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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades
Instituto de letras
Edvar Vasconcellos
A recriação da comédia paliata de Plauto na literatura dramática
portuguesa: um estudo comparativo entre os Anfitriões, de Camões e de Antônio José da Silva
Rio de Janeiro
2013
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEHB
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação desde que citada a fonte.
__________________________ __________________ Assinatura Data
V331 Vasconcellos, Edvar. A recriação da comédia paliata de Plauto na literatura dramática
portuguesa: um estudo comparativo entre os Anfitriões, de Camões e de Antônio José da Silva / Edvar Vasconcellos. – 2013.
119 f. Orientador: Iremar Maciel de Brito. Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Letras. 1. Literatura comparada - Portuguesa e latina – Teses. 2. Literatura
comparada – Latina e portuguesa – Teses. 3. Camões, Luis de, 1524?-1580. Comédia dos amphitriões – Teses. 4. Silva, Antonio Jose da, 1705-1739. Anfitrião, ou Júpiter e Alcmena – Teses. 5. Plauto, 254a.C.-184a.C. Anfitrião - Teses. 6. Teatro latino (Comédia) – História e crítica – Teses. 7. Tragédia – História e crítica – Teses. 8. Literatura – Adaptações – Teses. 9. Mitologia na literatura – Teses. I. Brito, Iremar, 1946-. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Letras. III. Título.
CDU 82.091
3
Edvar Vasconcellos
A recriação da comédia paliata de Plauto na literatura dramática portuguesa: um estudo comparativo entre os Anfitriões, de Camões e de Antônio José da
Silva
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Literatura Portuguesa.
Aprovada em 08 de abril de 2013.
Banca Examinadora:
_________________________________
Prof. Dr. Iremar Maciel de Brito (Orientador)
Instituto de Letras - UERJ
____________________________________
Prof ª. Dra. Maria Helena Sansão Fontes
Instituto de Letras - UERJ
_____________________________________
Prof. Dr. Luciano Pires Maia
Escola de Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
2013
4
DEDICATÓRIA
Aos meus filhos, Eduardo e João Pedro, pelo incentivo, às vezes, caótico,
mas inconteste, à Cléia Tomaz, minha esposa, pelo amor e confiança inabaláveis, e
à Leopoldina Leão, minha mãe, pelo apoio e dedicação permanentes.
5
AGRADECIMENTOS
Ao professor Iremar Maciel de Brito, meu orientador, pelo suporte teórico,
fundamental, pelo incentivo, confiança e paciência.
Aos meus primos Arthur e Rodrigo Vasconcelos Koblitz, por acreditarem
sempre.
A Bruno Murtinho de Moraes, pela inestimável ajuda com algumas
traduções.
A Antônio do Carmo Tomaz, meu sogro, pelas muitas histórias e leituras de
Portugal.
A minha mãe, minha esposa e meus filhos, pelo amor e confiança
depositados e pelo precioso tempo sacrificado.
A todos os professores, do Mestrado da UERJ e da graduação da UNIRIO,
que, de alguma forma, colaboraram para a “construção” dessa dissertação.
6
Teatro é uma arte frágil, efêmera, particularmente sensível ao
tempo. Ninguém poderia apreendê-lo sem requestionar seus
próprios fundamentos e revisar periodicamente o edifício crítico ao
qual incumbe, supõe-se, descrevê-lo.
Patrice Pavis
7
RESUMO
VASCONCELLOS, Edvar. A recriação da comédia paliata de Plauto na literatura dramática portuguesa: um estudo comparativo entre os Anfitriões, de Camões e de Antônio José da Silva. 2013. 119 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Portuguesa) - Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
A recriação da comédia paliata de Plauto na literatura dramática portuguesa:
um estudo comparativo entre os Anfitriões, de Camões e de Antônio José da Silva, é um trabalho que tem como objetivo estabelecer um termo de comparação entre as estruturas dramatúrgicas da Comédia Paliata de Plauto em suas versões portuguesas, de Luís de Camões e de Antônio José da Silva, discutindo as alterações que sofreu a comicidade dessas peças teatrais em seu caminho histórico, da Antiguidade a Era Moderna, buscando avaliar o seu grau de permanência e de mudança ao longo do tempo. Plauto, em seu processo de criação da comicidade de palavra, de situação e de caráter, tem seu Amphytruo, como obra paradigmática da comédia latina ao criar situações e tipos que se perpetuaram na comédia e a tornaram uma referência para as comédias que vieram a seguir. A obra plautina sobrevive porque há uma, histórica e permanente, reelaboração que protege seus modelos de criação de humor.
Palavras-chaves: Teatro. Comédia. Dramaturgia.
8
ABSTRACT
VASCONCELLOS, Edvar. The re-creation of the comedy paliata of Plauto in Portuguese dramatically literature: a comparative study between the Hosts, of Camões and Antônio José da Silva. 2013. 119 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Portuguesa) - Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
The re-creation of the comedy paliata of Plauto in Portuguese dramatically
literature: a comparative study between the Hosts, of Camões and Antônio José da Silva, it is a work that has as objective to establish a comparison term it enters the dramaturgical structures of the Comoedia Palliata by Plauto and its translations into Portuguese versions, of Luis de Camões and Antônio José da Silva, discussing the alterations suffered by these plays comicality in their Historical path from Ancient Times to the Modern Age, seeking to evaluate the degree of its permanence and change along the time. Plauto, in its process of creation of the comicality of word, situation and character, has its Amphytruo, as paradigmatic workmanship of the Latin comedy when creating situations and types that if had perpetuated in the comedy and had become it a reference for the comedies that had come to follow. The plautina workmanship survives because it has one, historical and permanent, rework that protects its models of mood creation.
Keywords: Theatre. Comedy. Dramaturgy.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................ 11
1 O MITO GREGO E A IMPORTÂNCIA DO MITO PARA ENTENDER A HISTÓRIA ............................................................................................... 16
1.1 O mito grego em relação às obras de Plauto, Camões e Antônio José da Silva ......................................................................................... 19
2 O TEATRO ROMANO E A COMÉDIA PALIATA DE PLAUTO ............. 23
3 O RISO, ELEMENTO FUNDADOR DA COMÉDIA .............................. 26
4 O RENASCIMENTO E O MANEIRISMO NO TEATRO DE CAMÕES .. 31
4.1 O legado teatral de Luis de Camões ................................................... 35
4.1.1 A Comédia dos Amphitriões, entre o Renascimento e o Maneirismo ............... 37
5 ANFITRIÃO, UMA PEÇA BARROCA: A “ÓPERA” DE ANTÔNIO JOSÉ DA SILVA ..................................................................................... 48
5.1 Anfitrião, ou Júpiter e Alcmena, em relação ao paradigma plautino e ao paradigma camoniano .................................................................. 52
6 A TRANSFORMAÇÃO DO PRÓLOGO E A ANÁLISE DA ESTRUTURA FORMAL DA COMÉDIA DOS AMPHITRIÕES, DE CAMÕES; E, DE ANFITRIÃO, OU JÚPITER E ALCMENA, DE ANTÔNIO JOSÉ DA SILVA ................................................................... 59
6.1 A comédia dos Amphitriões ................................................................ 61
6.2 Anfitrião, ou Júpiter e Alcmena ........................................................... 76
7 SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS ENTRE OS ANFITRIÕES; A DRAMATURGIA A SERVIÇO DA COMICIDADE .................................. 91
7.1 Semelhanças e diferenças entre O Amphytruo, de Plauto, e A Comédia dos Amphitriões, de Camões .............................................. 92
7.2 Semelhanças e diferenças entre O Amphytruo, de Plauto, e Anfitrião, ou Júpiter e Alcmena, de Antônio José da Silva .............. 98
8 CONCLUSÕES ...................................................................................... 102
REFERÊNCIAS ...................................................................................... 110
NOTAS ................................................................................................... 113
11
INTRODUÇÃO
Padre Antônio Vieira, em seu Sermão da Sexagésima, diz que “ninguém
pode pôr pé, senão sobre pegadas alheiasi”. Embora tenha obviamente um cunho
moralizante de um ensinamento religioso, pode-se levar esta máxima para o campo
literário e pensar que a originalidade de um texto seja, de certa maneira, a tentativa
de desconsiderar toda a produção literário-filosófica anterior.
O processo de releituras é, não raro, uma necessidade de o autor
compreender o seu tempo pelas “pegadas” deixadas por outros autores que também
estavam pensando o seu próprio tempo. Entender esse processo é fundamental
para compreender a dramaturgia produzida em seu próprio tempo. Processo de
releitura, este, muito bem exemplificado na literatura dramática portuguesa, por
intermédio das versões do texto plautinoii, Amphytruo, sobretudo, por duas delas: O
Auto dos Anfitriões, também conhecido como Comédia dos Enfatriões e Comédia
dos Amphitriões, de Luís de Camões; e, Anfitrião ou Júpiter e Alcmena, de Antônio
José da Silva, conhecido como “o Judeu”.
Segundo Britoiii, a comicidade do teatro romano do século II a. C. teve uma
marcante presença na criação da comédia de costumes brasileiraiv, cuja estrutura
básica está num tipo de humor farsesco, pautado na crítica de tipos e situações do
cotidiano. Assim, a comédia romana nos deixou como herança estruturas
humorísticas que ainda hoje divertem milhões de pessoas nos diversos veículos de
comunicação existentes.
A Comédia Paliata, comédia latina que tem esse nome derivado do pallium
grego, um manto usado pelos atores durante os espetáculos, recriou em seus
enredos, a vida romana, a partir de assuntos gregos. É filha da Comédia Novav
grega do IV a. C. Os aspectos mais independentes das questões de Estado e sua
tendência para buscar o riso em situações da vida cotidiana influenciaram os
romanos a criarem um tipo de comédia a qual chamaram de Comédia Paliata, que
teve seu apogeu entre a segunda metade do século III e a primeira metade do
século II a. C., sobretudo com Plautovi e Terênciovii, autores, cujos textos acabaram
por se tornar paradigmas de um tipo de humor que desde a Antiguidade ocupa
posição de destaque no teatro ocidental.
12
O objetivo desse estudo é estabelecer uma comparação entre as estruturas
dramatúrgicas da comédia portuguesa Comédia dos Amphitriões, que, segundo
Teófilo Braga, teria sido escrita por volta de 1543, e, Anfitrião ou Júpiter e Alcmena,
de Antônio José da Silva, escrita e encenada no teatro do bairro alto, em Lisboa, em
1736. Ambas as obras tomando como base o Amphytruo, de Plauto.
Pretendemos estabelecer um diálogo comparativo entre os autores
portugueses, buscando avaliar o grau de manutenção, de identidade e de
transformação do humor criado no Amphytruo plautino e recriado por esses autores,
cada um em seu tempo, se valendo de referências próprias ao reler, cada um deles,
a obra da antiguidade clássica à sua maneira. De modo que, possivelmente
descobriremos semelhanças e diferenças no humor e na estrutura dramática de
duas épocas distintas, a partir de comédias que tem exatamente o mesmo ponto de
partida.
A primeira delas trata-se da Comédia dos Amphitriões, de Camões,
comédia, a princípio renascentista, mas já permeada por refinamentos maneiristas,
ainda que calcada, segundo Brito, nos elementos fundamentais do original romano.
E a segunda, Anfitrião, ou Júpiter e Alcmena, de Antônio José da Silva, “ópera”
(termo dado pelo próprio autor) barroca, igualmente baseada no texto de Plauto,
mas já se valendo de referências à obra de Camões e perseguindo uma “escola”
muito próxima do Vaudevilleviii.
Tais comparações implicam, por certo, analisar a questão histórico-cultural,
sobretudo do período literário de transição entre o renascimento e o maneirismo,
presentes na obra de Camões; e, da multiplicação de situações e de um, certo,
superficialismo, inseridos, no fim do período barroco, tão marcadamente presentes,
na obra de Antônio José da Silva.
Um segundo objetivo consiste em identificar semelhanças e diferenças das
peças teatrais, além de localizar outras relações intertextuais de cada uma delas,
sabendo-se que ambos os textos teatrais e todas as muitas versões do Anfitrião
recriaram a peça original de Plauto, que teria se valido, possivelmente, de um texto
original do período da Comédia Médiaix Grega (GASSNER 1974). Plauto recriou o
mito grego de nascimento de Hércules tornando-se uma espécie de “mito canônico”
(BRANDÃO 1999), além de base dramatúrgica, sobre a qual todos os autores que
posteriormente o recriaram, se valeram.
13
A obra de Plauto fora representada com grande sucesso em sua época e
“teve tanta importância na Roma Antiga que, pouco depois da morte do autor, já era
objeto de estudos, discussões e controvérsias”. (BRITO 1999)
No entanto, somente a partir do Renascimento, os textos da comédia latina,
sobretudo Plauto e Terêncio foram redescobertos e passaram a ser imitados e
recriados. Ao longo do tempo surgiram diversas versões do Amphytruo, de Plauto.
Além das versões portuguesas de Camões e Antônio José da Silva, há versões de
autores como, Molierex, Drydenxi, Kleistxii, Giraudouxxiii, Guilherme de Figueiredoxiv,
Augusto Abelairaxv entre outros. Dá-se conta de, aproximadas, quarenta e duas
versões do original até o final do século XX.
O exame da comicidade teatral tem sido ao longo dos séculos, objeto das
mais diversas polêmicas, com uma discussão que tem como ponto de partida o
filósofo Aristóteles que, em sua “Poética”, definiu os elementos que faziam parte do
sistema trágico grego, tornando-se este um modelo bastante seguido até hoje. No
entanto, o mesmo não aconteceu com a comédia. Na mesma “Poética”, Aristóteles
faz um breve comentário sobre a arte da comédia:
A comédia é a imitação de maus costumes, não de toda sorte de vícios, mas só daquela parte do ignominioso que é o ridículo. O ridículo reside num defeito e numa tara que não apresentam caráter doloroso ou corruptor. Tal é, por exemplo, caso da máscara cômica feia e disforme, que não é causa de sofrimento. (ARISTÓTELES, 2006, p.33)
Mesmo não sendo definitivo em sua conclusão acerca da função da
comédia, Aristóteles faz uma afirmação que tipifica a tragédia como a imitação das
ações de personagens superiores ao homem comum, enquanto a comédia como a
imitação das ações de tipos inferiores, dos próprios homens em suas vidas
cotidianas, distantes de suas ações mais heróicas. O que torna o caso “Anfitrião” um
raro momento histórico em que se funde tanto a bravura do herói grego e a
onipotência dos deuses do Olimpo, quanto à jocosidade dos criados em suas ações
mais comuns, extraindo dessa inusitada fusão, a comicidade e a criação daquilo que
Plauto vai chamar de tragicomédiaxvi. Apesar de se entender modernamente
tragicomédia, como uma peça que participa ao mesmo tempo da tragédia e da
comédia, e de, na história teatral, a tragicomédia se definir por três critérios ligados
ao tragicômico (personagem, ação e estilo), ou seja, são personagens pertencentes
às classes populares e aristocráticas, apagando assim a fronteira entre a tragédia e
14
a comédia. Nesse sentido, a obra de Plauto pode ser lida como tal. No entanto, em
relação a ação, não, na medida em que se trata de ação séria e até mesmo
dramática que não desemboca numa catástrofe e onde herói não perece. Além
disso, “o estilo reconhece a linguagem realçada e enfática da tragédia e níveis de
linguagem cotidiana ou vulgar da comédia”. (PAVIS 1999). O estilo tragicômico está
presente de maneira muito mais significativa em Camões e Antônio José da Silva,
do que em Plauto. Ainda assim, Plauto é o primeiro a utilizar o termo e a fazer essa
fusão.
Na análise das comédias, pretendemos estudar o que há de pontos
convergentes e divergentes na estrutura da comédia, e da comicidade, na recriação
da obra de Plauto. A estrutura das peças será analisada utilizando as teorias sobre o
riso, de Bergson, calcado também na obras de Pavis, Bender, Andrade e Brito,
buscando a comparação entre as obras, a partir da narrativa teatral e da análise das
personagens.
Não é possível pensar este trabalho, portanto, sem ter em mente dois
aspectos fundamentais: Em primeiro lugar, o quanto há de semelhante na obra de
ambos os autores, no caso, Camões, em seu teatro, e Antônio José da Silva. Tendo
esse primeiro aspecto como foco, dois outros aspectos são determinantes no estudo
dessas similaridades; a base de onde se extrai ambas as peças (Comédia dos
Amphitriões e Anfitrão ou Júpiter e Alcmena) de origem latina, oriunda da
Antiguidade clássica, especificamente da obra de Plauto; e, o objetivo maior dessas
peças dramatúrgicas, que é a comicidade e é esta mesma comicidade que está em
jogo em ambos os casos. E para que o riso se estabeleça nas peças, ambos os
autores se valeram largamente das ferramentas de comicidade desenvolvidas por
Plauto e as utilizaram em suas versões.
Em segundo lugar, o quanto há de diferente na obra de cada um deles,
atentando-se aí, igualmente, para outros dois aspectos: Um que nos fala da
genialidade de cada autor, que viveram em períodos históricos diferentes, tem
histórias de vida distintas e um público muito diverso; e, o fato singular de o modelo
utilizado por cada um deles ser diferente e obedecer a ditames conceituais
estético/literários de suas épocas. Há um Camões, assentado em um modelo
renascentista na forma, mas já com uma expressão textual maneirista, e, um Antônio
José da Silva, que se vale de um modelo iminentemente barroco, mas já no fim do
15
período, o que lhe apresenta a possibilidade de exercer um papel crítico diante do
próprio período literário ao qual o autor está circunscrito.
16
1 O MITO GREGO E A IMPORTÂNCIA DO MITO PARA ENTENDER A HISTÓRIA
Sobre a mitologia grega, pode-se afirmar que ela chegou até os nossos dias
por intermédio da poesia, da arte figurativa e da literatura. Ao plasmar o material
mitológico, os poetas e artistas gregos não obedeciam tão somente a critérios
religiosos, mas também a ditames estéticos.
“Toda obra de arte como todo gênero artístico e literário possui exigências
intrínsecas” (BRANDÃO, Mitologia Grega vol III 1999). E, entre narrar um mito e
compor uma obra de arte há espaços enormes a serem esvaziados, na medida em
que a obra de arte é necessariamente uma redução do mito. Redução porque o mito
se compõe de um amplo amálgama de variantes, enquanto a obra de arte opta por
apenas uma dessas variantes.
“[...] não se pode estudar com profundidade a Literatura Greco-Latina e seu universo multifacetado, sem um sério embasamento mítico, pois que o mito, nesse caso, se apresenta como um sistema, que tenta, de maneira mais ou menos coerente, explicar o mundo e o homem.” (BRANDÃO, Mitologia Grega vol I 1999)
A redução do mito a uma obra de arte traz uma consequência com vistas à
documentação mitológica. O mito vive de variantes, enquanto a obra de arte, ao
optar por esta ou aquela variante, torna, dependendo do grau de popularidade e de
prestígio que a obra alcance, a versão do poeta uma espécie de mito canônico, ao
se impor sobre as outras. É exatamente o que acontece quando se reconstroi o mito
de Anfitrião em relação à peça de Plauto. Os próprios recriadores da obra plautina
sempre beberam muito mais da obra de Plauto que das possíveis variações do mito.
A partir das concepções alcunhadas nas obras de Homeroxvii e Hesíodoxviii,
incorpora-se à ideia das divindades olímpicas, a forma, os gostos, os hábitos, e os
desejos humanos. Os antigos deuses se apaixonavam como os homens, mas não
batalhavam, nem se divertiam como eles. Concluído o ato da criação, os mais
hábeis venceram os atlantes e, uma vez instaurada a ordem olímpica, se
entregaram ao ócio durante a Idade do Bronzexix, enquanto o fogo, o ar, a água e a
terra estabeleciam seus próprios domínios e a linguagem se convertia numa das
maiores defesas das comunidades tribais.
17
No desenvolvimento das “histórias mitológicas”, em algum lugar, perdido no
tempo, os deuses se tornaram verdadeiros campeões da dissimulação. Não
menosprezavam a mais desprezível das manobras quando se tratava de intrigar ou
de satisfazer um capricho. Júpiter, dominador persistente, não se furtava ao menor
estratagema até consumar exitosamente a aventura pretendida.
Cabe ressaltar que a opção por utilizar a terminologia latina e não a grega, se
deve ao fato de o modelo dramatúrgico, dado a comparação com as obras de
Camões e de Antônio José da Silva, ser latino, tornando as alusões e referências
diretas.
Em uma de suas muitas aventuras amorosas, Júpiter, enlouquecido de desejo
por Alcmena, fez interromper o curso do tempo por três noites, se disfarçou de
Anfitrião, a quem Alcmena havia jurado fidelidade e, mesmo, sua virgindade, quando
este lhe vingasse a morte dos oito irmãos, assassinados pelos filhos de Ptérelaxx, rei
dos telebeus, da ilha de Tafos.
Anfitrião, filho de Alceu, casou-se com sua prima, Alcmena, filha de Electrion,
mas tendo involuntariamente causado a morte de seu sogro e tio, foi banido de
Micenas. Anfitrião, em companhia de sua esposa, refugiou-se em Tebas, onde foi
purificado pelo rei Creonte. Como Alcmena se recusasse a consumar o matrimônio,
enquanto o marido não lhe vingasse os irmãos, mortos pelos filhos de Ptérela,
Anfitrião conseguiu apoio dos Tebanos e com contingentes vindos de diversas
regiões da Grécia, invadiu a ilha de Tafos, onde reinava Ptérela. Havia um oráculo
segundo o qual a ilha nunca poderia ser tomada porque a vida do rei estava ligada a
um fio de cabelo de ouro que Poseidon implantara na cabeça do mesmo. Acontece
que Cometo, filha de Ptérela, se apaixonou por Anfitrião e traiu o pai e, enquanto
este dormia, arrancou-lhe o fio de cabelo mágico, provocando assim a morte do pai
e a ruina de Tafos. Carregado de despojos, o filho de Alceu, Anfitrião, tratou de
regressar a Tebas, com o objetivo de fazer Alcmena sua mulher.
No entanto, durante a ausência de Anfitrião, Júpiter desejando dar ao mundo
um herói como jamais houvera outro e que libertasse os homens de tantos
monstros, escolheu a mais bela das mulheres de Tebas para ser mãe de criatura tão
privilegiada. Sabedor, porém, da fidelidade absoluta da princesa micênica, travestiu-
se de Anfitrião, trazendo-lhe inclusive a taça de ouro por onde bebia o rei Ptérela
para que nenhuma desconfiança pudesse existir no espírito da esposa, narrou-lhe
18
longamente os incidentes da campanha, e foram três noites de um amor ardente,
porque durante três dias Hélio, por ordem do pai dos deuses e dos homens, deixou
de percorrer o céu com seu carro de chamas. Hélio apagou os fogos solares, deteve
a Lua, desatrelou os cavalos do Tempo da carruagem das Horas e ordenou a
Morfeu que adormecesse os homens durante três dias e três noites para que
ninguém pudesse se interpor à consecução da tarefa de Júpiter, porque uma criatura
tão grande como a que Júpiter pretendia gerar não podia ser concebida às pressas.
Consumado o ato divino, o dia amanheceu normalmente. As Horas se
atrelaram novamente ao carro e o Tempo seguiu seu curso. Quase no mesmo
instante, quando finalmente chegou Anfitrião, o verdadeiro, que:
“[...]ficou muito surpreso com a acolhida tranquila e serena da esposa e ela também muito se admirou que o marido houvesse esquecido tão depressa a grande batalha de amor travada até a noite anterior em Tebas. Um duelo que fora mais longo que a batalha travada na ilha de Tafos!” (BRANDÃO, Mitologia Grega vol III 1999)
Espantado, confuso e nervoso ficou o general tebano quando, ao narrar-lhe
os episódios da luta contra Ptérela, Alcmena parecia saber tudo tão bem ou, melhor
do que ele próprio. Possesso de raiva, Anfitrião consultou o adivinho Tirésias que
disse ter se tratado de um “glorioso adultério físico e de astucioso estratagema” de
Júpiter. Afinal, a primeira noite de núpcias compete ao deus e é por isso que o
primogênito nunca pertence aos pais. Mas Anfitrião, que esperara tanto tempo por
sua lua de mel, se esquecera de tudo isto e, louco de ciúmes, resolveu castigar
Alcmena, queimando-a viva numa pira. Júpiter, todavia, não o permitiu e fez descer
do céu uma chuva repentina e abundante, que, de imediato, extinguiu as chamas da
fogueira de Anfitrião. Diante de tão grande prodígio, o general desistiu de seu intento
e teve uma longa noite de amor com sua esposa.
Com tantas noites de amor, Alcmena concebeu dois filhos: um de Júpiter,
Hércules; outro de Anfitrião, Íficles. O nome Hércules só passa a ser empregado na
idade adulta. O heroi, semideus, é chamado de Alcides durante boa parte de sua
vida.
Ao consultar o advinho Tirésias, este, além de lhe confirmar que Júpiter havia
se antecipado a Anfitrião nas núpcias reais, contou-lhe que coube a Mercúrio o
papel de Sósia, criado de Anfitrião, responsável por chegar à frente e informar a ama
das conquistas do herói.
19
1.1 O mito grego em relação às Obras de Plauto, Camões e Antônio José da Silva
Pode-se afirmar que em todas as muitas versões do mito para os palcos, é
sempre Mercúrio quem protagoniza o diálogo que vai ser fundador da ideia do duplo
no teatro. Definida pelo nome do duplo de Mercúrio, o criado de Anfitrião, Sósia, que
se torna sinômimo de “cópia humana”, sendo este um elemento de comicidade
largamente utilizado na dramaturgia universal.
Em Camões estão lá, ambos, Mercúrio e Sosia, no entanto, Camões opta por
chamar a Sósia de Sosea, talvez em função de os personagens que representam os
criados falem espanhol em contraposição aos nobres e deuses, que falam
português. Mercúrio e Sosea estão na mesma situação dramatúrgica criada por
Plauto. Os personagens estão apenas deslocados de lugar na obra. Enquanto na
obra de Plauto essa é a cena inicial, em Camões, o encontro se dá somente na cena
VI do 2° ATO.
Na peça de Antônio José da Silva, o encontro entre Mercúrio e Saramago
(nome dado por Antônio José da Silva ao seu Sósia), ocorre na cena III da primeira
parte da comédia.
Cada qual à sua maneira mantém os personagens juntos, contracenando e
tratando de confirmar sempre a confusão mental que Mercúrio propicia a Sosia e
que está no cerne da comédia plautina.
No que toca o Anfitrião camoniano percebe-se, ainda, mais explicitamente do
que em outras versões, que Tafos é uma ilha, e que a viagem a ser empreendida
para a guerra deve ser feita em náus. Muito provavelmente, esse dado do mito
aparece como uma referência importante, em Camões, a fim estabelecer uma
relação, não com o Amphytruo, de Plauto, mas, indo diretamente à fonte mitológica,
ao traçar um possível paralelo entre o herói Anfitrião e os navegadores portugueses,
heróis quase mitológicos da época. Em Antônio José da Silva, não há referência
alguma à necessidade de navegar para empreender a batalha. Ao passo que em
Plauto há apenas uma citação, feita por Sósia, no 2° ATO, quando, ao ver Alcmena
diante de casa, grávida, sugere ao amo que ambos regressem ao navio.
20
SÓSIA – (observando Alcmena) Anfitrião, o melhor é voltarmos ao navio. (PLAUTO, 1952, p. 29)
Reconstruindo os acontecimentos, presentes no mito, nos damos conta de
que o amo, a taça, o escravo, todos os participantes haviam se duplicado por obra e
graça de Júpiter, com exceção de Alcmena. Anfitrião, consciente de que contra um
deus não era possível empreender qualquer tipo de vingança, tratou de
imediatamente também engravidar a esposa. Alcmena deu a luz aos gêmeos
Hérculesxxi e Íficlesxxii, o primeiro era produto da relação de Alcmena com Júpiter, o
segundo, fruto da relação com Anfitrião.
