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O objetivo desta dissertação é procurar os fundamentos do direito penal. Para tornar à origem deste se fez necessário perquirir seu objeto, sem descurar do ser que o investiga, bem como de sua atitude metodológica. Desta forma, valemo-nos do estudo da visão juspositivista do direito, portanto avalorativa, para romper com seus paradigmas e encontrar na origem do direito positivado uma tarefa política que externa valores arraigados no exercente do poder. O direito penal se funda sobre três institutos jurídicos decorrentes de três direitos políticos estatais (direito de punir, proibir e julgar) e que, portanto, constituem os três pontos fundamentais do sistema punitivo: a pena, o bem jurídico e o processo. Assim, cediço que a atividade legiferante delineia a base do direito penal e que esta externa uma atitude axiológica, buscou-se, com base na teoria dos valores, a origem fundante do Sistema Penal, perquirindo os valores que devem nortear o legislador, enquanto exercente do poder político, ao dispor sobre os três pontos fundamentais do sistema punitivo. Desta forma, verificou-se que o embate entre a ordem pública e o direito de liberdade do cidadão é a origem das teorias que buscam a legitimação da pena, do bem jurídico e do processo. Não por outro motivo, as teorias que pretendem obter da Constituição a carta de valores a serem utilizados como fundamentos axiológicos pelo legislador, ganha relevo no cenário do pensamento democrático mundial.Este documento é licenciado pela CC BY: A obra A Legitimação do Direito Penal: origem político-axiológica do sistema penal de Antonio Eduardo Ramires Santoro foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição - Uso Não-Comercial - Obras Derivadas Proibidas 3.0 Não Adaptada.
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i
A LEGITIMAÇÃO DO DIREITO PENAL: origem político-axiológica do sistema penal
Antonio Eduardo Ramires Santoro
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Filosofia
(PPGF), Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, como parte dos requisitos para
a obtenção do título de Mestre em
Filosofia.
Orientador: Fernando Rodrigues
Rio de Janeiro
Agosto de 2005
ii
A LEGITIMAÇÃO DO DIREITO PENAL: origem político-axiológica do sistema penal
Antonio Eduardo Ramires Santoro
Orientador: Fernando Rodrigues
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia
(PPGF), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Filosofia.
Aprovada por:
Prof. Fernando Augusto da Rocha Rodrigues - Orientador
Doutor
Prof. Aquiles Côrtes Guimarães
Doutor
Prof. Sandro Figueiredo Reis
Doutor
Rio de Janeiro
Agosto de 2005
iii
Santoro, Antonio Eduardo Ramires
A legitimação do direito penal: origem político-axiológica
do sistema penal / Antonio Eduardo Ramires Santoro – Rio de
Janeiro, 2005.
xi, 124fl: il.
Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais – IFCS, 2005.
Orientador: Fernando Augusto da Rocha Rodrigues
1. Filosofia Política. 2. Filosofia do Direito. 3. Direito
Penal. I. Rodrigues, Fernando Augusto da Rocha (Orient.). II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais. III. Título.
iv
Dedico esta dissertação à Maria Antônia,
que há sete meses passou a ser a razão da
minha vida.
v
Devo agradecimentos a muitas pessoas,
mas nesta etapa da minha vida o farei a
três: Fernando, meu orientador, Rodrigo,
meu amigo e Maria da Penha.
vi
RESUMO
SANTORO, Antonio Eduardo Ramires Santoro, A LEGITIMAÇÃO DO DIREITO
PENAL: origem político-axiológica do sistema penal; Orientador Fernando Augusto
da Rocha Rodrigues. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS; 2005. Dissertação (Mestrado em
Filosofia)
O objetivo desta dissertação é procurar os fundamentos do direito penal. Para tornar à
origem deste se fez necessário perquirir seu objeto, sem descurar do ser que o investiga,
bem como de sua atitude metodológica. Desta forma, valemo-nos do estudo da visão
juspositivista do direito, portanto avalorativa, para romper com seus paradigmas e
encontrar na origem do direito positivado uma tarefa política que externa valores
arraigados no exercente do poder. O direito penal se funda sobre três institutos jurídicos
decorrentes de três direitos políticos estatais (direito de punir, proibir e julgar) e que,
portanto, constituem os três pontos fundamentais do sistema punitivo: a pena, o bem
jurídico e o processo. Assim, cediço que a atividade legiferante delineia a base do
direito penal e que esta externa uma atitude axiológica, buscou-se, com base na teoria
dos valores, a origem fundante do Sistema Penal, perquirindo os valores que devem
nortear o legislador, enquanto exercente do poder político, ao dispor sobre os três
pontos fundamentais do sistema punitivo. Desta forma, verificou-se que o embate entre
a ordem pública e o direito de liberdade do cidadão é a origem das teorias que buscam a
legitimação da pena, do bem jurídico e do processo. Não por outro motivo, as teorias
que pretendem obter da Constituição a carta de valores a serem utilizados como
fundamentos axiológicos pelo legislador, ganha relevo no cenário do pensamento
democrático mundial.
Palavras-Chave: Filosofia Política; Filosofia do Direito; Direito Penal; Axiologia.
vii
ABSTRACTC
SANTORO, Antonio Eduardo Ramires Santoro, A LEGITIMAÇÃO DO DIREITO
PENAL: origem político-axiológica do sistema penal; Orientador Fernando Augusto
da Rocha Rodrigues. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS; 2005. Dissertação (Mestrado em
Filosofia)
The aim of this dissertation is to research the fundamentals of the criminal law.
Revisiting the starting point of criminal law practice demanded the research of its
object, without neglecting the author of the investigation, as well as his methodological
approach. In this fashion, we relied upon the reading of the juspositivist view of the law,
thus a validating view, in order to break through its paradigms and find within the
source of positivated law a political task that expresses the ruler’s deep-set morals.
Criminal law is based on three juridical fundamentals derived from these three State
rights (rights of punishing, of prohibiting and of judging) and that, as a result, constitute
the three focal points of the repression system: the punishment, the juridical asset and
the procedure. Therefore, once established that the legislative activity outlines the
foundation of criminal law which expresses an axiological viewpoint, the founding
source of the Criminal Law System was then searched for, investigating the values that
must guide the legislator, as an agent of political power, when acting upon the three
fundamental guidelines of the repression system. It was thus perceived that the never-
ending conflict between public order and the citizen’s freedom right is the source of all
theories that strive after punishment, juridical asset and process validation. There is no
other reason for the expansion in the international democratic scenario of theories
aiming on obtaining from the Constitution a bill of values which will be the lawmaker
axiological fundamentals.
Keywords: Political Philosophy; Law Philosophy; Criminal Law; Axiology.
viii
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO – PARA UMA FILOSOFIA DO DIREITO PENAL.....................12
1ª PARTE – ONTOGNOSEOLOGIA – NA BUSCA DO SER COGNOSCENTE E
DO OBJETO COGNOSCÍVEL DO SISTEMA PENAL..........................................16
1. INTRODUÇÃO...........................................................................................................16
2. O DIREITO POSITIVADO E O JUSPOSITIVISMO...............................................18
2.1. ORIGEM DA MODERNA POSITIVAÇÃO DO DIREITO.......................18
2.2. ORIGEM DO JUSPOSITIVISMO MODERNO..........................................20
2.3. JUSPOSITIVISMO: MÉTODO, TEORIA E IDEOLOGIA........................21
a) QUANTO AO MODO DE ABORDAR:...........................................21
1º PONTO) PARA O POSITIVISTA JURÍDICO O DIREITO DEVE
SER CONSIDERADO COMO UM FATO, NÃO COMO UM
VALOR..............................................................................................21
b) QUANTO À TEORIA DO DIREITO:..............................................22
2º PONTO) DIZ RESPEITO À TEORIA DA COATIVIDADE DO
DIREITO............................................................................................22
3º PONTO) DIZ RESPEITO ÀS FONTES DO DIREITO................22
4º PONTO) DIZ RESPEITO À TEORIA IMPERATIVISTA DA
NORMA JURÍDICA..........................................................................23
5º PONTO) DIZ RESPEITO À TEORIA DO ORDENAMENTO
JURÍDICO..........................................................................................23
6º PONTO) DIZ RESPEITO AO PROBLEMA DA
INTERPRETAÇÃO DO DIREITO...................................................26
c) QUANTO À IDEOLOGIA DO DIREITO:.......................................27
7º PONTO) DIZ RESPEITO À TEORIA DA OBEDIÊNCIA..........27
2.4. RELAÇÃO ENTRE O DIREITO POSITIVADO E O
JUSPOSITIVISMO.........................................................................................................28
2.5. O JUSPOSITIVISMO NO DIREITO PENAL E AS ESCOLAS
PENAIS...........................................................................................................................28
3. CIÊNCIA DO DIREITO E FILOSOFIA DO DIREITO.............................................32
4. LACUNAS VALORATIVAS NA TEORIA JUSPOSITIVISTA...............................33
4.1. COERÊNCIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO......................................34
ix
4.2. A COMPLETUDE DO ORDENAMENTO JURÍDICO..............................36
4.3. HERMENÊUTICA: MEIOS DE INTERPRETAÇÃO
DECLARATIVA.............................................................................................................37
5. A VALORAÇÃO NA TEORIA JURÍDICA PENAL.................................................39
6. A MOTIVAÇÃO DA NORMA..................................................................................43
7. O SISTEMA PENAL..................................................................................................45
8. PONTOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO PENAL E A ATIVIDADE
VALORATIVA DE CRIAÇÃO DO SISTEMA.............................................................47
9. ANTINOMIAS DO SISTEMA...................................................................................48
10. ELIMINAÇÃO DAS ANTINOMIAS DE PRINCÍPIO DO SISTEMA PENAL.....49
11. CONCLUSÃO...........................................................................................................51
2ª PARTE – AXIOLOGIA – AS IDEOLOGIAS PENAIS........................................53
12. O VALOR..................................................................................................................53
13. TEORIAS SOBRE O VALOR..................................................................................53
14. CARACTERÍSTICAS DO VALOR.........................................................................55
15. ORDENAÇÃO DOS VALORES..............................................................................56
16. CLASSIFICAÇÃO DOS VALORES.......................................................................57
17. A ORIGEM FUNDANTE DO SISTEMA PENAL..................................................58
18. AS IDEOLOGIAS PENAIS:.....................................................................................59
18.1. A AXIOLOGIA DA PENA........................................................................59
18.1.1. DESLEGITIMAÇÃO:.................................................................59
18.1.1.a. ABOLICIONISMO.......................................................60
18.1.1.b. MINIMALISMO RADICAL OU ABOLICIONISMO
MEDIATO...............................................................................................62
18.1.2. LEGITIMAÇÃO OU JUSTIFICAÇÃO:.....................................63
18.1.2.a. TEORIAS RETRIBUTIVISTAS:.................................64
18.1.2.a.I. RETRIBUTIVISMO ÉTICO..........................65
18.1.2.a.II. RETRIBUTIVISMO JURÍDICO...................65
18.1.2.b. TEORIAS UTILITARISTAS:......................................66
18.1.2.b.I. PREVENÇÃO ESPECIAL:............................67
. PREVENÇÃO ESPECIAL POSITIVA.............68
. PREVENÇÃO ESPECIAL NEGATIVA...........68
. DOUTRINAS CORREICIONALISTAS...........69
x
18.1.2.b.II. PREVENÇÃO GERAL:................................70
. PREVENÇÃO GERAL POSITIVA OU
INTEGRADORA............................................................................................................71
. PREVENÇÃO GERAL NEGATIVA................72
18.1.2.c. TEORIAS MISTAS OU ECLÉTICAS:........................72
18.1.2.c.I. TEORIA DIALÉTICA UNIFICADORA.......73
18.1.2.c.II. TEORIA DE DIREITO PENAL MÍNIMO OU
GARANTISMO...................................................................................................74
18.1.3. CONSEQÜÊNCIAS DAS IDEOLOGIAS PENAIS...................75
18.2. A AXIOLOGIA DO BEM JURÍDICO......................................................78
18.2.1. O DIREITO ESTATAL DE PROIBIR (PRINCÍPIO DA
PROPORCIONALIDADE).............................................................................................78
18.2.2. VARIAÇÃO DA ORDENAÇÃO DE VALORES (DO DIREITO
PENAL MÁXIMO AO PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMO).........................80
18.2.3. OS BENS JURÍDICOS COMO PROJEÇÃO DOS VALORES
(PRINCÍPIO DA EXCLUSIVA PROTEÇÃO DE BENS JURÍDICOS).......................80
18.2.4. A ELEVAÇÃO VALORATIVA DO BEM JURÍDICO A BEM
JURÍDICO-PENAL (PRINCÍPIOS DA FRAGMENTARIEDADE E DA
SUBSIDIARIEDADE)....................................................................................................82
18.2.5. A VULNERAÇÃO CONCRETA DO BEM JURÍDICO-PENAL
EM SENTIDO VALORATIVO E NORMATIVO (PRINCÍPIO DA
OFENSIVIDADE)...........................................................................................................84
18.2.6. BREVE RELATO DA EVOLUÇÃO HISTÓRICO-
CONCEITUAL DO BEM JURÍDICO............................................................................86
18.2.6.a. CONCEPÇÃO PRÉ-ILUMINISTA..............................86
18.2.6. b. CONCEPÇÃO ILUMINISTA.....................................88
18.2.6. c. CONCEPÇÃO POSITIVISTA.....................................89
. CONCEPÇÃO DE BINDING............................89
. CONCEPÇÕES NATURALÍSTICAS...............90
. CONCEPÇÃO NORMATIVISTA PURA.........91
18.2.6. d. CONCEPÇÃO SOCIOLÓGICA..................................92
18.2.7. TEORIAS DE FUNDAMENTAÇÃO CONSTITUCIONAL DO
BEM JURÍDICO.............................................................................................................94
18.2.7.a. CONCEPÇÕES DE CARÁTER GERAL.....................95
xi
18.2.7.b. CONCEPÇÕES DE CARÁTER ESTRITO.................97
18.2.8. LEGITIMAÇÃO E DESLEGITIMAÇÃO AXIOLÓGICA DA
PROTEÇÃO AOS BENS JURÍDICOS (CRITÉRIOS DE LIMITAÇÃO DO
EXERCÍCIO DO PODER POLÍTICO)..........................................................................98
18.3. A AXIOLOGIA DO PROCESSO..............................................................99
18.3.1. A(S) FUNÇÃO(ÕES), A(S) FINALIDADE(S) E O(S)
FUNDAMENTO(S) DO PROCESSO PENAL..............................................................99
18.3.2. LEGITIMAÇÃO DO DIREITO ESTATAL DE JULGAR:......101
18.3.2.a. TEORIAS DESLEGITIMADORAS DO
PROCESSO...................................................................................................................102
18.3.2.b. TEORIAS LEGITIMADORAS OU
JUSTIFICACIONISTAS DO PROCESSO:..................................................................104
18.3.2.b.I. UTILITARISMO:.........................................105
. REPRESSIVISTA............................................106
. GARANTISTA.................................................109
. PACIFISTA......................................................110
18.3.2.b.II. AUTO-JUSTIFICANTE OU
UTILITARISMO AVALORATIVO.............................................................................112
18.3.2.c. (DES)LEGITIMAÇÃO DO DIREITO DE
JULGAR COM LEGITIMAÇÃO DO PROCESSO.....................................................114
18.3.3. A CONFORMAÇÃO DAS REGRAS PROCESSUAIS AOS
VALORES CONSTITUCIONAIS................................................................................114
18.3.4. (RE)PENSANDO A EPISTEMOLOGIA DO PROCESSO
PENAL..........................................................................................................................116
CONCLUSÃO..............................................................................................................118
BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................121
12
Introdução – Para uma Filosofia do Direito Penal
“Se onde está o homem aí está o Direito, não é menos
certo que onde está o Direito se põe sempre o homem com a sua
inquietação filosófica, atraído pelo propósito de perquirir o
fundamento das expressões permanentes de sua vida ou de sua
convivência.” 1
Não resta dúvida quanto à existência de inquietações filosóficas inerentes
ao Direito, mormente no que concerne à perquirição de seus fundamentos, seu conceito,
sua vigência, sua eficácia.
O problema está na existência ou não de uma Filosofia do Direito, ou
seja, será que podemos considerar Filosofia este estudo concernente às perquirições
supra aludidas? Miguel Reale nos responde:
“Trata-se, a meu ver, de um pseudoproblema,
porquanto a Filosofia do Direito é a Filosofia mesma quando seu
objeto é a experiência do Direito, por sua validade universal, como se
dá, também, com a Filosofia da Arte, da Linguagem etc.” 2
Verifica-se, desta forma, que o Direito, enquanto Ciência Cultural é
objeto de experiências e indagações, porquanto não podemos negar a natureza filosófica
de tais investigações apenas por se tratar de um dos muitos ramos do saber científico.
O mesmo ocorre com cada uma das áreas de afetação jurídica, sobretudo
o Direito Penal cuja tensão entre valores e suas implicações, o que será melhor
abordado mais a frente, além de sua vasta realização empiricamente observável no curso
da História da cultura Humana, fazem inerente que sobre ele recaia o pensamento
filosófico.
No entanto, cabe, neste momento, volver nosso foco para a Filosofia do
Direito, para após nos debruçarmos sobre o interesse filosófico penal.
Assim é que nunca se olvidou na História, onde houvesse pensamento
filosófico, das indagações sobre uma realidade social como é o Direito.
Na linha deste pensamento, Miguel Reale vislumbra, anteriormente a
Kant, a existência de uma Filosofia do Direito que termina por chamá-la Filosofia
Jurídica implícita, período que, segundo o jusfilósofo brasileiro remonta aos pré-
socráticos. Por outro lado, encontra uma Filosofia Jurídica explícita, a qual “...cuida de
1 Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 285/286.
2 Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 288.
13
estabelecer as fronteiras de seu objeto próprio nos domínios do discurso filosófico”3 na
época em que se deu a terceira fundação4 da Ciência Jurídica ocidental, nos séculos
XVIII e XIX.
Assente a existência de uma Filosofia do Direito, enquanto disciplina
autônoma, o problema se converte para a temática a ser estudada.
Há diversas concepções empiricistas, reduzindo a Filosofia do Direito a
modelos hermenêuticos e normativos concebidos em função do ordenamento jurídico,
tal como logicamente se apresenta, ou, sua variação como “Teoria da linguagem
jurídica” de Norberto Bobbio.
Outras correntes há que assentam no fato o horizonte da normatividade
jurídica. Não se confundem, por óbvio com a teoria da normatividade pura, gravitando
em função da norma fundamental, como é o pensamento de Hans Kelsen na teoria pura
do Direito.
Fato é que falta a estas concepções a investigação do elemento
axiológico. Nas palavras de Miguel Reale:
“Assim é que vemos o espectro das opiniões alargar-se,
a partir de disposições de aberto negativismo, que convertem a
Filosofia do Direito em simples “visão unitária” da Ciência Jurídica
mesma (o que, a rigor, não tem sentido) ou no exame de sua
metodologia, ou, então, como é mais freqüente, em mera Teoria Geral
do Direito, de caráter puramente empírico, isto é, como conjunto
sistemático dos modelos hermenêuticos e normativos concebidos em
função do ordenamento jurídico, tal como este logicamente se
apresenta, sem qualquer indagação sobre seus fundamentos
axiológicos, ou sobre a natureza da experiência jurídica como algo de
distinto do corpo das regras jurídicas positivas.”5
Desta forma, à luz da crítica formulada às visões avalorativas e
reducionistas, o citado filósofo define o objeto da Filosofia do Direito como sendo o
3 Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 286.
4 Para o referido jusfilósofo, os romanos constituem pela primeira vez o Direito como Ciência, com a
esquematização predeterminada e institucional das classes de comportamento possíveis; no século XIV
uma nova consciência jurídica se funda com o estudo sistemático de uma ordem normativa autônoma pela
chamada “Jurisprudência Culta”; e, por fim, a terceira fundação ocorre com a elaboração do Código Civil
de Napoleão, com contribuições da Escola exegética e da Escola Histórica. 5 Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 289.
14
“estudo crítico-sistemático dos pressupostos lógicos, axiológicos e históricos da
experiência jurídica”6.
Em que pese a posição pessoal do citado jusfilósofo, não resta dúvida,
como se verá durante o desenvolvimento deste estudo, que a posição avalorativa será
objeto de duras críticas.
Diversas são as posições dos jusfilósofos sobre quantas são as partes
fundamentais da Filosofia do Direito e quais seus conteúdos7, todavia, o que se buscará
neste estudo é traçar uma visão filosófica do Direito Penal, sobretudo como resposta a
duas indagações: Qual o objeto cognoscitivo e o ser cognoscente do Direito Penal?
Quais os valores que norteiam o Direito Penal?
O pensamento filosófico do Direito Penal transita entre o valor da
liberdade humana e o do poder punitivo, é a tensão sempre presente nos modelos
punitivos.
Assim é que deve ser assentado neste momento que o sistema punitivo
estatal se baseia em três pontos fundamentais, a saber: o bem jurídico protegido, a pena,
e o processo, porquanto, representam na esfera da ciência penal os institutos
correspondentes na esfera política aos direitos estatais de proibir, punir e julgar,
respectivamente. Todos os questionamentos filosóficos sobre o Direito Penal devem
dizer respeito a estes temas.
A previsão da conduta criminosa punível, o Tatbestand, não é legiferado
aleatoriamente, tem invariavelmente como objeto a proteção a um bem jurídico. Assim,
ao tutelar penalmente um bem jurídico, espécie de bem cultural como se verá no
decorrer deste estudo, o legislador levará em consideração uma ordem de valores.
A pena, sanção própria do Direito Penal, deve ser prevista pelo
legislador igualmente conforme sua ordem de valores, porquanto a finalidade da pena
será a própria finalidade do Direito Penal em si.
6 Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 290.
7 Miguel Reale expõe a divisão tripartida de Giorgio Del Vecchio: Gnoseologia Jurídica – o
conhecimento do Direito; Deontologia Jurídica – o estudo dos deveres; Fenomenologia Jurídica – o
estudo do Direito como fenômeno ou fato social. Em seguida expõe a divisão de Rudolf Stammler em
duas partes principais e três complementares, sendo os principais: o conceito de Direito e a idéia de
Direito, por fim, os três complementares são: a Origem do Direito, Técnica Jurídica e a Prática do
Direito. Já o próprio Miguel Reale encontra quatro partes: a Ontognoseologia Jurídica – parte geral da
Filosofia do Direito destinada a determinar em que consiste a experiência jurídica, indagando de suas
estruturas objetivas, bem como saber como tais estruturas são pensadas; e a parte Especial subdividida
em: Epistemologia Jurídica – dedicada ao problema da vigência e dos valores lógicos do Direito;
Deontologia Jurídica – dedicada ao problema dos fundamentos ou valores éticos do Direito; Culturologia
Jurídica – dedicada ao problema da eficácia social do Direito. (Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª
ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 305).
15
O processo penal encerra em si toda a relação jurídica que permitirá ao
Estado reconhecer ou não prática de um crime e a necessidade de imposição de sanção
em razão deste fato. Porém, a forma como o Estado-Juiz alcançará o resultado, ou seja,
a conferência de direitos ao cidadão, em sua defesa, e ao Estado, para sancionar ou não
o infrator, dependerá, outrossim, da ordem de valores que orienta o legislador.
O Direito Penal é realizado nos moldes em que o legislador o formata? A
resposta a esta pergunta não é objeto deste estudo, uma vez que aqui não se ocupará de
verificar a realizabilidade do sistema punitivo ideal. De outro lado, se perquirirá qual é
o sistema punitivo institucionalizado pelo legislador.
Porquanto, o verdadeiro objeto deste estudo é a indagação filosófica
sobre o exercício do poder político que delineia o sistema punitivo por meio da
legislação que constitui o sistema penal.
Assim é que a primeira parte se ocupará de traçar um estudo crítico da
doutrina juspositivista com o objetivo de buscar o objeto do conhecimento do Sistema
Penal, bem como a atividade do ser que o conhece, a qual chamaremos de
ontognoseologia.
Por fim, na segunda parte teremos o cuidado de perquirir os valores que
norteiam o Direito Penal, sem perder de vista uma teoria geral dos valores, pois que
seus elementos, sua ordem, suas características e as teorias que perseguem seu conceito
são vitais para a compreensão setorizada que se fará nesta mesma parte e que diz
respeito a um breve apanhado histórico das concepções axiológicas do Direito Penal,
tendo por base seus três elementos básicos constituidores.
16
1ª Parte – Ontognoseologia – Na busca do ser cognoscente e do objeto cognoscível
do Sistema Penal
1. Introdução
A vertiginosa escalada de violência nos centros urbanos traz à discussão
as formas para eliminá-la, diminuí-la, ou, ao menos, obstar seu crescimento.
É muito comum buscar a solução para estes males sociais no
ordenamento jurídico penal, assim entendido o conjunto de normas que regulamentam o
Direito Penal, o Direito Processual Penal e os órgãos administrativos de segurança
pública, mormente a polícia.
Aliado isto ao voraz interesse da opinião pública de infligir punição aos
criminosos, incentivada pela mídia com mensagens subliminares e até ostensivas (como
é o caso de programas televisivos em que a população toma conhecimento de um caso
particular e é chamada a delatar o autor de um crime), o aumento do número de normas
penais, sobretudo casuísticas, é inegável8. Sobre este aspecto do Direito Penal já vem
nossos juristas se opondo:
“Em grave equívoco incorrem, freqüentemente, a
opinião pública, os responsáveis pela Administração e o próprio
legislador, quando supõem que, com a edição de novas leis penais,
mais abrangentes ou mais severas, será possível resolver-se o
problema da criminalidade crescente. Essa concepção do direito penal
é falsa porque o toma como uma espécie de panacéia que logo se
revela inútil diante do incremento desconcertante das cifras da
estatística criminal, apesar do delírio legiferante dos nossos dias”9
No entanto, não se pode olvidar a influência de tendências
descriminalizadoras e despenalizantes, que, outrossim, se fazem presentes no sistema
penal brasileiro com a produção de normas tendentes a trazer para o nosso ordenamento
novos institutos e experiências vividas em outros países, inserindo-os sem maiores
investigações sobre as peculiaridades de suas aplicações práticas10
.
Todas as exemplificações acima, por motivos absolutamente diferentes,
seja, respectivamente, por interesse preventivista, retributivista ou minimalista, que não
8 A este respeito vide artigo de nossa autoria:
9 Francisco de Assis Toledo, Princípios Básicos de Direito Penal, 5ª ed., 10ª tiragem, Saraiva, São Paulo,
1994, pág. 5. 10
Podemos tomar como exemplo a transação penal introduzida no ordenamento brasileiro pela Lei nº
9.009 de 1995, cuja origem se encontra no Plea Bargaining norte americano.
17
são os únicos, se trata de um rol exemplificativo, incham o ordenamento jurídico penal
de forma a torná-lo incoerente sob o ponto de vista da justificação das normas.
É este o objetivo do presente trabalho, identificar axiologicamente o
fundamento das normas penais para encontrar e apontar as incoerências valorativas do
sistema penal.
O trabalho de natureza filosófica assim se configura:
“A Filosofia busca, por conseguinte, atingir respostas de
valor universal, não redutíveis a contingências de espaço e de tempo,
porque relativa à essência mesma dos problemas. É isto que distingue,
de certa forma, o saber científico do saber filosófico, o que não
significa, é claro, que a Filosofia se desenvolva com abstração dos
dados da experiência, que ela, ao contrário, necessariamente envolve e
compreende...” 11
Na busca dos fundamentos se procedeu à investigação dos motivos
declarados diretamente pelo legislador ao propor cada projeto de lei penal ao
parlamento brasileiro, assim como da exposição de motivos de cada codificação de
natureza penal.
Importa frisar que, ao buscar o valor da norma e questionar a coerência
do sistema penal, especificamente sob o aspecto positivo, ou seja, o Direito Penal
positivado, estarão sendo utilizados conceitos da teoria juspositivista, segundo a visão
de Norberto Bobbio12
, para, em seguida, romper com a sua ideologia.
Tomamos, neste sentido a definição de crítica filosófica de Miguel Reale:
“Quando fazemos crítica filosófica, em suma, o que
procuramos conseguir são as condições primeiras, sem as quais a
realidade não teria significação ou validade. Fazer crítica, portanto, é
descer à raiz condicionante do problema, para atingir o plano ou
estrato do qual emana a explicação possível. Criticar é penetrar na
essência de algo, nos seus antecedentes de existência (pressupostos
11
Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 66. 12
Diversos são os autores e as teorias juspositivistas, no entanto Norberto Bobbio foi escolhido por fazer
referência aos diversos autores e às várias teorias, expondo didaticamente os aspectos históricos e os
principais pontos da teoria juspositivista em várias de suas obras, mormente em O Positivismo Jurídico:
Lições de Filosofia do Direito.
Desta forma, o que se fará é uma crítica ao juspositivismo, sobretudo na visão de Norberto Bobbio, sem,
todavia, postar-se distante dos demais teóricos desta corrente filosófica.
18
ônticos) ou então nos seus precedentes lógicos de compreensão
(pressupostos gnoseológicos).” 13
Por estas razões, esta primeira parte se ocupará de esclarecer os conceitos
utilizados, tomados da teoria juspositivista, e realizar uma ruptura crítica com esta teoria
para proceder à investigação, de natureza filosófica, da coerência dos fundamentos da
legislação, bem como a identificação das antinomias ideológicas do Ordenamento
Jurídico Penal.
2. O direito positivado e o juspositivismo
Cumpre, ab initio, deixar clara a existência de relação entre o direito
positivado e o juspositivismo.
É inegável a ligação entre o direito positivado e o juspositivismo, o que
será abordado mais detalhadamente ao final deste parágrafo, todavia, a idéia de
positivação não nasceu com a ideologia juspositivista, ao contrário, a produção
legislativa é o fato histórico que dá origem ao pensamento juspositivista.
A doutrina juspositivista sequer é anterior aos embates entre direito
positivo e direito natural nos pensamentos clássico e medieval14
, mesmo porque o
juspositivismo encontra seu nascedouro no surgimento do Estado moderno com a crítica
à concepção racionalista de orientação filosófica jusnaturalista.
O que não significa que o impulso legislativo não tenha encontrado
amparo na concepção filosófica iluminista jusnaturalista do século XVIII, como se verá
a seguir.
2.1. Origem da moderna positivação do Direito
13
Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 67. 14
Segundo Norberto Bobbio em seu livro O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, Ícone,
São Paulo, 1995, pág. 16, já no pensamento de Platão e Aristóteles se encontrava a distinção conceitual
entre direito natural e direito positivo. Malgrado aduzisse a lex aeterna e a lex divina, Santo Tomás
também distinguia o direito natural (lex naturalis) e a o direito positivo (lex humana). O autor aponta seis
critérios de distinção entre o direito natural e o direito positivo: 1º) a universalidade do direito natural em
contraposição à particularidade do direito positivo; 2º) a imutabilidade do direito natural em
contraposição à mutabilidade do direito positivo; 3º) o direito natural é posto por algo (a natureza ou
Deus), enquanto o direito positivo é posto pelos homens; 4º) o direito natural é conhecido através da
nossa razão, enquanto o direito positivo é conhecido através de uma declaração de vontade alheia; 5º) os
comportamentos regulados pelo direito natural são bons ou maus em si mesmos, enquanto os
comportamentos regulados pelo direito positivo só ganham relevância porque foram disciplinados pelo
direito positivo; 6º) o direito natural estabelece aquilo que é bom, enquanto o direito positivo estabelece
aquilo que é útil.
