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A coleção “Meu amigo escritor” (FTD): a produção dialógica como estratégia para a
formação de leitores literários no Ensino Básico
Jaime dos Reis Sant’Anna (UEL)
Resumo: Neste artigo, apresentamos os resultados preliminares sobre uma pesquisa acadêmica
em que analisamos um projeto editorial organizado por Álvaro Cardoso Gomes (Editora FTD),
intitulado "Meu amigo escritor", cujo objetivo é formar jovens leitores, trabalhando as relações
dialógicas entre a literatura canônica brasileira e portuguesa e as novas produções intertextuais.
São cinco romances: "O poeta que fingiu" (2010); "A liberdade está atrasada" (2012); "Quase
lembranças póstumas de Machado de Assis (2014), de Álvaro Cardoso Gomes," Se eu morrer
amanhã "(2013), de Márcia Abreu e" O poeta do exílio ", de Marisa Lajolo. Apresentamos duas
questões para reflexão. A primeira questão: as produções intertextuais despertam os jovens
para ler a literatura canônica? O segundo: são os paratextos (arte de capa, título, matéria frontal,
dedicatória, epígrafes, informações de abertura, prefácio, fotocronologia, notas de rodapé e
muitos outros materiais não elaborados pelo autor), uma ferramenta eficiente para a formação
de leitores literários? Os textos teóricos para a discussão são: relações dialógicas (Mikhail
Bakhtin), intertextualidade (Julia Kristeva), paratextos (Gerard Genette) e adaptação (Linda
Hutcheon) e outras literárias críticas.
Palavras-chave: intertextualidade; paratextos; formação de leitores.
Abstract: In this paper, we present the preliminary results concerning an academic research in
which we analyze an editorial project organized by Álvaro Cardoso Gomes (Editora FTD),
entitled "My friend writer", whose purpose is to form young readers, using Brazilian and
Portuguese canonical literature. They are five novels: "O poeta que fingia" (2010); "Liberdade
ainda que tardia" (2012); "Memórias quase póstumas de Machado de Assis (2014), by Álvaro
Cardoso Gomes; "Se eu morrer amanhã" (2013), by Márcia Abreu; and "O poeta do exílio", by
Marisa Lajolo. We present two questions for reflection. The first: the intertextual productions
awaken young people to read canonical literature. The second question: the paratexts (cover
art; title, front matter; dedication, opening information, foreword; photocronology, footnotes,
and many other materials not crafted by the author) are efficient to form literary readers.
The theoretical texts for the discussion are: dialogical relations (Mikhail Bakhtin),
intertextuality (Julia Kristeva), paratexts (Gerard Genette) and adaptation (Linda Hutcheon)
and other critical literary.
Keywords: intertextuality; paratexts; formation of readers.
Introdução
O objetivo desta comunicação é apresentar resultados preliminares de uma pesquisa
acadêmica voltada para a análise de um projeto editorial organizado por Álvaro Cardoso
Gomes, e desenvolvido pela editora FTD, intitulado “Meu amigo escritor”. A proposta inicial
da Coleção é aproximar os jovens estudantes dos grandes escritores da Literatura Portuguesa e
Brasileira, por meio da produção de obras que travam relações dialógicas ficcionais com
autores luso-brasileiros.
Os primeiros cinco títulos da Coleção são: Memórias quase póstumas de Machado de
Assis, Liberdade ainda que tardia e O poeta que fingia, de Álvaro Cardoso Gomes, sobre
Machado de Assis, Tomás António Gonzaga e Fernando Pessoa, respectivamente); Morrer
amanhã, de Márcia Abreu, sobre Álvares de Azevedo; e O poeta do exílio, de Marisa Lajolo,
sobre Gonçalves Dias.
O pano de fundo que sustenta a proposta é a crescente resistência que o trabalho com o
cânone literário enfrenta, tanto por parte considerável do alunado, quanto também de número
já expressivo de professores de Língua Portuguesa no Ensino Básico que, segundo pesquisas
recentes, parecem mais inclinados às obras contemporâneas, sobretudo os chamados best-seller
seriados.
