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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SADE, AMBIENTE E TRABALHO
O corpo obeso e o trabalho das baianas de acaraj: um
estudo de caso na cidade do Salvador
Amanda Ornelas Trindade Mello
Dissertao de Mestrado
Salvador (Bahia) 2010
2
Mello, Amanda Ornelas Trindade Xxxxx O corpo obeso e o trabalho das baianas de acaraj: um estudo de caso na cidade do Salvador-Bahia / Amanda Ornelas Trindade Mello Salvador, 2010. Vi, xx f. Orientador: Prof. Dr. Ronaldo Ribeiro Jacobina Dissertao (Mestrado) Universidade Federal da Bahia Programa de Ps-Graduao em Sade, Ambiente e Trabalho da Faculdade de Medicina da Bahia.
1. Baianas de acaraj; 2. Obesidade; 3. Alimentao e cultura; 4. Sade do trabalhador; 5. Trabalhador artesanal.
CDU
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SADE, AMBIENTE E TRABALHO
O corpo obeso e o trabalho das baianas de
acaraj: um estudo de caso na cidade do Salvador
Amanda Ornelas Trindade Mello
Orientador: Ronaldo Ribeiro Jacobina
Dissertao apresentada ao Colegiado do Curso de Ps-graduao em Sade, Ambiente e Trabalho da Faculdade de Medicina da Bahia da Universidade Federal da Bahia, como pr-requisito obrigatrio para a aprovao na atividade obrigatria Defesa de Dissertao do Curso de Mestrado. Salvador (Bahia), 2010
III
4
Comisso examinadora Membros Titulares Vilson Caetano Souza Junior Professor adjunto da Universidade Federal da Bahia na Escola de Nutrio. Membro Permanente da Comisso de Avaliao e
Acompanhamento da Lei 10.639, participa do Sistema Nacional de Avaliao da
Educao Superior. Membro do Conselho de Cultura do Estado da Bahia. Doutor em Cincias Sociais pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (2001). ps
doutor pela Universidade Julio Mesquita - UNESP. Lgia Amparo da Silva Santos Professora Adjunta da Escola de Nutrio da Universidade Federal da Bahia; coordenadora do Ncleo de Estudos e
Pesquisas em Alimentao e Cultura (NEPAC-UFBA); Doutora pela Pontifcia
Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP).
Maria do Carmo Soares Freitas (co-orientadora) Professora Associada II da Escola Nutrio da Universidade Federal da Bahia. Doutora em Sade Coletiva
pelo Instituto de Sade Coletiva da Bahia (ISC-UFBA). Ps doutora pela ENSP
FIOCRUZ - RJ
Ronaldo Ribeiro Jacobina Professor Associado II da Faculdade de Medicina da Bahia (FAMEB-UFBA) do Departamento de Medicina Preventiva e
Social; Doutor em Sade Pblica pela Escola nacional de Sade Pblica
(ENSP)-FIOCRUZ-RJ.
IV
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... Dez horas da noite, Na rua deserta A preta mercando Parece um lamento...
(I abar)
Na sua gamela Tem molho cheiroso Pimenta da costa, Tem acaraj (, acaraj eco olala - Vem benz--em, t quentinho) Todo mundo gosta de acaraj Todo mundo gosta de acaraj O trabalho que d pra fazer que (bis) Todo mundo gosta de acaraj Todo mundo gosta de abar Todo mundo gosta de abar Ningum quer saber o trabalho que d Todo mundo gosta de abar Todo mundo gosta de acaraj Dez horas da noite, Na rua deserta Quanto mais distante Mais triste o lamento Dorival Caymmi, A preta do acaraj (grifos nossos).
(Disco: Caymmi Indito, 1996)
V
6
A toda as baianas de acaraj.
VI
7
Equipe:
Aisi Anne Carvalho Santana estudante do curso de Nutrio da Universidade Federal da Bahia.
Instituies participantes
Ncleo de Estudos sobre Alimentao e Cultura NEPAC. Fonte de financiamento:
1. Projeto CNPq: Edital MCT/CNPq/SPM-PR/MDA N 57/2008
VII
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Agradecimentos
Agradeo a professora Maria do Carmo Soares Freitas, um exemplo de mulher, estudiosa, pesquisadora e minha mestra de todas as horas pelo
ensino constante e por acreditar em mim muito mais do que eu mesma.
A Aisi Anne Carvalho Santana pelo estmulo de sempre. Aos meus alunos em especial a Tanie Barbosa Oliveira pelo apoio
imensurvel e pela disposio ao aprendizado.
A companheira Sara Emanuela Mota de Carvalho pela luz dada ao final do curso e pela amizade de sempre, mesmo que em alguns momentos
estivesse longe fisicamente.
Aos Espritos controles do Instituto de Cultura Esprita Carlos Bernardo Loureiro e a companheira de ideal Cristiane Amaral de Jesus,
pelo estimulo ao estudo e ao raciocnio. Aos amigos e companheiros Alberto Carvalho e Patrcia Dias Carvalho pela presena de sempre.
Aos meus familiares, minha me Margarida, meu pai Augusto, meus irmos Daniela, Rachel e Joo, aos meus sobrinhos Mateus, Marcos, Letcia
e o pequeno Rafael pelo apoio e por entender, muitas vezes, a minha ausncia.
Ao meu companheiro Alexandre, o seu carinho, a sua pacincia foram imprescindvel para a finalizao deste trabalho.
Aos meus colegas do MSAT, em especial a Nara, Rafaela, Gizane, Mirella e Lindinalva por esses dois anos de sorrisos, estresses e
companheirismo.
A Solange, pelas broncas e conversas, um exemplo de competncia. Ao professor Fernando Carvalho pela presena, pelos desentendimentos. Ns crescemos muito no confronto.
Ao meu orientador Ronaldo Ribeiro Jacobina pelo apoio, pela fluidez nas orientaes, principalmente ao final do trabalho.
Ao Ncleo de Estudos sobre Alimentao e Cultura - NEPAC, principalmente a Professora Lgia Amparo por mostrar possibilidade de
trabalhar com as baianas de acaraj. Ao grupo de estudos, pelo debate e
discusso de textos.
VIII
9
A Associao de Baianas do Acaraj, Mingau, Receptivo e Similares do Estado da Bahia - ABAM pela colaborao, apoio e pacincia por
possibilitar a realizao desse trabalho.
A todas as baianas de acaraj que so exemplos de mulheres
batalhadoras e resistentes.
Agradeo tambm a todos aqueles que ajudaram direta e indiretamente.
Aos que nada fizeram, pois no ajudaram, mais tambm no atrapalharam.
Aos que tentaram impedir, pois acredito que o ser cresce principalmente na
diversidade.
IX
10
SUMRIO
Lista de Siglas.............................................................................................. p. 12
Lista de Figuras ........................................................................................... p. 13
1. Resumo.............................................................................................. p. 14
2. Apresentao..................................................................................... p. 15
3. Objetivos ........................................................................................... p. 16
IV. Introduo............................................................................................... p. 17
V. Reviso da literatura................................................................................ p. 19
V.1. As ganhadeiras: o surgimento das baianas de acaraj na Bahia...... p. 19
V.2. As baianas de acaraj: patrimnio e tradio.................................... p. 21
V.3. Ofcio da baiana de acaraj: o corpo obeso e a sade..................... p. 28
VI. Artigo I. A obesidade e o trabalho das baianas de acaraj na cidade do
Salvador-Bahia.