O mito, no entanto, se reconstroi em Plauto quando, por exemplo, ele abole
a ideia de virgindade em Alcmena. Anfitrião a deixa grávida, antes de ir para a
guerra, e não se surpreende ao vê-la com vistosa barriga em seu regresso, como é
dito textualmente na primeira cena do segundo ATO:
SÓSIA – (mostrando Alcmena grávida) Bem vejo que Alcmena está diante de casa e bem cheia. ANFITRIÃO – É que deixei-a grávida quando fui embora. (PLAUTO, 1952, p. 29)
No caso específico de Antônio José da Silva, a inclusão dos personagens
Juno, Íris e Tirésias, personagens mitológicos, estabelece um paralelismo e uma
dobra de situações cômicas. O autor multiplica os quiproquós e cria uma espécie de
“espelho falso” da relação entre Júpiter e Alcmena, levando Tirésias a crer na
possibilidade de ter algum tipo de relação amorosa com a disfarçada deusa Juno. É
claro que isso acontece com a intenção de aumentar a comicidade. Mas, de
qualquer modo, Antônio José da Silva estabelece uma relação direta com elementos
mitológicos que não estão presentes nem na obra plautina, nem na peça de
Camões, o que lhe confere alguma originalidade em relação aos outros autores.
“Ao plasmar o material mítico, o poeta ou artista não se pautava unicamente
por critérios religiosos, mas obedecia também, a ditames estéticos” (BRANDÃO,
1999). As obras de arte, e entre elas as obras literárias, impõem exigências
específicas desde a antiguidade. Muitas vezes entre narrar um mito e compor uma
obra de arte vai uma enorme distância, mas a redução do mito a uma obra literária
tem outra consequência no que respeita à documentação mitológica: o mito vive em
variantes, e nelas se contém; e a obra de arte de conteúdo mitológico forçosamente
21
reflete apenas uma dessas variantes. Consequentemente, dado o imenso prestígio
alcançado pela poesia na Hélade, a versão do poeta, ao narrar o mito, impunha-se à
consciência pública. Instituía-se, dessa maneira, o mito canônico, com o abandono
das demais variantes, talvez de menor eficácia do ponto de vista artístico.
Plauto tornou “canônica” sua versão do mito do herói Anfitrião, filho de
Alceu, e Alcmena, neta de Perseu, ambos, pais dos meio-irmãos gêmeos, Íficles e
Hércules. Em que pese a pouca importância dada por Plauto ao mito da virgindade
de Alcmena que se tornará um dado importante, fundamental até, nas obras
posteriores, evidentemente, muito em função da consolidação do cristianismo em
todo o ocidente, a obra plautina consolida uma visão do nascimento de Hércules que
se impõe às outras possíveis e distintas visões.
Logosxxiii e Mitoxxiv são as duas metades da linguagem, duas funções
igualmente fundamentais da vida e do espírito. O “Logos”, sendo um raciocínio,
procura convencer, acarretando no ouvinte a necessidade de julgar. O “Logos” é
verdadeiro, se é correto e conforme a lógica; e, é falso, se dissimula alguma burla
secreta. O “Mito”, porém, não possui outro fim senão a si próprio. Acredita-se nele ou
não, por um ato de fé, se o mesmo parece “belo” ou verossímil, ou simplesmente
porque se deseja dar-lhe crédito. Assim é que o mito atrai, em torno de si, toda a
parte do irracional no pensamento humano, sendo, por sua própria natureza,
aparentado com a arte, em todas as suas criações. E talvez seja este o caráter mais
evidente do mito grego. Não existe domínio algum do helenismo, tanto na plástica
como na literatura, que não tenha recorrido constantemente a ele.
Para o grego, um mito não conhece limites. Insinua-se por toda parte [...]. Reserva de pensamento, o mito acabou por viver uma vida própria, a meio caminho entre a razão e a fé. (BRANDÃO, Mitologia Grega vol I 1999)
De outro lado, sendo uma falaxxv (BARTHES, Mythologies 1972), um sistema
de comunicação, uma mensagem, o mito é como que uma metalinguagemxxvi, já que
é uma segunda língua na qual se fala da primeira. O mito é um modo de
significação. Não se pode defini-lo simplesmente pelo objeto de sua mensagem,
mas pela maneira como profere.
Como afirma Brandão, “metalinguagem” não é apenas a “literatura”, no caso a
Greco-Latina, que não se pode explicar sem o mito, mas igualmente inúmeros fatos
da língua. Senão, não mais teria sentido expor os “Doze trabalhos de Hércules”
22
impostos ao “herói” por Junoxxvii se não se visse neles, entre muitos outros
conteúdos, um longo rito iniciático, coroado pela deificação. Assim também muitos
fatos da língua ficariam reduzidos a meras palavras se não se buscasse esclarecê-
los através do mito e da religião.
23
2 O TEATRO ROMANO E A COMÉDIA PALIATA DE PLAUTO
A criação da comédia de costumes teve, na comicidade do teatro romano do
século II a. C., sua origem por estar pautada num tipo de humor típico da
antiguidade baseada na farsaxxviii, comédia esta que ganha o nome de paliata, por
ser derivado do pallium, um tipo de manto grego, usado pelos atores nos
espetáculos que recriavam em seus enredos a vida romana, a partir de assuntos
gregos. Herdeira que era da Comédia Nova Grega, Plauto e Terêncio foram os
maiores artífices do gênero. “Seus textos acabaram se tornando paradigmas de um
tipo de humor que, desde a Antiguidade tem um lugar de destaque no teatro
ocidental”. (BRITO, 1999)
A universalidade do Império Romano, a centralização na capital de todo tipo de gente, vinda de regiões diversas, aquele caldeirão “cabeça do mundo” não podiam aceitar os padrões da dignidade aristotélica para seus divertimentos teatrais. O grotesco e o obsceno dominaram os espetáculos coletivos, [...] (FILHO, 1986, p. 30)
A formação do teatro romano contou com a contribuição dos povos itálicos,
etruscos e gregos. Entre os séculos III e II a. C., Roma teve no teatro um grande
desenvolvimento de textos e representações teatrais a partir de dois autores
devidamente imortalizados por suas obras: Plauto e Terêncio. Ambos os autores
escreveram suas peças baseadas em um tipo de comédia escritas um século antes,
na Grécia. A Comédia Nova foi à forma dramatúrgica que serviu de modelo para a
comédia romana denominada Fábula Paliata ou Comédia Paliata, que, basicamente,
traduziam as peças gregas para o latim, ou faziam peças romanas baseadas nas
peças gregas e as trabalhava com personagens fortemente estereotipados. Outra
influência à comédia romana foram as Saturaexxix, que, desenvolvidas por Plauto,
foram chamadas de Farsas Atelanasxxx.
Nesses mesmos séculos III e II a. C. - período em que Plauto e Terêncio
escreveram suas obras havia quatro ciclos de festividades que envolviam o teatro:
Os Ludi Megalensesxxxi, em abril, os Ludi Apollinaresxxxii, em julho, os Ludi
Romanixxxiii, em setembro e os Ludi Plebeiisxxxiv, em novembro. As despesas
financeiras dessas festividades cabiam ao Estado, que tratavam diretamente com a
pessoa responsável pelo espetáculo.
24
A representação teatral organizada aparece em Roma desde 145 a. C. em
teatros que eram construídos em madeira e demolidos depois das festas. O
espetáculo tinha um código formal muito rígido, e era representado somente por
homens que usavam máscaras que caracterizavam os personagens, - o velho, o
jovem, a cortesã -, com possibilidades de diferenciação dentro de cada personagem,
como o velho bom ou mau, por exemplo. O uso da máscara também possibilitava
colocar em cena uma quantidade menor de atores. Com cenários simples, os
espetáculos se realizavam de dia.
É inegável que nas comédias de Plauto há influência dos modelos etruscos,
gregos, e itálico, no entanto, sua originalidade está na maneira como adaptou as
intrigas e situações. Ele transformou a intriga, suprimiu o coro, alterou a ordem de
apresentação. Transformou seus modelos, preocupado que estava em agradar o
seu público. Preocupou-se em se fazer entender por um público que conhecia
intimamente, justamente por fazer parte dele.
Diversos autores, vide Pavis, Gassner, Brito, Andrade etc., concordam que o
teatro de Plauto era um teatro, de fato, popular. Toda a cidade assistia, do mais
pobre, ao mais rico, e, fazia-se necessário que todos entendessem o que se
passava. Talvez, por isso os prólogos de Plauto fossem tão elucidativos.
Normalmente, seus prólogos, dividiam-se em duas partes: o discurso,
propriamente dito, e o sumário da peça, onde o autor explicava ao espectador tudo o
que ia acontecer.
MERCÚRIO – Primeiro vou dizer aquilo que vos vim pedir, depois vou revelar o argumento desta tragédia. Por que é que franziste o sobrolho? Por ter dito que seria uma tragédia? Sou deus, de modo que, se quereis, mudo já isto; farei que de tragédia passe a comédia. (PLAUTO, 1952, p. 8)
Quando se fala no mito do Anfitrião sabemos que se fala indiretamente no
mito de nascimento de Hércules, que vem a ser filho de Júpiter com a mulher de
Anfitrião, Alcmena, uma mortal, virgem e linda, que está à espera do marido
verdadeiro para se entregar a ele pela primeira vez. A recriação desse mito se
prestou à dramaturgia como geradora de comicidade, provavelmente desde a Grécia
Antiga, mas com evidências mais do que claras, a partir de Plauto, na Roma antiga.
Tendo como foco o estudo da história da vida privada nas civilizações antigas
é possível crer que somente aos deuses caberiam explicações plausíveis. Plauto,
atento às ruas, a uma sociedade repleta de homens exilados nas muitas guerras da
25
“República Romana”, trata o assunto com divertida exaltação a uma possível vida
privada citadina, repleta de muitas traições justificadas das mais distintas e criativas
formas.
Fato marcante é que a comédia plautina gerou frutos e serviu de base para
mais de quarenta versões, somente no ocidente, ao longo desses mais de 2500
anos de história do teatro.
26
3 O RISO, ELEMENTO FUNDADOR DA COMÉDIA
A comédia sempre foi o instrumento da crítica social mais direta, mais
contundente. A personagem cômica sempre esteve e está mais perto de sua plateia
do que a personagem da tragédia ou do drama moderno.
Modernamente, alguns pensadores dedicaram sua pesquisa, não especificamente à comédia, não especificamente à comédia enquanto gênero dramático, mas a comicidade, de modo geral, e ao riso. Assim, Freud, ao tratar do chiste, Bergson, ao trabalhar com a questão do riso, e Propp, mais recentemente, ao lidar com o cômico, falam dos mecanismos propiciadores de riso embora sem adentrar a área teatral. O trabalho desses autores apenas eventualmente lança mão de exemplos retirados da comédia para ilustrar as teorias em exposição. (BENDER, 1996, p.11)
No estudo sobre o texto teatral, a serviço da comédia, não há uma “teoria
geral sobre a comédia” que nos sirva de paradigma, como há, no caso da tragédia,
com a “Arte Poética”. No entanto, em relação à dramaturgia voltada para o cômico,
há autores paradigmáticos, como é o caso de Aristófanes, Menandro, Plauto,
Terêncio, Gil Vicente, Lope de Vega, Molière, Goldoni, etc. E é sobre a obra desses
e de outros autores que se percebe a repetição dos mecanismos de comicidade,
quase de forma universal e atemporal. E o que faz o Amphytruo se transformar em
elemento fundamental nessa trajetória da comicidade, e ser considerado uma obra
paradigmática, é que, além de inaugurar momentos de humor explícitos que foram
perpetuados, tornou-se obra presente em diversos momentos históricos, sempre
mantendo o mesmo enredo, tentando e conseguindo manter sua vivacidade como
obra fundamentalmente escrita com o intuito de provocar o riso.
Ao analisar os textos objetivados, procuramos fazê-lo à luz, sobretudo, das
teorias bergsonianas a respeito do riso, objetivo primaz da comédia. É evidente que
a peça cômica é aquela que procura fazer rir.
Para o classicismo francês, a comédia, por oposição à tragédia e ao drama (século XVIII), mostra personagens de um meio não aristocrático, em situações cotidianas, que acabam se saindo bem de apuros. (PAVIS, 1999, p. 53)
É a imitação dos costumes que a difere da tragédia e do poema heróico, ou
a imitação em ação, que a difere do poema didático moral ou do simples diálogo.
27
Hegel afirma que é por meio do riso, que dissolve e reabsorve tudo, que o indivíduo
garante a vitória da sua subjetividade e, que apesar de tudo que lhe possa acontecer
permanece sempre seguro de si. Ainda segundo Hegel, ”é cômica a subjetividade
que coloca contradições em suas ações, para em seguida resolve-las,
permanencendo calma e segura de si.” (HEGEL, 1832, p. 410). (PAVIS, 1999, p. 53)
Ao examinar os mecanismos geradores do riso, Henry Bergson buscou
depreender algumas leis que pudessem explicá-los. O seu ponto de partida são
ideias já conhecidas desde a Antiguidade, que mostram o riso como um fenômeno
caracteristicamente humano, condicionado por uma percepção inteligente e pela
ausência de envolvimento emocional daquele que ri. Assim, Bergson criou sua
teoria: rimos quando percebemos que algo de rígido ou mecânico se incrustou no
movimento maleável e criativo da vida. Dessa forma, o riso, sendo uma
característica humana, teria consequentemente uma função social, pois é em
sociedade que os homens se organizam.
Segundo Bergson, para compreender o riso, impõe-se colocá-lo no seu
instante natural, que é a sociedade; impõe-se, sobretudo determinar-lhe a função
útil, que é uma função social. Portanto, o riso deve corresponder a certas exigências
da vida comum e ter uma significação social.
Tomando por base essas ideias, Bergson estabeleceu três processos
formadores da comicidade: “repetição”, “inversão” e a “interferência das séries”, que
vem a ser a fusão desses dois processos.
A “repetição” é um processo de criação da comicidade que surge
espontaneamente, na relação entre os homens, como um elemento mecânico que
se instala dentro da vida e impede a sua progressão natural, fazendo-a voltar
constantemente, e, por isso mesmo, caricaturando-a. Trata-se de uma situação, isto
é, de uma combinação de circunstâncias, que se repete exatamente em diversos
momentos, contrastando vivamente com o curso cambiante da vida. Buscando
explicar o mecanismo da “repetição”, Bergson escreveu:
Imagine-se agora uma série de acontecimentos que dê a ilusão suficiente da vida, e suponhamos, no meio dessa série que evolui, uma mesma cena a se reproduzir, seja entre os mesmos personagens, seja entre personagens diferentes: teremos ainda uma comicidade, porém mais extraordinária. São as repetições que se apresentam no teatro. Às vezes é entre grupos de personagens diferentes que a mesma cena se reproduz. É frequente então que o primeiro grupo seja formado por patrões e o segundo por domésticos. Estes virão a repetir em outra tonalidade, transposta em estilo menos nobre,
28
uma cena já representada pelos patrões. Parte da peça Dépit Amoureux (Despeito Amoroso) é construída nesse plano, assim como Amphitryón (Anfitrião). (BERGSON, 1987, p. 51)
A “inversão” acontece quando a ordem natural de alguma coisa é quebrada,
instalando o mecânico e o rígido no movimento constante da vida. Bergson define
esse mecanismo de criação da comicidade como sendo um processo análogo ao
primeiro, no qual se imagina certos personagens, em dada situação em que se
obtém uma cena cômica fazendo com que a situação volte para trás e com que os
papéis se invertam. Como diz o próprio Bergson: “Assim é que nos rimos do
acusado que dá lição de moral ao juiz, da criança que pretende ensinar os pais,
enfim, do que acabamos de classificar como mundo às avessas.” (BERGSON, 1987,
53) É nesse tipo de mecanismo de criação de comicidade que é muito comum que
diante de nós surja sempre um personagem que acabará ele mesmo por complicar-
se. A história do perseguidor vítima de sua perseguição constitui pano de fundo de
inúmeras comédias.
E, finalmente, a “interferência das séries” vem a ser um processo de criação
de comicidade que consiste na mistura, num só momento, da “repetição” e da
“inversão”, fazendo o mecânico, ou o rígido, interferir no movimento da vida. Assim
explica Bergson, a “interferência”:
Chegamos à “interferência das séries”. Trata-se de um efeito cômico cuja fórmula é difícil de extrair, por causa da extraordinária variedade das formas sob as quais se apresenta no teatro. Talvez pudéssemos defini-la: “Uma situação será sempre cômica quando pertencer ao mesmo tempo a duas séries de fatos absolutamente independentes, e que possa ser interpretada simultaneamente em dois sentidos inteiramente diversos”. Vem à mente logo o quiproquó. Realmente o quiproquó é uma situação que apresenta ao mesmo tempo dois sentidos diferentes, um simplesmente possível: o que os atores lhe atribuem, e o outro real: o que o público lhe dá. Percebemos o sentido real da situação porque se teve o cuidado de nos mostrar todas as suas facetas; mas cada ator só conhece uma delas; daí o equívoco, daí o julgamento falso que fazem sobre o que se faz em torno deles, como também sobre o que eles mesmos fazem. Vamos desse juizo falso ao juizo verdadeiro; oscilamos entre o sentido possível e o sentido real; e é essa hesitação do nosso espírito entre duas interpretações opostas que aparece primeiro na graça que o quiproquó nos proporciona. (BERGSON, 1987, p. 54)
Estes processos, segundo Bergson, estão na base dos tipos de comicidade.
Estudando as formas, atitudes e movimentos cômicos, em geral, Bergson criou sua
teoria. Nela, a comicidade surge a partir da intromissão do rígido e do mecânico no
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movimento da vida. Foi isso o que ele procurou demonstrar, criando suas leis sobre
três tipos básicos de comicidade, que percorrem ao mesmo tempo a esfera da vida e
da comédia teatral: comicidade de situação, comicidade de palavra e comicidade de
caráter.
A comédia de situação, segundo Patrice Pavis, é também uma peça que se
caracteriza mais pelo ritmo rápido da ação e pelo imbróglio da intriga que pela
profundidade dos caracteres esboçados. Como na comédia de intrigaxxxv, passa-se
sem cessar de uma situação a outra, sendo que a surpresa, o quiproquó e o golpe
de teatroxxxvi são seus mecanismos favoritos. Bergson define a “comicidade de
situação” ao afirmar que tende a ser cômico todo arranjo de atos e acontecimentos
que dê a ilusão da vida e a sensação nítida de uma montagem teatral.
Comecemos, pois, pelos brinquedos infantis. Acompanhemos o progresso imperceptível pelo qual a criança faz seus bonecos crescerem, lhes dá alma, e os leva esse estado de indecisão final em que, sem deixar de ser bonecos, apesar disso se tornam homens. Teremos assim personagens de comédia. E podemos comprovar com base neles a lei [...] segundo a qual definiremos as situações do teatro bufo em geral: É cômico todo arranjo de atos e acontecimentos que nos dê, inseridas uma na outra, a ilusão da vida e a sensação nítida de uma montagem cênica. (BERGSON, 1987, p. 42)
Sobre a “comicidade de palavra”, Bergson define como sendo, basicamente,
a inserção de uma ideia absurda em um modelo consagrado de frase. Um tipo de
comicidade muito presente no texto teatral.
Mas devemos distinguir entre o cômico que a linguagem exprime e o que ela cria. O primeiro poderia, a rigor, traduzir-se de uma língua para outra, sob pena, entretanto, de perder grande parte de seu vigor ao transpor para uma sociedade nova, diferente por seus costumes, literatura e, sobretudo, por sua associação de ideias. Mas o segundo é em geral intraduzível. Deve o que é a estrutura da frase e à escolha das palavras. Não consigna, graças à linguagem, certos desvios particulares das pessoas ou dos fatos. Sublinha os desvios da própria linguagem. No caso, é a própria linguagem que se torna cômica. Daí podermos inferir essa regra geral: obteremos uma expressão cômica ao inserir uma ideia absurda num modelo consagrado de frase. (BERGSON, 1987, p. 61)
E, finalmente, sobre a “comicidade de caráter”, Bergson explica os
mecanismos desse tipo de comicidade como tudo àquilo que não nos toca na
emoção e sensibilidade. Todo o resto é passível de humor. Qualquer aspecto que se
assemelhe a um desvio e que, de alguma maneira possa ser observado de fora, é
por si só elemento de comicidade.
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Em resumo, se deixarmos de lado, na pessoa humana, o que interessa à nossa sensibilidade e consegue nos comover, o resto poderá converter-se em cômico e o cômico estará na razão direta da parte de rigidez que aí se manifesta. Em certo sentido, pode-se dizer que todo o caráter cômico, desde que se entenda por caráter o que há de já feito em nossa pessoa, e que está em nós em estado de mecanismo montado, capaz de funcionar automaticamente. Será aquilo pelo que nos repetimos. E será também, por conseguinte, aquilo que outros nos poderão imitar. Voltamos assim, por um longo desvio, à dupla conclusão extraída no transcurso do nosso estudo. Por um lado, certa pessoa jamais é ridícula a não ser por um aspecto que se assemelhe a um desvio, por alguma coisa que viva nela, sem com ela se organizar, à maneira de um parasita: por isso esse aspecto se observa de fora e pode também corrigir-se. (BERGSON, 1987, p. 78)
Essa base teórica proposta por Henry Bergson para estudar e entender o
cômico se presta de maneira muito eficiente à análise da comicidade no teatro.
31
4 O RENASCIMENTO E O MANEIRISMO NO TEATRO DE CAMÕES
A característica fundamental do Renascimento é a confiança e a fé no
homem, a crença na capacidade humana de se elevar e aperfeiçoar moral e
espiritualmente. O homem renascentista se apropria da natureza e impõe-se
triunfante à realidade terrena, considerando-se autor do seu próprio destino e fonte
do sentido e do valor do mundo e da natureza. Para esse homem são conciliáveis as
solicitações do corpo e do espírito, as exigências sensíveis e as solicitações morais;
atenua-se e esvai-se o senso do pecado e a consciência do caráter agônico da
natureza humana.
Este ideal renascentista de homem, já no alvorecer do século XVI, não
perdura. A fé otimista, a harmonia entre a ordem divina e a ordem humana, o
equilíbrio entre o corpo e o espírito, são corroídos e contraditados pela crença
protestante na predestinação das almas, pela afirmação maquiavelista da existência
de uma dupla moral, pela oposição violenta do corpo e do espírito, pelo conflito entre
racionalismo e irracionalismo que irrompem na arte maneirista.
A Contrarreformaxxxvii consuma a crise do Renascimento, abrindo espaço,
segundo Otto Maria Carpeaux, à chegada do barroco, acentuando vigorosamente a
imagem do homem como um ser originariamente poluído pelo pecado, dividido por
contradições interiores, ora, escravo dos gozos terrenos e corporais; ora, liberto de
tais servidões, graças à contrição e a penitência, como um ser dramaticamente
efêmero, situado num mundo de enganos, a quem só restam, como caminho da
salvação, a fuga do mundo e a busca de Deus.
A visão do homem como medida de todas as coisas já não vigora e, a partir
desse momento estão postas as condições para o surgimento de uma reação à
visão renascentista de mundo fundada na ideia do equilíbrio da natureza. E foi
justamente essa visão do homem não mais como a medida de todas as coisas que
despertou a atenção de estudiosos para o maneirismo na obra da Camões.
A angústia provocada pelo desconcerto do mundo está mais ou menos
presente em toda a obra de Camões e é o reflexo das agonias e contradições de
uma época rica em mudanças chamadas de “Crise do Renascimento” (HAUSER,
2003), situada em torno de 1520. Em 1517, Lutero lança as bases da Reforma
32
Protestante. Em 1540, é criada a Companhia de Jesus e em 1545, o Concílio de
Trento lança as bases políticas da Contrarreforma. Em Portugal, desde 1525, o
casamento de D. João III com D. Catarina, irmã de Carlos V, monarca espanhol, faz
o país entrar em tênue decadência. Em 1536 a Inquisição é instaurada e, muito
rapidamente, começa a exercer sua influência sobre a Corte e sobre a vida cotidiana
portuguesa. Coincidentemente, no mesmo ano em que morre Gil Vicentexxxviii.
O ideal de equilíbrio do Renascimento cai por terra diante da nova
configuração copernicana do mundo que gerou a ideia de um mundo desarmônico e
desordenado, esvaziando a crença otimista na adequação entre o real e o ideal.
Para muitos, o mundo de então pareceu ser regido pela fortuna e pelo acaso.
Camões não aponta a confiança na razão, a alegria de viver, a exaltação da carne, a
bondade e a harmonia do mundo, ao contrário, ele aponta a irracionalidade da vida,
a falta de significação da existência, a angústia de viver num mundo regido pelo
acaso onde, muitas vezes, Deus parece indiferente às dores humanas. Essas
seriam características especificamente camonianas dentro do maneirismo.
A constante obsessão do tempo destruidor, o agudo sentimento de crise, a
perda radical de qualquer esperança, as contradições da alma humana, a
melancolia, a tristeza – todos esses elementos aparecem no corpo dos sonetos,
onde as complicações sintáticas servem para melhor expressar um desequilíbrio
interior do poeta.
O maneirismoxxxix é o primeiro estilo moderno preocupado com um problema
cultural e que encara as relações entre tradições e inovação como um problema a
ser solucionado por meios racionais. Não é possível entender o maneirismo se não
se percebe o fato de que sua imitação dos modelos clássicos é uma fuga diante do
caos ameaçador, e que a subjetiva e exagerada distorção de suas formas é a
expressão do medo de que a forma possa fracassar na luta com a vida e a arte
possa esvair-se numa beleza sem alma. O maneirismo começa decompondo a
estrutura renascentista de espaço e desmembrando a cena a ser representada em
partes separadas, não apenas externamente separadas, mas também inteiramente
organizadas de modo diferente. Representa o principal estilo entre à terceira década
e a penúltima do século XVI. Período em que Camões e sua obra estão
integralmente inseridos.
33
O maneirismo é a expressão artística da crise que convulsiona toda a
Europa Ocidental no século XVI e que se estende a todos os campos da vida
política, econômica e cultural. Dilacerados pela força, por um lado, e pela liberdade,
por outro, ficaram indefesos contra o caos que ameaçava destruir a ordem do
mundo intelectual. Neles encontramos pela primeira vez o artista moderno com sua
vida intima, seu gosto pela vida e seu escapismo, seu tradicionalismo e sua rebeldia,
seu subjetivismo exibicionista e a reserva com que tenta reter o derradeiro segredo
de sua personalidade.
Camões não é inteiramente determinado pela ambivalência da abordagem
maneirista da vida. Mas parece certo que ele hesita entre a justificação de um
idealismo transcendental e um senso comum fruto da experiência cotidiana. Estão
presentes, também, um vacilante senso de realidade e a obliteração das fronteiras
entre o real e o irreal. Na própria comédia, Camões acena com a presença do
trágico, trágico no cômico, no caso do Anfitrião, assim como aponta também para a
natureza dual do herói, fazendo-o parecer ridículo ou burlesco num momento,
sublime ou augusto no momento seguinte, o que também uma destacada
característica maneirista.
O tema do desconcerto do mundo adquire na lírica camoniana uma
expressão exacerbadamente dolorida, pois, nela, se revela uma visão sombria de
mundo e, em alguns casos, uma visão até contra a providência divina, como se o
universo fosse dominado pelo acaso, por forças inexplicáveis e em desvario, sem
que Deus manifeste nas coisas e nos seres a sua vontade e a sua ordem. O que o
inquieta não é apenas o fato de o homem ser culpado de latrocínios, adultérios e
mortes e ser engrandecido socialmente, desfrutando de riqueza, poder e prestígio,
enquanto o homem justo e bom sofre privações e penas, o que o angustia é a
convicção de que subjacente a essas injustiças se encontra o caráter irracional e
absurdo do mundo e da vida. É claro que o teatro camoniano não atinge esse grau
de complexidade, do contrário, é provável que Camões nos tivesse legado algumas
tragédias ao invés de três comédias.
Em muitos poemas do período se encontra o tópico petrarquistaxl da
brandura e limpidez das águas fluviais, cuja plácida corrente contrasta com o choro
e o tormento do amante, e, em todos eles, o poeta, em melancólico colóquio com o
rio, desfia suas queixas, saudades e ânsias. Os maneiristas criam uma poesia de
34
teor psicologista e moral, de cunho reflexivo ou meditativo, onde não há alegria de
viver na terra, nem serenidade perante o fluir da vida. A obsessão maneirista é a
ideia do mundo e da vida como mudança constante.
Para exprimir a instabilidade e a fugaz duração da vida, os poetas
maneiristas utilizam metáforas e comparações que, embora vindas de uma
antiquíssima tradição literária, alcançou no período maneirista uma ressonância
nova, quer pela sua frequência, quer pelo contexto histórico e existencial a que
estão vinculados. O homem, pelas raízes daquilo que hoje chamamos de
inconsciente, não se esquece do que foi e continua a querer ser aquilo que foi em
concomitância, e, em conflito, com aquilo que veio a ser.