Neste artigo, questionaremos acerca da eficácia ou não deste tipo de publicação como
estratégia para a formação de leitores literários críticos no |âmbito do Ensino Básico, elegendo
para estudo de caso o romance O poeta que fingia, de Álvaro Cardoso Gomes. Distribuiremos
o estudo das relações dialógicas em dois grandes blocos: o primeiro, focando os diversos
paratextos que acompanham a edição impressa, tais como Introdução, Apresentação,
Vocabulário, Fotocronologia, notas marginais, ficha técnica de leitura, Bibliografia
especializada, indicação de sites para consulta; o segundo, analisando a construção dos
elementos da narrativa, sobretudo a maneira como os personagens servem como interlocutores-
hermeneutas da obra de Fernando Pessoa junto ao leitor.
A questão que move a pesquisa diz respeito ao questionamento acerca da eficácia deste
tipo de obra como forma de iniciar e formar leitores de literatura canônica. Algumas
preocupações movem a retomada dessa chamada. Em primeiro lugar, o acirramento do
paradoxo cada vez mais comum nas escolas e que deve movimentar as reflexões acerca das
políticas pedagógicas no que concerne à leitura literária de adolescentes no Ensino Básico: uma
parcela nada desprezível do alunado lê compulsivamente centenas e milhares de páginas da
literatura de massa, mas se mostra resistente à leitura das obras pertencentes ao cânone literário
nacional ou universal. Em outros termos, enquanto se percebe certo desconforto com a
literatura canônica presente nos programas de Língua Portuguesa, repudiando-se autores como
José de Alencar, Machado de Assis, Mário de Andrade e Guimarães Rosa, dentre outros, o
mesmo não ocorre com a leitura de autores que representam a literatura de massa.
A fim de alcançar tal propósito, o mesmo tempo, prazerosa e crítica do poeta lusitano.
Para tanto, buscamos fundamentação teórica nos textos sobre as relações dialógicas, conforme
Mikhail Bakhtin; a intertextualidade, de acordo com as perspectivas de Julia Kristeva; a teoria
da adaptação, conforme Linda Hutcheon; os palimpsestos e paratextos, segundo a proposta de
Gérard Genette; e, por fim, a apropriação do que há de mais relevante quanto à fortuna crítica
de cada um dos autores abordados nos intertextos.
Com isso, pretendemos contribuir com subsídios para a formação do docente de LP
provendo-lhe recursos teórico-metodológicos com os quais possa exercer autonomia
intelectual no trabalho de formação de leitores literários.
Relações dialógicas, intertextualidade, paratextos como estratégias para a formação de
leitores literários no ensino básico
Os principais documentos norteadores do ensino de Língua Portuguesa (PNNEM;
DCNEM; OCEM; DCE/PR) atribuem ao professor de língua materna o trabalho escolar com
vistas à formação de leitores literários. Todavia, para além dos estudos acerca da Literatura –
sobretudo os rudimentos teóricos e a historiografia literária (períodos e estilos) – e para além
do incentivo à simples leitura de textos literários, tais documentos apontam para a necessidade
de formação de leitores críticos. E por leitores literários críticos, entenda-se a capacidade de o
leitor capaz de perceber nuances inerentes ao texto literário.
Para os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998), o objetivo do trabalho com a leitura
é “a formação de leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a
extensão e a profundidade das construções literárias” (BRASIL, 1998: p. 27). Diretrizes CE do
Paraná, estado em que atuo na formação inicial e continuada dos professores de Língua
Portuguesa, a formação de leitores literários críticos se concretiza quando o alunado se torna
apto para o “reconhecimento das vozes sociais e das ideologias presentes no discurso”, quando
tem autonomia intelectual para “a construção de sentido de um texto literário e na compreensão
das relações de poder a ele inerentes” (p. 57).
Tais documentos norteadores do ensino de língua materna apontam a leitura como “um
ato dialógico e interlocutivo que envolve demandas sociais, históricas, políticas, econômicas,
pedagógicas e ideológicas de determinado momento” (DCE, 2008, p.56); e propõem que a
elaboração do conteúdo estruturante e a abordagem metodológica da disciplina “Língua
Portuguesa” considere, para além dos temas, da finalidade e dos possíveis interlocutores, uma
atenção especial para o estudo acerca “das vozes presentes no discurso e o papel social que elas
representam, das ideologias apresentadas no texto, da fonte, dos argumentos elaborados, da
intertextualidade” (DCE-PR, 2008, p.74).