19
Quanto à expressão “moderna positivação do Direito”, devemos entender
a produção legislativa que se seguiu ao surgimento dos Estados modernos, máxime os
movimentos codificadores dos séculos XVIII e XIX.
No que concerne à justificativa filosófica da positivação do direito do
Estado, tanto as concepções de caráter absolutista, como as de natureza liberal, levaram
à estatização.
Para Thomas Hobbes, em sua concepção contratualista de formação do
Estado, no estado de natureza o homem é levado a respeitar as leis (naturais,
evidentemente) em consciência, isto é, sem imposição externa. Ao sair do estado de
natureza para o estado civil por meio do contrato social, os súditos conferem toda força
ao soberano, que passa a monopolizar o poder coercitivo de observância das leis por ele
próprio impostas, visto que o poder absoluto engloba o poder de regulamentar as
relações sociais: o poder normativo.
As concepções liberais também seguem a linha da positivação do direito
do Estado. Veja-se, por exemplo, que Montesquieu no Espírito das Leis traça a
separação entre a tarefa do Estado deixada ao Poder Judiciário e ao Poder Legislativo,
restando àquele julgar de acordo com o texto preciso da lei, tarefa específica deste.
Especificamente no campo penal, Cesare Beccaria, enuncia a máxima
nullum crimen, nulla poena sine lege e nega ao Poder Judiciário mais do que a
possibilidade de normatizar, mas em sua tarefa sequer está contida a possibilidade de
interpretar as leis:
“Nem mesmo a autoridade de interpretar as leis penais
pode caber aos juízes criminais, pela própria razão de não serem eles
legisladores.”15
Factualmente, o movimento de codificação na França revolucionária, de
inspiração, portanto, claramente iluminista, demonstra que o fundamento do direito
positivo estatal que se colocava à época tinha natureza claramente jusnaturalista.
Ilustra bem esta constatação o discurso de Cambacérès, jurista e político
que apresentou três projetos de código civil, proferido em 4 de junho de 1793 ao
apresentar um projeto de lei seu pela equiparação dos filhos naturais e legítimos:
15
Cesare Beccaria, Dos Delitos e das Penas, Tradução: Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa, 2ª
ed., 6ª tiragem, Martins Fontes, São Paulo, 2002, pág. 45.
20
“Existe uma lei superior a todas as outras, uma lei
eterna, inalterável, própria a todos os povos, conveniente a todos os
climas: a lei da natureza.
Eis aqui o código das nações, que os séculos não
puderam alterar, nem os comentadores desfigurar. É a ele apenas que
é necessário consultar.”16
Não resta dúvida que a inspiração iluminista retratada neste discurso
fundamenta o direito a ser positivado nas leis naturais, qual seja, é a idéia de positivação
do direito natural.
Resta claro, portanto, que o movimento moderno positivador do direito
não encontra origem na doutrina juspositivista.
2.2. Origem do Juspositivismo moderno
Malgrado fosse jusnaturalista, podemos encontrar em Thomas Hobbes,
no Diálogo entre um filósofo e um estudioso do direito comum da Inglaterra17
, o
embrião do juspositivismo ao negar legitimidade à common law por ser obra da razão
dos juízes, em confronto com sua concepção do direito como obra da vontade do
soberano, ao qual é atribuído com exclusividade o poder legislativo.
No entanto, foi com a crítica à filosofia jusnaturalista que o
juspositivismo encontrou campo fértil para seu nascimento enquanto doutrina.
A “Escola histórica do direito” nascida na Alemanha com Gustavo Hugo
com a obra Filosofia do direito positivo, teve em Savigny seu maior expoente. O
historicismo se caracteriza, fundamentalmente, pela oposição à filosofia iluminista.
Porquanto, ao passo que o juspositivismo preconizava a existência de caracteres
essenciais do Homem, o historicismo encontrava a variedade da história em virtude da
variedade do próprio homem; enquanto a interpretação da história pelos iluministas é
estritamente racional, o historicismo encontra irracionalidade na história exatamente em
razão de o homem não agir com a razão, e sim com a emoção, a paixão, o impulso;
enquanto os iluministas exaltavam as “luzes” da Idade Racionalista, os historicistas
exaltavam o passado, interessando-se pelas origens da civilização.
16
Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, Ícone, São Paulo, 1995, pág.
69. 17
Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, idem , pág. 35.
21
No entanto, Savigny não encontrava naquela época as condições
históricas para a codificação, pugnando que a única forma de reverter o que acreditava
ser a decadência jurídica alemã era o desenvolvimento de uma ciência do direito
uniforme em seu país. Contrastando, claramente com os pontos fundamentais do
juspositivismo, que a seguir melhor abordaremos.
Conquanto o movimento codificador francês, como visto, tenha tido
origem no pensamento racionalista, de caráter jusnaturalista, a escola da exegese
francesa, que se seguiu à Codificação Napoleônica, trouxe em si elementos que,
posteriormente, constituíram pontos do pensamento juspositivista.
Segundo a escola da exegese, que não nega a existência do direito natural
– aí um elemento diferenciador do juspositivismo –, este só tem aplicação quando
positivado e o juiz tem a possibilidade, portanto, de criar regra, haja vista a onipotência
do legislador, em cuja vontade deve o juiz se basear para interpretar a lei.
O utilitarismo inglês, exponenciado por Bentham, malgrado de
inspiração iluminista, dada a convicção da possibilidade de se estabelecer uma ética
objetiva, difere do jusnaturalismo por não localizar esta ética na natureza do homem,
mas na verificação empírica do fato de que cada homem busca a própria utilidade.
Aproxima-se do juspositivismo por ter criticado a concepção inglesa da common law,
preconizando uma codificação completa e universal (neste último ponto aproxima-se
das concepções de direito natural).
2.3. Juspositivismo: método, teoria e ideologia
Neste contexto histórico, com o advento das codificações, com as
ideologias contrapostas ao jusnaturalismo, o juspositivismo se desenvolveu no século
XIX e XX, sendo tratado por diversos autores.
Norberto Bobbio18
identifica, entre as várias teorias juspositivistas, sete
pontos fundamentais do positivismo jurídico, que assim classificou:
a) quanto ao modo de abordar:
1º ponto) para o positivista jurídico o direito deve ser considerado
como um fato, não como um valor.
O jurista desta escola estuda o direito assim como o cientista estuda a
realidade da natureza, observando os fatos e se abstendo de formular juízos de valor.
18
Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, idem , pág. 131.
22
Deste comportamento nasce a teoria da validade do direito ou teoria do
formalismo jurídico, na qual a validade do direito está vinculada à sua estrutura formal,
independente do seu conteúdo.
Uma norma é valida conforme ela faça parte de um ordenamento jurídico
real, ao passo que o valor é a qualidade que se diz da norma jurídica adequada ao direito
ideal, qual seja, como ele deve ser de acordo com valores fundamentais nos quais ele
deve se inspirar.
Validade e valor, portanto, restam diferenciados, interessando ao jurista
juspositivista apenas a validade.
b) quanto à teoria do direito:
2º ponto) diz respeito à teoria da coatividade do direito.
De acordo com a teoria clássica da coação, esta caracteriza o direito, na
visão de Emmanuel Kant exposta na Metafísica dos Costumes, e o difere da moral, visto
que esta não é coercitiva.
Na concepção moderna da teoria da coação, preconiza Hans Kelsen, o
direito não se faz valer pela coação, mas é um meio de regulamentar a coação. Ademais,
o destinatário da norma se desloca do cidadão para os órgãos judiciários, pois as normas
jurídicas regulam o modo pelo qual os juízes irão fazer valer o uso da força do Estado
em relação aos cidadãos. O direito estabelece quem, quando, como e quanto deve o
Estado usar a força.
3º ponto) diz respeito às fontes do direito.
A lei é a fonte do direito prevalente sobre todas as outras de acordo com
a doutrina juspositivista. Tal afirmação só é possível diante de duas condições:
ordenamento complexo, caso contrário, ou seja, se o ordenamento for simples, não
haverá prevalência de fonte, pois seria única; ordenamento hierarquicamente
estruturado, pois se as fontes estiverem no plano paritário não haverá prevalência de
fonte.
O detentor do poder produz fontes de qualificação jurídica, caso produza
diretamente as regras, ou fontes de conhecimento jurídico, quando o poder supremo
23
reconhece ou recepciona uma regra decorrente de um fato social precedente ao Estado19
,
ou quando delega poder a outro órgão diverso do portador da soberania para estabelecer
normas jurídicas para certas matérias e dentro de certos limites. A fonte de qualificação
é a lei.
O costume só é reconhecido como fonte de direito secundum legem ou,
no máximo, praeter legem, o mesmo ocorrendo com o juízo. Já à eqüidade e à natureza
das coisas não se confere o status de fontes, malgrado grande parte das legislações
confiram ao juiz a possibilidade de decidir com base nelas, mas neste caso a fonte,
segundo o citado autor é o próprio juízo.
4º ponto) diz respeito à teoria imperativista da norma jurídica.
Distinguem-se duas fases do imperativismo jurídico: o imperativismo
ingênuo e o imperativismo crítico. O primeiro considera o direito como um comando
dirigido pelo soberano aos cidadãos, enquanto o segundo precisa os caracteres do
imperativo jurídico.
Kant, em Fundamentação à Metafísica dos Costumes, formula a
distinção entre imperativo categórico e imperativo hipotético. O primeiro diz respeito
aos imperativos morais, que são categóricos porque comandam uma ação que é boa em
si mesma, sem o fim que ela possa atingir. O imperativo hipotético, por sua vez,
prescreve uma ação que é boa condicionadamente ao fim que pretende alcançar. As
normas jurídicas são um imperativo hipotético, pois o cidadão só deve atuar de acordo
com a prescrição, caso pretenda alcançar determinado objetivo.
Kelsen, por sua vez, em Teoria Geral das Normas, critica a formulação
do imperativo e o reconstrói. Sua concepção é que o imperativo é hipotético, mas a
norma tem duas formulações, uma dirigida aos cidadãos, outra dirigida aos juízes. Na
primeira, a qual chama de norma secundária, se o cidadão quer algo (ou evitar algo),
deve realizar uma ação. Na segunda formulação, a qual chama de norma principal,
dirigida ao juiz, se o cidadão pratica determinada ação, o juiz deve realizar o
consectário.
5º ponto) diz respeito à teoria do ordenamento jurídico.
19
Reconhece quando o portador do poder soberano confere caráter de juridicidade a posteriori a um fato
social precedente e recepciona quando o acolhe este fato no ordenamento sem contribuir para sua
formação.
24
O Ordenamento Jurídico é um conjunto de normas20
. Esta genérica
definição não permite uma melhor compreensão, sem o conhecimento da formulação da
teoria do ordenamento jurídico, formulada por Norberto Bobbio, que veremos
posteriormente com maiores detalhes, mas que se pode adiantar basear-se em três
caracteres fundamentais: a unidade, a coerência e a completude.
Para o autor Italiano, a Teoria do Ordenamento Jurídico é a contribuição
original do positivismo jurídico e é através dela que se chega ao coração desta corrente
jurídica21
. Particularmente, para o nosso estudo, a Teoria do Ordenamento Jurídico
ganha especial relevo, porquanto trataremos dos fundamentos de sua formação.
Entende-se por unidade, na concepção jusnaturalista, como unidade
material, relativa ao conteúdo das normas, ao passo que, para o juspositivismo, a
unidade de que trata o ordenamento é formal, diz respeito ao modo pelo qual as normas
são postas.
Para Kelsen22
, o que caracteriza a unidade do ordenamento não é a
origem única da fonte, posto que compreender a unidade de um ordenamento simples é
fácil. Porém, a unidade de um ordenamento complexo está na norma fundamental, que
se põe no ápice do sistema23
e, segundo a qual, os órgãos constitucionais têm o poder de
fixar normas válidas dirigidas a todos aqueles que tem o dever de obedecê-las.
No que concerne à coerência do ordenamento jurídico, entende Norberto
Bobbio24
que seja necessário que os entes que constituem um ordenamento estejam em
relacionamento de coerência com o todo e entre si.
Para explicar o que entende por coerência, Norberto Bobbio esclarece, ab
initio, o que Kelsen entende por sistema, classificando-o como sistema estático e
sistema dinâmico.
No primeiro sistema, todas as normas derivam de uma norma originária,
uma regra fundamental. Este sistema, portanto, que encontra relação entre as normas no
conteúdo é dedutivo.
20
Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, tradução Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos,
10ª edição, UnB, Brasília, 1999, pág. 31. 21
Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, idem , pág. 197. 22
Citado por Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 59. 23
Por diversas vezes Norberto Bobbio trata em suas obras, mormente a já citada Teoria do Ordenamento
Jurídico, de ordenamento como sistema, como sinônimos que seriam na sua visão. Esta questão que diz
respeito ao significado do termo sistema será melhor discutida no item 6 desta primeira parte deste
estudo. 24
Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 71.
25
No segundo sistema, as normas derivam umas das outras através das
sucessivas delegações de poder, portanto, estão ligadas não pelo conteúdo, mas pela
autoridade. A relação entre as normas deste sistema não é, destarte, material, e sim
formal.
Norberto Bobbio25
identifica, no uso histórico da filosofia do Direito,
três significados para o termo sistema:
a) sistema dedutivo: um ordenamento é um sistema enquanto todas as
normas jurídicas daquele ordenamento são deriváveis de alguns princípios gerais,
definição própria do Direito Natural;
b) sistema indutivo: não se trata da tarefa de deduzir, mas de classificar o
sistema cientificamente, partindo do próprio conjunto de normas para a construção,
empiricamente, de conceitos gerais, próprio da escola pandectista alemã (Savigny);
c) sistema compatível: um ordenamento deve ter somente normas
compatíveis entre si para que seja considerado sistema, daí resulta que se duas normas
forem incompatíveis entre si, uma ou duas delas deverá deixar de existir para que o
sistema continue existindo; para Norberto Bobbio26
, este sistema se diferencia do
dedutivo porque neste a contradição implica na ruína do sistema como um todo,
enquanto no sistema que propõe, ao qual denomina jurídico, apenas a norma
incompatível, ou as duas, sejam excluídas27
.
Neste exercício de exclusão de antinomias se mantém a coerência do
sistema assim concebido.
No que concerne à completude, identifica-se um ordenamento completo
quando o juiz pode encontrar no próprio ordenamento uma norma para regular qualquer
caso, entendendo por dogma da completude o princípio segundo o qual o ordenamento
fornece ao juiz, em qualquer caso, uma solução sem recorrer à eqüidade.
De acordo com a teoria do espaço jurídico vazio, um ordenamento seria
sempre completo e aquilo que não fosse regulamentado não faria parte do mundo
jurídico, seria o espaço onde falta o próprio Direito. Para a teoria da norma geral
exclusiva, ao contrário, entende que o Direito nunca falta, porquanto uma norma que
regulamenta um fato regulamenta automaticamente todos os outros, já que uma norma
25
Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 77. 26
Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 80. 27
Não é demais identificar o claro interesse do filósofo italiano em desmerecer o sistema dedutivo,
quando, em verdade, para o sistema próprio do Direito Natural a norma incompatível com o sistema, ou
seja, em confronto com o valor norteador não fará ruir o sistema, mas sim a própria norma.
26
que proíbe fumar, permite, conseqüentemente, todos os outros comportamentos não
compreendidos na norma.
Norberto Bobbio, entretanto, não comunga desta opinião, senão vejamos:
“Entre os casos inclusos expressamente e os casos
exclusos há, em cada ordenamento, uma zona incerta de casos não-
regulamentados mas potencialmente colocáveis na esfera de influência
dos casos expressamente regulamentados.” 28
Esses casos não regulamentados são evidentemente as lacunas próprias,
visto que para o filósofo italiano29
podemos falar de dois tipos de lacuna: a ideológica
ou imprópria e a real ou própria. A primeira resulta da comparação do sistema
existente com o sistema ideal, enquanto a segunda é a que ocorre dentro do próprio
sistema. A primeira só pode ser eliminada através da formulação de novas normas, ao
passo que a segunda pode ser completada pela lei vigente (pela auto-integração ou pela
heterointegração)30
. A primeira é completável pelo legislador, a segunda pelo intérprete.
Para o filósofo italiano, somente a lacuna própria interessa ao jurista.
6º ponto) diz respeito ao problema da interpretação do direito.
O juspositivismo concebe a atividade relativa ao direito em dois
momentos: o criativo, tarefa do legislador na criação da legislação; o cognoscitivo,
manifestação encontrada na jurisprudência (ou ciência jurídica31
).
A jurisprudência para o juspositivismo, ao contrário das correntes
filosóficas antipositivistas, tem uma tarefa meramente declarativa ou reprodutiva de um
direito preexistente, isto é, sua tarefa é explicitar por meios puramente lógico-racionais
o conteúdo das normas dadas anteriormente por um legislador.
O juspositivismo encontra dois meios hermenêuticos consistentes na
interpretação declarativa e na interpretação integrativa. O primeiro diz respeito à
interpretação textual. O segundo diz respeito à interpretação extratextual (nunca
antitextual), e deve ser buscada dentro do próprio ordenamento, podendo ser
28
Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 146. 29
Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 143. 30
Na heterointegração se recorre a ordenamentos diversos ou a fontes diversas daquela dominante (se
recorre normalmente ao costume, tendo em vista ser a lei a fonte dominante nos ordenamentos); e auto-
integração é o recurso à mesma fonte dominante, pela analogia legis e pela analogia juris, que melhor se
exporá no item “e” deste 5º ponto da primeira parte (Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico,
idem , pág. 146/147). 31
Termo do qual Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, idem , pág.
211, se utiliza reconhecendo o comprometimento do seu emprego.
27
interpretação extensiva, analogia legis e analogia juris. Na interpretação extensiva se
estende o sentido do texto, na analogia legis se busca em norma semelhante a solução
para um fato não regulado (sendo impedido para normas penais incriminadoras), na
analogia juris se recorre aos princípios gerais do ordenamento jurídico.
A concepção juspositivista da ciência jurídica, conhecida como
“formalismo científico” e que recebeu o nome de dogmática do direito, é uma ciência
construtiva e dedutiva. Consiste na elaboração de conceitos fundamentais extraídos da
base do próprio ordenamento jurídico, não sujeitos à revisão ou discussão. Com base
nestes conceitos o jurista deve, por dedução lógica, extrair as normas que servem para
solução de todos os casos. Esta concepção se opõe ao realismo jurídico (movimento
antipositivista) que retira da realidade (fato sociológico) proposições empiricamente
verificáveis.
c) quanto à ideologia do direito:
7º ponto) diz respeito à teoria da obediência.
Para Norberto Bobbio32
teoria e ideologia diferem pelo fato de a primeira
ser a expressão de uma atitude cognoscitiva que o homem assume perante certa
realidade, enquanto a segunda é a expressão avaliativa que o homem assume face à
realidade. A teoria tem a finalidade de informar os outros acerca de tal realidade,
enquanto a ideologia pretende influir sobre tal realidade.
O juspositivismo, não obstante tenha se pretendido uma teoria, não
conseguiu seu intento, pois, ao querer o direito de certo modo, manifestou sua
avaliação, tornando-se, outrossim, uma ideologia.
Para o autor33
deve-se falar em positivismo ético ao se referir à ideologia
juspositivista. O positivismo ético apresenta uma versão extremista e uma versão
moderada.
O positivismo ético em sua versão extremista consiste em afirmar no
dever absoluto ou incondicional de obedecer à lei enquanto tal. O autor34
encontra
quatro justificações diferentes para a concepção da obediência absoluta à lei, no entanto,
apenas a quarta é peculiar do positivismo, visto que a primeira que denominou
concepção cética ou realista da justiça é encontrada no pensamento de Trasímaco, livro
32
Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, idem , pág. 223/224. 33
Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, idem , pág. 229. 34
Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, idem , pág. 227.
28
I da República de Platão, segundo a qual a justiça é a expressão da vontade do mais
forte; a segunda denominou concepção convencionalista da justiça, presente no
pensamento de Hobbes, segundo a qual justiça é o que os homens concordam em
considerar justiça; a terceira denominou concepção sagrada da autoridade, segundo a
qual o poder decorre de uma investidura sagrada; e a quarta, denominada concepção do
Estado ético, presente no pensamento de Gentile, baseado em Hegel, segundo a qual o
Estado é a manifestação de Deus na História, sendo portador da missão de realizar a
eticidade, que é a manifestação do espírito superior não só para o direito, como também
para a moral.
O positivismo ético em sua versão moderada afirma que o direito tem um
valor enquanto tal, mas não porque seja por si mesmo justo, mas porque é o meio
necessário para realizar um certo valor que é a ordem, que não é um valor supremo, daí
porque se um certo valor, num dado momento histórico, parecer superior à ordem, esta
pode ser rompida para realizar tal valor.
2.4. Relação entre o direito positivado e o juspositivismo
Verifica-se, estreme de dúvidas, que o juspositivismo e o direito
positivado não se confundem. Toda teoria aqui sumariamente exposta se baseia na
positivação do direito como pressuposto para compreensão de cada ponto fundamental,
daí porque a relação existente entre ambos está no fato de que a produção deste é
fundamento daquele.
2.5. O juspositivismo no direito penal e as Escolas penais35
Cabe, apenas à guisa de exposição da extensão da ideologia e do método
juspositivista, ressaltar a expressão do juspositivismo no direito penal.
Assim, resta impossível apresentar ao leitor, de forma sumária, a
existência de escolas penais, tal como as concebeu Enrico Ferri, juspositivista penal
italiano, completando-a com o que lecionam os modernos juristas penais.
Enrico Ferri36
designou “Escola Clássica” uma corrente científica nascida
com a clássica obra de Cesare Beccaria, Dos Delitos e das Penas, no século XVIII e
seguiu-se até o século XIX.
35
Malgrado existam diversas Escolas penais (Eclética, Terza Scuola, Neoclássicos, Moderna Alemã,
Técnico-Jurídica, Correcionalista, Defesa Social, ou outra classificação que se dê aos movimentos de
pensamento penal), enfocaremos apenas a “Escola Clássica” e a “Escola Positiva”.
29
Esta corrente seguia uma orientação político-social que, como reação à
justiça penal medieval, expôs e estabeleceu a razão e os limites do direito de punir
estatal, opôs-se á ferocidade da pena e reivindicou garantias para o indivíduo, quer
durante o processo, quer na aplicação da lei punitiva37
.
A “Escola Clássica” como sistematização filosófico-jurídica foi inspirada
pela doutrina do direito natural, “que foi um dos confluentes ideais na Revolução
Francesa e valeu-se do método dedutivo, então imperante sem contraste nas ciências
morais e sociais”38
.
Para Ferri, a “Escola Clássica” bifurcou-se, de um lado com as obras dos
grandes criminalistas e traziam o estudo teórico da justiça penal, à luz das doutrinas
filosófico-jurídicas sem apego às legislações existentes, utilizadas apenas como
exemplos. Elencou Romagnosi, Filangieri, Mário Pagano, Pellegrino Rossi, Franceso
Carrara, Ellero, Pessina, Feuerbach e Bentham, entre outros como os grandes
criminalistas da “Escola Clássica”.
Por outro lado, esta mesma Escola apresentou uma corrente crítico-
forense, “destinada somente a ilustrar e a interpretar, com maior ou menor amplitude
sistemática de critérios, os códigos penais vigentes em alguns países”39
. Apresentou
Renazzi, Cremani, Paoletti, Nani, Alberici, Liberatore, Poggi, Niccolini, Armelini,
Roberti, Albertini, Giuliani, Mori, Puccioni, entre outros, como autores de obras com
estas características.
Ferri atribuiu ao glorioso período de pujança intelectual com reflexos
diretos na legislação e na justiça penal prática dos pensamentos da “Escola Clássica” “o
contínuo aumento da criminalidade e da recidiva, em evidente e quotidiano contraste
com a necessidade da defesa social contra a delinqüência”40
.
Para o jurista penal iltaliano, isto ocorreu por duas razões: uma, o
excesso da reação contra os abusos da justiça penal antes de Beccaria, tendo, no seu
ponto de vista, a reação ultrapassado a ação; duas, o método dedutivo ou de lógica
abstrata fez perder de vista o criminoso, que “é o protagonista vivo e presente”41
na
justiça penal.
36
Princípios de Direito Criminal – o criminoso e o crime, 1927, Traduzido por Luiz de Lemos D´Oliveira
em 1931, Russel, 2003, Campinas, pág. 45. 37
Enrico Ferri, ob. cit., pág. 46/47. 38
Enrico Ferri, ob. cit., pág. 46. 39
Enrico Ferri, ob. cit., pág. 48. 40
Enrico Ferri, ob. cit., pág. 49. 41
Enrico Ferri, ob. cit., pág. 49.
30
Esta situação prática, somada ao alargamento da aplicação do método
indutivo ou positivo, estendido das ciências físicas e naturais para as “morais e
sociais”42
, criou as condições para o desenvolvimento do juspositivismo entre os
juristas penais no final do século XIX, tendo se afirmado, assim, a “Escola Criminal
Positiva”.
Ferri expôs a grande e pontual diferença entre as duas Escolas: o método,
malgrado outras diferenças pudessem ser encontradas, evidentemente. Para a “Escola
Clássica” o método utilizado era o dedutivo ou de lógica abstrata e tinha por objeto o
“crime” como entidade jurídica, enquanto para a “Escola Positiva” o método utilizado
era o indutivo e de observação dos fatos, tendo como objeto o “delinqüente” como
pessoa.
Além de Enrico Ferri, foram expoentes da Scuola Positiva Italiana
Puglia, Majuo, De Luca, Florian, Vallardi, entre outros.
No campo político-social, a “Escola Positiva” afirmou a necessidade de
“restabelecer o equilíbrio entre os direitos do indivíduo e os do Estado”43
, chegando a
afirmar que “se a Idade Média tinha visto somente o delinqüente e a Escola Clássica
tão somente o homem, a realidade impunha ter em conta o homem delinqüente”44
. A
“Escola Positiva” ainda se opôs à pena como “remédio”45
eficaz contra o crime,
procurando e criando substitutivos penais que consistiam em recuperar ou educar o
delinqüente, ou seja, tratá-lo, visto que se tratava de um criminoso por característica
própria, tendo sua própria periculosidade.
Esta característica própria, ora buscada na biologia do indivíduo, ora no
ambiente social, gerou concepções diversas do positivismo criminal.
Uma corrente positivista de caráter antropológico, cujo maior expoente
era Cesare Lombroso, estudava o “Homem delinqüente”46
na sua vida e nos seus traços
anatômicos, classificando os delinqüentes conforme sua natural estrutura orgânica e
psicológica. Criou-se, assim, a antropologia criminal.
Ferri entendia que o crime não poderia ser estudado sem antes perquirir
suas causas, o que para ele reside em três fatores: individuais, físicos e sociais. Desta
forma, classificou os criminosos em criminoso nato, louco, habitual, ocasional e
42
Enrico Ferri, ob. cit., pág. 49. 43
Enrico Ferri, ob. cit., pág. 52. 44
Enrico Ferri, ob. cit., pág. 52/53. 45
Vale frisar a utilização da expressão remédio, pois esta era a busca da “Escola Positiva”, de um remédio
para o delinqüente, tratado como doente. 46
Título do mais famoso livro de Lombroso.
31
passional. Com a realização de estudos estatísticos sobre a criminalidade na França, e
constando a existência de causas sociais da delinqüência, juntamente com Rafael
Garofalo, fez nascer a sociologia criminal.
Podemos afirmar que a “Escola Positiva” se subdividiu, conforme o
enfoque que prevalecia em uma corrente antropológica, outra sociológica, outra
jurídica, mas tendo em comum a utilização do método positivo de apreciação dos dados
empíricos e enfocando o deliqüente como objeto do estudo penal, e não o crime,
gerando, via de conseqüência, necessidades de aplicação preventiva do direito penal e
reeducadora.
Fato é que o positivismo criminal nega o pensamento filosófico,
acreditando apenas no método científico como essencial ao direito penal. Nas palavras
de Ferri:
“Mas o que importa salientar é sobretudo isto que a
escola criminal positiva não perfilha nem modela nenhum sistema
filosófico ou social, a começar pela “filosofia positiva” (Comte,
Spencer, Ardigó etc.), nem nenhuma doutrina biológica (Darwin,
Lamarck, Molleschott etc.)
Ela apareceu quando as doutrinas desses grandes
pensadores estavam em pleno apogeu e por isso, como todas as
ciências biológicas e sociais, não deixou de lhes sentir o reflexo. É
certo que desses sistemas filosóficos e doutrinas biológicas ne tudo
morreu e que contrariamente – além dos inumeráveis dados
particulares da biologia, psicologia, sociologia, agora tornados
patrimônio comum – permanece o seu princípio fundamental da
“evolução natural” contraposto ao imobilismo absolutista da
metafísica. Mas o fato decisivo é que a escola criminal positiva se
caracteriza essencialmente pelo método científico.” 47
Verifica-se, com clareza, que a “Escola Criminal Positiva” nega o
próprio positivismo enquanto sistema filosófico, abeberando-se apenas do seu método
como para criação e estudo do direito penal enquanto ciência.
Daí decorrem duas questões: ao direito penal sob o enfoque juspositivista
não resta o estudo filosófico; mesmo admitindo-se tal assertiva, os positivistas penais
47
Enrico Ferri, ob. cit., pág. 51.
32
foram se abeberar do método criado pelos filósofos positivistas, o que impõe, de toda
sorte a sua compreensão.
3. Ciência do Direito e Filosofia do Direito
Ao jurista, sob o enfoque juspositivista, resta apenas o estudo da validade
do direito, não se perquire seu valor.
Assim, nesta ótica, a investigação sobre o fundamento, a justificação do
direito é deixada exclusivamente à filosofia do direito.
Norberto Bobbio, ao tratar do positivismo jurídico, afirma, em relação à
filosofia do direito, o seguinte:
“A filosofia do direito pode, conseqüentemente, ser
definida como o estudo do direito do ponto de vista de um determinado
valor, com base no qual se julga o direito passado e se procura influir
no direito vigente.”48
A ciência do direito, neste prisma, se vale de definições fatuais,
avalorativas, ontológicas, já a filosofia do direito tem por objeto definições do direito
que são ideológicas, valorativas ou deontológicas.
Malgrado o valor varie de filósofo para filósofo, um ponto de extrema
relevância para nosso estudo é o fato de que as definições valorativas do direito se
caracterizam pelo fato de possuírem uma estrutura teleológica, sistemática do
ordenamento jurídico, em que as normas que o compõem devem alcançar determinado
valor, ou seja, as definições filosóficas procuram conferir coerência valorativa à
legislação, apresentando as bases do dever ser do ordenamento.
Enquanto orientação do dever ser, na busca de sistematização valorativa
do ordenamento, a filosofia do direito incide sobre o fundamento da norma, porquanto a
atividade legislativa deve ser orientada deontologicamente, ao passo que a atividade da
ciência do direito por incidir sobre o ordenamento jurídico já posto, incide sobre a
norma como é, portanto, após a atividade legislativa. Na visão de Miguel Reale, a
filosofia é situada no problema dos pressupostos:
“A Filosofia é, assim, conhecimento que converte em
problema os pressupostos das ciências...”49
48
Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, idem, pág 138. 49
Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 12.