VI.1. Resumo e Abstract........................................................................ p. 34
VI.2. Introduo...................................................................................... p. 35
VI.3. Aspectos metodolgicos................................................................ p. 37
VI.4. Caracterizao das baianas de acaraj do estudo ....................... p. 38
VI.5. O Trabalho da baiana de acaraj na cidade de Salvador-Bahia.. p. 39
I - um trabalho muito duro: o trabalho e a sade da baiana de
acaraj.......................................................................................................... p. 39
II Sinto muitas dores nos braos e na coluna: o sofrimento gerado pelo
processo de trabalho da baiana................................................................... p. 40
III Aparentemente no fumaa: o cheiro do dend............................. p. 43
IV Gordura sadia x gordura doentia: o corpo das baianas e o
trabalho......................................................................................................... p. 46
11
V Todo mundo acha que baiana gorda porque come acaraj o tempo
todo: as prticas alimentares no tabuleiro................................................... p. 50
VI.5. Concluso........................................................................................ p. 52
VI.6. Referncias Bibliogrficas............................................................... p. 54
VIII. Consideraes finais............................................................................. p. 58
O que que a Baiana tem, Dorival Caymmi.................................................p. 59
XIX. Referncias Bibliogrficas da dissertao............................................ p. 60
XX. Apndices
A - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
B - Roteiro de entrevista semi-estruturado
12
Lista de siglas ABAM Associao das Baianas de Acaraj, Mingaus, Receptivos e Similares do Estado da Bahia.
ABEPRO - Associao Brasileira de Engenharia de Produo. ASGOBS - Associao dos Gordos e Obesos de Salvador.
CEAO - Centro de Estudos Afro-Orientais
CLT Consolidao das Leis Trabalhistas
CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico
ENEGEP - Encontros Nacionais de Engenharia de Produo
HPA Hidrocarboneto Policclico Aromatizado
IPHAN. MINC Instituto Patrimonial Humano Nacional
LER/DORT - Leses por Esforo Repetitivo / Distrbios Osteo-musculares
Relacionados ao Trabalho
MinC Ministrio da Cultura
MSAT Mestrado em Sade Ambiente e Trabalho
NEPAC - Ncleo de Pesquisas sobre Alimentao e Cultura
SEBRAE Servio Brasileiro de Apoio a Micro e Pequena Empresa
SENAC Servio Nacional de Aprendizagem Comercial
SENAI Servio Nacional de Indstria
SESI Servio Social de Indstria
SUS Sistema nico de Sade
UFBA Universidade Federal da Bahia
13
Lista de Figuras
Figura 1: Ganho de comida. Sculo XIX. Foto: Cristhiano Junior.
Figura 2: Baianas de acaraj comercializando em seus pontos de venda
Terreiro de Jesus, Pelourinho. Salvador (BA), 2001. Foto: Elizabete de Castro.
14
RESUMO A baiana de acaraj parte integrante do cenrio turstico, social, econmico e
cultural do estado da Bahia, principalmente na cidade do Salvador. Trata-se de
um estudo de abordagem etnogrfica, realizado no perodo de setembro a
dezembro de 2009. O objetivo deste estudo analisar as acepes sobre o
fenmeno do corpo obeso das baianas de acaraj e suas condies de
trabalho considerando o livre curso de suas narrativas a respeito de sua
alimentao, seu corpo, suas condies de vida, sade e meio ambiente no
trabalho. O trabalho da baiana desgastante e requer muita dedicao. Ao
mesmo tempo em que a forma de subsistncia destas trabalhadoras, este
tipo de atividade pode trazer prejuzos sade destas mulheres. O fogo e a
fumaa e os movimentos repetitivos so apontados como possveis riscos para
a aquisio de enfermidades. Foi identificado que as baianas elegem um duplo
corpo em relao ao modo de viver no mundo: obeso para o seu trabalho de
baiana e magro para sua vida cotidiana. Neste sentido percebe-se tambm que
a falta de tempo para a vida social possibilita a baiana a no cuidar do seu
corpo e da sua alimentao.
Palavras Chaves: Obesidade; alimentao e cultura; sade do trabalhador; trabalhador artesanal
15
Apresentao Este trabalho sobre baianas de acaraj o produto final do curso de mestrado que teve a durao de 24 meses. A idia desse projeto nasceu
quando fui convidada pela Profa Lgia Amparo Silva Santos do Departamento
de Nutrio desta Universidade Federal da Bahia, para participar das reunies
do Ncleo de Pesquisas sobre Alimentao e Cultura - NEPAC. H dois anos,
o Ncleo estava trabalhando com aspectos scio-antropolgicos do acaraj e
outros quitutes, no que tange a tradio e a modernidade.
Na primeira reunio que participei, foi colocado por Prof Lgia que era
preciso ter uma maior ateno nas condies de trabalho das baianas de
acaraj e que o MSAT (Mestrado de Sade, Ambiente e Trabalho) poderia
ajudar muito com a minha entrada no grupo. Foi exatamente neste momento
que encontrei o objeto deste estudo. Coloquei esta possibilidade ao meu
orientador e co-orientadora que aprovaram a mudana. Iria trabalhar com
mulheres, negras, em sua maioria de baixa renda, na perspectiva do corpo
obeso. Fiquei satisfeita por ser soteropolitana e viver na cidade do Salvador.
Isso possibilita um convvio constante com estas trabalhadoras - baianas de
acaraj, pois elas fazem parte do cenrio da cidade e, inevitavelmente, de
minha vida.
Vale ressaltar que os termos baiana de acaraj, baianas de acaraj ou
simplesmente baiana ser utilizado em itlico com o intuito de diferenciar dos
indivduos do sexo feminino que nasceram na Bahia.
Foi aberto um edital no CNPq - Edital MCT/CNPq/SPM-PR/MDA N
57/2008 que apresentava o seguinte objetivo: Apoiar projetos de pesquisa
cientfica nas reas de relaes de gnero, mulheres e feminismos.
Concorremos e fomos contemplados.
Assim, esta dissertao est sendo apresentada em forma de artigo,
como produto final para publicao, esperando que a banca de defesa, caso o
estudo seja aprovado, faa as devidas correes.
16
II. Objetivos 1 - Geral:
Analisar as acepes sobre o fenmeno do corpo obeso das baianas de
acaraj e suas condies de trabalho considerando o livre curso de suas
narrativas a respeito de sua alimentao, seu corpo, suas condies de vida,
sade e meio ambiente no trabalho.
2 - Especficos
Analisar a percepo do corpo obeso para as baianas de acaraj; Observar e descrever as condies de trabalho, principalmente os riscos
(no espao de trabalho) das personagens envolvidas no que tange a sua
sade;
Analisar as prticas alimentares das baianas de acaraj no ambiente de trabalho.
17
I. Introduo A baiana de acaraj considerada um carto postal da cidade do
Salvador. Mas comercializao do acaraj antiga, tendo o seu incio no
perodo da escravido, com as escravas de ganho que saiam pelas ruas
vendendo os quitutes do tabuleiro. Este bolinho de feijo, frito no azeite de
dend quente comercializado h, aproximadamente, 300 anos.
Primeiramente, o acaraj era vendido ou oferecido nas festas de terreiro
de Candombl como cumprimento dos deveres religiosos que necessitavam
ser renovados com freqncia. Posteriormente o acaraj deixa de ser apenas
oferenda, passando a ser vendido como uma mercadoria nos terreiros, onde
foram adicionados outros produtos como: abar, vatap, caruru, salada de
tomate verde, passarinha, bolinho de estudante, cocadas, peixe frito etc. Esta
venda possibilitava a mulher o seu sustento e de sua famlia, alm da permitir a
compra da alforria dos maridos.
Desde as primeiras incurses em campo, para o exerccio etnogrfico
justificou-se a escolha de gnero neste estudo, que elegeu a mulher
trabalhadora como a protagonista de maior risco de obesidade do que os
homens. Associado a isso, estas mulheres esto em um lugar mais vulnervel,
uma vez que alm de trabalhadora, apresentam mltiplas jornadas de trabalho
que proporcionam as mesmas maiores dificuldades no enfrentamento da vida
diria.