Se para os maneiristas tudo no mundo é teia de enganos e ilusões, o amor
terreno, profano, representa o engano, o engodo que impele os homens a
confundirem perigosamente a verdade e o erro, buscando contentamentos falazes
que o afastam da salvação eterna. Para Camões as queixas contra os enganos do
amor se situam num plano preponderantemente psicológico, dentro da tradição
cortês e petrarquista do amor, sendo considerados tais enganos, sobretudo como
fonte de sofrimento e tristeza para o poeta.
Nos maneiristas portugueses a oposição do amor divino e do amor humano,
o repúdio do mundo e a busca de Deus, em suma, o desengano, se associam com
frequência à abjuração da poesia profana e à entrega a uma poesia de teor religioso
e sagrado. Este repúdio à poesia profana e sua consequente exaltação à poesia de
teor religioso é constituído pela tentativa de cristianização das musas. Em vez de
rejeitarem os elementos da mitologia greco-latina os poetas esforçam-se em dar-lhes
uma feição cristã. O desengano é uma atitude espiritual de lucidez, de prudência e
de contrição, que implica no desprezo pelas coisas do mundo e na busca de Deus.
35
4.1 O legado teatral de Luis de Camões
A aventura teatral de Luís de Camões limita-se a sua juventude, ao período
em que o autor esteve na Universidade de Coimbra, o que não é de todo certo, visto
que seus biógrafos não chegam a uma conclusão definitiva a respeito desse dado
biográfico do maior poeta português.
Sabe-se de sua biografia que, muito provavelmente, teria nascido em 1524
em Lisboa e que era filho de Simão Vaz de Camões e de Ana de Sá e Macedo. O
primeiro período de sua vida intelectual aconteceu em Coimbra, onde teria
frequentado o Colégio das Artes, adquirindo aí a maior parte de seus conhecimentos
humanísticos e tendo recebido forte influência dos estudos clássicos. Em 1542
regressa a Lisboa onde passa a frequentar a Corte onde trava laços de amizade
com o Conde de Linhares. Em 1546 foi afastado do Paço por causa de uma de suas
comédias. Um ano mais tarde parte para Ceuta onde, como soldado, perde o olho
direito. Regressa a Lisboa em 1549, no ano seguinte se alista na armada e parte
rumo a Goaxli. Seguiu em expedições rumo ao Golfo Pérsico, Meca e Macauxlii. Em
1559, em Macau, exerceu o cargo de provedor-mor dos defuntos e ausentes. No
entanto, foi acusado de irregularidades administrativas, tendo sido preso e
reconduzido a Goa nesse mesmo ano. No regresso naufragou na costa do Camboja,
conseguindo, ainda assim, chegar a Goa, onde foi perdoado pelo Conde de
Redondo. No regresso a Portugal, em 1567 demora-se em Moçambique,
provavelmente, por encontrar-se em precárias condições financeiras e de saúde.
Não se sabe ao certo quando finalmente chegou a Portugal, mas sabe-se que em
1570 já havia regressado a Lisboa e que em 1571, graças a um alvará concedido
por D. Sebastião, é permitida a publicação da primeira edição de “Os Lusíadasxliii”,
publicada no ano seguinte.
Apesar da recompensa régia oferecida durante os dois anos seguintes à
publicação, e do prestígio alcançado em vida como poeta, Camões morre na miséria
em 10 de junho de 1580, tendo visto publicada apenas uma obra.
Escritas para o teatro foram apenas três as obras que Camões nos legou: A
Comédia dos Amphitriões, El-Rei Seleucoxliv e Filodemoxlv. A primeira e a última
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dessas comédias foram publicadas sete anos depois de sua morte; a segunda, El-
Rei Seleuco, muitos anos mais tarde.
Julga-se comumente que a Comédia dos Amphitriões foi composta em
Coimbra, nos últimos anos em que Camões lá esteve. Representada por estudantes,
seguindo uma tradição nas universidades de recriar histórias da tradição greco-
romana e encená-las, Camões tomou, nesta obra, o mesmo assunto do Amphytruo,
de Plauto. Trata-se da composição amorosa de Júpiter com Alcmena, virtuosa
mulher de Anfitrião, um valoroso general tebano. Anfitrião era marido de Alcmena, e
enquanto Anfitrião está na guerra de Tebas, Júpiter toma a sua forma para deitar-se
com Alcmena. Mercúrio toma a forma de seu escravo, Sósia, para montar guarda no
portão. Em seu regresso da guerra, uma grande confusão se cria, pois Anfitrião
duvida da fidelidade da esposa. No fim, tudo é esclarecido pelo próprio Júpiter, e
Anfitrião fica contente por ser marido de uma escolhida do deus. Daquela noite de
amor nasce o semideus Hércules. A partir daí, o termo “anfitrião” passou a ter o
sentido de "aquele que recebe em casa", e o mesmo ocorreu com sósia, que se
tornou sinônimo de "cópia humana".
Finalmente, ao escrever sobre a Comédia dos Amphitriões, em sua obra –
Camões, época, vida e obra – Teófilo Braga afirma que:
Desde que começa a renascença os temas do teatro clássico tornam-se os divertimentos dos estudantes, favorecidos pelos regulamentos pedagógicos [...]. Na trasladação da Universidade de Lisboa para Coimbra, D. João III mandava seguir nos cursos o que era costume nas cátedras da Universidade de Salamanca [...]. (SILVA, 1952)
Muitos catedráticos contratados trouxeram as práticas tradicionais de
Salamanca, como o hábito de falar latim, os banquetes dos graus e os espetáculos
teatrais. É sabido também que Plauto era recomendado para as récitas estudantis.
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4.1.1 A Comédia dos Amphitriões, entre o Renascimento e o Maneirismo
Segundo Teófilo Braga, a Comédia dos Amphitriões foi escrita por volta de
1543. Em suas comédias, Camões faz uso das estruturas paradigmáticas da cultura
greco-romana, estruturas importadas da Universidade de Salamanca para a
Universidade de Coimbra, pelo Rei D. João III. Filósofos professores e estudantes se
empenhavam em imitar a arte clássica greco-romana. Pode-se, mesmo, afirmar que
o teatro português nasce sob a égide desses princípios tipicamente renascentistas
nas obras de Gil Vicente, na arte da comédia, e de Antônio Ferreiraxlvi, na arte da
tragédia. Tragédia essa, que exalta o espírito da saudade e da contradição dos
sentimentos humanos, algo que parece natural ao povo lusitano, mas que é, tão
somente, uma construção histórico-sociológica, que se funda entre os séculos XV e
XVI.
A tragédia portuguesa que enfoca o trágico amor de D. Pedro e Inês de
Castro é criada nos mais puros cânones da tragédia clássica, com uma estrutura
dramática em que as questões de Estado se sobrepõem às questões do indivíduo,
com o amor sendo à base do conflito cênico.
Se Antônio Ferreira é o marco inaugural da tragédia portuguesa, no mesmo
período, Gil Vicente pende para a comédia e, ao associar elementos da cultura
greco-romana com as estruturas dramáticas medievais, começa a modificar o perfil
do teatro lusitano lançando as bases de uma comédia de costumes, pautada na
crítica aos tipos mais representativos da sociedade de seu tempo. A crítica vicentina
lança um olhar ferino sobre os defeitos dos homens de sua época. Contudo, essa
mesma crítica, torna-se perigosa e indesejável a partir 1536, quando a Inquisição se
instala em território português.
Segundo Clara Rocha, na introdução à Comédia dos Amphitriões:
A Inquisição, instalada em 1536 tolhe a liberdade criadora e obriga a sátira social a ser cautelosa. [...] A crítica de costumes cede lugar à comédia de importação italiana, assim como a reposição dos temas clássicos e a progressiva individualização das personagens cômicas, que deixam de ser tipos sociais, para constituírem figuras singulares (CAMÕES, 1981, p. 14).
Nesse momento histórico Camões escreve suas primeiras obras, suas
comédias – sendo a primeira justamente a Comédia dos Amphitriões. As fontes
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primárias de sua produção literária, muito provavelmente foram as obras clássicas
greco-romanas. Foi certamente perseguindo tal roteiro de estudos que Camões
chegou à comédia romana de Plauto. Seguindo uma prática renascentista de copiar
os modelos clássicos e imitar os paradigmas artísticos da antiguidade, Camões
recria a partir do original plautino o mito grego de nascimento do semideus Hércules.
Além da recriação plautina, em Camões pode-se verificar certa influência do teatro
vicentino, mas, sobretudo já se pode perceber uma presença da estética maneirista
que tanto vai influenciar sua obra posterior.
Em sua versão do Amphytruo, Camões manteve os principais personagens,
em torno dos quais girava a trama criada por Plauto, acrescentando-lhes, no
entanto, novos elementos que dão novas cores, e matizes à suas personalidades. A
tabela abaixo mostra a equivalência dos personagens do Amphytruo em relação à
recriação camoniana:
Amphytruo, de Plauto
PERSONAGENS
Comédia dos
Amphitriões, Camões
PERSONAGENS
Anfitrião Amphitrião
Alcmena Alcmena
X Callisto
X X
X Feliseo
Sósia Sosea
Brômia Bromia
Tessala X
X X
Blefarão Belferrão
X Aurélio
X Um Moço de Aurélio
Júpiter Júpiter
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Mercúrio Mercúrio
Camões acrescenta, em relação a Plauto, quatro personagens, Callisto,
Feliseo, Aurélio e Um moço de Aurélio. É justamente na fala de Callisto, um dos
personagens inexistentes na comédia de Plauto, que Camões se permite fazer
uma citação à Petrarca. Como se pode ver na fala abaixo:
CALLISTO Pois não vos entendeo. Ora eu já cheguei a ler Petrarca, e crede de mi Que nunca tal cousa vi. Onde mora o bom saber,
Logo dá sinal de si. (ATO I – CENA VI)
A comicidade da Comédia dos Amphitriões é elaborada muito
pormenorizadamente em termos de linguagem, com liberdades culturais como, por
exemplo: criar jogos dialéticos, discutir a razão ou a lógica do amor, ou mesmo, fazer
alusão a grandes poetas como Petrarca. A Comédia dos Amphitriões não direciona
sua comicidade no sentido do riso rasgado e franco do povo, mas procura despertar
o riso sutil e leve da corte, além do que ao tentar se valer dos elementos
constitutivos de sua contemporaneidade, Camões acaba transformando as falas de
algumas personagens em poesia repleta de melancolia, o que a princípio não
combinaria com uma comédia.
Logo na cena inicial do primeiro ato, um monólogo de Alcmena, mulher de
Anfitrião e alvo do amor desenfreado de Júpiter, pode-se verificar a ideia de
desconcerto do mundo e de engano e desengano. Verifica-se a dor do desencontro,
expressa, entre outros, pelo sofrimento da saudade. Como é possível verificar no
trecho a seguir:
ALCMENA Ah senhor Amphitrião,
Onde está todo meu bem, Pois meus olhos vos não vem,
Fallarei co’o coração, Que dentro n’alma vos tem.
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Ausentes duas vontades, Qual corre móres perigos,
Qual sofre mais crueldades, Se vós entre os inimigos, Se eu entre as saudades?
Que a ventura, que vos traz Tão longe de vossa terra, Tantos desconcertos faz,
Que se vos levou á guerra, Não me quis deixar em paz.
(ATO I – CENA I)
Na cena II, do primeiro ato, há um trecho em que a criada de Alcmena,
Brômia faz uma fusão entre os ideais clássicos de perfeição cavalheiresca ao
comparar o homem aos deuses e heróis greco-romanos e, um sentimento saudoso
de um tempo passado em que a ama, Alcmena, era feliz e sorridente, denotando um
desejo de fuga do tempo presente, outra característica maneirista, já presente na
obra de Camões.
BRÔMIA Saudades de minha ama,
Chorinhos e devações, Sacrifícios e orações,
Me hão de lançar n’hua cama, Certamente.
Nós, mulheres, de semente Somos sedenho mui tosco:
Com qualquer vento que vente, Queremos orçadamente
Que os deoses vivam comnosco. [...] (ATO I – CENA II)
Ainda no primeiro ato, entra Júpiter em cena, na quinta cena, a fim de tramar
com Mercúrio um jeito de encontrar-se com Alcmena e seduzi-la. O que denota a
escolha estética do autor é fazer um deus se deixar abater de um Amor desenfreado
por uma mortal. É certo que se trata de uma mortal de beleza única seguindo o
padrão de beleza feminina postulado por Petrarca. Alcmena é de uma beleza quase
divina.
JÚPITER
Oh grande e alto destino Oh potencia tão profana Que a setta d’um menino Faça que meu ser divino
Se perca por cousa humana! Que me aproveitam os ceos,
41
Onde minha essencia mora Com tanto poder, se agora A quem me adora por deos, Sirvo eu como a senhora? Oh quão estranha affeição!
Quem em baixa cousa vai pôr A vontade e o coração, Sabe tão pouco d’amor,
Quão pouco amor de razão. Contra mulher tão terribil, Que se não pode vencer?
(ATO I – CENA V)
O próprio deus é refém de Amor. E, curiosamente, a inversão da lógica, pois
o lógico seria a devoção do humano para o divino e não seu contrário torna a obra
um eficiente exemplo do quão maneirista já é a visão de mundo do autor e de sua
época. A dor do deus Júpiter expressa a dor da impotência diante de tal beleza e de
tamanha virtude:
JÚPITER
Quem arde em tamanho fogo Tira-lhe a virtude a cor De subtil e sabedor;
E quem fóra está do fogo Enxerga o lanço melhor.
Mas tu, que dos sabedores, Tanto avante sempre estás, Se deos és dos mercadores,
Sê-lo-has dos amadores, Pois tal remédio me dás. Ponha-se logo em effeito,
Que não sofre dilação Quem o fogo tem no peito;
E tu vai logo direito Aonde anda Amphitrião.
(ATO I – CENA V)
Ainda há Callisto que se lamenta por uma ótica maneirista, no final do ato.
CALLISTO
Onde Amor lançar o sello, Nenhuma cousa o desterra.
Porque inda que o pensamento Vos fique, Senhor, em calma,
Por morte ou apartamento, Sempre vos lá ficam n’alma
As pegadas do tormento. (ATO I – CENA IV)
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Nas comédias de Camões a língua castelhana está presente na boca de
determinados personagens com a intenção de conseguir contraste e variedade;
assim, na Comédia dos Amphitriões o personagem Sosea fala sempre em
castelhano, ao passo que Mercúrio, seu duplo, fala sempre em português, a exceção
de quando tem que se fazer passar por Sosea com o objetivo de tornar a situação
em si o mais cômica possível. O bilingüismo no teatro de Camões tem esse objetivo:
dar variedade ao diálogo e criar situações que provoquem o riso. Como se pode ver
na cena IV, do segundo ato:
SOSEA
Amphitrion esforzado, Bravo vá por la batalla, Siete cabezas llevava,
De lãs mejores que há hallado. [...]
Que tal tiempo se aprovecha. Que quien há de pelear,
Ha de buscar tiempo y hora. Pero quiero caminar,
Que me muero por contar Todo aquesto á mi señora.
(ATO II – CENA V)
Nesse mesmo segundo ato, Júpiter reaparece firmemente empenhado em
seduzir Alcmena. Nesse ponto a trama da peça chega a um estado em que a paixão
humana é levada às últimas consequências contraditoriamente, nos atos de um
deus. Há uma clara perspectiva maneirista de mundo e mesmo uma antecipação ao
romantismo dos fins do século XVIII e do século XIX. Dentro dessa perspectiva
estavam todos, inclusive os deuses. O poeta, ao enfatizar o lado humano,
contraditório e frágil, do deus, evoca definitivamente o maneirismo. Chega a clamar
a Phebo – o deus Sol – que se demore um pouco mais a passar para que aquela
noite custe a acabar. Retomando aí, uma idealização renascentista de ordenação de
mundo em equilíbrio no qual somente os deuses seriam capazes de alterar sua
ordem.
JÚPITER
Pois tudo tens ordenado Por tão nova e subtil arte, Como me vires entrado,
Irás dar este recado A Phebo de minha parte: Que faça mais devagar
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Seu curso neste hemisphério, Que o que soe acostumar;
Que esta noite hei de ordenar Hum caso de alto mysterio.
E a Esphera mais alta Mandarás que fixa esteja, Porque a noite maior seja;
Porque sempre o tempo falta, Onde a alegria he sobeja.
E terás tamanho tento, Que, como isto se ordenar,
Venhas aqui vigiar, Porque meu contentamento Ninguém mo possa estorvar.
(ATO II – CENA I)
Ao ver Alcmena, Júpiter perde a razão e o desejo de tê-la em seus braços,
se torna sua única razão. E o desejo é um sentimento baixo, herético, que leva ao
pecado, mas Júpiter não resiste e sucumbe ao pecado da carne. Apresenta-se a
Alcmena como sendo seu marido, Amphitrião, ambos tem sua noite de amor e
Alcmena engravida de um filho do deus Júpiter, que virá a ser Hércules. Se, por um
lado o amor se consuma entre os protagonistas, amor este, que consumado levará a
honraria do nascimento de um semideus, por outro lado, também levará ao
sofrimento de um homem e de uma mulher.
Todos os quiproquós que redundam no humor estão nos equívocos
provocados pela confusão que os outros criados fazem ao verem Mercúrio
disfarçado de Sosea. O humor provocado pela “inversão” dos personagens, ou seja,
quando um se passa pelo outro, vai ser capaz de gerar os processos de comicidade
definidos por Bergson. Quando esse tipo de situação ocorre, surge imediatamente, a
“repetição”, na medida em que os acontecimentos acabam por se repetir, já que
sempre será preciso passar a informação duas vezes. Muito provavelmente a ordem
natural dos acontecimentos se interrompe porque o falso tomado pelo verdadeiro
não repassa a informação e o verdadeiro, quando, enfim, surge é cobrado por algo
que sequer sabe do que se trata. A segunda cena, idêntica à primeira, com a
diferença de que o personagem inserido nela é outro, soa sempre algo teatral,
remetendo a “comicidade de situação”. Ao solicitar ao verdadeiro personagem algo
que fora solicitado sem que ele tenha ciência, aquilo soa como algo absurdo, - sem
pé, nem cabeça -, remetendo à “comicidade de palavra”, e sabendo o público ser
aquela uma estratégia para fazer rir, não há apiedamento para como o personagem
que sofre. Um sofrimento, aliás, risível porque confuso.
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Na cena I, do terceiro ato Júpiter dá a desculpa de verificar o estado das
tropas, prepara o retorno de Anfitrião, o verdadeiro marido, e sai de cena. Na cena
seguinte, chega Anfitrião na expectativa de encontrar uma Alcmena saudosa e
apaixonada, mas ao invés disso, tem uma recepção fria, deixando uma margem de
dúvida sobre a fidelidade de sua mulher, ou mesmo se havia enlouquecido como se
pode verificar na cena IV, onde ocorre também uma retórica reflexiva, mais uma vez
característica da arte maneirista:
AMPHITRIÃO
Com que palavras, Senhora, Poderei engrandecer
Tão sublimado prazer, Como he ver chegada a hora
Em que vos pudesse ver? Certo gran contentamento Tive de meu vencimento; Mas maior o hei de mim, De me ver posto na fim
De tão longo apartamento.
ALCMENA Já eu disse o que sentia De vinda tão desejada. Mas diga-me todavia:
Como não foi ver a Armada, Que me disse hoje este dia?
AMPHITRIÃO
Della venho eu inda agora Desejoso de vos ver,
Muito mais que de vencer. Mas que me dizeis, senhora, Que hoje me ouvistes dizer?
ALCMENA
Se não estava remota, Certamente que lhe ouvi, Quando hoje partio daqui, Que tornara a ver a frota, Porque era forçado assi.
[...]
AMPHITRIÃO Quem he esse, que vos deu Taes novas, saber queria?
ALCMENA
Quem mo pergunta.
AMPHITRIÃO Quem? Eu?
Quereis-me fazer sandeu?
ALCMENA
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Mas vós me fazeis sandia.
AMPHITRIÃO Ora quero perguntar:
Que fiz sendo aqui chegado?
ALCMENA Pusemos-no a cear.
AMPHITRIÃO
E despois de ter ceado?
ALCMENA Fomo-nos ambos deitar.
AMPHITRIÃO
Nunca queira Deos que possa Achar-se na minha honra
Nenhuma falta nem mossa: Seja isto doudice vossa,
Antes que minha deshonra. (ATO III – CENA IV)
Logo na primeira cena do quarto ato, à qual, estão presentes Júpiter,
Alcmena e Sosea, o deus Júpiter se mostra arrependido de ter provocado a
infelicidade de um casal verdadeiramente e humanamente apaixonado e, ao mesmo
tempo, desejoso por ver a Alcmena uma vez mais:
JÚPITER:
Grão desconcerto tem feito Amphitrião com Alcmena!
Qualquer delles tem direito: Eu sou o que venço o preito,
E ambos pagam a pena. Quero-me ir lá desfazer
Tão trabalhosa demanda, Por nos tornarmos a ver;
Porque, enfim, quem muito quer Com qualquer desculpa abranda.
E pois já que a affeição Há de mudar tão asinha, Quero ir alcançar perdão
Da culpa, que sendo minha, Parece de Amphitrião.
(ATO IV – CENA I)
Júpiter declara todo seu amor por Alcmena. Está claramente presente, a
ideia de um desconcerto de mundo, de um mundo com ideias fora de lugar, na
medida em que um deus e uma mortal sequer poderiam se tocar, quanto mais
compartilhar o amor. Júpiter desce novamente ao plano terreno e pede perdão a
Alcmena, o que não acontece no original plautino. Além do que, formalmente se
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repetem elementos tipicamente maneiristas como o artifício da reiteração, da
antítese, etc.
JÚPITER
Errei no que commetti: Bem me basta a penitência De quanto me arrependi.
E se fiz algum error, Com que vosso amor se mude
De quem vo-lo tem maior, Não experimentei virtude, Mas experimentei amor.
Que se com caso tão vário Folguei de vos agastar, Foi amor acrescentar,
Porque ás vezes hum contrário Faz seu contrário avisar. Daqui vem a leve mágoa
Firmeza e affeições augmenta, Como bem se vê na frágoa, Onde o fogo se accrescenta,
Borrifando-o com pouca agoa. Se hum mal muito grande se alevanta
N’hum coração que maltrata, A affeição desbarata,
Porque onde a agua he tanta O fogo d’amor se mata. E pois tive tal tenção,
Perdoai, Senhora, a culpa Deste vosso coração.
(ATO IV – CENA I)
Apesar de intencionalmente tratar-se de uma comédia, o fato é que a
grandiosidade da poesia de Camões acaba sendo um empecilho para a fruição da
comicidade na peça. Anfitrião, já quase no final da comédia, na cena V, do quinto
ato, sozinho, se mostra extremamente infeliz, numa cena que, a se fiar apenas no
texto, não tem nada cômica. Como se pode verificar no seguinte trecho:
AMPHITRIÃO
Se ver deshonra tão clara Me não tivera sentido
Totalmente endoudecido, Que gravemente chorara
Ver tão grande amor perdido! E quando vejo a verdade Do nosso amor e amizade Desfeita com tanta mágoa,
Enchem-se-me os olhos d’agoa, E a alma de saudade.
Assi que minha estrella Para nunca ser contente,
Que agora, estando presente,
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Viva mais saudoso della Que quando della era ausente.
[...] (ATO V - CENA V)
No fim do quinto ato Júpiter impõe a Amphitrião que seja feliz com Alcmena e
que ambos sejam responsáveis pela honraria de criar o filho de um deus que será
chamado de Hércules e será o ser humano mais valente e esforçado que o mundo
terá notícia.
JÚPITER
Amphitrião, que em teus dias Vês tamanhas estranhezas,
Não te espantem phantasias, Que às vezes grandes tristezas
Parem grandes alegrias. Júpiter são manifesto
Nas obras de admiração, Que por mi causadas são:
Quis-me vestir em teu gesto, Por honrar tua geração.
Tua mulher parirá Hum filho de mi gerado,
Que Hércules se chamará, O mais valente e esforçado, Que no Mundo se achará, Com este, teus sucessores Se honrarão de serem teus, E dar-lhes-ão os Escriptores,
Por doze trabalhos seus, Doze milhões de louvores.
E dessa illustre fadiga Colherás mui rico fruito:
Emfim, a razão me obriga Que tão pouco delle diga,
Porque o tempo dirá muito. (ATO V - CENA VI)
Se pensarmos na ideia de que o discurso não dá conta do sentimento
porque ele não é real, e sim idealizado, tanto para Anfitrião, quanto para Júpiter a
experiência trás a impossibilidade da felicidade. A traição de Alcmena, ainda que
involuntária, ecoará para sempre na cabeça de Anfitrião, assim como para Júpiter o
fim dessa jornada é um deus eternamente arrependido por tal inconsequência,
apesar da importância de gerar Hércules, o que justifica o ato de desvario, mas
prova não existir uma lógica racional para o amor.
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5 ANFITRIÃO, UMA PEÇA BARROCA: A “ÓPERA” DE ANTÔNIO JOSÉ DA SILVA
As obras de Antônio José da Silva são mais conhecidas como “óperas”, em
razão de serem comédias musicadas, mas que, enquanto dramaturgia, possui uma
autonomia que sobrevive sem a música original. O fato de serem óperas também
serve para inserir a obra do autor num certo universo barroco, visto que a ópera é a
forma-símbolo de arte cênica, intimamente ligada em suas origens e bases
conceituais, ao período barroco. As obras barrocas forneceram certo número de
antíteses que constituem polos extremos da mentalidade barroca, como a
solenidade majestosa e o naturalismo brutal, como o artifício sutil e a visão mística
do mundo.
Nas obras de literatura, o elemento intelectual e racional entra com força muito maior do que nas obras de arquitetura ou pintura. O meio político, social, religioso, filosófico e as opiniões políticas, religiosas, filosóficas dos autores manifestam-se com evidência maior numa peça dramática ou num romance do que num edifício ou quadro, porque o instrumento da literatura – a língua – é ao mesmo tempo o instrumento da expressão da política, da religião e das ciências. (CARPEAUX, O barroco e o classicismo por Carpeaux, 2012, p.28)
Carpeaux define o estilo barroco como um estilo internacional que a Europa
inteira teria adotado, e, apesar de a Espanha, já naquele tempo não ser mais capaz
de impor um estilo, este se internacionalizou. A Europa teria aceitado o barroco
porque “o barroco é a expressão de uma situação espiritual e social, mais ou menos
idêntica em toda parte.” (CARPEAUX, O barroco e o classicismo por Carpeaux 2012,
51). Carpeaux complementa sua argumentação dizendo que o teatro está no centro
da civilização barroca, da época de Shakespeare, Calderón e Racine.
Para o teatro convergem todos os desejos de ostentação suntuosa, de transfiguração da realidade em ilusão, de construção de um mundo da arte, fora do mundo material. (CARPEAUX, O barroco e o classicismo por Carpeaux, 2012, p. 53)
Nesse mesmo teatro barroco o palco representa o universo inteiro e a
ideologia que o inspira é baseada na ideia de que o mundo é ilusão e engano, e, de
que “a vida é sonho”.
49
A obra de Antônio José da Silva situa-se bem no fim desse período, já no
início do século XVIII, sob a luz crítica do neoclassicismoxlvii impondo-se sobre o
barroco. Antônio José participa do jogo dramático barroco, com sua multiplicação de
situações dramáticas, que parecem nunca acabar, e, ao mesmo tempo critica os
excessos da linguagem em diversos momentos de sua obra.
Sua obra é composta por oito comédias e dois poemas, havendo ainda dois
outros textos de autoria duvidosa, mas que lhe são atribuídos. Apesar de se tratar de
um teatro escrito para bonecos, talvez, até por isso, seu teatro siga um caminho de
fornecer uma complexidade cenográfica complexa e ilusória, inexistente em outras
versões do Anfitrião, sobretudo as anteriores. O autor se vale das questões políticas
e sociais de sua época, até mesmo de sua condição de Judeu, condenado por
judaísmo ao desenvolver seus diálogos.
Sua dramaturgia completa foi reunida e publicada pela primeira vez, em
1744, cinco anos após sua morte, com o título de: Teatro Cômico Português. Foi
organizada de acordo com a ordem cronológica de subida ao palco nos cinco anos
consecutivos em que o autor escreveu e encenou seus textos.