33
Cronologicamente as investigações filosóficas têm aplicação ao
ordenamento em momento anterior à sua formação, enquanto a ciência do direito é
posterior a este momento. Isso não significa que a filosofia do direito não possa (na
verdade deve) pesquisar o ordenamento existente para reconstruí-lo sob a égide do valor
eleito, em outras palavras, que não se faça incidir no momento posterior à constituição
do ordenamento. Vale observar a lição de Miguel Reale:
“Isso porque o cientista do Direito já pressupõe a
vigência de regras jurídicas. O jurista, enquanto jurista, não pode dar
uma definição do Direito, porque, no instante em que o faz, já se
coloca em momento logicamente anterior à sua própria ciência.
Há, portanto, um objeto que as ciências não estudam, e
são as próprias ciências postas como objeto.
A Filosofia apresenta-se, pois, como o exame crítico das
condições de certeza das próprias ciências: das ciências, em sua
universalidade, como produtos do espírito, o que constitui a precípua
razão de ser da Gnoseologia, ou, mais genericamente, da
Ontognoseologia...” 50
O que se pretende é deixar claro que, ainda que se utilize a teoria
juspositivista extremada, não haverá que se falar em inexistência de campo de
incidência filosófica, o que ocorrerá na busca do conhecimento dos pressupostos do
direito penal. Malgrado neste estudo se dará prevalência ao fundamento da norma como
seu elemento constituidor, não se descurará da identificação do valor da norma já posta,
ainda que na teoria juspositivista, como se verá a seguir.
4. Lacunas valorativas na teoria juspositivista
A despeito da completa desvinculação do juspositivismo em relação ao
valor do direito, sua teoria não exclui por completo a necessidade de incursão sobre as
questões ideológicas em determinados pontos fundamentais.
Podem ser identificados, com clareza três pontos em que a avaliação
valorativa se faz presente na estrutura teórica positivista: a coerência do ordenamento
jurídico; a completude do ordenamento jurídico e a interpretação do direito.
50
Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 34.
34
4.1. Coerência do Ordenamento Jurídico
Como visto anteriormente, o Ordenamento Jurídico se compõe de três
caracteres fundamentais: a unidade, a coerência e a completude. Particularmente quanto
à coerência, podemos identificar, ainda que não explicitamente, uma necessidade da
busca de valores para tornar o ordenamento coerente quando se apresente alguma
antinomia.
Cabe verificar que, ao abordar, em sua teoria, o significado do termo
“sistema” e seu relacionamento com o conceito de ordenamento jurídico, Norberto
Bobbio reconhece que aquilo que denominou “sistema jurídico” está entre o sistema
dedutivo, próprio do direito natural em que o norte formador do sistema é derivado de
princípios gerais, e o sistema dinâmico de Kelsen, próprio do juspositivismo que vê o
direito como normativo puro e encontra coerência no sistema enquanto derivado da
autoridade única:
“Por outro lado, confrontando com um sistema dedutivo,
o sistema jurídico é alguma coisa de menos; confrontando com o
sistema dinâmico, do qual falamos no parágrafo anterior, é algo de
mais: de fato, se se admitir o princípio de compatibilidade, para se
considerar o enquadramento de uma norma no sistema não bastará
mostrar a sua derivação de uma das fontes autorizadas, mas será
necessário também mostrar que ela não é incompatível com outras
normas. Nesse sentido nem todas as normas produzidas pelas fontes
autorizadas seriam válidas, mas somente aquelas compatíveis com as
outras.”51
Caso o sistema apresente normas incompatíveis, três são os critérios para
eliminar as antinomias52
: critério cronológico, o critério hierárquico e o critério da
especialidade.
O problema está em verificar que nem sempre um dos três critérios é
capaz de eliminar as antinomias, como, por exemplo, duas normas de um mesmo código
incompatíveis entre si. Neste caso, abre-se uma lacuna na própria teoria juspositivista,
senão vejamos:
“Isso significa, em outras palavras, que, no caso de um
conflito no qual não se possa aplicar nenhum dos três critérios, a
51
Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 80/81. 52
O que se entende por antinomia será melhor abordado no item 7 desta primeira parte.
35
solução do conflito é confiada à liberdade do intérprete; poderíamos
quase falar de um autêntico poder discricionário do intérprete, ao qual
cabe resolver o conflito segundo a oportunidade, valendo-se de todas
as técnicas hermenêuticas usadas pelos juristas por uma longa e
consolidada tradição e não se limitando a aplicar uma só regra.
Digamos então de uma maneira mais geral que, no caso de conflito
entre duas normas, para o qual não valha o critério cronológico, nem
o hierárquico, nem o da especialidade, o intérprete, seja ele o juiz ou o
jurista, tem à sua frente três possibilidades:
1) eliminar uma;
2) eliminar as duas;
3) conservar as duas”53
A primeira possibilidade chama de interpretação ab-rogante, porém em
sentido impróprio, pois que o intérprete ab-roga uma das normas, mas como não tem
poder normativo o faz apenas para o caso concreto, não expelindo a norma incompatível
do sistema.
Na segunda possibilidade o intérprete elimina ambas as normas, o que só
seria possível para o caso de contrariedade54
, trata-se de dupla ab-rogação que Norberto
Bobbio55
continua chamando de imprópria.
Na terceira possibilidade, que segundo o filósofo italiano56
é a mais
comum entre os intérpretes, não se fará a eliminação da norma, mas da
incompatibilidade. Para tanto o juiz ou jurista procederá a uma “leve ou parcial
modificação no texto”57
para tornar as normas compatíveis e conservá-las no sistema.
Aqui se verifica uma abertura na rígida teoria juspositivista para alçar o
trabalho do juiz em fonte, ainda que indireta, visto que, malgrado baseado na lei, o
filósofo autoriza-o, em tese, a criar uma norma nova, que acaba por chamar de
interpretação corretiva. Ora, não se pode corrigir a lei sem alterá-la, pelo menos no
sentido que lhe pretendeu dar o criador da norma.
53
Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 100. 54
O filósofo italiano diferencia contrariedade e contradição (Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento
Jurídico, idem , pág. 85). Entre uma norma que ordena fazer algo e uma outra que proíbe fazê-lo existe
contrariedade; entre uma norma que ordena fazer algo e uma que permite não fazer existe
contraditoriedade; entre uma norma que proíbe fazer e uma que permite fazer existe contraditoriedade. 55
Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 102. 56
Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 102. 57
Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 103.
36
O impulso do intérprete deixa assim, claramente, de ser interpretativo,
passando de intérprete a criador. Enquanto criador exercerá um juízo sobre o sistema
para adequar as normas contraditórias, o mesmo que o faz o legislador ao criar, no
exercício do poder político, as normas que compõem o sistema.
É neste ponto que sua função deixará de se resumir a perquirir a validade
da norma e sua eficiência, para escolher58
o valor que prevalecerá na criação que
reconhecidamente lhe cabe.
4.2. Completude do Ordenamento Jurídico
Como dito anteriormente, no 5º ponto da letra “b” do item 2.3 desta
primeira parte, a norma geral exclusiva não se aplica à teoria por Norberto Bobbio
formulada, segundo a qual entre os casos inclusos e os exclusos pela norma, há uma
zona incerta de casos não-regulamentados59
. Estes casos são as lacunas próprias.
No entanto, esse não é o único caso de lacuna do ordenamento. Um
ordenamento pode ter lacunas impróprias ou ideológicas e lacunas próprias ou reais. A
primeira resulta da comparação do sistema existente com o sistema ideal, enquanto a
segunda é a que ocorre dentro do próprio sistema. A primeira só pode ser eliminada
através da formulação de novas normas, ao passo que a segunda pode ser completada
pela lei vigente (pela auto-integração ou pela heterointegração). A primeira é
completável pelo legislador, a segunda pelo intérprete.
Malgrado o filosófo italiano afirme que a completude do ordenamento,
no que se refere ao interesse do jurista juspositivista, diz-se em relação às lacunas
próprias, há uma questão de extrema relevância: Norberto Bobbio afirma que em todo
ordenamento há lacuna ideológica, acabando por valorar o ordenamento jurídico. Senão
vejamos:
Norberto Bobbio traça mais detalhadamente as características da lacuna
ideológica da seguinte forma:
“Entende-se também por “lacuna” a falta não já de uma
solução, qualquer que seja ela, mas de uma solução satisfatória, ou, em
outras palavras, não já a falta de uma norma, mas a falta de uma
norma justa, isto é, de uma norma que se desejaria que existisse, mas
58
Foi o próprio Norberto Bobbio quem identificou, na passagem supra transcrita, a discricionariedade que
caberá ao intérprete. 59
Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 146.
37
que não existe. Uma vez que essas lacunas derivam não da
consideração do ordenamento jurídico como ele é, mas da comparação
entre ordenamento jurídico como ele é e como ele deveria ser, foram
chamadas de “ideológicas”, para distingui-las daquelas que
eventualmente se encontrassem no ordenamento jurídico como ele é, e
que se podem chamar de “reais”. Podemos também enunciar a
diferença deste modo: as lacunas ideológicas são lacunas de iure
condendo (de direito a ser estabelecido), as lacunas reais são de iure
condito (do direito já estabelecido).”60
Resta certa a valoração reconhecida pelo filósofo em relação ao fim
almejado pelo Direito. E vai mais além. Como já dito, ele reconhece que em todo
ordenamento jurídico existe lacuna ideológica, ou seja, não há ordenamento legislativo
que se complete na busca de seu fim:
“Que existe lacunas ideológicas em cada sistema
jurídico é tão óbvio que não precisamos nem insistir. Nenhum
ordenamento jurídico é perfeito, pelo menos nenhum ordenamento
jurídico positivo.”61
Não poderia, de outro modo, negar as lacunas ideológicas, pois estaria
preconizando a imutabilidade de um ordenamento, o que o tornaria perfeito, ideologia
própria do Direito Natural.
Porém, ao afirmar que existem lacunas ideológicas em todo sistema,
deixa clara sua valoração do próprio ordenamento. Em outras palavras, ao criticar o
ordenamento jurídico e reconhecer que não existe ordenamento positivo perfeito sob o
ponto de vista ideológico, está o filósofo rompendo com a preconizada avaliação
avalorativa do sistema, para depois reafirmá-la, como um caminho necessário a seguir
para desenvolver sua teoria.
4.3. Hermenêutica: meios de interpretação declarativa
Como último ponto da teoria do juspositivismo, Norberto Bobbio trata da
jurisprudência. Neste particular nega qualquer capacidade criativa ou produtiva a esta,
afirmando que a atividade da jurisprudência é estritamente declarativa ou reprodutiva
de um direito preexistente, nascido com a legislação.
60
Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 140. 61
Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 140.
38
Assim, verifica que o direito tem dois momentos de atividade: o ativo ou
criativo e o teórico ou cognoscitivo. O primeiro deixado ao legislador; o segundo ao
jurista. O primeiro se manifesta na legislação, o segundo na ciência jurídica ou na
jurisprudência.
Concluindo, a tarefa da jurisprudência não é criar, mas interpretar o
direito62
.
Continua, portanto, expondo os meios hermenêuticos do positivismo a
serem utilizados pela jurisprudência em sua tarefa interpretativa do direito.
Especificamente no que concerne à interpretação declarativa63
, o juspositivismo se serve
de quatro meios hermenêuticos, dos quais dois chamam atenção: o meio teleológico e o
meio sistemático. Senão vejamos:
“b) O meio teleológico, chamado comumente de
interpretação lógica, expressão imprópria, visto que se trata de um
meio interpretativo baseado na ratio legis, isto é, no motivo ou
finalidade para os quais a norma foi posta. Partindo do duplo
pressuposto de que o legislador, como ser razoável, se coloque fins e
estabeleça meios idôneos a serem atingidos, uma vez individualizado o
fim do legislador, este pode dar aqui esclarecimentos sobre as
modalidades de sua consecução, isto é, sobre o conteúdo da lei.
c) O meio sistemático, que implica não só no
pressuposto da racionalidade do legislador, como também no
pressuposto de que a vontade do legislador seja unitária e coerente.
Com base em tal pressuposto pode-se procurar esclarecer o conteúdo
de uma norma, considerando-a em relação a todas as outras.” 64
Neste ponto encontram-se claramente expostas as tarefas valorativas
deixadas ao jurista. Ora, se o jurista deve se ater à validade e não ao valor das normas,
de acordo com a teoria juspositivista, como explicar que, na atividade desenvolvida pela
jurisprudência ou pela ciência do direito, o intérprete deve perquirir a finalidade da
norma para melhor compreendê-la?
Está exposto, às escâncaras, a tarefa valorativa do jurista juspositivista.
62
Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, idem, pág 211/212. 63
A interpretação pode ser declarativa ou integrativa. A este respeito vide 6º ponto da letra “b” do item
2.3 desta primeira parte. 64
Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, idem, pág 214.
39
E mais, ao procurar estabelecer uma coerência sob o ponto de vista do
conteúdo da norma para possibilitar uma interpretação sistemática da norma está o
filósofo juspositivista se baseando, a toda evidência, no sistema estático ou dedutivo do
ordenamento exposto por Kelsen como próprio do Direito Natural.
Há, destarte, em todos os pontos abordados neste item, sobretudo neste
referente à hermenêutica, uma identificação valorativa na tarefa do jurista.
5. A valoração na teoria jurídica penal
Já se deixou claro que a tarefa da filosofia do direito decerto imprescinde
da investigação valorativa. Fato que, é bem verdade, sequer se questionou. A questão
que se pretende desconstruir, com a crítica ao juspositivismo, é a avaloratividade da
jurisprudência.
A busca dos fundamentos, como se expôs no item 3 desta primeira parte,
é fora de dúvida tarefa da filosofia do direito. No entanto, quis se demonstrar com as
linhas críticas subseqüentes àquelas, que à ciência do direito não é estranha à
investigação dos fundamentos, o que se logrou realizar no item 4 desta primeira parte.
Especificamente na seara criminal, vale transcrever a enfática observação
de Nilo Batista:
“Conhecer as finalidades do direito penal, que é
conhecer os objetivos da criminalização de determinadas condutas
praticadas por determinadas pessoas, e os objetivos das penas e outras
medidas jurídicas de reação ao crime, não é tarefa que ultrapasse a
área do jurista, como às vezes se insinua. (...) Aliás, a indagação sobre
fins, que comparece em vários momentos particulares (interpretação
da lei, na teoria do bem jurídico, no debate sobre a pena, etc), não
poderia deixar de dirigir-se ao direito penal como um todo.”65
Eugenio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangelli, ao abordarem o
tema sobre o objeto do direito penal, visualizam duas respostas comuns das quais
passam a fazer uma análise crítica:
“À pergunta sobre o objeto do direito (entendido como
legislação penal) costumam-se dar duas respostas distintas, contrárias
e excludentes: para uns, o direito penal tem por meta a segurança
65
Nilo Batista, Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, 9ª ed., Revan, Rio de Janeiro, 2004, pág
23.
40
jurídica; para outros, seu objetivo é a proteção da sociedade, expressão
que se costuma substituir por “defesa social”.”66
Esclarecem os juristas que os que se filiam à meta de segurança jurídica
vêem na pena uma função de prevenção geral, sendo, portanto, retributiva, ao passo que
para aqueles que entendem o objeto do direito penal como a defesa social, enxergam na
pena a finalidade de prevenção especial, tendo caráter reeducador e ressocializador.
Continuam argumentando que alguns daqueles que se filiam à corrente
da segurança jurídica como objeto do direito penal, sustentam que se deve provê-la
tutelando bens jurídicos, enquanto outros acreditam que a tutela penal deve ser a tutela
de valores éticos.
Os próprios juristas afirmam se filiarem à opinião que sustenta a
segurança jurídica como objeto do direito penal, mas esclarecem que a “...segurança
jurídica não pode ser entendida, pois, em outro sentido que não o da proteção de bens
jurídicos (direitos), como forma de assegurar a coexistência.”67
Heleno Cláudio Fragoso sustenta posição contrária, para ele “A função
básica do Direito Penal é a defesa social.”68
Juarez Tavarez, por sua vez, entende que, no que concerne às correntes
sobre as funções do direito penal, é possível classificá-las em três grupos:
“a) dos que entendem que sua tarefa consiste,
primeiramente, em proteger os valores ético-sociais do ânimo (ação) e
só secundariamente os bens jurídicos concretos (...);
b) dos que se fixam exclusivamente (ou quase
exclusivamente) na proteção de bens jurídicos (...);
c) dos que vinculam a proteção dos bens jurídicos com
outros fins ou mais propriamente com a paz jurídica ou social (...).”69
Na primeira corrente referida por Juarez Tavarez encontramos Hans
Welzel, teórico do finalismo. In verbis:
66
Eugenio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, Manual de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral,
3ª ed., Revista dos Tribunais, 2001, São Paulo, pág. 92. 67
Eugenio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, Manual de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral,
idem, pág. 94. 68
Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, Parte Geral, atualizado por Fernando Fragoso, 16ª
ed., Forense, Rio de Janeiro, 2004, pág 4. Deve-se sobrelevar que efetivamente o autor não se restringe a
enxergar no direito penal apenas a função de prevenção especial, que de fato ocorre, mas expõe a
destinação da ameaça de sanção ao todos os destinatários da norma e encontra no direito penal a
finalidade de proteger os bens jurídicos para assegurar a vida em comum, a existência da sociedade. 69
Nota do tradutor ao § 1 I 2 de Joohannes Wessels, Direito Penal, parte geral, Aspectos Fundamentais,
tradução Juarez Tavares, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1976, pág 3.
41
“Un Derecho Penal de gran eficacia es de doble vía:
por una parte, respecto al autor ocasional es un Derecho Penal
retributivo de fundamento ético-social y delimitado por tipos estrictos,
y, por la otra, respecto al delincuente por estado, un derecho de
seguridad – que combate peligros sociales de gravedad.”70
Na linha de pensamento exposta na segunda corrente podemos identificar
Julio Fabbrini Mirabete, para quem o direito penal serve para proteger os bens jurídicos
fundamentais:
“Pode-se dizer, assim, que o fim do Direito Penal é a
proteção da sociedade e, mais precisamente, a defesa dos bens
jurídicos fundamentais.”71
No âmbito de pensamento da terceira corrente encontramos Johannes
Wessels, para quem a proteção ao bem jurídico está aliada à manutenção da paz
jurídica:
“A tarefa do Direito Penal consiste em proteger os
valores elementares da vida comunitária no âmbito da ordem social e
garantir a manutenção da paz jurídica. Como ordenação protetiva e
pacificadora serve o Direito Penal à proteção dos bens jurídicos e à
manutenção da paz jurídica.”72
Diversos juristas penais hodiernos encontram na proteção ao bem
jurídico a função ao direito penal, mas fazem o adendo de que estes bens jurídicos
devem ter função de garantia da vida em sociedade. Esta é a posição de Damásio
Evangelista de Jesus e René Ariel Dotti, cuja lição vale ser transcrita:
“São fins imediatos do Direito Penal a proteção de bens
jurídicos do homem e da comunidade. (...) O Direito Penal é o conjunto
de normas jurídicas nas quais se manifesta o interesse dos cidadãos,
interpretado pelo Estado, (...) bem como na aplicação de princípios e
regras de proteção aos bens jurídicos fundamentais à convivência
social .”73
70
Hans Welzel, Derecho Penal Aleman, Parte General, 11ª ed., 4ª ed. Castellana, Tradução Juan Bustos
Ramírez e Sergio Yáñez Pérez, Jurídica del Chile, 1969, Bonn, pág. 10. 71
Julio Fabbrini Mirabete, Manual de Direito Penal, Parte Geral, atalizado por Renato N. Fabbrini, 21ª
ed., Atlas, São Paulo, 2004, pág 23. 72
Joohannes Wessels, Direito Penal, parte geral, Aspectos Fundamentais, tradução Juarez Tavares,
Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1976, pág 3. 73
René Ariel Dotti, Curso de Direito Penal, Parte Geral, 1ª ed., Forense, Rio de Janeiro, 2002, pág 48.
42
Decerto esta linha de pensamento se enquadra perfeitamente na linha
exposta por Juarez Tavares como sendo a terceira linha de entendimento das funções do
direito penal.
Uma compreensão da função do direito penal como protetor dos bens
jurídicos fundamentais que tenham natureza constitucional é amplamente defendida por
modernos juristas penais, como é o caso de Luiz Régis Prado:
“O pensamento jurídico moderno reconhece que o
escopo imediato e primordial do Direito Penal reside na proteção de
bens jurídicos – essenciais ao indivíduo e à comunidade -, dentro do
quadro axiológico constitucional ou decorrente da concepção de
Estado de Direito democrático (teoria constitucional eclética).”74
Verifica-se, com clareza ímpar, independente da existência constatada de
diversas correntes, a busca de todos os juristas penais pelos fins do direito penal.
Decerto do que os juristas citados tratam é a finalidade do direito penal,
não dos fundamentos. Porém, os fundamentos de caráter axiológicos do direito penal
estão presentes e se realizam em duas ordens de valores: particulares e gerais.
A necessidade de proteção penal a valores particulares decorre da
necessidade da proteção de um valor maior, geral, que é a própria finalidade do direito
penal, na ordem do entendimento de cada jurista.
Luiz Luisi leciona:
“...no direito Penal duas ordens de valores que podemos
denominar, de um lado, valores particulares e específicos e, doutro
lado, de valores gerais presentes e orientadores de toda legislação
criminal.(...).
No entanto, como já assinalamos, a indispensabilidade
da proteção desses valores especiais obedece à necessidade de
proteção de uma (sic) valor maior e geral que é o da própria
segurança da ordem social.”75
A perseguição do axioma, ou postulado original, do qual todas as normas
do ordenamento punitivo derivam e pretendem convergir se coloca muito mais próximo
do sistema estático de que trata Kelsen, no qual as normas estão relacionadas pelo seu
74
Luiz Regis Prado, Comentários ao Código Penal, 2ª ed., Revista dos Tribunais, 2003, São Paulo, pág
25. 75
Luiz Luisi, Filosofia do Direito - Ensaios, “Aspectos da Presença Axiológica no Direito Penal”, Sergio
Antonio Fabris Editor, 1993, Porto Alegre, pág 136/137.
43
conteúdo, do que do sistema dinâmico (defendido pelo pensador), que não tem unidade
material, mas apenas formal.
Neste diapasão, o direito penal persegue um fim e baseia-se nos
fundamentos axiológicos que pretendem alcançar a finalidade como valor último e
primeiro.
A valoração do direito penal, enquanto ciência, é defendida pela obra
filosófica de Luiz Luisi:
“A ciência jurídico-penal é, pois, ciência valorativa no
sentido de que ela não pode deixar de considerar como elementos
integrantes do Direito Penal, e particularmente da norma penal que é
o objeto da ciência do Direito Penal propriamente dito, os valores que
são objeto da proteção penal.”76
6. A motivação da norma
Inúmeras legislações têm historicamente origem em pensamento diverso
do juspositivismo, demonstrando que nem mesmo a postura científica avalorativa desta
teoria, que pode até se aplicar na atividade jurisprudencial (com o quê não
concordamos, como já se viu), se realiza no momento de criação da lei, qual seja, na
atividade legislativa.
O próprio Norberto Bobbio expõe que o direito tem um momento criativo
e que este se manifesta na legislação:
“Na atividade relativa ao direito podemos distinguir
dois momentos: o momento ativo ou criativo do direito e o momento
teórico ou cognoscitivo do próprio direito; o primeiro momento
encontra a sua manifestação mais típica na legislação, o segundo na
ciência jurídica ou (para usar um termo menos comprometedor) na
jurisprudência.” 77
Na realidade, o momento de criação da norma, é o momento do exercício
do poder político, o que não desloca a perquirição do fundamento do ordenamento
jurídico para o do poder político, pois que a existência deste, conquanto possa
76
Luiz Luisi, Filosofia do Direito - Ensaios, “Aspectos da Presença Axiológica no Direito Penal”, Sergio
Antonio Fabris Editor, 1993, Porto Alegre, pág 142. 77
Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, idem, pág 211.
44
determinar (e determina) a finalidade da legislação, não se confunde com os fins dela
própria.
O fundamento do poder político explica sua própria origem, enquanto o
exercício do poder político, baseado na liberdade de consciência criadora daquele que
exerce o poder, é que determina a finalidade da criação. Em outras palavras, o legislador
exerce o poder político que livremente (no mais das vezes intuitivamente) decidirá qual
a finalidade a ser alcançada com aquela legislação que pretende criar.
Para Nilo Batista o direito penal tem uma função política:
“Afirmamos, portanto, que o direito penal é disposto
pelo estado para a concreta realização de fins; toca-lhe, portanto, uma
missão política....”78
Evidentemente não se pretende inverter a afirmação do jurista penal. Ele
não afirmou que a atividade do legislador, ao definir as bases do sistema penal pela
elaboração de normas jurídicas, é o exercício do poder político, mas sim que o direito
penal tem uma missão política.
No entanto, é importante observar que esta missão política deriva do fato
de que o órgão definidor das bases do sistema é político e é através do exercício do seu
poder que realizará sua missão.
Ao exercer o seu poder, o legislador necessariamente dará preferência à
determinada ordem de valores que constituem as bases de sua ideologia que se encerrará
no sistema legislativo. Vale transcrever a lição de Miguel Reale:
“No momento, pois, da elaboração das normas
jurídicas, no processo de legiferação ou de positivação do direito, a
indução desempenha papel relevante: - esse é, no entanto, o momento
em que a Ciência Jurídica se insere no “processo político” da escolha
dos meios adequados à consecução de fins considerados apetecíveis,
convenientes ou essenciais à convivência ordenada.”79
O jurista pátrio René Ariel Dotti observa que o legislador, ao definir a
conduta criminosa, deverá se pautar em algum bem jurídico que pretenda proteger e que
este interesse cuja proteção se proverá será o objeto da sua escolha:
“Na acepção filosófica, o valor significa a indicação de
qualquer objeto (pessoa ou coisa), que merece preferência ou escolha.
78
Nilo Batista, Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, idem, pág 20. 79
Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 151.
45
Ao proteger determinados bens, através do sistema de
normas de incriminação e da sanção, o Direito Penal os está
destacando perante uma ordem de interesses e, conseqüentemente,
valorando-os. Com muita propriedade já foi dito que “o bem jurídico-
criminal é a luz que ilumina o legislador ao delinear os diversos
tatbestand80
” (Correia, Direito Criminal, vol. I, p. 277).”81
Obviamente, que, ao escolher determinado bem em detrimento de outros
e, assim, definir as condutas criminosas, o legislador está valorando, conforme sua
ideologia, o direito cujas bases está a definir na elaboração das leis penais, como, de
resto, ocorre na criação de leis de qualquer natureza.
Assim, resta clara a existência de motivação ideológica das normas
jurídicas, inerente ao exercício do poder político que as elabora.
7. O Sistema Penal
Cumpre neste ponto investigar e definir a expressão “sistema penal” que
será utilizado doravante, uma vez que é a pesquisa fenomenológica sobre os seus
fundamentos que configuram o objeto deste estudo.
Na lição de Norberto Bobbio, o termo “sistema” tem muitos significados
a serem utilizados na forma da conveniência:
“O termo “sistema” é um daqueles termos de muitos
significados, que cada um usa conforme suas próprias
conveniências.”82
O filósofo italiano encontra no termo “sistema” uma redução da
expressão “sistema normativo”, o qual se utiliza para designar ordenamento jurídico:
“Na linguagem jurídica o uso do termo “sistema” para
indicar o ordenamento jurídico é comum. Nós mesmos, nos capítulos
anteriores, usamos às vezes a expressão “sistema normativo” em vez
de “ordenamento jurídico”, que é mais freqüentemente usada.”83
Vai, todavia, mais além, para esclarecer, na sua concepção, que nem todo
ordenamento jurídico é um “sistema”. Para que um ordenamento jurídico possa ser
80
A despeito das diversas significações do termo germânico tatbestand, o jurista lusitano Eduardo
Correia, citado por René Ariel Dotti, certamente não tomou como base o conceito de Beling, o qual
excluía-lhe qualquer valoração, tornando-o, assim, estritamente objetivo. 81
René Ariel Dotti, Curso de Direito Penal, Parte Geral, 1ª ed., Forense, Rio de Janeiro, 2002, pág 52. 82
Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 76. 83
Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 75.
46
considerado um “sistema” é necessário que as normas que o compõem tenham
coerência entre si. In verbis:
“O próximo problema que se nos apresenta é se um
ordenamento jurídico, além de uma unidade, constitui também um
sistema. Em poucas palavras, se é uma unidade sistemática.
Entendemos por “sistema” uma totalidade ordenada, um conjunto de
entes entre os quais existe uma certa ordem.(...) Quando nos
perguntamos se um ordenamento jurídico constitui um sistema, nos
perguntamos se as normas que o compõem estão num relacionamento
de coerência entre si, e em que condições é possível essa relação”84
Por outro lado, para os juristas penais, o termo sistema penal tem
significado diferente. Senão vejamos o que sustenta Nilo Batista:
“Vimos a sucessiva intervenção, em três nítidos
estágios, de três instituições: a instituição policial, a instituição
judiciária e a instituição penitenciária. A esse grupo de instituições
que, segundo as regras jurídicas pertinentes, se incumbe de realizar o
direito penal, chamamos sistema penal.”85
O sistema penal, na visão de Zaffaroni86
, pode ser entendido em sentido
mais estrito, como o controle social punititvo institucionalizado (que abarca desde
quando se supõe detectar a prática de um delito, até a execução da pena), ou em sentido
mais amplo, abarcando as ações supostamente terapêuticas ou assistenciais (instituição
psiquiátrica, asilos, etc.).
Nilo Batista diferencia a expressão “sistema penal” do sistema jurídico
que queremos precisar:
“O sistema penal a ser conhecido e estudado é uma
realidade, e não aquela abstração dedutível das normas jurídicas que o
delineiam.”87
Sem dúvida, Nilo Batista limita o objeto do seu estudo, deixando claro
que não pretende estudar as normas jurídicas, mas a realidade do sistema penal, como
ele se afigura fenomenalmente.
84
Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 71. 85
Nilo Batista, Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, idem, pág 25. 86
Eugenio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, Manual de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral,
3ª ed., Revista dos Tribunais, 2001, São Paulo, pág. . 87
Nilo Batista, Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, idem, pág 25.
47
Para ele esta é a função do jurista, qual seja, concentrar seus esforços na
investigação da realização do funcionamento prático das instituições abstratamente
previstas.
“Não pode o jurista encerrar-se no estudo – necessário,
importante e específico, sem dúvida – de um mundo normativo,
ignorando a contradição entre as linhas programáticas legais e o real
funcionamento das instituições que as executam.”88
No entanto, mesmo negando as normas jurídicas como único objeto de
seu estudo, afirma que elas delineiam o sistema penal e é, portanto, neste ponto que
queremos depositar nossos esforços para compreender quais valores norteiam o
legislador que cria as normas jurídicas que constroem o sistema penal, mesmo porque o
que se procura neste estudo não é realizar a tarefa do jurista, mas sim do filósofo do
direito.
É assim, que, como dito no item 1 desta primeira parte, iremos nos
abeberar de determinados conceitos da teoria juspositivista de Norberto Bobbio para
com ela romper de forma crítica.
