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Mataram um amigo meu

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Com a limitação de espaço própria de um conto, Zak (Zacarias) escreve na sua primeira obra uma autêntica imersão paulatina ao mundo da diferença e da marginalização. Ainda que a um nível inconsciente, o leitor compreende o efeito que a crueldade pode ter na vida de um ser humano mas, no meio de tudo, a vida reserva-nos algumas surpresas e é isso que se descobre na leitura deste excelente livro.

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O Círculo dos Autores (ainda) Desconhecidos, é uma comu-nidade livre que tem como único objetivo caminhar lado a lado com todos aqueles que gostam de literatura ou outras artes criativas e que, por serem anónimos cidadãos, também queiram editar e divulgar as suas obras. enfim, dar a conhe-cer e transmitir a cultura que carregam em si. Não interferimos nem somos responsáveis pelo conteúdo das criações dos Autores, o nosso papel é participar no pro-cesso de edição para que depois possam ser divulgados nos canais livres e gratuitos que existem ao nosso alcance ( neste momento são o nosso site, Facebook e YouTube). É para isso que existimos, para não deixarmos o vosso so-nho morrer! Porque uma palavra escrita ou uma emoção partilhada, nun-ca morre.

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Zak Zacarias

Mataram Um

Amigo meu

Edições Círculo de Autores ainda Desconhecidos

Ano 2013

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Os seus passos detêm-se num recanto de um jardim, pequeno lugar que encontrou no cimo da diminuta e apertada estrada que havia subido a pé, perdido, tal como ele. Descalça-se junto a um banco de pedra com a agilidade de uma sombra. Pousou lentamente os sapatos e aproximou-se de um muro pouco alto que dava para um vale escuro em precipício, escarpado e em ruína, para baixo. Nada podia dissuadi-lo nem detê-lo. Preparava-se para saltar, sem um clarão que assim o indicasse nos seus olhos, baços, vermelhos, alojados no fundo de umas covas negras em redor. E foi assim que aconteceu.

“”

Ainda o tempo de reconstituir esta sua decisão não tinha terminado e já a imagem de Mica C. surgia estendido no chão, sob uma toalha de um líquido de cor carvão, inolvidável, que havia gorgolejado da sua boca. Chovia nessa improvável noite de inverno, as ruas apresentavam o espelho de água que piscava às cores o reflexo das luzes dos carros e da iluminação pública. Enquanto caminhava num movimento espaçado, conseguia ouvir o ruído da água a bater nas telhas e a escorrer pelos algerozes até ao chão. Silhuetas indefinidas movimentavam-se para cá e para lá, enquanto se dirigia em direção ao destroço de vida que um dia fora Mica ou MC como era conhecido no Bairro. Mataram um Amigo seu. No início daquela noite estava no seu quarto, preparado para mais uma incessável caminhada pela madrugada, ao som dos múltiplos ruídos emaranhados da cidade. Costumava ficar ali, horas a fio, dentro do quarto, à escuta de uma palavrinha de Deus que lhe serenasse a raiva

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que o rasgava em mil pedaços a cada momento que passava dos seus dias. De outro modo, ele não teria para onde ir, senão para o aconchego do viaduto e tudo o que a noite inevitavelmente trazia. Porém, na escuridão daquele inverno, acercou-se da janela quando pressentiu o clarão forte daquela estrela a cair, que brilhou mais e mais do que nunca no seu túmulo. Sem saber bem porquê, foi uma luz que lhe fez sobressair ainda mais a tristeza e as sombras. Pressentiu que esse não seria assim um sinal de sorte. Por razões acrescidas, aquele foi um dia em que MC precisou dele mais do que nunca. Pegou no telemóvel roubado e com os dedos escuros e longos, percorreu as teclas enquanto marcava o número que havia de o levar a ele. Ficou em escuta e esperava pé ante pé pela resposta. O som surgia sincopado, do outro lado do mundo, onde quer que ele estivesse, o bip simétrico de espera soava-lhe interminável e opressor. “Atende, preciso falar contigo, atende”. Sentia que algo perverso tinha acontecido lá fora. Já era tarde. Chegou-lhe não sabe de onde uma imensa vontade de chorar, lágrimas que não tinham sido invocadas arderam-lhe nos olhos, como uma fogueira do inferno, que ardia, mas não se via. “Onde estavas tu MC, onde estava eu que não estava lá, contigo. Eu que te enganei dizendo-te que para estar junto não era preciso estar perto e sim do lado de dentro”. Os passos leves e soltos dele ecoavam-lhe na memória enquanto o revia a dançar o rap ao som de Eminem. MC era tao puro que sentia branco enquanto ele só conseguia ver negro. Continuava a caminhar em frente, de lábios trancados, enquanto a bófia afastava os curiosos com desprezo, todos niggas como ele. Diziam entre dentes que aquele sítio era local do crime, da droga e violência. Sempre foi assim, “eles comiam a carne, os pretos que comessem a banha”. Era melhor que naquela noite não lhe dissessem nada. “Por