Entre educadores, duas trincheiras também se erguem. De um lado, os que entendem que
essas leituras pouco ou nada contribuem para a formação de leitores críticos, pois elas geram
alienação mantenedora de um status quo, alimentam conformismo perante uma sociedade
conservadora, atendem somente às demandas da chamada indústria cultural, produzindo um
esvaziamento da complexidade estética da obra literária e suas funções transformadoras. De
outro lado, os que festejam todos os tipos de leitura literária, seja como forma de incentivo ao
protagonismo libertário e democrático do alunado quando de suas escolhas pessoais, seja como
valorização do prazer no ato de ler demonstrado pelos leitores, seja como porta de entrada para
a leitura de obras canônicas da literatura, seja pela oportunidade de o professor aproximar-se
das representações da cultura de massa que permeiam o universo adolescente.
O que move o estudo, portanto, diz respeito à constatação de uma complacente
ingenuidade por parte de alguns educadores que veem neste tipo de produção cultural o
famigerado degrau para a formação de leitores críticos, uma postura que vai de encontro às
propostas dos principais documentos oficiais norteadores do ensino de Língua Portuguesa no
Ensino Básico.
Ao abordar a leitura como parte do processo de ensino e aprendizagem de Língua
Portuguesa nas escolas, os documentos oficiais norteadores do ensino de Língua Portuguesa
no Ensino Básico têm em comum o propósito de formar leitores capacitados para perceber
criticamente este fenômeno. Os Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos
do ensino fundamental (1998) apontam que tal leitor deve ser habilitado para “ler as
entrelinhas, identificando, a partir do que está escrito, elementos implícitos, estabelecendo
relações entre o texto e seus conhecimentos prévios ou entre o texto e outros textos já lidos”
(PCN, 1998, p.70), evoluindo da “leitura mais ingênua que trate o texto como mera
transposição do mundo natural para a leitura mais cultural e estética, que reconheça o caráter
ficcional e a natureza cultural da literatura” (PCN, 1998, p. 71). Assim, para os PCNs, toda
leitura, e de modo peculiar a leitura de textos literários, deve contribuir para “a formação de
leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão e a
profundidade das construções literárias” (PCN, 1998, p.27).
As Orientações Curriculares do Ensino Médio (2006) são ainda mais contundentes ao
tratar a leitura literária e sua função na formação do leitor do Ensino Básico. Destacando a
fruição do texto literário, o valor do lúdico e a contemplação estética – mas tomando as
precauções para não confundir esta perspectiva com o simples divertimento –, o documento
defende o estudo da literatura no Ensino Médio, principalmente, devido a sua função como
“fator indispensável de humanização”. Para as OCEMs,
a fruição de um texto literário diz respeito à apropriação que dele faz o leitor,
concomitante à participação do mesmo leitor na construção dos significados
desse mesmo texto. Quanto mais profundamente o receptor se apropriar do
texto e a ele se entregar, mais rica será a experiência estética, isto é, quanto
mais letrado literariamente o leitor, mais crítico, autônomo e humanizado
será. (OCEM, 2006, pp.60-61).
As Diretrizes Curriculares do Ensino Básico do estado do Paraná (2008), na mesma
direção, compreendem a leitura literária como ferramenta essencial para despertar o espírito
crítico e criador dos alunos, desenvolvendo sua capacidade de pensamento questionador e a
sensibilidade estética, e habilitando-o para o reconhecimento de vozes sociais e de ideologias
presentes nas relações de poder a ele inerentes (DCE, 2008, p.57). O documento enfatiza a
função formadora da literatura, conforme proposição de Antonio Candido, no célebre texto “A
literatura e a formação do homem” (1972), a qual consiste em lidar com a formação do sujeito,
atuando como instrumento de educação, ao retratar realidades não reveladas pela ideologia
dominante. Neste sentido, segundo a DCE-PR, por meio da leitura literária, o Ensino Básico
visa a
propiciar o desenvolvimento de uma atitude crítica que leve o aluno a
perceber o sujeito presente nos textos e, ainda, tomar uma atitude responsiva
diante deles. Sob esse ponto de vista, o professor precisa atuar como
mediador, provocando os alunos a realizarem leituras significativas [pois]
somente uma leitura aprofundada, em que o aluno é capaz de enxergar os
implícitos, permite que ele depreenda as reais intenções que cada texto traz.