Desta sorte, chamaremos de sistema penal não a realidade do
funcionamento das instituições que se incumbem de realizar o direito penal, mas sim o
sistema normativo penal ou sistema penal legislativo, assim entendido como o conjunto
coerente de normas jurídicas que delineiam o controle social punitivo
institucionalizado, ao qual chamaremos apenas de sistema penal.
8. Pontos fundamentais do direito penal e a atividade valorativa de criação do sistema
Uma vez definido o significado do termo sistema penal para o nosso
estudo, cumpre perquirir os pontos fundamentais do direito penal.
Neste momento cabe enfatizar que o direito penal a que nos referimos é o
ramo do Direito, enquanto ciência, que tem por objeto o sistema repressivo estatal, em
todas as suas fases.
Porquanto, o direito penal de que tratamos é o ramo do direito que
encerra o controle social punitivo institucionalizado pelo Estado e que é delineado pelo
sistema penal legislativo.
88
Nilo Batista, Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, idem, pág 26.
48
Em outras palavras, o sistema penal legislativo deita as bases normativas
do direito penal, este compreendido como o ramo do Direito que tem por objeto desde a
atividade policial até a aplicação da pena, passando pela prestação jurisdicional.
Por definirmos o direito penal como o ramo do Direito que tem por
objeto o controle social punitivo institucionalizado pelo Estado, a legitimação do direito
penal decorre da legitimação do direito estatal de punir, de proibir e de julgar, porquanto
o controle social decorre da possibilidade de o Estado se autorizar no caso concreto
(exercício do direito estatal de julgar) a punir (exercício do direito de punir) uma
conduta proibida (exercício do direito estatal de proibir).
Ao falarmos do direito do Estado punir, estamos tratando da pena. Ao
falarmos do direito do Estado proibir, estamos tratando dos bens jurídicos protegidos
pela norma penal. Ao falarmos do direito do Estado de julgar, estamos tratando do
processo.
Assim é que devemos compreender que o direito penal tem como pontos
fundamentais: o bem jurídico protegido, a pena, e o processo.
Destarte, o sistema legislativo penal é definido pelo legislador que exerce
o poder político e define a configuração do direito penal projetando seus valores sobre
os pontos fundamentais que o compõem.
Daí porque o direito penal é construído pelo sistema penal, à luz do
fundamento axiológico norteador da disposição legal sobre o bem jurídico protegido, a
pena, e o processo.
9. Antinomias do sistema
Antinomia é incompatibilidade. No entendimento de Norberto Bobbio89
,
para que exista antinomia jurídica, não basta existir incompatibilidade entre duas
normas jurídicas, é necessário ainda que concorram duas condições: as duas normas
devem pertencer ao mesmo ordenamento jurídico; as duas normas devem ter o mesmo
âmbito de validade, sendo que o filósofo encontra quatro âmbitos de validade: temporal,
especial, pessoal e material.
Esclarece, ademais, que existem antinomias que, segundo K. Engish, não
são propriamente jurídicas, às quais denomina antinomias impróprias.
89
Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 86.
49
Classifica estas antinomias impróprias em antinomias de princípio;
antinomias de avaliação; e antinomias teleológicas.
Define a antinomia teleológica como a incompatibilidade entre duas
normas, uma que prescreve o meio para alcançar um fim, outra que prescreve o fim,
mas se verifica a incompatibilidade porque realizando o meio prescrito na primeira, não
se alcança o fim prescrito na segunda90
.
Entende que a antinomia de avaliação se verifica no caso em que uma
norma pune um delito menor com uma pena mais grave do que a infligida a um delito
maior91
.
Por último, vale adentrar mais a fundo no que Norberto Bobbio chama de
antinomias de princípio, uma vez que interessa diretamente ao nosso estudo. Senão
vejamos:
“Fala-se de antinomia no Direito com referência ao fato
de que um ordenamento jurídico pode ser inspirado em valores
contrapostos (em opostas ideologias): consideram-se, por exemplo, o
valor da liberdade e o da segurança como valores antinômicos, no
sentido de que a garantia da liberdade causa dano, comumente, à
segurança, e a garantia da segurança tende a restringir a liberdade;
em conseqüência, um ordenamento inspirado em ambos os valores se
diz que descansa sobre princípios antinômicos. Nesse caso, pode-se
falar de antinomias de princípio.”92
Uma vez que, como visto, o direito penal encerra uma finalidade, que o
sistema penal é o conjunto de normas jurídicas que delineiam o controle social punitivo
institucionalizado e que as normas jurídicas são resultados do exercício do poder
político, que se fulcra na valoração dos interesses escolhidos, o objeto deste estudo se
realiza pela investigação fenomenológica das antinomias de princípio, buscando, assim,
identificar as incompatibilidades ideológicas na elaboração do direito penal.
10. Eliminação das antinomias de princípio do sistema penal
Uma vez definido o objeto da investigação filosófica, cumpre expor os
métodos concebidos para eliminação das antinomias de princípio do sistema penal.
90
Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 91. 91
Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 90. 92
Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 90.
50
Eliminar as antinomias de princípio é uma necessidade para que o
sistema penal exista enquanto sistema, pois que a coerência ideológica é um de seus
elementos definidores.
Cumpre esclarecer que não se objetiva, com isto, propor um sistema
penal ideal neste estudo, mas identificar as antinomias e expor os métodos elaborados
para eliminá-las.
Os juspositivistas, ao não verificarem interesse jurídico no estudo do
valor da norma, bem como na ideologia fundante do sistema, afastam-se da solução das
antinomias de princípio.
Norberto Bobbio deixa claro que não pretende ocupar a ciência do direito
da comparação da adequação ideológica das normas que compõem o ordenamento
jurídico com o valor escolhido como axioma do sistema ideal:
“O direito, objeto da ciência jurídica, é aquele que
efetivamente se manifesta na realidade histórico-social; o juspositivista
estuda tal direito real sem se perguntar se além deste existe também um
direito ideal (como aquele natural), sem examinar se o primeiro
corresponde ou não ao segundo e, sobretudo, sem fazer depender a
validade do direito real da sua correspondência com o direito ideal;”93
Assim, ao expor a existência de lacunas ideológicas, esclarece que não
cabe ao jurista se ocupar de sua eliminação, esta tarefa é própria e exclusiva do
legislador com a formulação de novas normas94
.
É evidente que lacunas ideológicas não se confundem com antinomias
de princípio, porquanto a primeira se diz dos espaços normativos não preenchidos pela
ideologia fundante do sistema, ao passo que a segunda se refere à incompatibilidade
entre as ideologias que norteiam o sistema e que geraram duas normas ideologicamente
antinômicas.
No entanto, decerto, a solução, nesta linha de pensamento, para a
eliminação de uma lacuna ideológica para o pensador juspositivista será a mesma que a
utilizada para a eliminação das antinomias de princípio, qual seja, a atividade
legislativa, estranha a do jurista.
93
Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, idem, pág 136. 94
Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, idem, pág 144.
51
Esta não é, todavia, a solução encontrada por Eugenio Raul Zaffaroni e
José Henrique Pierangelli, para quem as antinomias de princípio devem ser objeto tanto
daquele que exerce o poder político, como do jurista:
“Sem embargo, é lícito e necessário que tanto o político
como o jurista, se perguntem quais devem ser as metas ou objetivo da
legislação penal, pois destas perguntas dependerá que, tomando em
conta a informação procedente da realidade, o político criticará a lei e
indicará as reformas legislativas que aproximem a lei positiva a seus
objetivos, enquanto o jurista, também tomando em conta a informação
real, buscará pela interpretação o sentido e os limites das disposições
legais, de maneira compatível com o objetivo geral.
(...) Somente respondendo à interrogação acerca do
objeto que se deve atribuir à legislação penal, dentro de nosso Estado
de direito, no marco dos princípios constitucionais e internacionais,
será possível criticar a lei positiva e indicar como se poderia adequá-
la melhor a este objetivo e também interpretar esta lei de forma
coerente com tal objetivo (afastando, por inconstitucionais, os
extremos de absoluta incompatibilidade, ou com efeitos
paradoxais).”95
Verifica-se, estreme de dúvidas, que para os citados juristas, o objetivo
do direito penal deve nortear a coerência do sistema, devendo ser expurgadas as
antinomias valorativas.
Assim, podemos identificar dois modos de eliminar as antinomias de
princípio, a realizada exclusivamente pelo legislador, pelo do exercício do poder
político, ou a realizada tanto pelo legislador como pelo jurista, com a eliminação
decorrente da incompatibilidade com os princípios constitucionais, próprio do sistema
complexo hierárquico de normas, exponenciado pela Constituição.
11. Conclusão
Ao fim desta primeira parte se verifica que restam certas algumas
exposições fundamentais no desenvolvimento do nosso estudo:
95
Eugenio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, Manual de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral,
3ª ed., Revista dos Tribunais, 2001, São Paulo, pág. 91.
52
1) O juspositivismo não se confunde com o direito positivado, nem este é
exclusividade daquele;
2) O juspositivismo é um método, uma teoria e uma ideologia;
3) O juspositivismo concebe a tarefa do jurista sem qualquer atividade
valorativa;
4) A Escola Criminal Positiva utiliza-se do método positivo e não da ideologia,
negando atitude filosófica à ciência do direito penal;
5) O direito penal tem uma finalidade;
6) As normas jurídicas são fundadas em determinado valor escolhido pelo
órgão que exerce o poder político, para alcançar a finalidade que ele próprio
encontra para direito penal;
7) O sistema penal de que tratamos neste estudo de natureza filosófica não se
confunde com a definição dos juristas penais, posto que o consideramos
como o conjunto coerente de normas jurídicas que delineiam o controle
social punitivo institucionalizado;
8) O direito penal é entendido como o ramo do Direito que tem por objeto o
controle social punitivo institucionalizado e tem três pontos fundamentais
que o caracterizam: o bem jurídico protegido, a pena e o processo;
9) O sistema penal é o resultado do exercício do poder político, que define a
configuração do direito penal, à luz dos fundamentos axiológicos que
legitimam os direitos estatais de punir, de proibir e de julgar.
10) A existência de antinomias de princípio decorre da elaboração de normas
dentro de um mesmo ordenamento que tenham inspiração em valores
incompatíveis;
11) A eliminação de antinomias de princípio é uma necessidade do sistema
penal, sob pena de se desnaturar como sistema pela incoerência de algumas
de suas normas.
53
2ª Parte – Axiologia – As ideologias penais
12. O Valor
Vimos, até o momento, que o direito penal tem uma finalidade. Vimos,
ademais, que o legislador, ao delinear o sistema penal por meio da elaboração de
normas jurídicas, o faz na perseguição de um valor por ele eleito, enquanto exerce seu
poder político.
Faz-se necessário entender de forma mais profunda o que vem a ser o
Valor, objeto de escolha e meta do legislador.
Há entre o valor e o objeto uma ligação intrínseca, indissociável,
porquanto não é possível conceber um valor abstraindo-se do objeto a que se relaciona.
Existe, inclusive, quem veja no valor uma esfera de objeto, ao lado dos
objetos naturais e dos objetos ideais96
.
Certo é, todavia, que valor não se confunde com objetos materiais nem,
tampouco, com objetos ideais. Com efeito, Miguel Reale aponta a atemporalidade e a-
espacialidade como os traços distintivos entre os valores e os objetos materiais e,
conquanto isto os aproxime dos objetos ideais, sua impossibilidade de mensuração e a
necessidade de ser concebido em função de algo, e não independentemente, os
diferenciam97
.
Fato é que valor e ser são categorias fundamentais. No dizer de Miguel
Reale:
“Ou vemos as coisas enquanto elas são, ou vemos as
coisas enquanto elas valem; e, porque valem, devem ser.”98
Mas o estudo sobre o valor, não é simples, não se limita a diferenciá-lo
dos objetos, o que reduziria a tarefa da axiologia à sua diferenciação da ontologia, ao
contrário, sua investigação encerra a necessidade de resposta a algumas perguntas,
sendo a principal como e por que os valores valem? A estas perguntas, na busca de uma
melhor compreensão sobre o valor, diversas teorias foram desenvolvidas, sobre as quais
passaremos a um breve sumário.
13. Teorias sobre o Valor
96
Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 188. 97
Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 187. 98
Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 188.
54
Diversas são as teorias sobre o valor. Podemos tomá-las em duas ordens
fundamentais: as que procuram explicá-lo de modo subjetivo e as que o estudam sob o
prisma objetivo.
As correntes de estudo de natureza subjetiva do valor, a que podemos
chamar de “teorias psicológicas da valoração”, tem como tese nuclear a “...afirmação
de que os valores existem como resultado ou reflexo de motivos psíquicos, de desejos e
inclinações, de sentimento de agrado ou desagrado. As coisas valem em razão de algo
que em nós mesmos se põe como desejável ou apetecível, ou capaz de dar-nos prazer;
porque existe, em suma, como fenômeno de consciência e como “vivência estimativa”,
algo que marca a razão da preferência exteriorizada.”99
Sobressaem, todavia, as correntes objetivistas, dentre as quais
destacaremos a sociológica, a ontológica e a histórico-cultural.
Para os estudiosos da corrente sociológica, os valores devem ser
estudados como fato da sociedade, como expressão de crenças ou desejos sociais, ou
como produtos da consciência coletiva. Neste particular merece relevo a concepção de
Émile Duekheim sobre a consciência coletiva, para quem esta não representa o
resultado do mero ajuntamento das consciências individuais, mas uma unidade
autônoma a qual se subordinam os membros da sociedade, daí porque muitas vezes os
valores se impõem aos indivíduos contrariando frontalmente seus desejos.
Entre os pensadores do que podemos chamar de ontologismo axiológico,
destacam-se Max Scheler e Nicolai Hartmann. Para esta corrente, os valores constituem
um mundo de per se, que pode ser alcançado, e não constituídos, pelo espiríto humano
através da História.
Diversas são as correntes e os pensadores que enxergam os valores sob o
prisma histórico-cultural, como a realização dos valores no projetar do espírito humano
sobre a História. Vale trazer a lição de Miguel Reale:
“Não é demais esclarecer, desde logo, que sob a rubrica
genérica de “doutrinas histórico-culturais” enfeixamos várias
tendências, como, por exemplo, a de tipo hegeliano, a de tipo
diltheyano ou de inspiração heideggeriana ou marxista, para não
lembrarmos senão algumas das orientações de maior projeção em
nossos dias. O que as unifica é a convicção da impossibilidade de
99
Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 196.
55
compreender-se o problema do valor fora do âmbito da História,
entendida esta como realização de valores ou como projeção do
espírito sobre a natureza, visto dever-se procurar a universalidade do
ideal ético com base na experiência histórica e não com abstração
dela.”100
14. Características do Valor
Miguel Reale101
elenca nove, porém explica dez, características do valor:
bipolaridade, implicação, referibilidade, preferibilidade, incomensurabilidade,
graduação hierárquica, objetividade, historicidade, realizabilidade e inexauribilidade.
A primeira das características do valor, e a que o diferencia
definitivamente dos objetos ideais por ser possível a estes, mas essencial ao valor, é a
bipolaridade. Ao passo que em relação aos objetos, por serem, nada se contrapõe,
como, por exemplo, uma esfera que não existe uma contra-esfera, ao valor existe
sempre um contraponto, um desvalor. Ao bom se contrapõe o mau, ao belo se contrapõe
o feio, ao nobre o vil, etecetera.
Ademais, os valores se implicam reciprocamente, na medida em que a
realização de um valor implica necessariamente, direta ou indiretamente, na realização
dos demais. Para o citado filósofo, há uma força expansiva e absorvente nos valores.
Acrescente-se, quanto ao significado da terceira característica,
denominada referibilidade ou necessidade de sentido, que os valores só se realizam na
tomada de consciência do espírito que se inclina a ser como dever ser, é na objetivação
do espírito sobre algo que o valor se realiza.
O valor tem uma orientação, daí sua quarta característica, a
preferibilidade, ou seja, a teoria do valor é uma teleologia, encerra uma finalidade.
Miguel Reale diz que “...fim não é senão um valor enquanto racionalmente
reconhecido como motivo de conduta”102
.
Quando se fala de valores, é inevitável falar-se de ordenação ou
graduação hierárquica, pois que toda civilização obedece a uma tábua de valores que,
evidentemente não é rígida absolutamente, mas relativamente à época histórica em que
se insere determinada sociedade, revelando seu traço cultural.
100
Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 204. 101
Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 191. 102
Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 191.
56
Quanto à característica da objetividade, vale lembrar ser um contraponto
às teorias subjetivistas dos valores. Para Miguel Reale103
, as explicações subjetivas
deixam de explicar as preferências coletivas, na medida em que se resumem à satisfação
de desejos individuais. Ademais, inexistiriam valores após cessados os desejos, o que
não ocorre, sobressaltando, assim, o aspecto objetivo dos valores.
Ressalta o filósofo brasileiro, para a compreensão do valor não basta uma
explicação genérica do mundo estimativo, se faz necessária uma referência à História,
daí sua historicidade.
Isto ocorre porque os valores não são modelos estáticos, eles se realizam
na História, “...de tal modo que a História não teria sentido sem o valor: um “dado” ao
qual não fosse atribuído nenhum valor, seria como inexistente; um “valor” que jamais
se convertesse em momento da realidade, seria algo de abstrato ou de quimérico”, daí
sua realizabilidade.
No entanto, o valor não se exaure no fato a que se vincula, posto que com
ele não se confunde, não coincide, daí sua inexauribilidade.
15. Ordenação dos Valores
Como visto, diversas são as teorias sobre os valores, como muitas são
suas características. Cabe, neste momento, trazer à exposição ponto de extrema
relevância para o nosso estudo que é a explanação sobre a possibilidade de ordenação
dos valores e de que modo isto se realiza.
As civilizações são unidades históricas da espécie humana no seu fluxo
existencial que encerram sistemas de culturas diferentes.
Neste processo, o que diferenciam as civilizações e suas culturas é
exatamente a tábua de valores que são tomadas. Em outras palavras, as expressões
culturais são diferentes porque determinados valores são dominantes em relação a
outros.
Isto implica dizer que existem valores subordinantes e valores
subordinados, ou valores fundamentais e valores secundários, mas não de forma
absoluta. Na verdade as diversidades de focos são as determinantes do valor-fonte ou
valor fundamental, de sorte que somente podemos falar de valor subordinante e valor
103
Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 196.
57
subordinado de forma relativa. Relativa, leia-se, em relação à determinada civilização
de acordo com sua concepção do universo.
Esta diversidade de focos levou Eduardo Spranger104
a correlacionar
valores dominantes com determinada forma de vida, assim, “...o homem teorético,
dominado pelo valor da verdade; o homem econômico, absorvido pela estimativa do
útil; o homem estético atraído pelo valor do belo; o homem social conduzido pelo valor
do amor; o homem político determinado pelo valor do poder; e, por fim, o homem
religioso embebido do valor do santo”.
16. Classificação dos valores
Não resta dúvida que, tal como concebemos, a ordenação de valores
existe e é variável em relação ao ciclo de cultura em que se insere. No entanto, até para
que exista a aludida ordenação, forçoso concluir a existência de distinção entre os
valores, capaz de dar azo a uma classificação.
Miguel Reale105
expõe a possibilidade de realizar uma classificação do
ponto de vista formal, bem como do ponto de vista material, mas termina por preferir
uma classificação quanto ao conteúdo.
Sob o ponto de vista formal, pode-se admitir a distinção entre valores
subordinantes e valores subordinados, ou valores-fim e valores-meio, ou valores
autônomos e derivados. Distinguem-se por serem os primeiros valiosos por si mesmos,
ao passo que os segundos valem em função daqueles. No entanto, há valores que podem
ser fins em um sentido e meios em outro, sendo impossível traçar esta classificação de
forma absoluta, apenas relativa.
Do ponto de vista material, classifica os valores como sensoriais,
concernentes ao sujeito enquanto ser dotado de sensibilidade, abrangendo os valores
hedonísticos, os vitais e os econômicos; e como espirituais, concernentes ao homem
enquanto ser capaz de ideal, compreendendo os valores teoréticos, estéticos, éticos e
religiosos.
Quanto ao conteúdo, o autor elenca: o verdadeiro, expressão espiritual da
verdade, que condiciona estudos sobre o conhecimento, quer na sua estrutura (Lógica),
quer na sua funcionalidade (ontognoseologia); o belo, “...valor fundante das artes e dá
104
Formas de Vida, Rev. Do Occidente, Buenos Aires, 1948, apud Miguel Reale, Filosofia do Direito,
20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 229. 105
Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 235.
58
lugar à Estética”106
; o útil, o valor fundante da atividade econômica, comercial,
industrial ou agrícola e dá lugar à Filosofia econômica; o santo, o valor fundante das
religiões e dá lugar à Filosofia das religiões; o bem, o valor fundante da moral, do
Direito, dos costumes e dá lugar à Filosofia do Direito.
17. A origem fundante do Sistema Penal
Como visto anteriormente, o direito penal assenta suas bases sobre três
pontos fundamentais, a saber: o bem jurídico protegido, a pena, e o processo.
Já dissemos que o legislador exerce o poder político que define as bases
do sistema penal por meio da elaboração do ordenamento positivo.
Outrossim, indissociável a submissão do legislador a determinados
valores, ainda que intuitivamente, ao exercer o poder político e definir o norte do
sistema penal.
Desta forma, exposta a teoria sobre os valores, cumpre-nos a missão de
perquirir as ideologias penais que legitimam o poder punitivo estatal com base na
investigação axiológica da origem dos três pontos fundamentais do direito penal.
Em outras palavras, quais os valores que norteiam o legislador ao
elaborar o ordenamento jurídico penal?
A resposta a esta pergunta deve partir da indagação sobre a legitimação
do Estado para punir seu cidadão. Assim, cabe questionar que valores justificam o
emprego institucionalizado de violência contra o cidadão.
A resposta a este questionamento será prejudicial aos demais, o que se
exporá mais percucientemente a seguir, mas que vale, ab initio, afirmar que não
havendo legitimação axiológica para o exercício da violência do Estado para com o
cidadão não há que se falar em proteção de bem jurídico.
De outro lado, justificado o direito estatal de punir e definidos os valores
que se pretende proteger por meio dos bens jurídicos, deve o Estado definir o método
que legitimará a imposição prática da violência, com base, outrossim, nos valores
eleitos.
Assim, estará o sistema legislativo penal plenamente justificado sob o
ponto de vista axiológico.
106
Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 238.
59
Nesta ordem de idéias, passaremos ao estudo da legitimação ou não do
poder punitivo do Estado como condição de existência do direito penal.
18. As ideologias penais:
18.1. A axiologia da pena
Diversas são as ideologias penais. Algumas justificam, outras não
legitimam a imposição de violência por parte do Estado. As correntes que vêem
finalidade na pena terão maior importância para este estudo, haja vista ter por finalidade
buscar a legitimação do poder estatal de punir.
De todo evidente que esta parte do estudo trata da axiologia do sistema
penal. Este item, especificamente, sobre a axiologia do poder do Estado impor uma
pena. No entanto, a terceira e última parte visa, com base no estudo teórico traçado nas
duas primeiras partes deste trabalho, traçar um perfil axiológico da fenomenologia do
direito penal brasileiro.
Desta forma, malgrado seja o estudo das duas primeiras partes
meramente teórico, a importância das ideologias que enxergam justificação para o
direito penal e para a pena têm maior relevância, posto que empiricamente o direito
penal no Brasil existe e seus fundamentos são o objeto maior deste estudo.
Não há, outrossim, qualquer interesse em criticar cada uma das
ideologias existentes. Esta tarefa já foi e vem sendo desempenhada por diversos
filósofos e juristas107
. No entanto, no mais das vezes o que se questiona é a finalidade da
pena, ao passo que o que faremos é buscar a origem, ou seja, o fundamento axiológico
das ideologias que estudam a finalidade da pena.
O interesse é perquirir as conseqüências de cada ideologia sobre os
demais fundamentos do direito penal, para em seguida, no estudo fenomenológico,
investigar, aí sim de forma crítica, a coerência ou as antinomias ideológicas existentes
empiricamente no sistema penal brasileiro sob o ponto de vista axiológico desenvolvido.
18.1.1. Deslegitimação:
107
vide Luigi Ferrajoli, Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal, tradução Ana Paula Zomer, Fauzi
Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes, Editora Revista dos Tribunais, 2002, São Paulo e
Paulo de Souza Queiroz, Funções do Direito Penal – Legitimação versus Deslegitimação do Sistema
Penal, Del Rey, 2001, Belo Horizonte.
60
Pretendemos iniciar o estudo sobre a legitimação do poder estatal de
punir expondo as ideologias que não enxergam qualquer valor na pena, deslegitimando
o poder estatal de impor violência contra seu cidadão.
Paulo de Souza Queiroz expõe que as correntes deslegitimadoras “...são
movimentos de política criminal, vertentes da assim chamada nova criminologia ou
criminologia crítica surgida nos Estados Unidos por volta dos anos 60 e 70, que,
rompendo com a criminologia tradicional ( a criminologia positiva), e sob o influxo de
teorias sociológicas principalmente (das mais diversas tendências), contrapõem ao
paradigma etiológico, próprio da criminologia positiva, um novo paradigma, o
paradigma do controle.”108
Duas são as correntes que exporemos neste sentido: o abolicionismo e o
minimalismo radical ou abolicionismo mediato. Senão vejamos:
18.1.1.a. Abolicionismo
Os principais expoentes desta corrente109
são Louk Hulsman, Nils
Christie, Henry Bianchi, Thomas Mathiensen, Heinz Steinert, Max Stirner.
Para os abolicionistas o direito penal não se justifica. Defendem a
completa deslegitimação não apenas da pena, mas também do direito penal. Daí porque,
de antemão, se deve frisar que a principal conseqüência desta corrente é a infirmação de
todos os fundamentos do sistema penal110
.
Seus argumentos assentam sobre diversas críticas tecidas às premissas do
sistema penal que, didaticamente, Paulo de Souza Queiroz111
identificou doze
principais, a saber:
1. O sistema penal não tem idoneidade funcional. Afirmam os
abolicionistas que o direito penal não é capaz de prevenir, quer de forma geral, quer
especial, por meio da cominação das penas, a prática de delitos. Em outras palavras, o
direito penal não é meio apto a motivar comportamentos, uma vez que a prática do
delito tem diversas causas motivacionais, sejam psicológicas, sociais, culturais, etc.,
incapazes de serem afastadas pelo mero temor da pena.
108
Paulo de Souza Queiroz, ob. cit., pág. 90/91. 109
Paulo de Souza Queiroz, ob. cit., pág. 93, afirma que o abolicionismo não se filia a uma corrente
ideológica, já que sua formação e princípios são muito variados, indo desde o neomarxismo ao
liberalismo, porquanto temos o cuidado de tratá-la como corrente de pensamento mas não ideológica. 110
Para Luigi Ferrajoli, ob. cit., pág. 203, o abolicionismo perseguem modelos de sociedades pouco
atraentes: ou um sociedade selvagem, sem qualquer ordem e abandonada à lei natural do mais forte, ou
uma sociedade disciplinar, pacificada e totalizante. 111
Paulo de Souza Queiroz, ob. cit., pág. 93.
61
2. O sistema penal é arbitrariamente seletivo. Parte da afirmação de que o
direito penal assenta suas bases sobre uma sociedade profundamente desigual e,
portanto, recruta sua clientela entre os grupos mais vulneráveis. Desta forma, a
igualdade formal é meio para legitimar a desigualdade material, sendo, destarte, o
direito penal um produtor e reprodutor de desigualdades sociais.
3. O direito penal é violador dos direito humanos. O discurso do direito
penal é desproporcional à capacidade de operação dos órgãos de aplicação da lei penal.
Assim, há uma “disparidade entre a programação discursiva e a realidade operativa
do sistema”112
, gerando atos de violação dos direitos humanos, tais como duração
extraordinária de processos criminais, prisões provisórias e que de tão duradouras
acabam se transformando em definitivas, etc.
4. Intervenção em situações excepcionais. A criminalidade registrada é o
objeto de intervenção do direito penal. A criminalidade registrada, investigada,
processada e objeto de condenação é tão pequena que chega a ser irrisória, desprezível.
A criminalidade desconhecida, ou cujos autores não são identificados, ou que são
alcançados pela prescrição, ou objeto de composição, ou não provados, etc. (são as
chamadas “cifras ocultas”) se mostram em número tão maior que as objeto de registro
que se pode concluir que de um sistema ocupado de casos esporádicos é prescindível.
5. O sistema penal neutraliza a vítima. O tratamento dado pelo direito
penal coisifica a vítima ao tratá-la como se todos os que sofressem um crime tivessem
as mesmas reações e necessidades. O direito penal exclui a vítima, toma-lhe o conflito,
e lhe confere uma solução alheia à sua vontade, portanto, insatisfatória e irracional.
6. Inexistência de consistência ontológica do crime. O crime é uma
situação assim definida, donde se verifica a existência de vários comportamentos
considerados “delitos” que nada têm em comum a não ser terem sido definidos pelo
poder político como tal. Daí porque o crime não é uma realidade social, mas uma
criação conforme as conveniências políticas, carecendo de consistência ontológica.
7. O sistema penal intervém sobre as pessoas e não sobre as situações.
Afirma-se com isto que o sistema penal é baseado na culpabilidade pessoal individual,
se abstraindo das variáveis sociais que permeiam as condutas humanas. Seria um
sistema de responsabilidade biológica e não de responsabilidade social.
112
Paulo de Souza Queiroz, ob. cit., pág. 98.
62
8. O sistema penal intervém de maneira reativa e não preventiva. O
controle penal se realiza após a produção das conseqüências do delito praticado, não
sendo capaz de eliminá-las. Outrossim, não atua preventivamente, como já visto
anteriormente. Assim, teria uma função de vingança, meramente simbólica e não
compensatória materialmente.
9. O sistema penal atua tardiamente. Há um lapso temporal grande entre
o momento do delito e o da intervenção penal em razão da demora no processo penal.
Assim, afirmando que o acusado não é a mesma pessoa em momentos tão díspares, não
há sentido na intervenção.
10. O sistema penal concebe uma sociedade falsa. Afirma-se que o
sistema penal pressupõe uma sociedade plenamente consensual, em que todos, de forma
unânime, reprovariam comportamentos tidos como delituosos, negando o pluralismo
nas sociedades heterogêneas.
11. A lei penal não é inerente à sociedade. É uma negativa de
naturalidade ao direito penal, afirmando-se que antes da sua criação a sociedade resolvia
seus conflitos por outros meios, como o direito civil.
12. O sistema penal atua sobre efeitos e não sobre as causas da violência,
porquanto os comportamentos tidos como delituosos são as conseqüências de problemas
que não são objetos da intervenção penal.
18.1.1.b. Minimalismo radical ou abolicionismo mediato
Os principais pensadores desta corrente são Alessandro Baratta, Eugênio
Raul Zaffaroni, Sebastian Sheerer.
O minismalismo radical consiste no reconhecimento de que todas as
justificações para o direito penal são improcedentes, portanto, todas as críticas expostas
como de pensamento abolicionista são compartilhadas por esta corrente que, não por
outro motivo, também se classificou como deslegitimadoras.
Todavia, só é possível abolir completamente o direito penal com a
implementação prévia de mudanças sociais que possibilitem a supressão do sistema
repressivo estatal.