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favor, não me ponham fora daqui”. Sentia-se um animal só e indefeso e bastavam-lhe os olhares de odio como se ele não fosse da mesma raça. A chuva continuava a cair fina e escorria pelo capuz. Aproximou-se do candeeiro que já só emitia uma luz ténue a banhar o limiar das poças de água com a sua cor esbranquiçada e oscilante. Quando chegou, ficou suspenso a escassos metros do seu amigo estendido no chão, irmão de cor. Deus lhe dê coragem para encarar a situação de frente. Enquanto isso, olhava temeroso para o lado, vislumbrando aqui e ali os ladrilhos pintados, aqui e ali partidos, aqui e ali completados com cimento. Ouvia os passos de borracha dos polícias, as botas cardadas e ruidosamente a resvalarem irritantemente pelo chão, escuras, ameaçadoras. Ouviu também os passos silenciosos e macios de alguém que se aproximava pelas costas. No entanto eram denunciadores, suaves como uma respiração serena e tranquila. Virou-se para o lado. Ela trazia consigo lágrimas no rosto, quase que lhe sentia o gosto. Deram um abraço apertado, gesto desesperado, saudade reciproca, entrega sem fim. “Mataram o MC” disse-lhe. “Não mataram nada jovem, ele matou-se, com veneno”, corrigiu o polícia. Desejou retrucar qualquer coisa, procurou dentro da sua cabeça confusa uma palavra para contrariar o que o branco de farda lhes tinha dito. Mas Deus ou a sua consciência negaram-lhe essa vontade, “Quem tem mais culpa? Quem matou ou quem não salvei?”. Sentia-se tão cansado. Com um sentimento de omissão recordou as últimas palavras que trocaram, discutidas no calor da discussão. Ambos haviam proferido o que não deviam. Desta vez ele não quis estar a seu lado, naquele momento difícil. O seu coração ficou sem voz, mudo e mandou aprisionar o mal lá bem no fundo. Ele havia virado as costas e começado a subir as escadas junto à ponte.

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A chuva batia mais do que agora, ensopados os blusões coloridos, sentiu-se o formar do silêncio, ainda lhe segurou o pulso para que parasse de subir mais degraus, olhar triste e perdido. “Não percebi. Se tivéssemos conversado um pouco mais ter-me-ias segurado contigo.” A culpa é deste sistema sujo, que nos dá as armas à espera que nos matemos uns aos outros. Deste sistema que só dá miséria e transforma em sangue a água e o vinho. Foi este sistema que lhe trouxe a saudade mas em troca lhe tirou uma amizade. Sentia-se fraco, as pernas estavam bambas. Agachou-se e sentou-se no chão, encostado ao candeeiro, imóvel no limiar da oleografia reproduzida na rua. Todos os dias acordava e todos os dias sentia que a vida lhe era suspensa desde o momento que abria os olhos até os fechar novamente. Para além disto, nada mais existia senão as noites de espera por uma luz que lhe iluminasse o futuro. O que ele não sabia é que MC era o seu refúgio e ele o dele. Quantas vezes, enquanto crianças, abandonadas pela rua, se fazia frio, um era o cobertor do outro. Ele cresceu sem Mãe, o MC sem o Pai que saiu de casa e não voltou mais. Ninguém lhes podia ocupar o lugar, ninguém. Quem lhes enxugava as lágrimas senão eles próprios? Mas o MC estava a rir, sempre a rir. Era um estroina, um trota mundos, com a sua vontade atravessava oceanos e revirava o mundo só para saciar o seu imenso apetite de conhecer um pouco mais além. “Aposto que o envenenaram”, murmurou com rancor. Mas ela disse “que sabes tu sobre isso, tem calma”. “Plantam o odio nos nossos corações e parece que sentem prazer em colher os nossos corpos sem vida estendidos no chão ou a boiar no rio”. MC não pertencia a nenhum gangue, o rap era a arma dele, era a bala que lhe atravessara o coração. Era o seu mito, a sua salvação. Pelo seu lado, entrar para um gangue foi um movimento natural. Desde pequeno crescera a olhar para a parede do prédio

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cravejada de balas. Aprendeu a odiar a policia cuja ação só trazia mais dor aos que ali viviam. Pertencer ao gangue era um ato de coragem, era ser o soldado que unia pela força os que eram marginalizados. Marcas de balas nos muros, marcas de balas nos corpos, cortes, furos, fendas, cicatrizes, tatuagens. No território acidentado do corpo, as marcas contavam histórias da violência e tornava-se assim possível o silêncio das palavras. Sobre as marcas da violência ninguém dizia nada, elas falavam por si próprias. Era como se os corpos pudessem falar através de sinais, explicitando-se como texto legível de signos de inscrições mudas, consentidas. Estava curvado e agarrado aos joelhos, contra o peito. No pulso ostentava a marca eterna de líder, a tattoo com um 12 em letras grafitadas, um direito conquistado apenas por aqueles que demonstravam mais coragem e sentido de liderança. Sem que ninguém lho tivesse expressamente transmitido, o olhar ameaçador dos polícias não enganavam. Mas ele esperava por eles, olhando-os de longe, folheando-os um a um, como se os colocasse numa lista, na mira de uma fusca. Sabia que ali não se atreveriam a fazer-lhe mal. Em cada esquina, em cada janela estava um mano que lutaria por ele, pretos 100% guerreiros, que não fogem do Blitz. MC e ele tinham a mesma idade e nasceram precisamente no mesmo dia como se tivessem sido abençoados pela mesma cegonha que os trouxe. Fariam dezassete anos no mês que vem. Haviam prometido um ao outro que, estivessem onde estivessem, fariam de tudo para estar juntos. Era uma herança imaterial, fruto da sua união, invisível para os demais, mas muito concreta para ambos. Um ritual onde ninguém entrava, a não ser que o fosse por vontade de ambos. Um bom exemplo disso era a Kieza, a nina que os conquistou aos dois. O seu peito era um mundo

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rosa que só ambos podiam ter. Kieza dizia-lhes que os dois faziam parte de um corpo só. “Querem saber qual dos vossos braços é melhor? O esquerdo ou o direito? Cada braço tem a sua importância, seu jeito de ajudar”. Era vê-los a passear pelo bairro, ela no meio, imagem de instantânea eternidade, uma mão na mão de um, a outra mão na mão do outro. E quando se despediam, num assomo de afeto, era vê-los a cheirar o seu cheiro na mão de cada um.