(DCE, 2008, p.71).
Neste ponto das reflexões das DCEs a respeito da complexidade inerente às leituras
literárias e aos diversos níveis de intencionalidades e interesses dos representantes da
“ideologia dominante”, destaca-se a preocupação explicita com a capacitação do professor de
Língua Portuguesa para atuar como medidor entre texto e aluno, a fim de “posicionar-se como
um leitor assíduo, crítico e competente, [que] entenda realmente a complexidade do ato de ler”
(p.74); um professor para o qual “o texto não serve apenas para o aluno identificar, por
exemplo, os adjetivos e classificá-los; [mas que considera o que] o texto tem a dizer, que há
ideologias, vozes, e para atingir a sua intenção, utiliza-se de vários recursos que a língua
possibilita” (DCE, 2008, p.79).
A escolha da produção de determinados autores certamente servirá como importante
fonte para os estudos intertextuais, constituindo-se como acervo com o qual se busca a
construção de paradigmas para os estudos de intertextualidade na LIJBC, e não deve impedir a
incorporação de outros autores e obras não mencionados. No entanto, vale ressalvar que a
escolha de certos autores e obras gera alguns riscos, sobretudo por tratar-se de uma abordagem
que pretende discutir aspectos ideológicos. Por um lado, arrisca-se perder o foco do conjunto
da produção intertextual enquanto fenômeno heteróclito, e a discussão acerca da natureza dos
motivadores ideológicos na construção dos mecanismos intertextuais em obras da LIJBC; e,
por outro – e mais grave –, ao tomar um autor ou uma obra específica para estudo, é possível
distorcer a realidade por conta do estudo de um caso isolado, tornando-se o estudo de um autor
ou de uma obra um discurso de matiz ideológico, pois pinçar exemplos da realidade para
comprovar as “distorções da realidade” é marca operacional comum da ideologia. Em suma, o
discurso sobre ideologia é, por sua natureza, também ideológico.
A consciência desta dinâmica, portanto, é condição axial para o estudo de determinados
autores e obras paradigmáticas com vistas à abordagem da ideologia na literatura infantojuvenil
brasileira contemporânea, pois tais estudos têm sido realizados e vem contribuindo, na
agregação de novos conhecimentos, para a compreensão do todo. Entretanto – nunca é demais
ressaltar –, ao tomarmos como hipótese de trabalho o conceito inicial de ideologia como um
“processo pelo qual os interesses de certo tipo são mascarados, racionalizados, naturalizados,
universalizados, legitimados em nome de certas formas de poder” (EAGLETON, 1997:178),
importa-nos mais a compreensão do conjunto sequencial e particular de ações enquanto
fenômeno, o qual somente pode ser contemplado no conjunto dos elementos que envolvem os
mecanismos intertextuais na LIJBC, o que não ocorre quando se restringe ao estudo de casos
isolados. Esse cuidado metodológico é explicitamente compartilhado pelas OCEMs:
Sendo assim, a produção, a recepção e a circulação da literatura por quaisquer
que sejam os públicos-leitores, crianças, jovens ou adultos, não mais podem
ser estudadas como fenômenos isolados das outras produções culturais, pois,
caso contrário, corre-se o risco de apresentar uma visão distorcida das
condições que possibilitam a apropriação desses bens. (OCEM, 2006, p.61).
Tais preocupações também estão presentes nos “textos clássicos” que conceituam
dialogismo, intertextualidade, ideologia, polifonia e nas reflexões que os relacionam com a
formação de leitores. São recorrentes na produção acadêmica as definições sobre
intertextualidade, partindo das reflexões do Círculo de Bakhtin, sobretudo no que se refere à
natureza dialógica do discurso, abrindo espaço para conceitos correlatos. Desses conceitos,
destaco alguns de especial interesse para os estudos literários.