O público que assistia ao seu teatro passou a identificá-lo como “O judeu”
após a sua condenação pelo tribunal do Santo Ofício da Inquisição por reincidir na fé
judaica, tendo sido ele executado em Lisboa, aos 34 anos, a 18 de outubro de 1739.
As oito óperas do judeu denominadas por ele mesmo de “joco-sérias”, por
lembrarem os recursos híbridos da tragicomédia, mas não a tragicomédia, como na
definição de Plauto, que a define simplesmente pela existência de personagens
pertencentes às mais altas castas e personagens populares. No caso de Antônio
José da Silva, o tragicômico se aproxima dos três critérios do tragicômico
(personagem, ação e estilo), ou seja, personagens pertencentes às classes
populares e aristocráticas, apagando assim a fronteira entre a tragédia e a comédia.
Uma ação séria e até mesmo dramática que não desemboca numa catástrofe, sem
que o herói pereça. E uma linguagem realçada e enfática da tragédia e níveis de
linguagem cotidiana ou vulgar da comédia.
Suas peças são fundamentadas nas características estruturais da
tragicomédia, e, assim sendo, o autor pode ser associado a uma longa corrente de
ópera cômica popular que germinara na Europa segundo o espírito de resgate das
raízes nacionais. Como exemplo, podemos citar a Zarzuela espanhola de Pedro
50
Calderón de La Barca (1600-1681), que escreveu a primeira peça desse gênero, El
jardim de Falerina, de 1648, com música de Juan Risco; ou a Ballad-ópera inglesa,
cujo representante mais famoso é The Beggar’s Opera de John Gay; ou o Singspiel,
opereta melodramática germânica, que produziu a pantomima Die Zauberflöte, de
Mozart; o vaudeville, um tipo de ópera cômica francesa satírica e maliciosa; a ópera
buffa italiana, criada por Alessandro Scarlatti, com a subida à cena em 1718, de II
Trionfo dell’onore, em que se tem a presença determinante do bufo – criado jocoso,
equivalente ao gracioso hispano-português – que se prolongou até o final do século
XVIII, renovando-se no teatro de Carlo Goldoni.
Suas peças eram apresentadas no teatro público do Bairro Alto de Lisboa, e,
entre 1733 e 1738 foram representados por bonifratesxlviii.
São elas:
- A Vida do Grande D. Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança, em duas partes, de 1733; - Esopaida ou a Vida de Esopo, em duas partes, de 1734; - Encantos de Medeia, em duas partes, de 1735; - Anfitrião ou Júpiter e Alcmena, em duas partes, de 1736; - Labirinto de Creta, em duas partes, de 1736; - Guerras do Alecrim e Manjerona, em duas partes, de 1737; - Variedades de Proteu, em três atos, de 1737; e, - Precipício de Faefonte, em três atos, de 1738.
Sendo todas divididas em duas partes, uma divisão incomum, a exceção das
duas últimas, divididas em três atos, forma que se imporia no período neoclássico e
serviria de modelo paradigmático para o teatro até o realismo, assim como o fora a
divisão em cinco atos na antiguidade clássica até Shakespeare.
O seu teatro, como possui partes musicadas, formadas por árias, duetos e
coros que se intercalam com as falas das personagens no transcorrer das cenas, foi
denominado de “ópera”, o que gerou incertezas por não se saber quem era o autor
das músicas para as comédias. No entanto, ao ler com atenção o prólogo Ao Leitor
Desapaixonado, que antecede a primeira edição das comédias de Antônio José da
Silva, se percebe que na encenação das peças participavam o próprio autor do
texto, um músico e um cenógrafo, três elementos distintos que compunham seu
teatro musicado.
51
Contido falo, leitor desapaixonado, que, se o não és, não falo contigo, pois nem quero adulação dos amigos, porque o são, nem é justo que os que o não são queiram ser árbitros para sentenciarem estas obras no tribunal da sua crítica. Não há melhor ouvinte que um desapaixonado, sem afeto ao autor da obra, sem inclinação ao da música, sem conhecimento do arquiteto da pintura. (SILVA, 2004)
Quando, em 1733, subia à cena, no teatro do Bairro Alto de Lisboa, sua
primeira ópera, A Vida do Grande D. Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho
Pança, Antônio José quebrava uma tradição de mais de dois séculos, em que o
teatro em língua portuguesa fora basicamente escrito em verso sem conter partes
em prosa e, sobretudo, sem utilizar a música como parte de sua estrutura. Assim,
nascia a primeira ópera cantada em língua portuguesa e representada por
bonifrates.
Como seu teatro tinha como intérpretes bonifrates, lhe foi permitido utilizar
uma cenografia que não teve limite para a inventividade.
O exame dos títulos das óperas escritas por Antônio José da Silva revela
que, exceção feita a Guerras do Alecrim e Mangeronaxlix, cujo tema foi baseado na
realidade setentista portuguesa, todos os outros títulos remetem a fontes mitológicas
ou literárias. Fica evidenciado, portanto que suas “óperas“ dialogam com
paradigmas literários ou mitológicos.
52
5.1 Anfitrião, ou Júpiter e Alcmena, em relação ao paradigma Plautino e ao paradigma Camoniano
O cotejo de Anfitrião ou Júpiter e Alcmena, em relação ao paradigma
primordial, de Plauto, mostra que a intriga, oriunda da mitologia, é comum a ambas,
trata-se do triângulo amoroso Júpiter/Alcmena/Anfitrião, resultante de uma das
aventuras adulterinas do soberano dos deuses; fábula que se cristalizou
literariamente graças à estilização do “mito canônico” estabelecido por Plauto.
O episódio da chegada de Sósia ou Saramago, com o intuito de informar
Alcmena acerca do regresso de Anfitrião, encontrando um Mercúrio, transfigurado
no criado de Anfitrião, é essencialmente o mesmo nas duas peças, e muito similar
na peça de Camões também. O diálogo travado entre Júpiter, disfarçado de
Anfitrião, e Alcmena, acerca da necessidade de retornar ao porto para entrar
triunfante em Tebas, está presente tanto em Camões, quanto em Antônio José da
Silva.
O relato de Sósia/Saramago ao Amo, narrando o ocorrido diante de sua
casa, bem como o fato de o general tebano ir tirar a limpo o que o criado insiste em
afirmar, é comum a ambos. Da mesma forma, o tratamento cheio de surpresa,
dispensado por Alcmena ao verdadeiro e recém-chegado marido, que lhe traz, com
o relato da vitória sobre os inimigos, um presente, não é fundamentalmente distinto.
A cena em que Alcmena, mostrando-se confusa diante da situação em que foi
colocada, acaba por perdoar o marido fingido é igualmente similar nas peças
consideradas. Cenas cuja similitude com o paradigma primordial plautino é patente.
Contudo, outras cenas existem na ópera de Antônio José, tomadas ora de um ora de
outro paradigma.
O diálogo de Alcmena e Cornucópia (Parte 1, cena 1, primeiro e terceiro
quadros) em torno da saudade que a Ama sente do marido é inspirado na (cena 1
do primeiro ato) comédia camoniana, embora Antônio José lhe ponha a comicidade
proveniente da caracterização de uma Cornucópia graciosal, que inverte o discurso
elevado de Alcmena. Esta mesma cena capacita-nos a perceber o lirismo que
domina as Alcmenas portuguesas, tornando-as discretas, chorosas e
53
melodramáticas. Parece-nos, portanto, que a construção da personagem Alcmena
nas peças portuguesas tem um caráter arquetipicamente luso.
O Júpiter desenhado por Antônio José da Silva reveste-se igualmente desse
lirismo, que o torna um amante “discreto e palavroso, atingido fatalmente pela seta
do cupido”. No terceiro quadro da ópera de Antônio José, Cornucópia traz a notícia
da chegada de Anfitrião/Júpiter e Saramago/Mercúrio. A fórmula aí utilizada pela
criada é a mesma que a Brômia camoniana emprega. Antônio José tomou para si a
formula de Camões, acrescentando-lhe, entretanto, a brincadeira verbal, cuja
sonoridade advinda da repetição do vocábulo, provavelmente agradava ao
espectador.
CORNUCÓPIA - Alvíssaras; Alvíssaras! ALCMENA - Que é isso, Cornucópia? CORNUCÓPIA - Que há de ser, Senhora? Ai, Senhora! Alvíssaras! ALCMENA - Alvíssaras de que? CORNUCÓPIA - Sabe que mais? ALCMENA - O quê? CORNUCÓPIA - Pois saiba que... Ai, Senhora, alvíssaras, que aí vem meu marido. Saramago! ALCMENA - Há maior loucura! Estas alvíssaras pede-as a ti mesma. CORNUCÓPIA - Não, senhora, que com ele vem o Senhor Anfitrião. (A. J. SILVA, 2004, p. 104-105)
O epílogo de Anfitrião ou Júpiter e Alcmena explicita uma vez mais, a voz do
paradigma camoniano: enquanto a comédia latina encena o nascimento de duas
crianças, uma, filha de Júpiter, e outra, filha de Anfitrião, as peças portuguesas
trazem apenas a anunciação do nascimento de Hércules, havendo uma possível
analogia entre Alcmena e Maria, porquanto ambas foram fecundadas por um deus
onipotente e geram salvadores. Parece, pois, que os dois autores portugueses se
mostram, neste ponto, influenciados pela ideologia cristã que, em Portugal, vinca a
produção artística barroca e neoclássica a um período em que o exercício da
imitação dos modelos pagãos, greco-latinos, não chega a sufocar ou enfraquecer a
índole católica do povo lusitano. Além desse elemento cristão, de certo modo,
relevante para a cultura portuguesa, ambos os autores se mantém fieis na
54
preocupação de manter uma lógica temporal do discurso, o que não acontece em
Plauto, que chega mesmo a antecipar a existência de Hércules já pensado, e,
citado, como um deus, logo no começo do 2° ATO.
ANFITRIÃO – O quê? Como é isso? O que eu vou fazer-te, por Hércules, meu safado, é cortar-lhe essa língua safada. (PLAUTO, 1952, p. 25)
Há, porém, no nível do enredo, um motivo que torna a ópera do judeu
original frente a qualquer um de seus paradigmas. Através da inclusão de três
personagens, - Juno, Tirésias e Íris -, Antônio José da Silva encontra o caminho para
uma recriação estilizadora. A ação da ópera, nesse aspecto, distingue-se dos
modelos, seguindo um rumo de curioso ineditismo. A deusa Juno deixa o monte
Olimpo para, na terra, vingar-se do amor adulterino vivido pelo marido, Júpiter com a
formosa Alcmena. Se este motivo é totalmente original em relação aos paradigmas,
não o é se tomarmos o modelo mitológico no qual Juno é caracterizada como uma
deusa extremamente ciumenta que se vinga de quantas mulheres se interponham
entre ela e o marido.
O comediógrafo traz ainda as figuras mitológicas de Tirésias e Íris, fazendo-
os desempenhar a função de agentes da deusa Juno em prol de sua vingança.
Tirésias é um adivinho cego, conhecido pela sapiência de suas profecias e que está
presente em muitas histórias da mitologia grega. Nesta história, o velho sábio cego
transforma-se num ministro tebano “cego de amor” por Juno, que, por sua vez se
traveste em Flérida para vir a Terra e realizar pessoalmente sua vingança contra a
traição de Júpiter.
O duplo da situação entre os criados ocorre ao acrescentar-se o papel
desempenhado pela deusa da Íris, deusa da concórdia, que, com o intuito de
socorrer a deusa do Olimpo, insinua-se para Saramagoli, provocando a discórdia
conjugal do par gracioso. O “desdobramento” desse triângulo amoroso, ou a
multiplicidade de triângulos amorosos, sendo, um triângulo elevado:
Júpiter/Alcmena/Anfitrião; e, um duplo triângulo amoroso plebeu envolvendo
Mercúrio/Cornucópia/Saramago e outro envolvendo Cornucópia/Saramago/Íris.
Na segunda parte da peça Antônio José se afasta mais marcantemente de
seus paradigmas (Plauto, Camões e Molière), uma vez que encena os ardis que
Juno trama em função de sua vingança: Tirésias condena à prisão e ao sacrifício,
55
Anfitrião, Alcmena e Saramago. O general tebano é condenado por afirmar não ter
triunfado diante do senado. Tirésias e Polidaz testemunham o triunfo que, na
verdade, foi vivido por Júpiter travestido em Anfitrião. O soberano deus tendo
usurpado o triunfo de Anfitrião, fornece o motivo para a condenação do general;
Alcmena por ter tratado ambos como marido, ofendendo deste modo o seu marido
verdadeiro. Tanto Anfitrião, como sua mulher, são condenados pela aparência. No
caso de Saramago, a acusação que recai sobre ele é o de introduzir o falso Anfitrião
na casa de Alcmena, e essa é descaradamente uma pena aparente, na medida em
que Mercúrio, transformado no criado do general foi o verdadeiro responsável pela
introdução de Júpiter na casa de Alcmena.
A trama atinge tal configuração, que só a intervenção de um deus ex-
machinalii, no caso, o próprio Júpiter, para desatar o nó da segunda intriga que, ao
fim se torna capital, embora a priori fosse apenas um motivo a mais para os
quiproquós desenvolvidos por Antônio José, uma vez que os Ardis criados por Juno
constituem o verdadeiro motivo da ação da ópera, e é o real gerador da estilização
do comediógrafo frente a seus paradigmas.
Em sua versão do Amphytruo, Antônio José manteve os principais
personagens, em torno dos quais gira a mesma trama criada por Plauto,
acrescentando-lhes, no entanto, novos personagens que multiplicam as situações de
comicidade, criando mesmo, uma nova trama que envolve a relação Juno/Tirésias.
Amphytruo, de Plauto
PERSONAGENS
Comédia dos
Amphitriões, Camões
PERSONAGENS
Anfitrião, ou Júpiter e
Alcmena.
PERSONAGENS
Anfitrião Amphitrião Anfitrião
Alcmena Alcmena Alcmena
X Callisto
X X Juno
X Feliseo
Sósia Sosea Saramago
Brômia Bromia Cornucópia
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Tessala X
X X Íris
Blefarão Belferrão
X Aurélio Tirésias
X Moço de Aurélio
Júpiter Júpiter Júpiter
Matronas
Mercúrio Mercúrio Mercúrio
Assim, Antônio José da Silva, não obstante seu débito para com Plauto,
Camões e Molière, e para com a caracterização mitológica, acabará por afastar-se
deles, compondo uma peça cuja originalidade é garantida pela reforma imposta a
seus modelos paradigmáticos.
Se Anfitrião ou Júpiter e Alcmena já se mostra original no que toca ao
enredo, seu diálogo caracteriza de forma ainda mais marcante o ineditismo de sua
ópera frente aos textos que versam sobre o mito de Anfitrião.
O discurso da peça dessacraliza irreverentemente aquele observado nos
modelos anteriores. As falas dos “graciosos” ou de Mercúrio, transfigurado em
Saramago, trazem a esmagadora maioria de exemplos do discurso invertido, pelo
concurso abusivo de jogos de palavras.
SARAMAGO - E, quando nada, estamos defronte de da nossa, que mal cuidei que a tornasse a ver! Ah, Senhores, grande cousa é o buraco da nossa casa, mais que seja esburacada, que mais vale a casa com buracos, do que o corpo com os das balas; e, pois, elas já passaram, sem eu ficar passado, vamos ao caso. (SILVA, 2004, p. 112)
Ou de expressões latinas, como:
SARAMAGO - Ai, ai, ai! Chibarritum me facit! Com quê, eu também estive cá ontem à noite? (p.136)
Seja por termos marcados pela irregularidade semântica, como em:
57
CORNUCÓPIA - Ai senhora! Basta guerrear, faça por um pouco de tréguas com o sentimento e quando não aparelhe-se, que em dous dias morrerá tísica e ética. (SILVA, 2004, p. 102)
Antônio José da Silva recorre ainda a expressões que, ora, eram de baixo-
calão:
SARAMAGO – Dessa sorte bem podes dar duas figas ao gálico. (p.223)
Ora, ambíguas:
SARAMAGO – A primeira coisa que encontrei foi nossa cadela, que com o rabo começou a explicar a sua alegria, donde inferi que há criaturas que têm a língua no rabo. (p.120).
A “inversão” promovida pelos graciosos ressalta a inadequação à época do
discurso dos discretos, cujo linguajar, entravado pelo uso de clichês, é
constantemente denunciado.
De um lado, o discurso da peça revela-se barroco, uma vez que as
personagens, ditas elevadas, especialmente Júpiter, Alcmena, Juno e Tirésias,
falam de acordo com o corpus poético barroco. O uso de imagens cultistas aponta
para uma paráfrase das formas de uma estética barroca, como se pode ver em:
JÚPITER - Pois, Alcmena, por Júpiter, Soberano, te juro que nem a distância que há do Céu à Terra seria bastante para fazer-me esquecer de ti; e, se te parece incrível a minha fineza naquela distancia, afirmo-te que sempre intensivo o meu amor ardeu em tão activos incêndios, que do peito, aonde se acenderam, quiseram passar, abrasando a mesma esfera do fogo ou ao Céu das chamas, que é o mesmo Empíreo. (SILVA, 2004, p. 160)
Por outro lado, os graciosos utilizam tais clichês, invertendo-os de modo à
dessacralizar o discurso:
SARAMAGO – E poderemos saber como se chama, em ordem a dizer-te depois: Suspende os rigores, cruel fulana, tirana, sicrana? ÍRIS – Quem tanto pergunta é bom para inquiridor. SARAMAGO – Isto é tirar uma devassa de quem me matou. ÍRIS – Pois quem te matou?
58
SARAMAGO – Tanto que te vi, foram os teus olhos uma morte súbita do meu coração; mas antes que te diga o mais, dize-me o menos, que é o teu nome. ÍRIS – Ai! Chamo-me Corriola. Que mais Quer? SARAMAGO – Nem tanto queria. Corriola! Mau agouro venha pelo Diabo! ÍRIS - Que te suspende? Pasmou-te o meu nome? SARAMAGO - A falar verdade, caiu-me o coração aos pés, em saber que te chamavas Corriola; pois, apenas no jogo do amor começava a ser taful de fineza, quando logo perco o cabedal da esperança, nessa corrida [...] ÍRIS - Não me posso mudar em o que deus me não fez SARAMAGO - Ah, sim? Pois eu também não posso deixar de querer esse rosto que dá à neve: essa testa, que testa me investe; esses olhos, que me deram olhado essa boca, que emboca delícias; esse corpo, que em corpo passeia na sua formosura. (CENA V p. 270).
Nesse trecho, a cena apresenta algumas questões para além do texto:
quando Íris diz que quem faz tantas perguntas pode ser inquiridor, Antônio José faz
uma referência direta à Inquisição, e, por conseguinte, lembra seus próprios
interrogatórios. No caso do nome Corriola, o que assusta Saramago é que o
significado da palavra, sabido por ele, é engano, logro, armadilha ou quadrilha de
desonestos. Deixando claro no texto a presença do humor de palavra, na definição
de Bergson.
As peças de Antônio José da Silva possuem um sistema comum de
construção em que as personagens vivem enredos retirados da literatura, mitologia
e mesmo da época em que viveu o autor. Na maioria das suas obras, o
desenvolvimento da ação tem como elemento aglutinador da intriga a sátira ao
casamento. Só aparentemente os nobres dirigem o desenvolvimento da ação, já
que, na verdade, eles ficam em posição de dependência ao pretenso subordinado, o
criado, que é o verdadeiro condutor da história.
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6 A TRANSFORMAÇÃO DO PRÓLOGO E A ANÁLISE DA ESTRUTURA FORMAL DA COMÉDIA DOS AMPHITRIÕES, DE CAMÕES; E, DE ANFITRIÃO, OU
JÚPITER E ALCMENA, DE ANTÔNIO JOSÉ DA SILVA
A estrutura formal das peças:
Partindo de Plauto, que divide seu Amphytruo em cinco atos, à maneira
tradicional, criada pelos tragediógrafos gregos e utilizada de forma corrente até
Shakespeare, chegamos aos autores renascentistas que também seguem à risca as
regras aristotélicas e o modelo greco-romano que é composto de cinco atos.
Camões vai utilizar-se do mesmo modelo em todas as suas comédias. O
poeta divide sua Comédia dos Amphitriões em cinco atos, incluídas nelas, seis
cenas, no primeiro ato, sete, no segundo, seis, no terceiro, quatro, no quarto e
novamente seis, no quinto, formando um total de 1815 versos, em redondilhas
maiores, em sua maioria.
No caso de Antônio José da Silva, o que se vê é uma peça divida
modernamente, em duas partes (o autor não utiliza a expressão ATO e sim
PARTES, na maioria de suas óperas), com diálogos inteiramente em prosa, salvo os
momentos cantados, divididas em sete cenas, a primeira parte e, em oito cenas, a
segunda parte, com cenários distintos e contendo partes musicadas, no entanto, a
oitava cena não existe, a cena se funde com a sétima, apesar de citada na rubrica
inicial. Então o que temos é a fusão das cenas VII e VIII, assim descritas:
CENA VII - Templo de Júpiter CENA VIII – Sala empírea de Júpiter.
O prólogo:
Em relação ao prólogo, das três obras em questão, somente o Amphytruo
possui um prólogo, de caráter epicizanteliii, que tem o propósito de aproximar o
público da história tragicômica a ser contada.
O prólogo plautino é dividido em duas partes. Segundo (BRITO, 1999), é
composto de uma primeira parte chamada de “captacio benevolentis”, na qual o
60
narrador chama a atenção do público para si. E uma segunda parte, o
“argumentum”, no qual o ator/narrador, depois de cativar a plateia, conta o enredo
da peça.
O que se apresenta a seguir é um ator travestido de Mercúrio, personagem
que posteriormente vai se confundir com outro personagem, o Sósia; personagem
este que vai trazer para a cena pela primeira vez também, a questão do duplo.
Mercúrio entra em cena e faz as apresentações; faz graça com a suposta presença
de um público “profissional”, ou seja, que teria sido pago para aplaudir, e com isso
“contagiar” e estimular as reações do público.
Para justificar a incomum presença de deuses em uma comédia. No décimo
parágrafo do longo prólogo, Plauto confirma a ideia de que a presença de deuses
nos palcos só é comum em tragédias, mas que no caso do Anfitrião, Júpiter e
Mercúrio, fazem parte de uma comédia e que a novidade já fora testada
anteriormente com sucesso, portanto o público não precisa ficar preocupado, pois
um precedente bem-sucedido já fora aberto. Nesse momento Plauto cria a
expressão “tragicomédia” para definir um tipo novo de humor. Faz piada ao dizer
que o próprio Júpiter já teria aparecido em outras oportunidades e nada de mal lhes
acontecera, levando-nos a crer que aquele prólogo deveria ser constantemente
modificado de acordo com a plateia que estivesse à sua frente. O que nos oferece
uma pista interessante sobre o seu processo de criação.
Por fim, o longo prólogo explicativo procura oferecer ao espectador um
resumo do que vai ser apreciado pela plateia, constituindo-se em uma espécie de
“manual de instruções” para se apreciar melhor as cenas que estão por vir. Não,
sem antes fazer um pedido ao público para que este preste atenção no potencial
humorístico de Júpiter e de Mercúrio, afinal os deuses também podem ser
engraçados.
No caso de Camões, em sua Comédia dos Amphitriões, o autor abre mão do
prólogo. Ele introduz a peça com um breve e choroso monólogo de Alcmena, já
inserido à cena um.
No caso de Antônio José da Silva, o prólogo também é abolido, mas o autor
de Anfitrião, ou Júpiter e Alcmena, inicia a peça com um pequeno coro explicativo,
também inserido à sua cena um.
61
6.1 A Comédia dos Amphitriões
Camões não utiliza a longa introdução de Mercúrio presente na obra plautina
e inicia sua cena um, do primeiro ato, com uma saudosa Alcmena, entristecida pela
ausência do marido, o general tebano Anfitrião. Alcmena e sua criada, Brômia,
conversam e uma chorosa Alcmena expressa seu sofrimento, por sua saudade.
ALCMENA
Ah, senhor Anfitrião, Onde está todo o meu bem,
Pois meus olhos vos não vem, Fallarei co’o coração,
Que dentro n’alma vos tem. Ausentes duas vontades, Qual corre móres perigos
Qual sofre mais crueldades, Se vós entre os inimigos, Se eu entre as saudades?
[...] (CENA I)
Logo na primeira cena do primeiro ato, se está diante da ideia do
desconcerto do mundo, do engano e desengano. Verifica-se também a dor do
desencontro, sobretudo, da saudade.
Quando se trata do Anfitrião, ou Júpiter e Alcmena, de Antônio José da
Silva, o autor retoma o coro, mas se trata de um coro curto e cantanteliv que
apresenta Júpiter e Mercúrio: Um Júpiter irritado com aquela música que ele
identifica como sendo uma “cantoria melosa” e, alucinado de amor por uma mortal,
amor carnal, por Alcmena. Antônio José passa para Júpiter as explicações de seu
desejo irrefreável. Nesse momento, quem faz o contraponto de humor, tentando
ponderar com o poderoso é o não tão poderoso deus Mercúrio. Júpiter canta,
demonstra pouca lucidez e decide descer do Olimpo para conquistar a esposa do
herói grego Anfitrião, Alcmena.
ATO I:
Se em Plauto, não há separação de cenas dentro dos atos, em Camões, o
primeiro ato é dividido em seis cenas. Por sua vez, Antônio José da Silva divide sua
peça de forma bastante distinta: são duas partes, sendo a primeira parte dividida em
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sete cenas e a segunda em oito, sendo que a oitava parte se funde a sétima,
formando uma só cena, apesar de a rubrica indicar a existência de uma oitava.
Nenhum dos dois autores utiliza o prólogo.
CENA I:
A primeira cena da peça tem início com um monólogo de Alcmena,
declarando toda sua saudade em relação ao marido Anfitrião. Na verdade, esse
monólogo é transformado em um longo diálogo com a criada Brômia, (esta
personagem está presente nas três peças, com a diferença do nome: em Plauto é
mantido o mesmo nome, Brômia, mas em Antônio José da Silva, ela se chama
Cornucópia). Nele, de uma maneira geral, verifica-se a utilização da antíteselv e do
paradoxolvi, na formação das orações, está presente a ideia de “desconcerto do
mundo”, de engano e desengano; verifica-se a dor do desencontro e o sofrimento da
saudade.
CENA II:
A segunda cena se estabelece com a saída de Alcmena de cena, solicitando
a Brômia que peça a Feliseo (personagem que só aparece na peça de Camões)
notícias de Anfitrião. Brômia, sozinha em cena monologa e apresenta ao
leitor/espectador uma idealização masculina, um ideal de perfeição do homem cuja
expectativa feminina é a de que ele seja um deus. O que torna a situação mais
complexa.
BRÔMIA
Nós mulheres, de semente, Somos sedenho mui tosco:
Com qualquer vento que vente, Queremos forçadamente
Que os deoses vivam comnosco. (CENA II)
CENA III:
A terceira cena começa com a chegada de Feliseo (este personagem não
existe na obra original de Plauto, tampouco na versão de Antonio José da Silva) e
para muito além do recado dado, se estabelece um jogo de sedução e deboche
entre os personagens. Finalmente, Brômia vai embora depois de uma intensa troca
de “farpas” de lado a lado.
63
CENA IV:
A quarta cena se inicia com a saída de Brômia deixando Feliseo sozinho em
cena se queixando das “fantasias das donzelas”, fantasias amorosas. Feliseo sai
para ir ao cais em busca de notícias de Anfitrião como solicitado por Brômia, a
pedido de Alcmena. Aqui, cabe uma reflexão, no sentido de pensar que não por
acaso essa procura se dá no cais. É o momento histórico em que Portugal atinge
seu apogeu, se notabiliza pelos grandes feitos navais, cujos navegadores são
alçados a categoria de heróis míticos, pela maestria dos mares, pelas conquistas em
terras africanas e americanas e asiáticas e pela genialidade literária do próprio
Camões. Portanto, é imperioso que o cais seja o lugar de onde sempre vem às boas
novas e cuja comparação com os heróis da Ilíada e da Odisseia, de Homero, num
momento posterior, consagrará Luis de Camões, como o maior autor português. Um
dado histórico/temporal crucial para situar a obra teatral no século XVI.