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A chuva continuava alternando entre a suavidade, caindo mansa, para depois descambar numa fustigação de água rija. O médico do INEM aproximou-se com um plástico branco. Tentava cobrir o corpo. Um polícia gordo e sabujo pegou-lhe no braço. Impedia-o de proteger o corpo. Dizia que o médico devia deixá-los fazer o trabalho. Ele retorquiu questionando em que é que cobrir o corpo do pobre rapaz iria impedir o trabalho da polícia. “Não nos venha ensinar como devemos relacionar com esta escumalha”, disse num guincho agudo e pedante. Susteve a respiração e olhou de longe para o agente, franzindo os olhos num arreganho de boca. “Será sempre assim”, recordava nos versos cantados de MC. “Para eles, preto é ladrão. O racismo é burrice, mas o mais burro não é o racista, é o que pensa que o racismo não existe”. Já ele fora sempre mais radical e pensava de outra forma, “Odeio estes filhos da puta da bófia. Acham que somos uns seres desprezíveis de que se podem servir para limparmos a merda deles”. Aquela seria para muitos uma noite impossível de explicar, nunca ninguém viu o feroz Líder dos CripZ do Monte Abraão sem reagir à atitude daquele imbecil. Talvez não tivesse palavras, ou quem sabe as tivesse mas não as conseguisse unir, ou pelo menos

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assim acontecia, naquele momento de surpresa para todos quantos assistiram das janelas de suas casas, nos passeios da rua até onde era possível estar sem a polícia os afastar. No fundo, ficaram assombrados por essa atitude passiva de quem era conhecido pela bravura violenta com que combatia a lei dos brancos, a lei do silêncio, a lei do mais fraco. Ou aceitavam ser um saco de pancada, ou então acabavam metidos em sacos. A cara dele parecia reverberar de encontro às paredes e a única coisa que conseguia ouvir era aquela voz horrível a ruminar aquelas baboseiras todas. Por qualquer razão sentia-se cansado, profundamente abatido, sem forças para se levantar e quem sabe “espetar um tiro nos cornos daquele cabrão”. Ficou retido num silêncio e apatia urdidas pelo sentimento de angústia, e a culpa acometia-o para um estado suspenso, demasiado temporário e que o privavam de qualquer sentimento. Por qualquer razão, a sua mente tendia a puxá-lo para as melhores recordações que tinha de MC. Se havia algo de belo nas esquinas sanguíneas e cavernosas da sua memória eram momentos como aquele que o levaram a uma noite que agora recordava com o maior carinho. Tinha acabado de roubar um carro e foi apanhar o MC em casa. Queria levá-lo a uma boate em Rio de Mouro onde se podiam conhecer umas negas rabudas e dançar umas mornas gostosas. Quando iam a caminho pelo IC19 já se tinha tornado claro que o combustível não iria chegar para o regresso. Então, como foi possível que MC o tenha desafiado e pedido que fosse mais à frente, para Sintra. “Que seca, aquela cena só tem árvores e casas antigas sem jeito nenhum. Àquela hora nem sequer turistas temos para gamar”. Mas ele insistiu, seguiram em frente e na Rotunda do Ramalhão, seguiram pela esquerda. Acabaram parados num pequeno jardim. MC dizia que Deus os levou ali, não ele. Era uma

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oportunidade, única, pois constava que ali, em matéria de demonstrações divinas, Deus não hesitava em se manifestar para os mais aflitos e necessitados. Na verdade, aquele momento foi uma promessa de isolamento completo, mas de amparo total, pois com MC ele sempre fora feliz. E foi assim que correram a noite juntos, sentados no banco daquele jardim, pela noite dentro, rente à madrugada que havia de nascer em breve. Como se fossem mundos e tempos diferentes, o amanhecer cortou a noite sem interessar o que havia ficado de permeio. Ficaram imóveis, no limiar. Ele, como que intimidado, não percebia pelo que esperava MC. Mas quando o sol despontou, “Nunca haverá uma noite, ou um problema que possa derrotar o nascer do sol ou a esperança”, e olhava para ele que estava a sorrir, sempre a sorrir, com aquele sorriso iluminado que o fazia sorrir também. Naquele momento um bando de pássaros levantou voo dos ramos onde se encontravam. Alçaram voo, com penas das mais variadas cores, esvoaçando numa liberdade chocante e num chilreio quase irreal. Recordava o arrebatamento com que reparou em todos os recantos por onde passavam, as maravilhas dos campos, as cores nos mais variados tons de verde das árvores. Por ali passaram também as luzes da cidade, os companheiros dos CripZ, a guarda inimiga, as facas no peito, o sangue, a falta de comida, a doença, a má sorte. Foi um momento, mas não um qualquer. Parecia que lhe havia dado um tempo novo, emprestado uma nova voz. Quem sabe, começar uma nova vida. Talvez houvesse a possibilidade de sair do bairro, ir para bem longe dali, quebrar as malditas fronteiras. Mas depois, chegaram as lembranças das chibatas descidas sobre o seu corpo, para não deixar marcas, a câmara-de-ar dos pneus que os polícias costumam usar para não causar hematomas aos menores.