Irene Machado (1995, p.258), ao abordar a prosaica dialógica de Mikhail Bakhtin, mostra
que o linguista russo concebeu o dialogismo como “a ciência das relações e da diversidade”,
na qual vincula a análise estética às novas formas de compreensão do tempo e do espaço, pois,
“há uma relatividade na percepção única porque, entre a mente que percebe e a coisa percebida,
há uma diversidade de focalizações”. Bakhtin, em Questões de literatura e de estética: a teoria
do romance, afirma que a língua tem como principal marca a dialogia, sendo seus enunciados
marcados pelo caráter ideológico, nos quais se observa uma interação tensa e um conflito entre
sua palavra e a do outro, revelando um processo de delimitação dialógico mútuo. O dialogismo,
enquanto “ciência das relações de sentido entre enunciados na comunicação verbal”
(BAKHTIN, 1998, p.156), revela a natureza híbrida da língua, que tanto pode constituir
convergência quanto divergência, tanto pode estabelecer adesão quanto ruptura, tanto pode
indicar complemento quanto embate; ou seja, as relações dialógicas se revelam como espaços
de tensão entre os enunciados. Segundo Fiorin (2006, p.162), tal hibridismo dialógico, ao
estabelecer relações entre enunciados, se constitui como interdiscursividade; e quando as
relações dialógicas se estabelecem entre textos, temos a intertextualidade.
Julia Kristeva, em texto de 1967, retoma o conceito de dialogismo proposto pelo Círculo
de Bakhtin e dá notoriedade à palavra intertextualidade. Ela aponta que, na literatura, “o
significado poético remete a outros significados discursivos”, criando um “espaço textual
múltiplo”, ao qual chama de intertextualidade; ou seja, “a absorção de uma multiplicidade de
textos (de sentidos) na mensagem poética que, sob outro ângulo, apresentaria como focalizada
por um sentido” (KRISTEVA, 2005, p.185). Daí a famosa definição de Kristeva sobre
intertextualidade como “um mosaico de citações, todo texto como absorção e transformação
de um outro texto”, absorção e réplica a um outro texto, um “cruzamento de superfícies
textuais, um diálogo de várias escrituras” (KRISTEVA, 2012, p.163). Assim, comenta Faraco
(2009, p.70), “o processo dialógico é concebido como infindo, inesgotável”. Ou, em termos
empregados por Fiorin (2012, p.165), a intertextualidade diz respeito à “referência ao Outro,
tomado como posição discursiva: paródias, alusões, paráfrases, estilizações, citações,
repetições, reproduções de modelos, de situações narrativas, de personagens, variantes
linguísticas, lugares comuns, etc.”
A tipologia das práticas intertextuais, os diversos mecanismos de intertextualidade, as
idiossincrasias das intertextualidades interartes, as relações com as “novas” linguagens do
ciberespaço, dentre outros, são tópicos com vasta produção acadêmica e com as quais
pretendemos lidar ao longo do Projeto, conforme encontramos nas obras de fundamentação
teórica alistadas na bibliografia e em outras que certamente serão agregadas ao longo da
pesquisa. Além dos autores do Círculo de Bakhtin, destaco, especialmente, as contribuições de
Kristeva, Samoyault, Bouché, Hutcheon, Stam, Koch, Brait, Faraco, cujos postulados
buscaremos incorporar à fundamentação teórica.
Todavia, o recorte específico desta pesquisa exige a discussão de temas que vinculem o
diálogo intertextual presente na LIJBC com os aspectos ideológicos, sobretudo o debate acerca
dos motivadores ideológicos que atuam na construção dos mecanismos de intertextualidade.
Ainda segundo Faraco (2009, p.48), as práticas de intertextualidade enquanto “produtos da
criação ideológica, são “objetos dotados de materialidade”.
A Coleção “Meu Amigo escritor”, da Editora FTD: elaboração do projeto e recepção do
público leitor
A Coleção “Meu amigo escritor” é formada por cinco títulos, todos eles escritos por
experientes professores de Literatura e Teoria Literária, com carreiras acadêmicas
consolidadas.