A escolha pela categoria das baianas de acaraj se deu pelo sentido
destas trabalhadoras, como diria Luiz Fernando de Almeida, presidente do
IPHAN, serem monumentos vivos da cidade do Salvador e se apresentar como
parte inerente desta. Estas mulheres esto espalhadas por muitas partes da
cidade. Nesta cena de comrcio e religiosidade, estas trabalhadoras com suas
roupas e indumentrias de rendas e contas coloridas, chamam ateno seu
corpo gordo e volumoso. Os valores que cercam o tema da obesidade ainda no so conhecidos,
principalmente em comunidades originalmente tradicionais como as baianas de
acaraj. Nesse aspecto, pergunta-se: Como percebem a obesidade e o
trabalho? Que analogias fazem sobre estas situaes entre o corpo e o
ambiente de trabalho? Como dialogam a sua profisso e as suas prticas
18
alimentares no trabalho? Ser o trabalho da baiana determinante da
obesidade?
19
III. Reviso da Literatura 1 - As ganhadeiras: o surgimento das baianas de acaraj na Bahia
No sculo XIX, as relaes escravistas na cidade do Salvador eram
caracterizadas pelo sistema de ganho. As escravas ganhadeiras eram
mulheres, negras, que ocuparam, naquela poca, lugar destacado no mercado
de trabalho urbano. Poderiam ser encontradas escravas, colocadas nas ruas
pelos seus proprietrios ou mulheres libertas que lutavam para garantir o
sustento de sua famlia (IPHAN. MINC. MINC, 2004).
As ganhadeiras escravas eram obrigadas a dar aos seus senhores uma
quantia previamente estabelecida, a depender de um contrato acertado entre
as partes. Caso houvesse excedente, esta trabalhadora poderia junt-lo para
pagar a alforria dela e do marido ou gast-lo no seu dia-a-dia. Porm, muitas
vezes, os lucros da venda que lhe sobravam eram poucos, trazendo maiores
dificuldades para guardar o dinheiro. Apesar disso, o ganho era uma das
principais portas para a alforria (SOARES, 1996).
Tal prtica de comrcio ambulante de alimentos j era realizada na costa
Ocidental da frica como forma de autonomia das mulheres em relao aos
homens, o que, com freqncia, lhes conferia o papel de provedoras de suas
famlias.
Os principais itens vendidos pelas ganhadeiras eram os gneros de
primeira necessidade, em sua maioria, alimentcios, como hortalias, verduras,
peixes, frutas, comidas pronta (caruru, vatap, mingau, acaraj, bob); em
segundo plano, tecidos e miudezas.
Os tabuleiros poderiam ser fixos em pontos estratgicos das ruas (reas
mais movimentadas como a praa do Comrcio e o Cais Dourado, em
Salvador), mas, em sua maioria, eram carregados na cabea (HASBURGO,
1982). Este ato de equilibrar o tabuleiro na cabea ajudava a tornar o corpo
ereto, deixando as mos livres para o trabalho (Wetherell apud SOARES,
1996).
20
O mesmo autor afirma que as ganhadeiras se vestiam dos mesmos
trajes, de variadas cores, colorindo o cenrio urbano. Algumas levavam seus
filhos junto a elas, indicando que estas mulheres trabalhavam sozinhas pela
sobrevivncia.
Atualmente, a ida das crianas ao local do trabalho pode evidenciar a
manuteno da tradio ao propiciar as mesmas um momento para o
aprendizado do ofcio, mesmo que nas tarefas menos especializadas.
Estas mulheres equilibravam em suas cabeas tabuleiros, gamelas e
cestas, ocupando ruas e esquinas das cidades dedicadas ao mercado pblico
e feiras livres, onde vendiam quase tudo (SOARES, 1996). Porm era noite,
a partir das 19 horas, que as famlias esperavam as ganhadeiras passarem,
numa espcie de cerimnia, em que sua voz era aguda e alta anunciando a
sua chegada: I acaraj, i abar ou ainda acar, acar aj, acaraj
(IPHAN. MINC, 2004)
Segundo Mott (1976), o comrcio permaneceu por muito tempo a nica
atividade aberta s mulheres livres na sociedade escravista. Porm, devido a
presena expressiva, o Estado passou a estipular critrios que limitavam a
liberdade de movimento das negras vendedeiras, como pagamento de licena
ao Estado, fiscalizao da qualidade dos alimentos, entre outros. No entanto,
Figura1: Ganho de comida. Sculo XIX Fonte: IPHAN, 2004
21
mais tarde, aps muita luta e resistncia, estas mulheres puderam voltar a
comercializar seus produtos sem maiores dificuldades (SOARES, 2007).
Mesmo depois do perodo escravocrata e at os dias atuais, com
finalidade religiosa ou comercial, a venda de acaraj permite que as mulheres
aprendam uma profisso que ainda sustenta grande parcela da populao
soteropolitana, e que assumam mltiplas jornadas como chefe de famlia, me
e devota religiosa (CANTARINO, 2005).
Segundo Ferreira Filho (2003), Salvador era uma cidade de mulheres
guerreiras e resistentes apesar destas no o reconhecerem e, constantemente,
esperarem um salvador.
2 - As baianas de acaraj: patrimnio e tradio
Herdeiras dos ganhos, as baianas de tabuleiro, baianas de rua, baianas
de acaraj ou simplesmente baianas, preservam receiturios ancestrais
africanos, sobretudo da Costa Ocidental, com destaque para os dos Iorub.
Estas mulheres, negras e vendedoras, resistiram ao longo dos tempos
discriminao, devido a sua origem, sua cor e sua condio social, porm
conseguiram ocupar um lugar no espao cultural brasileiro, principalmente na
Bahia, na cidade do Salvador.
Pertencentes a um universo cercado pela ancestralidade, pela tradio,
pela cultura culinria, a baiana de acaraj, parte integrante do cenrio da
cidade do Salvador. Elas so monumentos vivos da cidade e dos terreiros de
candombl, fazendo parte da histria da sociedade, e da cultura do povo
baiano (IPHAN. MinC, 2004).
Os alimentos, principalmente as comidas prontas, que eram vendidos
nos seus tabuleiros, apresentavam caractersticas oriundas da nao africana,
de cultura marcante. A religio, a culinria, a dana formam uma teia de
significados trazidos por estes escravos que tiveram que adapt-los como
forma de sobrevivncia e manuteno das suas razes.
Cascudo (1983), afirma que os pratos baianos ditos de origem africana
so uma reinveno da culinria africana uma vez que outros estados
brasileiros como Minas Gerais, e pases como Cuba, tiveram a presena da
22
mesma nao de escravos, e hoje no apresentam caractersticas na sua
culinria como a da Bahia. Na verdade, aqui no Brasil, muitos pratos de azeite
de dend so reconhecidos como africanos, porm na frica os mesmos pratos
so caracterizados como brasileiros ou identificados com outros nomes. A
cozinha baiana a mais famosa cozinha do Brasil, a de maior carter
(BRANDO, 1948).
A cozinha baiana, como formao tnica do Brasil, tambm representa a
sntese do portugus, do indgena e do africano, porm foi este ltimo que
introduziu o azeite cheiro (azeite de dend), a pimenta malagueta, o camaro
seco, o leite de coco e de outros elementos, no preparo das variadas refeies
da Bahia (QUERINO, 2006). Como eram as mulheres negras que dominavam a
cozinha africana no demorou para que as receitas fossem introduzidas
mesa brasileira (CASCUDO, 1983).
Nos terreiros de Candombl, a comida ocupa um lugar fundamental. Ela
significa fora vital, energia, princpio criativo e doador de algo. Atravs da
comida oferecida aos Orixs, se estabelecem relaes entre o devoto, a
comunidade e o Orix. Sendo assim, cada Orix apresenta um tipo de comida
que lhe oferecido (Eb) pelo seu filho, como forma de manuteno deste elo
(SOUZA JUNIOR, 1999), como por exemplo, o akaraj tipo de comida de santo
oferecido a Xang e a Oy, mais conhecida como Ians, que, segundo a
tradio do Candombl, foi o ttulo dado por Xang (BASTIDE, 2001).