Desta forma, o direito penal se mantém como meio para alcançar a sua
própria supressão, daí porque podemos classificar este pensamento como abolicionismo
mediato, a longo prazo.
63
Há um ponto importante a ser ressaltado. Para os minimalistas o direito
penal é de fato um subsistema de controle social e, como tal, por ser necessária sua
manutenção enquanto não se criam condições sociais para sua abolição, o mesmo pode
ser até mesmo ampliado nos casos em que a nova intervenção seja absolutamente
necessária, como para proteção de interesses sociais fundamentais, tais como a saúde
pública e o meio ambiente.
Frise-se, outrossim, que esta corrente não defende a mera despenalização
ou diversificação de penas, mas a renúncia ao poder punitivo estatal onticamente
considerado, sob pena de se legitimar um aumento real do poder do sistema com uma
redução meramente aparente dos recursos do sistema punitivo.
18.1.2. Legitimação ou Justificação:
Numa perspectiva histórica, como de resto o mesmo ocorre no plano
teórico, as ideologias justificacionistas do direito estatal de punir prevaleceram sobre as
teorias deslegitimadoras.
Esta parte do trabalho se dedica a ordenar e explicar de forma sucinta as
diversas doutrinas a respeito das justificações do direito do Estado impor sanção penal.
A classificação aqui exposta, de fato, não é nova, mas tem a importância
de imprimir ao tema uma conotação axiológica, portanto, menos dogmática, mais
filosófica.
A priori a classificação se fará conforme o valor que se empresta à
punição, sem descurar das conseqüências desta valoração, porquanto, como dito, isto
implicará na legitimação ou não dos demais pontos fundamentais que compõem o
direito penal.
Luigi Ferrajoli, baseado em Sêneca, expõe que a diferença entre as
justificações retributivistas e utilitaristas é que “...as justificações do primeiro tipo são
quia peccatum, ou seja, dizem respeito ao passado; aquelas do segundo, ao contrário,
são ne peccetur, ou seja, referem-se ao futuro”113
.
De fato. No entanto, devem ser acrescentadas a estas doutrinas
retributivistas e utilitaristas, as doutrinas mistas, que encerram uma síntese das demais
doutrinas elaborada por determinados pensadores, aí incluindo o próprio Luigi Ferrajoli,
teórico do garantismo penal.
113
Luigi Ferrajoli, ob. cit., pág. 205.
64
18.1.2.a. Teorias retributivistas:
As doutrinas chamadas absolutas ou retributivistas baseiam-se na
máxima de que é justo “pagar o mal com o mal”.
De antemão cumpre ressaltar a divergência de visão destas doutrinas que
fazem os estudiosos e o que se exporá neste trabalho. É que estas doutrinas são
chamadas de absolutas uma vez que enxergam a pena como um fim ou um valor em si
mesma114
.
Não é o que pensamos. Fato é que uma vez aplicada a pena, sob o ponto
de vista destas doutrinas, o valor almejado estaria realizado, pois o mesmo é alcançado
com a retribuição do mal. Estas doutrinas seriam melhor chamadas de retributivistas, e
não absolutas, porquanto pretendem seja a pena uma forma de “pagar o mal com o mal”
para alcançar um determinador valor: o justo.
Na ordem da citada tábua de valores trata-se da prevalência da busca do
valor do justo para justificar a imposição da punição.
Todavia, deve-se relevar que, na ordem da teoria dos valores
anteriormente exposta, os valores se implicam, e como tal não necessariamente apenas
um valor existe na formulação desta doutrina.
Ao contrário, conquanto na origem desta doutrina encontremos, de fato, o
valor do justo, haja vista ordenamentos primitivos cuja base é a “vingança de sangue”,
ou a máxima “olho por olho, dente por dente”, como a Lei de Talião, o valor do santo se
apresenta como início da busca religiosa pela legitimação do poder de punir que se
assenta, entre outros valores, em parte sobre as bases do justo, em parte sobre idéias
fundamentais de caráter religioso, que encontramos principalmente nos pensamentos da
idade medieval. Vale trazer a colação as lições de Luigi Ferrajoli:
“Presente na tradição hebraica sob a forma de preceito
divino, incorporada inobstante o preceito evangélico do perdão na
tradição cristiana e católica – de São Paulo, Santo Agostinho e Santo
Tomás até Pio XII tal concepção gira em torno de três idéias
fundamentais de caráter religioso, vale dizer, aquelas da “vingança”
(ex parte agentis), da “expiação” (ex parte patientis) e do
“reequilíbrio” entre pena e delito.”115
114
Luigi Ferrajoli, ob. cit., pág. 208. 115
Luigi Ferrajoli, ob. cit., pág. 205.
65
O mesmo autor esclarece que estas idéias sempre exerceram fascínio
sobre o pensamento político reacionário e, malgrado tenham passado por uma crise
durante o iluminismo, foram relançadas no século XIX por pensadores laicos e que
passaremos a expor.
18.1.2.a.I. Retributivismo Ético
Esta teoria foi formulada por Emmanuel Kant se baseia no fato de que a
pena se justifica por ser uma sanção à violação da norma penal que encerra um valor
moral. Daí porque a pena deriva de um imperativo categórico, ou seja, moral, portanto
incondicional.
Neste ponto vale lembrar a distinção kantiana entre imperativo
categórico e imperativo hipotético. O primeiro diz respeito aos imperativos morais, que
são categóricos porque comandam uma ação que é boa em si mesma, sem o fim que ela
possa atingir. O imperativo hipotético, por sua vez, prescreve uma ação que é boa
condicionadamente ao fim que pretende alcançar.
Assim, como a norma penal é regida por princípios morais, as penas são
imperativos categóricos que não tem uma finalidade utilitárias, mas realizam um fim em
si mesmo, o fim de alcançar a justiça. Daí porque o princípio talional é plenamente
aceito por Kant como o paradigma da verdadeira justiça116
.
Kant, inegavelmente, vislumbra o valor do justo como aquele a ser
alcançado pela pena e que se realiza por completo com a aplicação da pena.
18.1.2.a.II. Retributivismo Jurídico
Para Hegel, a pena é a afirmação do direito. Isto porque o delito é uma
violência contra o direito e a pena é também uma violência, só que contra o delito, por
isso tem por finalidade anular a primeira violência. In verbis:
“O princípio conceitual de que toda violência destrói a
si mesma possui a real manifestação no fato de uma violência se
anular com outra violência.”117
116
Paulo de Souza Queiroz, ob. cit., pág. 20. 117
Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Princípio da Filosofia do Direito, tradução Orlando Vitorino, São
Paulo Martins Fontes, 1997, pág. 84.
66
Desta forma, conquanto a violência seja injusta em si mesma, a violência
da pena, como negação do ato de negação da liberdade consistente no ato criminoso faz
restaurar o próprio direito em si.
Nesta medida a pena é uma violência que suprime o crime e restaura o
direito e, no conceito de moralidade subjetiva reside a aspiração da pena como
realização da justiça e não como vingança.
Neste aspecto a pena realizaria a justiça, porquanto seria um direito até
mesmo do próprio criminoso afirmar o seu direito por meio da negação do crime que ele
próprio cometeu, com a aplicação da pena. E neste passo realizaria o valor do justo que
é, embora sob fundamentação diversa de Kant118
, o mesmo valor perseguido por Hegel:
“A pena com que se aflige o criminoso não é apenas
justa em si; justa que é, é também o ser em si da vontade do criminoso,
uma maneira da sua liberdade existir, o seu direito.”119
18.1.2.b. Teorias utilitaristas:
Ultrapassadas as doutrinas que justificam a pena como uma resposta ao
passado, passemos ao estudo das legitimações da pena para períodos futuros. Como já
dito anteriormente a visão retributivista entrou em claro declínio no período iluminista,
época de fértil influxo das idéias utilitaristas da pena.
Ao passo que as doutrinas retributivistas enxergam um fim para a pena
que se realiza em si mesma, não que a pena seja um valor em si mesmo120
, mas sim que
ao aplicar a pena o mal se paga e alcançada está a justiça, as doutrinas utilitaristas
podem ser assim denominadas porque se fazem necessárias como meio para alcançar
algo (um valor) que vai além delas próprias, portanto se voltam ao futuro.
O valor da pena na visão utilitarista é o útil, na medida em que ela é
utilizada como um meio para alcançar um outro valor no futuro, conforme o objetivo de
sua aplicação.
Estas doutrinas têm em comum exatamente o fato de vislumbrarem a
pena como um meio para o alcance de algo mais valioso.
118
Segundo Luigi Ferrajoli, ob. cit., pág. 205, as duas teses retributivas de Hegel e Kant são apenas
aparentemente distintas, “...pelo menos no que tange a Hegel, vez que concebendo o Estado enquanto
„espírito ético‟ ou „substância ética‟, ou, ainda, simplesmente ethos, também a idéia de retribuição
„jurídica‟ baseia-se em última análise, a bem da verdade, no valor moral atrelado ao ordenamento
jurídico lesado, para não dizer no imperativo penal individualmente considerado.” 119
Georg Wilhelm Friedrich Hegel, ob. cit., pág. 89. 120
Para Luigi Ferrajoli, ob. cit., pág. 208, estas doutrinas olham a pena “...como se ela própria fosse um
fim ou um valor”.
67
Faremos uma primeira classificação conforme o destinatário da utilidade
da pena. Não se deve confundir com o destinatário da pena em si, posto que este será,
via de regra, o condenado121
.
A finalidade utilitarista ne peccetur será preventiva, na medida em que se
volta para o futuro. Será especial ou geral caso se destine ao próprio condenado ou aos
cidadãos em geral, respectivamente.
Uma segunda classificação se fulcrará na prestação da pena, podendo,
portanto, ser positiva ou negativa.
Vejamos cada uma destas doutrinas.
18.1.2.b.I. Prevenção Especial:
Como dito anteriormente estas ideologias têm por característica comum
buscar um outro fim além da pena, voltando o resultado da sanção penal para o futuro, e
utilizando-a como um meio e não um fim realizável com sua aplicação.
Luigi Ferrajoli122
verifica que os primórdios do pensamento penal que
justificam a pena pela função de prevenção especial remontam ao tempo clássico, tal
como elaborada por Platão a idéia da poena medicinalis.
Malgrado tenha encontrado sua reelaboração na Idade Média por Santo
Tomás, como se verá a seguir, teve próspero desenvolvimento na época iluminista,
contrariamente às teorias contratualistas e jusnaturalistas prevalecentes no pensamento
daquele tempo e que expressavam o apelo liberal e revolucionário da tutela do indivíduo
contra o despotismo do velho Estado absolutista, pois que a correição expressava a
vocação autoritária do novo Estado liberal e dos regimes totalitários que a este
sucederam com sua crise.
Ainda na visão do pensador italiano, as “...doutrinas e legislações penais
de tipo propriamente correicional desenvolveram-se, por sua vez, somente na segunda
metade do século XIX, paralelamente à difusão de concepções organicistas do corpo
social, são ou doente, sobre o qual são chamadas a exercitar o olho clínico e os
experimentos terapêuticos do poder.”123
121
Será via de regra o condenado, mas nem sempre, basta ver que o princípio da intranscendência ou da
pessoalidade da pena não existiu sempre na História do direito penal. A aplicação da pena imposta a
Tiradentes, por exemplo, surtiu efeitos às suas gerações descendentes. 122
Luigi Ferrajoli, ob. cit., pág. 213. 123
Luigi Ferrajoli, ob. cit., pág. 213.
68
Chamamos de prevenção especial a corrente de pensamento que vê na
pena uma finalidade que se destina ao futuro e que objetiva alcançar um valor do
próprio condenado.
. Prevenção Especial Positiva
Há doutrinas que vislumbram a possibilidade de utilizar a pena para
corrigir ou tratar o condenado. Não por outro motivo estas doutrinas são chamadas
também de correicionalistas.
Não há uma única doutrina correicionalista, mas diversas que partem do
mesmo objetivo e verificam na pena uma finalidade utilitarista voltada à pessoa do
condenado.
Não é difícil verificar que estas doutrinas que atribuem à pena a
finalidade de corrigir, tratar, reeducar o condenado, partem do pressuposto de que este
é, em si, errado, desviado ou doente, porquanto não têm por objetivo a penalização de
condutas e sim de pessoas.
No entanto, as correntes de pensamento dos diversos matizes que
justificam a concepção utilitarista especial positiva, em geral, como se verá a seguir,
também legitimam a pena para uma utilidade preventiva negativa.
. Prevenção Especial Negativa
As mesmas doutrinas que vêem na pena um tratamento para ressocializar,
reeducar, tratar o condenado, também vislumbram a necessidade de eliminá-lo em
determinados casos.
Isso ocorreria sempre que o tratamento não fosse adequado, ou não
houvesse tratamento para determinado sujeito, que, por ser irrecuperável, seria
merecedor da prevenção negativa, com a sua retirada do convívio social, para o qual não
se mostra apto.
Mesmo nesta hipótese em que se pode estar mitigando valores
primordiais na tábua social, qual seja, a liberdade e a igualdade, a utilidade ainda é o
que se busca com a pena. Em outras palavras, para a realização do valor do útil, na
medida em que a pena é aplicada para alcançar um outro objetivo que vem após, são
tornados irrelevantes a liberdade, uma vez que por esta finalidade da prevenção especial
negativa pode se estar encarcerando indefinidamente ou matando o condenado, e a
igualdade, pois se acredita que o condenado é diferente, tem algum tipo de problema.
69
. Doutrinas correicionalistas
Todas as doutrinas correicionalistas legitimam o poder de punir do
Estado com base na finalidade do alcance de um outro valor, o que é próprio das
correntes utilitaristas em geral.
A peculiaridade é que para as correntes correicionalistas, a finalidade é
dirigida ao próprio delinqüente e não ao corpo social.
Assim, tem em comum o fato de considerar não o delito, mas o indivíduo
como objetivo da pena, e o tomam em conta como um ser patológico, cujo defeito pode
ser moral, social ou natural, conforme a orientação ideológica da corrente
correicionalista.
Desta forma, na esteira do pensamento de Luigi Ferrajoli124
, podemos
identificar três doutrinas correicionalistas:
Doutrinas pedagógicas da emenda. Para o pensador italiano esta é a
corrente doutrinária mais remota e inspira-se numa concepção espiritualista do homem e
se fulcram na idéia de que os homens que delinqüem podem não apenas serem punidos,
mas também serem obrigados pelo Estado a tornarem-se bons. É poena medicinalis
elaborada por Platão e desenvolvida por Santo Tomás.
Esclarece, ademais, que a idéia da pena como resgate deita raízes na
concepção bíblica da pena como sofrimento, como preço ou forma de sacrifício para
expiação dos pecados e da reconciliação do homem com Deus.
Não sendo alcançados efeitos positivos com a “medicina da alma”, cabe
a intervenção negativa com o afastamento do convívio social, seja por eliminação ou
privação do convívio.
Mais uma vez, verifica-se que o valor do santo está presente nesta
corrente doutrinária e desta vez se alia ao valor do útil, próprio das correntes
correicionalistas em geral, para ser alcançado
Estas correntes antigas inspiraram as diversas versões do pedagogismo
penal moderno sustentada por diversos pensadores, tais como Karl Roeder, Vicenzo
Garelli, Francesco Filomusi Guelfi, Vicenzo Lanza e Francisco Carnelutti, bem como as
correntes idealistas sustentadas por Ugo Spirito na Itália.
124
Luigi Ferrajoli, ob. cit., pág. 214.
70
Doutrinas terapêuticas da defesa social. Para esta corrente o delinqüente
é um ser antropologicamente inferior e apresenta uma periculosidade social a ser
eliminada pela pena. Porquanto esta variará conforme o grau de periculosidade do
delinqüente: curar o condenado ou, de outro lado, segregá-lo ou neutralizá-lo.
Verifica-se, sem muita dificuldade tratar-se da versão penal e
criminológica do determinismo positivista, de origem na idéia de “delinqüente nato” de
Lombroso.
Na perspectiva de conceber a pena como terapia para o tratamento do
delinqüente que é naturalmente doente, são justificadas penas de segregação por tempo
indeterminado, revisão periódica do “tratamento” penal, etc., o que acaba por legitimar,
ao mesmo argumento, o tratamento e a segregação.
Malgrado elaboradas, sobretudo na Itália, pela Escola positiva, por
Enrico Ferri, Raffaele Garofalo, Eugenio Florian e Filippo Grispigni, teve grande
repercussão e aceitação na França, Espanha, América Latina, em ambientes anglo-
saxões e na União Soviética.
Doutrina eclética da “pena-defesa”. Elaborada por Franz Von Liszt no
seu Programa de Marburgo de 1882, se baseia na flexibilidade e funcionalidade do
direito penal, consubstanciado na individualização da pena conforme os diversos “tipos”
de delinqüentes a serem tratados.
Verifica que os tipos de delinqüentes podem ser “adaptáveis”,
“inadaptáveis” ou “ocasionais”, para os quais caberá respectivamente a
“ressocialização”, a “neutralização” ou a “intimidação”. Verifica-se que para os
ocasionais há em sentido nesta última finalidade que é de certo modo a base da
prevenção geral.
Por sinal é chamada de eclética porque, embora tenha por finalidade
precípua a prevenção especial, não descura, inclusive da retributividade da pena, posto
que para Liszt “„a pena-defesa é a pena retributiva comprendida em seu sentido justo‟,
ou seja, „justa no caso concreto‟.”125
18.1.2.b.II. Prevenção Geral:
A corrente de pensamento que vê na pena a finalidade da prevenção geral
encerra diversas doutrinas que justificam o poder estatal de punir pelo valor do útil. A
125
Luigi Ferrajoli, ob. cit., pág. 216.
71
peculiaridade desta corrente é a pessoa para quem se volta a pena enquanto meio para o
alcance de determinado fim.
Isso porque a prevenção geral legitima a pena enquanto mecanismo
direcionado para os cidadãos em geral, para dissuadi-los da vontade de praticar atos
delituosos.
A classificação enquanto positiva ou negativa da prevenção geral como
finalidade da pena, deve-se à natureza da prestação que se pretende do destinatário do
valor da pena, que no caso é o cidadão em geral, como já dito.
Isto não deve ser confundido com o destinatário da pena em si, porquanto
este será sempre o delinqüente condenado, obviamente, pois não seria admissível
justificar a aplicação da pena à generalidade dos cidadãos.
No entanto, malgrado a aplicação da pena se dirija ao condenado, seus
efeitos úteis se irradiam, para os defensores da prevenção geral, para a coletividade que
passa a ter que respeitar a ordem.
. Prevenção Geral Positiva ou Integradora
O objetivo, na visão dos adeptos desta corrente de pensamento, da pena é
não propriamente dissuadir os potenciais delinqüentes de praticarem uma infração
penal, mas de infundir na consciência geral a necessidade de respeito a determinados
valores, promovendo a estabilização social.
Focaremos, na esteira do lecionado por Paulo de Souza Queiroz126
, duas
reelaborações desta perspectiva da pena. Senão vejamos:
Para Hans Welzel, o direito penal tem por função precípua a defesa de
valores ético-sociais. Argumenta que, como o direito penal intervém tardiamente, sem a
possibilidade de recuperar o bem jurídico perdido ou violado, o essencial, não é,
destarte, a proteção dos bens jurídicos, mas dos valores ético-sociais que se pretende
assegurar com a proteção penal.
Desta forma a pena seria uma afirmação dos valores ético-sociais,
infundindo-os e reafirmando-os na consciência coletiva.
Para Günther Jakobs, que tem sua teoria funcional baseada nas idéias
sistêmicas de Niklas Luhmann, justifica-se “...a pena enquanto fator de coesão do
sistema político-social em razão da sua capacidade de reestabelecer a confiança
126
Paulo de Souza Queiroz, ob. cit., pág. 41.
72
coletiva abalada pelas transgressões, a estabilidade do ordenamento e, portanto, de
renovar a fidelidade dos cidadãos no que tange às instituições.”127128
Desta forma, assim como Welzel, Jakobs não vê no direito penal a
finalidade direta ou principal de proteção de bens jurídicos, mas, enquanto para aquele a
finalidade é a proteção de valores ético-sociais, para este a finalidade é a proteção de
funções sistêmicas.
. Prevenção Geral Negativa
Luigi Ferrajoli expõe a existência de dois sub-grupos de pensamento que
vêem na pena a finalidade de prevenção geral negativa:
O primeiro que o pensador italiano aborda são as doutrinas da
intimidação exercida sobre a generalidade dos associados pelo exemplo fornecido pela
aplicação da pena e que se verifica nos pensadores jusnaturalistas dos séculos XVII e
XVIII, como Grócio, Hobbes, Locke, Pufendorf, Thomasius, Beccaria, Bentham,
Filangieri.
O segundo sub-grupo reúne as doutrinas da intimidação voltadas para a
generalidade por meio da ameaça contida na pena. Esta doutrina defendida por Anselm
Feuerbach, Giandomenico Romagnosi, Francesco Maria Pagano, Arthur Schopenhauer,
Carmignani, Carrara, como é evidente, não se baseia no exemplo que a pena representa,
mas na ameaça que abstratamente exerce sobre os cidadãos em geral, partindo do
pressuposto que a ameaça de punição tem o poder de dissuadir o delinqüente de ter o
comportamento proibido pela norma.
18.1.2.c. Teorias mistas ou ecléticas:
As teorias mistas ou ecléticas são dominantes hodiernamente e tem por
características superar as antinomias das correntes monistas, combinando-as ou
unificando-as sistematicamente.
Axiologicamente tem por objeto realizar diversos valores que se
implicam. Paulo de Souza Queiroz leciona, expondo, malgrado seu tema não tenha por
escopo uma investigação axiológica, os valores a serem alcançados nas concepções
mistas ou ecléticas da finalidade da pena:
127
Luigi Ferrajoli, ob. cit., pág. 222. 128
Paulo de Souza Queiroz, ob. cit., pág. 49, expõe que diversos pensadores como Arthur Kaufmann e
Muñoz Conde o vêem como “neo-retribucionista”.
73
“Para essa teoria, a justificação da pena depende, a um
tempo, da justiça de seus preceitos e da sua necessidade para a
preservação das condições essenciais da vida em sociedade (proteção
de bens jurídicos). Busca-se, assim, unir justiça e utilidade, razão pela
qual a pena somente será legítima na medida em que seja
contemporaneamente justa e útil. Por conseguinte, a pena, ainda que
justa, não será legítima, se for desnecessária (inútil), tanto quanto se,
embora necessária (útil), não for justa.”129
Desta forma, vê-se com clareza que os diversos valores identificados em
cada uma das doutrinas monistas expostas anteriormente são buscados conjuntamente
pelas doutrinas ecléticas.
Exporemos, a seguir, duas das principais doutrinas ecléticas
justificadoras do poder estatal de punir: a teoria dialética unificadora e a teoria do
direito penal mínimo ou garantismo.
18.1.2.c.I. Teoria dialética unificadora
Trata-se, na realidade, da exposição do pensamento sobre a justificação
do poder estatal punitivo de um dos maiores juristas penais hodiernos, Claus Roxin.
Para o pensador germânico, a busca da finalidade da pena passa pela
análise dos momentos da pena, a saber: a cominação, a aplicação e a execução. Cada um
desses momentos merece uma justificação particular.
Na primeira fase do exercício do jus puniendi, qual seja, a cominação
abstrata da sanção penal para determinado delito, entende Roxin que é necessário saber
os fins do próprio Estado enquanto titular do direito de punir.
Assim, é de se frisar que neste ponto a tarefa legislativa de cominação da
pena é um exercício do poder político e, como tal, o direito penal deverá ter seu
conteúdo e limites definidos de acordo com a conformação política que se assinale ao
Estado130
. Desta forma, conclui Roxin que o direito penal é de natureza subsidiária (só
podendo se ocupar de lesões de bens jurídicos que não podem ser protegidos por outros
meios, como o direito civil) e que o direito penal não pode se ocupar de condutas
imorais ou que não lesem bens jurídicos.
129
Georg Wilhelm Friedrich Hegel, ob. cit., pág. 89. 130
Paulo de Souza Queiroz, ob. cit., pág. 69.
74
Logo, à luz da exposição supra, neste momento (cominatório) da pena, a
função de proteger os bens jurídicos justifica a finalidade preventiva geral positiva
subsidiária, porquanto visa levar o cidadão a não violar os bens jurídicos e, assim,
conformar a conduta do cidadão à ordem social.
No segundo momento da pena, qual seja, sua aplicação por meio da
sentença penal condenatória, estamos tratando do exercício do poder do Estado punir,
mas não no que concerne à natureza política de sua atuação, mas sim no que respeita à
sua atuação técnico-jurídica, realizada pelo Poder Judiciário.
Aqui se verifica não apenas a finalidade preventiva geral negativa, posto
que a aplicação da pena confirma a sua ameaça que é dirigida a todos, mas também a
finalidade preventiva geral positiva de fortalecimento da consciência jurídica da
generalidade dos destinatários da norma penal.
Neste momento (aplicação) da pena, Roxin verifica a finalidade da
prevenção especial positiva e negativa, porquanto “...intimidará o delinqüente face a
uma possível reincidência e manterá a sociedade segura deste, pelo menos durante o
cumprimento da pena.”131
Ressalta Roxin que culpabilidade funciona neste momento da pena, mas
não como seu fundamento, e sim como limite desta.
Quanto ao terceiro momento da pena, qual seja, a execução, o jurista
germânico vislumbra, sem prejuízo da prevenção geral, ser finalidade da execução a
reintegração do delinqüente à sociedade, à sua ressocialização, sem que em nome desta
finalidade possa se legitimar afrontas à personalidade do ser humano, como é o caso de
uma inadmissível castração de um delinqüente sexual.
18.1.2.c.II. Teoria de direito penal mínimo ou garantismo
Trata-se do pensamento de Luigi Ferrajoli sobre a finalidade do poder
estatal de punir.
Expõe como única finalidade legítima da pena a prevenção geral
negativa. No entanto, relê esta finalidade sob dois prismas: a prevenção geral negativa
tradicional direcionada aos cidadãos em geral para evitar a prática de futuros delitos e a
prevenção geral negativa direcionada aos cidadãos em geral para evitar a prática de
possíveis violências arbitrárias em reação aos delitos.
131
Claus Roxin, Problemas Fundamentais de Direito Penal, 2ªed., Belo Horizonte, Veja, 1993, pág.
33/34 apud Paulo de Souza Queiroz, ob. cit., pág. 70.
75
Para Ferrajoli a pena serve para prevenir delitos injustos, mas, sobretudo,
para prevenir punições injustas. É uma prevenção que se direciona à pessoa ofendida e
também ao delinqüente.
A finalidade de prevenir delitos determina o limite mínimo da pena, ao
passo que a finalidade de prevenir a imposição de castigos arbitrários ou
desproporcionais determinam o limite máximo da pena.
Ferrajoli não encontra justificação para a pena na idéia de ressocialização
ou de reeducação, porquanto o direito de punir do Estado não está legitimado a forçar os
cidadãos a se tornarem bons e deixarem de ser malvados, nem tampouco a moldar suas
personalidades, haja vista que a obrigação do cidadão é não cometer delitos, apenas,
preservando-lhe o direito de ser interiormente malvado, separando-se, claramente,
direito e moral.
18.1.3. Conseqüências das ideologias penais
Neste ponto do estudo se faz necessário uma avaliação das conseqüências
das ideologias da axiologia da pena sobre os demais pontos fundamentais que compõem
o direito penal.
Porquanto, a perquirição necessária, ab initio, é se existe legitimação
para a proteção de bens jurídicos à luz dos fundamentos axiológicos das penas ou que
correntes ideológicas penais legitimam o direito estatal de proibir.
Isso porque, não é correto afirmar, muito pelo contrário, que a
legitimação do direito de punir implica na legitimação do direito de proibir.
É bem verdade que as ideologias deslegitimadoras não deslegitimam
apenas a pena em si, mas como já se viu, deslegitimam o próprio sistema penal como
um todo, retirando justificativa do direito de proibir.
No entanto, isto não é uma decorrência lógica imediata, isto é, não se
pode dizer que o direito do Estado proibir não encontra legitimação pelo só fato de o
direito do Estado de punir, porquanto seria o mesmo que afirmar que ninguém pode
proibir sem punir.
Evidente que se pode proibir sem punir. Se esta proibição será aceita e
terá efetividade prática é um problema subseqüente.
No entanto, as correntes deslegitimadoras do direito estatal de punir,
pelos seus próprios argumentos já expostos deslegitimam, outrossim, o direito estatal de
proibir.
76
Outro ponto importante é que determinadas ideologias legitimam o
direito estatal de punir, deslegitimando o direito estatal de proibir.
O que parece ser um contra-senso se mostra óbvio na medida em que
relembramos que as ideologias que justificam a pena, enxergando nas mesmas a
finalidade utilitária preventiva especial, se ocupam mais do delinqüente que do próprio
comportamento.
Em outras palavras, as correntes utilitárias de prevenção especial, seja
positiva, seja negativa, fundamentam o poder estatal de punir na necessidade de
recuperar e ressocializar o cidadão desviante, ou mesmo excluí-lo do convívio social.
Daí porque o poder de punir está baseado nos problemas pessoais do delinqüente, qual
seja, em suas características pessoais, que denotam um problema patológico de caráter
social ou até mesmo biológico, merecedor de uma reparação.
Não há, destarte, para esta corrente de pensamento qualquer interesse no
fato delituoso132
, mas sim no delinqüente com sua patologia a ser sanada pela pena,
prevenindo o delito. É o direito penal do delinqüente e não do delito.
Para esta ideologia do direito de punir do Estado, não há legitimação para
o poder estatal de proibir, pois o que se proíbe não é o comportamento, e sim a pessoa.
A proteção penal recai sobre o indivíduo, e não sobre as ações desviadas que atingem
bens jurídicos penais.
Não há legitimação axiológica a ser perquirida no que concerne à
proteção dos bens jurídicos, porquanto não é a violação destes que importa ao direito
penal e sim a pessoa desviada.
No que respeita à corrente retributivista a legitimação do direito de
proibir é inerente ao seu fundamento axiológico.
Como visto anteriormente, o valor fundante desta corrente de
pensamento legitimador do direito estatal de punir é a justiça. A lógica, básica desta
ideologia é a de retribuir o mal, o que sob qualquer ponto de vista pressupõe tenha sido
praticado um mal por quem está a merecer a imposição do mal pelo Estado.
Assim, cabe ao Estado buscar a legitimação para cada proibição a que se
pretende cominar uma pena. Isso porque, como se está fundando o direito de punir na
violação de algo, sem dúvida só pode haver violação do que é proibido, legitimando
132
Francesco Carnelutti, As Funções do Processo Penal, 1ª Edição, apta edições, Campinas, 2004,
tradução de Rolando Maria da Luz, pág. 36, afirma que “se as medidas de segurança tendem a excluir ou
pelo menos a atenuar o perigo do delito, logicamente o pressuposto delas deveria ser não tanto o delito
quanto o perigo do delito.”
77
assim o direito do Estado de proibir, e, em conseqüência, protegendo bens que se
afiguram importantes para o Estado.
Desta forma, as correntes retributivistas legitimam o direito estatal de
proibir a violação de determinados bens jurídicos, conforme a tábua de valores que o
exercente do poder político estatal escolher133
.