O primeiro título foi publicado em 2010: O poeta que fingia, de autoria do ex-professor
de Literatura Portuguesa da Universidade de São Paulo, Álvaro Cardoso Gomes. A obra – que
aborda a vida e a obra do poeta e prosador português Fernando Pessoa – recebeu o 2º lugar do
Prêmio Jabuti 2011, na categoria Melhor Livro Juvenil. Na resenha comercial disponível no
site da editora FTD, lemos:
Nessa história, o poeta Fernando Pessoa torna-se um personagem por meio
da imaginação do menino JOÃO FERNANDO. Órfão de mãe e
traumatizado pela relação complicada com o pai, o garoto vê o poeta como
um pai espiritual, que abre seus olhos para vida e o insere no mundo da poesia.
Grande parte das falas de Fernando Pessoa na história são inventadas, sendo
algumas baseadas em registro em cartas ou em diários. Outras são retiradas
de poesias suas ou de seus heterônimos. Assim, o livro não somente estuda a
obra deste grande poeta, mas também, revela sua importância na literatura
mundial.
O segundo título é O poeta do exílio, de 2011, de autoria da professora de Teoria Literária
e Literatura Infantojuvenil da Universidade Estadual de Campinas e atual professora de
Literatura na pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Marisa Lajolo. A
Academia Brasileira de Letras conferiu ao romance de Lajolo – que dialoga com a vida e a
obra do poeta brasileiro Antônio Gonçalves Dias – o Prêmio de Melhor Livro Juvenil, em
2011.Sobre a obra, a resenha da editora FTD registra:
PEDRO e JÚLIA estavam animados. Sua banda era finalista do festival
estudantil Vozes de Classe. O regulamento exigia que as músicas se
inspirassem em poetas brasileiros. Cada banda interpretou essa exigência à
sua maneira. Precisavam agora animar a torcida. Os jovens criam cartazes,
lançam torpedos, folhetos etc. E precisam também reunir informações sobre
Gonçalves Dias, o autor do poema que deu origem à música classificada.
Então, Pedro teve a ideia de criar um blog especial. Nasceu assim o
BLOGDODIAS. Ali cabia tudo o que se relacionasse a Gonçalves Dias:
poemas, cartas, artigos de jornal, documentos da época do poeta… Enfim, o
blog agitou a galera e acabou se transformando em um completo dossiê sobre
o poeta. No meio deste agito, Pedro e Júlia pensam em namoro…
Liberdade ainda que tardia é a terceira obra da Coleção “Meu amigo escritor”. Publicada
em 2012, o autor Álvaro Cardoso Gomes propõe uma ficção em que dialoga com elementos
biobibliográficos do poeta árcade Tomás Antônio Gonzaga. Na resenha elaborada para a
divulgação comercial do livro, constam as seguintes informações:
Neste livro, apoiado por meticulosa pesquisa sobre Tomás Antônio Gonzaga
e sua época, Álvaro Cardoso Gomes oferece uma bela introdução, não só à
obra do poeta como também à sua pessoa, transformada em personagem que
dialoga, ao longo da narrativa, com um adolescente, ANTÔNIO MANUEL
AZEVEDO. Este, como legítimo representante fictício dos jovens leitores,
faz ao poeta as perguntas que possivelmente gostaríamos de fazer. Dessa
maneira, os diálogos entre Gonzaga e seu jovem amigo dão ao livro uma
dimensão pedagógica, na qual se colocam questões não apenas de literatura,
mas também de vida.
