Para fazer justiça aos autores desse texto, está claro que eles lutaram corajosamente para ligar a “promoção da justiça” ao chamado eclesiás tico — uma necessidade especial, porque o fracasso da CG32 no caso das categorias significava que os jesuítas ainda teriam que ser ordenados padres. Os elos são frágeis, no entanto, e não cobrem grandes e inconvenientes hiatos em lógica.

Depois de afirmar, por exemplo, que a promoção da justiça sócio -política — a transformação das próprias estruturas da sociedade — é o novo foco da Sociedade de Jesus, o texto é casual e até presunçoso no salto que dá para a justificativa espiritual: “Nós não adquirimos essa atitude mental só por esforço

próprio. Ela é o fruto do Espírito Santo. (...).” É ignorada a exigência clássica

para um argumento seguro que deva sublinhar qualquer assertiva desse tipo. É lógico que àquela altura da apresentação o texto seria obrigado a demonstrar, com base na teologia, nas Escrituras, nos ensinamentos dos padres da Igreja e na razão teológica, que a promoção da justiça sócio-política tinha alguma coisa a ver diretamente com ministérios apostólicos e com os ministérios próprios da Sociedade. Mas esse passo essencial é omitido.

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Em vez disso, como um jogador de beisebol de um time de primeira categoria que decide, por conta própria, que não precisa tocar a terceira base antes de fazer o ponto, os autores do Decreto nº 4 saltaram jovial mente sobre o fosso teológico para agarrarem sua presa: “É por ele [o fruto do Espírito Santo]

que sabemos que a promoção da justiça é parte integral do serviço eclesiástico da fé.” A satisfação manifesta nessa ilogicidade e obscurecimento é

acabrunhante. Mas a evocação da indulgência do Espírito Santo não tem igual em congregações jesuíticas.

É este, então, o novo “carisma primitivo” da Sociedade de Jesus que

Arrupe e seus jesuítas buscavam de forma tão inexorável e durante tanto tempo. Quando finalmente ele é resumido em um parágrafo do decreto, surge como lamentável modelo de falsa doutrina no qual o sólido suporte teológico é substituído por objetivos sócio-políticos convenientemente misturados aos gorjeios de uma pieguice com ares de espiritual: a graça “que nos permite

buscar a salvação de almas — poderia ser chamada, em termos contemporâneos, de liberação total e integral do homem — levando à participação na vida do próprio Deus — é a mesma graça pela qual temos condições e somos compelidos a procurar nossa salvação e nossa per feição”. O

abismo sobre o qual esse salto é dado é ignorado e logo deixado para trás. No restante de seus decretos, a CG32 foi fiel ao espírito animador desse

novo “carisma primitivo”, o novo foco para a Sociedade de Jesus. Nos seus 96

dias de trabalho, os delegados participaram de 83 sessões ple nárias, de incontáveis reuniões de comissões e subcomissões, de comitês e forças-tarefa. Fizeram 1.300 votações sobre decretos; só para o Decreto sobre a Pobreza, houve 153 votações sobre emendas específicas ao longo de um período de quatro horas, para a aprovação final de todo o decre to. Demonstraram um entusiasmo, paciência e perseverança impressionantes. E no fim, conseguiram apresentar uma condenação tácita — e às vezes nem tão tácita — da sociedade capitalista.

Naquele mesmo Decreto sobre a Pobreza, por exemplo, que preci sou de 153 votações para ficar como queriam, a pobreza não é uma das virtudes clássicas e um dos distintivos profissionais do homem religioso, o jesuíta que pelo voto de pobreza se identifica com uma dimensão espi ritual da alma do Jesus histórico. A pobreza, como voto e virtude, estava agora passando por uma “socialização”: era, agora, um emblema pro fissional de integração e identificação com os economicamente carentes e os oprimidos do ponto de vista sócio-político.

A única referência, nos decretos finais da CG32, ao confronto quase desastroso entre Pedro Arrupe e Paulo VI sobre a tentativa de vencer a resistência quanto à questão de categorias e autoridade, é uma leve refe rência no prefácio histórico dos decretos. Ali está registrado que a con gregação examinou cuidadosamente o sistema de categorias e apresentara o assunto à Santa Sé, para decisão. Tinha havido certo “mal -entendido”, admite mais ou

menos o texto, e depois a congregação havia “aceito a decisão de Sua

Santidade obediente e fielmente”. A sinceridade e a franqueza,

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bem como a humildade, teriam ficado mais bem servidas se aque le obscurecimento em proveito próprio tivesse sido totalmente omitido ou se os fatos reais tivessem sido contados novamente.

Quando, afinal, chegou a 7 de março de 1975, o término da CG32 em nada se parecia, inevitavelmente, com o término da CG31 nove anos antes.

Naquela distante manhã de novembro de 1966, o pontífice havia re cebido em pessoa todos os 226 delegados de túnicas pretas na solene e privilegiada atmosfera da Capela Sistina. Ali, ele co-celebrara a missa com Pedro Arrupe e cinco dos delegados. Fizera um discurso de despedida cor dial, encorajador. É verdade que expressara certos receios; mas naquelas últimas horas da CG31, as tensões e as lutas pela supremacia foram pos tas de lado. O espírito fora o de filhos indisciplinados e rebeldes que ha viam testado a autoridade do pai. E lá naquele momento, mesmo os mais cínicos entre aqueles filhos devem ter sentido algo especial. Fosse qual fosse a chama da fé que queimasse em cada um deles; fosse qual fosse o lampejo de amor por Cristo como Líder Supremo, de desejo de servir, de auto-sacrifício, de esperanças na eternidade de Deus; fosse qual fosse a semente de ligação com a Igreja que restasse — tudo isso deve ter sido atiçado e avivado, polido e estimulado naquele longínquo dia de novembro. Aqueles jesuítas, e todos os outros por eles representados, tinham sido recebidos como membros de confiança e estimados da família do santo padre, para compartilhar da sagrada intimidade do Sacrifício de Cris to com o homem que sua fé lhes dizia ser o representante pessoal de Cristo na Terra. Foram distinguidos com a Bênção Apostólica, dada por ele pes soalmente. Tudo parecera tão bom, tão promissor! Muitos daqueles de legados se lembravam daquele dia muito tempo depois, como o momento de primavera de seus planos e esperanças. Recordavam que estavam sorridentes, felizes, loquazes. “Aconchegante e confortável”, foi como um norte -americano descreveu o ambiente.

Mas em 7 de março de 1975, aquela época parecia muito remota. A CG32 tinha sido uma série de escaramuças e batalhas, algumas perdidas, outras ganhas, mas todas elas pressagiando uma guerra mais longa, mais ampla. Não haveria nenhuma reunião de delegados, nenhuma missa na Capela Sistina, nenhuma celebração comunal entre um pai e seus filhos insubordinados. Não haveria mais paz entre papa e jesuítas.

Em vez disso, houve uma última confrontação. A congregação geral ainda estava trabalhando no seu último dia ofi cial

quando Pedro Arrupe deixou os delegados no auditório do Gesù e atravessou a praça de São Pedro, cercado dessa vez não por qualquer mul tidão de colegas alegres, mas por seus quatro assistentes-gerais, Vincent O’Keefe, Yves Calvez,

Horacio de la Costa e Parmananda Divarkar. O destino deles não era a C apela Sistina, mas um loca! de atividade papal diária no Palácio Apostólico. Iriam ter um encontro com Paulo VI, menos talvez como vigário de Cristo do que como senhor das Chaves, seu superior máximo nesta terra.

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Naquele encontro, o desempenho de Paulo VI foi, pelo menos daquela vez, excepcional. Foi, realmente, o Supremo Pastor e pontífice ro mano. Não houve palavras ásperas por parte dele, nada de tons estridentes. Fez um uso brilhante da romanità em palavras, em ação indireta mas eficaz, e em simbolismo.

A própria simplicidade do local que o pontífice escolheu para falar aos jesuítas, na verdade, fazia parte do simbolismo. Naquele lugar o padre - geral e seus assistentes sentaram-se como emissários entre dois campos fortificados numa guerra não declarada e ouviram as palavras medidas de seu principal adversário.

O santo padre foi logo avisando Arrupe e os outros: ele sabia, disse ele em cadências de romanità, para onde os jesuítas queriam ir com a sua Sociedade; ele era contra. Disse exatamente qual o c aminho que eles deveriam seguir.

Paulo disse: Estamos contentes por termos outra oportunidade de mostrar a Nossa preocupação para com a sua Sociedade, além da última oportunidade durante a congregação em que fizemos o possível para Nos certificarmos de que os senhores percebessem que estávamos sendo sinceros quando lhe dissemos que não deveria haver mudança alguma no sis tema de categorias.

Paulo disse: Alguns dos senhores achavam que não poderiam trans formar a sua Sociedade com um novo vigor a menos que introduzissem nela elementos substancialmente novos. Não permitimos e não iremos per mitir isso. Deformação não é transformação. Só a lealdade a Inácio lhes dará o jesuitismo de Inácio.

Paulo disse, finalmente: Os senhores só poderão vencer não por meios naturais, mas pela graça de Deus. E o seu sucesso ou fracasso como reli giosos será observado por muitas outras ordens religiosas. Os senhores já foram os porta-bandeiras do que deve ser o bom religioso. Aquilo que os senhores fizerem é importante.

Quando Paulo terminou seu discurso, Arrupe recebeu de um assis tente papal uma cópia datilografada; ele deveria voltar com ela para o Gesù e dar conhecimento dela aos delegados da CG32.

O simbolismo da romanità ficou patente nas cerimônias moderadas. Paulo deu aos emissários jesuítas um presente de despedida: um grande crucifixo do século XVII que pertencera a um dos maiores santos jesuí tas, Roberto Belarmino. O simbolismo estava claro. Belarmino tinha si do principalmente duas coisas: o mundialmente famoso defensor das prerrogativas do papa e o grande defensor da doutrina ortodoxa contra os hereges de sua época.

De volta ao auditório do Gesù, o padre Arrupe leu para os delegados o discurso solene e direto do papa. O discurso foi recebido com o silêncio que saúda obstáculos significativos e inesperados. Quando Arru pe exibiu, então, o crucifixo de Belarmino para exame pelos delegados, o simbolismo de lealdade ao papado e à doutrina papal foi inevitável.

Parece que alguns recordaram, no entanto, que Belarmino també m

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fizera oposição a pelo menos um papa. E ele e suas doutrinas não tinham diminuído a extensão do poder papal? Talvez isso também fizesse parte do simbolismo de Paulo. De qualquer modo, para homens decididos a usar sua força de vontade na contravenção de qualquer norma papal, não podia haver uma aceitação franca e simples quer das palavras diretas de Paulo, quer de seu igualmente direto simbolismo.

Os delegados voltaram a se dedicar às últimas horas de seu trabalho. No final da tarde, quando todas as votações acabaram, Arrupe fez um último discurso de encorajamento, de confiança nas decisões tomadas du rante as deliberações dos delegados, e de exortação para que os decretos fossem observados e cumpridos como os bastiões para o sucesso futuro na verdadeira revolução que estava acontecendo. Daqueles bastiões, eles e outros iriam, anos seguidos, disparar tantas salvas certeiras quanto pos sível; a maioria seria dirigida ao papado e à autoridade universal e apos tólica da Igreja Romana.

Depois do jantar naquele 7 de março, terminado todo o trabalho ár duo, os delegados se distraíram no Gesù com um concerto de improviso com canções de suas terras natais. O padre Arrupe participou com sua agradável voz de tenor.

Será que Arrupe sabia que o seu relacionamento subsequente com Paulo VI continuaria esticado pelos fios das desanimadoras mas agora aceitas tensões entre eles até a morte de Paulo? É provável que sim. Fosse como fosse, durante os três anos restantes da vida do papa, nenhuma in terferência ou intervenção de Paulo VI desviou Arrupe e sua geração da inflexível busca daquilo que eles chamavam de “renovação” e de “carisma primitivo” da Sociedade. E o certo é

que eles pareciam despreocupados naquela última noite juntos em Roma. Talvez canções folclóricas não fossem a mesma coisa que uma missa

solene com o pontífice na Sistina; mas foi divertido e encantador. O am biente era “familiar”.

As notas finais da CG32 soaram quando a Rádio Vaticano, dirigida por jesuítas, anunciou o encerramento da congregação. Esta congre gação, observou a declaração irônica e exagerada, “ficará na história pelo interesse pastoral e

pelas orientações autoritárias com que o santo padre acompanhou seus preparativos, sua realização e sua conclusão”. O santo padre, acrescentou o

comentarista da Rádio Vaticano, “tornará a intervir sempre que o bem da Sociedade e da Igreja assim o exigir”.

Um delegado que partia refletiu um outro ponto de vista menos papalista. “O papa Paulo tem medo de que a Ordem vá desaparecer ao se tornar

demasiado secular. Mas há o perigo de que ele possa aniquilá -la ao assumir o controle dela e nos transformar em empoeirados criadinhos papais.”

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A

primavera romana de 1975 estava muito próxima. O preâmbulo da guerra entre a Sociedade de Jesus e seu criador, o papado, tinha dez anos. Uma década se passara desde que os delegados, na primeira sessão da CG31, foram logo tendo a ideia, embora a princípio um tanto vaga, de fiar novos fios para tecer a nova identidade e missão jesuítica no mundo moderno. Depois de todas as suas escaramuças com o papa Paulo VI e a Santa Sé, a liderança da Sociedade conseguira, finalmente, nos 96 dias da CG32, criar decretos que iriam permitir que a Ordem fizesse as mais fundamentais alterações quanto ao mesmo tempo afirmasse, com base no seu novo “carisma

primitivo”, que os jesuítas continuavam sendo o mesmo quadro leal de

sempre, os líderes e os porta-bandeiras da verdadeira fé e da verdadeira lealdade, na tradição inaciana.

A dificuldade de Pedro Arrupe e dos jesuítas depois da CG32, no entanto, estava em que, com congregação geral ou não, eles haviam per dido o predomínio. Os decretos da CG32 estavam em mãos de Paulo VI, para cuidadoso exame por parte do gabinete papal. Os rumores circula vam pelos corredores e gabinetes romanos como enguias. Os assessores conservadores do santo padre, dizia um dos rumores, estavam recomendando a rejeição total dos decretos. Não, dizia outro rumor, o santo padre não iria devolver os decretos, mas iria ficar com eles sine die, deixando a CG32 num estado latente e toda a Sociedade de Jesus num limbo canônico. Talvez, dizia ainda outro rumor, seria permitido que uma seção da Sociedade se separasse do corpo principal e continuasse na estrutura jesuítica pré-CG31 e pré-CG32. Segundo ainda outro rumor, haveria uma revisão completa dos decretos da CG32.

Fossem quais fossem os rumores, a bruta realidade da vida era que, pela primeira vez em centenas de anos, um papa não aceitara automati camente as resoluções de uma congregação geral. Isso significava p roblemas. Tudo poderia acontecer.

Qualquer um daqueles rumores poderia ter sido um reflexo verda deiro da realidade naquelas semanas após o término da CG32, se Paulo

22. IMAGEM PÚBLICA

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VI estivesse em condições físicas e psicológicas um tanto robustas. Mas, naquele momento crítico da história da Igreja, Paulo nada tinha de ro busto. Durante anos, a má circulação nas pernas vinha preocupando seus médicos; e ela só fez piorar nos anos setenta. Seu artritismo, que a princípio diminuíra de intensidade, aos poucos foi fazendo investidas graves, tornando todos os movimentos uma questão de cálculo delicado — a melhor maneira de esticar o braço, de se sentar, de balançar a cabeça, de se voltar, de realizar os atos mais comuns, e ainda assim evitar as agulhadas da dor profunda.

Embora seus problemas físicos fossem vários e graves, o médico par -ticular de Paulo insistiu em afirmar que durante aqueles quatro últimos anos muito árduos, de 1975 a 1978, era o sofrimento que ia na mente e na alma de Paulo que provocava a deterioração, já tão evidente da força física do pontífice. Nenhum dos males físicos de Sua Santidade, afirmou o médico, poderia ser o responsável pelo resvalamento de Paulo em direção à sepultura.

Entre aqueles com quem o papa discutiu os decretos da CG32 que agora tinha em mãos, alguns revelaram mais tarde a impressão de que toda a experiência de Paulo com os jesuítas tivera sobre ele o efeito de lhe abrir os olhos. Dos primeiros entrechoques com Arrupe sobre o comportamento da CG31, até o surgimento dos decretos da CG32 apesar de suas proibições específicas, Paulo via a mais valiosa ordem religiosa do papado galopando para um precipício.

Pior do que isso foi a percepção de Paulo de que, como autoridade máxima da Igreja, ele próprio tinha grande parte da culpa pelo que agora considerava um desastre em andamento. Cada vez mais, ele se via ator mentado pelo seu radiante idealismo inicial; pela sua disposição demasiado apressada de ver abandonadas maneiras antigas de adoração; suas concessões iniciais a rebeldes eclesiásticos e a ativistas sócio-políticos; acima de tudo, sua agora nitidamente visível aquiescência à ingênua vontade do II Concílio Vaticano de ajudar o homem a construir o seu mundo mate rial aqui embaixo. Todos os seus erros — sua miopia, sua patente traição de c lérigos leais que se recusaram a seguir sua “nova” eclesiologia — obrigaram Paulo a se aproximar, a contragosto, daquele precipício para o qual ele estava convencido de que os jesuítas estavam indo, e obrigaram-no a olhar para o abismo.

A vontade de Paulo era, agora, fazer sua Igreja voltar daquela borda. O meio mais direto e presente para começar a fazer aquilo seria, deci diu ele, interromper o galope de seus jesuítas. É evidente que ele achava que os decretos da CG32 fariam com que a tropa de elite do papado avançasse por sobre a borda e se lançasse no abismo; e calculou, como ha viam calculado outros papas antes dele, que muitos, por imitação, iriam segui -los.

Convencer a si mesmo para que fizesse uma análise realista do pe rigo era uma coisa — e dolorosa, é certo. Encontrar meio de evitar aquele perigo, era outra coisa. Na verdade, o que é que poderia fazer?

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Reter os decretos indefinidamente e adiar sine die a conclusão da CG32? Nas

suas condições, aquilo era impossível. Um número demasiado de ami gos e

simpatizantes de Arrupe e da Sociedade faziam pressão em torno do papa para

uma solução da situação. Rejeitar os decretos? Exigir uma revisão geral dos

decretos? Paulo já tinha estômago para a calejada e questionadora resistência

dos jesuítas. Nem física nem emocionalmente ele suportaria uma outra sessão

como a CG32. Se os jesuítas tinham tido a intenção de vencer o pontífice pela

resistência, tinham feito um bom trabalho.

De todos os elementos dinâmicos em ação em favor da Sociedade de

Jesus, enquanto isso, no perturbado período imediatamente seguinte à CG32,

talvez o mais surpreendente fosse a surpresa dos próprios jesuítas diante do

repentino congelamento de relações entre a sede da Sociedade no Gesù e o

Vaticano do papa Paulo VI. No entanto, do ponto de vista deles, a maioria não

entendia o congelamento das relações ou a demora da aprovação dos decretos

por parte do papa Paulo. Se parecia haver real mente um cabo-de-guerra — ou

talvez até o começo de uma verdadeira guerra entre Sociedade e papado — isso

não era considerado o fator mais importante a ser examinado. Afinal, nem os

delegados à CG32 nem seus superiores romanos tinham agido com qualquer

grau de animosidade ao se recusarem a atender às ordens, às diretivas e às

exortações papais. Havia, sem dúvida alguma, uma crítica acerba e muita

irritação, entre os delegados, com relação ao papa. Mas nada daquilo era

considerado como sendo expressão de perversidade.

Ao contrário, era uma emoção sentida, nobre em sua limitação; uma

emoção formada em parte de raiva da injustiça que mantinha milhões em

sofrimento diário e desespero, em parte de uma confiança intelectual tin gida de

arrogância e orgulho: nenhum dos que constituíam a maioria du vidava, por um

só momento, que eles estavam mais certos do que o papa; tampouco tinham

hesitado em afirmar isso, tanto na sua teimosa intransigência como em suas

declarações em público contra a vontade de Paulo VI. Havia, também, um

elemento não admitido de fraqueza visível no comportamento deles; o desejo

de estar ao lado do “novo mundo” na sua formação incluía, inevitavelmente,

certa vaidade no falso brilho da notoriedade e uma rendição aos atrativos das

realizações materiais que ficariam visíveis aos olhos de seus contemporâneos.

Inácio teria evitado aquela emoção e todas as suas partes; e depois de

esforços corajosos para transformar aquela emoção, teria — com tristeza,

talvez, mas sem hesitação nem remorso — expulso qualquer jesuíta que

revelasse sintomas, por considerá-lo um homem ludibriado por Lúcifer, o

Inimigo.

Uma emoção virtuosa — compaixão, ou uma ira justificável da in justiça

humana — testada no difícil cadinho de fidelidade e obediência ao papado e

adesão à ortodoxia romana, tem levado dezenas e dezenas de santos a

conseguir maravilhas espirituais e sobrenaturais cujos efeitos se fizeram sentir

nas vidas diárias, terrenas, de homens e mulheres

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comuns. Algumas grandes figuras vêm à mente: o próprio Inácio; Francis co de Assis; Vicente de Paulo; nos nossos dias, madre Teresa de Calcutá. Nenhum deles buscou inspiração no mundo à sua volta. Nenhum deles adotou soluções oferecidas pelo mundo. Em outras palavras, nenhum deles foi transformado pelo mundo; em vez disso, eles transformaram o mundo.