As correntes utilitaristas que vêem a pena como meio para prevenir de
forma geral os delitos, devem ser analisadas conforme seja a prevenção geral positiva
ou negativa.
Isso porque, a prevenção geral negativa, como visto, se subdivide na
corrente que encontra na pena a finalidade de dissuasão dos cidadãos em geral de ter o
comportamento proibido pela norma; e a corrente que acredita dever ser a pena utilizada
como um exemplo a ser dado para os cidadãos em geral.
Para os que verificam na pena a finalidade de dissuasão dos cidadãos de
terem o comportamento proibido pela norma, evidentemente que a legitimação do poder
de proibir é inerente à própria explicação da finalidade da pena, posto que o objetivo da
pena é evitar a conduta proibida, ensejando a perquirição da legitimação de cada
proibição, mas, de toda sorte, justificando o poder de proibir.
No que respeita a corrente da prevenção geral negativa que verifica na
pena um exemplo a ser dado para os demais cidadãos que não sofreram a pena, há
igualmente uma legitimação do poder estatal de proibir, visto que o objetivo é dar
exemplo para evitar que outros tenham o mesmo comportamento que o delinqüente, daí
porque a proibição daquele comportamento se faz necessário, legitimando o poder
estatal de proibir.
O que esta corrente implica é na completa desnecessidade e até
inutilidade dos sistemas de garantias de julgamento, posto que o direito de defesa torna-
se inócuo na medida em que o que interessa não é se o delito foi praticado, mas o
exemplo que será dado com a imposição da pena.
Para a corrente que vê na pena a finalidade de prevenção geral positiva,
uma vez que o objetivo é menos punir uma conduta criminosa e mais de infundir na
consciência geral a necessidade de respeito a determinados valores, promovendo a
estabilização social, o direito estatal de punir é meramente instrumental.
133
Se esta escolhe será feita livremente ou à luz de determinados limites veremos mais a frente.
78
Não está o direito penal, à luz desta corrente, legitimado na perquirição
do fundamento de cada proibição em si, mas na consecução de um objetivo maior. Isso
não significa dizer que não se está legitimando o direto estatal de proibir, mas que isto é
instrumental e vinculado a uma finalidade maior. Luiz Flávio Gomes leciona:
“Uma teoria positivista com uma dimentsão tão
“neutra” (funcionalista), ao não definir previamente a forma
específica de seu funcionamento nem o sistema social ao qual será útil,
não somente pode permitir o arbítrio punitivo, senão que, tal como
assinalou com grande propriedade Muñoz Conde, “conduz à
substituição do conceito de bem jurídico pelo de „funcionalidade do
sistema social‟, perdendo assim a Ciência do Direito penal o último
apoio que fica para a crítica do Direito penal positivo”.”134
No que concerne às correntes mistas ou ecléticas, até mesmo por
reunirem algumas das correntes acima citadas, podemos verificar que não apenas
legitimam o poder estatal de proibir, como há imperiosa necessidade de se perquirir os
fundamentos do poder de proibir, para que se determinem as limitações do exercício de
todos os poderes.
18.2. A axiologia do bem jurídico
18.2.1. O Direito estatal de proibir (princípio da proporcionalidade)
Como abordado acima, há legitimações do ius puniendi que implicam na
necessidade de busca da justificação do direito de proibir do Estado e que será
percucientemente estudado neste ponto.
Por outro lado, as teorias que deslegitimam o direito de proibir podem ser
divididas em duas: as que deslegitimam o direito estatal de punir e as que legitimam o
direito estatal de punir.
Quanto às primeiras o direito estatal de proibir sequer deveria existir
(abolicionismo e minimalismo radical), já o segundo grupo apresenta uma
peculiaridade, pois podem se utilizar do direito de proibir apenas como forma, porém
valorativamente inócua, posto que o verdadeiro fundamento do sistema penal é punir o
delinqüente pelo que ele é, não pelo que fez (prevenção especial). Por esta razão, nestes
134
Norma e Bem Jurídico no Direito Penal, série as ciências criminais no século XXI, volume 5, Revista
dos Tribunais, 2002, São Paulo, pág. 84.
79
casos a resposta à fundamentação do direito estatal de proibir é vazia, sem conteúdo
fundante valorativo, embora a proibição possa na prática existir.
Todavia, como o interesse deste trabalho é perquirir a fundamentação
axiológica do sistema penal, mais especificamente neste ponto do direito de proibir,
somente as correntes que pelos fundamentos do direito de punir se infere a necessidade
de buscar a fundamentação do direito de proibir interessar-nos-ão.
É possível verificar que o direito penal simboliza, no plano axiológico, o
embate entre o valor da liberdade humana e o direito do Estado tolher esta liberdade em
nome de algum outro valor135
.
As correntes que legitimam o direito do Estado punir verificam que nos
casos em que se possibilita a aplicação de pena, o valor da liberdade sucumbe.
Nesta linha de idéias, duas hipóteses devem ser tratadas: (1) se a
legitimação da pena se dá pelo ser e não pelo fazer (prevenção especial) a prevalência
do direito estatal de punir sobre a liberdade ocorrerá invariavelmente pelo fato de a
ordem pública, abalada ou em perigo meramente pela liberdade do sócio ou psico-
patológico cidadão, preceder, na tábua de valores daquele Estado, à liberdade; e (2) se a
legitimação da pena precisa da violação da proibição, o direito de proibir do Estado
deve estar calcado em um valor prevalente sobre a liberdade.
Assim é que na primeira hipótese estaremos diante de um Estado
totalitário, em que as liberdades individuais não prevalecem sobre o interesse de ordem
do Estado.
Na segunda hipótese, por outro lado, como o direito de punir do Estado
se funda no direito estatal de proibir comportamentos que violem um valor maior que a
liberdade, a cada caso deverá ser definido o valor que se repute maior que a liberdade
para, com sua violação, legitimar o direito estatal de punir.
Certo é que nesta ordem de idéias, a proporcionalidade (entre o valor de
vulneração proibida e a liberdade do cidadão136
) enceta o estudo sobre o fundamento da
135
Neste contexto está se tomando como linha de estudo o direito penal do ius libertatis, que, na visão de
Silva Sánchez apud Luiz Flávio Gomes (ob. cit., pág. 51), deve ser entendido como o conjunto de normas
jurídico-penais (na nossa visão o campo dogmático da ciência do Direito) que têm como conseqüência a
imposição (direta ou indireta) de pena privativa de liberdade. Não deve ser olvidado que na doutrina penal
já se fala em outro tipo de Direito Penal, que teria como conseqüência outros tipos de sanção distintas da
privação de liberdade. Este direito penal de penas diferentes das privativas de liberdade não invalidam o
que se afirmará neste estudo. 136
Ao se falar em liberdade do cidadão, estamos tratando da privação da liberdade como a pena. No
entanto, como dito na nota de rodapé anterior, não significa dizer que não podemos ter outras penas como
ponto comparativo ao valor da vulneração proibida. Se, por exemplo, a pena for multa, deveremos utilizar
o valor do econômico como ponto comparativo à legitimar a imposição de pena.
80
proibição de condutas, servindo, destarte, de paradigma o valor de justiça como o
primeiro a ser perseguido pelo exercente do poder político configurador do sistema
penal sob o prisma proibitivo.
18.2.2. Variação da ordenação de valores (do direito penal máximo ao
princípio da intervenção mínima)
A premissa do direito de proibir estatal na observância da
proporcionalidade entre o valor de vulneração proibida e a liberdade do cidadão
encerrará uma configuração do sistema penal maximizado ou reduzido, o que dependerá
da tábua de valores definida para determinada sociedade e por ela própria.
Isso porque, como foi visto no item 15, para cada sociedade existe uma
determinada ordenação de valores que variará conforme seu traço cultural.
Assim, para sociedades em que a liberdade não está em primeiro plano,
os diversos valores que a antecedem na escala de prioridades merecerão tutela do poder
político que delineará o direito penal, criando modelos de direito penal máximo, qual
seja, com número exacerbado de proibições de conduta, próprio dos Estados totalitários.
De outro lado, nas sociedades liberais, nas quais o valor da liberdade do
cidadão é tomado como prioridade, os demais valores sucumbirão e não serão
merecedores de tutela estatal no âmbito penal, de sorte que veremos assim configurado
um modelo de direito penal calcado no princípio da intervenção mínima do Estado na
esfera de conduta do cidadão, com reduzido número de comportamentos proibidos.
18.2.3. Os bens jurídicos como projeção dos valores (princípio da
exclusiva proteção de bens jurídicos)
Como dito anteriormente, nos itens 15 e 16, os valores podem ser
ordenados e classificados, sendo certo que sua ordenação e classificação derivam da
objetivação do espírito humano projetado sobre a História.
Assim, para cada civilização, determinada tábua de valores é escolhida
para dar lugar à realização dos valores mais importantes.
É neste passo que a sociedade cria e desenvolve seus bens culturais, que
nada mais são do que expressões, ou tentativas de expressões, dos valores escolhidos
pelo exercente do poder político.
Para Miguel Reale, os bens culturais têm dois elementos: o “suporte” e o
“significado”. É o caso, por exemplo, de uma escultura que tem o suporte no mármore
81
em que se esculpe, mas revela o significado do belo. O suporte pode, por seu turno, ser
físico, psíquico ou ideal, como é o caso dos bens jurídicos, que têm suporte nas
proposições lógicas da própria norma, ao passo que enunciam um juízo de valor137
.
Conclui que entre o suporte e o significado dos bens jurídicos há uma correlação
essencial.
Os bens jurídicos são, destarte, espécies de bens culturais, na medida em
que resultam da tentativa do legislador, no exercício do seu poder político, de realização
de determinados valores eleitos, através das normas jurídicas por ele elaboradas.
Os bens jurídico-penais, por sua vez, ganham maior relevo na medida em
que o arcabouço do ordenamento punitivo pode vir a orbitar em torno deste conceito
para os casos em que o direito de punir pressupõe a existência de uma violação de fato
de um valor maior que a liberdade, como visto acima. Com efeito, todo tatbestand138
tem por finalidade a proteção de um determinado bem jurídico.
Porquanto, ao elaborar a norma jurídica penal punitiva, tratada
tecnicamente como “tipo penal”, o legislador legitima o direito de punir e, conforme sua
justificativa axiológica para a punição, protegerá determinado bem jurídico que somente
será por ele tutelado na medida em que o valor nele contido, qual seja, o seu
“significado”, esteja na ordem dos valores a serem protegidos em detrimento da
liberdade.
Vale a transcrição da lição do renomado jurista penal brasileiro,
Magalhães Noronha:
“Exato é, outrossim, que não se pode elaborar o
preceito penal, sem prévio juízo de valor – e por isso já se apontou
também o caráter valorativo do direito penal – o que é operação ética,
prendendo-se ele, igualmente, à filosofia moral.”139
Desta forma, não resta dúvida que o estudo dos bens jurídicos eleitos
pelo legislador penal traduzem a objetivação do espírito humano sobre aquele momento
histórico, sendo com isto possível captar a essência cultural de uma determinada
civilização.
De todo evidente que isto só é possível na medida em que a elaboração
das normas jurídicas penais punitivas, nas quais restam eleitos os bens jurídicos
137
Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 226/227. 138
Vide item 6 da 1ª Parte “A motivação da norma”, mormente a nota 55. 139
E. Magalhães Noronha, Direito Penal, volume 1, atualizado por Adalberto José Q. T. de Camargo
Aranha, 32ª ed., Saraiva, 1997, São Paulo, pág 11.
82
penalmente relevantes, que nada mais são do que espécies de bens culturais que revelam
os seus significados valorativos, é a própria realização da cultura de determinada
civilização.
Portanto, a proibição é mais que um traço cultural de uma sociedade
historicamente situada, pois revela os valores daquela sociedade e, desta forma, sua
própria cultura.
Esta característica reveladora da proibição estatal é verificável nas
sociedades em que se pune o comportamento desviado (é o caso das teorias de
legitimação punitiva retributiva e de prevenção geral) e não a pessoa desviada (é o caso
das teorias de legitimação punitiva de prevenção especial).
De toda sorte, somente um direito penal configurado por um sistema
legislativo penal protetivo de bens jurídicos (princípio da exclusiva proteção de bens
jurídicos), se realiza axiologicamente sobre a cultura da sociedade em que se insere,
posto que os bens jurídicos, enquanto bens culturais que traduzem a objetivação do
espírito humano sobre a História, são capazes de salvaguardar os valores de uma
civilização.
Caso contrário, ou seja, um direito penal que negue a legitimação das
proibições de comportamentos na proteção de bens jurídicos, será inócuo, vazio, carente
de fundamento axiológico e, assim, puramente impositivo, pois não emana das relações
sociais que encetam e encerram os valores daquela civilização.
18.2.4. A elevação valorativa do bem jurídico a bem jurídico-penal
(princípios da fragmentariedade e da subsidiariedade)
Cediço que os bens jurídico-penais são espécies de bens jurídicos, que
por sua vez são bens culturais, cumpre alcançar o(s) traço(s) distintivo(s) que
caracteriza(m) os bens jurídico-penais.
É que diversos são os valores de uma sociedade e, portanto, diversos são
os bens culturais da mesma. Bem assim, diversas são as normas jurídicas que pretendem
realizar valores, destarte, diversos são os bens jurídicos.
A questão está exatamente no conflito entre a liberdade do cidadão e o
valor protegido que se pretende seja realizado pela norma jurídica.
Neste ponto cumpre traçar uma distinção entre a norma penal primária e
a norma penal secundária. A primeira realiza um valor pela proteção de um bem
83
jurídico, por meio da proibição de determinado comportamento que o viole. A segunda
impõe a sanção para a realização do comportamento proibido pela norma primária.
Assim, a proporção entre a norma secundária e a norma primária deve
existir, promovendo a proporcionalidade dos valores em embate.
Como a intervenção do Estado na esfera privada é a máxima possível no
direito penal, somente os valores mais importantes na ordem de valores daquela
sociedade politicamente organizada podem ser objeto de tutela penal.
Senão vejamos a lição de Luiz Flávio Gomes:
“A construção de um Direito penal regido pelo
paradigma da ofensividade, de cunho constitucional, material e
garantista, de qualquer modo, parte da premissa básica de que a
norma penal (primária) possui um caráter (acentuada e
prioritariamente) valorativo, isto é, ela existe para a tutela de alguns
bens ou interesses (de especial relevância) consubstanciados em
relações sociais valoradas positivamente pelo legislador para
constituir o objeto de uma especial e qualificada proteção, como é a
penal.”140
Os bens jurídicos objetos de escolha pelo legislador penal, portanto,
devem passar por um critério de ordenação axiológica dos valores que realiza, para que
sejam tutelados apenas os bens jurídicos de maior relevância. Esta seleção de bens
jurídicos de suma relevância deve ser realizada pelo exercente do poder político.
Portanto, é correto afirmar que somente estará legitimado o direito estatal
de proibir condutas que lesem os bens jurídicos que realizam os valores mais
importantes de determinada sociedade. É o princípio da fragmentariedade do direito
penal.
De outro lado, pela mesma ordem de idéias, caso as proteções de outros
ramos do Direito (civil, trabalhista, tributário, administrativo, etc.) sirvam para
promover a proteção de determinados bens jurídicos, por mais importantes que sejam os
valores por eles realizados, é porque estes não têm relevância penal. É o princípio da
subsidiariedade.
Portanto, são bens jurídico-penais, aqueles cujo valor somente a norma
jurídica penal pode realizar, pela sua relevância (fragmentariedade) e impossibilidade de
140
Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 17/18.
84
ser tutelado por norma de outra natureza (subsidiariedade ou ultima ratio). Tomemos a
lição do citado jurista:
“O Direito penal só protege os bens mais valiosos para
a convivência; o faz, ademais, exclusivamente frente aos ataques mais
intoleráveis de que possam ser objeto (natureza „fragmentária‟ da
intervenção penal); e mesmo assim quando não existem outros meios
eficazes, de natureza não penal, para salvaguardar aqueles (natureza
„subsidiária‟ do Direito penal).”141
Nesta ordem de idéias, o direito penal que proteja bens jurídicos de todo
tipo de relevância, ou que repita a proteção (já efetiva) de outro ramo do Direito,
expande seu universo de aplicação para limites que ultrapassam o da necessidade de
proteção das relações sociais, e passam a determinar as relações sociais, sendo
impensável para Estados liberais e democráticos.
A escolha dos valores mais relevantes e, via de conseqüência, dos bens
jurídico de natureza penal, cabe ao legislador. Em última análise, é este quem vai definir
quais são os valores penalmente relevantes e que merecerão tutela do sistema penal,
configurando, de forma política, o direito penal pelo seu objeto axiológico de proibição.
18.2.5. A vulneração concreta do bem jurídico-penal em sentido
valorativo e normativo (princípio da ofensividade)
É impensável, sob o prisma axiológico, conferir direito ao Estado de
punir pelo simples fato de ter sido transgredida uma norma jurídica.
Malgrado se possa afirmar que formalmente o princípio da legalidade
encerra uma garantia ao cidadão consistente no fato de que ninguém poderá ser
considerado criminoso sem que a proibição esteja expressa em norma jurídica, este
princípio não se subsume ao seu aspecto formal.
Isto significa dizer que o crime não é uma mera desobediência da
imperatividade contida na norma. Esta avaloração é própria do positivismo em sua
vertente normativista pura, como se verá a seguir.
Isto significa dizer que uma norma jurídica proibitiva não pode prescindir
de um conceito anterior material de bem jurídico-penal, dirigido ao legislador que criará
o sistema penal.
141
Luiz Flávio Gomes citando García-Pablos de Molina, ob. cit., pág. 135/136.
85
Daí porque o bem jurídico-penal deve se subsumir à proteção dos valores
mais importantes de determinada sociedade. A esta tábua de valores deve se ater o
legislador ao criar o sistema penal.
Bem assim, é impensável que o bem jurídico-penal goze de proteção sem
que se perquira sobre sua afetação lesiva, qual seja, o simples fato de se escolher
politicamente os bens jurídico-penais (os valores neles representados) aos quais será
conferida proteção estatal, não basta para legitimar a intervenção punitiva. É preciso que
os bens jurídico-penais sejam efetivamente afetados, ofendidos, senão com sua
violação, pelo menos com a exposição a perigo concreto.
A esta necessidade de afetação material se dá o nome de princípio da
ofensividade.
“Para justificar a intervenção penal (que é a mais
severa das intervenções), será imprescindível, em conseqüência, que a
conduta externa praticada (formalmente típica e subjetiva ou
normativamente imputável ao agente) não só concretize a descrição
legal (típica), senão também que ofenda concretamente (lesão ou
perigo) o bem jurídico protegido, que, no caso, é a vida, sob
determinadas condições ou circunstâncias (i. e., consubstanciada numa
relação social).
A fundamentação do princípio da ofensividade (do qual,
segundo nossa perspectiva, não podemos abrir mão se não desejamos
correr o risco de que o Direito penal do bem jurídico seja liberal em
suas formulações e autoritário em seu conteúdo ou em suas
conclusões) tem, desse modo, que partir do reconhecimento de que o
delito (o injusto penal) não se esgota na violação do aspecto
imperativo da norma (antinormatividade), senão na infração do Direito
(é dizer, na antijuridicidade em sentido material, que significa afetação
inarredável do bem jurídico).
Com isso fica claro que o crime (o injusto penal) é uma
conduta antinormativa (é um comportamento que não respeita a pauta
de conduta estabelecida pela norma), porém não no sentido “formal”
(como concebida, v. g., o finalismo de Welzel), senão “material”,
porque a norma sempre deve ser entendida como referência primordial
86
de uma valoração, que se expressa num conceito de Direito, ou seja,
num conceito de bem jurídico.”142
Não for assim, ou seja, merecendo punição mesmo quem não atinja um
bem jurídico-penal, estar-se-á legitimando a intervenção punitiva do Estado mesmo sem
observância do princípio da proporcionalidade (portanto, inobservando o valor justiça),
pois que o valor atingido pela pena sucumbirá ao capricho do detentor do poder político,
sem que um valor (maior que a liberdade) tenha sido lesado para legitimar a imposição
da punição pelo Estado.
Estaremos falando de um Estado totalitário, em que aquele que exerce o
poder político pode intervir na liberdade do cidadão pelo seu ato arbitrário de vontade,
mas sem legitimação axiológica.
Um Estado de natureza liberal deve proteger seus valores sem olvidar da
liberdade de seus cidadãos, portanto, a proteção axiológica encerrada pelos bens
jurídico-penais somente será legitimadora da intervenção punitiva estatal em caso de
violação efetivamente afetadora do bem jurídico-penal, seja por lesão ou exposição a
perigo concreto (este restritamente nos casos necessários).
18.2.6. Breve relato da evolução histórico-conceitual do bem jurídico
18.2.6.a. Concepção Pré-Iluminista
A concepção iluminista transformou o direito penal, fazendo nascer entre
outros, o conceito de bem jurídico-penal143
a legitimar e limitar a intervenção punitiva
estatal.
Fato é que antes do pensamento iluminista a justificação do direito penal
encontrava-se no direito natural, o quê, por sinal, ressalte-se, também se encontrava no
movimento iluminista, porém a matriz antropológica da Ilustração diferenciava do
fundamento em que se fulcrava o direito natural em momento histórico anterior.
É que antes do Iluminismo, com sua concepção do ser humano como
centro do pensamento, temos a base teológica do fundamento do direito natural,
sobretudo no período medieval.
142
Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 17/18. 143
Também introduziu o princípio da legalidade, da não criação de normas pelos juízes, entre outras
garantias do cidadão.
87
Antes ainda, a natureza das coisas determinava a justificação
cosmológica do direito natural, que, no pensamento helênico, pugnava, em decorrência,
pela imutabilidade do direito natural, mesmo porque a natureza seria inalterável.
Nesta concepção de direito, o homem é considerado como o componente
do cosmos, de um todo, e não em sua individualidade.
Todavia, não seria demais ressaltarmos que haveria uma incongruência
impor, cronologicamente, uma ordem de justificação cosmológica, teológica,
antropológica para o direito natural.
É que, malgrado o poder absolutista fulcrado no poder divino conferido
ao monarca pudesse remeter o fundamento teológico do direito natural à época medieval
e posterior constituição dos Estados nacionais, fato é que muito antes de Cristo o
fundamento teológico já se fazia presente em diversos Direitos nacionais.
À guisa de exemplo, vale tomar o caso do povo judeu, que muito antes de
ter um território nacional, portanto, ainda povo Hebreu, no século XII a.C., ou mesmo
ao se instalar em Canaã (já com território, portanto), tinham um Tribunal ou assembléia
constituído por setenta e um juízes com a função de interpretar as Leis e conduzir a vida
do povo. Terminaram por elaborar a jurisprudência com base numa “Teocracia
democrática”144
.
Mesmo quando Canaã se dividiu em reino de Israel ou Samaria e reino de
Judá ou Judéia, restou clara a legitimação do direito do povo judeu (povo do reino da
Judéia) com contornos absolutamente sagrados e, portanto, teológicos, ao passo que o
povo samaritano (povo do reino da Samaria), que se fundamentavam, principalmente,
nos valores da justiça e proteção aos pobres (humanidade), e, com isso, chegaram a ser
considerados pagãos pelos judeus145
.
Não é difícil perceber, portanto, que mais de 1.200 anos antes de Cristo,
o fundamento do Direito de algumas nações ou mesmo Estados146
era o teológico,
portanto, o valor fundante era o religioso.
O valor religioso legitimava um direito eterno, posto que baseado em
normas divinas e apenas interpretados pelos intérpretes autorizados. Via de regra, não
144
Jaques Attali, Os judeus, o dinheiro e o mundo, Futura, São Paulo, 2003, pág. 48. 145
Jaques Attali, Ob. cit., pág. 58/59. 146
Vale notar que os judeus oscilaram entre povo e nação, na concepção de Teoria do Estado
compreendido este como a nação com território. O povo judeu, mesmo na diáspora conseguiu manter a
uniformidade de sua cultura, baseada, sobretudo, no valor religioso.
88
continham em si qualquer debate axiológico além da vontade de Deus, servindo a pena
para pagar o pecado cometido.
18.2.6. b. Concepção Iluminista
Não resta dúvida que a concepção teológica vigente até então, fundada
no valor religioso, não continha em si qualquer racionalidade e, portanto, não impunha
limites ao poder punitivo e proibitivo estatal, ora justificado pela palavra divina.
A concepção Iluminista deslocou a matriz fundante do Direito para o
Homem. O conteúdo antropológico do pensamento da Ilustração impôs a necessidade de
uma construção jurídica que importasse na imposição de limites formais e materiais ao
poder estatal de punir e de proibir.
Assim é que o princípio da legalidade passou a ser uma imposição
iluminista contra os desmandos autoritários do Estado e representou o maior avanço já
registrado na História no que concerne à limitação formal do poder estatal de punir (vale
citar a célebre obra Dos Delitos e das Penas de Cesare Beccaria) e de proibir.
Nesta mesma ordem de idéias, passou a ser inaceitável, para os
pensadores liberais, qualquer punição para “...condutas moralmente reprováveis ou
contrárias à religião, mas que não causassem um dano concreto a uma pessoa ou à
própria república”147
. Nasceu, assim, ainda que não com concreção jurídica, nem
tampouco com este nomen juris, a concepção do bem jurídico como fundamento do
direito de proibir.
A primeira concepção que mais se aproxima do bem jurídico-penal foi
desenvolvida por Feuerbach. Fundamenta-se na idéia de que o delito decorre da
violação de um direito subjetivo. Mas não é só isso, como bem esclarece Heloisa
Estellita Salomão:
“...a tutela penal fundamentar-se-ia em três pressupotos:
existência de um direito subjetivo, danosidade social da conduta e
necessidade de pena.”148
Portanto, a idéia de delito como violação (danosa) de um direito
subjetivo é própria do período Iluminista e, segundo Hormazábal Malarée “...não é mais
que a expressão da teoria do contrato social no direito penal: os homens diante da
147
Evandro Pelarin, Bem Jurídico-Penal – Um Debate sobre a Descriminalização, IBCRIM, São Paulo,
2002, pág. 39. 148
Heloisa Estellita Salomão, A Tutela Penal e as Obrigações Tributárias na Constituição Federal,
Revista dos Tribunais, São Paulo, 2001, pág. 26.
89
insegurança que supõe viverem isolados, decidem organizar-se em sociedade e confiar
ao Estado a conservação da nova ordem criada. O Estado surge como garante das
condições de vida em comum.”149
Desta forma, a limitação material do poder proibitivo do Estado nasceu
com esta concepção de Feuerbach e veio a somar-se com o princípio da legalidade
(limitação formal) razão pela qual é possível afirmar que o período da Ilustração fundou
o Direito Penal moderno e plantou, em fortes bases, uma concepção garantista.
Assim, o valor da liberdade do ser humano, matriz da visão antropológica
iluminista, se sobrepôs aos demais valores outrora prevalentes (sagrado, por exemplo)
no cenário axiológico fundante do Direito Penal.
18.2.6. c. Concepção Positivista
. Concepção de Birnbaum
Cumpre, ab intio, trazer a concepção de Birnbaum de bem jurídico-penal.
Em primeiro lugar porque a ele é atribuída a paternidade do conceito de bem jurídico-
penal. Em segundo lugar porque classificar o conceito de Birnbaum como positivista é
inseguro, pois que, no dizer de Evandro Pelarin o pensamento deste jurista “...para
alguns autores, enquadrava-se no direito natural antropológico do iluminismo; para
outros, já estava no positivismo incipiente, ou, ainda, transitava entre os dois
pensamentos.”150
O fato é que para Birnbaum o delito lesionaria “bens” e não direitos
subjetivos, o que legitimaria a proibição de condutas que ofendessem não apenas
direitos subjetivos pessoais, mas também bens sociais.
Em verdade, Birnbaum concebe o bem a ser protegido, em última
análise, como um valor hierarquizado politicamente pelo Estado. Nas palavras de
Heloisa Estellita Salomão:
“Sendo o bem portador de um valor, determinar quando
um objeto merece tutela penal, ou seja, quando é elevado à categoria
de bem, depende do sujeito que o valora e, pois, de uma decisão de
caráter político, devendo-se considerar que o sujeito valorante é o
próprio Estado.”151
149
Hormazábal Malarée citado por Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 27. 150
Evandro Pelarin, ob. cit., pág. 54. 151
Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 28.
90
Verifica-se, em que pesem as opiniões em contrário, que o conceito de
Birnbaum se afasta do positivismo na medida em que há um conteúdo claramente
valorativo, embora não se resuma, como no pensamento positivista, às violações aos
direitos subjetivos pessoais e, portanto, não se limita a uma visão antropológica
meramente individualista.
. Concepções Naturalísticas
As concepções naturalísticas se caracterizam pela utilização do método
positivista, próprio das ciências naturais, portanto indutivo. É um pensamento
avalorativo de observação da realidade.
Neste ambiente destacam-se as concepções de Von Liszt e de Binding.
Este de caráter legalista, aquele sociológico.
Para Binding, o delito é a violação do dever de obediência que o cidadão
tem frente ao Estado. É o Estado quem valora o que deve ser protegido, sem que
materialmente se saiba, por falta de uma concepção conceitual axiológica, o que deve
nortear a conduta do legislador. Comentando criticamente esta concepção de bem
jurídico-penal, Heloisa Estellita Salomão assevera:
“Para essa concepção, além de o indivíduo encontrar-se
diante do Estado, em total estado de submissão, o bem jurídico não
possui conteúdo tal que possa limitar o direito de punir ou criticar o
ordenamento penal posto; assim, parece-nos válida a assertiva de que
a norma e o bem jurídico, na concepção de Binding, cumprem a função
de “legitimação do poder coativo, podendo a chegar a cobrir com um
manto de legalidade a arbitrariedade estatal”.”152
Von Liszt se contrapôs à concepção legalista avalorativa de Binding, por
entender que os interesses (valores) a serem protegidos pelo legislador eram pré-
existentes à atividade legiferante.
Daí, para Von Liszt, existe uma limitação à atividade do legislador,
consistente no fato de que os bens jurídicos são uma criação da vida, da experiência,
decorrente da realidade social, e que devem ser traduzidos pelo legislador em bens
jurídicos.
152
Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 30, citando Hormanazábal Malarée.
91
Isso não significa que para Von Liszt o bem jurídico decorra de uma
atividade valorativa do legislador. Não. Para este pensador o bem jurídico decorre
diretamente da realidade social, sem que o legislador valore aquele fato social, pois o
valor se contém no próprio fato social que o legislador transformou em bem jurídico e
que já era pré-existente a esta tarefa legiferante.
As duas concepções são naturalísticas e se aproximam porque, embora
uma tenha cunho meramente legalista (Binding) e a outra na realidade social (Von
Liszt), ambas são avalorativas. Citando Maria da Conceição Ferreira da Cunha, Evandro
Pelarin esclarece:
“Tal coincidência revela o distanciamento deles do
objeto do estudo, retirando-lhes a responsabilidade (também) pela
construção do conceito, pois os métodos respectivos de conhecimento,
social e legal, não autorizam a inflexão crítico-valorativa do agente.