O quarto título da Coleção é Morrer amanhã, publicado em 2014, cuja autora, Márcia
Abreu, é professora de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas. Trata-se de
uma elaborada ficção que dialoga com elementos biográficos do juvenil poeta romântico
Álvares de Azevedo, sobretudo os conflitos juvenis responsáveis pelo percurso formativo que
resultará na construção de sua obra poética. Mais informações encontramos na resenha a seguir:
No mesmo dia (12 de setembro) do ano de 1831, nascem dois meninos numa
casa em São Paulo. Um é filho dos donos da casa; o outro, filho de uma das
escravas da família. O filho da senhora seria mais tarde o poeta Álvares de
Azevedo; e o da escrava, Tonico, seria desde criança grande amigo do
escritor. A invenção do personagem fictício TONICO (negro, filho de
escrava) revela-se muito oportuna para a autora discutir o tema da escravidão,
em plena vigência no Brasil na época – também porque Álvares de Azevedo
foi um vigoroso defensor da liberdade para todos. O texto percorre a vida do
poeta que, apesar de ter vivido apenas 20 anos, deixou uma obra perene. Ele
é autor do famoso poema “Se eu morresse amanhã”. No romance, Azevedo
consegue que seu pai conceda liberdade a Tonico, que, assim, pode
acompanhar o poeta de perto até o fim da vida, transformando-se no grande
responsável pela preservação da obra de Álvares de Azevedo.
Em Memórias quase póstumas de Machado de Assis, publicado em 2014, o autor Álvaro
Cardoso Gomes constrói uma ficção narrada em primeira pessoa, na qual “resgata” os diários
de fim de vida do escritor Machado de Assis. Neste romance – laureado com o 3º lugar do
Prêmio Jabuti 2015, na categoria “Melhor Livro Juvenil” – para além do diálogo intertextual
com a obra de Machado, elabora-se uma trama policial engendrada no Rio de Janeiro do início
do século XX. No site da editora FTD, a resenha promocional do livro indica:
Sentindo que ia morrer logo, o escritor Machado de Assis decide registrar
num caderno alguns fatos relevantes de sua vida: a infância pobre, a relação
com a família, a lenta ascensão social, o amor por Carolina, além de sua
trajetória de escritor. Este foi o mote para a criação desta obra, na qual,
entremeando fatos reais e ficcionais, Machado de Assis é mostrado na
intimidade do dia a dia. Conta também sobre sua amizade com os escritores
de seu tempo, como José de Alencar, Manuel Antônio de Almeida e Euclides
da Cunha. Um dia, o escritor adota como secretário o filho da lavadeira da
família, HERMENEGILDO. O rapaz cuida da limpeza e organização do
escritório nascendo daí uma bonita amizade. Inteligente e bom leitor,
Hermenegildo com frequência conversa com Machado sobre seus romances,
contos e crônicas. No fim, o jovem amigo é quem acaba por finalizar o relato
do grande escritor.
Hermeneutas e paratextos: as marcas identitárias da Coleção Meu amigo Escritor
A coesão do projeto editorial é alcançada a partir da manutenção das principais marcas
identitárias da Coleção. Os textos ficcionais têm entre 200 e 250 páginas, em linguagem
acessível ao público jovem a que se destina – notadamente o alunado que compõe o 8º e 9º
Anos do Ensino Fundamental II e o Ensino Médio – com paratextos variados.
Dois recursos se destacam em todos os títulos da coleção: a preponderância dos
paratextos e a construção de personagem que sirva como interlocutor hermenêutico da criação
literária que se presente apresentar ao leitor em formação.
Paratextos: peritextos e epitextos
Para Gerard Genette (2009, p.87ss), são diversos os elementos constitutivos do
paratexto. Dentre eles, destacamos os paratextos que têm especial importância para o estudo
das relações dialógicas presentes na Coleção “Meu Amigo Escritor”: Introdução,
Apresentação, Vocabulário, Fotocronologia, fotoblog, dedicatória, notas marginais, notas de
rodapé, epígrafes, ilustrações, ficha técnica de leitura, biobibliografia, Bibliografia
especializada, indicação de sites para consulta. Tais paratextos não devem ser lidos na
marginalidade da obra – como se fossem textos secundários, como se fossem apêndices de
importância menor –, mas na força discursiva de continuidade textual. Para Genette, “se o texto
propriamente dito é da responsabilidade exclusiva do seu autor, o mesmo não se passa com
o paratexto que depende, também, em alguns casos, unicamente do editor”.
Segundo Genette (2009), os paratextos se dividem em peritextos e epitextos. Os
peritextos são os elementos que apresentam o texto – referem-se à uma categoria espacial
marcada pela continuidade ou unidade da obra. Em geral, os elementos peritextuais circundam
o texto dentro do próprio espaço da obra, estando em continuidade direta, como o nome do
autor, os títulos e intertítulos e toda materialidade daí advinda, como as indicações de coleção,
capa, ilustração, dentre outros.