Com o objetivo angariar recursos para fazer o santo, ou seja, cobrir os
gastos necessrios s obrigaes de iniciao, era realizado, pelas mulheres, a
obrigao do acaraj. Isto significava uma autorizao para produo e venda
pblica por mulheres, escolhidas por Oy, iniciadas nos padres dos rituais
tradicionais do candombl. Segundo esse preceito religioso, tradicionalmente o
acaraj era vendido em gamelas de madeira redondas, semelhantes s usadas
nos terreiros de candombl para oferecer aos orixs e adeptos o mesmo
alimento sagrado (LODY, 1987).
Dentre os quitutes, trazidos pelas escravas, um dos mais conhecidos e
apreciados o acaraj. Esta palavra originada do Iorub e significa comer
bola de fogo (akar bola de fogo; j comer). Nos terreiro de candombl, o
verbo j acompanhado de preceitos, frmulas, palavras, cantigas e histrias
que ilustram seu profundo significado (SOUZA JUNIOR, 2003).
23
A origem deste bolinho explicada por um mito sobre a relao de
Xang com suas esposas Oxum e Ians. O bolinho se tornou um alimento
sagrado, uma oferenda a esses orixs (VERGER, 1981), principalmente a Oy
(Ians), a deusa africana que controla os ventos, as tempestades e os
relmpagos e tem poder sobre o fogo (BARBARA, 2002).
Neste sentido, quase imperceptvel, foi originada a designao da
profisso destas mulheres e a partir de ento, chamadas baianas de acaraj.
No h na literatura uma explicao do termo baiana. Deixaram de ser
nomeadas como ganhadeiras ou mulheres do ganho para serem baianas com
seus tabuleiros e quitutes e dend.
A resposta mais bvia a de que prevaleceu a naturalidade dessas
mulheres, sendo que a expresso de acaraj, explicada acima, estabelecia a
especificidade de seu trabalho.
No final da dcada de 40, as baianas comearam ento a arriar seus
tabuleiros da cabea para um ponto fixo no cho, diminuindo o peso do
deslocamento, mas aumentando a quantidade de instrumentos, como:
fogareiro, tachos, cestas de comida, panelas, banco e o tabuleiro de madeira.
Sentadas durante anos no mesmo lugar, adquiriram freguesias e no mais
necessitaram ir em busca do cliente. Este sai em busca do acaraj num
processo cuja digesto se inicia antes mesmo de ver o bolinho de feijo e
dend. O lugar do acaraj fica como uma referncia para quem passa e para
quem vem de longe degustar. Tudo depende da fama da baiana. No h como
separar o acaraj da sua sacralidade, ainda que muitos fregueses no sejam
adeptos do Candombl, mas este alimento nunca ser comparado a um lanche
qualquer da cidade do Salvador (RIAL, 2007).
Figura 2: Baianas de acaraj comercializando em seus pontos de venda Terreiro de Jesus,
Pelourinho. Salvador (BA), 2001.
Fonte: IPHAN, 2004
24
Espalhadas por toda cidade do Salvador, as baianas apresentam um
ofcio que requer fora fsica e ateno a todo o processo de produo do
acaraj. Para a jornalista Agnes Miranda, em entrevista (OLIVEIRA, 2009), o
ofcio de baiana de acaraj: um trabalho difcil e significa assumir o
compromisso de ser incansvel e ter coragem o tempo todo, assim como
Ians, a dona do acaraj.
Como artes, a baiana domina todo o processo de trabalho, e vive desse
produto. A diviso das etapas do trabalho rudimentar e a regulao do tempo
distinta de outros servios. A baiana chega ao ponto comercial no momento
em que os fregueses procuram o produto. Em geral, nas ruas da cidade se
come o acaraj a partir do meio dia. Na praia pode ser mais cedo.
O trabalho da baiana de acaraj tradicionalmente artesanal derivado
de uma forma individual, em que a trabalhadora, em geral, a proprietria do
seu material (instrumentos de trabalho), e vende o seu produto final (PENA,
2005). Embora seja artes, j se identifica um processo de assalariamento em
algumas atividades, mas isso persiste na esfera do trabalho informal, pois no
h contratao por meio de carteira assinada, conforme os ditames da
Consolidao das Leis Trabalhistas (CLT). H uma transio incipiente do
arteso tpico para a micro-empresa. Porm, atualmente, percebe-se uma
modernizao e ampliao do processo de trabalho possibilitando a criao de
pequenas empresas do acaraj.
Estas micro-empresas esto relacionadas ao processo de modernizao
que vem se apresentando na forma de fazer-acaraj. As inovaes e os
arranjos que so feitos servem para agilizar a produo dos produtos, como a
adaptao do motor ao moinho de moer o feijo ou at mesmo a aquisio da
massa pronta e congelada. Porm, segundo Xavier (2007), esta modernizao
no pode acontecer de forma que descaracterize a histria da baiana, baseada
em uma estrutura familiar permeada pela ancestralidade.
O ofcio destas baianas fundamentado em uma organizao familiar,
onde o aprendizado comea ainda na infncia, em casa, com as atividades
mais fceis, como catar o camaro. Os filhos, sobrinhas, agregados, cunhadas,
vizinhos formam um contingente de possibilidades para assumir o cargo de
ajudantes ou auxiliares dessas baianas. Por muitas vezes no ter onde deixar
as crianas, as baianas as levam ao ponto do acaraj e, neste espao,
possibilita o aprendizado do ofcio pelas mesmas, permitindo a manuteno da
25
tradio (MARTINI, 2007). Este fato demonstra a ascenso da mulher no
mercado informal adicionada a condio de mes-solteiras e a
responsabilidade da casa uma vez que, segundo informao obtida
diretamente na Associao de Baianas de Acarajs, Mingau, Receptivo e
Similares do Estado da Bahia (ABAM), setenta por cento (70%) das associadas
so chefes de famlia.
Dentre as atividades realizadas pelas baianas de acaraj esto: lavar,
tirar a casca e moer o feijo fradinho para a preparao da massa do acaraj e
abar; preparar o vatap, caruru; catar camaro; cortar quiabo; cortar tomate,
preparar o bolinho de estudante, as cocadas, o molho de pimenta. Alm disso,
estas trabalhadoras so donas de casa, mes e esposas, caracterizando
mltiplas jornadas de trabalho.
O ato de moer o feijo tradicionalmente realizado na pedra de ralar,
como descreve Manoel Querino (1851-1923), numa obra original e saborosa
sobre a culinria baiana (QUERINO, 2006), idealizada desde sua adolescncia,
concluda em 1916, mas publicada postumamente em 1928 (MIRANDA, 1998;
NORONHA, 2004). Segundo depoimento de Vivaldo da Costa citado por
Miranda (998), este ensaio foi a primeira descrio etnogrfica dos modos de
fazer acaraj. Querino, provavelmente o primeiro negro a publicar livros sobre a
histria e a cultura afrobrasileira, baseou sua pesquisa em depoimentos de
informantes conhecedoras da cozinha africana, parentes (tias) consangneas
ou por considerao religiosa, pertencentes aos terreiros nags mais
tradicionais da Bahia. O autor cita o acaraj no tpico sobre os alimentos
puramente africanos e descreve sobre a produo do acaraj, que o feijo
fradinho ralado na pedra, frito no azeite de cheiro (de dend) e servido sem
os acrscimos atuais, tais como vatap, caruru e salada. O acaraj era
consumido puro, protegido por parte de uma folha de bananeira, levando, no
mximo, quando era pedido, um pouco de molho preparado com pimenta
malagueta, seca, cebola e camares, modo na pedra e frigido em azeite de
cheiro (QUERINO, 2006).
Em geral, esta atividade de ralar no mais comumente vista entre as
baianas devido ao aumento do trabalho gerado e falta de tempo. No entanto,
h algumas baianas que, pela tradio, ainda preferem a pedra de ralar s
mquinas de moer cereais.
26
Mesmo com a introduo de algumas dessas inovaes, o processo de
trabalho destas baianas continua rduo. Requer dedicao, pois devido alta
demanda de atividades, esta emerge em um universo em que o tempo
dedicado quase que exclusivamente, para o processo de elaborao do
acaraj.