CENA V:
Na cena cinco ocorre uma mudança de situação dramática com a chegada
de Júpiter e de Mercúrio. Nesse ponto o que há de mais significativo é salientar as
diferenças de sentimentos do Júpiter, de Camões, em relação ao Júpiter, de Plauto.
O Júpiter camoniano trama com Mercúrio um jeito de se encontrar com Alcmena, por
quem, só de ver, por tal beleza, se encontra perdidamente apaixonado. O paradoxo
com o que seria um amor cortês, típico da época, é que por se tratar de uma
divindade, dificilmente ocorreria alguma impossibilidade na realização do feito. Mas
o simples fato de haver uma relação de amor já altera substancialmente o desejo e a
ótica da relação Júpiter/Alcmena. O próprio deus se autoproclama refém do Amor,
um deus que nem ele próprio é capaz de comandar. Um discurso absolutamente
vinculado à época em foi produzido. Situação semelhante ocorre em Antônio José
da Silva, mas em momento algum na obra do Judeu (Antônio José da Silva) há
qualquer dúvida na consciência de Júpiter, ao contrário do Júpiter camoniano que
sofre e se arrepende pelo mal provocado, sem, no entanto, deixar de lembrar a
todos da honra em criar o filho de um deus.
CENA VI:
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Feliseo encontra Callisto (Assim como Feliseo, Callisto é um personagem
que também só aparece na peça de Camões) no cais, promovendo uma novidade
em termos de espaço cenográfico. Esse espaço de cena, diferente da tradicional
entrada da casa de Anfitrião, onde se passa toda a peça de Plauto e quase toda a
peça de Camões, é a introdução de uma novidade do ponto de vista cenográfico.
Provavelmente influenciado pela maior liberdade espacial desfrutada pelos autos
vicentinos do que propriamente das leituras aristotélicaslvii das tragédias gregas.
Chegando lá, Feliseo recebe informações de Callisto, um barqueiro. Mais uma vez
se fala nos tormentos do Amor, e Callisto faz uma citação a Petrarca, afirmando que
nem na obra do grande poeta viu tal engenho do destino:
CALLISTO
Pois não vos entendeo. Ora eu já cheguei a ler Petrarca, e crede de mi. Que nunca tal cousa vi.
Onde mora o bom saber, Logo dá sinal de si.
Onde casada posestes, Dizei, porque não dissestes
La que yo vi por mi mal? (CENA VI)
Há também nessa cena, uma trovalviii, com motelix e a voltalx, que os
acompanha como que num desafio entre os dois. Por fim, Feliseo sai e Callisto
promete reencontrá-lo para um acerto de contas.
CALLISTO Óra dizei.
FELISEO: Ei-la vai.
Trova
Coração de carne crua,
Vê-lo teu amor aqui, Que esmorecido por ti
Jaz no meio desta rua?
CALLISTO: Na rua, senhor, jazia?
E era em tempo de lama?
FELISEO Senhor, quem falla a quem ama
De si mesmo se não fia:
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Haveis de mentir á dama.
CALLISTO: Volta disso?
FELISEO Singular,
Senão que he muito sentida; Far-vos-há, senhor, chorar.
CALLISTO:
Oh! Diga, por sua vida!
FELISEO: Farei o que mandar.
Volta
Porque não has dele mágoa, Ó dura mais que ninguém,
Que anda o triste, que não tem Quem lhe dê huma vez d’agoa?
Não lhe negues teu querer, Pois te não custa dinheiro; Que, emfim, por derradeiro,
A terra te há de comer.
CALLISTO: Tal trova nunca se viu.
Agorentastelxi-la já?
FELISEO Senhor, não; ainda está
Como a sua mão mai pario; E não está muito má.
CALLISTO
He trova que tem por seis; Não a posso mais gabar
Mas, pois, tal coisa fazeis, Senhor, não me ensinareis Donde vem tão bem trovar?
FELISEO
Não he cousa tão pequena, Como, senhor, a fizestes, Essa que agora dissestes,
Mas porém vou dar a Alcmena Estas novas que me destes.
Despois, senhor, nos veremos; Ficai roendo esse osso.
(CENA VI)
ATO II
CENA I:
66
Entram Júpiter e Mercúrio transformados em Amphitrião e Sosea,
respectivamente. Júpiter demonstra preocupação em estar parecido com o
verdadeiro Amphitrião.
Numa clara antecipação ao maneirismo, a beleza quase divina de Alcmena,
tão poeticamente retratada por Amphitrião, só cabia aos deuses. A estratégia
camoniana presente na comédia dos Amphitriões coloca Júpiter como uma espécie
da Eros e Alcmena, como Psique, ainda que por curto espaço de tempo.
A cena termina com Mercúrio batendo à porta da casa de Amphitrião.
CENA II:
Alcmena e Brômia entram na sala, Brômia garante ter ouvido a voz de
Sosea, Alcmena, no entanto, se surpreende ao ver Amphitrião à sua porta.
Amphitrião, na verdade, é Júpiter disfarçado de Amphitrião.
Os criados nessa peça de Camões sempre falam em espanhol, portanto,
Mercúrio, sempre que está disfarçado de Sosea também fala em espanhol.
Na sequência da cena, Júpiter declama seus feitos na guerra e leva
Alcmena para o quarto. Talvez essa situação possa ter sido considerada uma
obscenalxii, mas ela simplesmente não existe no original de Plauto, ao passo que na
obra de Antônio José da Silva ela ocorrerá na segunda cena da peça. Cena que, em
Camões, só ocorre na segunda cena do segundo ato.
Em Camões, todo o primeiro ato serve ao propósito de Alcmena fazer com
que o criado vá à busca de notícias de seu amado, o verdadeiro Anfitrião,
CENA III:
Com a saída de Júpiter e Alcmena, permanecem na sala Mercúrio e Brômia,
esta julgando tratar-se de Sósia. De certa maneira se repete a situação posta na
cena anterior. Mercúrio lhe conta a respeito de um sonho que tinha com ela e que
seria melhor que ela entrasse, pois ele precisava montar guarda.
CENA IV:
Mercúrio monta guarda na frente da casa de Amphitrião para não permitir
que nada atrapalhe o intento de seu amo. É curioso que nessa obra Mercúrio refere-
se a Júpiter como seu Pai. Nos estudos sobre mitologia Junito de Souza Brandãolxiii
67
afirma que há diversas interpretações e múltiplas origens para os mitos gregos, em
alguns, Mercúrio é filho de Júpiter, em outros é irmão.
MERCÚRIO
Bem, se pode enganar Brômia, segundo cá ora estou
Como Alcmena s’ enganou Mas cumpre-me ir ordenar
O que meu Pai me mandou. (CENA IV)
CENA V:
Entra Sosea com o recado de Amphitrião. Fala em espanhol. Fala de sua
bravura, das vezes que escapou da morte e dos inimigos que vencera.
CENA VI:
Mercúrio entra em cena e se depara consigo mesmo e ambos se assustam.
É outra cena-chave da peça em que se apresenta ao público a questão do duplo, o
humor da similaridade. Esse mesmo encontro, em Antônio José ocorre na cena três
da primeira parte. E em Plauto é logo a primeira cena da peça. Em todas as versões
Mercúrio convence Sósia de que este não é mais aquele que sempre julgou ser. No
caso de Camões trata-se da maior cena da peça.
Comédia dos Amphitriões, Camões.
[…] MERCÚRIO
Cómo te llamas, mal hombre?
SOSEA Sosea soy, si no me oiste.
MERCÚRIO
Cómo? En persona tan triste Osas d’ensuciar mi nombre?
Estes puños llevarás, Pues tener mi nombre quieres Quieresme dicir quien eres?
SOSEA
O señor no me des mas, Que yo seré quien tú quisieres.
(CENA V – ATO II)
Anfitrião, ou Júpiter e Alcmena,
Antônio José da Silva.
[...] MERCÚRIO - Chamo-me Saramago. SARAMAGO - Saramago? Pior é essa! E eu então, o que sou, visto isso? MERCÚRIO - Quem tu quiseres ser. SARAMAGO - Pois eu quero ser Saramago, ainda que não queiras. (CENA III – ATO I)
68
CENA VII:
Sosea, sozinho, roga a Júpiter uma resposta sobre sua dúvida, agora,
existencial. O que terá ele se tornado se não é mais Sosea.
ATO III
CENA I:
Após o ato consumado, Júpiter encontra uma desculpa para ir embora
novamente. Alcmena fica inconsolável. Júpiter sai afirmando que ela o verá antes
mesmo do que possa imaginar, já antecipando a chegada do verdadeiro Amphitrião.
CENA II:
Entra Amphitrião e encontra Sosea confuso. Amphitrião questiona o porquê
de Sosea ainda não ter entrado em casa e ter dado a notícia de que Amphitrião
estava por chegar. Sosea, de maneira muito embaralhada tenta explicar que até
tentou, mas que ao chegar se deparou com outro Sosea que ali já estava e este
ainda por cima teria lhe batido.
CENA III:
Apesar da evidente comicidade incutida na peça, cujo objetivo, aliás, era
esse mesmo, ainda assim a poesia de Camões supera seu próprio humor
objetivado:
ALCMENA
Que fado, que nascimento De gente humana nascida, Que d’escasso e avarento, Nunca consentio na vida Perfeito contentamento! Amphitrião, que mostrou Hum prazer tão desejado A quem tanto o desejou,
Na noite que foi chegado, Nessa mesma se tornou!
De se tornar asinha Sinto tanto entristecer
O sentido e alma minha, Que certo que me adivinha
Algum novo desprazer. Me parece este que vem, Se não estou enganada
Se ele he, venha com bem,
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Pois que com sua tornada Tão transtornada me tem.
(CENA III)
Alcmena avista o verdadeiro Amphitrião sem saber que este ainda não
esteve com ela.
CENA IV:
Amphitrião chega, embevecido e sublimado de prazer em vê-la, ao passo
que Alcmena já não demonstra tamanha empolgação em vê-lo. A própria Alcmena
lhe relata sua surpresa em vê-lo, visto que ele mesmo teria dito a ela, ainda mais
cedo, que precisava ir ver a frota. Amphitrião se espanta e tenta confirmar com
Sosea o que lhe parece um descalabro.
Diferentemente da solução erigida por Antônio José, no caso de Camões é a
própria Alcmena que suspeita se tratar de uma piada, um joguete de Amphitrião para
aborrecê-la.
Sosea identifica imediatamente tratar-se de feitiçaria, possibilidade que em
momento algum é levantada na obra de Antônio José, o Judeu.
SOSEA
Señor, son encantamentos, Porque aquel hombre, que es yo,
Le contaria estos cuentos. (CENA IV)
CENA V:
A cena serve para complicar ainda mais a situação e desacreditar o criado
Sosea que deveria estar de posse de um vaso pertencente ao rei inimigo que
serviria de prova da vitória. O que aumenta a confusão é o vaso que Amphitrião
incumbiu Sosea de levar para Alcmena e que lhe foi roubado, sem que ele
percebesse, certamente por Mercúrio, também conhecido como deus dos ladrões.
Esse elemento complicador da trama não é utilizado no Anfitrião de Antônio José da
Silva.
Bastante distinta também é a reação do Amphitrião de Camões, em relação
ao de Antônio José. Enquanto o segundo tenta obstinadamente vingar-se da traição
da mulher, ainda que ela tenha sido totalmente involuntária, em Camões o esforço
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de Amphitrião é o de provar que ele não esteve no leito de Alcmena na noite anterior
a sua real chegada. Para provar que dormiu na nau, convoca Belferrão.
CENA VI:
Alcmena declama todo o seu sofrimento a Brômia.
ALCMENA
Oh, mulher triste e suspensa Da mais alta confusão
Que nunca vio coração! Em que mereces a ofensa,
Que te faz Amphitrião? Sempre de mi foi amado, Co’o coração tão liado,
Que se de mi era ausente, Nelle o via figurado.
E pois mulher que cumprisse Melhor qu’eu fidelidade,
Não a vi, nem quem me visse Que dos limites sahisse
Hum pouco da honestidade Pois porque he tão maltratada
Innocencia tão singela? [...] (CENA VI)
A cena termina com Alcmena pedindo que Brômia vá buscar um primo seu,
Aurélio, para que haja alguém em sua defesa quando Amphitrião regressar com as
provas de que não esteve no leito de Alcmena na noite anterior.
ATO IV:
CENA I:
Júpiter, acometido pelo amor, apesar da saída estratégica e o regresso para
o Olimpo, acompanha de perto o desenrolar dos acontecimentos entre Alcmena e
Amphitrião, e sente-se culpado, responsável pelo provável desenrolar trágico que
está por vir.
JÚPITER
Grão desconcerto tem feito Amphitrião com Alcmena!
Qualquer deles tem direito: Eu sou o que venço o preito,
E ambos pagam a pena. Quero-me ir lá desfazer
Tão trabalhosa demanda,
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Por nos tornarmos a ver; Porque, enfim, quem muito quer Com qualquer desculpa abranda.
E, pois já que a affeição Há de mudar tão asinha, Quero ir alcançar perdão
Da culpa, que sendo minha, Parece de Amphitrião.
(CENA I)
Em Camões há um forte vínculo entre Júpiter e Amphitrião. Há, por parte de
Júpiter um sentimento de culpa em relação ao embaraço gerado por ele. Em Antônio
José essa culpa não aparece e o que impede um desfecho trágico é a intervenção
da deusa Juno, que salva Anfitrião, e do próprio Júpiter, que salva Alcmena, mas
não há um discurso de culpa, de moral ou ética, coisa claramente posta em
Camões. O Júpiter camoniano é valoroso, apesar de não resistir à beleza de
Alcmena.
Júpiter pede perdão a Alcmena e fala poeticamente da experiência
irrefreável do amor.
JÚPITER
Errei no que commetti; Bem me basta a penitência De quando me arrependi.
E se fiz algum error, Com que vosso amor se mude
De quem vo-lo tem maior, Não experimentei virtude,
Mas experimentei amor. [...] Depois:
Perdoai, Senhora, a culpa
Deste vosso coração. (CENA I)
Júpiter perde o controle sobre suas emoções, chora, pede perdão e inverte
os polos: agora é Alcmena que se sente culpada por ter provocado tal sentimento,
tal culpa. Mas ela ainda crê estar falando com Amphitrião.
A chegada de Sosea surpreende Júpiter que lhe manda logo em busca de
Belferrão. Belferrão é o piloto da nau. Interessante esse deslocamento marítimo que
Camões insere na guerra. Os homens vêm e vão da guerra de navio, o que é uma
característica do período que conhecemos como das “grandes navegaçõeslxiv”, cujo
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auge é justamente esse período em que Camões se impõe como o maior autor da
língua portuguesa.
Mas no final Júpiter não resiste mais uma vez aos encantos de Alcmena e a
leva novamente para o quarto.
JÚPITER
De nenhuma calidade Cure de fazer demora.
E nós vamo-nos, Senhora, Confirmar nossa amizade.
(Vão-se) (CENA I)
CENA II:
Mercúrio está à procura de Belferrão, a fim de encontra-lo antes de Sosea.
CENA III:
Mercúrio encontra Amphitrião no meio da estrada e não o reconhece.
CENA IV:
Enquanto Amphitrião vai pessoalmente buscar Belferrão, Júpiter encarrega
Sosea de fazer o mesmo para ficar a sós com Alcmena. No meio do caminho,
Mercúrio aparece a Amphitrião a fim de confundir-lhe a cabeça. Sosea conta a
Belferrão toda a confusão que se seguiu, até que chega Amphitrião. Belferrão salva
Sosea da ira de Amphitrião que julga ser ele o responsável por toda aquela
confusão.
ATO V:
CENA I:
Na primeira cena do quinto ato Belferrão adentra a sala de Alcmena e dá de
cara com Amphitrião/Júpiter. Ele se espanta porque Anfitrião também está lá fora.
Sosea entra e logo em seguida surge Amphitrião. Ambos os Amphitriões brigam
para saber quem tem o direito de bater em Sosea, cada um reclamando para si o
criado.
A disputa que se estabelece é entre Júpiter e Amphitrião. Não há questões
que tratem do público e privado como há na versão de Antônio José da Silva. Há,
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nas palavras de Belferrão, uma chamada à razão, a utilização de uma lógica
racional.
BELFERRÃO
O homem que for sisudo, N’huma tão grande questão
Há de tomar por escudo A justiça, e a razão,
Que estas armas vencem tudo. [...] (CENA I)
CENA II:
Júpiter e Amphitrião tentam convencer Belferrão a jantar. Belferrão vai jantar
com Júpiter. Sosea também sai.
CENA III:
Amphitrião está sozinho em cena e tenta entender porque seu desejo é o de
morte, de fazer arder tudo, mas simplesmente não consegue, não tem forças.
Decide pedir ajuda para queimar a casa com Alcmena dentro. Aqui Camões retoma
o mito “original” grego utilizado por Plauto em que a pena de Alcmena é ser
queimada viva e Júpiter impede. Antônio José da Silva não utiliza essa referência
mitológica.
CENA IV:
Amphitrião sai, entra Aurélio e Um moço. Aurélio tenta entender o que há, e
se desdobra em elogios a Alcmena, ao que é interpelado por Amphitrião que nega
que ela seja tão venturosa. No entanto, deixa claro que ela foi enganada por um
“encantador”. Ainda assim, está posta uma grave questão de honra.
AMPHITRIÃO
Porque he roubada Minha honra sem temor, E minha casa tomada,
E vossa prima enganada Por hum grande encantador.
(CENA IV)
CENA V:
Amphitrião está só em cena, sofre e discorre sobre sua desonra.
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AMPHITRIÃO Se ver deshonra tão clara Me não tivera o sentido
Totalmente endoudecido, Que gravemente chorara
Ver tão grande amor perdido! E quando vejo a verdade Do nosso amor e amizade Desfeita com tanta mágoa,
Enchem-se-me os olhos d’agoa, E a alma de saudade.
Assi que quis minha estrela Para nunca ser contente,
Que agora, estando presente, Viva mais saudoso dela,
Que quando dela era ausente. (CENA V)
E sai, aparentemente, decidido a tocar fogo na casa.
CENA VI:
Enfim, Aurélio, Belferrão e Sosea entram e tentam desfazer a confusão.
Aurélio procura Amphitrião para avisar-lhe que havia visto o outro Amphitrião. E que
o outro desapareceu magicamente tão logo ele apareceu. Explica que foi mais ou
menos assim: “com um ruído grande e horrendo e, como uma tocha a casa toda se
iluminou e se inflamou como um raio”. E que tais acontecimentos não poderiam ser
coisas humanas. Todos, então, ouvem atentos à última fala de Júpiter:
JÚPITER
Amphitrião, que em teus dias Vês tamanhas estranhezas,
Não te espantem phantasias, Que as vezes grandes tristezas
Parem grandes alegrias. Júpiter são manifesto
Nas obras de admiração, Que por mi causadas são:
Quis-me vestir em teu gesto, Por honrar tua geração.
Tua mulher parirá Hum filho de mi gerado,
Que Hércules se chamará, O mais valente e esforçado, Que no mundo se achará. Com este, teus sucessores Se honrarão de serem teus, E dar-lhe-ão os escriptores,
Por doze trabalhos seus, Doze milhões de louvores.
E dessa ilustre fadiga Colherás mui rico fruito:
Emfim, a razão me obriga
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Que tão pouco dele diga, Porque o tempo dirá muito.
(CENA VI)
Estranhamente a resolução da peça não ocorre no eixo da ação dramática.
A última vez que Amphitrião fala ele está em desgraça, o mesmo ocorre com
Alcmena. Há uma definição muito clara de que Júpiter é a figura central da peça.
Por fim, a voz de Júpiter se interpõe sobre os acontecimentos como uma
espécie de deus ex-machina dando um desfecho à peça e apresentando o fruto
dessa relação que é o surgimento de Hércules.
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6.2 Anfitrião, ou Júpiter e Alcmena
PARTE 1:
Em Antônio José da Silva, a primeira parte é dividida em sete cenas assim
separadas:
I – Sala empírea de Júpiter. II – Câmara. III – Praça com pórtico. IV – Selva com respaldo de palácio. V – Sala. VI – Selva com respaldo de palácio, e depois no meio um arco triunfal, e deste para diante vista de casas e para trás selvas até o fim. VII – Sala senatoria.
Antônio José da Silva apresenta uma quantidade tão distinta de ambientes
cenográficos que denota um tipo de cenografia possível, naquele período histórico,
somente por se tratar de um teatro feito para bonecos.
CENA 1:
Na cena um, o ambiente é o próprio Olimpo, morada dos deuses. A cena
propriamente é precedida por uma rubrica que descreve o cenário e a
movimentação dos atores/bonecos durante as cenas. Fato que não ocorre na versão
original de Plauto, nem na de Camões. A cena se inicia com um breve coro cantante
que antecipa ao público que “um deus do Olimpo” está apaixonado e que está
tomado por um cego furor.
CORO
O númen supremo Do Olimpo sagrado Suspira abrasado De um cego furor.
Que pasmo! Que assombro! Que voe tão alto A seta do Amor!
(CENA I)
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Júpiter explica para Mercúrio, cantando uma ária, seu sofrimento. Na versão
de Antônio José, é Mercúrio quem vai elaborar a trama toda que envolve o
travestimento de Júpiter em Anfitrião a fim de seduzir a donzela. Decide ele,
Mercúrio, também ir disfarçado de Saramago (Sósia nas outras versões).
MERCÚRIO - Ora, senhor, se Alcmena é a causa por que suspiras, e só desejas conseguir a delícia de sua formosura, verá como alcanças o que procuras. JÚPITER - De que sorte? MERCÚRIO - Eu te digo: dá-me atenção. Bem sabes, senhor, que Anfitrião, marido de Alcmena, se acha ocupado na guerra dos telebanos contra el-rei Terela. E parecia-me que, tomando tu a forma de Anfitrião, fingindo teres já chegado da guerra, podias fielmente, sem experimentares os rigores e desdéns de Alcmena, conseguir dela o que desejas; porque, vendo ela em ti copiada a imagem e figura de seu esposo Anfitrião, como a tal te facilitaria o mesmo que agora como a Júpiter te nega. (CENA I)
A cena se encerra com o coro repetindo a música inicial.
CENA 2
Há uma rubrica onde se lê: Saem Alcmena e Cornucópia. Muito
provavelmente essas rubricas serviam para os atores/manipuladores saberem
exatamente o que fazer. Quem entra e quem sai de cena por trás da empanada que
os esconde do público. Alcmena demonstra saudade tão intensa de Anfitrião, quanto
o desejo de Júpiter por si. Ao mesmo tempo em que a criada Cornucópia justifica
sua pouca ou nenhuma demonstração de saudade de seu marido Saramago em
função deste, aparentemente, por seu lado, também não estar nem um pouco
interessado na sua esposa Cornucópia. Na verdade Cornucópia tenta alegrar a ama,
em vão. Na sequência, Alcmena canta um minueto choroso e bastante exagerado,
sai Cornucópia e entra Júpiter, disfarçado de Anfitrião acompanhado por Mercúrio,
disfarçado de Saramago. Júpiter leva imediatamente sua Alcmena para o quarto,
enquanto Mercúrio, encurralado por uma sedenta Cornucópia que, julgando ser o
marido Saramago deseja ir para o quarto “matar” as saudades também. Mercúrio,
por sua vez tenta se esquivar dela por achar-lhe extremamente feia, propõe que lhe
faça algo para almoçar, a fim de adiar o inevitável. Obviamente brigam e está
formado um dos melhores momentos de humor da peça.
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Cena-chave essa em que Júpiter leva sua amada para o quarto. Tal situação
não aparece no original de Plauto, pois a peça começa com Mercúrio protegendo a
porta da casa de Anfitrião onde Alcmena e Júpiter já se encontram no quarto, juntos.
Júpiter e Alcmena só vão aparecer na terceira cena, saindo dos aposentos de
Alcmena. Ao passo que em Camões, todo o primeiro ato serve ao propósito de
Alcmena fazer com que o criado vá à busca de notícias de seu amado Anfitrião. A
cena em que se dá o encontro do falso Anfitrião com Alcmena ocorre na segunda
cena do segundo ato.
Comédia dos Amphitriões,
Camões:
ALCMENA
Vejo eu Amphitrião Ou a vista me afigura
O que está no coração?
AMPHITRIÃO Olhos, diante dos quais Desejei mais este dia,
Que nenhuma outra alegria, Senhora, nunca creais,
Que lhe minta a fantasia. [...]
ALCMENA
Senhor, não posso gostar De gosto, que he tão immenso,
Senão muito devagar. Faça-me mercê d’entrar,
E contar-mo-há por extenso. (CENA II, ATO II)
Anfitrião ou Júpiter e Alcmena,
Antônio José da Silva:
RUBRICA: Sai Júpiter com a forma de Anfitrião, e Mercúrio com a de Saramago. JUPITER - Sim pode ser, querida Alcmena, que os impossíveis só se fizeram para os que verdadeiramente amam. Dá-me teus braços que o verdadeiro descansar neles foi sempre meu desejo. Ainda não creio o bem que possuo. (à parte) ALCMENA - Amado Anfitrião, querido esposo, permite-me que por um pouco não creia a fortuna que alcanço; que, a considerar ser certa tanta felicidade, morrera de alegria. MERCÚRIO - Muito bem se finge de Júpiter, melhor se engana Alcmena. (CENA II, PARTE I)
CENA 3
Saramago aparece cantando uma ária:
SARAMAGO
Venho da guerra e vou para casa. Venho da guerra e vou para a guerra.
Se há guerra na guerra,
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há guerra na casa. A casa da guerra
é a guerra da casa. Venho da guerra e vou para a guerra; Venho da guerra e vou para a casa.
(CENA III)
Esta cena é o momento em que ocorre o encontro de Mercúrio e Saramago,
o encontro que inicia a peça de Plauto, o encontro que inaugura para a comédia as
situações que envolvem pessoas idênticas, sósias, nome que, Antônio José da Silva,
abriu mão, a fim de dar-lhe o nome Saramago, talvez com a ideia de valorizar mais
certos traços da personalidade desse criado, que se assemelha um tipo de repolho
ou couve, uma erva da família das crucíferas, meio inútil ou subaproveitada,
originaria de Portugal, à qual dão o nome de Saramago.
No Amphytruo, de Plauto, Sósia, após o prólogo de Mercúrio, apresenta o
que tradicionalmente seria papel do coro, normalmente ausente da comédia, quando
narra os fatos acontecidos que levaram seu amo Anfitrião ao campo de batalha e
que finalmente, depois de muita luta, saiu-se vencedor, e, finalmente começa a
empreender seu regresso para casa. Sósia segue a frente para dar as boas novas à
Alcmena, sob a lua de uma noite que já dura três dias. E o primeiro quiproquó
plautino ocorre justamente quando Mercúrio, travestido de Sósia, ao encontrar uma
idêntica imagem de si próprio acaba por confundir-se de sua autenticidade.
Segue uma tabela comparativa das duas cenas.
Amphytruo,
de Plauto:
SÓSIA - [...] O escravo do opulento é o mais infeliz do todos. De noite e de dia tem sempre alguma coisa que se faça, alguma coisa que se tem de realizar o de dizer [...] É por isso que quem serve tem de esperar muita injustiça; mas é uma carga que se tem de suportar e de aguentar, qualquer que seja o trabalho que dê. MERCÚRIO - (à parte) O mais acertado era ser eu a queixar-me deste modo da servidão: sempre fui livre, exceto hoje. Mas a ele já o pai o
Anfitrião ou Júpiter e Alcmena,
Antônio José da Silva:
MERCÚRIO - Chamo-me Saramago. SARAMAGO - Saramago? Pior é essa! E eu então, o que sou, visto isso? MERCÚRIO - Quem tu quiseres ser. SARAMAGO - Pois eu quero ser
Saramago, ainda que não queiras.
(CENA III)
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fez escravo; nasceu servindo, e ainda se queixa. Mas realmente só sou escravo de nome. SÓSIA - O que eu pensava ao chegar era dar graças aos deuses, era mostrar-lhes alguma gratidão pelos favores que me fizeram. Por Pólux! Se eles tencionassem recompensar-me pelos meus méritos com certeza arranjariam alguém para me partir a cara à chegada: de fato, sempre fui ingrato, nunca dei importância ao bem que me fizeram. MERCÚRIO - (à parte) Este faz o que
não é costume: sabe o que merece.