Em contraste, a Sociedade de Jesus nos anos setenta consentiu em s er transformada pelo seu mundo. Fidelidade, obediência e ortodoxia ti nham sido marinadas no novo espírito que cativara a CG32 e virara a cabeça dos jesuítas. O modernismo latente e secretamente professado de muitos jesuítas os havia tornado vulneráveis ao brilho da tecnologia e da ciência. A deficiência da fé se refletia num desprezo, adotado com demasiada facilidade, pela autoridade doutrinária papal. A deslumbrante comoção de novas nações clamando por mais pão, maiores liberdades, mais satisfações modernas, mais comércio, mais dignidade, mais igualdade, era igualada entre os jesuítas pelo grito de que isso era uma nova era, uma era diferente, uma era estupenda que eles pretendiam pegar no seu primeiro vagalhão, antes que a onda formasse a crista e se lançasse à frente, deixando-os para trás, depois da arrebentação.

Não fora a animosidade, então, que havia motivado a CG32, mas o desejo de imersão naquela comoção; o desejo de abraçar aquele grito da era que despertava; de ser novo — mais novo do que o novíssimo; de estar na vanguarda daqueles decididos a se colocarem e a colocarem tudo o que possuíssem à disposição daqueles que construíam a nova ordem na sociedade humana. Àquela altura, aquilo era uma doença espiritual e in telectual comum na Igreja Romana.

O que marcou a CG32 como sendo de capital importância foi o simples, embora lamentável, fato de que aquela congregação geral da Sociedade de Jesus transformou essa doença espiritual e intelectual no espírito de suas discussões. Seus delegados formalizaram os sintomas da doença numa nova criação — o novo jesuitismo — construída de pedra e cal à sombra do Palácio dos Papas. Recobriram a nova construção com os ornamentos da fé clássica e da missão apostólica. E quando estava tudo polido e acabado, o que eles tinham construído e levado sobre rodas até o local na Cidade dos Papas, no coração do catolicismo, era um cavalo de Tróia eclesiástico.

Ainda envolvidos no “vagalhão” emocional em favor da democratização e da autonomia da Ordem que havia impulsionado a CG32, muitos jesuítas só podiam ficar intrigados pelo ataque do papa à sua nova criação. Os atos de Paulo VI pareciam destinados apenas a desviar e anular seus esforços. Eles não conseguiam entender, por exemplo, por que o discurso de encerramento de Paulo, dirigido a Arrupe e seus assistentes -gerais a 7 de março, tinha sido tão crítico. Os superiores romanos e os verdadeiros arquitetos daquele cavalo de Tróia moderno entendiam claramente o motivo pelo qual Paulo não queria saber de seu novo formato. Mas os subalternos não sabiam, porque eles haviam passado além do ponto de qualquer dúvida de si mesmos. Não conseguiam, por exemplo, aceitar

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o claro simbolismo do crucifixo de Belarmino, nem compreender por que o seu adorado “Pedro” era tão maltratado assim por Paulo e seu secretário de Estado. Mas acima de tudo, irritavam-se por terem que esperar um prazo aparentemente interminável depois de terem enviado os decre tos da CG32 para o outro lado da praça de São Pedro, para o exame e a aprovação papais. Os mais irreverentes e rebeldes entre eles viam nisso uma diminuição do antiquíssimo privilégio da Sociedade de imunidade contra uma supervisão minuciosa. Há dois séculos que a Sociedade não ficava assim na mira do canhão papal. Aquilo significava desconfiança papal.

Esse último fator era especialmente preocupante para os superiores jesuítas de Roma. De fato, à luz do discurso de Paulo e Arrupe e os ou tros no último dia da congregação, aquela preocupação parecia mais do que justificada. Bem no último parágrafo daquele discurso, Paulo havia dito: “Os senhores

devem estar cientes do fato de que não apenas os olhos dos homens contemporâneos em geral, mas também e em especial os de muitíssimos membros de outras ordens religiosas e congregações, e até mesmo da Ig reja, estão voltados para os senhores (...).”

O que Paulo queria dizer, em essência, estava claro: já não podemos confiar em que vocês, os jesuítas, sejam a linha de frente papal. Outros, muitos outros, dependem da Sociedade de Jesus para dar o exemplo. Ou tras ordens e congregações religiosas estão tendo a mesma linha de pensamento sobre “modernização” que vocês tiveram na CG32 — para a Nossa contrariedade papal. Se vocês conseguirem fazer aquilo que Nós condenamos, o que acham que as outras ordens e congregações irão deduzir? Além do mais, o mundo todo — os fiéis comuns e os governos seculares — ouviu dizer que vocês tentaram uma revolta contra no Nosso controle papal. O que vocês fizerem agora irá influenciar a visão que eles têm do papado e de vocês. “ Os senhores devem estar cientes do fato...”

Arrupe estava ciente. Ele sabia, tanto quanto o pontífice, que na quela questão de “renovação” os jesuítas eram vistos, como sempre fo ram, como baluartes. Arrupe e seus colegas estavam profundamente convencidos de que a CG32 havia dado uma contribuição positiva — aquela contribuição — para levar a “nova missão” de um “catolicismo renovado” a um “novo mundo”. A CG32

mostrava o caminho para as ordens religiosas e congregações católicas tirarem a Igreja Romana do seu gueto do século XIX, passando pelo seu charco do século XX e levando-a às gloriosas perspectivas do nascente século XXI de homens e mulheres na Terra.

Se isso não fosse verdade — se o que a CG32 tivesse decidido não fosse o caminho —, então, a CG32, com toda a sua pompa e seus trabalhos, era um beco sem saída e a Sociedade de Jesus, afinal, tropeçara e teria fracassado.

Como, então, Arrupe e seus colegas podiam deixar de estar profun damente preocupados com o exame dos decretos da CG32 por Paulo? Todos aqueles rumores negativos sobre o que o santo padre poderia fazer

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com aqueles decretos não eram ignorados no Gesù. A notícia de qualquer daquelas reações papais não seria boa para a Sociedade ou para sua imagem pública.

Para deixar a situação mais tensa, já antes de deixarem Roma — e muito mais depois de terem voltado em segurança para suas terras nativas —, muitos delegados foram francos em sua condenação do tratamen to papal dado aos decretos, que eles consideravam “despótico”, “antidemocrático” e como “infrator” dos direitos constitucionais da congregação geral, como “um resto” da

velha Igreja hierárquica e autoritária, que muitos já consideravam eliminada. Aqueles comentários públicos partidos de lábios jesuítas não podiam ajudar a causa da Sociedade junto ao Vaticano.

Por cima daquela franqueza de expressão, além do mais, tinha havi do vazamentos durante a própria CG32. Apesar das melhores intenções e esforços das autoridades jesuíticas, pequenas informações sobre os duelos tempestuosos entre a Sociedade e o papa haviam sido passadas em segredo para o mundo exterior. Embora não houvesse grande número de delegados que estivessem em total desacordo com o “vagalhão” do novo jesuitismo, a quantidade era um

pouco demais para permitir que as disputas internas sobre a congregação continuassem confidenciais.

Nos gabinetes papais, também, alguns acharam conveniente fazer com que os meios de comunicação de massa tivessem alguma ideia, de vez em quando, do que se passava — uma disputa acirrada sobre a liderança de Arrupe, talvez, ou um entrechoque entre Arrupe e Paulo VI, ou fosse lá o que fosse que parecesse merecer divulgação.

O Setor de Informações da CG32, com seus vinte jesuítas trabalhando em tempo integral, tinha feito o possível — na verdade, fizera um bom trabalho. Historicamente, porém, tanto Roma como a Sociedade de Jesus têm sido galerias internacionais de sussurros. Naquelas circunstâncias não era possível bloquear todos os vazamentos.

Por fim, surgiram na Itália, na Europa, nos Estados e na Índia manchetes sobre a CG32, algumas exageradas, outras de deboche. Em épocas mais normais, teria sido apenas uma questão de desprezar os meios de divulgação, classificando-os de boateiros, e desfazer-se de suas histórias como se tira cotão da manga de um casaco.

Mas não se estava numa época normal. Paulo VI ainda não termina ra com a CG32. Tudo ainda estava na balança. Era preciso enfrentar o perigo de que, entre outras ordens religiosas e nos meios de comunicação, fosse negativa a reação à má impressão gerada contra o pontífice pelos jesuítas que falavam tudo; que a reação pudesse provocar dúvidas quanto à preeminência jesuítica na Igreja e, quando nada, uma diminuição de prestígio. Só isso já seria suficientemente prejudicial. Mas também poderia ajudar a enrijecer a teimosa oposição de Paulo ao avanço da CG32.

Preocupação, no entanto, particularmente para Pedro Arrupe, nunca significara medo, nunca provocara paralisia de ação. Muito pelo

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contrário. Simplesmente tinha que haver um meio de responder às críticas papais à CG32 que já se haviam tornado públicas, defender o caminho escolhido pela congregação geral e, se possível, até obrigar o santo padre a renunciar à sua oposição à CG32 e dar sua aprovação aos decretos e sua permissão para que fossem implementados.

Formou-se um plano. Na opinião do padre-geral Arrupe e dos superiores jesuítas em Roma, eles estavam numa situação que precisava do que os americanos chamavam de “relações públicas”. Isso queria dizer dar mais outro

passo que nenhuma congregação geral de jesuítas jamais sonhara em dar: significava apresentar uma explicação pública e semi -oficial dos decretos da CG32; e significava fazê-lo em Roma, não numa distante província da Sociedade.

Se aquilo pudesse ser bem-feito — no fórum adequado, com toda a necessária autoridade de voz e com o impressionante aparato da Socie dade no seu maior brilho — poderia ser a solução perfeita para todas as preocupações. Poderia ser o meio de contrabalançar quaisquer reações negativas à CG32, quer entre outras ordens religiosas, quer nos meios de comunicação em geral, porque iria atrair a tendência que havia em mui tos de aprovar qualquer mudança proposta para o bem da “renovação” no “espírito do Vaticano II”. Poderia servir

de plataforma da qual se responderia inocentemente às críticas papais. As interpretações autorizadas da CG32 cairiam em domínio público. Os exageros poderiam ser corrigidos. A resposta da Sociedade a muitas críticas papais que ainda nem mesmo eram conhecidas no exterior poderiam ser publicadas , por assim dizer, para se aproveitar a oportunidade. O mais importante, aquilo iria defender o caminho escolhido para os jesuítas pela CG32.

Haveria, também, alguns benefícios colaterais. Que melhor maneira há, neste século XX, de se responder a um superior — seja ele papa, presidente, diretor-presidente ou líder do partido — do que através das relações públicas? Os jesuítas desejavam não apenas ter certeza de que as outras ordens religiosas e congregações ficassem conhecendo seu ponto de vista — em outras palavras, de proteger o orgulho jesuítico de sua posição entre os religiosos — mas também fazer com que fosse respondido o enclave papal de críticos conservadores e inimigos tradicionalistas agrupados em volta de um Paulo VI em posição de batalha; que eles ouvissem o que Arrupe e seus assistentes -gerais gostariam de ter dito em resposta à perturbadora exortação que Paulo lhes fizera no encerramento da CG32, a 7 de março.

O plano traçado pelos superiores jesuítas era de uma série de pales tras a serem dadas em Roma por algumas vozes de muito peso. Os tópicos a serem abordados eram os pontos cardeais dos principais decretos da CG32, os chamados tópicos prioritários: o sistema de categorias, a iden tidade jesuítica hoje, pobreza, vida comunitária, inculturação, formação de jesuítas e promoção de justiça.

Assim, foram planejadas sete palestras públicas para o final de maio de 1975, nem bem passados três meses do encerramento da última sessão

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da CG32. As palestras seriam todas dadas na sede jesuítica no Gesù, e cada qual caberia a um dentre sete oradores. Esses palestrantes, por sua vez, seriam cuidadosamente escolhidos para formarem uma equipe internacional de homens com reputações comprovadas, homens de autoridade jesuítica, homens conhecidos pelo grande envolvimento na azáfama da CG32, homens intimamente associados ao generalato de Arrupe em Roma.

A equipe escolhida era realmente formidável. Jean-Yves Calvez, francês, havia recebido o doutorado em sociologia, ciência política e estudos internacionais. Fora provincial de toda a França antes de chefiar o centro jesuítico de estudos sociais em Paris. Cecil McGarry, irlandês, tinha dou torado em teologia e fora superior provincial. Os dois eram, agora, assistentes -gerais na cúria jesuítica de Arrupe em Roma. Edward F. Sheridan, do Canadá, e Ignácio Iglesias, da Espanha, também tinham sido provinciais, em seus países, e ambos eram agora assistentes-gerais de Arrupe no Gesù. Sheridan tinha doutorado em teologia. Iglesias era o único sem nível de doutorado. Vin cent O’Keefe, dos Estados Unidos, não era apenas mais outro dos assistentes -gerais de Arrupe em Roma; era a escolha pessoal de Arrupe para sucedê-lo como padre-geral da Ordem. Francisco Ivern, da Índia, funcionava no Gesù como assessor de Arrupe para problemas sociais e de desenvolvimento. Ninguém possuía os dados e os números sobre o mais importante campo missionário asiático do Vaticano — o subcontinente da Índia — que Ivern possuía. Carlo G. Martini, da Itália, era reitor do poderoso Pontifício Instit uto Bíblico em Roma, gozava de justo prestígio pela ortodoxia e estava destacado como futuro cardeal.

Um oitavo homem, escolhido para dar o tom das palestras num dis curso de boas-vindas e expedir os convites formais a todos os sete oradores “convidados”, era Luis Gonzalez, S.J., diretor do Centro Inaciano de Espiritualidade, localizado no Gesù.

A audiência mais imediata para as palestras deveria ser formada por outros religiosos — padres, irmãos leigos e freiras. A importância central desses grupos na mente jesuítica foi sublinhada na versão publicada das palestras, onde os editores observavam, no assunto de capa: “Os membros de outros institutos religiosos de homens e mulheres, também, talvez encontrem muita coisa interessante e útil nessas descrições do que se passou na XXXII Congregação Geral da Sociedade de Jesus.”

Embora a imprensa não fosse oficialmente convidada para as pales tras, não há dúvida de que não se fez segredo de que a Sociedade estava resolvida a dar uma explicação sem precedentes e pública da excelência dos decretos da CG32; e a imprensa não foi mantida afastada.

A sensacionalista propaganda pública, muito bem engendrada, que antecedeu as palestras forçou a mão papal. É de se duvidar que o gabine te papal tivesse sido tão rápido no exame dos incômodos decretos, não fosse a distribuição de convites a uma ampla audiência em potencial para que fosse ouvir uma equipe de jesuítas de primeira falar sobre os decretos.

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Na linguagem da romanità, fazer aquilo em Roma, nas barbas do Vaticano, significava ou que se tinha a aprovação do Vaticano, ou que se era mais forte do que qualquer pessoa do Vaticano, inclusive o papa, e se podia desafiar todos eles.

O anúncio das palestras criou literalmente um momento crítico, tan to para o papado como para a Sociedade. Foi o último momento em que Paulo VI poderia ter feito alguma coisa efetiva para deter o avanço acele rado dos jesuítas em direção àquela borda da qual ele próprio havia recuado.

As maiores vantagens pareciam estar todas do lado de Paulo. Ele era o papa, com toda a autoridade nas mãos e todo o poder papal à sua disposição. Além do mais, o fato de que ele ainda estava com os decretos da CG32 ainda não aprovados significava que, tecnicamente falando, aque les decretos não tinham existência legal; nem teriam enquanto ele não permitisse a sua promulgação. Acima de tudo, Arrupe e seus colegas estavam cometendo uma violação clamorosa, embora técnica, da lei. Eles haviam marcado uma série de palestras sobre os decretos da CG32, como se tais decretos fossem aceitáveis como o pensamento oficial da Sociedade. Segundo a lei romana, porém, eles não poderiam ser considerados aceitáveis enquanto o papa não os declarasse aceitáveis. E Paulo ainda não tinha feito isso.

No tecido de todo o plano jesuíta de um golpe de relações públicas contra o papa foi inserida aquela mesma arrogância que Paulo enfrenta ra tantas vezes nos dez anos da administração de Arrupe. Os superiores jesuítas estavam agindo como se eles, e não Paulo, fossem o papa. Uma vez mais, o gesto jesuíta dizia: vamos seguir em frente, com ou sem aprovação papal. Se aquilo era um risco calculado para os jesuítas, era apenas mais um entre os muitos que eles já haviam corrido com tanto sucesso.

Quanto ao santo padre naquele momento crucial, ele est ava literalmente esgotado. Sempre delicado, sempre inteligente, até pouco tempo atrás romanticamente liberal e humanista, a única coisa que Paulo talvez nunca tivesse sido era duro e forte bastante para ser papa em momentos como aquele. Uma palavra sua, e Arrupe teria tido que cancelar as palestras. Era o óbvio a fazer. Sim, avisaram oficialmente a Paulo, ele podia fazê -lo. Mas aí, nada poderia evitar que Arrupe realizasse palestras “privadas” para a mesma

audiência, no mesmo local. Por outro lado, se Paulo não fizesse coisa alguma, uma vez mais os jesuítas teriam aprendido que valia a pena enfrentar com determinação aquele papa.

Houve um intervalo carregado de tensão enquanto se formava a de cisão final de Paulo. Apesar da serenidade aparente de Arrupe e seus colegas, eles sabiam os riscos que corriam: o céu romano poderia desabar sobre suas cabeças. Tudo poderia ser perdido. Mas era agora ou nunca. Era tudo ou nada. O papa e o geral jesuíta reproduziam uma versão romana dos dois pistoleiros nos livros de aventuras no Oeste, um de olhar fixo no outro, cada qual esperando ver se o outro piscava primeiro.

Paulo piscou. Sua solução, produto de fraqueza e nutrida pela sua

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profunda sensação de impotência, não era solução. Devolveu os decretos através do gabinete de seu cardeal-secretário de Estado, Jean Villot, admitindo assim, implicitamente, que eles poderiam ser promulgados como oficiais. Com aquele ato, ele quebrou a tensão e perdeu a batalha. Os jesuítas tiveram de volta seus preciosos decretos. A estrada mapeada pela CG32 abria-se à sua frente. Nada mais importava.

Paulo VI deu instruções a Villot para que enviasse uma carta junto com os decretos, e examinou pessoalmente, com detalhes, os termos da carta. Embora estivesse no papel timbrado oficial do Secretariado de Estado e levasse a assinatura do cardeal-secretário, em outras palavras, a carta era, na verdade, de Paulo. Estava datada de 22 de maio, cinco dias antes da primeira palestra programada; tinha cinco páginas. Seu tom era tão irritadiço, peremptório e indulgente quanto possível dentro dos limites da romanità. E, traduzida em linguagem comum, a mensagem que Villot entregou era simples e prática.

Circunstâncias bem conhecidas de todos, observava friamente o car deal, haviam evitado, evidentemente, que a CG32 obedecesse às recomendações de Paulo VI. Por isso, aqueles decretos eram insatisfatórios. A referência de Villot às manobras de Arrupe e à recalcitrância dos delegados era clara. No entanto, continuava a carta de Villot, estou devolvendo seus decretos, esperando que os senhores sejam genuinamente fiéis ao carisma de Santo Inácio e às recomendações de Sua Santidade. Nem tudo está claro nos seus decretos. Alguns deles, por serem ambíguos, podem ser interpretados de maneira errada. Qualquer dúvida que haja, os senhores deverão praticar a obediência jesuítica e seguir as normas já estabelecidas por Sua Santidade em várias ocasiões.

Villot citou alguns dos importantes perigos mais evidentes nos decretos. Na sua “promoção da justiça”, disse-lhes ele, não substituamos ministérios apostólicos por desenvolvimento humano e progresso social. Os senhores professam lealdade à Santa Sé em questões de doutrina; mas diluem a sua expressão daquele sentimento ao dizer ao mesmo tempo que a “liberdade deve

ser estimulada com inteligência” no caso de seus teólogos. Assim, a lealdade pode ser abandonada pela liberdade encorajada “com inteligência”. Em especial

por terem os senhores esquecido de colocar o estudo da teologia de Santo Tomás de Aquino como primeira necessidade para a ortodoxia.

Também observamos, continuou Villot em essência, a tentativa de democratizar a Sociedade ao conceder voz cada vez mais ativa, no gover no jesuítico, àqueles que não podem receber o voto especial dos profes sos. Esta tendência viola as normas estabelecidas pelo santo padre. É uma tentativa de diluir o sistema de categorias. Seu comportamento nesta área estará sujeito a exame contínuo.

Se Paulo VI ainda nutria uma pequena esperança — como a carta de Villot parece indicar que nutria — de que restasse uma tênue possibilidade de ser evitado um rompimento final entre a Sociedade e a sua tradição de jesuitismo inaciano, ou de que a Sociedade acabasse recuando de

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sua alienação oficial do papado e do catolicismo romano tradicional, aquela esperança teve, sem dúvida, morte súbita assim que Arrupe recebeu a carta de reclamação de Villot.