A principal atividade da baiana preparar e vender os quitutes (caruru,
bolinho de estudante, vatap, abar, passarinha, peixe frito etc.), que podem
ser chamados de comida de tabuleiro, comida de baiana (comida baiana) ou
comida de azeite (OLIVEIRA, 2009).
Desde 1998, h uma norma municipal Decreto municipal 12.175/1998
(SALVADOR, 1998) e outras portarias que regulamentam a profisso de baiana
de acaraj. A documentao regulariza a indumentria, padroniza o tabuleiro e
estipula regras de higiene e manuseio. De fato, as baianas so caracterizadas
por seus trajes (anguas, saias, batas, toro) e indumentrias, com colares e
pulseiras de contas, a simpatia e o sorriso constante.
Hoje o acaraj largamente comercializado pelas ruas de Salvador por
baianas originadas do candombl ou de outras religies, como a evanglica e
as pentecostais. Apesar disso, algumas baianas referem que este alimento
sagrado no pode ser dissociado do candombl (CANTARINO, 2005). Neste
sentido h um aumento de baianas nas ruas de Salvador, no s pelas
mulheres oriundas de outra religio, mas como a presena de homens e
tambm de mulheres que encontraram no acaraj uma forma de manuteno
da sua renda.
Segundo Martini (2007), a entrada do homem neste ramo se deu pela
falta de herdeiras da tradio em uma empresa familiar de Salvador. Assim, as
baianas autorizaram o primeiro representante masculino na atividade, no intuito
de inseri-lo no mercado de trabalho. Isto s ocorria em casos de morte de
parentes mulheres na famlia. Para o candombl, uma transgresso, uma vez
que suas regras diferenciam os ofcios masculinos dos femininos.
Devido ao aumento da comercializao do acaraj nas ruas de
Salvador, o Estado passou a se preocupar com a qualidade deste produto,
principalmente, no incio do novo milnio, aps a publicao de pesquisas
divulgando a falta de higiene no preparo do acaraj e sua divulgao na mdia.
Uma dessas pesquisas, publicada em 2000, avaliou a qualidade higinico-
sanitria de 23 amostras de acaraj e de seus complementos, comercializados
27
por Baianas em diferentes pontos tursticos de Salvador e seguindo padres
microbiolgicos especficos para cada um dos alimentos, segundo a Portaria
451/1997 do Ministrio da Sade, seguindo-se a metodologia da American
Public Health Association APHA obteve os seguintes resultados: 39,13% dos
acarajs; 82,6% das saladas; 95,65% dos vataps; e 100% dos camares-
secos encontraram-se em condies imprprias para consumo, por
apresentarem contaminaes acima dos padres legais vigentes, para
Coliformes fecais, Bacillus cereus, Staphylococcus aureus, Clostrdius sulfito
redutores e Salmonella. (LEITE et al., 2000) O Estado, a partir de ento, investiu na profissionalizao com
fiscalizao, concesso de emprstimos e implementao de cursos de
capacitao, como o Acaraj 10, que inicialmente era desenvolvido pelo
Programa de Alimentos Seguros (PAS), coordenado pelo Servio Nacional de
Aprendizagem Comercial (SENAC) e outras instituies mantenedoras como o
Servio Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), Servio Social do
Comrcio (SESC), Servio Brasileiro de Apoio a Micro e Pequena Empresa
(SEBRAE) e Servio Social da Indstria (SESI), e hoje com apoio da prefeitura,
est sendo ampliado para o programa Mo na massa (ANVISA, 2004).
Carvalho Filho, Guimares & Sobral (2005), avaliaram o Programa
Acaraj 10 atravs de questionrios que identificavam os conhecimentos e as
prticas de manipulao e higiene dos alimentos antes e depois do programa e
identificaram a sua eficcia.
A partir deste perodo, o oficio da baiana de acaraj foi reconhecido
como patrimnio cultural de Salvador, pelos vereadores, em 2004 ocorreu o
tombamento histrico das baianas de acaraj como patrimnio imaterial
nacional, pelo Programa Nacional do Patrimnio Imaterial - PNPI, institudo
pelo Decreto n 3.551, de 4 de agosto de 2000. O registro do Ofcio da Baiana
do Acaraj (inscrito no Livro de Registros e Saberes, das Celebraes, das
Formas de Expresso e dos Lugares) no reconhece apenas o acaraj, como
uma representao da culinria histrica, mas tambm outros saberes e
fazeres tradicionais aplicados na produo e na comercializao das chamadas
comidas da Bahia, feitas com dend (IPHAN. MINC, 2004).
Vale ressaltar, porm, que apesar deste reconhecimento para a
profisso de baianas, continuam precrias suas condies de trabalho. Na
grande maioria, so mulheres negras, visivelmente com sobrepeso ou obesas,
28
trabalham nas ruas, sentadas em pontos apropriados. No h condies
sanitrias para atender as demandas pessoais da baiana e nem higienizao
do ambiente ou do ponto do trabalho.
3 - O corpo obeso e o universo do trabalho feminino
A obesidade uma enfermidade que aparece na histria h mais de
vinte mil anos em obras nas quais mulheres obesas eram pintadas e
esculpidas. Provavelmente a enfermidade metablica mais antiga que se
conhece (REPETTO, 1998).
uma doena integrante do grupo de Doenas Crnicas No-
Transmissveis (DCNT), sendo o acmulo excessivo de gordura corporal em
extenso tal, que acarreta prejuzos sade dos indivduos. A etiologia da
obesidade um processo multifatorial que envolve aspectos ambientais e
genticos (PINHEIRO, 2004). Esta enfermidade representa o problema
nutricional de maior ascenso entre a populao, sendo considerada uma
epidemia mundial, presente nos pases desenvolvidos e os de economia
perifrica como o Brasil (MARIATH, 2007).
A projeo dos resultados de estudos efetuados nas ltimas quatro
dcadas indicativa de um comportamento claramente epidmico do problema
alimentar em que se observa uma mudana de hbitos e a ocorrncia de
efeitos danosos sade, como o aumento ao sedentarismo, maior produo de
alimentos industrializados e a globalizao. Estabelece-se, dessa forma, um
antagonismo de tendncias temporais entre desnutrio e obesidade, definindo
uma das caractersticas marcantes do processo de transio nutricional do pas
(BATISTA FILHO, 2003).
Em Salvador foi observado que 26,9% dos adultos soteropolitanos so
portadores de sobrepeso e 13,6% deles de obesidade. (ASSIS, et al., 2002),
mostrando um percentual relevante desta enfermidade na cidade.
O termo obesidade para Medicina uma doena multifatorial
caracterizada pelo ganho de peso excessivo com o ndice de Massa Corprea
(IMC) acima de 35 Kg/m2, sendo caracterizado hoje como um dos maiores
problemas de sade pblica. Porm as caractersticas do corpo com a
29
enfermidade pode no representar para algumas classes, principalmente as
populares, uma doena e sim uma escolha de ser.
Neste sentido, o estudo sobre o corpo, e neste caso sobre corpo obeso,
vem crescendo pelos profissionais de sade trazendo uma abordagem mais
voltada para as cincias humanas.
No livro Sade e Doena: um olhar antropolgico, Ferreira (1994)
apresenta algumas discusses sobre o significado de corpo. Para o autor o
corpo se reveste de interpretaes e significados. Ao corpo se aplicam
sentimentos, discursos e prticas que esto na base de nossa vida social.
Segundo Fischler (1995), atravs do corpo que os indivduos se manifestam
no mundo e revelam sua posio na sociedade. Dentro dessa perspectiva, o
corpo se sobrepe aos limites do biolgico, s condies materiais de vida, e
assume tambm dimenses socioculturais fundamentais.