(CENA I)
Em Plauto essa é a primeira cena da peça. Plauto certamente percebeu que
era a cena com maior potencial humorístico de toda a peça e optou por começar
com essa situação para seduzir a plateia logo na primeira cena. Como Camões não
tinha esse tipo de preocupação dramatúrgica – o público – ele teria se motivado
muito mais a estabelecer os precedentes de toda a situação. Como Antônio José da
Silva também opta por estabelecer os precedentes até chegar nessa cena clímax
podemos supor que o autor tenha tido contato com o Anfitrião por intermédio da obra
de Camões que, segundo o prefacio a obra de Camões, de 1928, escrito por José
Tavareslxv, suas peças foram sistematicamente reeditadas até 1923. E, mesmo, ter
tido contato com o Anfitrião, de Molière, de 1668, visto que, aproximadamente 70
anos as distanciam.
CENA 4:
A cena começa com a seguinte rubrica:
Bosque com respaldo de palácio. Saem Anfitrião e Polidaz. (CENA IV)
Trata-se da chegada do verdadeiro Anfitrião a casa, a fim de ser recebido
carinhosamente pelos braços de sua amada que, igualmente, estaria com muita
saudade. No meio do caminho encontra o adivinho Tirésias, tornado Senador que se
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oferece para noticiar Alcmena de seu regresso e o agradece e elogia pela vitória.
Depois encontra Saramago e, em outro momento de comicidade Anfitrião encontra
um Saramago confuso que não sabe se ele é ele mesmo:
SARAMAGO - Estou bem aviado! Não sou coisa nenhuma nesta vida! Tenho de tornar a nascer, para ser alguma coisa. ANFITRIÃO - Jamais hás de perder o costume de tardar e murmurar? Aonde estivestes até agora? SARAMAGO - Quem? Eu? ANFITRIÃO - Pois com quem falo eu, senão contigo? SARAMAGO - Pois suponha que não fala comigo, pois eu não sou eu. ANFITRÃO - Começa tu agora com disparates, ao mesmo tempo, que quero que me dês notícia de Alcmena. SARAMAGO - Como posso dar notícia da senhora Alcmena, se eu não sei dar notícia de mim próprio? (CENA IV)
O curioso da cena que se segue é que ao contrário de Plauto, em que Sósia
não toca no assunto, e em Camões em que a cena sequer existe, em Antônio José,
Saramago explica exatamente o que aconteceu ao seu amo Anfitrião durante seu
encontro consigo mesmo, ou melhor, com Mercúrio. De qualquer modo, Anfitrião se
apressa a fim de entender melhor o está acontecendo em sua casa.
Antônio José, valendo-se da “ferramenta” da duplicação de situações
idênticas para extrair mais comicidade, inclui Juno, mulher de Júpiter, que desce a
Terra para se vingar pela traição do marido, e Íris. Juno desde atormentada pelo
“zelo”lxvi.
JUNO - Oh, sacrílego é o tormento dos “zelos”, pois nem as mesmas deidades se isentam de seu furor! (CENA IV)
CENA 5:
Júpiter tenta ir embora enquanto Alcmena tenta impedi-lo. A discussão que se
segue é uma contundente crítica que Antônio José faz ao costumeiro hábito de se
distinguir o marido do amante, assim como a mulher da amante. Note-se o amante
como aquele que ama podendo ser também o próprio marido, reunindo as duas
qualidades em um homem só, e não o amante, objeto da traição.
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ALCMENA - A obrigação de amar o esposo supera a toda a obrigação. JÚPITER - Pois mais te devera que me quiseras mais como a amante que como o esposo. ALCMENA - Não sei fazer essa diferença, pois não posso amar-te como a esposo, sem que te ame como a amante. CORNUCÓPIA - Ai, senhora, que diz muito bem o senhor Anfitrião, pois entre esposo e amante há muita diferença. (CENA V)
Segue-se um dueto cantado e uma longa cena em que aparecem Juno e
Íris, depois entram Anfitrião e Saramago. Juno e Íris acham que aquele Anfitrião é,
na verdade, Júpiter. É a mesma cena da chegada de Anfitrião em Camões, muito
mais conflituosa e até com alguma violência. No final da cena Júpiter encontra
Polidaz que também o confunde com Anfitrião e o leva para ser homenageado no
Senado.
CENA 6:
A cena começa com uma rubrica indicativa de mais uma mudança de
espaço cênico: RUBRICA: Selva com respaldo de palácio. Saem Júpiter e Mercúrio.
(CENA VI) Júpiter e Mercúrio, ainda disfarçados de Anfitrião e Saramago, encontram
Polidaz que está à espera de Anfitrião para levá-lo ao palácio a fim de homenageá-
lo. Anfitrião sai de casa, aborrecido com Alcmena, procura Polidaz, mas não o
encontra.
CENA 7:
Sala senatoria. Júpiter entra em um carro triunfal, acompanhado dos
soldados, e, triunfante, recebe todas as honras pela vitória de Anfitrião.
TIRÉSIAS - E para que felizmente se coroe Anfitrião e se complete este triunfo, repeti comigo todos os vivas de Anfitrião, sendo eu o primeiro que principie seu bem merecido louvor.
Canta Tirésias o seguinte [...]
Viva, viva Anfitrião, Novo Marte singular.
(CENA VII)
2ª parte:
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A segunda parte da comédia é dividida em oito cenas, separadas da
seguinte maneira:
I – Antessala. II – Câmara. III – Sala. IV – Bosque. V – Jardim com fonte. VI – Cárcere. VII – Templo de Júpiter. VIII – Sala empírea de Júpiter. (Essa cena está inserida na última parte da cena VII)
CENA I:
A cena começa com a dúvida de Juno sobre quem é o verdadeiro Anfitrião.
Sem saber quem é quem, ela decide preparar uma armadilha para Júpiter. A fim de
se vingar, Juno se disfarça de “Flérida”lxvii e vai ao encontro de Tirésias, este
enlouquece de amores por ela. Juno propõe a ele que puna Alcmena pela morte de
seu pai, e que deixe Anfitrião por sua conta. Isso também faria com o próprio
Tirésias se tornasse Rei, já que o trono seria dado a Anfitrião.
CENA II:
Novamente ocorre a repetição da fórmula de impor a repetição como
estratégia de comicidade. O que se vê na cena é Saramago, flertando com Corriola,
criada de Felizarda/Flérida, sendo este o disfarce da deusa Íris, criada de Juno.
Saramago se vê em maus lençóis tentando se explicar com Cornucópia que o pega
em flagrante galanteando Corriola. Em seguida entra Alcmena e se irrita com a
confirmação de Saramago de que não esteve lá com seu amo Anfitrião na noite
anterior. Para aumentar a confusão, entra o próprio Júpiter, ainda disfarçado de
Anfitrião, e Felizarda logo a seguir. A conversa que se segue é confusa, pois o
Anfitrião que lá está é Júpiter enquanto Saramago é o próprio, por isso um não
entende o outro. Júpiter tenta convencer Alcmena de que a reação de Anfitrião foi
apenas para “apimentar” a relação dos dois. Alcmena se deixa convencer e ambos
vão para o quarto na frente de Felizarda, ou melhor, na frente de Juno disfarçada de
Felizarda.
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ALCMENA - Basta, Anfitrião, que já compadecida te perdoo, pois sei que todos os seus erros nascem de amor. JÚPITER - Folgo que os conheças; vamos, Alcmena. (Vão-se) JUNO - Espera! Aonde vás, traidor esposo? Mas, ai de mim, que só vim a ser testemunha de meus zelos! Oh, quem se pudera declarar agora! Mas, se me declaro, temo que Júpiter, irado, intente outros absurdos maiores; pois vingar-me-ei dissimulado a dor, para publicar o estrago. (Vai-se) (CENA II)
CENA III:
Nessa cena Mercúrio está na porta da casa com a incumbência de não
permitir a entrada de Anfitrião em casa. Ocorre o encontro de Mercúrio com Anfitrião,
e a cena começa com um pequeno prólogo em que Mercúrio deixa claro que por
Alcmena Júpiter teria feito mais “loucuras” do que por Europa, Dânae ou Ledalxviii.
Dessa vez o encontro se dá de maneira invertida, Anfitrião encontra
Mercúrio travestido de Saramago. Mercúrio tem a difícil missão de convencer
Anfitrião de que este esteve com Alcmena na noite anterior à sua chegada. Mas
Mercúrio não consegue e sai irritado, batendo a porta. Saramago chega junto com
Polidaz. Anfitrião o interpela por ter tido atitude que teve imediatamente antes, mas
dessa vez a sorte do criado é que estando ao lado de Polidaz, este confirma estar
com Saramago há, pelo menos, um quarto de hora. Há pequenos saltos temporais
em toda a estrutura da peça, já apontando para um tipo de estrutura mais episódica
que só vai se tornar um recurso dramatúrgico corrente nos séculos XIX e XX,
sobretudo, a partir do Woyzeck, de Georg Buchnerlxix e do Ubu Rei, de Alfred Jarrylxx.
A confirmação de Polidaz deixa Anfitrião bastante confuso e enervado
levando o homem a entrar em casa imediatamente e pegar Júpiter disfarçado em
Anfitrião. Agora estão todos, frente a frente, naquela que é a maior cena da peça.
Alcmena se vê surpreendida por dois Anfitriões em sua sala. E se segue o
diálogo:
ALCMENA - Agora reparo! Que é o que vejo? ANFITRIÃO - Que vês, tirana? JÚPITER - Que vês, aleivosa? ALCMENA - Suspendei a ira, que sem razão me incriminais; pois, confusa entre tanto enleio, não sei distinguir qual de vós é o verdadeiro Anfitrião; a assim, para que não chegue a ofender a quem por obrigação devo amar, vos rogo me digais qual de vós é o meu esposo.
85
JÚPITER e ANFITRIÃO - Sou eu. ALCMENA - Ambos?! Como pode ser? JÚPITER e ANFITRIÃO - Não, Alcmena, sou eu só. ALCMENA - Se ambos afirmais que o sois, venho a entender que nenhum de vós é meu esposo. SARAMAGO - Esta é a verdade, senhora Alcmena, que nunca se viu uma galinha para dois galos. (CENA III)
Depois aparecem Juno e Íris, depois ainda, Cornucópia.
Interessante notar que em um dos muitos apartes da cena há um em
particular, em que Saramago “brinca” com a tinta utilizada no rosto dos bonifrates:
JÚPITER - Se pretendes me matar, não seja aqui dentro de casa. Vamos para fora e lá verás como castigo a tua insolência. ANFITRIÃO - A minha cólera não espera por dilações; aqui mesmo há de ser o teu castigo, para que se banhe o rosto de Alcmena com os salpicos de teu sangue. SARAMAGO - Tomara ela mais essa untura na caralxxi? (CENA III)
Cantando, Anfitrião e Júpiter brigam; recurso usado em abundância nos
musicais, até hoje.
Há, na peça de Antônio José, uma série de críticas bem humoradas, sempre
partindo da boca dos criados. Críticas como a crença em deuses pagãos:
CORNUCÓPIA - Deixemos disso senhora que eu confio em Júpiter, que ele há de aclarar esse enigma; [...] (CENA III)
Ou, a possibilidade de uma mulher virar homem:
CORNUCÓPIA - Senhores, eu desde que nasci até o presente momento sempre fui mulher; e daqui para frente não sei o que virei a ser; que quem está nesse mundo não pode dizer desta água não beberei; e, pois já sabeis que sou mulher, tomara que dissésseis qual de vós é meu homem. (CENA III)
Repete-se a mesma estrutura de comicidade e a discussão que se segue é
entre Saramago e Mercúrio a fim de esclarecer a Cornucópia quem é o verdadeiro
Saramago. No entanto, esta desmaia e Mercúrio trata de “empurrar” o problema
86
para o Saramago verdadeiro. Depois a peça ganha ares absurdos e Cornucópia se
transforma em um anão no fim.
CENA IV:
No bosque, Juno queixa-se da inconstância de Júpiter. Ao encontrá-lo,
disfarçado de Anfitrião, pensa tê-lo convencido a matar Alcmena e vingar sua honra.
Ao encontrar o verdadeiro Anfitrião, Juno o convence a matar Alcmena e, com isso,
vingar sua honra. Depois, aparecem Saramago e Tirésias. Juno cobra de Tirésias o
cumprimento da promessa que tinha feito a ela, de matar Alcmena. Saramago
permanece escondido de modo a escutar que há uma vingança em curso e que o
verdadeiro nome de Felizarda é Flérida. Saramago corre para avisar Alcmena, a fim
de receber algum prêmio por ter-lhe salvado a vida. No entanto, tomando o tom
absurdo que remete a cena dos atores em Sonho de uma noite de verãolxxii, de
Shakespeare, depois da inusitada transformação de Cornucópia, ocorre o mesmo
com Saramago que se transforma em uma árvore. Cornucópia e Mercúrio saem de
dentro e tentam arrancar as azeitonas da oliveira em que foi transformado
Saramago.
SARAMAGO - Basta que eu passei de Saramago a oliveira, e que por meus pecados hei de ser varejado! Mas a mim que se me dá, pois se sou tronco, hei de ser insensível? (CENA IV)
O ardil foi provocado por Juno, como é dito pelo próprio Saramago no final
da peça.
SARAMAGO - Sem dúvida a senhora Juno foi a que me converteu em oliveira, e o senhor Júpiter quem me desconverteu. (CENA VIII)
Júpiter, impressionado com a isenção de Alcmena, esculpe no primeiro
tronco que encontra o nome de Alcmena. Claro que o tronco é o próprio Saramago
que sangra ao ter seu tronco esfaqueado, o que surpreende Júpiter. Júpiter identifica
o malogro como sendo obra de Mercúrio e desfaz o encanto. Íris tenta descobrir
quem é o verdadeiro Anfitrião seduzindo a Saramago e a seu sósia, pois é certo que
o falso Saramago apontará o falso Anfitrião.
CENA V:
87
No jardim, ou bosque, Alcmena, ao pé de uma fonte, como diz a rubrica,
canta uma pequena ária, chorosa, ao que chega Júpiter declarando e declamando
seu amor por Alcmena quando aparecem Tirésias e Anfitrião, dispostos a dar cabo
da vida de Alcmena, “a vil traidora”.
TIRÉSIAS - Bem dizem que o amor é um inferno; pois de um abismo me conduz a outro abismo; porque hoje há de morrer Alcmena inocente, pelo delito de amor. ANFITRIÃO - Oh, que impiedade! Que hajam de afrontar ao esposo as leviandades da esposa! Pois morra Alcmena, já que assim o quer o mundo e os meus zelos. (CENA V)
É preciso entender que a cena da vingança era algo pertinente à sociedade
da época, em que se resolviam crimes de honra com a morte. Tal situação seria
impensável numa dramaturgia mais atual. Torna-se possível extrair algum humor de
situação nesse caso em que três homens encontram-se ao mesmo tempo dispostos
a matar Alcmena e acabam brigando para ver quem tem o direito de executar tal
intento. As repetidas tentativas frustradas são geradoras de comicidade.
Alcmena suplica ajuda, ao que surgem em cena Juno, Mercúrio, Saramago,
Polidaz, Íris e um Soldado.
É estabelecido um clima de julgamento, e todos tomam partido de Júpiter.
Anfitrião é enviado para o cárcere e Juno, ao perceber que o verdadeiro Anfitrião é
de fato aquele que vai encarcerado exige que se puna igualmente Alcmena. A
discussão passa do privado ao público quando Tirésias exige punição afirmando que
o crime foi cometido contra a República e não se tratava mais de um mero caso
extraconjugal.
TIRÉSIAS - Não é só o esposo o ofendido, mas também a República, a quem incumbe castigar os delitos para emenda de outros e conservação da virtude, na qual consiste toda a justiça. (CENA V)
A cena se encerra com Saramago também indo preso por supostamente ter
introduzido o falso Anfitrião na casa de Alcmena. Uma ária, cantada por Íris e
Saramago, encerram a cena. Há um tom patético, mas de muita dramaticidade, em
se deixa escapar que há um Deus que está acima dos deuses do Olimpo e que seria
o único que o poderia salvar.
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CENA VI:
Rubrica:
Cárcere, onde estão três presos, e sai Saramago com correntes e dizem dentro o seguinte: DENTRO - Lá vai mais esse hóspede; agasalhem-no bem. SARAMAGO - Quanto hoje, graças a Deus, não dormiremos na rua. Mas, ai de mim, Saramago! Onde estou eu? Oh, quem me dissera que escapando de uma oliveira, viesse a parar em um limoeiro! (CENA VI)
É interessante notar que nesse diálogo acima Antônio José da Silva faz uma
clara referência ao período em que esteve ele próprio, nos cárceres inquisitoriais,
segundo nota de José Pereira Tavares, e faz um trocadilho entre a árvore do
limoeiro e o presídio de mesmo nome em que esteve preso, em Lisboa. Em seguida
Anfitrião adentra a cadeia. Anfitrião o acusa de ser o responsável por seu infortúnio.
Ao que Saramago lhe cobra explicações, visto que este nada fez.
A história sai completamente do clima de comédia de situação e se
transforma em uma aventura em que o nobre e seu criado, ambos a beira da morte,
precisam fugir da prisão.
Juno faz o papel do deus ex-machina quando adentra o presídio e liberta
Anfitrião e seu criado Saramago.
JUNO - Compadecida de vossa inocência, vos venho livrar desta prisão, para que o que tenho comprado os guardas e tudo está pronto; pois não é razão que sendo vós o verdadeiro Anfitrião, padeçais, sendo inocente, ficando sem castigo o outro fingido. (CENA VI)
Ao contrário de Camões e mesmo de Plauto, em que o próprio Júpiter se
arrepende do feito e se apresenta a fim de salvar Alcmena da ira de Anfitrião, nesse
caso, quem salva Anfitrião e sua Alcmena, é Juno, a deusa, mulher de Júpiter. Se
Juno salvou Anfitrião do cárcere, na cena seguinte o que se segue é Júpiter
intercedendo por Alcmena.
CENA VII:
A cena acontece no templo de Júpiter, onde, conforme a rubrica final “irão
saindo todas as figuras conforme vão falando.” Tirésias leva Alcmena a fim de mata-
la. Júpiter determina a Mercúrio que se encerre a mentira, pois como ele mesmo diz:
89
JÚPITER - Mercúrio, é tempo de desfazer o enigma, pois isto chegou ao último ponto. (CENA VII)
Ao se fundir a obra de Antônio José da Silva com sua biografia, pode-se
perceber uma profunda revolta e uma recusa completa de seu próprio crime, o “ato
judaizante”, ou seja, ser judeu, e por tal motivo ser preso tantas e tantas vezes,
levando-o a morte no cárcere. Cárcere o qual, antecipadamente, ele tratou de
debochar. Anfitrião, ao invadir o salão do templo para ver o ocaso de Alcmena, é
acusado por Tirésias de estar incorrendo em crime de fuga da prisão, ao que
Anfitrião retruca: [...] e, se eu, por um delito imaginário hei de padecer, que importa
que me constitua réu da fuga do cárcere? (A. J. SILVA 2004, CENA VI). Alcmena,
então, suplica aos deuses por sua vida, visto que não reconhece em si própria culpa
alguma. Júpiter finalmente intervém e se mostra como Júpiter a todos.
A cena indicada como sendo a cena VIII está incluída no final da cena VII.
Há uma mudança de perspectiva da cena, some o templo e surge a sala empírea,
como no princípio da peça. É como se realmente houvesse uma mudança de cena,
mas esta permanece como a mesma cena no texto sem nenhuma indicação de
mudança. Por fim, Júpiter recita:
JÚPITER/RECITADO
Sabei que Jove sou onipotente Que, abrasado de amor da bela Alcmena,
Vendo ser impossível o alcança-la, Tomei de Anfitrião a forma humana,
Com a qual disfarçado entre vós outros, Este dia passei; e, pois Alcmena
Como humana não pode Resistir a um divino impulso ardente,
Ficará perdoada, sem que tenha Ofensa nisso Anfitrião valente,
Pois desse passatempo que aqui tive Hércules nascerá, a cujo esforço Rendido cederá todo o Universo,
Pagando nesta forma Este engano de amor, esta violência, Em dar-lhe tão divina descendência.
TODOS
Que assombro! Que admiração! (CENA VII)
Depois, todos os deuses se apresentam e curiosamente, ao contrário do
mito em que Juno persegue Hércules, desde sempre a fim de tirar-lhe a vida, essa
Juno, de Antônio José da Silva, se compraz e aceita sem maiores temores a vida
90
que surgirá do ventre de Alcmena. Como em todas as versões, Anfitrião fica feliz em
saber que será o responsável pelos cuidados do tão poderoso filho de Júpiter,
Hércules.
A peça termina com o coro, a pedido de Júpiter, aclamando Anfitrião.
JÚPITER – E porque Anfitrião fique de todo satisfeito, coroe-se do laurel glorioso, como valente vencedor dos telebanos, pois eu fui o que por ele triunfei no Senado; e assim ao generoso braço de Anfitrião daí as devidas aclamações, repetindo todos no mesmo triunfante.
CORO O númen supremo Do Olímpo sagrado Suspira abrasado De um cego furor.
Que pasmo! Que assombro! Que voe tão alta A seta do amor!
(SILVA, 2004)
No caso de Plauto, o desfecho já nos apresenta o nascimento de Hércules e
seu primeiro feito: lançar longe duas cobras colocadas por Juno no berço dos
gêmeos Hércules e Íficles. No caso de Camões, o desfecho ocorre com Júpiter, que
narra os acontecimentos finais da comédia, alegando que, às vezes, grandes
tristezas “parem” grandes alegrias. Fala da importância do nascimento de Hércules e
dos feitos que ele conquistará, chegando mesmo a citar os “doze trabalhos”.
91
7 SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS ENTRE OS ANFITRIÕES; A DRAMATURGIA A SERVIÇO DA COMICIDADE
No teatro de Plauto, além da comicidade do texto, havia também a
comicidade do espetáculo.
A comicidade do espetáculo era tão livre, em alguns momentos, que havia a possibilidade do ator improvisar tiradas humorísticas, muitas vezes em decorrência da interferência da plateia. Também contribuíam na criação dessa comicidade a caracterização dos atores, a dança, o canto e a música. Tudo acontecia como se fosse uma grande e alegre brincadeira, ou seja, uma forma de jogo. (BRITO, 1999, p. 201)
Graças à liberdade que o formato extremamente lúdico de seu teatro é que
Plauto criou situações, sobretudo a partir a utilização do “duplo”, e criou
personagens, como o escravo Sósia, que, ao longo dos séculos, se transformaram
em verdadeiros cânones de um tipo de humor, que “viajou através dos tempos, da
Antiguidade aos nossos dias, revisitada e recriada por inúmeros autores.” (BRITO,
1999, p. 202)
92
7.1 Semelhanças e diferenças entre o Amphytruo, de Plauto, e A Comédia dos
Amphitriões, de Camões
Ao comparar a estrutura dramatúrgica do Amphytruo, de Plauto, com a
Comédia dos Amphitriões, de Camões, encontramos mais semelhanças do que
diferenças. A primeira e, talvez das mais significativas diferenças, se dá em relação
à para quem se destinam as peças, ou seja, o público em questão.
Plauto pretendia atingir o homem comum da Roma Antiga, ou seja, o
soldado, o artesão, o atleta, o povo mais rude e iletrado. Já, Camões pretende
envolver o público estudantil e um público tipicamente cortesão. O público de
Camões não é iletrado como o de Plauto, por isso a comicidade destinada a tais
espectadores é mais sutil, envolvendo a linguagem e a galanteria cortesãs, bem
como informações culturais que circulavam nos meios estudantis da época.
No entanto, a comicidade da Comédia dos Amphitriões, como a de
Amphytruo, nasce basicamente a partir das três técnicas definidas por Bergson:
“repetição”, “inversão” e “interferência”, aplicadas nos dois textos, tanto à comicidade
de palavra, quanto às comicidades de situação e de caráter.
Nas situações em que há “comicidade de palavra”, Camões utiliza-se
principalmente dos processos de “inversão” e de “interferência das séries”,
representados por jogos espirituosos, ao gosto da intelectualidade da época.
Trabalha também com o mecanismo da “repetição” criando jogos e trocadilhos de
gosto cortesão, expressos num ritmo poético melodioso, mesmo no castelhano que
tipifica o criado Sósia.
SOSEA
Pues logo si yo no soy yo, Aunque nadie me mató, Soy luego cosa ninguna.
¡Oh dioses, que desconcierto! ¿Yo por ventura soy muerto,
O murióme la razón? ¿Yo no soy de Anfatrión?
¿El no me mandó del puerto? ¿Yo no sé que no estoy loco?
¿De mi madre no naci? ¿No ando? ¿No hablo aquí?
MERCÚRIO
Pues sosiega ahora un poco,
93
Que yo también diré de mi. ¿Yo no sé que yo soy yo?
¿Yo no te di con mis manos? ¿Mi Señor no me llevó A la guerra, adó mató
Aquel Rey de los Tebanos? (CAMÕES, 1981, p. 70)
Assim, enquanto Plauto buscava uma comicidade de cunho eminentemente
popular, Camões pretendia atingir um público mais culto e letrado, mais afeito a uma
linguagem fina e polida. Apesar dessa, aparentemente, crucial diferença, é possível
apontar em Camões o mesmo tipo de processo de criação de comicidade de que
Plauto se valia, mesmo resultando em obras, do ponto de vista textual, relativamente
distintas, sobretudo nos primeiros atos da peça. Percebe-se que do meio da obra
para o final, Camões “acompanha” bem de perto a obra de Plauto, tanto que na
introdução a Comédia Latina (A. d SILVA, 1952), Teófilo Braga, chega a citar trechos
em que as obras tornam-se, segundo ele, muito semelhantes, como no trecho
abaixo em que, a meu ver, Camões demonstra, na verdade, um excepcional poder
de síntese:
Amphytruo,
de Plauto:
ALCMENA – (sem ver Anfitrião nem
Sósia) Realmente há poucos prazeres
na vida e no passar do tempo em
comparação com tudo o que é
molesto. Mas é este destino dos
homens e foi esta a vontade dos
deuses, que a tristeza venha sempre
companheira do prazer; e se alguém
recebeu alguma coisa de bom, logo
lhe vem maior incômodo e maior mal.
É isto exatamente o que eu
experimento agora, é isto que eu sei
de mim; tive algum prazer enquanto
Comédia dos Amphitriões,
de Camões:
ALCMENA
Que fado, que nascimento
De gente humana nascida,
Que de escasso e avarento
Nunca consentiu na vida
Perfeito conhecimento!
Anfitrião, que mostrou
Um prazer tão desejado
A quem tanto desejou,
Na noite em que foi chegado
Nessa mesma se tornou!
94
me foi possível estar com meu
esposo; e foi só uma noite, lá se foi
ele de repente, sem que antes
rompesse o dia.
Mas é fato que, no começo da obra, suas opções seguem por caminhos bem
distintos da de Plauto. Camões é original quando antecipa o começo da comédia
com a dúvida sobre o Amor, de Júpiter e com os sofrimentos de Alcmena, para só
depois nos apresentar a comédia.
O raciocínio lógico, pautado na razão, que dominava o pensamento
renascentista, também está muito presente na peça camoniana, como se pode ver
no monólogo de Sósia, quando ele traça todo um raciocínio lógico no intuito de
entender como ele, Sósia, pode não ser ele mesmo, e, consequentemente, extrair
graça da lógica aparentemente ilógica da situação:
SOSIA
Cuando yo vengo a pensar Que uno matar me quisiera,
No hago sino temblar, Porque creo, si muriera, No pudiera más cantar.
Porque estando a un rincón De la casa adó quedé,
Sentí muy grande ronrón, Y, mirando, ¿Qué miré? Vi que era un gran ratón.
(CAMÕES, 1981, p. 63)
Porém, no que toca à estrutura dramática, a Comédia dos Amphitriões
repete, de uma maneira bastante semelhante, a estrutura do Amphytruo,
modificando apenas alguns elementos, como a gravidez de Alcmena, que é
apresentada no final da comédia, resgatando a virgindade de Alcmena até a
chegada de Júpiter. O mesmo não ocorre em Plauto, à medida que o autor faz com
que Alcmena recepcione Anfitrião, no fim da peça, com a barriga de grávida
proeminente, o que se segue da afirmação de Anfitrião de que este a teria deixado
prenhe quando foi embora. SÓSIA – (mostrando Alcmena grávida) Bem vejo que Alcmena está diante de casa e bem cheia. ANFITRIÃO – É que eu deixei-a grávida quando fui embora.