Com críticas ou sem críticas, os decretos da CG32 podiam, agora, ser oficialmente promulgados para a Sociedade. A não ser que se tratasse de uma rejeição papal inequívoca dos decretos, nenhuma carta teria importância; é claro que mais uma litania de exortações papais não seria suficiente para chamar os jesuítas à ordem.

E também os jesuítas não precisavam mais temer que a imagem pu blica da Sociedade fosse afetada de maneira significativa pela resposta papal acerbamente crítica dos decretos da CG32. O simples fato estava em que, como normalmente eram feitas as coisas em Roma, a carta de Villot não era dirigida ao mundo em geral; não era para ser publicada.

O mesmo não acontecia às palestras. Com os decretos sãos e salvos de novo nas mãos, para serem preparados para promulgação, o desempenho jesuítico em público, no Gesù, naquele mês de maio, valeu como plano de gênio em relações públicas. De fato, tem-se que admirar a hábil moderação, se não a lhaneza, daquelas palestras sobre as mudanças revolucionárias introduzidas no Instituto jesuítico pela CG32. Elas foram ouvidas em pessoa por centenas. Foram publicadas na Europa, nos Estados Unidos e no Extremo Oriente; e mesmo antes da publicação, gravações em fita e transcrições chegaram às casas jesuíticas do mundo inteiro.

Como planejado, Luis Gonzalez, S.J., deu o tom das palestras com perfeição, nas suas “Palavras de Boas -Vindas” que antecederam a primeira palestra, feita por Jean-Yves Calvez no dia 27 de maio. Gonzalez dedicou as palestras àqueles “que conosco formam parte de uma Igreja peregrina e vivem

num período da história pleno de desenvolvimento, vi talidade e esperanças de um mundo que, embora abalado, está à procura de renovação profunda”.

No seu resumo geral das palestras que se seguiriam, e do significado dos próprios decretos, as explicações de Gonzalez poderiam ter sido dadas, com a mesma facilidade, por um hotentote, um ateu ou um padre. Não havia nada de especificamente católico romano cm suas palavras, nem qualquer nota especificamente jesuítica em suas observações. Elas eram bem amoldadas àquela agradável imprecisão, observada por Villot em sua carta, tão característica da “doutrina cativante”.

Na palestra de Calvez que se seguiu, e nas apresentadas nas datas subsequentes, o esforço de cada orador era estabelecer uma linha de de -senvolvimento legítimo entre o jesuitismo inaciano clássico e o novo programa jesuítico legislado nos decretos da CG32. Esse esforço pode, na verdade, ser a mais clara admissão de que a realidade do que a congregação havia feito constituía um deslocamento, tanto em espírito como em política concreta, dos pontos substanciais vitais do jesuitismo inaciano.

O esforço se torna admissão, porque o esforço fracassou. Em nenhuma das palestras houve um orador, por exemplo, que conseguisse me lhor do que os delegados da CG32 elaborar o novo significado do vínculo

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especial da Sociedade com o papado. Em vez disso, todo o conceito de Igreja surge como uma multidão de peregrinos, todos no mesmo nível, todos indo para o mesmo lugar, todos cometendo os mesmos erros, nenhum deles — papa ou bispos — privilegiados de alguma maneira. De fato, pode alguém perguntar depois de examinar as palestras, por que, na nova visão jesuítica, iria qualquer colega peregrino arrogar-se o direito de criticar com insolência outros colegas peregrinos que desbravavam uma nova trilha?

Tampouco foram as palestras mais felizes em elaborar a espirituali dade da Sociedade orientada para Jesus, tal como Inácio a havia concebido. Pelo contrário, as repetidas referências, em todas as palestras, “à Sociedade” — “o

que a Sociedade pretende”, “decidiu fazer”, “é capaz”, “exige dos jesuítas” — inculcaram lentamente a ideia temerária e fantástica de que “a Sociedade” havia

substituído Cristo e o papado por ele instituído; que a própria “Sociedade” era,

agora, quem estabelecia as normas e o principal determinante do comportamento jesuítico e do programa da Sociedade.

O liberal salpicar de palavras, frases e trechos inacianos clássicos não foi suficiente para cobrir os grandes saltos que foram dados pela CG32. Tampouco as repetidas asserções de continuidade com o jesuitismo clássico livrou as palestras de sua linguagem repleta de clichês, indefinida, modelada na ambiguidade de relatórios de governos e no estilo vago típico dos burocratas modernos.

Em contraste com cada uma dessas palestras, a linguagem de Inácio e a usada tradicionalmente na Sociedade até agora sempre tinham sido quase que aflitivamente específicas; e sempre carregadas de referências e conotações de espiritualidade pessoal e corporativa e do apostolado da Sociedade.

Apesar de todos os esforços e contorções, nenhum daqueles sete pa -lestrantes conseguiu demonstrar, em lógica bem fundada, como seria mantido o ministério apostólico dos padres jesuítas enquanto a energia corporativa da Sociedade era totalmente consumida com os problemas de abusos sociais e repressão política. A continuada natureza apostólica da Sociedade foi declarada numa centena de maneiras, mas não foi demons trada uma só vez.

De fato, em todas as sete palestras, questões como o sistema de categorias, identidade jesuítica, pobreza, vida comunitária, treinamento e todas as demais prioridades da CG32 foram abordadas em termos que enfatizavam a novidade do programa da congregação para a Sociedade. Não houve hesitação quanto a isso; e foi afirmada repetidas vezes e em cada um dos diferentes assuntos abordados pelas palestras.

Para praticar a pobreza realmente evangélica, agora era necessário viver com os pobres, ser pobre exatamente como eles o são. Para obter a formação espiritual, agora era necessário estar imerso em ambientes urbanos. A evangelização só podia acontecer se os deformados cristianismo e catolicismo importados do Ocidente pela Ásia e pela África fossem

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substituídos por expressões locais, específicas daquelas populações, e di ferentes das expressões escolhidas há quase dois mil anos para e pelos cris tãos ocidentais.

Como acontecia aos outros tópicos discutidos, o perigo dessa “in -culturação” — como era chamada agora a evangelização — foi ignorado. Parecia não ter importância o fato de que a universidade de doutrina e de fé estava na realidade sendo arquivada e que a verdade do dogma cristão se tornara um brinquedo de padrões relativos e em mutação populares em qualquer região do mundo num dado momento.

Não era nem mencionado que aquela inculturação, uma vez aplica da, iria necessariamente acabar com a autoridade sacerdotal e, com ela, a Transubstanciação do Pão e do Vinho da Missa, a missa como o sacri fício humano de Jesus para obter o perdão divino dos pecados, a peni tência, e o perdão dos pecados específicos de cada indivíduo. Tudo isso, e tudo o mais conhecido através da mesma fonte, a autoridade doutrinária universal da Igreja, teria que acabar.

O fato de nada disso constituir um problema para o quadro de hon ra jesuíta de oradores é tão evidente por aquilo em que eles não falaram como pelo que ocupava o centro de suas mentes. Ausentes das palestras estiveram referências e alusões católicas e jesuíticas ao papa e ao papado, à Igreja e à autoridade doutrinária, a Jesus, a sua mãe e aos santos. Ausentes também estiveram os marcos do pensamento inaciano — a inerente falibilidade e fraqueza da humanidade devido ao Pecado Original, a guerra constante travada com o vivo e maligno Arcanjo, e a devoção pessoal a Jesus como o coração ardente da resistência e da força apostólica jesuítica.

Tão grande era o desejo daqueles homens de legitimarem o que a CG32 havia feito, que pareciam cegos pelo esplendor de seu plano. Já não tinham meios internos de submeter aquele esplendor ao exame honesto e rigoroso da tradição inaciana, ou deixar que a sua luz fosse fracionada pelo prisma puro da fé sobrenatural.

Como se não passassem de mais alguns burocratas comuns de mais um governo secular comum, tudo o que pareciam capazes de fazer era se refugiarem nos conceitos imprecisos de “coordenação de energias”, “integração total”,

“teologização de contexto” e “arbítrio comunal”. Talvez a gritante falta de dimensão espiritual e das marcas inacianas fosse

suficientemente evidente para Arrupe e seus colegas romanos, por que a versão das palestras que foi publicada levava um ensaio extra pelo assi stente-geral Jean-Yves Calvez. O título desse ensaio era “A Congregação e o Contato Mais íntimo dos Jesuítas com os Homens”, e nele Calvez abordava todos os temas tratados nas sete palestras. O evidente propósito dessa matéria extra foi fazer mais um valente esforço para estabelecer o verdadeiro caráter jesuíta das alterações introduzidas pela CG32. Em vez disso, ela serviu foi para proporcionar uma instrutiva visão da mente e da perspectiva dos superiores maiores jesuítas.

Depois de páginas em que detalhava a necessidade e a conveniência

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do “contato mais íntimo” do título do ensaio entre jesuítas e homens, Calvez

mudou de repente de tom. Citou o retrato falado que Inácio fize ra de Cristo, o Líder, e de Lúcifer, o Inimigo. Satisfeito com um remen do tão descarado e impróprio no seu texto, ele tornou a saltar, sem lógica nenhuma, para o seu tema central — a necessidade que os jesuítas tinham de fugir do “nosso mundo” e

estender a mão para os homens. Esse esforço no sentido de um esclarecimento — se é que o ensaio era isso

— é tão destoante e confuso quanto toda a série de palestras. E nisso, pelo menos — na sua confusão e no seu tratamento difuso e desordenado dos pontos substanciais do jesuitismo —, as palestras constituem exatamente o espelho da XXXII Congregação Geral que elas pretendiam ser. Compaixão virtuosa e ira justificável eram ligadas, de propósito ou não, com orgulho e arrogância. Sim, diziam os novos jesuítas, sejamos homens de Cristo, mas mediante a oposição ao vigário de Cristo. Sim, entendamos a doutrina, mas mediante o afastamento dos professores de 1.500 anos. Sim, promovamos a autoridade, mas mediante o solapar e a paralisação da única autoridade dada à Igreja por Cristo. Sim, culti vem o espírito da devoção íntima, mas façam-no mergulhando nossos jovens jesuítas estagiários em toda a confusão e distração de ambientes urbanos “relevantes”.

Consideradas em conjunto, as palestras e o capítulo extra de esclare -cimento foram o último toque para terminar a construção do cavalo de Tróia jesuítico. A confusão era apresentada como clareza; a recalcitrância, como obediência; a relevância terrena, como fé; jesuítas desobedien tes, como líderes fiéis, segundo suas tradições. Enquanto isso, a longa e profunda sombra de erros projetada por aquele cavalo de Tróia continua, até hoje, a bloquear a luz sobrenatural de Cristo que Inácio havia escolhido como a única luz que deveria guiar a sua pequenina companhia de homens no caminho do serviço e da salvação. Os jesuítas da CG32, convertidos em evangelistas ingê nuos de progresso social, político e psicológico, já não tinham olhos para a visão da alma, nem ouvidos para a pequenina voz do Espírito.

Ainda assim, não há como negar que se as palestras não foram bem-su-cedidas na tentativa de estabelecer uma linha legítima de desenvolvimento ligando os decretos da CG32 ao jesuitismo inaciano, tiveram a suprema vi tória no seu propósito primordial. Em público — de fato, bem no coração da Roma dos papas — os jesuítas tinham conseguido exibir um novo conjunto de padrões para as ordens religiosas e congregações. Aquela Companhia de Jesus, fundada por Inácio e que havia já há centenas de anos sido o regulador do ritmo da Santa Sé para a imensa e variada família de homens e mulheres religiosos, conseguira aquilo que anunciava como “aprovação”, pela Santa Sé, do virtual abandono das

regulamentações que davam à Ordem a inconfundível marca de Inácio de Loyola e que tinham transformado a sua Companhia na verdadeira Sociedade de Jesus. Mas isso é um feito lamentável; um feito à parte do papado — e, em grande parte, apesar dele — a que os jesuítas davam a entender que ainda serviam.

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Donald Campion, S. J., que era redator-chefe da America Magazine e que fora encarregado do Setor de Informações da CG32, deu uma en trevista coletiva depois que a congregação se encerrou. Ali, ele disse o que parecia mais perto da verdade do que qualquer uma das muito divulgadas palestras no Gesù. A evidência, disse Campion então, era de que o centro ou a posição intermediária na Ordem era consideravelmente mais ampla do que a maioria das pessoas, mesmo os jesuítas, tinham pensado. A “extrema esquerda”, explicou ele, e a

“direita conservadora” representavam um pequeno grupo sem importância na Sociedade.

O que nem o padre Campion nem a maioria dos jesuítas do centro tinham percebido era que o ponto de gravidade da Sociedade havia se des locado de maneira dramática entre 1965 e 1975. Os “novos fios contínuos” tecidos pela

CG31 e pela enérgica atividade de Pedro Arrupe e da classe dominante jesuítica nos oito anos seguintes haviam atirado, com toda a força, os centristas para a esquerda, como um bloco. No entanto, eles ainda se consideravam centristas. Em outras palavras, a percepção que eles tinham de si mesmos não mudara; o resto todo é que havia mudado. De algum modo, os velhos tradicionalistas e conservadores da Ordem tinham se tornado a direita conservadora. Podiam, até, apontar para alguns da antiga esquerda que se havia tornado, como se poderia dizer, superliberados e formavam, agora, a “extrema esquerda” da Sociedade.

Mas o que era mais lamentável de tudo aquilo era a falta de perspec tiva que permitira uma análise daquelas. Porque se eram “de direita”, “do centro” ou

“da esquerda”, todas as facções viam suas posições em relação apenas de uma

com as outras. Nenhuma delas media sua distância da Santa Sé, ou sua posição em relação às tradições do jesuitismo inaciano. Na realidade, a Santa Sé deixara de ser o padrão pelo qual qualquer das facções determinava sua ortodoxia. A perene tradição inaciana deixara de ser o padrão para medir o jesuitismo. Cada facção se dizia ortodoxa e inaciana. Mas os absolutos haviam acabado. Tudo era relativo.

Na linguagem de São Paulo, justifica-se um tipo diferente de análise. O “Anjo da Luz” havia encurralado os bons, os virtuosos e os escolhidos de Deus. O Inimigo se havia infiltrado na milícia especial de Cris to, a melhor e a mais brilhante, os jesuítas. Corruptio optimi pessima est (a corrupção dos melhores é a pior).

A vitória do arrupismo e sua completa infecção da Sociedade pode ser medida pela sua plena perseverança apesar de todos os obstáculos. Mesmo quando Arrupe e O’Keefe foram afastados em outubro de 1981 por uma ordem papal

direta de João Paulo II, e mesmo depois de uma “regência” de catorze meses por elementos nomeados por João Paulo, Arrupe nunca esteve tão forte.

João Paulo permitiu que a CG33 se reunisse em 1983. Depois de 54 dias de reuniões, 43 sessões plenárias e a usual rodada de consultas, de 2 de setembro a 17 de outubro do mesmo ano, a CG33 havia eleito um novo geral, Piet-Hans Kolvenbach, e expedido doze decretos. 1 Naqueles

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decretos o leitor irá encontrar uma reprodução, em forma mais curta, e um eco exato do espírito e do ponto de vista da CG32.

Afirmando que “nos últimos anos a Igreja nos tem chamado para uma maior solidariedade com os pobres, e para tentativas mais eficientes de atacar as causas da pobreza em massa”,

2 a congregação declarou que “achamos difícil

compreender a ênfase da Igreja na mudança das estru turas da Sociedade”.³ Mas “a promoção da justiça” era assunto de urgência cada vez maior. Portanto, ao se concentrar nas questões dos direitos humanos, refugiados, minorias, exploração dos camponeses, trabalhadores, mulheres e dos desesperados, a Sociedade estaria se comprometendo com “a promoção de uma ordem mundial mais justa,

maior solidariedade dos países ricos para com os pobres, e uma paz duradoura baseada nos direitos e na liberdade humanos (...). Temos que lutar pela justiça internacional e por um fim da corrida armamentista (...)”.

4 Com esses “trabalhos de justiça”, os jesuítas estariam “prenunciando a nova era que está

por vir”.5 Mas a “validade de nossa missão” vai depender, em grande parte, “de

nossa solidariedade para com os pobres”. Para sublinhar essa nova dependência da missão jesuítica, a CG33 fez uma

declaração que, sem dúvida, será questionada teologicamente por uma geração posterior e mais inteligente: “Só quando passarmos a viver a nossa consagração

ao Reino numa comunhão que seja para os pobres, com os pobres e contra todas as formas de pobreza humana, material e espiritual, só então os pobres verão que as portas do Reino estão abertas para eles.”

6 Se por “Reino” se queria dizer salvação eterna no céu de Deus, a

declaração acima não é apenas anômala do ponto de vista teológico, mas contradiz a experiência dada de milhões de pobres que viveram e morre ram nos últimos dois mil anos; porque a caridade e a esperança cristãs devem presumir que alguns, pelo menos, conseguiram a salvação eterna. E é fazer com que um a transformação sobrenatural da alma dependa da abundância material.

Esta e as outras declarações da CG33 estavam, apesar de tudo, em perfeita coesão com as da CG32. Apesar, até, da mais direta intervenção de João Paulo II, nada havia mudado. A salvação da coletividade, a visão de uma nova era de paz e abundância pela qual os jesuítas tinham que trabalhar, a necessidade de mergulharem em estruturas sócio-políticas de atividade — todas continuaram as mesmas.7 Os delegados à CG33 deram-se por plenamente satisfeitos de que tinham resolvido “o problema com o papa”, como chamavam o caso, contentes

porque as expectativas eram exatamente como tinham sido na gestão de Arrupe, e confiantes em que em Kolvenbach eles tinham eleito um forte arrupista como geral de sua Sociedade.

Agora, estavam prontos para voltar a suas províncias de origem e se unirem à construção do mundo do homem. E ainda haveria alguém que dissesse que não?

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A ÂNSIA PARA CONSTRUIR O MUNDO

DO HOMEM

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A

ntes da virada deste século, os jesuítas decidiram abrir uma escola em Birmingham, Inglaterra. Não pediram permissão ao bispo local, cuja diocese incluía Birmingham. A rigor, não precisavam dessa permissão. Cerca de cem anos antes, numa época em que muitos bispos se recusavam, como fazem agora, a se sujeitar às doutrinas de Roma, o papado dera aos jesuítas o privilégio de abrirem uma escola onde quer que achassem conveniente, sem qualquer gesto ou palavra de assentimento por parte de quaisquer autoridades eclesiásticas locais. O privilégio continuara sendo reconhecido e, às vezes, utilizado.

Dessa vez, no entanto, o bispo de Birmingham decidiu contestar os jesuítas. Instaurou um processo eclesiástico contra eles, sob a alegação de que sua autoridade episcopal fora desrespeitada, que o antigo privilé gio dos jesuítas já não vigorava mais e que, portanto, os jesuítas deve riam obedecer-lhe e fechar a escola. O caso abordava, assim, a questão da prioridade e independência de ação dos jesuítas versus a autoridade do bispo e seu direito de ser obedecido por todos os clérigos — até mesmo jesuítas — que atuassem na sua diocese.

O processo seguiu o seu caminho aparentemente interminável pelas cortes eclesiásticas locais da Inglaterra, até chegar, afinal, a um apelo à mais alta corte eclesiástica católica, em Roma. Depois de uma das várias sessões da corte em Roma, o advogado canônico do bispo encontrou-se com o advogado canônico jesuíta fora da sala do tribunal.

— Bem, padre — disse ele —, desta vez acho que vocês jesuítas foram derrotados.

— Ora, monsignore — respondeu o jesuíta sem hesitação —, se o santo padre nos mandar obedecer ao bispo, seremos os primeiros a obedecer.

— Os primeiros a obedecer! — o advogado do bispo, exasperado depois da longa luta contra a prioridade jesuítica, apenas balançou a ca beça. — Será que vocês têm sempre que ser os primeiros?1

No melhor dos sentidos, a resposta à pergunta nessa história legen dária sempre foi “sim”. Desde o início, a preeminência — serem os primeiros no que quer que fizessem — foi um objetivo inaciano e jesuítico. Nem como fidalgo nem como apóstolo Inácio aceitava menos do que o melhor. O próprio lema que escolheu para a sua Sociedade — Para a maior glória de Deus (ad maiorem Dei

gloriam) — era, à sua maneira, uma declaração daquele objetivo. Não é de admirar, portanto, que quando, na CG31 e na CG32, os jesuítas

se decidiram pela construção de sua versão moderna do cavalo

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de Tróia para servir no que se tornou a guerra contra o papado, eles fo ram muito melhores do que a engenhoca de madeira armada pelos antigos gregos.

Depois de dez longos anos de sítio e batalhas contra Tróia, os astu tos gregos construíram em segredo a sua arma gigantesca, encheram a bar riga oca com forças que iriam destruir os troianos assim que estes acei tassem a entrada do cavalo no coração da cidade que, de outra forma, continuaria invencível, e depois partiram na calada da noite, deixando o cavalo para torturar de curiosidade os troianos na manhã seguinte.

Pedro Arrupe e a sua geração de jesuítas superaram aqueles guerrei ros gregos em todos os pontos. No espaço de dez anos, de 1965 a 1975 — a primeira década do generalato de Arrupe —, os líderes da Sociedade construíram o seu cavalo de Tróia em plena luz do dia, sob as abas do telhado da residência do papa, por assim dizer; e tinham por obj etivo não a captura de uma reles cidade, mas capturar o impulso de toda a Igreja Católica Romana e alterar a estrutura sócio-política de nosso mundo contemporâneo.