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Mas era precisamente quando a ação policial não deixava marcas no corpo, que a violência ficava mais profundamente cravada, fincada nos sulcos da memória. Sem “marcas” a violência ficava invisível, era uma mera abstração, um arroubamento de espírito silencioso. “A polícia botou-me de cabeça p’ra baixo, bateu, deu chutos, algemou-me e mandou-me caminhar até à esquadra. Foi mais de uma hora a pé enquanto levei pancada, na barriga, chapadas, em todo o lado. Esses polícias são um gangue pior do que nós somos. Eles ficaram com o meu dinheiro, relógio, tudo que estava comigo ficou p’ra eles. Eles são um gangue, também”. Tinha doze anos quando contou a uma assistente social o que se tinha passado. Mas não valeu de nada. Todos os dias haviam histórias destas para contar. E foi com esse gérmen da desavença espalhado por toda a parte que ele cresceu e foi condessando a vingança, liquefazendo dia a dia os desejos de revanche sobre os que os oprimiam. Para ele não existia Deus, embora sentisse respeito quando entrava em casa do MC. Na sala, a sua Mãe tinha várias imagens de santos, sendo que São Jorge ocupava o espaço de maior devoção dos moradores do bairro. Ele estava no cimo do móvel puído, mais diretamente iluminado pela lâmpada de luz difusa que pendia do teto, representado por uma imagem de gesso, bem maior que as demais e ocupava o ponto de maior destaque da sala. São Jorge era o protetor da casa mas também o símbolo da coragem e ousadia. “Apenas ele é capaz de vencer o dragão” e nessa narrativa, a Dona Isaura, entremeava São Jorge, a polícia, a coragem dos gangues e os vestígios do enfrentamento nos muros da casa. “Deixa a violência filho”.

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A cidade lá do outro lado ia ficando vazia, cada vez mais da cor do asfalto. As sombras pareciam que se abriam, continuava de costas voltadas, sem ver o futuro, sentia frio, o vazio da solidão. Assistia de longe ao momento em que levavam o corpo de MC para a ambulância, para sempre, para longe de si. À luz difusa que se derramava sobre o corpo, a emoção dominava-o, via uma ilha branca, ancorada, à espera dele, sozinha. Mas os seus pés estavam agarrados ao chão, quando apenas avistou um homem vindo de lá do fundo, de dentro da ambulância, não o conhecia, aproximava-se de olhos cansados, as pálpebras inchadas, cabelo já um pouco branco, desalinhado e todo encharcado. Teve o cuidado de nem sequer se identificar, jamais referir de onde vinha. Estendeu-lhe a mão lentamente, não para o cumprimentar mas para o levar com ele. Percebeu, levava-o para se poder despedir. Levantou-se, acompanhou-lhe os movimentos, tomou um pouco de alento. Sem perceber porquê, as sombras pareciam que lhe ouviam a lembrança das palavras traídas e que o deixavam louco por tê-las proferido, mesmo sabendo que as ruas estavam com ele. Levava no peito uma angústia que não lhe cabia nas suas mãos e cada passo que dava parecia que era mais distante do que o que conseguia ver. Quando chegou perto, parou. Subiu os olhos, quebrados, para o amigo. Estendeu a mão gelada e temerosa. Afagou-lhe a testa numa despedida inesperada mas sentida. Com as duas mãos segurou as dele, mais pareciam duas asas ensanguentadas, as asas dos pássaros por quem tinha tanto apego. Do seu olhar perdido, pureza e inocência continuavam a transluzir na sua alma. Por ele seria capaz de desafiar o panteão do sono eterno, trocaria a sua vida pela dele. “Com os teus passos de dança, mostraste-me um mundo só teu. Com os teus versos não te cansavas de dizer que a

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melhor arma era a palavra e não a violência. Davas-me tudo MC, e ficavas sempre sem nada.” O seu coração batia em alvoroço, como um trovão. “Abriste a janela que prometeste um dia abrir, e eu? … fiquei aqui”. Prendeu a respiração. Esse foi o momento, não conseguia dizer mais nadar. Levaram o corpo para dentro da ambulância. Ouviu a porta bater a fechar-se, num eco infindável, como uma dor sentida mas que não se aproximava o suficiente. “Agora que já se despediu do seu amigo, nós vamos seguir”. Disse o homem. Contou-lhe também a causa morte.

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Todos os movimentos pareciam divididos em partes. Tudo muito devagar. Olhou para a porta de um prédio perto do sítio onde estivera tombado MC. (O seu rosto). Era feita em vidro com caixilhos de alumínio. (Era o seu rosto). Parecia desfazer-se com a enxurrada de água que sobre ela se abatia. (O seu rosto). No vidro viu um reflexo de feições humanas, o seu reflexo, um preto transfigurado em transparência, colorido de luzes de todas as cores. A quadrícula do caixilho parecia separar-lhe os olhos e a testa, abaulada, de onde sobressaía um nariz largo e esticado de cima abaixo. (Era o seu rosto, a sua face). Aquele era o assombro que na realidade ele era, o monstro, a lenda, o violento líder dos CripZ de Monte Abraão, pavor de meio mundo. Então Kaiza pousou-lhe a mão suave no ombro, enquanto com a outra desfiava nervosamente a ponta de um lenço branco em volta do pescoço. Passou entre as pessoas, segurou a Kaiza pela mão. A rua parecia listada de azul, amarelo e vermelho, ao passo que os carros da polícia partiam em alvoroço, sirenes agitadas para desassossego dos que lá ficavam.

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Ninguém dizia nada, olhavam para ele devorado pelo pesar. Os postes da iluminação pareciam abaulados e fendidos sob a bátega de água, como que em abandono. Abandono no mais fundo confim, onde nem as cores e os sons são devolvidos, onde o preto reflete o negrume da noite.