95
(PLAUTO 1952, 29)
Como diz Brito, “a base da comédia continua sendo a criação do duplo,
através do mecanismo da “repetição.” (BRITO,1999,p204)” Por isso, a transformação
de Júpiter em Anfitrião, e de Mercúrio em Sósia continuam sendo os geradores dos
equívocos e quiproquós da comédia. A técnica da “inversão” é utilizada por Camões
nas cenas, tais e quais as que Plauto utiliza, como, por exemplo, quando Anfitrião é
surpreendido com a autoridade exibida por Sósia, como se lhe fosse um superior
hierárquico. O espectador, é claro, se diverte com a confusão por saber não se tratar
de Sósia e sim de Mercúrio, disfarçado. A relação Senhor/escravo está subvertida,
nesse caso.
AMPHITRIAO
Abre, que sou teu senhor.
MERCÚRIO Vuelvase desotro lado, Y conocerle hé mejor.
AMPHITRIÃO Sósia moço.
MERCÚRIO
Assi me llamo, Huélgome que lo sepais; Empero digo que os vais, Que Enfatrión es mi amo, Vos id buscar quien senis.
AMPHITRIÃO
Pois quero saber de ti; Eu quem sou?
MERCÚRIO
¿Y quien sois vos? ¿Como os llaman?
AMPHITRIÃO Abri.
MERCÚRIO
?A vos o llaman Abri? Pues, Abri, andad con Dios.
(CAMÕES, 1981, p. 94)
Segundo Bergson, uma situação será sempre cômica quando pertencer a
duas séries de fatos completamente diferentes. Essa “interferência das séries” é,
precisamente, um dos processos mais usados por Plauto em Amphytruo e por
Camões na Comédia dos Amphitriões.
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JÚPITER
Quem é o tão atrevido, Que aqui ousa de fazer Tão revoltoso arruído
Com meus moços, sem temer, Que fui sempre tão temido?
Quem aqui faz união Torna mui grande despejo.
BELFERRÃO
Oh, grande admiração! Vejo eu outro Anfatrião
Ou é sonho isto que vejo?
SOSIA ?No miráis la encantacion,
Que aquele hizo a mi Señor? El que sale, Belferrón, Es el cierto Anfatrión
Qu’estoutro es encantador. ………………………………..
¿Nó os lo diría yo, Que este era el verdadeiro, Y ese que allá queda, no?
AMPHITRIÃO
Bargante, onde te vás? Fazes teu senhor sandeu?
Pois espera, e levarás.
JÚPITER Olá, tornai por detrás,
Não deis no moço, que é meu. (CAMÕES, 1981, p. 99)
No entanto, é preciso esclarecer que esse recurso em que à comicidade em
sua estrutura segue de perto o texto original, criando personagens de uma maneira
praticamente idêntica, compunha um tipo de imitação que, “longe de ser condenada,
era enaltecida na época, como sinal de capacidade estilística.” (BRITO, 1999,p206).
Portanto, não havia nenhum “problema” quanto a aproximar-se em demasia da obra
original.
A comicidade presente na Comédia dos Amphitriões é semelhante à de
Amphytruo, que nasce a partir da utilização de personagens duplicados, com a
técnica da “repetição”. No entanto, Camões, seguindo a tendência da literatura
renascentista, enriquece e aprofunda a utilização dessa técnica, fazendo um
reiterado uso de jogos dialéticos. A base desses jogos estava nas oposições criadas
por Plauto, entre o verdadeiro e o falso, o deus e o homem, o amante e o marido, o
senhor e o escravo.
97
A maior e mais significativa diferença entre as obras está posta justamente
na introdução, na abertura da comédia, preenchida, em Camões, de aspectos do
mundo cortesão português de sua época, na estrutura geral do texto e na criação
dos personagens de sua versão da comédia. Assim como encontramos embutidos
na comédia de Camões os elementos típicos da lírica camoniana, como a temática
do desconcerto do mundo, os desenganos do amor ou a relação entre o amor e a
morte.
AMPHITRIÃO
Posto que espera pasmar Ver um caso tão estranho,
Todavia hei de atentar Se poderei concertar um desconcerto tamanho:
Quando dizeis que vim cá? (CAMÕES, 1981, p. 81)
A comicidade camoniana, embora siga as mesmas técnicas plautinas, o faz
de uma maneira muito própria, abrindo mão do riso popular e buscando um riso
cortesão, isto é, introduzindo elementos típicos da vida e do pensamento das
pessoas que integravam o mundo da corte portuguesa do século XVI. A Comédia
dos Amphitriões não é uma cópia de Amphytruo, mas uma recriação dentro dos
parâmetros da comicidade de sua época.
98
7.2 Semelhanças e diferenças entre O Amphytruo, de Plauto, e Anfitrião, ou
Júpiter e Alcmena, de Antônio José da Silva
Pode-se afirmar que os processos de criação da comicidade utilizados por
Antônio José são semelhantes aos que Plauto pôs em prática em Amphytruo. No
entanto, o Judeu escrevia para um teatro de marionetes, o que lhe proporcionava
uma maior liberdade como autor. Liberdade, no sentido das ações cênicas, nos
aspectos referentes ao espetáculo, como cenários, figurinos e até mesmo a
multiplicação de personagens, marca tão característica de sua versão do Anfitrião, é
extremamente facilitada por serem seus personagens bonecos/bonifrates. Ainda
assim, a grande diferença entre os dois textos, está no que se chama de “exagero
barroco”, caracterizado nesse caso, pela “multiplicação de personagens e situações
cômicas, bem como as projeções de um personagem sobre o outro ou de uma
situação sobre a outra.” (BRITO, 1999, p. 208)
Plauto vai propor, em seu teatro, essa espécie de “jogo de espelhos”, em
que os personagens acabam extraindo comicidade por conta da duplicação em mais
de uma obra, a situação se repete para além do Amphytruo, o mesmo ocorre em Os
Menecmoslxxiii. Antônio José da Silva vai se valer desse princípio o utilizar a
exaustão em seu Anfitrião. Antônio José da Silva se vale da comicidade de palavra,
situação e caráter, utilizando as técnicas da “repetição”, “inversão” e “interferência”,
criando a comicidade da mesma forma que Plauto e Camões, porém incitando um
riso mais de acordo com o exagero típico de sua época.
Na criação da “comicidade de palavra”, Antônio José da Silva busca o
humor, parafraseando de uma maneira excessiva a retórica conceptista, em voga
nas cortes portuguesa e espanhola, de sua época. A maneira erudita e artificial do
falar cortesão é levada ao ridículo na linguagem dos personagens de Anfitrião ou
Júpiter e Alcmena.
Enquanto o Júpiter de Plauto é algo majestático, que não vacila, imponente,
o Júpiter do Judeu, é um Júpiter profundamente humanizado, vacilante, indeciso,
fragilizado pelo amor de uma mulher. Características que surgem nas primeiras falas
da peça, quando, Antônio José da Silva cria comicidade a partir da linguagem
99
conceptista, circunscrita ao barroco, que dominava o teatro da época, como se pode
ver nas próprias palavras do personagem:
JÚPITER - Ai, Mercúrio, que este raio, que ignominiosamente adorna a minha onipotente destra, é o que agora se fulmina contra meu peito! Não é esta trisulca chama que devorou a soberba dos Ancelados, e Tifeos; é sim a fragoa de todos os raios, a fúria de todas as fúrias, e o estrago de todos os estragos; e para melhor dizer, é o simulacro do Cupido, cuja voadora seta, penetrando as iminências do monte Olimpo, sacrilegamente atrevida chegou a penetrar a imunidade de meu peito; e, como ofendido, e lastimado, já que nesse Rapaz tirano, nesse Monstro, nesse Cupido, não posso vingar o mal, que padeço, quero ao menos na sua estátua debuxar as linhas da minha vingança. (Júpiter canta uma ária e em seguida despedaça a estátua) (A. J. SILVA, 2004)
Assim, além da comicidade natural do rebaixamento do deus à condição
humana, surge a comicidade de palavra, instaurando-se na linguagem rebuscada e
melosa, com que o pai dos deuses lamenta e sofre a dor de um amor não
correspondido.
No Amphytruo há um triângulo amoroso formado por Júpiter, Alcmena e
Anfitrião, que servia de base para o surgimento de dois casais, um formado por
Júpiter e Alcmena e outro formado por Anfitrião e Alcmena. Esses casais são
repetidos em Anfitrião, vivendo situações semelhantes às de Amphytruo, utilizando
as mesmas técnicas da comédia latina, “repetição”, “inversão” e “interferência”. No
entanto, a grande diferença que o texto português tem em relação ao romano está
na multiplicação dos casais, que, por sua vez, multiplicam as situações cômicas do
texto. Antônio José multiplica os dois casais formados por Plauto e “inventa” nada
menos do que cinco casais em sua versão do Anfitrião. Ocorre naturalmente uma
necessária expansão das situações da trama, quiproquós da comédia e,
consequentemente, afastando-a bastante da história de Plauto.
Contraditoriamente, ao mesmo tempo em que essa multiplicação de
personagens afasta o autor da versão original e, mesmo da versão camoniana, a
vulgarização das relações amorosas geradas pela quantidade excessiva destas
mesmas relações na trama, aproxima a peça de Antônio José de uma comicidade
de cunho popular, bem ao gosto plautino.
Há, no entanto, uma sofisticação na utilização das ferramentas de
comicidade. Há uma clara situação de “repetição” na cena em que Mercúrio se faz
100
passar por Saramago e trava um diálogo com Cornucópia, repelindo as juras de
amor de sua esposa. O mesmo já havia ocorrido entre Saramago e Cornucópia.
A complexidade da estruturação da comédia de Antônio José está no fato de
que esta cena é, ao mesmo tempo, uma cena de “repetição” e de “inversão”,
inversão em relação ao encontro apaixonado entre Júpiter, travestido de Anfitrião, e
Alcmena, situação que se repete no mundo dos criados com uma perspectiva
cômica, reproduzindo de maneira invertida o que se deu no mundo dos Senhores.
Assim, Cornucópia, ao invés de aceita, como acontece com sua senhora, é repelida.
Há aí, claramente a repetição da situação e sua inversão.
A comédia de características barrocas, de Antônio José da Silva, mantém os
oito personagens de Amphytruo e introduz dois novos personagens que vão ampliar
a trama, além de incluir a presença de um coro. Sósia, personagem crucial, pois
alimenta a confusão propiciada pelo duplo, nome do qual se toma a referência às
cópias humanas, é transformado em Saramago. Apesar da mudança de nome, o
personagem manteve suas principais características do seu antepassado latino, que
tem como objetivo manter o riso nos rostos da plateia com os problemas que cria ou
as trapalhadas em que se mete. Seu personagem é um típico “gracioso”,
personagem luso, baseado no “pícaro” espanhol, parente do “arlequim” italiano,
personagem cujo objetivo é fazer rir, nesse caso, como sósia de Mercúrio.
Cornucópia, por sua vez, vai ter exatamente o mesmo tipo de comicidade,
funcionando como uma espécie de “gracioso feminino”, formando uma dupla cômica
com o seu marido Saramago. Os próprios nomes são risíveis e imediatamente
reconhecíveis pelos portugueses da época como nomes bem pejorativos.
Apesar de seguir, de uma maneira geral, as mesmas estruturas de criação
de Plauto, ao inserir o texto plautino numa estética barroca, Antônio José vai pautar
seu texto em dois aspectos: o “duplo”, repetindo personagens e situações, e o
exagero, fazendo com que praticamente cada personagem tenha a sua repetição em
outro. Portanto, graças a esse artifício da multiplicação, Anfitrião, ou Júpiter e
Alcmena cria situações de comicidade que não fazem parte do original de Plauto,
muito embora nele estivesse a sua base.
Utilizando os mesmo processos de criação da comicidade da Amphytruo,
Antônio José da Silva recriou a lenda grega, transformando o seu texto numa
espécie de paródialxxiv, em relação ao original latino, trabalhando, sobretudo, os
101
aspectos lúdicos da comédia, como a repetição de cenas e personagens, auxiliados
por uma linguagem conceptista nos diálogos. Assim também não faz imitação do
original romano, mas, sim, uma recriação que reflete vivências e estilos de sua
época estabelecendo inclusive uma postura crítica, na medida em que chega a
parodiar esse gosto pelo excesso, tão popular em sua época.
102
8 CONCLUSÕES
As primeiras recriações da obra de Plauto são datadas do Renascimento e,
entre as primeiras recriações do Amphytruo, estão justamente, a Comédia dos
Amphitriões, de Camões e Anfitrião, ou Júpiter e Alcmena, de Antônio José da Silva.
Este último precedido pela versão de Molière.
A obra de Plauto sobrevive no tempo, apesar de inúmeras transformações,
muito em função da extraordinária capacidade de divertir seu público. Ele não
hesitava em cometer todo tipo de transgressão aos cânones da comédia grega, em
cuja herança baseava seu trabalho. Muitas vezes transformava seu teatro em um
verdadeiro picadeiro de circo, dessacralizava as unidades de tempo, lugar e ação,
preconizadas por Aristóteles, seguida à risca pelos autores teatrais da Antiguidade
clássica e do Renascimento. Plauto se propunha, com toda certeza, a realizar um
espetáculo que fosse de fato popular.
A cultura popular sobrevive em meio a um constante movimento de
persistência e atualização. São forças, aparentemente, antagônicas que trabalham,
na verdade, em permanente troca, que alimenta e revitaliza suas estruturas porque
se atualiza, adaptando-se a novos espaços e a novos tempos. O que permanece,
mantendo um núcleo “invariante”, porém identificável, ao longo de diferentes
momentos e lugares, é o que permite tantas reelaborações de uma mesma obra.
Fato que ocorreu não apenas com o Amphytruo, mas com diversas outras obras
greco-latinas, em menor escala. A diferença é que o Anfitrião é o modelo
sabidamente mais copiado.
Na sua busca incessante de estabelecer parâmetros para o humor, Plauto
se valeu das técnicas de “repetição”, “inversão” e “interferência” no seu processo de
criação da comicidade de palavra, de situação e de caráter. Em Amphytruo, destaca-
se a técnica da “repetição”, por ser o mecanismo básico formador do duplo, criando
situações e tipos que se perpetuaram na comédia e a tornaram um paradigma para
as comédias que vieram a seguir. A obra plautina sobrevive porque há uma,
histórica e permanente, reelaboração que protege seus modelos de criação de
humor.
103
No caso do Anfitrião, o fenômeno gerador de comicidade se mantém o
mesmo em todas as obras porque a técnica utilizada para alcançar o riso se repete,
com mais ou menos refinamento textual ou com inversão de cenas, ou com a
multiplicação de personagens e de acontecimentos. Isso significa dizer que, muito
embora tenha origem na Comédia Paliata, tanto Camões, quanto Antônio José da
Silva reproduzem um mesmo sistema de geração de humor que está posto no
original de Plauto e que constituem técnicas populares de criação de humor, às
quais Bergson vai identificar e nomear como “comicidade de situação”, “comicidade
de palavra” e “comicidade de caráter”, que vem a ser aquilo que, de certa forma, é
universal no humor.
É claro que a matéria-prima da comicidade de Plauto, que era a vida
romana, transformou-se, de acordo com a época de cada recriação de Amphytruo.
Muito embora a cidade onde a história aconteça seja Tebas, “o que era uma tradição
da Comédia Paliata, dispor as situações da vida dos romanos em estruturas teatrais
antigas” (BRITO 1999), do mesmo modo, Camões fala de Tebas, mas na verdade
mostra hábitos e os costumes da corte portuguesa de sua época, assim como o faz
Plauto. Antônio José da Silva, mantendo-se fiel ao original, mantém Tebas, mas usa
uma linguagem rebuscada, culta, extravagante, característicos do fim do barroco,
fazendo sobre essa mesma linguagem uma crítica, que pode ser percebida,
sobretudo, na falta de paciência de Júpiter para com a excessiva “cantoria” do coro.
A diferença entre os autores é que no caso de Antônio José já há uma crítica à sua
própria época embutida no texto, mas é certo que ele também fala de seus
contemporâneos. O que leva a confirmar (BRITO,1999), quando este afirma que
“todos esses Anfitriões estabelecem a comicidade a partir do mesmo mito, buscando
revelar, cada um à sua maneira, o cotidiano da época de seu autor.” (BRITO, 1999,
p. 217)
Camões, na Comédia dos Amphitriões, mantém a estrutura de humor
presente em Plauto, porém adapta-o ao gosto cortesão de sua época, eliminando o
linguajar mais popularesco do original, mantendo inclusive a tradição ibérica das
redondilhas na fala das personagens, à moda de Gil Vicente.
CALLISTO
Pois não vos entendeo. Ora eu já cheguei a ler Petrarca, e crede de mi
104
Que nunca tal cousa vi. Onde mora o bom saber,
Logo dá sinal de si. (ATO I – CENA VI)
Trata-se, portanto de uma comicidade mais elaborada em sua linguagem,
com liberdades culturais como criar jogos dialéticos, discutir a razão ou a lógica do
amor, ou mesmo fazer alusões a grandes poetas como Petrarca. Camões não
direciona sua comicidade no sentido do riso rasgado e franco do povo, mas busca o
riso sutil e leve da corte.
A comicidade da Comédia dos Amphitriões é semelhante à de Amphytruo,
que nasce a partir da utilização de personagens duplicados, com a técnica da
“repetição”. No entanto, Camões, seguindo a tendência da literatura renascentista,
enriquece e aprofunda a utilização dessa técnica, fazendo um reiterado uso de jogos
dialéticos. A base desses jogos estava nas oposições criadas por Plauto, entre o
verdadeiro e o falso, o deus e o homem, o amante e o marido, o senhor e o escravo.
Entretanto, aquela que parece ser a maior diferença entre as obras, está
posta logo na introdução da comédia de Camões com a presença de elementos do
mundo cortesão português de sua época, assim como, aparecem embutidos em sua
comédia, elementos típicos da lírica camoniana já maneirista, como a ideia de
desconcerto do mundo, os desenganos do amor ou a relação entre amor e morte.
AMPHITRIÃO
Posto que pera pasmar Ver um caso tão estranho,
Todavia hei de atentar Se poderei concertar
Um desconcerto tamanho: Quando dizeis que vim cá?
(CAMÕES, 1981, p. 81)
Parece correto afirmar que, apesar das muitas semelhanças, embora siga as
mesmas técnicas plautinas, Camões o faz de maneira muito pessoal, própria do riso
cortesão, integrando elementos típicos da vida e do pensamento das pessoas que
viviam na corte portuguesa do século XVI. Então, parece lógico afirmar que não se
trata de uma adaptação, mas sim de uma recriação da obra dentro de parâmetros
estabelecidos em sua época.
Em relação ao Anfitrião do século XVIII, pode-se dizer que suas bases são
barrocas, sobretudo, por multiplicar seus personagens e suas tramas e por não se
105
preocupar com nenhuma lei de verossimilhança. Os processos de criação de
comicidade são semelhantes aos que Plauto pôs em cena no Amphytruo. Antônio
José da Silva procurou adaptar as situações da comédia latina de Plauto para a sua
época. Entretanto, enquanto Plauto visava um espetáculo teatral cuja ênfase estava
na interpretação do ator, Antônio José trabalhava para um teatro de bonecos que,
por sua própria natureza, dava mais destaque à cena do que à personagem. Mas a
grande diferença entre os dois textos encontra-se no exagero barroco da
multiplicação dos personagens e situações cômicas, bem como as projeções de um
personagem sobre o outro ou de uma situação sobre a outra. Criou-se uma
perspectiva teatral bastante distinta, repleta de excessos, que utiliza largamente a
comicidade de palavra, situação e caráter, com as técnicas de repetição, inversão e
interferência de séries, buscando o riso de acordo com o exagero típico de sua
época.
A maneira erudita e artificial do falar cortesão é levada ao ridículo na
linguagem de seus personagens. A grandeza e a majestade de Júpiter, no
Amphytruo, estão longe da fragilidade de seu homônimo barroco. Enquanto o deus,
na peça romana, caracterizava-se como um experimentado galanteador, o Júpiter
barroco é um deus profundamente humanizado, dominado por uma paixão
irrefreável, dependente do amor que o torna frágil e pequeno. Valendo-se de uma
linguagem rebuscada que dominava o teatro barroco da época, Antônio José cria
comicidade de palavra, instaurando-se na linguagem rebuscada do personagem,
além da comicidade natural do rebaixamento do deus à condição humana que sofre
por um amor não correspondido.
JÚPITER – Ai Mercúrio, que este raio, que ignominiosamente adorna a minha onipotente destra, é o que agora se fulmina contra meu peito! [...] é a frágoa de todos os raios, a fúria de todas as fúrias, e o estrago de todos os estragos; e para melhor dizer, é o simulacro do Cupido, cuja voadora seta, penetrando as iminências do monte Olimpo, sacrilegamente atrevida, chegou a penetrar a imunidade de meu peito; e, como ofendido, e lastimado, já que nesse Rapaz tirano, nesse Monstro, nesse Cupido, não posso vingar o mal, que padeço, quero ao menos na sua estátua debuxar as linhas da minha vingança. (Júpiter canta uma ária e em seguida despedaça a estátua) (SILVA, 1952, p. 11)
Antônio José da Silva segue, de uma maneira geral as estruturas de criação
da comicidade desenvolvidas por Plauto. No entanto, vai pautar o seu texto em dois
aspectos: o “duplo”, repetindo personagens e situações, e o exagero, fazendo com
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que praticamente cada personagem tenha a sua repetição em um outro. Esse
artifício de multiplicação cria situações de comicidade que não faziam parte do
Amphytruo, embora nele estivesse a sua base. O Anfitrião barroco termina se
transformando numa repetida brincadeira entre verdade e mentira, transformando
seu texto em uma espécie de paródia do original.
É evidente, portanto, que toda a essência da estrutura dramatúrgica que
está posta em Plauto, está presente, tanto em Camões, quanto em Antônio José da
Silva. Mas, se na peça plautina, a comicidade tem como ponto de partida o
“maravilhoso”, isto é, a descida dos deuses à Terra. Em Camões, esse maravilhoso
é apenas uma opção literária típica do período, uma vez que no século XVI, o
mundo ocidental, sobretudo o ibérico, era inteiramente cristianizado. Em Antônio
José da Silva, são tão repetidas as idas e vindas ao Olimpo, em que esse suposto
“maravilhoso” se banaliza, tornando-se uma mera brincadeira ou jogo teatral.
Entre as obras de Camões e de Antônio José da Silva pode-se notar uma
série de diferenças, como o fato de Camões utilizar um estilo clássico, com
situações de corte e fazer uso de uma poesia cheia de sutilezas, ao passo que
Antônio José, faz uso abundante da paródia, da sátira e de momentos cantados.
Camões cria uma obra que oscila em referências renascentistas e maneiristas,
enquanto Antônio José da Silva produz um texto essencialmente barroco, ainda que
se valha dos excessos do estilo para criticar o próprio estilo. A peça de Camões se
trata de uma obra inicial que já aponta para um Camões que mais tarde se impõe
como poeta único na literatura universal que, por vezes, sucumbe aos refinamentos
de seu gênio poético. Ao passo que, Antônio José, na maioria de suas obras, busca
como elemento aglutinador da intriga a sátira ao casamento e nisso se fia, criando
sua multiplicidade de personagens.
Sobre os personagens centrais da obra de Camões, Júpiter é o condutor da
história, apesar de o humor estar nos criados, sobretudo em Sosea, é ele quem
toma as decisões que transformam a trama e ratifica Mercúrio de seu ardil.
Em Antônio José, a impotência de Júpiter faz com que as escolhas sejam
feitas por Mercúrio. É ele quem arquiteta o plano para Júpiter conquistar Alcmena,
tornando-os, - Mercúrio, Saramago e Íris -, de certa maneira, os condutores da
história. Os criados acabam por reproduzir, mais ou menos, a mesma estrutura
narrativa que a de seus amos.
107
Sobre as estruturas das peças, as diferenças são muitas. A peça de Camões
é dividida em cinco atos, enquanto a de Antônio José da Silva, divide-se em duas
partes. Camões escreve toda sua peça em versos, metrificados, fazendo uso da
redondilha. Antônio José da Silva escreve sua obra inteiramente em prosa, salvo as
partes cantadas. Camões escreve uma peça para ser representada por atores,
enquanto Antônio José da Silva as escreve para bonifrates. Em Camões não há
rubricas, enquanto em Antônio José da Silva as rubricas servem para descrever os
cenários, a ordem de entrada e saída, além da movimentação dos bonecos.
Camões escreveu para um público universitário, bem letrado, em sua maioria,
estudante e professores da Universidade de Coimbra. Ao passo que, Antônio José
da Silva escrevia para o público das ruas do bairro da cidade alta de Lisboa, parte
boêmia da cidade de Lisboa, por componentes do viria a ser uma espécie de
pequena burguesia portuguesa. Camões foi aventureiro, viajou o mundo, quase
morreu no Oriente, perdeu um olho, regressou e escreveu a obra máxima da
literatura portuguesa, Os Lusíadas. Antônio José da Silva nasceu no Brasil, imigrou
para Portugal aos sete anos, formou-se em direito, mas conviveu por toda a vida
com a condenação de judaísmo proferida aos seus pais, herdada por ele, e que o
levou a morte por estrangulamento, em 1739, tornando-se conhecido desde então
como “O Judeu”.
Por fim, estabelecidas algumas semelhanças e diferenças entre a Comédia
dos Amphitriões, de Camões, e Anfitrião, ou Júpiter e Alcmena, de Antônio José da
Silva, se faz necessário confirmar que ambas foram escritas a partir do Amphytruo,
de Plauto, que se tornou a base dramatúrgica sobre a qual todos os outros autores
das mais diversas variações do Anfitrião e de outras peças cômicas partiram para a
concepção de suas obras.
Pode-se dizer de cada uma dessas obras, ainda, que, apesar de possuírem
uma mesma origem e, até mesmo personagens idênticos e tramas idem, tratam-se
de obras autônomas entre si e que dispensam plenamente o conhecimento uma das
outras para que se façam entender ou mesmo para gerar comicidade. Variantes que
são do texto original, não atuam no sentido de preservar o texto, sua função parece
ser outra, parece ser a de dar vigor ao texto e renová-lo em função das culturas
onde se reproduz. Consequentemente, “ao atualizar os textos tornam-se
108
representantes verdadeiros de tradições, de povos, de períodos históricos [...]”
(NASCIMENTO, 2000)
Cada versão do Anfitrião, a partir da fonte plautina, funciona na sua
intertextualidade como paródia da matriz, com intenção de manter um diálogo com
seu paradigma e um diálogo que diz respeito necessariamente à sociedade de cada
época e lugar para qual, e na qual ela é produzida. As peças de Camões e de
Antônio José da Silva não fogem à regra, ressoando um diálogo intertextual com a
de Plauto. E, no caso particular de Antônio José, ressoando ainda nela a presença
do Anfitrião, de Camões, sem que nenhum dos textos deixe de ser inovador ante o
modelo original.
De certa forma, o que Camões e Antônio José da Silva fizeram foi reescrever
Plauto e não criar uma nova obra. Criaram, sim, suas comédias a partir de Plauto e
se mantiveram fiéis em suas estruturas fundamentais, mas foram muito além de
fazer meras adaptações, fizeram recriações da obra de Plauto, seguindo
basicamente os mesmos moldes do texto original. E, se não fizeram obras
“originais”, também não realizaram obras que pudessem ser tratadas como “cópias
servis” do modelo plautino.
A análise dramatúrgica ultrapassa a descrição semiológica dos sistemas cênicos, visto que ela se pergunta, de maneira pragmática, o que o espectador receberá da representação e como o teatro desemboca na realidade ideológica e estética do público. Ela concilia e integra, numa perspectiva global, uma visão semiológica (estética) de signos da representação e uma pesquisa sociológica sobre a produção e a recepção destes mesmos signos (sociocríticas) (PAVIS, 1999, p. 116).
Em qualquer obra ressoam e repercutem outras que a antecederam. A
intertextualidade não implica a intencional atitude mimética por parte do artista.
Reconhecer influências ou precedências, mais ou menos marcantes, em
determinada obra pode não passar de mera repercussão do gosto e da tendência
deste autor e de sua época. O resultado deste “gosto”, ou desta “crítica”, ou de
ambas as coisas, obedece às reflexões de seu autor acerca da realidade a qual
viveu, e necessita da utilização de procedimentos textuais inéditos em relação à
tradição cultural que o precedeu.