Assim como os gregos adornaram seu cavalo de Tróia com tudo o que pudesse impressionar o inimigo, os jesuítas vestiram o deles com os apetrechos que mais probabilidade tinham de impressionar seus contemporâneos. Até o nome que deram a ele — “Renovação” — era um elemento daqueles adereços. A renovação da missão jesuítica no mundo contemporâneo, diziam eles, era uma adaptação necessária da renovação religiosa exigida de todos os católicos pelo segundo Concílio Vaticano.

Antes mesmo que a estrutura estivesse acabada, eles não fizeram cerimônia quanto a proclamar-lhe a excelência a todo mundo. Como haviam feito com tanta frequência no passado, e coerentes com a sua busca de preeminência corporativa, os jesuítas foram a primeira entidade representativa católica romana a dar a saída e correr, tão logo “o espírito do Vaticano II”

começou a arrancar o telhado da Igreja Católica. Foram os primeiros a analisar minuciosa e meticulosamente a situação corrente, antes mesmo de o Concílio Vaticano ter acabado; os únicos a traçar planos detalhados com aquela antecedência; e, nos vertiginosos anos de 1975 a 1980 — os últimos anos do generalato de Arrupe — já estavam perfeitamente colocados como a vanguarda e os baluartes de como os católicos deveriam conduzir suas vidas e pensar sobre o mundo.2

Àquela altura, foi uma questão bem simples empurrar o seu cava lo de Tróia da renovação para dentro do vácuo criado pela fraqueza papal de Paulo VI e pelos ventos que eram chamados de “o espírito do Vaticano II”. Uma vez no

lugar, obteve-se maior realce para a renovada missão jesuítica ao apresentá -la como um fiel prolongamento daquela mesma missão que Inácio de Loyola atribuíra à sua Companhia de Jesus.

É difícil dizer ser era mais grave o fato de essa missão jesuíta renova da ser baseada numa distorção daquilo que o Vaticano II determinara em matéria de renovação religiosa, ou constituir um abandono, e não

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adaptação, do jesuitismo clássico tal como Inácio o lançara e que os jesuítas haviam praticado por mais de quatrocentos anos.

Destilada de todos os seus documentos e declarações, a intenção, os esforços e a mensagem do Vaticano II eram simples. Formavam uma tentativa, por parte da Igreja Católica Romana, de apresentar suas antigas doutrinas e pontos de vista morais de uma maneira que fosse inteligível para a mente dos homens e mulheres modernos. A Igreja não alterou doutrina alguma. Não alterou parte alguma de seus bispos e seu papa estruturados hierarquicamente. Não abandonou nenhuma de suas perenes leis morais. Confirmou todas.

O que ela fez foi dar-se o trabalho de se voltar para o mundo con-temporâneo e dizer: examine — reexamine, por favor — meus objetivos católicos. Posso ajudá-lo em suas dificuldades. Posso canalizar para você orientação na sua vida diária, esperança em seus dias mortais, e vida eterna quando você morrer.

Na missão jesuítica renovada, no entanto, este ato da Igreja de se voltar para o mundo tornou-se a mensagem toda. A tentativa do concílio de apresentar as antiquíssimas crença e moralidade católicas em linguagem inteiramente nova foi traduzida — deveríamos dizer, na verdade, que foi transmogrifada — para uma coisa que nunca entrou na cabeça dos bispos que falaram ao seu mundo através dos documentos do Vaticano II. Tudo deveria ser alterado; a nova missão jesuítica não podia aceitar outra coisa. O que importava, agora, era o “povo de Deus”, “a Igreja Popular”; e só

ela tinha autoridade de Deus para ensinar aquilo em que se devia acreditar. Nada lhe restava a fazer, então, a não ser insistir para que a estrutu ra

hierárquica da Igreja Romana fosse “adaptada” àquela visão moder na da mente moderna e das condições modernas. As prerrogativas do papa — sua autoridade doutrinária e sua infalibilidade pessoal — bem como os dogmas e as normas morais herdados do passado recente e remoto do catolicismo — tudo aquilo podia e tinha que ser mudado. Abandonado. “Adaptado.”

A distorção jesuítica ia mais longe, é claro. Porque nenhuma apresentação desse tipo do ensinamento da Igreja ou de um de seus concílios teria sido possível sem uma fatal distorção do jesuitismo clássico, o ali cerce de rocha firme sobre o qual se apoiava a Sociedade.

O jesuitismo clássico, baseado nos ensinamentos espirituais de Iná cio, via a missão jesuítica com contornos muito nítidos. Havia um estado de guerra permanente na Terra, entre Cristo e Lúcifer. Os que lutavam do lado de Cristo, os guerreiros realmente de primeira, serviam ao pontí fice romano com diligência, estavam à sua inteira disposição, eram “homens do papa”. O “Reino”

pelo qual se lutava era o Céu da glória de Deus. O inimigo, o arqui-inimigo, o único inimigo, era Lúcifer. As armas que os jesuítas usavam eram sobrenaturais; os Sacramentos, a pregação, os escritos, o sofrimento. O objetivo era espiritual, sobrenatural e extra-terreno. Era simplesmente o seguinte: que um número tão grande quanto

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possível de indivíduos morresse em estado de graça sobrenatural e amizade para com o seu Salvador, para que pudessem passar à eternidade com Deus, seu Criador.

A renovada missão jesuítica aviltava esse ideal inaciano dos jesuítas. O “Reino” pelo qual se lutava era o “Reino” pelo qual todo mundo briga e sempre brigou: o bem-estar material. O inimigo, agora, era econômico, político e social: o secular sistema chamado capitalismo democrático e econômico. O objetivo era material: acabar com a pobreza e a injustiça, que eram causadas pelo capitalismo, e a melhoria dos milhões que sofriam escassez e injustiça provocadas por aquele capitalismo. As armas a serem usadas agora eram as da agitação social, das relações trabalhistas, dos movimentos sócio-políticos, e de órgãos do governo. Se necessário, até a revolução armada e violenta era sancionada para os jesuítas; como comentou certa vez o padre -geral Arrupe, só um jesuíta in loco poderia fazer um julgamento desses.

Logo de imediato, os mais básicos elementos do jesuitismo foram afetados. A obediência e o serviço ao papado foram substituídos pelo julgamento jesuítico independente no local, baseado em condições puramente sociais. De forma unilateral, os jesuítas centravam sua missão dentro da primordial luta geopolítica do mundo do século XX; e como eles ainda usavam o manto público de homens do papa, sua liderança num momento vital contribuía muito para arrastar a radical estratégia do papa atual para um estado profundo de concessões e risco. Enquanto o pontífice lutava para abrir uma saída da injustiça causada pelo capitalismo e pelo marxismo, um dualismo demasiado simplista e até maniqueísta ficou imobilizado na nova visão jesuítica. Os pobres, que eram bons, estavam sendo esmagados pelos não-pobres, que eram maus. A “opção

preferencial pelos pobres” absolutizava o pensamento revolucionário e

divinizava a ação política. Pode-se dizer sem medo de errar que um homem pode ser apontado como

sumariamente responsável por essa completa reviravolta da Sociedade de Jesus — Pedro Arrupe, o 27º geral da Sociedade. Dizer isso, no entanto, não é expor o homem no pelourinho por um catálogo de suas falhas pessoais — suas diluídas crenças em doutrinas católicas básicas como a infalibilidade papal, e em leis morais católicas básicas, como as que governam a sexualidade e o aborto; seu distanciamento vis-à-vis o voto jesuítico de fidelidade ao papa; sua irresponsabilidade em relação às devoções básicas do jesuitismo; seu injustificado apoio a ideias religiosas de esquerda. Na sua prolongada doença com os sofrimentos por ela provocados e no Purgatório que Cristo lhe cobrar depois da morte, haverá um julgamento perfeito de Pedro de Arrupe y Gondra.

Mas são os erros do arrupismo, que continua vivo na Sociedade como seus éthos dominante, que clamam por julgamento. E, em especial, um erro principal de Arrupe sobre o homem e o destino do homem nesta terra.

O erro básico do arrupismo foi voltar as poderosas energias da

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Sociedade de Inácio para atingir o ideal do Novo Homem num ambiente terrestre, deixando o ideal sobrenatural presumivelmente para ser abordado num estágio posterior, uma vez estabelecido o presente em condições ideais. Todos os demais erros de Arrupe — seu descaso pelos avisos papais, sua desobediência aos desejos de três papas, sua sanção de excessos de seus jesuítas que violavam as leis de Deus e as regras tradicionais de comportamento religioso — eram consequência daquele erro.

O fundamento básico histórico para a sua procura daquele ideal er rôneo era o que tem sido chamado de “apocalipse de Arrupe”. Sem dúvida, ele fora testemunha privilegiada e sobrevivente da devastadora explosão do “Little Boy”

sobre Hiroshima, no dia 6 de agosto de 1945. E sem dúvida, ele olhava aquele acontecimento como uma luz apocalíptica. A única dificuldade está em que a explosão atômica não foi apocalíptica, não foi nem remotamente semelhante ao que a fé católica ensina sobre o verdadeiro Apocalipse no final da existência deste globo mortal. “Little Boy” foi a maior e mais suja* arma militar já usada.

Existem, agora, maiores e mais sujas em preparação diária; no entanto, por sua vez, a horrível devastação que elas provocariam não seria apocalíptica. E não existem provas definitivas de que o mundo esteja correndo para uma incineração atômica. A cada ano, diminui o perigo de que isso aconteça. A realidade dominante de nosso cosmo humano, hoje, augura um futuro inteiramente diferente.

Apesar disso, Arrupe considerou aquela explosão atômica como nada menos do que uma divisão da história, um acontecimento que liter almente separou, a seu ver, ele, sua Sociedade, a Igreja e todos nós de tudo o que acontecera antes. Nascera uma nova era da qual os horrores e a devastação da explosão de Hiroshima foram apenas um antegosto.

Assim como as instituições dos vários estados nacionais e da Igreja já não tinham conseguido salvar o povo da devastação descentralizadora do “Little

Boy”, nessa nova era nem a Igreja como instituição, nem qualquer dos estados e governos seculares do mundo seriam o suficiente. Fosse isso verdade, a conclusão era de que a Sociedade também não serviria para coisa alguma, se continuasse no seu velho caminho tradicional. As energias da Sociedade tinham que ser redirecionadas, totalmente revis tas; tinham que se concentrar nas condições materiais do povo. Com esforço, o Novo Homem para a nova era poderia ser moldado, apesar do “apocalipse”.

Por isso a Sociedade, através dos decretos da CG31 e da CG32, foi modificada para servir a uma nova missão, de caráter sócio-político, de tendência antipapal e anti-Igreja hierárquica, e fora do controle do papado. Dentro da Sociedade, o estilo tradicional do jesuitismo foi destruído. Arrupe e seus jesuítas estavam, agora, ardendo de paixão para ajudar o Novo Homem a construir o seu mundo.

*“Suja” no sentido de provocação de chuva radioativa. (N. do T.)

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Parece que Arrupe e sua geração de jesuítas nunca perceberam que ele e eles se tinham tornado modernistas; que o arrupismo era apenas a última forma assumida pela corrente subterrânea do modernismo que vi nha fluindo com persistência pelas artérias da Igreja e da Sociedade há mais de cem anos. Arrupe e sua geração de jesuítas estavam simplesmente aceitando aquela corrente como seu guia e modelo na “nova” maneira jesuítica de pensar. Seu destino, como

instituição, tornou-se a mera sobrevivência: ficar vivo depois que “o espírito do

Vaticano II” acabou com o catolicismo romano tradicional e foi proclamado o

“espírito de renovação” com seu princípio duplo, a rejeição do velho e a adoção

de tudo o que fosse novo. O imenso mundo não-católico bem poderia balançar a cabeça diante de

tudo isso, como se não passasse de mais uma triste história de deca dência intracatólica, não fosse o fato de que o arrupismo — o novo jesuitismo — coloca o peso considerável da Sociedade de Jesus na balança em favor daqueles que consideram o capitalismo democrático e o capitalismo econômico como os grandes males que precisam ser escorraçados da sociedade humana. Porque a nova paixão jesuítica de construir o mundo dos homens não ardia num mundo de fantasia. Desde o início, foi um exercício prático na mais terrena das atividades terrenas. Arrupe sabia que seus jesuítas na América Central estavam treinando quadros marxistas; eram, eles próprios, guerrilheiros comunistas ativos; eram membros do ministério de um governo marxista; eram fomentadores de revolução; eram participantes de acontecimentos sangrentos e, às vezes, sacrílegos. Como é que ele podia ter aceito tudo isso a despeito dos apelos, das objeções e das reclamações papais e continuar sendo um jesuíta no sentido clássico?

O tratamento que ele dava aos soviéticos nos faz pensar ainda mais. A caminho do Sri Lanka e da Indonésia para reuniões com superiores jesuítas daquelas regiões em julho de 1977, Arrupe fez uma escala em Mos cou, onde recebeu com prazer todos os esforços para fazê-lo sentir que estava no caminho certo. As autoridades soviéticas permitiram que ele pregasse num serviço ortodoxo russo na Igreja da Dormição, no mostei ro de Novodevichy. A permissão foi dada por intermédio do metropolitano Juvenali, chefe do Departamento de Assuntos Externos da Igreja Ortodoxa. Arrupe foi honrado, lá, por uma visita do abominável metropolitano Nikodim, segundo prelado em ordem de importância na União Soviética. E foi tão festejado e bem recebido por aqueles dois coronéis da KGB que, depois de voltar a Roma, falou em termos candentes da “crescente vitalidade religiosa” na União Soviética e, disse

ele, do interesse obviamente maior pela religião, demonstrado pela maneira minuciosa como a agência noticiosa Tass havia coberto a sua viagem.

Era esta a loucura da posição de Arrupe, é claro; ele atraía os sovié ticos como os efêmeros atraem a truta. Mas era uma loucura refletida fielmente na Sociedade que ele dirigia. Tornou-se parte essencial do arrupismo o fato de que, na luta continuamente alternada entre as duas superpotências — entre o capitalismo e o socialismo —, o peso da Sociedade

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de Arrupe era lançado contra o capitalismo. E assim continua hoje em dia. Era inevitável que o papa João Paulo II fizesse o que Paulo VI nunca fora

suficientemente forte para fazer: tirar Pedro Arrupe do generala to da Sociedade e, do homem escolhido para sucessor de Arrupe, Vincent O’Keefe, qualquer

possibilidade de se tornar geral. A estratégia papal de João Paulo, de reafirmar as prerrogativas do papado e criar uma alternativa para o capitalismo e o marxismo, não tinha chance alguma de vitória enquanto o poder e a influência da Sociedade fossem dirigidos pelo arrupismo. Isso estava claro.

Quando, no dia 5 de outubro de 1981, João Paulo interveio, de forma direta e por decreto papal, nos mais altos assuntos da Sociedade ao retirar de seu leme os dois homens que ele considerava os principais responsáveis pelo que considerava a desordem da Ordem e substituiu-os por homens de sua escolha pessoal — Paolo Dezza e Giuseppe Pittau — o papa deu a bandeirada para o início de quatorze meses críticos. Foi uma época em que líderes poderosos dentro e fora da Igreja prenderam a respiração e esperaram. Se aquele papa era capaz de tomar uma providência tão ousada e sem precedentes, quem poderia dizer o que ele poderia fazer depois?

Dentro da Sociedade de Jesus, os renovacionistas e os liberais -progressistas — que em 1981, seis anos depois que a CG32 colocou o arrupismo num relicário, compreendiam todos os superiores de Roma e de todas as províncias, bem como a maioria dos principais teólogos, escritores e ativistas sociais jesuítas — entenderam a mensagem. Ao contrário de Paulo VI, esse papa era capaz de tomar a lei em suas mãos. Já não se podia contar com ele para seguir as regras do jogo romano que os jesuítas e outros haviam aprendido diligentemente a jogar e ganhar. E, ao contrário de Paulo VI, esse papa era capaz do inimaginável — pelo menos, tinha sido inimaginável até àquele dia de outubro de 1981; ele estava preparado para anular o arrupismo. Havia nomeado superiores seus; poderia ir ainda mais longe. Poderia reduzir a situação canônica da Sociedade, de uma ordem religiosa importante e privilegiada para uma con -gregação local; ou impor o jesuitismo pré-Vaticano II àqueles mesmos jesuítas que haviam formulado a nova visão nos decretos da CG32; ou efetivar a expulsão em massa de jesuítas dissidentes; ou fomentar a parti cipação tradicionalista na Sociedade. Um papa que se mostrara tão insensato quanto esse poderia fazer qualquer coisa; as variações de tom nos temores, na indignação e na raiva dos jesuítas eram impressionantes e imaginativas.

Os jesuítas tinham muitos companheiros no seu temor a João Pau lo. Outras ordens religiosas católicas romanas de homens e mulheres haviam seguido uma “Renovação” igualmente liberalizante; esperavam, portanto, um julgamento

semelhante. Além das ordens e congregações religiosas, toda a escala do funcionalismo

do Vaticano achava esse papa capaz de agir por iniciativa própria

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em questões de finanças, política externa, missões, clero, doutrina, nomeação de bispos, os Sacramentos e casamento. Afinal, quando ele tocou com mão-forte o próprio coração da governança da Sociedade de Jesus, não chegou nem mesmo a avisar o cardeal Eduardo Pironio, cuja tarefa específica era tratar com as ordens religiosas em nome do papa. A romanità não via com bons olhos uma brusquidez dessas. Estaria a administração do Vaticano entrando numa fase de papado de mão-forte com um papa não-romano, não-italiano e não-ocidental — um homem que não sabia que não podia tratar com arrogância a delicada rede de regras cuidadosamente elaboradas? Ora, um homem daqueles poderia, até, per turbar o frágil equilíbrio das relações Vaticano-Moscou baseadas no pacto, que existia há vinte anos, entre um papa anterior e o Politburo soviético; ou interferir nas delicadas sutilezas da seção financeira do Vaticano.

Para todos, a espera do resultado do caso jesuítico era excruciante. Embora todas as cabeças estivessem voltadas para ele, o resultado, para

João Paulo II, só podia ser problemático. Infelizmente, ele havia destituído Arrupe e O’Keefe antes de ter estabelecido qualquer plano ou objetivo além do

afastamento de grandes irritantes. O que era mais letal para sua estratégia papal geral era que ele agira sem pleno conhecimento de todos os amplos interesses — em Roma, na Igreja universal e no mundo secular — ligados à continuação da autonomia do arrupismo; na Sociedade de Jesus, em outras palavras, como ponta-de-lança de um novo movimento antipapal, anti -romano e anticapitalista entre bispos, clérigos, freiras e leigos católicos. “Conheça teus inimigos” não

fora um adágio que vinha de pronto aos lábios de João Paulo quando ele fala va dos jesuítas, simplesmente porque ele ainda não percebera de todo que eles eram seus inimigos e que os amigos e imitadores deles seriam, portanto, seus inimigos.

Apesar de toda a preocupação, então, ninguém, inclusive o próprio João Paulo, sabia como seria resolvido o dilema totalmente novo da ordem jesuítica. Pela sua natureza, sua estrutura e seu tamanho, a Sociedade mantinha grande parte da Igreja sob influência repressora. Numa situação de crise, que exige rapidez e eficiência de ação, João Paulo não podia fazer nada de grande alcance sem provocar um caos maior do que pudesse suportar.

Quase que com a mesma precipitação com que havia afastado Arrupe, portanto, João Paulo deixou que o superior-geral nomeado por ele, Paolo Dezza, anunciasse que o papa iria permitir que uma congregação geral da Sociedade de Jesus se reunisse em Roma. A CG33 iria reunir -se em setembro de 1983, a fim de eleger um novo padre-geral segundo o estilo tradicional e “tratar de assuntos

que deverão ser examinados de acordo com a vontade da Santa Sé”. A tensão se

desfez. Quase deu para se ouvir o suspiro coletivo de alívio. A governança da Sociedade voltara às mãos da instituição.

Ainda assim, quando Piet-Hans Kolvenbach foi eleito 28º geral jesuíta pelos delegados da CG33 em setembro de 1983, muitos observadores

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esperavam, e alguns presumiam, que por trás de sua aparente força e de sua imparcialidade um tanto olímpica pudesse haver um espírito que pudesse impor uma reviravolta dos acontecimentos — que na sua maneira de falar tranquila e quase monótona ele pudesse pronunciar as primeiras palavras de uma intenção verdadeira de acabar com a guerra jesuítica contra o papado.

Qualquer esperança de reviravolta morreu, sem dúvida alguma, com as palavras que Kolvenbach dirigiu aos delegados da CG33, que o elegeram num só escrutínio: iremos servir ao papa e à Igreja, disse o novo padre- geral numa clara afirmação do arrupismo, se fazer isso for servir ao homem. Servir ao homem na sua preocupação com a injustiça política e com a necessidade material continuaria, também, sendo a primordial preocupação dos jesuítas.