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Ainda era a penumbra da madrugada, o céu estava a retomar a cor azul com uma luz a crescer de fulgente, longe da noite tumular onde normalmente habitava, como um resplendor de primavera que insistia em lhe recordar que se não experimentássemos algumas vezes o sabor da adversidade, os momentos felizes não seriam tão bem vindos. “Olha como voam os pássaros”, dizia MC com os seus olhos que eram do tamanho de tudo o que viam. “Eles enfrentam as tempestades noturnas, tombam dos seus ninhos, sofrem perdas todos os dias, dilaceram as suas histórias. Mas pela manhã, quando o sol nasce, parece terem todos os motivos para se entristecer e reclamar, mas ao invés disso, cantam agradecendo a Deus por mais um dia”. A noite continuava a afastar-se, vencida pelo sol, que ia surgindo, imenso, tão grande que não era possível ser contado. Ele queria ter essa força, queria correr atrás desta brisa de vento bom, contra tudo o que se lançava na frente para o deter, contra tudo o que se levanta no seu caminho, contra as marcas que tinha no corpo de tanto apanhar, contra si próprio. Ele queria.

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Caminharam pelas ruas desertas. Ele caminhava, Kieza acompanhava-o. Pensava no que lhe havia de dizer. Nunca

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percebia qual a melhor palavra, qual o melhor momento. Ele era doce mas por vezes inesperadamente violento. Não para ela, mas para si mesmo, só para ele mesmo. Foi quando chegaram ao terminal dos autocarros que pararam. Ela parou, ele permaneceu naquele domínio privado, agitado no seu interior. Olhou-o nos olhos. As suas mãos, pele de veludo, cruzaram-lhe o rosto. Ele levantou as mãos, as palmas viradas para ela, como que a envolverem-na numa distância, esquecida no tempo. É que, de novo, a realidade, o frio, as ruas em guerra, a gíria da violência, o fala movimento, fala corpo, os segredos sem significado, entravam-lhe pela cabeça, corriam-lhe no sangue. Quantas vezes o MC não foi encarado como um marginal, só por ser preto? Ele era um garoto diferente, mas era vagabundo, ladrão. Nada os havia de proteger, a lei vazia dos brancos era abstrata para os pretos. A prova era a cor da pele, mesmo que não tivesse roubado. Foi lentamente, quando o último autocarro da noite estava a chegar, que disse algumas palavras. Palavras desprendidas, adiadas mas que não o poderiam ser mais. Sentimentos amontoados, cresceram em demasia, caíram com estrondo no seu coração. Ele tinha de o dizer. As palavras que tinha vindo a escolher e decorar, desvaneceram-se quando encarou os seus olhos brilhantes. Por isso só conseguiu um olhar. Não falou, mas não parou de olhar. E ela recebeu-o. Quem não compreende um olhar tampouco compreenderá uma longa explicação. Sabia que a sua vontade nasceu de uma força maior. Uma força que só ele tinha. Jamais, mas jamais mesmo seria bom travar essa vontade. Era essa a sua maneira de viver, mesmo que à distância, de se contentar com a felicidade de Kieza ou de MC, enquanto ele lutava lá fora, nas ruas. Quando estavam juntos, escondia-se por detrás de um rosto, dum sentimento

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absoluto de reservas, incomunicável, escondido. MC dizia que ele era um poço, aparentemente profundo e sombrio mas de onde se poderiam ver as estrelas, “eu vejo-as”, dizia-o a sorrir.

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Tinha tomado uma decisão. Não era nada de concreto, nada para fazer, mas simplesmente deixar a sua mente vaguear e levá-lo para onde quisesse, sem impedimentos, sem ter que esbarrar em nada nem ninguém. Kieza subiu os degraus do autocarro e olhou para trás, para ele. Olha-o com uma pena que ele entendeu ser pelos três, por MC, por ele e por si própria. Num momento virou as costas, num breve momento seguiu e sentou-se no banco junto à janela. Ele via-lhe o rosto tenso, embargado, preocupado por tudo o que poderia vir a acontecer e a não acontecer, por um futuro que ela não vislumbrava. O Autocarro arrancou, como quem arranca uma página de um livro e a rasgou ao meio. Parecia que entre os dois não restava nada senão tiras de palavras, derramadas como entulho entre as suas vidas. Mas ela olhou para ele, pela última vez, também sem palavras, mas era um olhar que não enganava, era um olhar de agradecimento.

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Sulcou as ruas numa deriva submersa. Nos prédios apinhados de pessoas, umas a viverem por cima das outras, divididos por paredes de argamassa, paredes de desconfiança, paredes de amargura. Caixotes do lixo tombados, outros apinhados, os cães em bandos a devorarem o conteúdo do lixo em sacos de plástico

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enquanto outros os rodeavam, impacientes na espera da sua vez, ao som de uma qualquer discussão de um casal, gritando obscenidades, louça quiçá atirada para fazer doer, estilhaços de cerâmica, estilhaços de dor. Ouviam-se choros, ouviam-se os sons dos sonhos dos outros, as dúvidas de uma redenção ansiada por quem tanto sofre. Era sempre assim, nunca ninguém sobrevive aos dias para um dia os contar aos outros. Ninguém aprende nada. Com oito anos já nada o surpreendia. Era um menino pouco falador, quando não estava com o MC, passava horas sozinho, brincava pouco mas desenhava muito. Desenhava o que via. Gostava de desenhar as casas do bairro, com os telhados quebrados, paredes grafitadas, esburacadas. Desenhava a rua bloqueada, em cima e em baixo, por carros de assalto, onde desenhava a palavra “POLICIA”. Mas nunca desenhava as pessoas, as nuvens, o sol, os pássaros, a vida. Os traços não tinham cor, eram negros, sempre muito negros, carregados no papel até partir o carvão. Foi assim crescendo, em fúria, no vazio de palavras, vazio do tempo. Cada desenho tinha o sentido de preencher o nada que habitava em si. A violência que foi desenvolvendo, foi uma substituição dos esquiços, essa confusão de que algo doloroso ardia por dentro, era assim um ato de expressão desse vazio, dessa ausência de sentido, de um nada. Na verdade, era uma raiva de ar quente que foi crescendo até lhe tirar a razão. Quando deu por si, mobilizava-se com os outros miúdos e acabavam a incendiar caixotes do lixo, grafitar as paredes de uma estação inaugurada, quebrar telhas do pavilhão da escola. Tudo pelo puro espetáculo e por uma razão muito simples, a violência era a própria ausência, é um nada, um vazio, um furo na cadeia de significados. Um nada a dizer. O que a violência dos bandos revelavam então? Que nada mais havia a dizer.