Em diferentes contextos histricos, valores socioculturais relacionados
obesidade podem, por conseguinte, variar de uma sociedade para outra. Nesse
sentido, a corpulncia que, no passado, esteve associada idia de sade no
imaginrio coletivo hoje tem seu significado transformado (FOUCAULT, 1997).
Corpos obesos, que um dia inspiraram obras de arte, so hoje condenados
pelo contexto scio-cultural e pela biomedicina (MEURER & GESSER, 2008).
O corpo magro combina-se com a juventude, a leveza, ao gosto light,
produzindo um conjunto de novos prazeres, sensaes e sensibilidades
corporais (SANTOS, 2008). Para Dejours (1991), esta idia de leveza pode e
deve estar atribuda a agilidade no trabalho.
O corpo tambm pode ser percebido pelos seus cuidados em diferentes
classes sociais. Segundo Boltanski (1979), a preocupao que os indivduos
tm pelo corpo cresce com a ascenso social. Nas classes sociais privilegiadas
maior o cuidado esttico com o corpo e a preocupao com hbitos de vida
mais saudveis. Estas aes podem ser explicadas em funo do melhor nvel
educacional e intelectual presente neste segmento. Contrariamente, nas
classes populares a preocupao com o corpo menos freqente em relao
sade oficial e a esttica da elite dominante. Porm, esta viso de cuidado com
o corpo em diferentes classes sociais est ultrapassada, pois percebe-se que
as mulheres pertencentes a classe populares se apropriam do seu corpo de
forma diferente.
30
A idia de corpo pesado ou leve tambm pode estar relacionada ao
local em que este corpo est alocado. Neste sentido ser gordo em Salvador
no necessariamente seria o mesmo em outras localidades (SANTOS, 2008).
Como na Bahia, nas cidades que esto localizadas no interior do Estado, o
corpo gordo pode ser considerado forte, porm na capital, ele pode ser visto
como obeso, doente.
Os meios de comunicao tm sido instrumentos disseminadores do
movimento da globalizao corporal. Estes divulgam indiscriminavelmente o
padro de beleza ideal para mulheres proporcionando um culto ao corpo na
tentativa de alcanar um modelo esttico homogneo.
Segundo S (2002) no h mais espao para tantos excessos ou tanta
gordura. Os obesos experimentam alm da excluso social e da falta de poder,
uma baixa auto-estima que potencializa ainda mais compulsividade,
ansiedade, s insatisfaes sexuais e ao medo de se expor, to presentes
nesse processo de "engordamento".
Fischler (1995), estudando a obesidade na Frana, identificou que as
pessoas percebem esta enfermidade de forma ambivalente. Neste estudo o
autor encontrou um duplo esteretipo do gordo: um um homem rolio,
extrovertido, brincalho, bem relacionado, que sofre pela sua obesidade, mas
no deixa transparecer. O outro um doente depressivo, egosta sem controle
de si mesmo. O primeiro seria um obeso benigno e o segundo um obeso
maligno. Acrescenta o autor que atravs da nossa corpulncia so passados
significados sociais muito profundos. Devido a tal fato o individuo obeso deve
desempenhar papis sociais para que eles sejam aceitos pela sociedade, caso
no consigam emagrecer.
Em estudos com mulheres das classes populares, com obesidade, foi
identificado que as mesmas no se percebiam obesas. Neste caso, para essas
mulheres, o corpo visto de forma utilitria para o trabalho e representa a
necessidade de fora fsica para as funes que desempenham
(FERREIRA, 2005). Tais representaes revelam as noes de corpo, pessoa
e trabalho, cujas analogias enfatizam a idia do corpo utilitrio, apto
execuo das atividades rotineiras e do trabalho informal (FERREIRA, 2006).
A relao entre o trabalho, o individuo e o seu corpo tem significados
diferentes na medida em que o mesmo se torna consciente desta relao.
Devido a sua condio econmica, o corpo usado intensamente e, portanto a
31
ateno dada a ele restringida e conseqentemente h uma reduo da
quantidade e qualidade do trabalho que este fornece (BOLTANSKI, 1979).
Atualmente, no Brasil, as mulheres no trabalho, independentemente de
seus pesos, esto mais sujeitas a vulnerabilidade social. No raro esto
inseridas em postos de trabalho de menor prestgio e remunerao,
submetidas a longas jornadas, muitas vezes sem vnculos trabalhistas e so as
mais afetadas pelo desemprego (LAVINAS, 2001). De acordo dom Bulport
(1987), o assalariamento no qual as mulheres se inserem de forma significativa
um fato histrico. A diferena em favor dos homens grande, estes recebem
40% a mais, um hiato social que se torna maior em relao aos domiclios
chefiados por mulheres. A proporo de mulheres chefes de famlia tem
crescido no Brasil e isso provavelmente tem um impacto enorme no aumento
da pobreza e da excluso social (MELO, 2005).
As altas taxas de desemprego levaram muitas mulheres a se instalarem
em atividades informais. Apesar da diminuio da desigualdade de gnero no
mercado de trabalho, na dcada de 90, h uma ntida relao entre a diviso
de trabalho e a pobreza das mulheres. A insero feminina aconteceu em
paralelo com o crescimento das atividades informais e tem menor presena
sindical e desta maneira encontram-se mais expostas ao desemprego (MELO,
2005).
Neste sentido, estas mulheres se inserem no mercado informal com o
intuito de proporcionar uma condio digna a sua famlia e no raro vo as ruas
vender, principalmente, alimentos. Na cidade do Salvador existe uma
gastronomia muito sedutora e provavelmente isto faz com as mulheres
soteropolitanas escolham o acaraj para trabalharem. Este movimento se
concretizou, alm de outros fatores, com a criao de cursos para o
aprendizado do acaraj e outros quitutes, como o Projeto Mo na massa
realizada com o apoio da Prefeitura de Salvador, resultou em um aumento do
nmero de baianas na cidade do Salvador.
Apesar de haver uma mudana, mesmo que sorrateira para o
consumidor, da tradicionalidade que cercam as baianas de acaraj, no que
tange a religiosidade e dificuldades financeiras, esta modalidade de trabalho
apresenta aspectos que podem contribuir para o agravamento de patologias,
bem como aquisio de novas enfermidades.
32
Segundo Pena (2005), todo trabalho humano pode ser compreendido
tanto como um processo de manuteno da sade (enriquecimento
biopsquico, social, cultural e condies de viabilidade social), quanto
antagnico preservao da sade (trabalho realizado de forma fragmentada,
repetitiva, em ambiente insalubre e perigoso).
A partir dessa compreenso, a baiana de acaraj tem, por um lado, o
controle de grande parte do processo de trabalho, a propriedade dos
instrumentos de trabalho e comercializa diretamente o seu produto,
socialmente valorizado, vide o reconhecimento como patrimnio cultural em
2004; por outro lado, apesar de toda a valorizao, em especial, pela
visibilidade turstica para degustao de seu produto, este trabalho est sujeito
a acidentes e outros riscos; e, como trabalhadora informal, sem direitos
trabalhistas e previdencirios, ela no pode adoecer, pois isto resulta nas
perdas das vendas e no menor rendimento no final do ms.
33
ARTIGO I
OBESIDADE E TRABALHO DAS BAIANAS DE ACARAJ NA CIDADE DO SALVADOR-BAHIA, BRASIL
OBESITY AND WORK OF THE "BAIANAS DE ACARAJ" IN THE
CITY OF SALVADOR-BAHIA, BRAZIL.
AMANDA ORNELAS TRINDADE MELLO RONALDO RIBEIRO JACOBINA
MARIA DO CARMO SOARES FREITAS
34
RESUMO
Trata-se de um estudo de carter qualitativo cujo objetivo analisar as
acepes sobre o fenmeno do corpo obeso das baianas de acaraj e a
relao com sua sade, ambiente e prticas alimentares no trabalho. O
trabalho da baiana desgastante e requer muita dedicao. Ao mesmo tempo
em que a forma de subsistncia destas trabalhadoras, este tipo de atividade
pode trazer prejuzos sade destas mulheres. O fogo, a fumaa e os
movimentos repetitivos so apontados como possveis riscos para a aquisio
de acidentes e enfermidades. Foi identificado que as baianas elegem um duplo
corpo em relao ao modo de viver no mundo: obeso para o seu trabalho de
baiana e magro para sua vida cotidiana. Neste sentido percebe-se tambm que
a falta de tempo para a vida social possibilita baiana a no cuidar do seu
corpo e da sua alimentao.