Os restos mortais da esperança de uma mudança foram enterrados num continuado desmoronamento provocado pela dedicação jesuítica à Teologia da Libertação e sua redefinição da Igreja e de suas doutrinas; por revistas jesuíticas insistindo sem cessar na erosão da autoridade papal e da Igreja sobre a moralidade e a doutrina; e por ataques cada vez mais ousados, em escritos e sermões, à pessoa e ao papado de João Paulo II e aos dogmas básicos da Igreja que ele chefia.

Para muitos, a mais organizada e geral afirmação de arrupismo pelo padre -geral Kolvenbach aconteceu na Índia. Para Pedro Arrupe, aquela área, com todos os seus desvios e excessos religiosos que só podem ser descrit os como a hinduização do catolicismo sancionada, era o campo missionário para o qual ele e sua nova Sociedade podiam apontar com o maior orgulho e satisfação. Na pessoa de Michael Amaladoss, S.J., que foi nomeado por Kolvenbach como um dos seus assistentes-gerais, a política de Arrupe na Índia encontrou novo e enérgico defensor.

Amaladoss tem deixado claro que considera todas as religiões — o hinduísmo não menos do que o catolicismo — como “compromissos de fé que

levam ao mesmo objetivo”. Nenhuma religião pode invocar prioridade. De fato, assim como George Tyrrell disse certa vez, Amaladoss declara hoje: “A Igreja

poderá ser solicitada a morrer (...) o mesmo acon tece com todas as religiões.”

Quaisquer “alegações de plenitude por par te da Igreja dificilmente poderão ser sustentadas”.

Em outras palavras, embora alegue que os rótulos de católico e je suíta se encaixem nele, Amaladoss não pensa ou fala como católico ou como cristão. Como tantos outros, ele parece muito satisfeito como fato de que o cavalo de Tróia jesuítico o tenha colocado numa posição da qual ele pode trabalhar para mudar a própria essência da Igreja cujas crenças e dogmas são manifestamente inaceitáveis por ele.

Nada disso quer dizer que a Sociedade de Jesus tenha perdido sua disposição ou sua capacidade de ficar em destaque. Nem Kolvenbach nem a liderança pós-Arrupe representada pela equipe romana do padre-geral — os assistentes gerais e os assistentes regionais — devem ser tomados por idealistas ingênuos. São realistas teimosos que não se esqueceram da

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primeira tentativa notável de João Paulo de puxar as rédeas da Socieda de e sabem que ela não será a última. Antes que a maioria dos clérigos sequer a vissem, eles observavam urna nova nuvem se formando no horizonte e compreenderam que muito em breve, durante o pontificado desse papa teimoso, aquela nuvem poderia envolver o seu céu todo e ameaçar a existência do novo jesuitismo que eles adotaram.

Aquela nuvem é a crescente convicção de João Paulo, compartilhada por muitos membros de seu séquito papal, de que a primeira necessidade da Igreja Católica Romana dos anos oitenta é a interpretação autorizada dos documentos do Concílio Vaticano II. João Paulo e muitos outros ficaram tão surpresos com a defesa jesuítica da Teologia da Libertação e com os desvios da ortodoxia por parte dos jesuítas, que levaram bastante tempo para perceber o fato de que todos os desvios e todos os excessos — não apenas entre os jesuítas, mas por toda a Igreja — têm sua origem e justificativa nas interpretações liberal -progressistas dos documentos vagamente redigidos do Vaticano II. Por aquela porta, estão eles convencidos agora, o modernismo infiltrou-se na Igreja e penetrou pela hierarquia, as ordens e congregações religiosas e o laicado.

A análise de João Paulo feita no início pelo padre-geral Kolvenbach em relação a essa questão foi amplamente confirmada por fatos concre tos. Em 1984, o cardeal Joseph Ratzinger expediu uma Instrução oficial a todos os católicos, relativa à Teologia da Libertação. Ratzinger chefia a Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) e é a autoridade diretamente responsável, perante João Paulo, pela manutenção da doutrina da fé ca tólica em sua pureza. Quando ele fala, normalmente o faz como porta-voz do papa. Na sua Instrução, Ratzinger fez uma afirmativa geral: nenhuma libertação política e econômica do povo — por necessária e justificável que seja — pode ser confundida com a única libertação que a Igreja Católica promete, que é a libertação do pecado e dos efeitos do pecado.

Logo de imediato, e com uma arrogância arrupiana, Kolvenbach emi tiu um comentário público sobre a Instrução de Ratzinger — que significava um comentário sobre João Paulo. Ele ficara desapontado, disse Kolvenbach com pesar e resignação, com os “aspectos negativos” da Instrução de Ratzinger. E, prosseguiu ele, não havia dúvida de que o ativismo social e o envolvimento político da Teologia da Libertação eram bastante justificáveis. E continuariam sendo. Haveria, prometeu Kolvenbach um tanto misterioso, outro documento, e melhor, sobre a Teologia da Libertação.

Mal a poeira se assentara naquela escaramuça, quando João Paulo convocou um sínodo especial de bispos selecionados, a se reunir no Vati cano entre 25 de novembro e 8 de dezembro de 1985, a fim de discutir assuntos ligados ao segundo Concílio Vaticano. Todos os seus cardeais, 151 deles, iriam reunir-se com João Paulo entre 21 e 23 de novembro. Era evidente que João Paulo estava começando a se concentrar no cerne de todos os seus problemas — a falsa interpretação do Vaticano II — e na plataforma central do novo jesuitismo da geração arrupista.

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Para os modernistas — jesuítas e não-jesuítas — os sinais ficaram mais ameaçadores quando Ratzinger deu longa entrevista a um jornalista e escritor italiano e depois publicou a entrevista num livro.³ O que Ratzinger queria dizer: desde o Vaticano II, e devido a uma falsa interpretação de seus documentos, não existe uma área da crença e da moralidade da Igreja que não tenha sido corrompida.

Um simplório poderia entender a mensagem; e nem Kolvenbach nem qualquer um de seus assessores são simplórios. Kolvenbach e seus auxiliares dentro da Sociedade não precisam que a casa lhes caia sobre a cabeça para perceber que alguém escavou por baixo deles e destruiu os alicerces. Eles sabem que João Paulo encontrou outra maneira de tentar reafirmar suas prerrogativas papais. Se aquele sínodo especial de bispos declarasse que a atual interpretação do Vaticano II era modernista e falsa, isso colocaria em risco extremo o novo jesuitismo.

Não se trata do fato de que o padre-geral Kolvenbach discorda da análise que João Paulo faz da situação. Pelo contrário, ele está tão ciente quanto qualquer outra pessoa de que o desvio do jesuitismo clássico para o arrupismo depende de maneira vital da manutenção, da preservação e do maior fomento da interpretação modernista do Vaticano II. Juntamente com clérigos que são a favor da ordenação de mulheres; que sancionariam o aborto, a contracepção e a homossexualidade; que abandonam a crença no caráter sobrenatural d os Sacramentos; que ardorosamente adotam, em lugar dos Sacramentos, a política e o ativismo esquerdistas; que querem uma autonomia cada vez maior em relação ao papado, Kolvenbach também compreende que qualquer alteração da interpretação que eles davam ao Vaticano II iria significar a morte, dentro da Igreja, de tudo aquilo que eles agora defendiam. A vitória de seu modernismo do século XX seria transformada em fragorosa derrota.

Sob a direção de Kolvenbach, portanto, a guerra jesuítica contra o papado se tem concentrado na montagem do equivalente teológico a um ataque antecipado para tirar a força da nova ofensiva de João Paulo contra o atual pensamento modernista da Igreja. Ele havia prometido outra ins trução sobre a Teologia da Libertação, melhor do que a Instrução de Ratzinger de 1984.

O homem-chave jesuíta nessa nova fase da guerra, autor de vários livros, muitas vezes é mencionado com carinho pelos que o apoiam como “o Karl

Rahner da Teologia da Libertação”. Seu nome é Juan Luis Segundo. Embora tenha nascido no Uruguai e feito a maior parte de seu trabalho na América Latina, Segundo se refugiou no Regis College, um baluarte do catolicismo liberal-progressista em Toronto, Canadá, e ali redigiu a resposta jesuítica a João Paulo II. Essa resposta é um livro de 1985 intitulado Theology and the Church (A Teologia e a Igreja). Embora se proponha ser uma resposta a Ratzinger, pelo estilo parece ser, na realidade, um aviso para João Paulo II.

Que um homem na posição de Segundo escrevesse uma resposta pública à autoridade máxima em assuntos doutrinários da Igreja universal

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e mandasse um aviso à Igreja para que tomasse cuidado com o que aque la autoridade ensinava, já é uma arrogância sem tamanho. Se Segundo ou outro qualquer de seu nível tiver dificuldades reais com uma Instrução oficial do gabinete de Ratzinger, poderá dispor de um recurso fácil: poderá se comunicar direta e pessoalmente com o cardeal. Ou, se achar que isso é desagradável ou impossível, poderá comunicar-se indiretamente através da sede jesuítica, que fica bem perto do gabinete pessoal de Ratzinger em Roma.

Mas o propósito de Segundo não é resolver suas dificuldades; ele não tem dificuldade alguma. Seu propósito parece deixar João Paulo II avi sado de que se ele, como papa, aceitar e abençoar a Instrução de Ratzinger sobre a Teologia da Libertação, ele, como papa, terá problemas, muitos problemas.

O arrogante aviso de Segundo ao santo padre não é sutil. Está, na verdade, exaltado no subtítulo do livro: Uma resposta ao cardeal Ratzinger e um aviso à

Igreja. Segundo, em seu livro, vai bem rápido ao cerne da ameaça papal. Este

papa, diz ele na verdade, nos criticou, criticou a Teologia da Liber tação, mas suas críticas são ignorantes e injustas. O papa não entende a Teologia da Libertação ou o marxismo do qual somos acusados. Mas não se deixem iludir por essa luta sobre a Teologia da Libertação, continua Segundo. O verdadeiro objetivo deste papa é alterar toda a teologia do Vaticano II. Eis, diz Segundo, a agenda secreta do papa, seu propósito verdadeiro e ardiloso: fazer a Igreja recuar aos moldes pré-Vaticano II e, assim, trair os verdadeiros ensinamentos da Igreja de Cristo tal como o Vaticano II nos ensinou.

O cerne do argumento de Segundo tinha origem direta no modernis mo. Até o Vaticano II, Roma, o Vaticano ou a Igreja hierárquica — para Segundo, os termos são intercambiáveis — ensinavam o catolicismo na base de uma teoria de “dois mundos”: o mundo espiritual e o mundo material. Na opinião de Segundo,

a Igreja encorajava o fervor e a prática religiosa pelo mundo espiritual, mas vilipendiava qualquer imersão no mundo material. O resultado era que a Igreja nada fazia para ajudar homens e mulheres em seus problemas materiais. Ela se concentrava em pecados pessoais e salvação pessoal, nunca em pecados sociais e na salvação social. Quem se dedicasse àquele tipo de atividade era acusado de ter-se “secularizado” — um termo de muito baixo calão, de acordo com Se-gundo, na Igreja pré-Vaticano II.

Infelizmente para João Paulo II, o argumento de Segundo é não apenas bem elaborado, inteligente, sagaz e atraentemente democrático; é também baseado, embora erroneamente, nas palavras explícitas de Paulo VI. Pois foi sob Paulo VI, diz Segundo, que o Vaticano II alterou aquele aspecto “espiritual” anterior da Igreja. E foi Paulo VI que disse que o concílio havia abandonado a teoria dos “dois mundos”; que a Igreja olhava, agora, para o homem como um ser

integrado, precisando de salvação e libertação tanto material como espiritual.

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A Igreja, diz Segundo, ofereceu-se ao mundo como participante e colaboradora na obtenção daquela libertação integrada; e ele cita trechos do discurso com que Paulo VI encerrou o Vaticano II no dia 7 de dezem bro de 1965 e que foi grande inspiração para os jesuítas da CG31 e de pois dela: “Será

que não irão dizer que o pensamento da Igreja no concílio desviou-se para posições antropocêntricas da cultura moderna?” E Pau lo dera a resposta: “Desviou-se..., não! Voltou-se..., sim!” A religião, explicara Paulo, está

inteiramente a serviço do bem do homem. Como a Igreja quer o bem espiritual do homem, ela irá trabalhar igualmente pelo seu bem material — para a sua libertação da pobreza, da escravidão econômica e do domínio político.

O ponto principal, para Segundo, é que a igreja popular, ou “a Igreja do povo”, que é diferente da Igreja hierárquica de Roma, surgiu da cultura moderna

precisamente com base nessa visão unitária do homem. Isso, declara ele, agora é doutrina básica da Igreja, teologia católica acei ta. É nessa “Igreja do povo” que

a verdadeira “autoridade doutrinária” de Cristo surge agora, se encontra e deve

ser consultada. Que a “Igreja do povo” tenha cuidado, soa alto e bom som o aviso de

Segundo, porque este papa está tentando alterar, agora, a teologia do Vaticano II a fim de adaptá-lo ao seu ponto de vista pessoal e faccioso. E fiquem o cardeal Ratzinger e o papa João Paulo II avisados, acrescenta Segundo, para que não pequem contra a voz desta nova e verdadeira “autoridade doutrinária” da

Igreja de Cristo. Apesar da crítica de Segundo ao tratamento que Ratzinger dera à Teo logia

da Libertação e do ocasional vigor venenoso que Segundo usa para depreciar os motivos pessoais do cardeal (quando nada, os comentários de que Ratzinger deve ter tido “um certo grau de malevolência” para escrever como escreveu deveriam ter sido retirados pelos censores jesuítas), o seu alvo evidente o tempo todo é o papa João Paulo II. Ao atacar a Teologia da Libertação, está dizendo Segundo, o papa está atacando a verdadeira “autoridade doutrinária” da Igreja;

ele está decidido a reafirmar a velha mentalidade dualista de clérigos romanos de colarinho duro e destruir essa “autoridade doutrinária”.

Justiça seja feita a Segundo: os jesuítas não poderiam ter escolhido homem melhor para disparar a primeira salva na mais recente campanha da Sociedade contra o papado tradicional. Nenhum teólogo jesuíta expli cou com tantos detalhes e de maneira tão convincente a base teológica para o afastamento da Sociedade do jesuitismo clássico. Seu livro é a mais c lara admissão e a melhor justificativa, até agora, do novo jesuitismo que a Sociedade já apresentou.

A defesa que Segundo faz da nova teologia não é nem mais nem me nos do que uma defesa da nova missão criada e adotada pela Sociedade de Jesus na CG31 e na CG32 e ratificada uma vez mais na CG33. Como tal, é uma defesa de todo padre jesuíta que leva uma carabina ao ombro e entra para as guerrilhas na selva. Deixa claro o motivo pelo qual jesuítas podem ser ministros com pasta em governos marxistas; por que jesuítas

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podem atacar João Paulo II com violência pelos seus ensinamentos sobre moralidade sexual; por que jesuítas passam seus dias e suas vidas resolvendo problemas sindicais, organizando trabalhadores do setor de cana -de-açúcar, dirigindo fábricas, construindo moradias de baixo custo, ajudando a Federação da Paternidade Planejada da América a divulgar o uso de anticoncepcionais; dirigindo redes nacionais de hospitais e farmácias; organizando demonstrações políticas em favor disto ou contra aquilo, segundo os problemas do dia tal como apresentados pela “autoridade doutrinária” da “Igreja do povo”. Estes são os

atos da nova fé, fiel à nova teologia segundo a qual as necessidades materiais dos homens devem ser o objetivo prioritário dos esforços da Igreja.

De fato, o “aviso” de Segundo é tão abrangente e completo, que há lugar

não só para defender todas as atividades que são caras aos teólogos da libertação, mas para forçar a “opção preferencial pelos pobres”, estimular o

ataque ao “capitalismo transnacional” que existe nos Estados Unidos, e salientar a intenção de mudar a estrutura sócio-política de certas nações.

De propósito ou não, a resposta de Segundo é a resposta máxima do padre -geral Kolvenbach e seus jesuítas ao contínuo desagrado dos papas em relação à nova Sociedade. O fato de o geral jesuíta e seu estado-maior romano sancionarem um livro desses o torna, em essência, a resposta deles a João Paulo e qualquer outra pessoa que alterasse o curso da ordem jesuíta estabelecido nas duas décadas a partir da CG31 e do aparecimento de Pedro Arrupe. Com a publicação do livro desaparece o tênue raio de esperança que possa ter permanecido em alguma cabeça otimista de que esse 28º padre -geral pudesse, por vontade própria, fazer qualquer coisa para deter a guerra entre o papado e os jesuítas. Desvanece-se a esperança de que essa Sociedade de Jesus possa, nesta hora crítica da história de decadência da estrutura visível da Igreja Católica Romana, aparecer com uma solução apta a lançá-la para longe de suas dificulda-des e na nova era, como fez a solução de Iñigo de Loyola quando Roma enfrentava as enormes dificuldades de meados do século XVI.

Na mente de milhares que conhecem o valor do jesuitismo inaciano e que esperavam orgulhosamente que a Sociedade de Jesus nos anos sessenta repetisse seu brilhante triunfo do século XVI, há um pesar matizado com um páthos quase infinito. Como João Paulo II quando era um bispo no segundo Concílio Vaticano, eles achavam que dos casulos que haviam tecido sairiam borboletas.

Em vez disso, o que surgiu foi o sectarismo liberal que rapidamente se solidificou e se transformou num totalitarismo de pensamento, uma abordagem tão dogmática, que aquilo que no início parecera uma revigo rante claridade de visão tornou-se rapidamente uma armadilha de moralismo farisaico, autojustificável. Todos os que discordavam eram considerados imorais. O conservadorismo ou o tradicionalismo não era tolerado. Quem fosse culpado de um ou de outro, sofria. Alguns foram si lenciados. Alguns foram dispensados da Sociedade. Alguns saíram por

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vontade própria. Alguns continuaram jesuítas, mas se refugiaram entre colegas clericais mais tolerantes, em trabalhos paroquiais e noutros lugares.4

Não importa o grau de heroísmo em alguns jesuítas hoje — e a Ordem ainda inclui pelo menos centenas de heróis que trabalham, sofrem e resistem nas mais difíceis circunstâncias, humanamente falando —, a massa da Sociedade ficou imbuída de arrupismo. A Igreja de Roma perdeu para outros os inestimáveis apoio e serviços do único conjunto de homens que, na sua forma antiga, poderia ter contido a destruição provocada por aqueles furacões da mudança que começaram nos anos sessenta a obrigar tudo a girar em torno de um novo centro. Os jesuítas poderiam, uma vez mais, ter feit o a diferença entre uma Igreja em ruínas, como está agora, e uma Igreja agindo com vigor para assumir o controle de uma situação que, na verdade, deixa impotentes o papa, os bispos e as instituições eclesiásticas. Mas não serão os jesuítas que irão defender, agora, a Igreja Católica Romana.

Quando, numa época posterior e mais pacífica da história da Igreja Romana, os historiadores analisarem os fatores que provocaram a decadência das instituições católicas romanas no século XX, certamente alguns, com a sabedoria proporcionada pela visão do fato já acontecido, irão di zer o que a Sociedade de Jesus — a ordem religiosa par excellence — poderia ter feito quando a Igreja Romana começou o seu paroxismo de “renovação” na década

dos sessenta deste século. Eles irão sublinhar a insensatez das maneiras pelas quais Paulo VI dirigiu

a atenção do Vaticano II para o que ele chamava de “o mundo do homem”. A

humanidade não precisava ser “honrada”, e ela sabia disso. Ela já não tinha “valores” a serem “respeitados e honrados”. Tinha apenas dois valores: dinheiro

e poder. Todos os homens sabiam que esses valores não podiam ser honrados ou purificados. A última coisa que o mundo queria ou de que precisava era que uma religião “aprovasse seus esforços”, porque esses esforços tinham sido, e eram todos os dias, evidentemente vãos.

No exato momento em que Paulo VI falava, a percepção dos homens e mulheres modernos era de que eles tinham sido apanhados, inapelavelmente, por uma armadilha que eles mesmos haviam armado. Estavam encurralados com John Kennedy e Nikita Khrushchev, os dois homens mais poderosos do mundo (como eles admitiram friamente um para o outro certo dia, no banco de trás de uma luzidia limusine); nenhum dos dois podia romper o horrível impasse que amarrava as superpotências. Os homens modernos foram apanhados na deserção em massa da moralidade católica e sua influência destruidora sobre o casamento, a vida em família e os princípios morais tanto privados quanto públicos.

Os homens e as mulheres modernos estavam encurralados por todos os lados, na verdade. Estavam encurralados no Vietnã, que entrava em agonia; na África subsaariana com seus milhões de pessoas morrendo;

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nos intermináveis derramamentos de sangue da Irlanda, Angola, Afega nistão, Timor Oriental e Oriente Médio. Estavam encurralados nas perpétuas conversações e impasses sobre o desarmamento que sempre levavam a mais armamentos; na miséria endêmica da América Latina; na gradual dissolução da nação americana numa simples cidadania comum que eles temiam que se tornasse uma ficção legal vazia, inconvincente e fantasmagórica e nada mais.

Para qualquer lugar do cenário humano que o crente ou não-crente normal e razoavelmente bem informado olhasse, era óbvio que a última pessoa com probabilidades de ter uma solução era o “homem moderno” cujos elogios e cuja

honra foram cantados por Paulo VI no seu discurso e pelo seu concílio e seus documentos.