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Não sabe por onde andou, nem durante quanto tempo caminhou. Passou de bairro em bairro, atravessou uma espécie de céu, viu muitas luzes inquietas, garrafas vazias, os cafés a fechar, ruas perdidas, algumas para o resto da vida. Foi caminhando numa sessão confusa de momentos, perdido nos instantes e o tempo, que tinha asas, não parava, empurravam-no para um sem rumo até que desembocou numa estrada. Uma estrada real, com caminhos diferentes, para a esquerda, para a direita, para cima, para baixo. Os seus pés iam pisando o alcatrão escuro, que era a imagem da sua vida, tão vazia, de tão poucas vezes não olhar para longe. Caminhava na berma, como se vagasse numa estrada estranha. Os automóveis corriam, faziam-no balançar em cada passagem, abanava muito. Abanava muitas vezes. Para além das curvas que contornou e das retas que trespassou, os seus olhos tocaram num lugar mágico. Tomou-lhe a mão e fê-lo palmilhar por um caminho que indicava São Pedro de Sintra. Do lado direito da estrada, em frente a um campo de futebol, deparou com um curioso monumento funerário. Entre saliva e suor, num travo de abandono, conseguiu ler numa inscrição que a voz popular o designava como Túmulo dos Dois Irmãos. O nome deste túmulo estava ligado a uma lenda antiga. Dois irmãos. Um grande amor. Sem prazo. Sem limite. Ganhou alento, continuou a subir por ali acima. A lua caprichava em cobrir a terra com um lençol de luz e cantavam as cigarras nos valados. O peso das sombras começavam a alcançá-lo. É que as incertezas por sentir que o céu afinal era tão longe, eram cada vez mais certas.

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A caminhada foi uma travessia cumprida a custo, como a vida. Foi quando chegou ao pequeno jardim perdido na orla escura da noite. Os seus passos detiveram-se. Da luz fraca do candeeiro, propagava uma sensação de abandono, de desistência. Descalçou-se junto a um banco de pedra com a agilidade de uma sombra. Pousou lentamente os sapatos e aproximou-se de um muro pouco alto que dava para um precipício coberto por um pano de vegetação negro, onde via refletida a sua alma que era mais escura do que tudo. Subiu para o muro. Os cabelos desfeitos já lhe cobriam a cara, as pernas afastadas, os braços pendidos ao longo do corpo, contraído. Gotas de suor rolavam pelas costas, camisola ensopada. Um cruel latejar separava-o em dois. Raiva, desespero, saudade. Falta daquilo que perdeu para sempre, por descuido. Abriu a mão, na palma estava amarrotado um papel. Um bilhete de adeus escrito em letras garrafais. Uma caixa vazia de comprimidos letais flashou a sua mente. Foi assim que MC finalmente encontrou a paz, assassinado pela sociedade que lhe cobrou demais. Mataram um amigo seu. Ninguém o podia reaver, nem a memória. Respirar feria-lhe a respiração. Tinha de parar de meter ar para dentro. “O meu amigo morreu, o meu corpo continua vivo”. Morte, uma indizível palavra, morte. “Irei ter contigo”. Nada podia dissuadi-lo, nem detê-lo. Preparava-se para saltar, sem um clarão que assim o indicasse nos seus olhos, baços, vermelhos, alojados no fundo de umas covas negras em redor. E foi assim que aconteceu.

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A pequena ave apareceu na sua frente, parecia levitar como se a lua a atraísse. Depois, o seu corpo pousou num ramo de uma árvore. Pássaro com peito de plumagem clara e brilhante, parecia transparente à luz difusa daquele disco de prata que se encontrava a luzir lá no alto. O vento sacudia-lhe as penas, entoou-lhe uma linda aquarela que lhe tricotava adentro um sorriso como nunca antes experimentara, o sorriso de MC. Lentamente, os primeiros sinais do sol foram derrubando a noite no horizonte. Sentia o cheiro da terra, num ledo embalo. A brisa, como sem sentido, parecia uivar, as folhas lívidas farfalhavam, era a natureza em festa, a vida era feita de pequenos nadas, que em tudo se manifesta. Como por magia, o jardim parecia ir ficando dourado pelos tons amarelados dos primeiros raios de sol, as asas multicolores dos pássaros estabeleciam contrastes entre as folhagens, rasgando o silêncio e as defesas em sépia, a sensação de labirintos sem fim. Ouviu ao longe o relógio da matriz. Cada badalada, emprestava um momento, fazia-lhe sair cada dor silenciosa do corpo, todos os ventos de vontades não realizadas em menino. Iam diminuindo a dor causada por ser um órfão da ausência de MC, esperança de sobreviver a essa solidão, naquele jardim onde afinal via espantadas as suas angústias. Como qualquer um, conheceu o medo, a falta, o arrependimento. Como nenhum, aprendeu a reconhecer que somos quem somos, somos únicos e quase que podemos pensar que somos sós. Mas descobriu que não, ele e MC eram um, eram nós. Nunca acreditou que nenhum destino lhe pertencia, começava agora a vislumbrar um caminho, algo difuso, mas um caminho.