Em suma, para os dois, o bem jurídico é algo que se cria,
naturalmente, ou da sociedade ou da norma.”153
. Concepção normativista pura
Neste ambiente avalorativo do Direito sob a concepção positivista,
ampliado ao normativismo puro de Kelsen, aliado às concepções evolucionistas e
deterministas do início do século XX, foi conseqüência o desinteresse pelas causas
sociais do delito, concentrando-se o Estado no controle das patologias individuais, bem
assim o corolário esvaziamento do conceito de bem jurídico.
Sob o prisma axiológico, como já visto, a deslegitimação do direito
estatal de proibir em decorrência da justificação do direito estatal de punir pela
prevenção especial, aliada ao normativismo puro positivista daquele momento histórico,
resultou nos conceitos de bens jurídico-penais inferidos da própria norma.
Heloisa Estellita Salomão, baseada nas lições de Maria da Conceição
Ferreira da Cunha, esclarece que “o primeiro representante dessa corrente
(normativista pura) é Honig que, em 1919, identificou o bem jurídico com a ratio da
norma.”154
Explica Maria da Conceição Ferreira da Cunha citada por Evandro
Pelarin:
153
Evandro Pelarin, ob. cit., pág. 69, citando Maria da Conceição Ferreira da Cunha. 154
Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 31, citando Maria da Conceição Ferreira da Cunha.
92
“o conceito de bem jurídico não tem existência prévia à
das próprias prescrições penais, não se confundindo com os substratos
da realidade em que os valores poderão assentar; a sua origem é
normativa.”155
É facilmente verificável que o conceito de bem jurídico foi esvaziado de
qualquer conteúdo conceitual axiológico pré-existente à atividade legiferante. O bem
jurídico passou a ser inferido da própria norma, portanto, sua existência é posterior à
criação da regra proibitiva.
Assim, o bem jurídico não apresenta nenhum conceito material
vinculante, se distanciando totalmente do ambiente Iluminista garantidor, outrora
abordado.
Esta concepção de bem jurídico-penal, como se vê, não impõe qualquer
limite à atividade legiferante, propiciando o ambiente adequado para a construção de
sistemas autoritários, como foi o caso do nazismo, na Alemanha, e do fascismo, na
Itália.
Como verificado na exposição da justificação axiológica para o direito do
Estado de punir, não há qualquer base valorativa para a legitimação do direito de proibir
do Estado para teoria da finalidade de prevenção especial da pena, o que confirma a
conceituação positivista normativa pura do bem jurídico-penal, segundo a qual este é o
que da norma se pode concluir, utilizando para o Direito penal o caminho puro da lógica
do sistema legislativo, limitação da explicação axiológica de sua constituição política.
Como dito anteriormente, a proibição é livre, mesmo porque o que se
quer punir não é a conduta, mas o delinqüente, portanto a conceituação de bem jurídico,
que funda o direito estatal de proibir, acompanha o pensamento fundante do direito
estatal de punir. Em outras palavras as proibições são livres, e a conceituação de bem
jurídico é meramente formal, sem qualquer conteúdo material vinculante. É um cheque
em branco passado ao legislador.
18.2.6. d. Concepção Sociológica
Heloisa Estellita Salomão156
encontra em Amelung, Habermas, Jakobs e
Hassemer os representantes da conceituação do bem jurídico sob o prisma sociológico.
155
Evandro Pelarin, ob. cit., pág. 79, citando Maria da Conceição Ferreira da Cunha. 156
Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 33.
93
Amelung “...pretende encontrar um conceito de danosidade social que
seja pré-jurídico com capacidade, portanto, para servir de orientação ao
legislador”157
.
É uma substituição do conceito de bem jurídico pelo de danosidade
social, sendo possível sob este ângulo criminalizar condutas que não atendam à
funcionalidade do sistema.
É a prevalência do valor da sociedade (ordem) sobre o da pessoa humana
(liberdade), sem, contudo, definir qual seja o parâmetro criminalizante, servindo este
conceito de fundamentação do direito de proibir do Estado na danosidade social a
qualquer ideologia política, pois o que se protege é a ordem constituída.
Para Habermas o consenso social é o que legitima a criminalização das
condutas, cabendo ao Estado garantir os pressupostos para a realização do “diálogo
isento de dominação”158
.
O racional consenso intersubjetivo que indicaria os valores individuais e
coletivos a proteger, na visão de Habermas, realizaria o valor da verdade.
Citando Maria da Conceição Ferreira da Cunha, Heloisa Estellita
Salomão critica o conceito de Habermas porque não seria “...correto dizer que é no
consenso racional que se baseia a Verdade, mas sim que o consenso racional é uma (ou
é a) via legítima para se atingir a Verdade”.”159
Já Jakobs normativisa o direito de proibir do Estado sob o fundamento de
que a norma realiza as expectativas e garante a unidade funcional do sistema, sendo o
direito penal a forma de garantir a vigência da norma e, conseqüentemente, a coesão do
sistema.
A citada jurista assevera que “seu conceito de bem jurídico, portanto,
não tem qualquer conotação axiológica, não possuindo função crítica e sequer
limitadora do poder punitivo estatal.”160
Hassemer, por sua vez, busca um conceito pré-jurídico, no intuito de
limitar o arbítrio do legislador, o que não ocorre com os outros pensadores, na medida
em que suas explicações legitimadoras do poder de punir não limitam a atividade
legiferante com um conceito material orientador.
157
Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 33. 158
Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 35. 159
Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 35. 160
Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 36.
94
Para Hassemer, “...a questão pode ser respondida desde que se analise a
valoração a valoração que a sociedade dá aos objetos que pela conduta a incriminar
podem ser lesados ou expostos a perigo; valoração esta que depende de três fatores: a)
freqüência dessas condutas; b) intensidade da demanda do objeto em questão; e c)
medida da ameaça. Esses fatores, porém, „não operam em nível da sua consistência
objetiva; ao contrário, os fatos sociais da criminalização seriam diversamente
percebidos em função dos contextos culturais e sociais de referência e de seu histórico
evolver‟.”161
Segundo Hormazábal Malarée, citado por Heloisa Estellita Salomão,
Hassemer coloca “o conceito de bem jurídico no contexto histórico-cultural em que se
faz a valoração, circunstância que não pode ser ignorada pela política criminal.”162
Na busca do conceito pré-jurídico orientador e limitador do legislador ao
definir os bens jurídico-penais a serem protegidos, acaba por plantar a semente da
constitucionalização deste conceito ao destacar que a política criminal definidora dos
bens a serem tutelados deve ter em vista a importância da “experiência social dos
valores orientados segundo a Constituição”163
.
18.2.7. Teorias de fundamentação constitucional do bem jurídico
A necessidade de um conceito material de bem jurídico-penal que
orientasse e limitasse a atividade legiferante do Estado é uma necessidade de um Direito
penal que, sob o prisma axiológico, buscasse legitimar o direito de proibir estatal.
Fato é que nem mesmo as demais regras jurídicas prescindem da
justificação axiológica pré-jurídica. Em um Estado Democrático de Direito orientado
por uma norma magna programática e principiológica que é a Constituição, estes
valores a serem protegidos devem ser realizados pelas normas jurídicas constitucionais,
que funcionariam, destarte, como oráculo orientador de todas as normas, de todas as
naturezas:
“As regras jurídicas, incluindo evidentemente as penais,
somente podem existir enquanto realização dos valores básicos
(liberdade, justiça, igualdade, pluralismo, dignidade) contemplados em
161
Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 36. 162
Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 36. 163
Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 37.
95
cada Constituição, que consubstanciam um conjunto normativo de
respeito à liberdade alheia.”164
No que concerne aos bens jurídico-penais, de todo evidente, e com muito
mais razão, a norma constitucional deve ser entendida como limite ao legislador para
conhecimento e adequação da norma penal, na medida em que a Constituição realiza os
bens mais valiosos:
“No âmbito político-criminal (de lege ferenda) se
questiona qual bem jurídico pode legitimamente ser objeto da tutela
penal, é dizer, tendo em conta exigências ético-políticas (metajurídicas,
derivadas do modelo de Estado Social e Demoncrático de Direito) e
constitucionais, quais bens seriam merecedores de tutela (desde logo
se sabe que valores puramente morais ou religiosos ou ideológicos não
constituem objeto de tutela e, por conseguinte, de ofensa).”165
Este entendimento de que a Constituição é a norma orientadora dos
valores a serem tutelados pelo Estado ao elaborar o Sistema Penal é amplamente
majoritário no pensamento penalístico. Porém, diversas são as vertentes sobre este
paradigma constitucional do bem jurídico-penal, senão vejamos:
18.2.7.a. Concepções de caráter geral
Esta é concepção que enxerga materialmente o bem jurídico-penal como
a realização de valores adequados à ordem constitucional.
Heloisa Estellita Salomão166
apresenta os seguintes juristas expoentes
desta concepção: Walter von Sax, Klaus Roxin, Jorge Figueiredo Dias, Hans Joachim
Rudolphi, Michael MarxMir Puig, Polaino Navarrete, Emilio Dolcini, Giorgio
Marinucci e Giovanni Fiandaca.
De todo evidente que nem todas as concepções coincidem, mas se
aproximam na medida em que verificam ser a Constituição um ponto de orientação
axiológica do legislador ao exercer o poder político-criminal e elaborar o sistema penal,
delineando o direito penal.
164
Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 24. 165
Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 137. 166
Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 38 usque 59.
96
A referida jurista, citando Maria da Conceição Ferreira da Cunha, aduz
que “esta é a posição assumida pela maioria da doutrina alemã”167
.
Vale trazer à colação a lição de Figueiredo Dias, citado por Heloisa
Estellita Salomão, sobre o papel orientador dos valores constitucionais, dirigidos ao
legislador:
“os bens do sistema social preexistem à tutela penal,
porém, „os bens do sistema social se transformam e se concretizam em
bens jurídicos dignos de tutela penal (em bens jurídico-penais) através
da ordenação axiológica jurídico-constitucional’.”168
Este mesmo jurista lusitano deixa claro o papel da Constituição não
impondo uma identidade entre os valores constitucionais e os valores político-penais,
mas uma relação de essência:
“Logo, por aqui se deve concluir que um bem jurídico
político-criminalmente vinculante existe ali – e só ali – onde se
encontre refletido num valor jurídico-constitucionalmente reconhecido
em nome do sistema social total e que, deste modo, se pode afirmar que
„preexiste‟ ao ordenamento jurídico-penal. O que por sua vez significa
que entre a ordem axiológica jurídico-constitucional e a ordem legal –
jurídico-penal – dos bens jurídicos tem por força de se verificar uma
qualquer relação de mútua referência. Relação que não será de
„identidade‟, ou mesmo de „recíproca cobertura‟, mas de analogia
material, fundada numa essencial correspondência de sentido e – do
ponto de vista de sua tutela – de fins. Correspondência que deriva ,
ainda ela, de a ordem jurídico-constitucional constituir o quadro
obrigatório de referência e, ao mesmo tempo, o critério regulativo da
atividade punitiva do Estado. É nesta acepção, e só nela, que os bens
jurídicos protegidos pelo direito penal se dêem considerar
concretizações dos valores constitucionais expressa ou implicitamente
ligados aos direitos e deveres fundamentais. É por esta via – e só por
ela em definitivo – que os bens jurídicos se „transformam‟ em bens
jurídicos dignos de tutela penal ou com dignidade jurídico-penal.”169
167
Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 38. 168
Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 43 169
Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 43/44.
97
Desta lição decorrem três corolários: 1) não há identificação absoluta dos
valores constitucionais e aqueles protegidos pelo sistema penal; 2) podem ser
contemplados outros valores que não aqueles contemplados literalmente na
Constituição; 3) a Constituição não impõe ao legislador penal a tutela de determinado
valor.
Quanto ao primeiro corolário, Luiz Flávio Gomes o explica ao esclarecer
que “o conceito material de bem jurídico vincula-se aos valores superiores assumidos
pelo Estado Constitucional e Democrático de Direito, mas não segundo a perspectiva
de uma relação de “identificação absoluta”, senão de mera referência axiológica ou de
analogia substancial.”170
Quanto à segunda conseqüência, duas questões são levantadas: em
primeiro lugar as Constituições podem não contemplar um determinado valor em
determinado momento histórico que, posteriormente, pode vir a ser considerado
penalmente relevante; em segundo lugar as Constituições podem não contemplar todos
os valores relevantes, em sua integralidade, de uma determinada sociedade. Nestes
casos, o valor a que se pretende conferir proteção penal e que não está expressamente
previsto na Constituição, dês que não seja incompatível com os demais valores
constitucionais essenciais, não terá sua proteção defesa ao legislador penal.
Quanto à terceira decorrência, argumenta Luiz Flávio Gomes que “não
existe, portanto, uma obrigação de criminalização ou penalização automática, senão só
uma indicação do valor do bem jurídico referido. Elevado „merecimento de pena‟ não
significa automaticamente „necessidade‟ de pena”, daí porque “...o não cumprimento
pelo legislador das obrigações de criminalização não está sancionado com nenhuma
conseqüência jurídica.” 171
18.2.7. b. Concepções de caráter estrito
Esta é concepção que enxerga materialmente o bem jurídico-penal como
a realização dos valores da ordem constitucional.
Heloisa Estellita Salomão172
apresenta os seguintes juristas expoentes
desta concepção: Franco Bricola, Francesco Angioni, Luigi Ferrajoli e Maria da
170
Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 92. 171
Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 106/107. 172
Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 38 usque 59.
98
Conceição Ferreira da Cunha. Para Luiz Flavio Gomes173
, Franco Bricola é o principal
expoente.
Mais uma vez, é evidente que nem todas as concepções coincidem, mas
verificam a necessidade de harmonização dos valores penais com os valores
constitucionais, proibindo a penalização de valores que não lesem ou coloquem em
perigo concreto os valores constitucionais.
Esta doutrina tenta deduzir diretamente da Constituição os valores
objetos de proteção penal. Nas palavras de Heloisa Estellita Salomão, “...somente
poderia haver criminalização na hipótese de tutela de valores constitucionalmente
reconhecidos, ainda que de forma implícita.”174
A referida jurista, citando Maria da Conceição Ferreira da Cunha, aduz
que esta é a posição assumida “por parte da doutrina italiana e portuguesa”175
. No
entanto, cabe ressaltar que, segundo Luiz Flávio Gomes “...esta formulação mereceu
uma especial consideração das doutrinas alemã e italiana”176
.
De toda sorte, esclarece o jurista brasileiro que “...a verdade é que a
doutrina constitucionalista inflexível não assegurou grande ressonância na praxis”177
.
18.2.6. Legitimação e Deslegitimação axiológica da proteção aos bens
jurídicos (critérios de limitação do legislador)
Como visto, desde o nascimento do bem jurídico, não com este nomen
juris, como já dito, na época Iluminista, o objetivo dos pensadores era impor um
conceito material que orientasse e limitasse o poder legislativo de proibição de
condutas.
Historicamente este conceito se desvirtuou a ponto de, no extremo
normativismo positivista, carecer por completo de conteúdo axiológico pré-jurídico,
inferindo-se o bem protegido da própria norma.
Todavia, o caminho da garantia do cidadão em relação ao poder punitivo
e proibitivo do Estado, rumou para a busca de uma justificação que, malgrado não se
pudesse ignorar a diversidade cultural de uma civilização, pudesse impor uma
orientação e limitação ao poder legiferante de caráter geral e axiológico.
173
Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 89. 174
Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 59/60. 175
Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 60. 176
Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 89. 177
Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 91.
99
Daí porque a limitação do poder político delineador do direito penal pelo
sistema legislativo pelos valores insertos na Constituição, ou não incompatíveis com
ela, foi, na esteira da melhor doutrina atual, o conceito encontrado como limite e
orientação material do legislador.
Desrespeitada a orientação e vulnerados os limites axiológico-
constitucionais, estaremos diante do que a doutrina chama de função crítica do bem
jurídico, que podemos chamar de deslegitimação do direito de proibir do Estado:
“Quando utilizamos o conceito político-criminal para
constatar em cada norma penal concreta se há ou não correspondência
entre o conceito ideal e o real, então se fala da função crítica do bem
jurídico, que questiona a legitimação do bem protegido, é dizer, do
próprio Direito penal.”178
Respeitados estes limites de conformação ao quadro de valores
constitucional, teremos uma realização do direito de proibição estatal legítimo, sob o
prisma axiológico.
Assim, uma vez construído o sistema de proibições estatal legitimado do
ponto de vista axiológico-constitucional, respeitado o embate entre o valor liberdade e o
valor cuja vulneração se pretende proibir, ter-se-á realizado o valor da justiça:
“Com o novo método de ponderação, o Direito penal
torna-se mais complexo, perde a simplicidade e a linearidade do
método da subsunção (do positivismo legalista e formalista), mas
ganha em razoabilidade, equilíbrio e proporcionalidade, em suma,
eleva-se (a patamares notáveis) o valor justiça, que é o valor-meta do
Estado Constitucional e Democrático de Direito.”179
18.3. A axiologia do processo
18.3.1. A(s) função(ões), a(s) finalidade(s) e o(s) fundamento(s) do
processo penal
A questão que se coloca logo de início diz respeito à função ou às
funções do processo penal. Para que serve o processo penal? Qual sua finalidade?
178
Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 137. 179
Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 146.
100
As respostas a estas indagações não podem deixar de passar pela clara
afirmação de que o processo penal é o meio pelo qual o Estado reconhecerá ou não a
existência de seu direito de punir em razão da violação ou não do seu direito de proibir.
E neste ponto discordamos claramente das lições de Francesco Carnelutti
quando expõe que a função do processo penal é a pena. Para Carnelutti o processo penal
é a segunda fase do fenômeno penal, o qual é constituído pela combinação do delito e
da pena. Assim, ao abordar a função do processo penal, Carnelutti esclarece que “o
direito penal material tem, portanto, por objeto o delito; o direito penal processual tem,
em troca, como objeto a pena”180
.
Carnelutti continua sua lição apontando que a finalidade do direito penal
(que não se confunde com a função do direito penal) é a mesma do processo penal,
asseverando que a “razão pela qual o delito se faz seguir a pena, se distingue em duas
fases ou setores, aos quais convêm os nomes de prevenção e de repressão do delito”181
.
Como dito anteriormente não comungamos com a opinião do jurista
italiano. Porém, para que reste claro o motivo da discordância, cumpre, de antemão,
neste ponto, distinguir função, finalidade e fundamento. Finalidade é o fim, o objetivo a
ser alcançado pelo Estado ao exercer o seu direito de julgar. A função é o papel que
desempenha esta atividade estatal no sistema penal. E o fundamento é a razão de
natureza axiológica que legitima o direito do Estado de julgar, utilizando-se de
determinado mecanismo.
Neste passo, entendemos que a finalidade do exercício do direito de
julgar pelo Estado é verificar a existência ou não da violação do próprio direito estatal
de proibir e a incidência ou não do próprio direito estatal de punir. Cumpre, destarte,
uma dupla finalidade.
A função desempenhada pelo Estado ao exercer o seu direito de julgar é
promover a realização da sua finalidade, criando mecanismos de busca da verificação da
existência ou não da violação do direito estatal de proibir e da incidência ou não do
direito estatal de punir.
O fundamento do direito estatal de julgar, por sua vez, é a origem
político-axiológica legitimadora da atuação do Estado na busca da constatação da
existência ou não da violação do seu próprio direito de proibir e da incidência ou não do
180
As Funções do Processo Penal, 1959, 1ª edição, Apta, Tradução Rolando Maria da Luz, 2004, pág. 21. 181
Ob. cit., pág. 29.
101
seu próprio direito de punir. Em outras palavras, são os valores que legitimam o Estado
a julgar a existência ou não do seu direito (de proibir e de punir).
18.3.2. Legitimação do direito estatal de julgar:
Qualquer seja a origem axiológica fundante do sistema penal, haverá,
necessariamente, que se perquirir a legitimação do direito estatal de julgar.
Como visto, o exercício do direito estatal de julgar tem por finalidade
verificar a existência ou não da violação do direito estatal de proibir e a incidência ou
não do direito estatal de punir. Por conta disto, podemos afirmar que é possível haver
punição imposta pelo Estado sem processo, mas nunca sem julgamento.
Caso um soberano resolvesse punir seu súdito sem lhe dar a oportunidade
de defender-se, sem necessidade de produzir prova, sem qualquer formalidade ou
acusação, sem justificar a razão da punição, ainda assim terá havido um julgamento por
parte deste soberano que resolveu punir seu súdito, ainda que seja meramente porque o
soberano quis. O simples ato de querer pressupõe a formação de uma opinião que é a
essência do ato de julgar, ainda que não seja com base em fatos.
Daí porque a aplicação de uma punição, ou seja, o exercício do direito
estatal de punir pressupõe um ato de julgamento, razão pela qual haverá que se perquirir
a legitimação do direito do Estado julgar.
É óbvio que os casos de auto-tutela punitiva (vingança privada)182
estão
excluídos da necessária perquirição da legitimação do direito estatal de julgar, uma vez
que não pressupõem exercício do direito do Estado de punir, pois é o cidadão e não o
Estado que o faz.
De outro lado, os casos de auto-tutela defensiva, como a legítima defesa
por exemplo, não estão excluídos da apreciação do Estado, posto que, ainda que a
posteriori, o julgamento realizado pelo particular ao se entender legitimado para se
auto-tutelar deverá ser submetido ao julgamento do Estado que poderá ratificá-lo ou
não.
Desta forma, toda e qualquer punição aplicada ou ratificada pelo Estado
deverá, antes, se submeter a um ato de julgamento pelo Estado, razão pela qual o direito
182
Geraldo Prado, Sistema Acusatório – A conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais, 3ª
edição, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2005, pág. 78, assinala que logo em seguida à superação da confusão
entre ilícitos civis e criminais “...toda infração passou a ser considerada como rompimento da paz
(Friedensbruch), autorizando, conseqüentemente, a guerra e a vingança familiar (Blutrache e Fedhe ou
Faida), de tal sorte que perdia o ofensor e sua família a proteção comunitária.”
102
estatal de punir, para ser aplicado, deverá passar antes pelo crivo do próprio Estado, eis
o motivo por quê devemos buscar os fundamentos do direito estatal de julgar.
Cumpre, assim, frisar que a legitimação do processo não se confunde
com a legitimação do direito estatal de julgar. Pode se buscar a legitimação do direito
estatal de julgar e, nem assim, legitimar o processo. O contrário, todavia, não é
verdadeiro.
Isso porque o direito estatal de julgar pode ser realizado sem processo,
daí porque suas origens fundantes não se confundem. No entanto, não há que se falar
em legitimação do processo sem antes investigar a legitimação do direito do Estado
julgar, daí porque a legitimação do direito estatal de julgar é pressuposto do estudo
sobre a legitimação do processo.
Podemos afirmar, neste passo, que a justificação do direito estatal de
julgar e do processo não se confundem, mas, por outro lado, não se separam.
A investigação sobre a relação da legitimação do direito estatal de julgar
e a legitimação do processo depende exatamente da combinação do que se entende por
finalidade, função e fundamento do direito estatal de julgar.
Cediço que a finalidade do direito estatal de julgar está assentada sobre a
necessidade de se verificar a existência ou não da violação do próprio direito estatal de
proibir e a incidência ou não do próprio direito estatal de punir, cumpre pesquisar a
função e o fundamento da atividade julgadora.
Como dito anteriormente, a atividade julgadora será decorrência da
ideologia político-axiológica fundante do governo.
Apenas à guisa de esclarecimento, se a ideologia política dominante for
democrática e os valores do ser humano prevalecerem, a dignidade e a liberdade irão
nortear a função a ser desempenhada pelo Estado ao exercer o seu direito de julgar.
Estaremos diante de um Estado-Julgador de matiz garantista.
De outro lado, em uma autocracia absoluta, a ordem imposta
unilateralmente faz sucumbir a liberdade, dando azo a um sistema de julgamento que
não verifica qualquer importância na condição e nos interesses do destinatário do
exercício do poder estatal.
18.3.2.a. Teorias deslegitimadoras do processo
Como antes observado, não se deve confundir deslegitimação do direito
estatal de julgar com deslegitimação do processo. Aquela se verifica na auto-tutela
103
punitiva ou na hipótese de não haver Estado183
(caso em que não havendo sujeito de
direito, não há direito a se legitimar). Já a deslegitimação do processo se verifica na
hipótese específica de autocracia absoluta, em que o Estado não separa o exercício dos
Poderes. Deve ser frisado que neste último caso está legitimado o direito estatal de
julgar, mas não o processo.
Daí se verifica que, atualmente, com extrema dificuldade se encontrará
um país ou uma nação cuja forma de governo deslegitime o processo, haja vista a quase
totalidade dos países e nações separarem os Poderes do Estado.
Todavia, soera ocorrer, antes que Rousseau teorizasse sobre a festejada
Separação de Poderes, com freqüência184
, o exercício do direito estatal de julgar sem
qualquer interferência ou limitações de mecanismos de qualquer ordem sobre o poder
do soberano ou do senhor feudal185
.
Não que não existisse uma função de julgador nesse ou naquele Estado
absolutista ou em determinado Feudo, mas, sem qualquer independência da função de
julgador em relação ao soberano ou senhor feudal, não havia que se falar em
legitimação do processo, pois que a legitimação do direito de julgar estava no poder
absoluto conferido ao detentor do poder, ao sabor de que ideologia fosse (teocrática ou
não).
Daí porque antes mesmo da teorização sobre a Separação dos Poderes,
falar em julgamento não implicava falar em processo. O mecanismo de julgamento era
embalado pela vontade do autocrata.
Vale, neste sentido, transcrever as palavras de J. Goldschmidt:
“Por que supõe a imposição da pena a existência de um
processo? Se o jus puniendi corresponde ao Estado, que tem o poder
soberano sobre seus súditos, que acusa e também julga por meio de
183
Estado está aqui colocado em sentido amplo, não apenas no sentido de Estados Nacionais, porquanto
antes mesmo da formação destes, quando o método de solução dos conflitos (o quê não podemos chamar
de violação do direito de proibir do Estado, pois estes conflitos são atos de violação da paz comunitária)
era o entendimento, mas, mesmo assim, era possível “...se socorrer dos Conselhos (Placita), assembléias
que ministravam justiça, começando aí o verdadeiro processo judicial de corte acusatório” (vide Helio
Tornaghi, Instituições de Processo Penal, vol. II, pág. 66 e Geraldo Prado, ob. cit., pág. 79). 184
Vale ressaltar que o termo “freqüência” foi utilizado tendo em vista a que o processo acusatório foi
utilizado pelos povos germânicos na área antes dominada pelo Império Romano, que passou a ser
dominada pelos germânicos após a invasão bárbara, bem como pela utilização do sistema inquisitorial
como foi o caso do processo português em que a dominação visigótica teve clara influência do Direito
Canônico, que, com aplicação do Fuero Juzgo, gerou a aplicação de um processo acusatório, com alguns
delitos perseguidos ex officio, nos moldes inquisitoriais, adotado posteriormente com a outorga da Lei das
Sete Partidas. (neste sentido vide José Henrique Pierangeli, Processo Penal – Evolução Histórica e
Fontes Legislativas, 2ª edição, IOB Thomson, 2004, pág. 28 e seguintes) 185
Helio Tornaghi, Instituições de Processo Penal, vol. II, pág. 26.
104
distintos órgãos, pergunta-se: por que necessita que prove seu direito
em um processo?”186
Não é demais ressaltar que os distintos órgãos a que se refere
Goldschmidt não se apresentavam nos Feudos nem em todos os Estados anteriormente à
teorização e a adoção em maior escala da Separação de Poderes.
Isto não implica dizer que não houvesse legitimação do direito estatal (ou
feudal) de julgar, mas sim que este se confunde, in casu, com a legitimação do próprio
poder estatal (ou feudal).
A conclusão óbvia a que se chega é que, no caso das autocracias
absolutas, a existência de processo para julgar a existência ou não da violação do direito
de proibir e a incidência ou não do direito de punir é casuística, depende da vontade de
cada soberano e dos valores que traz consigo ao governar o Estado. O direito de julgar
está, desta forma, legitimado pelo só fato de estar legitimado o poder soberano. Já o
processo, se existir, está legitimado na vontade do exercício do poder soberano,
podendo ser meramente formal ou derivado de valores inerentes ao próprio autocrata.
18.3.2.b. Teorias Legitimadoras ou Justificacionistas do processo:
De outro lado, com a racionalização do pensamento, mormente sob o
ponto de vista político-filosófico, no período das luzes, a Separação dos Poderes levou
(ou deveria levar) ao divórcio entre o exercício do direito de julgar, do direito de proibir
e do direito de punir, e fez nascer a necessária perquirição da legitimação de cada um
desses direitos.
A questão que se coloca é do por quê julgar? O quê justifica, o quê dá
origem, sob o ponto de vista político-axiológico, ao direito do Estado julgar?
Para responder a esta indagação, cumpre retornar à questão anteriormente
colocada e que diz respeito à relação entre a finalidade, a função e o fundamento do
direito de julgar do Estado, porquanto o fundamento político-axiológico do direito de
julgar dará origem a um mecanismo a ele adequado para alcançar o seu fim, qual seja,
verificar a existência ou não da violação do próprio direito estatal de proibir e a
incidência ou não do próprio direito estatal de punir.
186
J. Goldschmidt, Problemas Jurídicos y Políticos del Proceso Penal, p. 7, apud Aury Lopes Jr.,
Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista), Lumen Juris, Rio
de Janeiro, 2004, pág. 1.
105
Assim é que o processo existirá como mecanismo apto a realizar a função
que o fundamento do poder pretenda lhe conferir. A função poderá ser instrumental,
qual seja, criar mecanismos para verificar a existência ou não da violação do próprio
direito estatal de proibir e a incidência ou não do próprio direito estatal de punir. Como
a função poderá ser realizada pelo próprio processo como um fim em si mesmo ou um
instrumento de realização de “não valores”.
Em qualquer caso (que veremos abaixo), o processo estará legitimado
pela existência de uma Separação de Poderes, ainda que mitigada pela teoria do check
and balances.
18.3.2.b.I. Utilitarismo:
Neste ponto devemos compreender que estamos tratando do processo
enquanto meio para realização de determinados fins. Assim, cumpre ao processo a
realização do valor do útil. O processo realizará o útil, na medida em que a ele seja
atribuída uma finalidade dentro do sistema penal.
Mas não é só, porquanto ao direito estatal de julgar também é atribuída
uma finalidade, que é a mesma do processo. No entanto, como visto, nas autocracias
esta finalidade é realizada pela simples vontade do soberano, não havendo nenhum
mecanismo para atingir a finalidade pré-determinada. O processo, ao contrário é um
mecanismo para atingir esta finalidade.
Porquanto, conforme a tábua de valores que se apresenta como
fundamento político-axiológico do exercício do poder estatal, o processo cumprirá uma
função de utilidade repressivista ou garantista.
Assim, em um Estado cujo fundamento do exercício do poder seja a
prevalência da ordem pública (em outras palavras, do direito estatal de punir) no
clássico embate com a liberdade do ser humano, teremos um processo repressivista, que
cria mecanismos para atingir sua finalidade (existência ou não da violação do direito
estatal de proibir e a incidência ou não do direito estatal de punir), cumprindo uma
função de alcance da realização do direito do Estado.