Palavras chave: obesidade; sade do trabalhador; alimentao e cultura; trabalhador artesanal
ABSTRACT This is a qualitative study aiming to examine the meanings of the phenomenon
of the obese body of the "baianas de acaraj" and the relationship with their
health, environment and eating habits at work. The work of the "baiana de
acaraj" is exhausting and requires much dedication. While that is the livelihood
of these workers, this kind of activity can bring harm to the health of these
women. The fire, smoke and repetitive movements are mentioned as possible
risks for the acquisition of accidents and illnesses. It was identifeid that the
"Baianas de acaraj" elect a double body regarding the way of living in the
world: obese for their work and lean to your daily life. In this sense it is
perceived that the lack of time for social life allows them to not take care of their
body and their food.
Keywords: obesity, health worker, food and culture, handicraft worker.
35
Introduo
Verdadeiras construtoras do imaginrio que identifica a cidade de Salvador com suas comidas, sua indumentria, seus tabuleiros e suas maneiras de vender , essas mulheres, monumentos vivos de Salvador e dos terreiros de candombl, so um tipo consagrado, revelador da histria da sociedade, da cultura e da religiosidade do povo baiano. Oficio das Baianas de Acaraj (IPHAN. MINC. MINC, 2004)
A cidade soteropolitana da Bahia no Brasil tem trs milhes de
habitantes e existe cerca de cinco mil comerciantes do acaraj (ANVISA,
2004). So personagens femininas e nomeadas baianas de acaraj.
Espalhadas por toda cidade (tambm na zona urbana do interior do Estado da
Bahia), formam um cenrio esttico-visual prprio (SANTOS, 2008).
Estas baianas tm o ofcio de preparar e vender os produtos do
tabuleiro, principalmente, o acaraj em pontos de vendas apropriados, bem
como se vestir de forma adequada, com as indumentrias brancas (batas,
toros, anguas) e colares de contas coloridos, no candombl, chamados de
guia (MARTINI, 2007).
A comercializao do acaraj teve incio no final do perodo da
escravido (sculo XIX), com as escravas de ganho (ou ganhadeiras). Estas
trabalhadoras eram negras que ocupavam um lugar destacado no mercado de
trabalho urbano e que poderiam ser tanto mulheres escravas colocadas no
ganho pelos seus proprietrios, como mulheres libertas que lutavam para
garantir o seu sustento e de seus filhos. (SOARES, 1996). As ganhadeiras
trabalhavam nas ruas com quitutes em tabuleiros ou produtos da terra e do mar
que compravam para revender. Isto possibilitou a estas mulheres negras de
herana escrava, a compra da alforria dos maridos, a criao de irmandades
religiosas e manuteno do candombl (CANTARINO, 2005).
Nessa tradio de ganhar a vida, o acaraj - um dos smbolos da
comida de santo na Bahia - deixa de ser apenas uma oferenda, passando a ser
vendido como uma mercadoria dos terreiros de candombl, onde tambm
foram acrescidos outros produtos como: abar, vatap, caruru, salada de
tomate verde, passarinha (bao de boi), bolinho de estudante (massa de
tapioca frita), cocadas, peixe frito etc.
36
Recentemente, ocorreram algumas conquistas, em especial, o seu
tombamento histrico, em 15 de agosto de 2005, como patrimnio imaterial
nacional, pelo Programa Nacional do Patrimnio Imaterial - PNPI, institudo
pelo Decreto n 3.551, de 4 de agosto de 2000. O registro do Ofcio da Baiana
de Acaraj (inscrito no Livro de Registros e Saberes, das Celebraes, das
Formas de Expresso e dos Lugares) no reconhece apenas o acaraj, como
uma representao da culinria histrica, mas tambm outros saberes e
fazeres tradicionais aplicados na produo e na comercializao das chamadas
comidas da Bahia, feitas com dend (IPHAN. MINC, 2004). Outras conquistas
foram a inaugurao, em 9 de junho de 2009 do Memorial da Baiana do
Acaraj, situado na Praa da Cruz Cada, Salvador, Bahia (IPHAN. MINC,
2009); e o estabelecimento, por lei federal (DOU, 20/01/2010), do dia 25 de
Novembro como o Dia Nacional da Baiana do Acaraj (IPHAN. MINC, 2010).
Porm, vale ressaltar que, apesar deste reconhecimento para a
profisso de baiana, continuam precrias suas condies de trabalho. No h
condies sanitrias para atender as demandas pessoais da baiana e nem
higienizao do ambiente ou do ponto do trabalho.
Desta forma, o trabalho dessas mulheres se torna invisvel s polticas
pblicas e s relaes sociais em seus cotidianos, uma vez que possuem uma
rdua jornada de trabalho entre todo o processo de preparao do acaraj
somado responsabilidade com a casa e a famlia. Esta condio produz uma
fadiga crnica, que pode ser afrontada pelo sobrepeso e a obesidade. As
enfermidades associadas obesidade, como a hipertenso e a diabetes,
aparecem como parte de seus destinos ali embotados cuja sobrevivncia
previsvel permanentemente ameaada pelo meio ambiente do posto de
trabalho insalubre.
As primeiras incurses em campo, para o exerccio etnogrfico,
justificam a escolha de gnero neste estudo, vez que inicialmente elegem a
mulher e trabalhadora como a protagonista do risco de obesidade.
No livro Baa de Todos os Santos: guias de ruas e mistrios, Jorge
Amado (1977) traz alguns trechos de caracterizao das baianas: Maria de
So Pedro (...) serviu no alto de sua dignidade de preta gorda, famosos atores.
[...] Maria Jos gorda e risonha. Mulata de olhos dengosos.
Estas mulheres so nomeadas como baianas pelo seu trabalho, sua
identidade profissional que se confunde com a originalidade. Para o trabalho
37
usam vestimentas do candombl, como se transferissem para as ruas um rito
sagrado que est em si mesmas. Para elas, conforme nossa observao inicial,
o Santo protege sua filha para vender o produto, envolve seu tabuleiro, seu
posto de trabalho, seu corpo em que o movimento de mos e braos da baiana
faz analogia com a dana no terreiro de candombl.
Nesta cena de comrcio e crena, estas trabalhadoras com suas
indumentrias de rendas brancas e contas de muitas cores chamam a ateno
do pblico, em sua maioria, pelo seu corpo volumoso e tantas vezes em
sobrepeso e obeso.
Diante do corpo em opulncia, enquanto uma visvel representao
desse profissional, no mercado da Bahia, este estudo tem como objetivo
analisar as acepes sobre o fenmeno do corpo obeso das baianas de
acaraj, considerando o livre curso de suas narrativas a respeito de seu corpo,
suas condies de sade e prticas alimentares no trabalho.
Aspectos metodolgicos Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa, realizado no perodo
de setembro a dezembro de 2009, em Salvador, com dez baianas de acaraj
que trabalham em vrios pontos da cidade. A insero nesta comunidade se
deu a partir da escolha dessas trabalhadoras que mais se destacam nas
vendas do acaraj, conforme informao da ABAM (Associao de Baianas do
Acaraj, Mingaus e similares). Esta instituio indicou as baianas que poderiam
ser entrevistadas, levando em considerao os bairros que trabalham, locais
tursticos ou que apresentam uma caracterstica histrica na construo da
profisso como os bairros de Liberdade, Rio Vermelho e Comrcio, onde
surgiram as primeiras baianas de acaraj.