Os realistas sagazes poderiam perguntar, com razão: como é que vo cê vai purificar e abençoar o capitalismo rígido? Ou o marxismo dialético? Ou o humanismo secular? No entanto, era isso que Paulo parecia dar a entender que sua Igreja fizera. Um vidente moderno como Malcolm Muggeridge — ainda se arrastando de volta à verdade — viu o beco sem saída ao qual chegara a “humanidade” que Paulo e o concílio discutiram como sua norma, o “povo” que

Arrupe e seus jesuítas se dispunham a cultivar. Muggeridge via desapaixonadamente o desfile esfarrapado da “humanidade” e expressou em

palavras a condição dela, em tom triste mas exato. “Não existe”, escreveu ele, “a

menor expectativa de que, em termos terrenos, se possa salvar alguma coisa; de que qualquer batalha terrena possa ser ganha, ou solução terrena encontrada. Tudo não tem passado de um andar sonâmbulo ao fim da noite.”

A humanidade sabia que passara da meia-noite para a integridade humana; que todas as energias do mundo haviam acabado em impasse e cansaço. Tal não acontecia com Paulo VI, com os atarefados intérpretes do Vaticano II, ou com os delegados jesuítas à CG31 e à CG32. Eles decidiram seguir nos calcanhares do desfile humano e falar, de uma maneira anticatólica, sobre um problema que não era aquele que a Igreja e a Sociedade enfrentavam.

Na verdade, o que faltava naqueles discursos de Paulo VI e no arrupismo era a voz autêntica do catolicismo. Faltava porque nem Paulo, nem Arrupe, nem a geração jesuítica da CG31 à CG33 haviam feito uma aná lise religiosa católica da situação da Igreja e das condições do mundo do homem em meados do século. O esforço deles não era para transformar o mundo à sua volta à luz de sua fé; a vontade deles era de que eles próprios fossem transformados — e, portanto, aceitos — por aquele mundo.

Não há nada de especificamente católico, cristão ou mesmo religioso com relação às necessidades, por mais reais que sejam, de moradias de baixo preço; de emprego estável; de ar não poluído; de direitos civis; de liberdades políticas; da sindicalização de trabalhadores; de manufatura, desenvolvimento e uso de armas ofensivas e defensivas; de planejamento econômico nacional e políticas de comércio internacional; de empresas agrícolas; e de nacionalização de indústrias. Todas são áreas da

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atividade humana que requerem o exercício do julgamento prático. É cla ro que esse julgamento irá beneficiar-se de bases sólidas religiosas e morais; mas por mais que se force a imaginação não será possível analisar a condição religiosa da humanidade nesses termos, com qualquer esperança de chegar a um plano para a melhoria espiritual dos homens e mulheres que trabalham em prol de moradias a baixo custo, empregos estáveis, ar não poluído, e tudo o mais.

Se você tentar isso, acabará preso, com todos os demais, nas engre nagens conflitantes de necessidades materiais, ganhos materiais, desejos materiais e ambições materiais.

Os jesuítas tentaram. Podem-se ler todos os decretos da CG31 e da CG32; pode-se estudar tudo o que Pedro Arrupe disse e pregou aos jesuí tas e sobre eles, seu trabalho e seu mundo; podem-se estudar atentamente as palavras de Paulo VI que tanto inspiraram os jesuítas quanto à Igreja e o mundo à volta dela na época do segundo Concílio Vaticano. Em parte alguma se encontrará análise religiosa ou sobrenatural de qualquer aspecto da condição humana.

Paulo e Arrupe sentiam que algo havia mudado. Mas, porque ambos ficaram imersos nos inúmeros detalhes da complexa vida moderna que surgiam em mecanizações cada vez mais novas e mais deslumbrantes, em número cada vez maior de departamentos da vida humana — porque, em outras palavras, aceitaram análises puramente humanas, em vez de rigorosamente religiosas —, nunca compreenderam a estupenda mudança que realmente acontecera. Em consequência, nenhum dos dois jamais enfrentou a realidade dominante de nossa era.

Em vez disso, como todos os demais, os jesuítas ficaram presos num ativismo sobre coisas materiais indigno dos apóstolos de um Deus sobre natural; e decidiram que o seu primeiro compromisso não era para com o ocupante do Trono de Pedro, mas para com “o povo”.

Enquanto isso, Paulo VI via sua autoridade e sua primazia colhidas num mar tempestuoso e ambições meramente humanas estimuladas pelas concessões que ele aceitara a fim de, segundo imaginava, ter acesso ao mundo.

Para os olhos de Iñigo de Loyola, tanto a enorme mudança que ocorreu como a dominante realidade de nossa era teriam sido de uma clareza cris talina. Ele poderia ter começado, mas não continuado, com o moderado pessimismo de um Malcolm Muggeridge. E não há dúvida de que não se teria contentado, como fez o arrupismo, com a mera sobrevivência disfarçada de liderança.

Lá no século XVI, Iñigo analisou o mundo exclusivamente do ponto de vista do Senhor e Salvador a que ele queria servir. Na época, ele reconheceu e definiu o problema com clareza: a Sé de Pedro corria, então, um sério risco de erro intelectual e heresia teológica. Sua maior falha na resistência àquele perigo era a sua estrutura medieval. Era essa a vulnerabilidade da Igreja: diante de homens imersos na modernidade da década

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de 1500, a Igreja ativara defesas que tinham sido úteis há dois séculos atrás, em um mundo inteiramente diferente. Iñigo projetou sua Companhia e colocou-a em ação a fim de acabar com aquela vulnerabilidade. Daí o voto especial de obediência ao papa; a mobilidade de seus homens; a versatilidade, o empreendimento e o ataque educacional de âmbito mundial por um grupo muitíssimo homogêneo e treinado com rigor, cuja única intenção era temperar o cenário humano inteiramente novo com a imperecível e inalterável realidade do Espírito revelado em Cristo e através da Igreja

Da mesma forma hoje, para Iñigo seria uma questão de isolar e definir com clareza a imensa mudança que houve no nosso mundo; e de ana lisar a realidade e os problemas enfrentados pela humanidade e pela Igreja.

O primeiro passo para Iñigo, então, seria definir o elemento básico em jogo. Paulo VI e os jesuítas o chamaram, num sentido global, de “humanidade”,

o “mundo do homem”. Eles assim fizeram porque já haviam aceitado o ponto de vista coletivista, igualitário da humanidade que classifica todos os homens e mulheres sob o aspecto antropológico.

Mas a história sagrada, a história dos entendimentos de Deus com o homem, diz o contrário. Nem o catolicismo nem a história religiosa da cristandade permitem que toda a humanidade seja agrupada sob o título genérico de espécie humana, como o Homo sapiens. Ela admite, aceita, e insiste, em vez disso, que embora todos os homens e mulheres tenham a mesma natureza humana, isto nada mais é do que um dos aspectos de nossa verdadeira identidade — e, por falar nisso, não é o mais importante. Esta, diz a cristandade, não é toda a história humana; e se alguém limitar sua análise do potencial humano, das necessidades humanas, dos perigos humanos e do futuro da humanidade àquela dimensão, já estará com sérios problemas.

O outro aspecto da identidade humana — de longe o mais importante — diz respeito ao marcante acontecimento na história daquela raça humana que alterou, de maneira irrevogável e para sempre, toda a natureza humana em cada homem e mulher que já viveu, vive ou irá viver e respirar. Trata-se da redenção de cada homem e mulher pelos sofrimentos, morte e ressurreição de Jesus. Em outras palavras, a raça humana não é essencialmente uma coleção de animais inteligentes agrupados sob a classificação de Homo sapiens. É, acima de tudo, uma raça de homens e mulheres cuja estrutura e natureza humanas desde seus primórdios foram alteradas pelo fato de que foram redimidos por Cristo e receberam a possibilidade de ver o rosto do Deus todo-poderoso e majestoso, para sempre.

A segunda etapa da análise de Iñigo seria ver essa raça humana redimida em suas condições reais, hoje. Ele iria dividi-la em duas partes principais.

Uma parte, que seria objeto de sua maior preocupação, consistiria das pessoas daquelas terras nas quais a boa-nova da redenção de Cristo tinha sido pregada há muito tempo, e não só pregada mas largamente acei ta. Hoje, elas seriam as terras da Europa e das Américas, onde a cristandade,

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totalmente aceita em determinada época, penetrara nas urdiduras e t ramas da vida humana comum. Ela coloriu, influenciou e frequentemente tornou possíveis as leis, as línguas, os costumes, as ambições, a estrutura sócio -política, a sexualidade, o aprendizado, as diversões, as próprias fibras do pensamento, do sentimento e da atuação. Para um Iñigo moderno, aquelas terras e aqueles povos compreenderiam o Centro da Cristandade.

A segunda parte do mundo numa análise dessas seria formada por todas as outras terras; terras em que a pregação e a prática do cristianis mo só penetraram, até aqui, muito parcialmente; terras cuja cultura e cu ja maneira de viver nunca ficaram saturadas, durante um período apreciável, com a boa -nova da redenção de Cristo; terras que se encontram, em sua maior parte, na África e na Ásia. Esta, para Iñigo, seria a Terra Estrangeira.

Com modificações e exceções, esta seria a definição básica de Iñigo para o “mundo do homem”. Dentro daquele mundo, ele iria entender o Islã como uma

heresia cristã da Terra Estrangeira; iria classificar o budismo, o hinduísmo e o xintoísmo como aberrações pagãs na Terra Estrangeira; iria ver o marxismo-leninismo como um câncer na Terra Estrangeira; e o judaísmo como um componente misterioso e místico na história sagrada da humanidade como um todo, um componente que a revelação de Deus ainda não nos permitiu compreender — que não iremos compreender enquanto a existência do nosso cosmo não terminar.

A terceira etapa em sua análise seria crítica: determinar as condições da cristandade, e do catolicismo em particular, em todo o Centro. Qual é, perguntaria ele, a realidade dominante, preponderante, quanto à exis tência do cristianismo naquela região?

Por mais desagradável que fosse a resposta, ele não deixaria de enfrentá -la, hoje, como não deixou há quatro séculos. A realidade dominante é a abolição, quase que conseguida por inteiro, daquilo que tornou possíveis a Europa e as Américas: a fé cristã.

Cada vez mais, e numa extensão cada vez maior — e em breve, total — por aquelas áreas centrais, a vida de populações inteiras é vivida na convicção de que nada da salvação de Cristo e nada dos ensinamentos do cristianismo sobre aquela salvação tem alguma importância para a vi da humana. Política, social, educacional, cultural, sexual e intelectualmente, a vida, em essência e em termos práticos, já não sofre qualquer influência cristã. Como meio de vida — até mesmo como simples sentimentalismos ternos ou devoções inocentes — o cristianismo foi abolido.

Não é uma questão do protesto agnóstico, “Não sei se Deus existe”, ou da

afirmativa ateísta formal, “Não creio que Deus exista”. Tanto o protesto como a

afirmativa sugerem Deus, sugerem que existe, agora, um vácuo que já esteve preenchido pela fé.

A nova condição da sociedade humana nas áreas do Centro é que as pessoas não veem vácuo algum. Elas não têm necessidade de protestar que não sabem se Deus existe, ou de afirmar que não podem acreditar

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que ele exista. Já não existe sentimento algum de necessidade de protes tar ou negar. Para elas, a situação parece dispensar demonstração e é ab soluta: não existe nada que não possamos ver, sentir, cheirar, tocar e ouvir; se você não vê, não pode acreditar. Por todo o Centro, a convicção básica é, agora, de que nada há de real por trás da fé, por trás da doutrina; que “bom”, “mau” e “verdadeiro”

são apenas sinônimos da vantagem pessoal; e que só o sucesso em dinheiro, em posição e no prazer tem importância.5

O problema mais difícil de resolver na análise inaciana clássica de nossa condição moderna diz respeito à mentalidade daqueles milhões que vivem, pensam e agem em um mundo do qual o cristianismo foi abolido. Porque eles seriam os primeiros a negá-lo. Na verdade, iriam negar o fato fundamental de que o cristianismo os tornara possíveis, tornara possíveis a sua língua, sua lei civil, sua cultura, sua literatura — até mesmo seus trajes e seu modo de viver o dia-a-dia; tornara possível toda a ordem humana das coisas da qual eles vieram. Eles não se lembram disso.

Apesar de tudo, tão arraigada ainda está essa ordem no ser mesmo daqueles milhões, e é tão verdadeiro o fato de que eles, como todos os seres humanos desde o começo da raça, vivem num mundo redimido por Cristo, que eles não sabem — não podem saber — o que seria viver num mundo não redimido por Cristo. O fato de eles se acharem agora numa condição que não lhes permita nem pensar nessa realidade só aumenta o páthos e o problema. Por analogia, se um homem que já foi civilizado cair na barbárie completa, não ficará sabendo que se tornou um bárbaro. Se fosse capaz de sabê-lo, não se teria tornado bárbaro.

Como, deve perguntar a análise inaciana, arranjar palavras para co meçar a explicar àqueles que vivem no Centro do qual o cristianismo foi abolido que eles são humanos por causa do cristianismo — por causa da redenção de Cristo? Por que símbolos? Por que lógica? Com que palavras? Com que gestos? Com que maneira de vida?

Gerações inteiras de milhões de pessoas são agora concebidas, nascem, são criadas sem nenhuma referência ou relação com Cristo. A men talidade delas é, realmente, de abolição: elas trabalham, sofrem, amam, fazem política, casam-se, envelhecem, adoecem e morrem; mas, segundo o seu raciocínio, Cristo e sua salvação nada têm a ver com elas. Continentes inteiros vão de ano em ano; as atividades diárias de nações, regiões e municipalidades são exercidas; povo e governo prosperam, ou não; têm guerras e necessidades; mas tudo se passa fora do cristianismo. Todas as nações e todos os povos lidam uns com os outros na mesma base de abolição do cristianismo.

Na esteira dessa terceira e desanimadora etapa de sua análise implacável, Iñigo iria perceber que o Centro está atraindo lentamente a Terra Estrangeira para a sua órbita. Do ponto de vista tecnológico e em termos de poder político e militar, a prosperidade e a abundância do Centro prometem resolver as fundamentais necessidades econômicas e industriais da Terra Estrangeira. Veja -se apenas o financiamento da Terra Estrangeira

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pelo Centro no valor anual de cerca de 800 bilhões de dólares; e veja -se a crescente tendência das nações e dos povos da Terra Estrangeira a adquirir os trajes, a alimentação, os prazeres e a maneira de viver do Cen tro. Trazida pelos fortes ventos da importação e da imitação, vem também a mentalidade de abolição do Centro.

Através das três primeiras etapas da análise, já está claro que um rigoroso exame, do tipo que Iñigo realizou no século XVI, revela pontos de vista muito diferentes quando comparados com os do arrupismo. Os jesuítas da CG31 e da CG32 não fizeram nenhuma análise nova e, sem dúvida, nenhuma análise espiritual de sua Igreja ou de seu mundo. Eles simplesmente aceitaram e usaram os pontos de vista que o mundo lhes entregou sobre a identidade humana, a condição da raça humana e a condição da fé cristã e católica no mundo.

O arrupismo enfrentou a realidade de que o cristianismo estava sendo rapidamente abolido da vida e da mente de um número rapidamente crescente de pessoas. No entanto, considerando que o arrupismo havia saltado as três primeiras etapas da análise inaciana, aceitando em seu lu gar a visão humanista, era inevitável que aqui, na quarta etapa da análise — a determinação e a definição das causas da mentalidade de abolição — o novo jesuitismo entrasse na situação como apóstolos secularistas na Igreja de Cristo. A CG31 e a CG32 traçaram as únicas definições que a Sociedade possuía: o cristianismo fora abolido devido à pobreza; ou porque a justiça havia fracassado na África do Sul, no Chile, na União Soviética ou noutra parte qualquer; ou porque ainda havia pessoas passando fome nos Estados Unidos; ou porque havia uma corrida armamentista e o perigo de uma catástrofe nuclear; ou porque uma massa de pessoas queria o prazer sexual sem a responsabilidade da paternidade; ou porque a pornografia, a escravidão branca, as drogas, o crime e mil outros males infestavam nossas vidas.

Pela primeira vez em sua história, a Sociedade de Jesus cometeu o rematado erro de não ver a floresta por causa das árvores. Voltou todo o seu poder bem organizado para a luta contra meras condições e sintomas materiais.

Ora, embora o problema olhasse o mundo de cara naqueles sintomas, e embora os sintomas fossem e continuem terríveis, nada disso alte ra a dura realidade de que se você dedica todas as suas energias a uma luta para melhorar os sintomas, para não mudar nada mais básico ou mais causai do que esses sintomas, a deterioração geral irá continuar. De fato, mais e ainda mais sintomas irão surgir para incomodar você e o povo para o qual você pretendia ser um apóstolo.

Além do mais, enquanto você continua a gastar todas as suas energias com sintomas materiais, ainda que com as mais puras das intenções do mundo, é provável que deixe de ser um apóstolo; quase que necessa riamente, irá se tornar aquilo que está fazendo. Se o sintoma material que o inflamou com o desejo de ajudar for a degradação social, você irá tornar -se um sociólogo. Se a habitação pobre se tornar o seu campo missionário,

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você irá se tornar um empreiteiro ou um advogado. A opressão política fará de você um guerrilheiro ou um político. Mas nada disso irá torná-lo um apóstolo; ou um jesuíta; ou um católico; ou um cristão.

A análise inaciana iria abordar essa quarta etapa analítica com a com-preensão de que a abolição do cristianismo do Centro, com todos os seus terríveis e confrangedores sintomas, foi efetuada por causas espirituais.

Ao analisar quais são essas causas, um Iñigo moderno, como o seu modelo, terá que ter claramente em mente o fato de que causas não são a mesma coisa que etapas. O modernismo do século XIX foi uma etapa da decadência cristã, não uma causa dessa decadência. A marxização da mente que se nota em muitos católicos e cristãos hoje não é causa, mas uma etapa da decadência cristã. O uso generalizado do aborto, da contracepção e do divórcio por católicos não é uma causa, mas uma etapa da deterioração do catolicismo. A determinação e a definição das causas ainda clamam por uma análise inaciana.

A quinta etapa, quando você trabalha para chegar até ela, será começar a definir linhas fundamentais de ação. Terá que ser feita a pergun ta sobre até onde foi a abolição do cristianismo. Em outras palavras, será que ela ainda é reversível? Ou será que já avançou tanto que mais certo é traçar um programa de sobrevivência?

Sobrevivência, neste contexto inaciano, significa qual a melhor ma neira de atravessar esta noite do cristianismo levando todos os pontos es senciais da rendenção de Cristo ensinados pela sua Igreja. Não significa, como significava no arrupismo, jogar fora tudo ou quase tudo e agarrar-se à madeira flutuante que estiver ao nosso alcance, vinda do mundo que nos cerca.

Podemos imaginar o que teria acontecido se as vastas energias orga -nizacionais, a argúcia mental e a capacidade executiva dos 36.000 jesuítas de Arrupe tivessem sido lançadas a esta análise em meados dos anos sessenta e ao plano de ação que se seguiria. Mas isso, infelizmente, terá que continuar sendo um dos mais torturantes “que-bom-seria” da história.

Paulo VI pensou, certa vez, que os jesuítas do século XX iriam dar meia -volta, iriam realizar aquela difícil análise de seu mundo e deles mesmos e, depois, formular uma resposta adequada — uma resposta inaciana. Em fins dos anos sessenta, quando o arrupismo ainda estava em sua fase de formação, e quando o papa sofria um ataque severo e contristador por causa de sua encíclica Humanae Vitae, no paroxismo de sua impotência e sofrimento, ele fez um apelo apaixonado a Arrupe e aos líderes jesuítas reunidos no Vaticano. “Ajudem a

Igreja!”, bradou ele. “Defendam o santo padre! Mostrem uma vez mais que os filhos de Santo Inácio sabem o que fazer neste momento.”

De seu excelente ponto de observação como papa, Paulo via nitida mente o que a Igreja necessitava. Ele esperava que a brilhantemente do tada e inteligente Sociedade de Jesus atendesse àquela necessidade: preparar e apresentar respostas católicas — não respostas tomadas por empréstimo ou roubadas à antropologia, à psicologia ou à política contemporânea

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— à contracepção, ao aborto, à homossexualidade, ao divórcio e ao sexo pré -marital. Para elaborar uma alternativa católica pa ra o capitalismo rígido e para o comunismo ateu, que salvaguardasse a liberdade e a inventiva e o respeito pelos direitos humanos do indivíduo, e incluir a preocupação com os pobres e oprimidos que os comunistas ateus apresentam como exclusividade sua. Para reinterpretar a atual animosidade de tantos católicos — clérigos e leigos — contra o papado e a Igreja hierárquica; e eliminar todos os irritantes, enquanto preservando a fé dogmática na infalibilidade papal e na primazia papal. Para estudar outra vez o problema do ecumenismo; e, embora não renunciando nem por um momento, nem um pouco à reivindicação do catolicismo romano de ser exclusivamente a Única, Santa, Católica e Apostólica Igreja fundada por Jesus, desenvolver uma nova maneira pela qual a graça de Jesus pudesse descer sobre todos os cristãos antagônicos, tirando-lhes as escamas dos olhos e conduzindo-os para “um só rebanho com um só pastor” em nome do único Salvador entre todos.