O epitexto, por sua vez, também está situado no entorno do texto. Todavia, há uma
distância marcada por uma descontinuidade em relação à obra. Os elementos epitextuais são
divididos em públicos, os que tomam forma nos suportes midiáticos, como as entrevistas do
autor, release, debates, resenhas etc., e os privados, como correspondências e diários que, com
o tempo, podem passar a integrar a obra.
Dentre os vários paratextos, o prefácio se oferece, muitas vezes, como um dispositivo
criador de regras, de compromissos, de expectativas e até de interpretações fornecidas
previamente que condicionarão a leitura.
Tanto os peritextos como os epitextos – classificação utilizada por Genette (2009) para
referir aos paratextos de uma obra – organizam o hipertexto de cada obra, numa relação direta
com os hipotextos, imprimindo uma relação de continuidade, de ampliação comunicacional de
sentidos do texto. Tais recursos contribuem para a sedimentação do processo de formação de
leitores literários, à medida em que aproximam o leitor do texto canônico, relacionando-o com
a recepção diacrônica das obras apontadas.
Alguns peritextos são de especial valor no trabalho com os títulos da Coleção “Meu
Amigo Escritor”: as ilustrações, os boxes (notas explicativas editadas às margens das páginas
da obra), s sites de pesquisa. Nos cinco títulos da Coleção, as ilustrações coloridas são de
Alexandre Camanho.
O segundo elemento que se destaca no conjunto da Coleção é a figura recorrente do
personagem que se apresenta como um tipo de interlocutor junto ao personagem-escritor com
que se lida no intertexto. Há similaridades entre eles: são jovens ou adolescentes –
público escolar a que se destina a Coleção e com o qual se pretende estreitar o diálogo
intertextual – que se despertam em algum momento, extraído do cotidiano, para a leitura crítica,
investigativa, da obra do autor do qual se aproximam. Esses intérpretes da obra, representantes
da hermenêutica literária destes autores são diversos: temos o jovem garçom português João
Fernando, especulando o processo criativo dos heterônimos de Fernando Pessoa, em O poeta
que fingia; temos o casal Júlia e Pedro e o coletivo do “BlogdoDias”, interessados na obra de
Gonçalves Dias, com cuja obra participarão de um festival de música, em O poeta do exílio;
temos António Manuel Azevedo, adolescente que sai da roça e vai trabalhar em Vila Rica na
casa do juiz Tomas Antonio Gonzaga e com o qual, a partir de então, começa a travar
discussões acerca não só de sua obra poética e satírica, como também dos conflitos gerados
pela ação política que resultou na Inconfidência Mineira, em Liberdade ainda que tardia;
temos o escravo Tonico, que se relaciona com o jovem estudante Álvares de Azevedo, em Se
eu morrer amanhã.
O uso recorrente do interlocutor para ser vir de intérprete do autor canônico chega ao
ápice com o adolescente Hermenegildo, de Memórias quase póstumas de Machado de Assis.
O protagonista – cuja antroponímia é alusão explicita à capacidade sistemática para a
interpretação do texto literário – é interlocutor constante nas conversas com o personagem
Machado de Assis e nas propostas de compreensão de sua obra. Desta forma, a estrutura da
Coleção identifica nestes protagonistas-hermeneutas marcas que espelham o perfil do
adolescente que ocupa os bancos escolares onde os canônicos são lidos e estudados.
Considerações finais
A pesquisa está em andamento. Todavia, a aplicação de alguns títulos junto ao alunado
– sobretudo de 9º Ano do Ensino Fundamental II e do 1º Ano do Ensino Médio – aponta para
os primeiros resultados. E, à medida em que as informações coletadas forem sendo avaliadas,
analisadas e publicizadas, podem se tornar em ferramenta para a reflexão do professor de língua
materna envolvido com o trabalho de formação de leitores literários críticos.
Com isso, pretendemos contribuir com subsídios para a formação do docente de LP
provendo-lhe recursos teórico-metodológicos com os quais possa exercer autonomia
intelectual no trabalho de formação de leitores literários.
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