Escrever, mais do que se expressar por meio da escrita, é, como diria
Barthes: sacudir o sentido do mundo. Repensando a história, questionando a
109
sociedade, revolucionando a forma, um escritor é capaz de reler o passado, pensar
o presente e vislumbrar o futuro.
A escrita, marcada no tempo nos possibilita dialogar com infinitos e distintos
interlocutores. Tão grande e potente é o diálogo que, ainda hoje, lemos textos
produzidos na Antiguidade, na Idade Média, nos mais remotos séculos. Potência
evidenciada, não pela nossa leitura ou pelo nosso simples interesse, mas pela forte
identidade que ainda mantemos com eles, pela maneira com que, os lendo,
podemos nos compreender melhor.
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i Sermão da Sexagésima, in. – Sermões Escolhidos. São Paulo: Edameis, 1965 V.II (VIEIRA 1965). ii Referente a Plauto, autor teatral romano, que viveu no século II a. C. iii Iremar Maciel de Brito, TESE DE DOUTORADO, O ANFITRIÃO VIAJANTE DO TEMPO, Niterói, 1999. UFF. iv A comédia brasileira, sobretudo a comédia de costumes, dotada de um humor farsesco, estrutura-se a partir da crítica de tipos e situações que, desde a Antiguidade Romana, frequentam os palcos do Ocidente. Sábato Magaldi, reconhecendo Martins Pena como criador da comédia de costumes brasileira, afirma: “Não lhe é estranha à galeria de vícios individuais, como a avareza e a prevaricação, e tem um sabor especial ao satirizar as manias e as modas”. Portanto, é evidente que o próprio Martins Pena vai se inspirar no humor plautino (MAGALDI 1996). v Comédia Nova, teatro cômico grego do século IV a. C. que pinta a vida cotidiana, apela para tipos e situações estereotipadas, cujos autores mais importantes são Dífilo e Menandro, e exerce forte influência sobre autores latinos, como, Plauto e Terêncio. Agostinho da Silva afirma que “a comédia, num breve lapso de tempo, num máximo de cinquenta anos perde todas as qualidades de fantasia irresponsável que tinha em Aristófanes; o seu plano passa a ser o da vida real, o da vida cotidiana, o da vida do indivíduo, dos casos individuais, dos interesses individuais.” (PLAUTO, 1969; p.11). vi Segundo, Brito, Plauto nasceu na Úmbria, muito provavelmente entre os anos de 255 e 250 a. C., e morreu em 184 a. C.. Foi um escravo liberto que alcançou fama, fortuna e reconhecimento como poeta cômico. É considerado o mais importante autor do teatro romano da antiguidade. Vinte e uma de suas comédias chegaram até os dias de hoje. No entanto, chegaram a lhe atribuir mais de cem textos. O primeiro grande poeta cômico de Roma alimentou a comédia romana com sua obra e com a influência revigorante do mimo popular. Segundo, Berthold, in História mundial do teatro, Plauto nasceu em Sarsina, e perambulou pelo país com uma troupe atelana, - uma comédia de tipos fixados, como o Maccus: o guloso - o modelo de ação dramática das comédias plautinas foi a Comédia Nova Ática, especialmente a obra do poeta dramático Menandro. Das cento e vinte peças atribuídas a Plauto, só nos chegaram vinte: Anfitrião, Asinária, Aululária (comédia da panela), As Baquis, O Cartaginês, Casina, O Cesto, A Corda, Os Cativos, Epídico, O Fantasma, O Mercador, Os dois Menecmos, O Gorgulho, O Prodígio, Pseudolo, O Persa, O Rústico, O Soldado Fanfarrão e Stico. Plauto soube satisfazer seu público pela vivacidade da ação, por uma intriga instigante, pela insolência, violência e realismo de seus personagens. Plauto, provavelmente, nasceu em 254 a. C. e faleceu muito provavelmente, em 184 a. C. vii Terêncio, na comédia romana do século II a. C., rivalizava em popularidade com Plauto. Foi igualmente um escravo liberto que alcançou notoriedade como poeta cômico, no entanto, quase toda a sua produção se perdeu no tempo. Sabe-se que nasceu próximo de 192 a. C. em Cartago, na África. E teria morrido em 159 a. C. viii Vaudeville, na origem, no século XV, era um espetáculo de canções, acrobacias e monólogos; no início do século XVIII fundem-se com os espetáculos de feira incrementados de música e dança. A ópera-cômica surge quando a parte musical se desenvolve consideravelmente. No século XIX, o vaudeville passa a significar uma comédia ligeira, sem pretensão intelectual. (PAVIS 1999, 417). ix Com a morte de Aristófanes, chega ao fim à era de ouro da comédia antiga. Há uma clara linha divisória a partir da morte de Aristófanes até o reinado de Alexandre, que ficou conhecido como Comédia Média. Em vez de deuses e heróis, passava-se a satirizar os pequenos funcionários vaidosos, cidadãos comuns, peixeiros, cortesãs, alcoviteiros, etc. Em suas máscaras amortecem o grotesco e trazem consigo a primeira pincelada do sentimental. (Apontamentos de aula do Prof. Walder Virgulino – TTTCM/UNIRIO, 2004). O termo Comédia Média também aparece em, Gassner, Mestres do teatro I.
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x Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido como Molière, nasceu em Paris, a 15 de janeiro de 1622 e morreu na mesma cidade a 17 de fevereiro de 1673. Foi dramaturgo, ator e encenador. É considerado um dos mestres da comédia satírica. Teve um papel de destaque na dramaturgia francesa. Molière usou as suas obras para criticar os costumes da época. E é considerado o fundador, ainda que indireto, da Comèdie Française. Por muitos é reverenciado como o Shakespeare da comédia. xi John Dryden, poeta e dramaturgo inglês, nascido em 1631 e, falecido, em 1700. Licenciou-se em Artes em 1654. Publicou depois Heroic Stanzas(1659), Astrea Redux(1660) e To His Sacred Majesty, A Panegyric on His Coronation(1661). Foi, no entanto, como dramaturgo que se tornou mais conhecido, através de tragédias como The Conquest of Granada, Aurangzib, All for the Love, Don Sebastian (sobre o rei português), e de comédias como e The Spanish Friar. Em 1668 foi nomeado poeta laureado e em 1670 historiógrafo da corte. Escreveu também ensaios, com destaque para Essay on Dramatic Poetry e Essay on Heroic Play (1672). xii Bernd Heinrich Wilhelm Von Kleist nasceu em Frankfurt, a 18 de outubro de 1777 e morreu em Berlim, a 21 de novembro de 1811. Foi poeta, romancista, dramaturgo e contista. É conhecido por sua comédia O Jarro Quebrado, pela tragédia Pentesileia e pelo conto Michael Kohlhaas. Sua versão de Anfitrião é tão somente uma adaptação da comédia de Molière. xiii Hyppolyte Jean Giraudoux nasceu em Bellac, na França, a 29 de outubro de 1882, e morreu em Paris, a 31 de janeiro de 1944. Foi escritor e dramaturgo. Estreiou em Paris, em 1929, seu Anfitrião 38, segundo ele a trigésima oitava versão do Anfitrião, de Plauto. xiv Guilherme de Oliveira Figueiredo nasceu em Campinas, em 1915 e morreu no Rio de Janeiro, em 1997. Foi autor e dramaturgo brasileiro, irmão do ex-presidente João Baptista de Oliveira Figueiredo. Estreou como dramaturgo em 1948 com a comédia Lady Godiva e o drama Greve Geral, ambos montados pela companhia de Procópio Ferreira. No ano seguinte, montou a peça Um deus dormiu lá em casa, inspirada no Anfitrião, iniciando uma série que o aproximou do universo dos mitos. xv Augusto Abelaira é nascido na aldeia de Ançã, Cantanhede, uma cidade portuguesa do distrito de Coimbra, em 1926. Mudou-se ainda jovem para a cidade do Porto, tendo-se licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade da Universidade de Lisboa. Abelaira participou activamente na luta contra o regime de Salazar e é autor da úlitma versão que se tem notícia no século XX. xvi Tragicomédia, peça que participa ao mesmo tempo da tragédia e da comédia. O termo (trágico-comoedia) é empregado pela primeira vez por Plauto no prólogo do Amphytruo. Na história teatral, a tragicomédia se define pelos três critérios do tragicômico (personagem, ação e estilo), ou seja, personagens pertencentes às classes populares e aristocráticas, apagando assim a fronteira entre a tragédia e a comédia. A ação, séria e até mesmo dramática não desemboca numa catástrofe e o herói não perece. E o estilo conhece altos e baixos: linguagem realçada e enfática da tragédia e níveis de linguagem cotidiana ou vulgar da comédia. (PAVIS 1999). xvii Homero foi um poeta épico da Grécia Antiga, ao qual se atribui a autoria dos poemas épicos Ilíada e Odisseia. De acordo com Martin West, Homero não é um nome de um poeta, mas um nome fictício ou construído. (WEST 1999). In, West, Martin. The invention of Homer. No entanto, não há consenso entre os estudiosos sobre a figura de Homero. O consenso é que a Ilíada e a Odisseia datam dos últimos anos do século IX a. C. xviii Hesíodo foi um poeta grego, geralmente tido como tendo estado em atividade entre 750 e 650 a. C. Acadêmicos modernos referem-se a ele como uma das principais fontes para a mitologia grega, as técnicas agrícolas, a economia, a astronomia e ao estudo do tempo. Autor de obras importantes como Os trabalhos e os dias e a Teogonia. xix É denominada “Idade do Bronze” o período histórico, ocorrido há cerca de 4 mil anos, na qual o homem descobriu a liga metálica de bronze, produzida a partir da mistura da liga do cobre com o estanho, e com esta começou a manufaturar objetos os mais diversos. O termo Idade do Bronze deriva das “Idades do Homem”, as fases da existência humana na Terra segundo a mitologia grega.
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xx Ptérela era um dos muitos descendentes de Perseu. Durante o reinado de Electrion em Micenas, os filhos de Ptérela foram reclamar aquele reino, ao qual diziam ter direito, uma vez que ali reinara seu bisavô, Mestor, irmão de Electrion. Este repeliu, indignado, às pretensões dos príncipes, que como vingança, lhes roubaram o rebanho. Desafiados pelos filhos de Eléctrion para um combate, houve grande morticínio, tendo escapado apenas um de cada família. Foi por amor de Alcmena, que Anfitrião empreendeu a guerra contra Tafos. (BRANDÃO, Mitologia Grega vol III 1999). xxi Hércules era o nome em latim dado pelos antigos romanos ao herói da mitologia grega Héracles (Heráklés), filho de Zeus e da mortal Alcmena. xxii Íficles, na mitologia grega, era filho de Anfitrião e Alcmena, meio-irmão gêmeo de Hércules. Quando ambos Hércules e Íficles tinham oito meses de idade, Hera enviou duas serpentes ao berço onde os dois irmãos dormiam. Hércules matou as duas com as próprias mãos. Há versões do mito que dão conta de que o próprio Anfitrião teria colocado as serpentes no berço para saber qual dos dois era o filho de Júpiter. xxiii Logos: O princípio da inteligibilidade; a razão. Segundo Heráclito, o princípio supremo de unificação, portador do ritmo, da justiça e da harmonia que regem o universo. Segundo Platão, o princípio de ordem, mediador entre o mundo sensível e o inteligível. (HOLANDA 2008, 1226). xxiv Mito: Fábula. Narrativa dos tempos fabulosos ou heroicos. Narrativa na qual aparecem seres e acontecimentos imaginários que simbolizam forças da natureza, aspectos da vida humana, etc. (HOLANDA 2008, 1341). xxv Barthes, Roland. Mythologies. Paris: SEUIL, 1972, p.137ss. (BRANDÃO, Mitologia Grega vol I 1999, 137). - Barthes, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Difel, 2012, p. 199. xxvi Metalinguagem: Linguagem utilizada para descrever outra linguagem ou qualquer sistema de significação. Todo o discurso acerca de uma língua, como as definições de dicionário, as regras gramaticais, etc. (HOLANDA 2008, 1320). xxvii Juno é a deusa da mitologia romana que corresponde a Hera na mitologia grega. A mais importante e poderosa deusa do Olimpo. Filha mais velha de Cronos e Réia. O ciúme e a vingança violenta são os principais traços de seu caráter. Foi ela quem impôs os doze trabalhos a Hércules e cegou Tirésias. Apesar de seu gênio, é cultuada como a protetora dos amores fiéis, da justiça e da bondade. (FERREIRA 2006). xxviii À farsa, geralmente se associa um cômico grotesco e bufão, um riso grosseiro e um estilo pouco refinado. Encontram-se farsas desde a época grega e latina; mas ela só se constitui enquanto gênero durante a Idade Média. (PAVIS 1999). xxix As Saturae eram a forma etrusca de comédia, semelhante à farsa folclórica, grosseira e fácil. xxx As farsas Atelanas eram vindas da cidade de Atela, na Campagnia, colônia grega da Sicília, e da Itália Meridional. Eram repletas de personagens estereotipadas e ricas em paródias. xxxi Os Ludi Megalenses eram um festival com jogos cênicos, comemorados pelos antigos romanos, sempre no mês de abril, em homenagem à grande mãe dos deuses, Cibele. Eram realizados no Palatino (a mais central das sete colinas de Roma e uma das partes mais antigas da cidade. Quarenta metros acima do fórum romano), em frente ao templo da deusa. xxxii Os Ludi Apollinares eram jogos solenes, inicialmente organizados em 212 a. C., realizados anualmente pelos antigos romanos em honra do deus Apolo. Os jogos eram realizados no Circo Máximo, com jogos equestres e performances de palco. xxxiii Os Ludi Romani eram um festival religioso realizado pelos antigos romanos em homenagem ao deus Júpiter. Passaram a ser anuais a partir de 366a.C., durante o mês de setembro. O festival introduziu o drama em Roma, com base no drama grego.
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xxxiv Os Ludi Plebeiis eram uma antiga festa religiosa romana, realizada sempre em novembro e incluíam um desfile de cavalaria, jogos, circo, performances teatrais e competições de atletismo. Os jogos comemoravam a liberdade política e pode ter sido celebrado entre as pessoas comuns. Foram estabelecidas como uma festa pública em 220a.C. Plauto apresentou pela primeira vez sua comédia Sticos nessa festividade, em 200a.C. xxxv Comédia de intriga é um tipo de comédia onde as personagens são esboçadas de modo aproximado e os múltiplos recrudescimentos da ação propiciam a ilusão de movimento contínuo da ação. (PAVIS 1999, 55). xxxvi O golpe de teatro é uma ação totalmente imprevista que muda subitamente a situação, o desenrolar ou a saída da ação. [...] Diderot, nas Conversas sobre o filho natural (1757), define o golpe de teatro como “incidente imprevisto que se passa em ação e que altera subitamente o estado das personagens” e o opõe ao quadro que descreve um estado típico ou uma situação patética. (PAVIS 1999, 187). xxxvii A Contrarreforma foi um movimento da Igreja Católica, no sentido de reafirmar a autoridade papal, a manutenção do celibato eclesiástico, a reforma das ordens religiosas, a edição do catecismo tridentino, reformas e instituições de seminários e universidades, a supressão de abusos envolvendo indulgências e a adoção da Vulgata como tradução oficial da Bíblia. Contrarreforma, também conhecida por Reforma Católica, movimento que surgiu resposta à Reforma Protestante iniciada com Lutero, a partir de 1517. Em 1545, a Igreja Católica Romana convocou o Concílio de Trento estabelecendo entre outras medidas, a retomada do Tribunal do Santo Ofício (inquisição), a criação do Index Librorum Prohibitorum, com uma relação de livros proibidos pela Igreja e o incentivo à catequese dos povos do Novo Mundo, com a criação de novas ordens religiosas, dentre elas a Companhia de Jesus. xxxviii Entre 1502 e 1536, Gil Vicente escreveu, interpretou, e colocou em cena, cerca de cinquenta autos, cuja maior parte foi reunida por seus filhos Luís e Paula Vicente numa compilação editada em 1562, e reeditada 24 anos depois, com graves mutilações impostas pela censura inquisitorial. Dividiram a obra paterna em quatro seções – obras de devoção, comédias, tragicomédias e farsas. xxxix A palavra maneirismo provém do vocábulo italiano, maniera utilizado para expressar o estilo de um artista: a maniera di Michelangelo, ou a maniera di Raphael. Segundo Hauser o maneirismo é também um estilo utilizado largamente pela corte e tem como conceituação um estilo elegante e intelectualizado. Na literatura, o maneirismo explora o petrarquismo de pendor espiritualizante pelas suas ligações com o neoplatonismo e o tédio da vida e o senso de efemeridade das coisas terrenas, a angústia da ausência e o terror da morte são facilmente conjugáveis com o desengano, o pessimismo e o ceticismo de raiz na Contrarreforma. xl Referente à Petrarca, poeta e humanista do século XIV, nascido em Arezzo, na região da Toscana, Itália. Denomina-se petrarquismo, a corrente estética que imita o estilo, as estruturas de composição, os tópicos e a imaginária do poeta. O petrarquismo foi uma poderosa corrente de inspiração lírica que se espalhou por toda a Europa com o Renascimento, sucedendo como fonte de inspiração na lírica ao amor cortês dos trovadores provenzais. O influxo se estendeu até o início do século XVIII. Fundamentalmente, os poetas do petrarquismo se dedicam a cultivar o soneto amoroso e reuni-lo em séries de poemas que documentam a história sentimental de seu amor pela dama em evolução desde o sensual ao espiritual por influência do platonismo. O petrarquismo adentrou o maneirismo e chegou a converter-se em algo artificial, científico e frio, de forma que, no século XVII, já no barroco, os poetas começaram a usar o mecanismo da paródia para criar vários cancioneiros burlescos.
xli Goa é um estado da Índia. Situa-se na costa do Mar da Arábia, a cerca de 400 km ao sul de Bombaim. É o menor dos estados indianos em território e quarto menor em população, é o mais rico PIB per capita da Índia. A sua língua oficial é o concani, mas ainda existem pessoas que falam o português, em função do domínio português na região por mais de 400 anos. Suas principais cidades
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são: Vasco da Gama, Pangim, Margão e Mapuçá. Goa foi a capital do Estado Português da Índia a partir de 1510, tendo sido integrada pela força na União Indiana em 1961.
xlii Macau é uma das duas regiões administrativas especiais da República popular da China, sendo a outra Hong Kong. Macau foi administrada por Portugal entre meados do século 16 até 1999, quando foi a última colônia remanescente Europeia na China. Comerciantes portugueses se estabeleceram em Macau desde 1550. Em 1557, Macau foi alugado para Portugal pelo império chinês como um porto comercial. Os Portugueses administraram a cidade sob a autoridade e soberania chinesa até 1887, quando Macau se tornou uma colônia do Império Português. A soberania sobre Macau foi transferida à China em 1999. xliii Os Lusíadas, considerado a obra-prima de Camões, o maior poeta português. Constitui um poema abrangente e expressivo do humanismo português acerca da viagem de Vasco da Gama às Índias. Poema épico que “canta” uma coletividade, de um peito ilustre, lusitano, em movimento, descobrindo o mundo. xliv A Comédia de El-Rei Seleuco funda-se numa passagem da vida de Seleuco Nicator, rei da Síria, que tendo sentido grande dificuldade em exercer vigilância sobre todas as partes de vasto império, entregou todas as províncias situadas para além do Eufrates a seu filho Antíoco, a quem deu o título de rei e, ao mesmo tempo, a mão da própria mulher, a jovem Estratônica. xlv Filodemo, foi a última comédia escrita por Camões. Possivelmente composta na Índia e dedicada ao vice-rei Dom Francisco Barreto. É uma comédia de moralidade, dividida em cinco atos, de acordo com a divisão clássica. A peça versa sobre os amores de um criado, Filodemo, pela filha, Dionisa, do fidalgo da casa de quem serve. O conteúdo geral da obra combina o nacionalismo e a inspiração clássica, seguindo a tradição das comédias de Gil Vicente. xlvi Antônio Ferreira, poeta dramaturgo português (Lisboa, 1528-1569), formou-se em direito pela universidade de Coimbra, onde lecionou. Jurisconsulto foi desembargador da Relação em Lisboa. Introdutor da Tragédia Clássica em Portugal, com a famosa Castro. Escreveu comédias e teve uma grande produção lírica. xlvii O neoclassicismo é o período que se impõe em contraposição ao “”excesso barroco”. Trata-se de um movimento artístico internacional surge de maneira mais evidenciada em meados do século XVIII e culmina no período napoleônico. No século XIX exerce grande influência no estilo oficial norte-americano. O neoclássico surgiu como reação à artificialidade do rococó e impôs como prática a simplicidade nas linhas, formas, cores e temas. Inspirou-se nas formas primitivas da arte clássica greco-romana. xlviii Bonifrates, marionetes de cortiça movidas por arame, equivalentes ao mamulengo nordestino brasileiro. xlix Guerras do Alecrim e Mangerona, Antônio José da Silva. l Graciosa aqui é em referência a um correspondente feminino para o gracioso, personagem popular cômico, semelhante ao arlequim, tipificado na vida e nos costumes portugueses. li Saramago é nome de uma erva da família das crucíferas, como o repolho ou a couve. lii Deus ex-machina era um tipo de recurso usado, sobretudo por Eurípides, em que o autor recorria a uma máquina suspensa por uma grua, a qual trazia para o palco um deus capaz de resolver, num passe de mágica, todos os problemas não resolvidos. É recurso usado muitas vezes, quando o dramaturgo encontra dificuldade para achar uma conclusão lógica e quando procura um meio eficaz para resolver de uma só vez todos os conflitos e contradições. “A comédia usa de subterfúgios aparentados ao deus ex-machina: reconhecimento ou volta de uma personagem; descoberta de uma carta, herança inesperada etc. Nesse caso, uma parcela de acaso é admitida nas ações humanas. Para a tragédia, em compensação, o deus ex-machina não é efeito do acaso e, sim, o instrumento de
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uma vontade superior; é mais ou menos motivado, sendo artificial ou inesperado na aparência.” (PAVIS 1999, 92). liii Epicizante: De caráter épico. Tendência do teatro, a partir do final do século XIX, é integrar a sua estrutura dramática os elementos épicos. Tendência que culmina como teatro épico de Brecht. liv As peças de Antônio José da Silva são chamadas óperas por terem partes cantadas. lv Antítese é uma figura de linguagem que consiste na exposição de ideias opostas. Ocorre quando há uma aproximação de palavras ou expressões de sentidos opostos. Esse recurso foi especialmente utilizado pelos autores do período barroco. O contraste que se estabelece serve, essencialmente, para dar uma ênfase aos conceitos envolvidos que não se conseguiria com a exposição isolada dos mesmos. lvi Paradoxo é uma declaração aparentemente verdadeira que leva a uma contradição lógica, ou a uma situação que contradiz a intuição comum. Em termos simples, um paradoxo é "o oposto do que alguém pensa ser a verdade". lvii Referente à lei das unidades: unidade de ação, de tempo e de lugar. Ver, Aristóteles, “A poética”. lviii Trova inicialmente era qualquer poema ou canção, chamando-se trovador o poeta ou aquele que declamava a trova. Depois, passou-se a chamar trova a forma fixa que hoje é empregada, isto é, o poema autônomo de quatro versos em redondilha maior. É um poema monostrófico (que contém uma estrofe apenas) com quatro versos heptassílabos (redondilha maior), sem título, que se completa em seus quatro versos. lix Mote é o verso ou conjunto de versos que é utilizado como desafio poético, para criação de uma composição poética como a glosa ou o vilancico. lx Volta é um tipo de composição poética de origem peninsular, constituída por uma estrofe inicial, onde é apresentado o tema (mote), seguida por tantas estrofes quantos os versos apresentados na estrofe inicial e devendo ser estes incluídos sucessivamente, um a um, no final de cada estrofe, para desenvolvimento do tema da composição, que é, sobretudo, amoroso. É sinônimo de “glosa”. lxi Agorentar – aperfeiçoar. Nota de pé de página “Theatro de Camões, Amphitriões”. lxii Obscena eram as cenas nas tragédias gregas que estavam na trama da peça, mas que não podiam ser assistidas pelo público ou pelo excesso de violência ou pelo excesso de lascívia. lxiii Ver Junito Brandão, Mitologia Grega. Vol, 1. lxiv As Grandes Navegações foram um conjunto de viagens marítimas que expandiram os limites do mundo conhecido até então. Mares nunca antes navegados, terras, povos, flora e fauna começaram a ser descobertas pelos europeus. Foi o período em que Portugal realizou sua experiência ultramar tornando-se durante os séculos XV e XVI uma das mais importantes e ricas nações da Europa. lxv José Tavares é o autor do prefácio de 1928 a obra teatro completo de Camões, artes gráficas Porto/PT. lxvi Zelos, ciúmes. Os zelos são, segundo o código amoroso dos séculos XVII e XVIII, a essência do amor. Ver: Anfitrião, ou Júpiter e Alcmena, p. 257. lxvii Flérida vem a ser a filha do Rei Teleba, el-rei Telera, na peça de Antônio José, a quem Anfitrião deu cabo da vida. lxviii Personagens da mitologia grega que fizeram parte das muitas aventuras amorosas de Júpiter. lxix Georg Büchner estudou medicina, mas seu espírito revolucionário logo encontraria um meio de expressão na literatura. Sua intenção de promover uma insurreição em Hesse sob o lema: ´Paz às cabanas! Guerra aos palácios!´, foi motivo de uma ordem de prisão, e ele refugiou-se na casa do pai.
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Ali escreveu A morte de Danton, em 1835, uma análise ao mesmo tempo exaltada e pessimista das causas do fracasso da Revolução Francesa, e que foi o primeiro drama realista alemão. Escreveu ainda, a comédia Leôncio e Lena, sátira às ideias românticas, e a novela Lenz, homenagem a J. M. Reinhold Lenz, membro, como Büchner, de um movimento literário conhecido como ´a jovem Alemanha´. Com Woyzeck, de 1836, sua última peça, influenciou o drama social que veio com os naturalistas e expressionistas. Com um argumento baseado em fatos reais, o autor denuncia cruamente a opressão dos humildes. Büchner morreu em Zurique, em 19 de fevereiro de 1837, com 23 anos de idade. lxx Alfred Jarry nasceu em 08 de setembro de 1873 e morreu em primeiro de novembro de 1907. Foi um escritor francês, mais conhecido pelo seu Ubu Rei, de 1896, que é frequentemente citado como um precursor do surrealismo no teatro dos anos 1920 e 1930. Jarry escreveu peças de teatro, romances, poesia, ensaios e jornalismo especulativo. Seus textos apresentam um trabalho pioneiro no campo da literatura conhecida como “absurdo”. Às vezes grotesco, às vezes incompreendido, Jarry também inventou um tipo fictício de filosofia chamado de patafísica. lxxi Mais essa untura na cara está fazendo alusão à pintura dos bonifrates. lxxii Sonho de uma noite de verão, é uma comédia, de William Shakespeare, escrita em 1590, que conta a história do casamento do Duque Teseu, com a rebelde Hipólita. Porém, antes do casamento, Teseu é chamado para resolver uma disputa amorosa envolvendo a romântica Hermia e seu pai, Egeu. Hermia ama Lisandro, mas Egeu deplora a idéia e quer forçá-la a se casar com Demetrio. Como Teseu sela o destino infeliz da garota, Hermia e Lisandro decidem fugir para a floresta. Enquanto isso, Demetrius é amado por Helena e também decide ir atrás de Demetrio. Os quatro se encontram em uma floresta povoada por sátiros, ninfas, fadas e outros seres encantados. Oberon, arma com Puck um plano ardiloso envolvendo uma poção mágica, que fará com que qualquer pessoa se apaixone pelo primeiro ser vivo que vir pela frente. Graças as trapalhadas de Puck, a poção faz com que a rainha da floresta, Titânia, se apaixone por um dos atores, convertido em burro. e leva os casais na floresta a caírem de amores pelos pares errados. Quebrado o encanto das poções, Oberon e Titânia fazem as pazes e os casais vivem felizes para sempre. lxxiii Peça teatral de Plauto em que dois irmãos gêmeos são separados num naufrágio junto com dois criados igualmente idênticos e ambos acabam se encontrando em uma cidade italiana anos depois sem que um saiba da existência do outro. lxxiv Segundo o Houaiss, dicionário da língua portuguesa, uma “paródia” é uma imitação cômica de um texto, peça etc.
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