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Não mais tinha voltado ali desde o dia em que lá passara a madrugada com MC. Parecia a mesma madrugada. Regressam-lhe as imagens dele. O sorriso que prometia toda a bondade que ele não tinha, a olhá-lo no fundo da alma. Rodou a atenção pelo pequeno jardim. Parecia agora envolto numa misteriosa harmonia. Aquele era o local ideal para ir ter com ele. Se em algum lugar estivesse, seria por ali. Passou a mão pela nuca e pensou que era melhor partir dali depressa. Nada de hesitação. Acreditava que um salto o faria voar, procuraria um sonho, onde passaria por cima das imagens do bairro decepado, de uma guerra feita para espetáculo dos brancos, que o obrigavam a lutar contra o sistema para não dar em louco. “Em qualquer lado existes”. Poderia enfim acordar em outro sítio, ao lado de MC. Poderia voltar a fazer os seus desenhos, esboçar em traços as rimas, viver sem ter que resgatar coragem a todo o instante, a coragem para protestar, violência, dor, infligida, recebida. Mas o pássaro saltou do galho onde estava, voejou até pousar com a subtileza de uma ave no seu ombro. Não acreditava em mistérios, encarnação dos espíritos, destino, em nada dessas crenças. Ele nem acreditava no que via. Mas aquele pássaro, ali tão perto. Arrepiava-lhe o coração mirá-lo nos olhos. Alado mensageiro, a sua proximidade curavam-lhe os pecados, lavavam-lhe a alma. Soltou voo e com o desenhar dos movimentos, parecia puxar por ele. Não resistiu, acompanhou-o.

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Caminhava na direção que o pássaro ia tomando. O tempo não sabia dele. Eram incontáveis os instantes de silêncio.

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Quantas vezes viu pássaros em toda a sua vida? Quantas vezes os viu e os foi deixando ficar para trás? Passou sempre por eles, ou eles por si, como se não se vissem. Sentia-os, mas não olhava para eles. Agora completava voltas atrás de uma estranha ave, de olhar estranho, com vontade própria. Saiu daquele Éden glorioso e lançou um último olhar ao manto verde em vários tons, a cobrir a encosta da serra, salpicada aqui e além por velhos casarios do Arrabalde e com uma visivelmente antiga igreja a impor-se por entre o arvoredo. Lá bem no alto, o Palácio da Pena e o Castelo dos Mouros coroavam a serra e enchiam-lhe o olhar com uma paisagem de beleza ímpar. Apesar de exausto, seguia embalado por uma fé que antes não existia nele. Queria imaginar que, naquele dia, não iria ter de brigar, sem ter que ouvir os silvos das balas, como serpentes, ou que a mão negra que insistia em o esmagar não iria surgir. Abria a palma da mão onde guardava o bilhete transpirado que MC deixara. A manhã nascia. Sol. Vigoroso, repelia as nuvens, aquecia-lhe as costas. A respiração pesada abrandava lentamente. Não valia a pena perguntar nada, seguia um pássaro, somente um pássaro. O céu era absoluto, sem peias, sem restrições. O caminho fez-se escalando o cume da serra e quando chegou à última fronteira, erguido sobre o maciço rochoso, estava o castelo de Sintra, castelo dos mouros. Lançou um olhar ao horizonte apanhado sob um céu azul celeste. O sol encadeia os olhos, refletido no espelho de água que se alcançava ao longe, uma vista magnífica. Mergulhado num mundo de imagens, observava o pássaro num esvoaçar gracioso. “Eu tenho liberdade de voar num horizonte qualquer, liberdade de pousar onde o meu coração quiser”. Era assim que cantava MC, assim era o que o pássaro lhe mostrava. Toda a sua existência foi fundamentada somente no presente — no

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fugaz presente. Por essa razão, tinha de tomar a forma de um constante movimento, sem que jamais houvesse qualquer possibilidade de encontrar o descanso pelo qual estava sempre a lutar. Passou a vida a correr por uma ladeira abaixo: cairia se tentasse parar, e apenas continuando a correr conseguiria manter-se sobre as suas pernas, como um Zeus a equilibrar o mundo na ponta do dedo, ou como um planeta, o qual se afundaria no sol se cessasse com o seu percurso. A sua existência foi marcada pelo desassossego.

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Sentou-se numa rocha. Uma aragem fresca vem de lá longe. Vem de dentro do mar de recordações. Vem do fundo das águas turbulentas onde habitou. Naquele momento achava estranho agarrar-se à dor como sempre fizera. Como se senti-la lhe desse uma condição de herói, a expor as feridas como quem exibia medalhas honoríficas de condecoração. Era um desígnio inconfessado, escondido, mas claríssimo agora. Atravessou a vida com o estatuto de vítima e gostava dessa condição. “A vossa cabeça é complicada demais”, dizia MC. “Parece que sentem prazer em listar achaques e traições”. Na verdade, sem tomarem atenção, ele e o resto do bando viviam naquela desgraça íntima onde se blindavam nas suas ações brutais. A violência, em qualquer momento que não sabia situar, converteu-se assim numa espécie de combustível que o fazia sentir vivo, arrebatado pela possibilidade de pelo menos poder respirar sem lhe faltar o ar, ser capaz de sentir aquilo que antes os desenhos lhe davam. Mas agora, tudo era tão insignificante e inútil. Encontrara naquela madrugada um novo sentido, entrevia nos movimentos livres da graciosa ave um desassombro e uma familiaridade que o deixavam

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baralhado. Em momento nenhum pensou em largar aquela vida. Agora sentia-se capaz de o fazer. Sempre que fechava os olhos e via o corpo de MC, pensava que uma viragem qualquer se operava dentro de si. É que ele aceitava finalmente perceber que era vulnerável. Todos somos vulneráveis. Era bem fácil inventar esquemas subtis em que ele era a vítima e os brancos eram os agressores e sempre esqueceu que eles também poderiam ser atravessados pelo mesmo sofrimento. Neles também existia dor, mazelas e novelos enredados num futuro escuro. As feridas acesas no coração eram um magma de violência à deriva, num vulcão à beira de estalar. Perdão. São Jorge que combateu o dragão instava ao perdão, dizia a dona Alzira. “Todos precisamos de perdão”, cantava MC. Sim, o perdão podia ser um corte. Uma incisão positiva a interromper a baba inútil da tristeza e da dor. Era tão lacerante que o levava a querer esmagar os outros pela mesma infelicidade. Foram já demasiados invernos, natais, demasiado tempo sem sentir nada daquilo que podia ter experimentado, a solidariedade, a partilha, a fraternidade.