Para aqueles problemas eram e são necessárias soluções concretas, soluções católicas concretas. Ainda existem outros — problemas cujas soluções irão formar a qualidade da existência ao atravessarmos o limiar de uma época imensamente diferente; problemas criados pela nova gené tica, pela guerra atômica, pela exploração do espaço, para citar algumas das mais óbvias.

Não teria provocado muita surpresa a Paulo VI ou a João Paulo II se os delegados jesuítas a uma das três últimas congregações gerais tives sem enviado uma mensagem franca ao seu papa, dizendo, na verdade: “Chegamos à conclusão, depois de muita oração, reflexão e discussão em comum, de que as circunstâncias presentes e, até onde se pode prever, futuras do papado e da Igreja são e serão cada vez mais de tal maneira que a nossa Sociedade não pode e não poderá fazer o nosso papel vis-à-vis ao papado e não poderá, corporativa e individualmente, encontrar soluções concretas para os múltiplos problemas que assaltam o catolicismo, a menos que haja um total e fundamental repensamento — e, se necessário, reformulação — das Constituições que padre Inácio redigiu para nós e que a Santa Sé tem aprovado e abençoado sistematicamente.

“De fato, há apenas um número limitado de itens nas nossas Constituições que, em nossa opinião, deveriam ficar como o padre Inácio as redigiu. O todo, sugerimos, precisa de revisão. Solicitamos, portanto, à Santa Sé que sancione esta revisão total.

“Ao mesmo tempo, como delegados de toda a Sociedade, apressamo -nos a garantir à Santa Sé e a Sua Santidade em particular que a sacrossanta natureza de nossa vocação jesuítica continua e continuará intata. Entendemos esta natureza de nossa vocação como o padre Inácio a entendeu: ser, por profissão, um corpo católico romano de religiosos que se mantêm fiéis às prerrogativas, ensinamentos e políticas do pontífice romano; e considerar todo e qualquer setor da atividade humana merecedor de nossa dedicada atenção, desde que o pontífice romano assim o deseje

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enquanto, como o representante pessoal de Cristo na Terra, governa e dirige as forças do catolicismo na guerra eterna entre Deus e Lúcifer.”

Uma atitude dessas e essa determinação, por parte de Arrupe e dos je suítas de sua geração, em preservar o modelo inaciano durante toda a mu dança teria, sem dúvida alguma, alterado a história da Igreja Católica nos anos sessenta e setenta; e a Igreja dos anos oitenta não seria a cambaleante mixórdia de cisma, heresia e deserção que é hoje. A responsabilidade his tórica de Pedro Arrupe e seus colegas é pesada e cheia da assustadora perspectiva de que eles, todos eles, terão que responder pessoalmente a Cristo não apenas pelo que não fizeram, mas também pelo que realmente fizeram à Sociedade e, em consequência, à Igreja de Cristo, que ele ama.

Porque a resposta concreta dada por Arrupe e pelos novos jesuítas ao Paulo patético foi a febril e patética procura, por parte de Arrupe, do “ca risma primitivo” e todas as traições da CG32 que aquela procura impôs à Sociedade.

Fica-se imaginando se aquele terrível e angustiado clamor de Paulo VI ainda soa na memória de Arrupe enquanto ele jaz no Gesù com o corpo imobilizado, talvez com a mente obscurecida, pela doença.

Dado aquele fracasso interno dos jesuítas modernos, surge uma última e dolorosa pergunta: o que será da Companhia de Jesus?

Existem duas possibilidades máximas e externas. A Santa Sé poderá, afinal, achar necessário acabar com a Ordem, como o

fez no século XVIII. Naquela ocasião, a medida, por extrema que tenha sido, foi tomada por motivos puramente ad hoc que agora sabemos que de maneira alguma se refletiam no excelente serviço da velha Sociedade. Naquelas circunstâncias muito diferentes, não foi de admirar o fato de que, tão logo teve um mínimo de chance, a Santa Sé exumou a Sociedade, cerca de quarenta anos depois.

Se a Santa Sé fosse acabar com a Sociedade agora, no entanto, seria porque desta vez não foi possível achar outra maneira de parar a guerra entre os jesuítas e o papado; outra maneira de limitar os danos dos jesuí tas à causa da Igreja; outra maneira de proteger o papado.

A segunda possibilidade máxima é que dentro de pouco tempo, muito em breve, segundo a passagem do tempo humano, os superiores e subalternos possam aceitar uma autêntica mas muito diferente reforma da Sociedade, acabando com a sua guerra com o papado, eviscerando o novo jesuitismo, revivendo o jesuitismo que era a marca da Companhia original de Iñigo de Loyola. Se isso acontecesse, seria aberto para a Sociedade de Jesus um cenário totalmente novo. Milagres à parte, deve-se dizer que são muito poucas as probabilidades de que a

Sociedade possa, agora, dar meia-volta e aceitar a reforma — muito embora ela precise de reforma, e não de arrupismo, se quiser sobreviver.

Por outro lado, a extinção definitiva pela Santa Sé de João Paulo II também não é provável. Seja por que razão for — o choque da tentativa de assassinato, a repercussão que uma medida daquelas provocaria, o caos que se seguiria a curto prazo — João Paulo já não tem a força de vontade

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ou a implacabilidade mental necessária. Tampouco parece ser capaz de reunir o apoio eclesiástico de seus bispos, sua Cúria do Vaticano e outras ordens religiosas que seria necessário para dar um passo daqueles.

A triste realidade, no entanto, é que depois de quase oito anos no Trono de Pedro, João Paulo II está precisamente na posição do papa Pau lo IV quando colocou em mãos de Iñigo de Loyola o documento que deu vida à Companhia de Jesus. João Paulo reina, mas não governa. Sua ins tituição eclesiástica está dividida pelo cisma e pela heresia e parece estar fora de seu controle. Ele tem que aceitar o vilipendio em público por parte de católicos holandeses, e sofrer com a profanação de sua pessoa e de suas sagradas funções como papa na Nicarágua. Ele lê o mais recente poema de Ernesto Cardenal tecendo loas ao regime sandinista porque agora, sob o domínio sandinista, os coelhos se reproduzem com maior abundância, os lagartos se aquecem pacificamente ao sol, as cegonhas de água doce voltaram para a terra, e os picanços estão novamente fazendo seus ninhos por lá. Onde Cardenal pode declamar seus hino s de louvor para a Sierra Club, João Paulo não conseguiria fazer um sermão sobre a redenção de todos os homens por Cristo.

João Paulo começou o seu pontificado com a estratégia mais ousada e mais inovadora que poderia ter sido preparada para a situação à sua volta. Por um momento, ele deu ao mundo um vislumbre de outra salvação, uma terceira saída do dilema das superpotências que estrangula o mundo e deixa metade de sua população na escuridão da opressão e na agonia da fome.

Mas agora João Paulo tem que se contentar em ser um nítido indício de que grande parte da Igreja realmente se separou e se afastou dele.

Assim ele continuará a reiterar a doutrina do catolicismo, a veritas

catholica, e a nova de que o seu cargo de vigário de Cristo na Terra é indestru -tível. É provável que esse papel seja o suficiente para João Paulo. E realmen te, ficar fazendo só isso requer fé gigantesca e uma força sobrenatural.

Se, como parece provável, nenhuma das possibilidades máximas for imposta à Sociedade, ela irá enfrentar um crepúsculo de decadência e ossificação gradativas, à medida que o número de seus componentes conti nuar a diminuir e sua importância operacional para a Santa Sé for gradativamente reduzida. Talvez ela seja substituída nas afeições do papado por uma organização mais flexível, mas genuinamente católica romana — uma organização religiosa semelhante à Prelazia da Santa Cruz e Opus Dei (comumente chamada de Opus Dei). Ou talvez o declínio da ordem jesuíta possa muito bem anunciar uma nova situação na Igreja, uma nova era em que as ordens religiosas devam vagar à primazia de posição que eles mantiveram por tanto tempo. Talvez os dias dessas ordens estejam contados na instituição eclesiástica do catolicismo. Está tudo mudando.

No seu crepúsculo, é possível que a Sociedade sofra traumas. Cismas internos poderão obrigar algumas peças a se separarem do corpo principal. Um processo legal por parte da Santa Sé poderá tirar da Sociedade sua posição privilegiada de milícia especial do papa, e de seu padre-geral

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a posição elevada de papa negro e, assim, limitar os danos que a Socieda de poderá causar à Igreja.

Seja qual for a forma desses traumas, e por mais terrível que possa ser o destino da Sociedade, eles deverão eclipsar -se em comparação com o erro fatal que seus líderes cometeram ao decidirem fazer guerra contra o papado. Porque quando a memória do que os jesuítas e sua Sociedade foram em tempos passados tiver se tornado tão fraca quanto a glória, o prestígio e o poder da Ordem de Cluny dos séculos X a XIII, 6 o papado ainda irá existir na pessoa e no cargo do bispo de Roma. Porque só esse indivíduo, seja ele quem for, e esteja onde estiver, tem a inviolável promessa de perpetuidade de Cristo; ao passo que a Sociedade de Jesus nunca foi mais do que mais um instrumento meramente humano erguido pela providência de Deus para servir ao propósito de Deus, mas sem nenhum direito à imortalidade. Hipotecada ao serviço de um dia fugaz, ela está destinada ao monte de adubo composto de fracasso e morte.

Mas mesmo assim, o que é verdade agora ainda será verdade então: a Sociedade de Jesus, em sua forma primitiva — na plenitude, no frescor e no gênio de seu autêntico “carisma primitivo” —, era e ainda é insubstituível. Nenhuma organização na história da Igreja esteve equipada com tanto brilhantismo e eficiência. A sua lista de dons deslumbrantes era invejável: coesão e disciplina internas; percepção segura da piedade e da devoção católica; intenso desenvolvimento intelectual; obediência profissional e fidelidade inabalável; metodologia de operação desenvolvida e uma recusa irredutível a renunciar; completa flexibilidade no uso de meios; firmeza e confiabilidade doutrinárias; versatilidade de dons, maravilhosa camaradagem num grande e santo empreendimento, e um profundo senso de destino cósmico.

Uma vez em sua história, quando seus inimigos pressionaram o papa Clemente XIII para que alterasse as inimitáveis e características Constituições da Sociedade e a tornasse uma ordem como qualquer outra ordem religiosa, a resposta do papa limitou-se a seis palavras latinas monossilábicas e sugestivas que desafiam uma tradução igualmente curta: “Sint ut sunt, vel non sint” (elas

ficarão como estão, ou deixarão de existir). Era, por assim dizer, o equivalente clássico de “Ou tudo, ou na da”. Eu não

irei alterá-las. Ou as deixo como estão, ou irei aboli-las. No paradigma do tempo medido contra a eternidade, aquela expres são

pode ser vista como a resposta do Deus onipotente ao empenho do arrupismo: Vocês se recusam a deixar a Sociedade tal como eu a ergui? Muito bem,

ela deixará de existir. Porque como estava, a Sociedade era uma fórmula de sucesso quase tão perfeita quanto se pode conseguir com ho mens falíveis e em questões mortais. Era uma dádiva da sabedoria do Espírito Santo, uma bênção do amor do Pai, uma extensão do poder redentor de Cristo. Ele não iria admitir, para ela, os caprichos ou ideias de ninguém mais, principalmente do Inimigo. Afinal, ela levava o Seu nome. Ela era a Sua Sociedade.

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NOTAS

A GUERRA

1. “Os títulos de Servo de Deus, Venerável e Abençoado são dados àqueles cu jas causas ainda estão em andamento, enquanto que o título de Santo indica que o processo [de canonização] chegou ao seu término.” Veja J. N. Tylenda, S.J., Jesuits, Saints & Martyrs (Chicago: Loyola University Press, 1983), pág. xxiii.

1. OBJEÇÕES PAPAIS

1. Mindszenty havia ficado contido na Legação dos EUA em Budapeste duran te quinze anos, intocável pelos comunistas, uma pedra simbólica no sapato deles. Com a promessa de Paulo VI, de que nenhum sucessor seria nomeado como primaz da Hungria enquanto ele vivesse, concordou em partir para o exílio em 1971. Três anos mais tarde, violando sua promessa solene, Paulo VI nomeou um sucessor, Laszlo Lekai. A nomeação foi publicada simulta -neamente no Vaticano e em Budapes te no dia 5 de fevereiro de 1974. “A exoneração de Josef Mindszenty”, escreveu o presidente do Gabinete para Assuntos Eclesiásticos em

Budapeste, “foi recebida com compreensão pelo público pensador, progressista, dentro e

fora dos círculos eclesiásticos.”

3. PAPA BRANCO, PAPA NEGRO

1. Há, também, uma autoridade romana que é chamada de “o papa vermelho”

— o cardeal que chefia a todo-poderosa Congregação para a Propagação da Fé, agora conhecida como Congregação para a Evangelização dos Povos, congregação essa que tem despesas enormes e consome boa parte do orçamento anual do Vaticano. Há quem dê a entender que “vermelho”, neste caso, refere - se a tinta vermelha. Na verdade, porém, o título é uma tirada do chapéu romano para a realidade de que o dinheiro sempre concede algum tipo de poder.

2. Na verdade, o novo Código seria promulgado por João Paulo no dia 25 de janeiro de 1983. Não houve legislação para mudar a situação da Sociedade de Jesus.

3. Alguns observadores mais íntimos dizem que uma maioria de jesuítas abaixo do nível de administradores (padres paroquiais, simples professores e instru tores etc.) apoiaria o ato de João Paulo.

5. DESOBEDIÊNCIA SUMÁRIA

1. O repúdio público por parte da 24 freiras católicas à doutrina da Igreja sobre o aborto em outubro de 1984 e a violência, o tratamento insultuoso, os atos

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sacrílegos e a grosseira irreverência para com João Paulo de público, durante a sua viagem à Holanda em 1985, que encontra poucos paralelos na história papal recente, são apenas dois dentre muitos exemplos.

2. Os bispos de Pena mantiveram-se ao lado dele, lealmente. Em agosto de 1985, Pena foi enviado a Roma para um curso de direito canônico de dois anos. Outro padre leal, padre Bismark Carballo, igualmente maculado pelos sandinistas, tornou-se o porta-voz oficial do cardeal Obando y Bravo.

3. A frase “Conferência Africana” foi usada pelos franciscanos para indicar uma nova

estrutura da Igreja que eles estavam tentando em caráter experi mental: pequenos grupos de franciscanos deveriam viver independentemente das paróquias locais e exercer seu ministério apostólico independentemente das paróquias. O propósito básico era desligar seus rebanhos da jurisdição espiritual dos verdadeiros padres das paróquias e dos bispos. Essa versão franciscana da iglesia popular, desenvolvida na América Latina, era uma violação nítida do direito canônico da Igreja.

6. INIGO DE LOYOLA

1. Os historiadores chamam esse projeto de texto “a”. Com base nele, Iñigo fez outra versão chamada de Texto “A ” e é a primeira minuta espanhola das Constituições da Sociedade.

2. Esta versão é chamada de Texto “B”, uma versão autêntica em espanhol, contendo correções e acréscimos marginais feitos por Iñigo. Com base neste Texto “B”, foi

produzido um novo texto em espanhol, chamado de Texto “C”. Enquanto isso, o secretário de Iñigo, Juan de Polanco, S.J., fez uma tradução latina. Em 1558, uma reunião de jesuítas em Roma aprovou o Texto “C” em espanhol e a versão latina de Polanco como autorizados. A versão latina foi escolhida como o texto oficial, mas o Texto “C” tem sido sempre utilizado para interpretar o texto latino. Houve ainda outro texto espanhol (“D”),

produzido em 1594. Hoje, a mais usada é a edição de 1936 dos textos em espanhol e latim.

9. O CARÁTER DA SOCIEDADE

1. O currículo era conhecido na história como Ratio Institutioque Studiorum ou, mais simplesmente, Ratio Studiorum. Teve três edições (1586, 1591, 1599) antes de chegar à sua forma final.

2. Seus múltiplos inimigos, é claro, viam outros papéis supostamente represen tados pelos jesuítas: o jesuíta conspirador, o jesuíta revolucionário, o jesuíta racionalista etc.

3. “Ministro” era um dos nomes para superior jesuíta, numa casa, encarregado da disciplina

pública, do dinheiro e das condições de vida. Uma das penitências impostas àqueles que violavam uma regra pública de comportamento era comer ajoelhado junto a uma mesa baixa, na presença da comunidade que se sentava a mesas normais.

4. Gerard Manley Hopkins, Fragments, nº 113 na edição de Robert Bridges de 1948 (Terceira Edição Inglesa), Oxford University Press.

5 Hopkins, The Wreck of the Deutschland, nº 5

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6. Por falar nisso, foi observado que Margaret Mary Alacoque e Claude La Colombière tinham sobrenomes muito comuns, ambos baseados em nomes de pássaros.

7. Literalmente, dezenas e dezenas de papas têm proposto essa devoção d esde então. Em 1872, o padre-geral jesuíta Peter Beckx consagrou a Sociedade ao Sagrado Coração de Jesus; e nenhum jesuíta ficou surpreso com o fato de que o número de membros da Sociedade mais do que dobrou, passando de 5.000 para 12.000, durante os 34 anos de Beckx como padre-geral.

8. No mesmo dia, 22 de setembro de 1774, o então padre-geral, Lorenzo Ricci, e seus colegas jesuítas imediatos foram aprisionados no calabouço papal do Castelo Sant’Angelo, em Roma.

10. O SUPERIOR MÁXIMO

1. CG é usado, daqui em diante, como uma abreviação de Congregação Geral. Assim, CG1, CG2 etc. A primeira Congregação Geral foi realizada em 1558, dois anos depois que Inácio morreu; a última até agora (CG33) realizou -se em 1983. Houve também cinco Congregações Interinas (Cl) nos 41 anos (1773-1814) em que a Sociedade foi abolida em toda parte, exceto na Prússia e na Rússia, e um grupo minúsculo de jesuítas sobreviveu naqueles dois territórios.

2. O tom e as decisões tomadas na CG31 e 33 diferem genericamente dos de todas as congregações gerais precedentes.

3. Pio tinha um confessor jesuíta, dois colaboradores diários jesuítas, pelo me -nos dois jesuítas que usava como emissários especiais a vários governos em missões delicadas, e cerca de meia dúzia de outros jesuítas em que ele confiava para assessoria especial em vários campos técnicos e profissionais. Pio também enviou mais de um jesuíta em visitas clandestinas à União Soviética.

4. Já durante a II Guerra Mundial, Pio estava perturbado pelos desvios doutri -nários de alguns jesuítas. Alguns comentaristas datam a desilusão de Pio com a Sociedade em meados dos anos 40, e especificamente na ferrenha oposição feita por alguns jesuítas a um novo instituto, os Padres da Santa Cruz e Opus Dei, fundada por um padre espanhol, José-Maria Escriva y Balaguer. Dizem que uma onda de calúnias e maledicência inundou os corredores do Vaticano, vinda da Espanha, logo depois do término da II Guerra Mundial, tendo a Opus Dei como alvo. Um relatório por escrito acabou chegando à mesa de Pio. Seus auxiliares imediat os ouviram Pio berrar com indignação, depois de ler o torpe relatório: “Chi ha mai pensato

una tale infamia!” (Quem terá imaginado uma infâmia dessas!). A campanha de difamação cessou quase que de imediato. O que exasperava Pio, como ele observou para Augustin Bea, S.J., era que tinham sido precisamente calúnias vis como aquelas que os pri -meiros inimigos da Sociedade tinham usado lá no século XVI. Que os jesuí -tas, ou alguns jesuítas, usassem agora a mesma tática ardilosa contra outra organização nova da Igreja no século XX, deixava Pio revoltado. A Opus Dei, tem-se que admitir, era então, e quarenta anos depois é mais do que nunca, a verdadeira rival da Sociedade para o lugar de destaque no coração

do papado.

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11. FURACÕES NA CIDADE

1. A merecerem aqui uma menção especial por atravessarem uma nova temporada de prosperidade e difusão, são as editoras Orbis Books (especialista em publicações sobre a Teologia da Libertação), a Paulist Press (editora de Human Sexuality) e a Crossroads.

2. Alguns comentaristas já declararam que o abuso, o desaparecimento, o exí lio ou o silenciar de teólogos morais jesuítas da estatura de John Ford, John Lynch, Joseph Farraher; de membros do corpo editorial da revista America, como Thurston Davis, Robert Hartnett e Francis Canavan; a hostilização de Cornelius Buckley e outros, juntamente com a exclusão obrigatória de noviços de mentalidade ortodoxa, tudo constitui uma história completa que bem valeria a pena documentar e contar.

3. Organizações como a Associação de Padres de Chicago, a Fede ração Nacional de Concílios Sacerdotais e a Coalizão de Freiras Americanas, são, agora, elementos constituintes da cena católica nos Estados Unidos.

4. Na sua encíclica, intitulada Mediator Dei, Pio condenou com detalhes muitas das “adaptações” que se tornaram doutrina básica para renovacionistas vinte anos mais tarde, na esteira do Vaticano II.

12. A DOUTRINA CATIVANTE

1. James Turner, Without God, Without Creed (Johns Hopkins, 1985), pág. 262.

2. Ibid., pág. XV.

3. Ibid., pág. 267. 4. Vivekananda nasceu com o nome de Narendranath Datta no dia 12 de janeiro de 1863, em

Calcutá. Discípulo de Ramakrishna desde tenra idade, decidiu curar o materialismo do Ocidente com a espiritualidade hindu. Morreu a 4 de janeiro de 1902, aos 36 anos de idade, perto de Calcutá.