Por outro lado, em um Estado humanista, cujo fundamento político-
axiológico do poder faça prevalecer a dignidade do ser humano sobre a ordem pública,
o processo cumprirá uma função de garantia dos direitos fundamentais do cidadão em
busca da verificação da existência ou não da violação do direito estatal de proibir e a
incidência ou não do direito estatal de punir, que é sua finalidade.
106
De todo evidente, que entre o extremo do repressivismo e o do
garantismo puro muito se encontra e seria demasiado estabelecer classificações
intermediárias, sendo suficiente estabelecer a tendência repressivista ou garantista do
processo, de acordo com sua conformação político-axiológica.
. Repressivista
O sistema inquisitorial de processo é a configuração, por excelência, de
processo de função repressivista.
O processo sob o sistema inquisitorial não tem outra finalidade senão a
mesma do processo com os contornos de qualquer outro sistema: verificar a existência
ou não da violação do direito estatal de proibir e a incidência ou não do direito estatal de
punir.
No entanto, a função que lhe cumpre é encontrar a verdade para realizar e
restabelecer a ordem violada com a aplicação da punição. O que, em princípio, hoje
possa parecer opressivo, cumpriu à época (séculos XIII em diante, até o século XIX ou
até hoje no caso do Direito Canônico187
) sua função político-filosófica, como leciona
Geraldo Prado:
“Embora hoje a Inquisição seja vista com todas as
reservas, cumpre remarcar que na sua época o discurso dominante a
apresentava como produto da racionalidade, confrontada com a
suposta irracionalidade das ordálias ou juízos de Deus, que substituiu,
enquanto sistema de perseguição da verdade, pela busca da
reconstituição histórica, procurando, tanto quanto possível, reduzir os
privilégios que frutificavam na justiça feudal, fundada quase
exclusivamente na força e no poder de opressão dos senhores feudais
sobre as demais, pessoas que a rigor estavam sujeitas a medidas
punitivas discricionárias, impostas pelos mencionados senhores
feudais.”188
Todavia, a constituição política de matiz autoritário (mesmo quando
teocrático), entregava ao julgador um instrumento de manutenção da ordem, que na
realidade não era exatamente a ordem pública, mas a ordem constituída politicamente.
187
Aury Lopes Jr., ob. cit., pág.156, nota 351. 188
Geraldo Prado, ob. cit., pág. 82.
107
Geraldo Prado esclarece que Michel Foucault enxergava no sistema
inquisitorial “um eficaz instrumento de gestão à disposição da nova estrutura de poder
que se formava na Europa Continental”, afirmando que o inquérito era “sobretudo um
processo de governo, uma técnica de administração, uma modalidade de gestão; em
outras palavras, o inquérito é uma determinada maneira do poder se exercer”189
.
Não que discordemos de Foucault, mas que o processo, como visto antes,
seja sob que sistema for (não apenas o inquisitorial) é uma forma de exercício do poder,
não há dúvida. O processo sob o sistema inquisitorial não poderia ser diferente.
Fato é que sua função repressivista era decorrência da inspiração política
autoritária do Estado. Porquanto, o fundamento político-axiológico dos governos da
Europa Medieval e mesmo posterior, de inspiração não humanística, impunha um papel
ao processo penal com características capazes de realizar a ordem constituída.
Neste passo, o processo tinha a função de criar condições para que o
direito do Estado fosse realizado.
Assim é que podemos verificar serem as principais características do
sistema inquisitorial a confusão entre o sujeito processual com função acusatória e o
sujeito processual com função julgadora; a iniciativa investigatória e processante ex
officio; a busca da verdade real; a admissão de qualquer prova capaz de buscar a
verdade, mesmo a tortura; a preferência da confissão a qualquer outro meio de prova; o
processo escrito, secreto e não contraditório; quanto à valoração da prova vigorava o
sistema da prova legal ou prova tarifária ou hierarquia das provas; a inexistência de
direito de defesa; o acusado como mero objeto e não sujeito processual; a prisão como
regra, pois permitia que o julgador tivesse o objeto de investigação a seu dispor para
obter a confissão; e as decisões não precisavam ser fundamentadas.
Outros sistemas processuais, de natureza prevalecentemente inquisitorial,
tem caráter repressivista, ou, ao menos, mais se aproximam do processo de mecanismo
repressivista do que garantista.
Casos peculiares são os processos nazista e fascista (inspiração do
vigente Código de Processo Penal brasileiro190
), bem como os movimentos de “Lei e
Ordem” e “Tolerância Zero” norte-americanos. Todos, sob diversos fundamentos, além
189
Geraldo Prado, ob. cit., pág. 81. 190
O atual Código de Processo Penal brasileiro, promulgado em 1941 em plena ditadura do Estado Novo,
foi inspirado no Código Rocco, da Itália fascista.
108
de repressivistas apresentam sistemas penais e práticas de natureza processual
preventivas.
Os sistemas nazistas e fascistas partem do pressuposto, já abordado, de
que o crime é decorrência das condições antropológicas, chegando Lombroso (em “O
Homem Deliqüente”) a classificar o homem delinqüente conforme suas características
biológicas. Assim, as práticas de eliminação dos delinqüentes natos eram uma
decorrência da ideologia política.
Já a política da “Lei e Ordem” e “Tolerância Zero” são decorrentes da
cruzada do Manhattan Institute contra o Estado-providência norte-americano de Ronald
Reagan, e atribuem a escalada da criminalidade ao “bom tratamento” das classes pobres.
Vale transcrever a lição de Wacquant, citado por Aury Lopes Jr.:
“[a] excessiva generosidade das políticas de ajuda aos
mais pobres seria responsável pela escalada da pobreza
nos Estados Unidos: ela recompensa a inatividade e
induz à degenerescência moral das classes populares,
sobretudo essas uniões ilegítimas que são a causa última
de todos os males das sociedades modernas – entre os
quais a violência urbana.”191
Este discurso, que elegeu o promotor Rudolph Giuliani prefeito de Nova
York em 1993 e tornou a cidade “vitrina mundial dessa política repressivista”192
,
implantou um modelo de detenções arbitrárias, medidas cruéis, desumanas e
absolutamente aéticas.
Não por coincidência, discurso muito semelhante ao norte-americano da
década de 1990, foi adotado pelos teóricos da “Escola Positiva Italiana” na década de
1920 que acabou por legitimar as ideologias nazista e fascista, senão vejamos:
“De fato, em face da excelência teórica reunida pela
Escola Clássica tanto jurídica como penitenciária, advieram (conforme
foi referido no nº 19) como resultados práticos o contínuo aumento da
criminalidade e da recidiva, em evidente e quotidiano contraste com a
necessidade da defesa social contra a delinqüência, que é a razão de
ser da justiça penal.” 193
191
Aury Lopes Jr., ob. cit., pág. 12. 192
Aury Lopes Jr., ob. cit., pág. 12. 193
Enrico Ferri, ob. cit., pág. 49.
109
De fato, o fundamento do discurso nazista e fascista é antropológico, ao
passo que o discurso da política da “Lei e Ordem” e “Tolerância Zero” é econômico,
porém, o repressivismo do sistema penal, mormente das práticas processuais (mesmo
que preventivistas), decorrem do fundamento autoritário do poder político.
Desta forma, resta clara a função repressivista e preventivo-repressivista
desempenhada pelo processo nos Estados de conformação política autoritária,
consistente na realização do modelo político estatal.
. Garantista
O processo de conformação garantista decorre do fundamento político
humanista do Estado. Em outras palavras, o processo de função garantidora dos direitos
fundamentais do homem é reflexo da prevalência do valor liberdade sobre a ordem
constituída.
Vale dizer, por oportuno, que ao se falar de processo de função
garantista, não devemos confundir com o Garantismo, teoria formulada por Luigi
Ferrajoli em 1989 na Itália194
.
O garantismo de Luigi Ferrajoli é uma teoria completa sobre o Direito
Penal de cariz humano e democrático, esposada com base em sólidos fundamentos
filosóficos e científicos, não se limitando apenas ao estudo do processo penal, seu
fundamento e sua função garantista, objeto desta parte da exposição neste trabalho.
É de todo evidente, todavia, que o garantismo de Ferrajoli aplicado ao
processo penal é uma teoria que fundamenta o exercício do direito estatal de julgar nos
moldes garantistas de que trata este trabalho.
Porquanto, uma das principais fontes de desenvolvimento dos
paradigmas processuais de função garantista é o pensamento de Ferrajoli.
Vale, no entanto, dizer que um processo de matiz garantista é, por
excelência, aquele que se conforma ao sistema acusatório.
Aury Lopes Jr. expõe as principais características do processo acusatório
hodiernamente:
“Na atualidade, a forma acusatória caracteriza-se pela:
a) clara distinção entre as atividades de acusar e julgar;
b) A iniciativa probatória deve ser das partes;
194
Luigi Ferrajoli, Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal, tradução Ana Paula Zomer, Fauzi
Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes, Editora Revista dos Tribunais, 2002, São Paulo.
110
c) Mantém-se o juiz como um terceiro imparcial, alheio
a labor de investigação e passivo no que se refere à
coleta da prova, tanto de imputação como de
descargo;
d) Tratamento igualitário das partes (igualdade de
oportunidades no processo);
e) Procedimento é em regra oral (ou
predominantemente);
f) Plena publicidade de todo o procedimento (ou de sua
maior parte);
g) Ausência de uma tarifa probatória, sustentando-se a
sentença pelo livre convencimento motivado do
órgão jurisdicional;
h) Instituição, atendendo a critérios de segurança
jurídica (e social) da coisa julgada;
i) Possibilidade de impugnar as decisões e o duplo
grau de jurisdição.”195
Estas características do sistema acusatório criam mecanismos para
garantir os direitos fundamentais dos cidadãos acusados de violarem o direito estatal de
proibir.
Neste passo, o processo atende à função axiológica utilitarista, só que sob
fundamento político humanista e democrático.
. Pacifista
Não se pode deixar de falar dos processos com função meramente
pacifista. Em outras palavras, são mecanismos criados para pôr fim a um conflito social
em início ou em curso, mas que não se atém à prevalência do direito de punir do Estado,
nem tampouco aos direitos fundamentais do cidadão.
É um processo que realiza apenas o valor do útil, na medida em que faz
do processo um instrumento para a obtenção da paz social, ainda que sacrifique a
justiça, a verdade, o bem, a liberdade, a ordem, e outros valores.
195
Aury Lopes Jr., ob. cit., pág. 154.
111
Um processo de cariz meramente pacifista dificilmente é encontrado
como o modelo adotado por um Estado. De outro lado, facilmente encontramos
mecanismos pacifistas encartados em processos de modelo ora repressivista, ora
garantista.
É o caso da justiça consensual, hoje em voga inclusive no Brasil e cuja
origem norte americana não se pode negar. E não confundamos o que se tem no Brasil
como transação penal com a justiça consensual a que nos referimos. Estamos nos
referindo à justiça consensual entre as partes. A chamada composição como forma de
solução dos conflitos transposta para o campo penal.
Geraldo Prado destaca que o sistema de justiça consensual já era
encontrado como evolução da vingança privada. In verbis:
“Tal sistema progrediu até que fosse permitido o
pagamento do preço da paz à comunidade (Friedensgeld), por meio de
convênios reparatórios, e uma indenização ao ofendido ou sua família
(Busse), o que era possível em se tratando de infrações menores. Nilo
Batista ressalta que a existência da capitular de Carlos Magno, de 802,
que recomendava às famílias evitar acrescentar uma inimizade ao mal
já feito, destacando, porém, que durante extenso período “a anuência a
uma composição ultrajava o sentimento coletivo da honra familiar e só
mais tarde o ressarcimento assumiria um papel central na superação de
tais litígios”.
A partir de um determinado momento o entendimento
privado constitui-se no método predominante de solução dos conflitos
de interesses de natureza penal...” 196
O modelo de justiça penal consensual hoje se apresenta no direito pátrio,
introduzido pela Lei que instituiu os Juizados Especiais (Lei nº 9.099/95), tratada como
instituto jurídico da Conciliação, que confere solução aos litígios criminais e civis ao
mesmo tempo nos casos de infrações de menor potencial ofensivo e cuja iniciativa
dependa, de alguma forma, da vontade potestativa do ofendido197
.
Em casos de composição, sem perquirição da culpa, sem produção de
prova exaustiva, sem direito de defesa, sem cumprimento de pena (entendida como
196
Geraldo Prado, ob. cit., pág. 79. 197
Isso porque a solução compositiva entre vítima e autor do fato só gera efeitos criminais nos casos das
ações de iniciativa privada ou na ação de iniciativa pública condicionada a representação do ofendido.
112
sanção punitiva imposta pelo Estado), tão somente composição de danos (ainda que
morais), não há que se falar em processo garantista ou repressivista, mas apenas
pacifista, posto que o mesmo é tomado apenas como instrumento de pacificação dos
conflitos sociais.
18.3.2.b.II. Auto-justificante ou utilitarismo avalorativo
Há casos, outrossim, que o processo é tratado como um fim em si mesmo
ou como instrumento para realização de “não valores”. Senão vejamos:
Hodiernamente, diversos mecanismos processuais são criados para
cumprir uma função avalorativa, que termina por fazer confundir a função do processo
com a finalidade da pena.
Isso ocorre nos casos em que a celeridade e a desobstrução dos serviços
prestados pelo Poder Judiciário são “não valores” elevados a “valores” para servirem de
fundamento axiológico para fazer incidir o direito estatal de punir sem a verificação da
violação do direito estatal de proibir.
Em outras palavras, é o Estado aplicando a pena, ou seja, exercendo seu
direito de punir sem que se saiba se foi violado seu direito de proibir, isto é, se foi
cometido um crime, sob o fundamento de desafogar os serviços judiciários.
O instrumento (processo) se torna fim.
Basta ver que o processo é o mecanismo para que o Estado verifique se o
cidadão violou ou não o direito estatal de proibir e se, em conseqüência, deve incidir o
direito estatal de punir. No entanto, neste modelo de processo, é preferível que seja
aplicada a pena para que o processo não demore.
O fim (pena) se torna meio para que o meio (processo) possa terminar
mais rápido.
Deve ser ressaltado que este modelo não pode ser chamado de Justiça
consensual. Por mais que a pena a ser aplicada sem processo, nos países em que se
admite este tipo de mecanismo, dependa de uma manifestação da vontade do increpado,
não se está transigindo com direitos disponíveis. É uma imposição velada.
Vale, para esclarecer, um exemplo pontual. Vejamos o quê ocorre no
Brasil198
. Alguém acusado de praticar uma infração de menor potencial ofensivo, que
198
No Brasil o artigo 76 da Lei nº 9.099/95 instituiu a Transação Penal para as infrações de menor
potencial ofensivo, em que o Ministério Público propõe a aplicação imediata de pena de multa ou
restritiva de direito sem que o autor do fato se submeta a um processo criminal. Este instituto é
113
seja primário e de bons antecedentes terá “direito” a cumprir uma pena sem responder a
processo criminal. Esta pena é determinada pelo Ministério Público, sob a fiscalização
do juiz. Pergunta-se, o quê leva o acusado (tratado eufemisticamente como “autor do
fato”) a aceitar esta proposição e cumprir uma pena sem ter direito de se defender e
produzir provas de sua inocência?
Quiçá a resposta dos conhecedores da Lei seja a de quê a pena proposta
pelo Ministério Público será uma alternativa à prisão, consistente, portanto, numa multa
ou pena restritiva de direitos.
A dúvida, todavia, continua, pois que se a infração é de menor potencial
ofensivo e o acusado é primário e de bons antecedentes (caso contrário não faria “jus” à
pena antecipada), mesmo que fosse condenado dificilmente lhe seria aplicada uma pena
de prisão. Então, por quê aceitar o cumprimento de uma pena antecipada sem direito de
se defender e de produzir provas a seu favor?
A questão poderia ser contra-argumentada com a alegação de que os
culpados aceitariam a pena e os inocentes não. Um perfunctório estudo fenomenológico
mostraria que a assertiva é falaciosa e que se quem o fizesse conhece a prática
processual criminal estaria sendo hipócrita.
Isso porque mesmo (e principalmente) os inocentes aceitam a pena
antecipada para se verem livres do processo. Ou seja, ser processado é punição mais
grave que a própria pena. O estigma de um processo criminal faz com que um acusado
prefira cumprir uma pena, que com pequenas variações terá a mesma gravidade da que
seria aplicada se ele perdesse o processo criminal, abrindo mão de seus direitos
fundamentais de contraditar a prova existente contra ele e defender-se.
Nesta ordem de idéias não resta dúvida que a aplicação antecipada de
pena é um mecanismo processual que torna o processo mais grave do que a própria
pena, donde podemos concluir com segurança que a função do processo passa a ser a
finalidade da pena, tornando-se um fim em si mesmo. Tudo isto para imprimir
celeridade ao processo e tornar o Poder Judiciário mais eficiente (aos olhos de quem
enxerga o processo como fim e não como meio, pois a eficiência aos olhos de quem
enxerga o processo como meio só pode estar na realização da sua finalidade de verificar
a violação ou não do direito estatal de proibir e a incidência do direito estatal de punir).
claramente inspirado no Plea Bargaining do direito norte-americano, aplicado de forma mais extensa na
medida em que o acusado aceita se submeter a uma pena de prisão.
114
18.3.2. c. (Des)legitimação do direito de julgar com
legitimação do processo
Importa neste tópico implementar um debate sobre os dois últimos casos
de função legitimadora do processo, quais sejam, a legitimação do processo de função
pacifista e a legitimação do processo de função auto-justificante ou utilitária avalorativa.
É que a priori pode parecer que o Estado não tem seu direito de julgar
legitimado, uma vez que o Estado não julga, vez que as partes entram em acordo ou é
aplicada uma pena sem julgamento.
Isto não é verdade. O direito do Estado julgar está plenamente
legitimado. O quê ocorre é que o Estado abre mão de realizar o julgamento para o qual
está legitimado, em nome da adoção de um mecanismo que realize a função almejada
para o processo.
Assim, no caso do processo de matiz pacifista, o processo é um
mecanismo encontrado para o alcance da paz social, sem que o Estado necessite exercer
o seu direito de julgar que, no entanto, está plenamente legitimado. Basta verificar que
não havendo composição haverá julgamento.
No caso do processo de função auto-justificante ou utilitária avalorativa o
Estado prefere a celeridade e a desobstruição do serviço prestado pelo Poder Judiciário
do que exercer o seu direito de julgar. No entanto, a pena sem o exercício dos direitos
do cidadão não é uma imposição, razão pela qual não aceita implicará no exercício do
direito do Estado julgar.
Daí porque deve ser frisado que em ambos os casos o direito de julgar
não foi deslegitimado.
18.3.3. A conformação das regras processuais aos valores constitucionais
É fato que a Constituição delineia o modelo político adotado pelo Estado.
Nesta ordem, os valores prevalentes são abrigados pela Carta que os materializa em
princípios a serem seguidos pelo legislador ordinário.
Na atividade legiferante, destarte, a tábua axiológica contemplada pela
Constituição deve servir de paradigma para criação do sistema penal, bem assim dos
mecanismos processuais de que se valerá o Estado ao exercer o seu direito de julgar.
Devemos aqui, com um breve sumário, expor os princípios que norteiam
o direito processual penal pátrio, para que nos utilizemos de seus valores na
compreensão do fundamento político-axiológico legitimador do processo brasileiro.
115
Não seria demasiado simplificador elencar cinco princípios e uma regra
constitucional capazes de demarcar com exatidão a função do processo no sistema penal
brasileiro.
O primeiro deles é o princípio da dignidade da pessoa humana199
que
demanda uma prevalência dos direitos do Homem sobre a ordem constituída. Deste
princípio decorrem os demais que a seguir veremos.
O princípio da presunção de inocência200
assegura a todos os cidadãos o
direito de serem julgados, ou seja, não é cabível a aplicação de pena sem julgamento.
Ninguém pode ser considerado culpado sem que tal fato seja reconhecido por sentença
condenatória plenamente fundamentada201
transitada em julgado.
Esta sentença condenatória deve ser prolatada por juízo competente202
,
imparcial203
em decorrência de processo público204
de acordo com as normas legais
estabelecidas pelo legislador ordinário. É o que se chama princípio do devido processo
legal205
.
Não se pode falar em devido processo legal sem que este permita ao
acusado contraditar todas as provas lícitas206
apresentadas pela acusação (princípio do
contraditório207
) e conferindo ao mesmo o direito de se defender amplamente,
produzindo toda e qualquer prova obtida ou a ser obtida por meios lícitos208
(princípio
da ampla defesa209
).
As ações penais só poderão ser iniciadas pelo Ministério Público210
ou
pelo ofendido, nunca ex officio pelo juiz.
Resta certo, destarte, que o legislador constituinte, em coerência à opção
feita por um modelo de Estado Democrático de Direito211
, que tem, portanto,
conformação político-axiológica garantista, delineou claramente um sistema acusatório
de processo penal.
199
Artigo 1º, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 200
Artigo 5º, inciso LVII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 201
Artigo 93, inciso IX, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 202
Artigo 5º, inciso LIII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 203
Artigo 5º, inciso XXXVII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 204
Artigo 93, inciso IX, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 205
Artigo 5º, inciso LV, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 206
Artigo 5º, inciso LVI, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 207
Artigo 5º, inciso LIV, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 208
Artigo 5º, inciso LVI, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 209
Artigo 5º, inciso LIV, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 210
Artigo 129, inciso I, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 211
Artigo 1º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
116
O problema está menos na Constituição e mais nas leis de processo,
mormente o Código de Processo Penal elaborado no rumo dos ventos políticos que
sopravam na época do Estado Novo.
Malgrado em diversos pontos claramente inquisitoriais o Código já tenha
sido alterado, como é o caso do interrogatório sem a presença de um advogado, a
interpretação do silêncio em desfavor do réu212
e a iniciativa ex officio nos processos de
contravenção, homicídio culposo e lesão corporal culposa213
, restam em vigência214
diversos pontos de cariz inquisitorial como a iniciativa probatória e a iniciativa da
mutatio libelli, ambas ex officio pelo juiz, a requisição de instauração de inquérito pelo
juiz, a busca da verdade real, entre outras.
Não por outro motivo expôs Geraldo Prado:
“Muitos dos princípios opostos ao acusatório
verdadeiramente são implementados todo dia. Tem razão o mestre
Frederico Marques ao assinalar que a Constituição preconiza a
adoção e efetivação do sistema acusatório. Também tem razão Hélio
Tornaghi, ao acentuar que há formas inquisitórias vivendo de
contrabando no processo brasileiro, o que melhor implica em
considera-lo, na prática, misto. O princípio e o sistema acusatórios
são, por isso, pelo menos por enquanto, meras promessas, que um novo
Código de Processo Penal e um novo fundo cultural, consentâneo com
os princípios democráticos, devem tornar realidade.” 215
18.3.4. (re)pensando a epistemologia do processo penal
À luz dos paradigmas constitucionais apresentados, os valores eleitos
pelo legislador constituinte delineiam um processo garantista que deve criar
mecanismos para permitir ao cidadão o pleno exercício de seus direitos fundamentais.
Desta forma, cediço que o processo penal brasileiro tem fundamento
democrático e humanista, e função garantista, sua finalidade deve ser observada na
construção epistemológica do sistema processual.
212
Pontos alterados pela Lei nº 10.792/03. 213
Pontos revogados pela Lei nº 9.099/95. 214
Embora devamos, pelos motivos expostos, considerá-los inconstitucionais. 215
Geraldo Prado, ob. cit., pág. 195.
117
Isto significa dizer que não se pode perder de vista que o objetivo do
processo é verificar a existência da violação ou não do direito de proibir do Estado e a
incidência ou não do direito de punir do Estado.
Assim, as regras de processo, de conformidade às suas finalidades e à
tabua de valores constitucionais, devem ser elaboradas em duas partes estanques,
porquanto a lógica do processo deve ser a criação de mecanismos para a verificação da
prática do crime (violação ou não do direito de proibir do Estado), para só então criar
mecanismos para verificar a necessidade de aplicação da pena (incidência do direito de
punir do Estado).
O quê se verifica hoje é uma confusão dos mecanismos de verificação da
prática do crime e da necessidade de aplicação da pena. Pior, no mais das vezes, os
mecanismos de verificação da necessidade e da metodologia de aplicação da pena são
utilizados, inexplicavelmente no momento de julgamento da prática do crime, como é o
caso da prática usual entre os juízes brasileiros de se buscar a verificação dos
antecedentes e da primariedade do acusado para formar um juízo sobre a violação do
direito de proibir do Estado216
.
Fato é que uma nova epistemologia para o processo penal precisa
urgentemente ser pensada, antes de se realizar a renovação da legislação infra-
constitucional para adaptar o sistema legislativo à nova (nem tão nova, porquanto já tem
mais de 17 (dezessete) anos de existência) ordem instituída pelo Poder Constituinte de
1988.
Para tanto, é impositiva uma divisão do processo sistematicamente em
duas fases conforme as duas finalidades que lhe cabem, a saber: (1) verificar a
existência da violação ou não do direito estatal de proibir, ou seja, da prática do crime; e
(2) verificar a necessidade de incidência ou não do direito estatal de punir, ou seja,
aplicação da pena na medida de sua necessidade.
Evidente, de outro ponto, que estas regras consistam em mecanismos que
estejam em perfeita consonância com o sistema político-axiológico traçado pela
Constituição de 1988, traçado sumariamente neste trabalho.
216
Vale quanto a este particular esclarecer que a utilização da reincidência e dos antecedentes na
verificação da violação ou não do direito de proibir do Estado é ilegal, pois a lei prevê estes elementos,
com raras exceções, para o momento de aplicação da pena, o quê, todavia, é inconstitucional, pois
aumentar a pena pela reincidência é aplicar nova pena por crime anterior, violando o princípio do non bis
in idem.
118
Conclusão
O direito penal é o ramo do Direito, de natureza pública, que realiza a
maior invasão na esfera da individualidade do cidadão por parte do Estado. Trata-se de
uma mitigação dos direitos fundamentais do ser humano, mormente o da liberdade.
Por conta disso, ao se admitir esta ingerência do Estado na vida de cada
pessoa, deve ser ter em vista o quê o legitima a fazê-lo.
O pensamento filosófico do Direito Penal, como já dito na introdução,
transita entre o valor da liberdade humana e o do poder punitivo, é a tensão sempre
presente nos modelos punitivos.
Buscar a legitimação do exercício ou não do jus puniendi do Estado à
vista desta tensão é o objetivo deste estudo.
A primeira indagação que foi alvo da abordagem diz respeito ao objeto
de conhecimento e do ser cognoscente (especificamente no que diz respeito à sua tarefa)
do direito penal. A este tópico denominamos ontognoseologia.
O enfoque dado à questão disse respeito à gênese do sistema legislativo
que delineia o direito penal. Desta forma, o direito positivado teve especial relevância
para o desenvolvimento do estudo.
Porquanto, se fez necessário abordar o método, a teoria e a ideologia do
direito para estabelecer, de forma crítica, os paradigmas deste ramo específico do
direito.
Assim, fixar a origem da moderna positivação do direito, bem como
realizar um breve relato histórico-filosófico sobre o juspositivismo, se mostraram
absolutamente necessários até para romper com as amarras do possível pré-conceito que
atrela de forma rígida o direito positivado e o juspositivismo, como relação de causa e
efeito mútua.
Porquanto, o iluminismo teve papel preponderante na ruptura com o
antigo sistema feudal no que diz respeito ao direito penal e estabeleceu os novos
paradigmas que até hoje norteiam o direito penal, ressalvadas as diversas concepções
dogmáticas que se sucederam e ainda o fazem.
O princípio da legalidade foi e é o maior dos paradigmas que a época da
ilustração estabeleceu e, por conta disso, o especial interesse do direito penal no sistema
legislativo é inexorável.
De outro lado, procurou se estabelecer as contribuições irrefutáveis do
juspositivismo (como é o caso da teoria do Ordenamento Jurídico), mostrar sua
119
aplicação ao direito penal e as deficiências de sua teoria e ideologia (mormente sua
avaloratividade), foram ponto fundamental para o avanço das conclusões a que se
chegou na primeira parte do trabalho, qual seja, o direito penal é valorativo,
principalmente quando de sua legiferação.
Em outras palavras, o sistema penal, enquanto sistema legislativo
(ordenamento jurídico) teleologicamente construído, é elaborado por um legislador que
expõe e impõe, ao criar as leis penais, os valores que habitam sua consciência (ou
mesmo seu inconsciente).
Ocorre que o ato de legislar é um ato político, daí porque a criação do
sistema penal é tarefa política.
Estabelecida a atividade legislativa como política e o ato do legislador
como valorativo, a criação do sistema penal é uma atividade político-axiológica e, não
por outro motivo, a segunda parte do trabalho foi dedicada à axiologia do direito penal.
Cumpriu a tarefa primeira de estabelecer uma teoria dos valores, como
passo necessário para determinação da premissa do estudo que se propunha.
Em seguida foi necessário estabelecer uma lógica simples do direito
penal para continuação do estudo axiológico. É que o direito penal se baseia em três
pontos fundamentais, a saber: o bem jurídico protegido, a pena, e o processo,
porquanto, representam na esfera da ciência penal os institutos correspondentes na
esfera política aos direitos estatais de proibir, punir e julgar, respectivamente.
Por esta razão, o trabalho foi desenvolvido na perquirição da legitimação
axiológica de cada ponto fundamental do direito penal.
A ordem seguida foi o estudo sobre a axiologia da pena, depois do bem
jurídico protegido e, por último, do processo. Explica-se. É que, conquanto possa
parecer que a ordem lógica seria estudar a violação da lei com a prática do crime, depois
da pena que será imposta em razão da ação criminosa, para, por fim, estudarmos o
processo que terá a finalidade de verificar a pr´tica do crime e a necessidade de
imposição da pena, vale dizer que esta lógica é verdadeira apenas quanto à aplicação do
direito penal ao caso concreto.
Isso porque, não estamos partindo da lógica da aplicação da lei, mesmo
porque ao crime se segue a pena, e não o contrário. No entanto, nosso estudo diz
respeito à legitimação do direito do Estado. Daí porque a primeira pergunta que deve ser
formulada é quanto à justificativa do Estado para aplicar violência contra o seu cidadão.
Mesmo porque, se o Estado se arrogar no direito se penalizar as pessoas, por exemplo,
120
pelo que elas são e não pelo que fizeram, a perquirição quanto à prática do crime é
despicienda. Por este motivo, malgrado a pena deva seguir ao crime na lógica de sua
aplicação, este deve seguir aquela na lógica de sua legitimação.
Então foi estabelecida a legitimação axiológica para cada ponto
fundamental do direito penal tomando por base a teoria dos valores anteriormente
exposta.
E nesta ordem de idéias foi impossível dissociar a tarefa política da
axiológica. Isso porque restou claro que as Constituições são instrumentos legislativos
políticos que fixam a tábua de valores que a cultura que determinada civilização
pretende realizar.
Assim, restou claro que entre as diversas concepções ideológicas que
justificam o direito penal por cada um de seus pontos fundamentais, o sistema
legislativo deve ser criado ou interpretado com base no quadro axiológico constitucional
que se apresenta.
Por fim, só podemos acreditar na existência de um ordenamento jurídico-
penal legítimo, assegurando sua teleologia sem a existência de lacunas ideológicas,
quando as normas penais que compõem o sistema legislativo forem elaboradas com
base nos preceitos político-axiológicos fixados na Constituição.
121
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