O que podia ele fazer? Nada? Ficar ali sentado? No vazio, num espaço circunscrito, sem ar, ausente, apagado. Mas aquela palavra, perdão, começava por parecer uma luzinha. Como um sol que nasce devagar. Que é preciso esperar para o ver brilhar. Talvez ele devesse esperar, renascer, aprender a ser cortado para depois poder voltar inteiro.

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[Hoje]

Caminhava sem fazer barulho, sem pisar numa folha seca sequer. Sem pisar em nada. No maior silêncio. Não se via ninguém. Só ele. Era o dia em que há um ano MC morrera. Para um dia de Inverno, fazia sol e muito calor. Era um dia de tal maneira estranho que se podia dizer que o calor era infernal, abafado. Chegou ao cimo da rua, entrou pelo jardim adentro e sentou-se no muro de pedra. No mesmo muro de pedra onde antes chegara a ponderar saltar e colocar um fim na sua vida. Ficou por ali, calado, enquanto olhava para os ramos das árvores, alguns galhos secos pendiam quase ao seu alcance. O seu olhar estava diferente. Tendo estado muitas vezes sob ataque, era abominavelmente reconhecido como terrível na sua ira. Hoje não, a preocupação que estampava no rosto desaparecera. Ocupara um espaço no mundo. Sim, era isso. Tinha um nome pelo qual as pessoas o podiam chamar, era alguém que elas imaginavam poder conhecer. Dava para ver que o seu passado, a sua angústia, o seu isolamento se esbateram no meio do tempo mas também como um fruto da guinada que dera na sua vida. Fê-lo seguir um caminho aberto. Hoje era guia turístico em Sintra. Tinha trabalho durante o ano inteiro e agora dedicava-lhe a vida, àquela vila sagrada que o levou à redenção da Alma. Era uma ironia. Sentia que levava consolo àqueles que antes pensava que o estigmatizavam. Acreditava que a sensação de felicidade que vivenciava fora uma recompensa pelo amor eterno que sentira por MC. Tinha ido até ali porque queria que o seu amigo soubesse que a recuperação selvagem que havia imposto a si próprio o trouxe à vida, finalmente. Havia modificações indizíveis, não

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só na sua cabeça mas também no corpo. Aconteceu. Sem saber como tudo começou, a paixão por Sintra levou-o a encontrar a oportunidade rara de fazer algo que se gosta de fazer e que se faz muito bem. Foi isso. Trabalhava sozinho mas os hotéis, restaurantes e pousadas sabiam que era com ele que os turistas podiam conhecer o romantismo da vila de uma maneira apaixonada, que só ele sabia fazer. A lonjura criada pela mistura de luz e das árvores era um cenário que nunca iria esquecer. Foi quando se apercebeu que à sua frente, mesmo na sua frente, sem se aperceber de onde veio, estava o pássaro num esvoaçar gracioso. Fora um momento emocionante para o olhar. “Amigo”, disse sorrindo para a pequena ave. A brancura brilhante da penugem no peito era um sinal só seu. O pairar firme e o olhar fixo era enfático e muito presente. Parecia que falava com ele e por fim, deu por si a responder. Perguntou-lhe então por onde tinha andado. Contou-lhe que começou a trabalhar. Contou-lhe que descobriu o paraíso. Contou-lhe que levava os outros a ver esse Éden e que era feliz por o fazer. Estava impressionado por ter pronunciado tantas palavras de seguida. Os extremos tinham acabado, já conseguia aceitar a diferença e a indiferença. “Já dominas a dor?”. “Domino a dor dos outros, menos a que sinto. Isso já é bom”, sorriu. “Quero é trabalhar mais, quem sabe ganhar dinheiro para fazer a viagem que sempre sonhaste fazer”. “Eu também viajei. Viajei muito. Fiquei este ano fora e voltei, para te ver”. Deu por si a rir. A rir da fragilidade da memória, ou pelo menos sorria das artimanhas do esquecimento. É que ele parecia ter esquecido muito mas a memória estava sempre fixada no abecedário da bondade de MC e do respeito mútuo que aprendeu a sentir. Já não fazia parte do desconhecido embora ainda desconhecesse muito daquilo que lhe dizia respeito. “Mas agora vivo um dia de

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cada vez”, disse-lhe. Os olhos desceram um pouco para o fundo do vale e não conseguia evitar que nos olhos lhe pairasse a névoa melancólica que envolve todos aqueles que vivem afastados de tudo e de todos que antes conheceram. O pássaro apercebeu-se dessa sombra nos olhos, inconsistente mais ainda densa. O verde imenso suspenso sobre a sua vista era inacessível mas já lhe chegavam rumores de esperança. Assim lhe parecia dizer o pássaro. Rumores de vida seriam, pelo menos. Por fim, com um voar vagaroso, estabilizado bem frente ao seu nariz, o pássaro cantou. “Vai, percorre a vida, atravessa-a de um lado para o outro. Fica. Fica o tempo que quiseres. Mas volta. Vai e volta. É preciso saber voltar”.

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