5. Alguns estudiosos cuidadosos, metidos em suas torres de marfim, debruçaram- se sobre a antiga literatura indiana, a seção Upanishads dos Vedas, as obras de Goudapada e Shankarayarya, e perceberam que aquilo que o swami transmitira ao público era vedantismo, ou vedanta.

6. Sob o impulso do estado mental do swami, acabou surgindo uma organização humanista nos Estados Unidos — a Fundação Humanista, e a Associação Humanista Americana, e a Sociedade Humanista. Um primeiro Manifesto Humanista foi lançado em 1933, exigindo “uma ordem econômica socializada e cooperativa”, “ética autônoma e situacional”, “muitas

variedades de exploração sexual”, e “o desenvolvimento de um sistema de lei e ordem mun -diais, baseado num governo federal transnacional”. O II Manifesto Huma nista de 1979 omite todo o apoio explícito à “ordem econômica socializada e cooperativa”, mas advoga a

mesma ética sexual, enquanto rejeita categoricamente toda a crença cm qualquer realidade além do mundo visível, palpável. Nem todos os humanistas seculares subscrevem o Manifesto Humanista.

7. A força catalisadora e unificadora por trás da fraternidade na sua primeira fase da década de 1880 ao ano de 1910 foi, sem dúvida, a figura exótica do barão Friedrich von Hügel, naturalizado inglês, teólogo, filósofo e místico.

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Ele serviu de elo entre muitos modernistas secretos e alguns notórios da época: George Tyrrell e Edmund Bishop na Inglaterra; Alfred Loisy, abade Henri Brémond, Laberthonnière, Hébert, Leroy, Duchesne e Mignot, da França; Antonio Fogazzaro, Minocchi, Buonaiuti, Semaria, na Itália. O barão conseguiu fugir à condenação por parte de Roma atacando abertamente as leses modernistas.

8. Veja Pierre Leroy, S. J., Letters from My Friend Teilhard cie Chardin , traduzido por Mary Lukas (Ramsey, N.J.: Paulist Press , 1976), págs. 70 e seg.

14. PIERRE TEILHARD DE CHARDIN, S.J.

1. “Eppurse muove” foi, na verdade, criada cerca de 130 anos depois da morte de Galileo,

pelo jesuíta francês abade Traith.

2. Um maravilhoso exemplo do estilo teilhardiano é encontrado num comentá rio que Teilhard escreveu para um amigo sobre a teoria do “estado estável” do astrônomo Fred Hoyle.

“Segundo Hoyle, o corpuscular Quantum da Ma téria que forma o Universo não é constante. Ele afirma que há uma corrente de intensidade contínua na qual fomos apanh ados, como pelo jato de uma fonte. A perspectiva me interessa porque, se o Universo fosse formado dessa maneira, então o Espírito também seria formado pela geração contínua. Mas como reconciliar isso com a existência de um ‘Saguão Divino’ de Centração Cósm ica? — Em vez de ‘Saguão’, não teríamos uma ‘Linha’? — Penso que vejo vagamente que se, num universo desses, for preciso salvar a consciência o tempo todo, teríamos que estabelecer no sistema uma nova curva de outro tipo (o da geração contínua da Matéria) que iria criar a si mesma numa espécie de ‘espiral’ em torno do Saguão Cósmico de Reflexo Psíquico e, em vez de se estender numa linha, iria parecer um Centro continuamente mais pro fundo.”

(Carta de 5 de junho de 1952 ao padre jesuíta Pierre Leroy.)

3. Presente é colocada entre aspas para ressaltar a palavra usada por Teilhard, a fim de evitar qualquer ideia de criação por Deus. A consciência, de repente, se fez “presente”. O próprio

termo consciência, nos lábios de Teilhard, também era técnico; um organismo bicelular era “consciente”, disse ele. Tudo aquilo que não fosse inteiramente unitário era consciente.

4. Ele viu bastante a guerra no seu aspecto mais cru enquanto servia de padioleiro durante as batalhas de Verdun, Ypres, Chemin des Dames e Marne — os clássicos matadouros da I Guerra Mundial. Teilhard era cabo, mas se recusou a se tornar capelão com a patente de capitão.

5. Veja Letters from My Friend Teilhard de Chardin , de Pierre Leroy, S. J., traduzido por Mary Lukas (Ramsey, N.J.: Paulist Press, 1976).

6. Teilhard de Chardin, O Meio Divino.

1. “La Vie Cosmique”, incluído em Écrits du Temps de Guerre, Editions du Seuil, Paris, pág. 22.

8. Teilhard tecia comentários muito negativos sobre o hinduísmo. No entanto, ideias vedânticas e tântricas perpassam alucinadamente toda a sua “poesia da evolução”.

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15. A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

1. Isso está claro até mesmo devido aos nomes citados por Gutierrez em seu li vro como progenitores dessa ideia: Alfaro, Bouyer, Chenu, Congar, de Lubac, Dumont, Duquoc, Haering, Kasper, Metz, Moltmann, Rahner, Schillebeeckx e Spicq, entre outros. Um autor europeu no qual Gutierrez e os poucos teólogos da libertação latino-americanos (Mariatequi, Pironio, Sanchez, Vasquez) se apoiam fortemente é evidentemente Karl Marx. Destacados teólogos da libertação da atualidade (Juan Luis Segundo, Jon Sobrino e outros) são europeus que se naturalizaram cidadãos de nações latino -americanas.

2. Por exemplo, o papa Pio XII apoiava os esforços de don Luigi Sturzo (1871-1959), que organizou e promoveu o Partido Democristão na Itália. A situação da Igreja com Mussolini era in extremis — como acontece hoje na Polônia.

3. Instrucdon on Certain Aspects of the “Theology of Liberation”, 6 de agosto de 1984, e Instrucdon on Christian Freedom and Liberation, 22 de março de 1986. A Instrução de 1984 tem sido seriamente atacada, notadamente por Juan Luis Segundo, por apresentar apenas as crenças do cardeal Josef Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), do Vaticano. A maioria dos teólogos da libertação que até agora comentaram a Instrução de 1986 declararam que ela é uma aprovação formal de sua Teologia da Libertação. Mas a linguagem do cardeal-prefeito é inequivocamente clara ao separar uma “teologia da libertação” autêntica da Teologia da Libertação. O auto r da Instrução de 1986 poderia ter evitado muita confusão se tivesse mantido o tradicional termo católico romano salvação. Libertação é um termo dos quais se apropriaram de maneira ciumenta aqueles que iriam usar a Instrução do cardeal para mostrar que a Igreja os apoia numa doutrina já condenada na Instrução de 1984.

16. O SEGUNDO CONCILIO VATICANO

1. Ao todo, os documentos do Concílio contêm 103.014 palavras. Os originais em latim são os textos autorizados e têm que ser consultados em questões tex tuais de interpretação. O mais longo dos documentos (Constituição Pastoral da Igreja no Mundo Moderno) tem 23.335 palavras. O mais curto (Declaração sobre o Relacionamento entre a Igreja e os Não-

Cristãos) tem 1.117 palavras.

2. Veja Catholic and Christian, de Schreck, e a citação de um trecho dele na publicação carismática New Covenant, maio de 1984, pág. 16. Outro franciscano, um tanto mais “detetive” do que Schreck, John Quigley, divulgou um cassette em março de 1980, no qual declara que “a Igreja de Cristo é muito maior do que a comunidade católica (...). Acreditamos que a Igreja seja mui to maior do que a Igreja Católica. OK?” Este “OK” é

patético. Toda a questão sobre a frase subsiste em foi abordada de maneira notável por James T. O’Connor em Homiletic and Pastoral Review, janeiro de 1984.

3. A citação merece ser lida: “(...) uma onda de serenidade e otimismo vinda do concílio espalhou-se pela Igreja e pelo mundo; um cristianismo consola dor e positivo aceitável e amável, amigo da vida, dos homens, até dos valores te rrenos, de nossa sociedade e de nossa história. Quase poderíamos ver no concílio a intenção de tornar o cristianismo aceitável e amável, um cristianismo indulgente, aberto, livre de todos os rigorismos

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medievais e de qualquer interpretação pessimista com relação aos homens, aos seus costumes (...). Isto é verdade.”

4, . Eugene Kennedy. The Now and Future Church (Garden City, N.Y.: Double-day, 1984), págs. 172, 179, 191.

17. O SEGUNDO BASCO

1. Mais italianos (onze) do que qualquer outra nacionalidade foram eleitos pa-dre-geral. Houve quatro espanhóis, quatro alemães, oito belgas, dois bascos e um da Holanda, da Polônia e da Suíça.

2. Ele tem o crédito de levantar 10 milhões de dólares para a Universidade de Santa Sofia, em Tóquio. Quando ele chegou ao Japão, a Universi dade tinha 1.500 estudantes. Em 1973, com Arrupe como provincial e depois como ge -ral, havia 8.200.

3. Duas de suas cartas, uma para a Sociedade toda e datada de 14 de maio de 1978, a outra a jesuítas indianos e datada de 24 de junho de 1978, apresentam de maneira bem ampla suas ideias sobre a “inculturação”.

4. O caso foi o de um basco de dezenove anos, Ignácio Sarasqueta. O clamor internacional que se ergueu de organizações de esquerda, os meios liberais de comunicação e dos países-satélites soviéticos para que ele fosse poupado foi ensurdecedor. A isto Paulo — e, é claro, Arrupe — juntaram suas vozes.

18. ROUPAS ANTIQUADAS

1. À exceção da CG8 em 1646, que durou 114 dias, e da CG27 em 1923, que se estendeu por 105 dias, a duração média de congregações gerais anteriores i a de 50 a 85 dias.

2. CGs 1, 2, 12, 13, 17, 21 e 22. Sete outras foram realizadas na primavera (CGs 3, 4, 6, 11, 19, 26 e 28), dez nos meses do outono (CGs 5, 7, 8, 20, 23, 24, 25, 27, 29 e 30) e seis durante o inverno (CGs 9, 10, 14, 15, 16 e 18).

3. Até a CG31, o número de delegados presentes às congregações gerais tinha variado de 20 (CG1) a 185 (CG30), mas habitualmente esse número eleva va-se de 65 a 85 membros.

19. NOVOS FIOS CONTÍNUOS

1. O fato de outro documento do concílio, Lumen Gentium, apresentar reivin-dicações exclusivas da posse da verdade por parte da Igreja, e de ainda outro, Dei Verbum, dar à Igreja a autoridade exclusiva sobre as Escrituras, não ajudou. Esses documentos, sobre tais assuntos, são postos de lado.

2. Evangelii Nuntiandi, de Paulo VI (1975), visou corrigir esse erro; mas àquela altura o erro já havia sido transformado em sistemas concretos de trabalho corporativo e estilos de vida individuais.

3. Grande parte do que foi mencionado nos decretos da CG31 poderia ser clas -sificada como eventual, em certo sentido. Os decretos da CG31, por exem-plo, que se referem à Cooperação Interprovincial (nº 48), às Artes (nº 30), aos Ritos da Eleição (nº 50), à Leitura à Mesa (nº 20), aos Visitadores (nº 45), a um Catálogo de Censuras e Preceitos (nº 53), ao Serviço da Rádio

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Vaticano (nº 36), às normas de acesso aos Votos Finais (nº 11) e semelhantes devem ser classificados como eventuais. Em última análise, porém, os principais decretos foram de uma natureza tão violenta que tudo era “renovado”, por assim dizer , na sua esteira. Por exemplo, o Decreto nº 20 (“Leitura à Mesa”), referente ao que era lido às comunidades jesuíticas

enquanto faziam suas refeições, aceita o fato de que, de modo geral, a velha prática de ler um resumo das Constituições jesuíticas tinha simplesmente sido abandonada. O geral é aconselhado a fazer alguma coisa em relação a isso, para que os jesuítas ainda continuassem a par de suas Constituições. Essa questão de leitura à mesa não é da mesma categoria da questão relativa à Pobreza, à Obediência ou à elegibilidade para cargos de poder na Sociedade; mas essa e outras questões, de grande e de menor importância, não poderiam deixar de ser afetadas pela discussão dos “pontos essenciais”

da Ordem.

20. À PROCURA DO CARISMA PRIMITIVO

1. CG31, Decreto nº 1-1. 2. B. R. Biever e T. M. Gannon, General Survey of the Society of Jesus in the North

American Assistancy, vol. 3. 3. A situação entre os jesuítas nas Filipinas, por exemplo, que só foi revelada

em 1971, era tal, que o padre J. B. Reuter, superior dos jesuít as dedicados às comunicações sociais na Ásia Oriental, aceitou doações do Planejamento Familiar Internacional, uma divisão da FPPA, com a condição de que os je -suítas apresentassem “um relatório sobre a quantidade de contraceptivos por

tipo e quantidade usados e em estoque ao final de cada trimestre e de cada ano coberto pela doação”. Reuter, ao comentar sobre seu apostolado, disse

que nele “a ênfase seria em legitimar o envolvimento de católicos nos

programas de planejamento familiar”. Tudo isso fica registrado como uma bela peça de duplo sentido sobre um assunto absolutamente vital.

4. As mudanças recomendadas pela CG31 atingiram até a Pontifícia Universi -dade Gregoriana em Roma. A “Gregoriana”, como é chamada sem cerimô -nia, produziu oito santos da Igreja, quinze papas, centenas de cardeais, dezenas de milhares de padres. A partir da CG31, ela passou a mista; num dia típico, pelo menos metade dos estudantes (freiras e padres) usa trajes civis. A “Gregoriana” também perdeu a reputação de centro de ortodoxia .

5. Citado por George Riemer em The New Jesuits. Ilustrado. Little, Brown. 1971. 6. No Bhagavad-Gita, diz-se que Khrishna declarou: “Eu sou o OM místico.

Curvem-se e adorem-me.” 7. A representação de Brama, Vishnu e Shiva nos vitrais da igreja, o uso do

arati (uma lâmpada acesa agitada em frente ao rosto do celebrante da missa), e a colocação de um vaso no topo da igreja, em vez de um crucifixo (o vaso contém o deus ao qual a igreja pertence), são apenas algumas dentre muitas outras práticas hinduizantes.

8. O subcontinente da Índia, aos olhos dos planejadores do Vaticano, tem uma importância primordial como o único país da Ásia em que a Igreja teve um enorme avanço. A Igreja Católica Romana despejou vultosos recursos na Índia. Ordens religiosas dirigem 115 faculdades com 135.000 estudantes, 1.200

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ginásios com mais de 500.000 alunos, 242 escolas técnicas com mais de 400.000 estudantes. Estima-se que 60% de todos os estudantes da Índia freqüentam escolas e faculdades católicas romanas. Naqueles centros de saber, 50% dos professores são não-cristãos. Os jesuítas se envolvem nos níveis municipal, estadual e nacional. A hinduização do catolicismo pode ser, assim, considerada como um experimento de risco numa área de vital importância.

9. O Instituto foi fundado pelos padres Thomas Culley e Clement McNaspy, dos Estados Unidos. Entre os membros do Instituto em 1972 estavam o pin -tor francês André Bouler, o pintor e escultor cubano Oscar Magnon, o violi -nista da Orquestra Sinfônica de Buffalo, Cyril Schommer, e o casal de concertistas Ivan e Susanna Waldbauer. A sessão de verão daquele ano foi realizada na Villa Mondragone em Frascati, a sudeste de Roma, e consistiu de aulas, concertos intramuros, exibições, apresentações dramáticas, excur -sões, e boas refeições regadas ao excelente vinho das adegas jesuítas.

10.Os gerais da Sociedade podem convocar uma congregação geral por mais de um motivo. Vinte e cinco das 33 congregações gerais realizadas até agora foram convocadas para eleger um novo padre-geral. Uma congregação geral foi convocada por uma congregação de procuradores jesuítas em 1608. Três congregações foram convocadas por papas, por motivos deles próprios. Três outras foram convocadas por gerais que queriam a ajuda de um vigário -geral por estarem doentes. Uma, em 1923, foi convocada pelo padre-geral Ledóchowski a fim de adaptar as Constituições jesuíticas ao novo Código de Direito Canônico da Igreja. A XXXII Congregação Geral, convocada por Arrupe, foi, no entanto, uma exceção a todas as regras e todos os preceden -tes. Arrupe gozava de saúde perfeita; o papa não havia pedido a convocação; não se tratava de eleger um novo padre-geral. A CG32 foi extraordinária, a julgar por essas medidas.

21. O NOVO TECIDO

1. Oitenta e oito foram ex-officio (o geral, seus assistentes, superiores provin-ciais e outros altos funcionários romanos da Sociedade). Cento e quarenta e oito tinham sido eleitos “democraticamente” em suas províncias: eles vi -nham da Europa Ocidental, dos EUA, da América Latina, Canadá, Inglater -ra, Irlanda, Austrália, Índia, Filipinas e Japão. Havia sete poloneses e três iugoslavos presentes. A Alemanha Oriental, a Tcheco-Eslováquia e a Hun-gria foram representadas por jesuítas expatriados. Em 7 de março de 1975, o número de delegados já diminuíra para 206.

22. IMAGEM PÚBLICA

1. Significativamente, o cardeal Eduardo Pironio, prefeito da Congregação pa -ra os Religiosos do Vaticano, visitou a congregação geral dos jesuítas no dia 17 de outubro. Deve-se recordar que João Paulo não havia comunicado a Pironio quando exonerou Arrupe e O’Keefe em outubro de 1981. Não houve visita de encerramento por parte de João Paulo, ou qualquer audiência geral dos 215 delegados jesuítas com o papa. O simbolismo do ato de João Paulo, ao permitir que Pironio fizesse a visita final, foi importante para Roma, on-de o simbolismo é usado com frequência para transmitir um significado: o papa estava deixando que a Sociedade voltasse para o seu lugar normal no mecanismo do Vaticano.

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2. Decretos da CG33, Parte I, parágrafo 26.

3. Decretos, Parte II, parágrafo 32.

4. Decretos, Parte II, parágrafo 46.

5. Decretos, Parte II, parágrafo 42.

6. Decretos, Parte II, parágrafo 48. 7. Há sutis, mas apesar de tudo nítidas, indicações de que o sonho de acabar

com o sistema de categorias não estava, em absoluto, morto na CG33. Veja Decretos, Parte I, Parágrafo 16. Mas o tema está abafado. Sem dúvida, será mantido e fomentado nos anos vindouros, quando surgir um momento mais favorável.

A ÂNSIA PARA CONSTRUIR O MUNDO DO HOMEM

1. Esta história é contada no folclore jesuítico com muitas variações quanto à cidade exata e à duração do caso nos tribunais.

2. A participação jesuítica na revolta das Ordens das Mulheres Religiosas Con -tra a Autoridade Romana ainda está para ser documentada.

3. O Relatório Ratzinger, 1985.

4. Vincent Miceli é um dos mais egrégios exemplos norte-americanos, nos últi-mos anos, de alguém liberado da Sociedade porque seus escritos tradicionais sobre teologia e suas críticas rudes aos desvios jesuíticos foram considerados inaceitáveis pelos superiores e pelos colegas. O exemplo mais notável de um silenciamento é o de Cornelius Buckley, S.J., historiador da Universidade de San Francisco e articulista de renome. Quando Buckley criticou abertamente as práticas litúrgicas graves, semiblasfemas, na Escola Jesuítica de Teologia em Berkeley, o presidente da EJTB, Richard A. Hill, S.J., exigiu que Buckley fosse condenado ao silêncio. Quatro anos depois de acontecer em 1980, o silenciamento de Buckley ainda é rigorosamente mantido.

5. Friedrich Nietzsche foi o primeiro a inventar um termo para expressar es sa abolição. Ele a chamou de niilismo.

6. A certa altura da história da Igreja, não se podia ir a parte alguma na promo -ção eclesiástica sem o amparo de Cluny. A Ordem de Cluny deu pelo menos três papas a Roma; e influenciou a política papal durante quase duz entos anos.

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FONTES E DADOS

Para a história recente da Sociedade de Jesus na Europa, nas Américas e na Ásia, as principais fontes foram os meios de divulgações impressos, religiosos e seculares, daquelas áreas, além de documentos e relatórios especiais dos governos. Para a história de Inácio e sua Sociedade nos últimos 440 anos, foram usadas as obras clássicas, bem como os escritos e cartas do próprio Inácio. Para jesuítas como George Tyrrell e Pierre Teilhard de Chardin, foram usados seus trabalhos publicados; no caso de Teilhard, Letters from My Friend Teilhard de

Chardin, de Pierre Leroy, S.J., foi de um interesse especial. Alguns documentos papais pertinentes à Sociedade e vindos do papa Pio XII, papa João XXIII, papa Paulo VI e papa João Paulo II são encontrados nas monumentais Acta Apostolicae

Sedis; outros estão apenas nas Acta Romana Societatis Jesu. Também disponíveis estiveram as monografias publicadas pelo Institute of Jesuit Sources e pelo American Assistancy Seminar on Jesuit Spirituality, o mesmo acontecendo com documentos, estudos e publicações de províncias da Sociedade. Certas fontes confidenciais de dados na Sociedade e na Cúria Romana prestaram informações e fizeram comentários durante todo o processo.

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