Por se tratar de uma cidade histrica, turstica e com a forte presena
cultural, em toda a cidade h o contato com uma baiana de acaraj. Este fato
facilitou os instrumentos metodolgicos utilizados como a observao
participante e os registros em dirio de campo, ainda que o foco mais
importante se deu em dez pontos da cidade, nos seguintes bairros: Barris,
38
Canela, Itapu, Barra, Praa da S, Pelourinho, Campo-Grande, Federao,
Rio Vermelho e Liberdade.
Nesse sentido, foram realizadas entrevistas com estas baianas cujos
encontros foram marcados diretamente com elas. As entrevistas foram feitas
no prprio local de trabalho, com o uso do gravador, seguindo um roteiro semi-
estruturado de questes que abrangeram trs blocos relacionais: o cotidiano do
trabalho; a obesidade e as prticas alimentares. As entrevistadas participaram
de modo voluntrio, assinando o termo de consentimento livre e esclarecido.
Os critrios para eleio dos sujeitos deste estudo foram: ser mulher; ser
baiana de acaraj; e trabalhar ao menos cinco dias na semana.
As entrevistas foram transcritas e analisadas identificando termos
analticos como palavras e sentenas significantes, as quais foram agrupadas
em categorias que revelaram similitudes e diversidades do tema estudado.
Para a categorizao foi construdo um quadro analtico com fragmentos das
falas e comentrios conjugados (MINAYO, 2006). A partir deste momento
realizou-se a escrita do texto.
Este trabalho foi aprovado pelo Comit de tica em Pesquisa da Escola
de Nutrio da UFBA em 18 de setembro de 2009 (parecer de nmero 20/09) e
financiado pelo CNPq (edital n57/2008).
Caracterizao das baianas de acaraj do estudo
As baianas entrevistadas so mulheres organizadas, associadas a
ABAM que fica situada no bairro do Pelourinho. Para elas, as verdadeiras
baianas so aquelas que apresentam uma gerao de mulheres que seguiram
o oficio de baiana de acaraj. Denominam-se baianas Patrimnio, ou seja
devem aprender o oficio desde a infncia no tabuleiro da me ou av e seguir
na profisso tambm perpetuando o mesmo para os filhos e netos.
Neste sentido, para este estudo foram entrevistadas apenas as baianas
patrimnio.
39
O Trabalho da baiana de acaraj na cidade de Salvador, Bahia
As baianas de acaraj so mulheres, em sua maioria, negras, que fazem
parte do cenrio esttico-visual da cidade soteropolitana, na Bahia - Brasil. Elas
trabalham vestidas com trajes prprios, sentadas com seus tabuleiros e esto
espalhadas por todo pas, vendendo os quitutes trazidos na poca da
escravido, como o acaraj e o abar.
I - um trabalho muito duro: O trabalho e a sade da baiana de acaraj
Todo o processo de trabalho da baiana acontece em trs espaos
distintos. Estes espaos fazem parte de um ritual que transcende a
originalidade de um trabalho artesanal, uma vez que este rito abrange uma
relao com o divino sacralizando todas as etapas do fazer-acaraj.
O primeiro espao do trabalho a feira. A presena da baiana neste
momento imprescindvel para a aquisio dos melhores gneros alimentcios;
o segundo espao a cozinha, onde ser realizado o pr-preparo e preparo
dos quitutes dos tabuleiros; e o terceiro espao o ponto de venda dos
quitutes. Este ponto um ambiente apropriado pela baiana e pode ser
localizado, principalmente, nas esquinas das ruas da cidade do Salvador.
Tanto o ponto de venda como o ofcio destas trabalhadoras so
passados de forma hereditria para as filhas, sobrinhas ou agregadas. Apesar
de, algumas vezes, haver a presena do homem, este trabalho fica centrado na
figura feminina. Estas aprendem desde criana algumas atividades, menos
especficas, tornando um espao de aprendizagem e destinao.
Todo este processo tradicionalmente artesanal, derivado de uma forma
individual, em que a trabalhadora, em geral, a proprietria do seu material
(instrumentos de trabalho), a baiana domina todas as etapas do trabalho e
vende o seu produto final para a sua subsistncia (PENA, 2005). Apesar de
haver caractersticas que demonstrem uma transio para o mercado formal,
uma vez que existe o assalariamento dos ajudantes que realizam algumas
atividades, esta organizao ainda se situa no mercado informal, uma vez que
no h contratao por meio de carteira de trabalho assinada conforme os
ditames da Consolidao das Leis Trabalhistas (CLT). No entanto em uma das
40
baianas entrevistadas foi identificada a eminncia de registro (pessoa jurdica)
do seu estabelecimento, com o intuito de obter maiores benefcios, como
aquisio de crditos e planos de sade para os funcionrios, alm do servio
de entrega em domiclio com o disk-acaraj.
Por ser artes, a baiana de acaraj est presente em todas as etapas de
preparao e venda dos quitutes. Este trabalho torna, para ela, rduo e
desgastante, alm de estar exposta a todos os riscos provenientes das
atividades realizadas. Todas as exigncias demandadas no processo de
fabricao do acaraj podem proporcionar s baianas problemas de sade
provocados pelas aes geradas na atividade laboral (dores, cansao, fadiga)
e pelas condies insalubres que este tipo de trabalho proporciona.
O artesanato no Brasil, de uma forma geral, no apresenta uma
regulamentao especfica para a proteo a sade e a segurana no trabalho.
O arteso, em geral, no tem direito ao seguro acidentrio. Com isso, o
adoecimento ou afastamento implica ao no trabalho destas mulheres e,
conseqentemente, a perda de vendas, pois esta atividade, muitas vezes, a
principal renda destas famlias.
II - Sinto muitas dores nos braos e na coluna: o sofrimento gerado pelo processo de trabalho da baiana
As condies de trabalho das baianas proporcionam as mesmas uma
espcie de fadiga crnica decorrente do processo de trabalho desgastante.
Casos graves e prolongados de fadiga so atualmente caracterizados como um
quadro sindrmico, a sndrome de burnout (burn out = queimar por completo),
quando h esgotamento fsico e mental intenso ligado vida profissional, com
perda de interesse pela atividade, que surge principalmente nas profisses que
trabalham em contato direto com pessoas em prestao de servio, como
conseqncia desse contato dirio no seu trabalho (FREUDENBERGER,
1974).1 Este um bom tema para pesquisa, pois, embora o trabalho da baiana
seja artesanal, ela vive pressionada a se manter permanentemente neste
processo fatigante.
1 Um dado curioso: o estudante Juliano Moreira, em sua tese inaugural de 1891, j caracterizava a fadiga crnica ocupacional e a relacionava com a gravidade e precocidade da sfilis (MOREIRA, 1991, p.75).
41
So dois espaos de trabalho da baiana, a cozinha e o ponto de venda
dos quitutes. Em ambos, diversos fatores podem contribuir para um processo
de adoecimento desta trabalhadora.
No trabalho da cozinha, as baianas passam em mdia sete horas, em
p, preparando os quitutes. Dentre as atividades esto o pr-preparo dos
alimentos e a preparao dos acompanhamentos como vatap e caruru, e de
outros quitutes do tabuleiro, como as cocadas e os doces.
Sinto muito as pernas porque a gente fica em p o dia todo, difcil a gente sentar, s na hora de almoar mesmo, ai senta um pouquinho, almoa. Na hora de cortar a salada, a gente senta tambm meia hora e mais ou menos, mas o que di mais so os braos e as pernas (Baiana Ana).
Por outro lado, no ponto, estas mulheres ficam nove horas sentadas,
fritando, vendendo e despachando os produtos, totalizando 16 horas de
trabalho. Ficar sentada por muito tempo. Sinto dores na coluna (Baiana
Joana).
Por ser um trabalho centrado na baiana, estas mulheres sentem o peso das atividades realizadas em seu corpo, em forma de cansao, dores e
doenas. Das atividades mais desgastantes em todo o processo de trabalho, o
ato de lavar o feijo e bater a massa do acaraj foi apresentado de forma mais
relevante para as baianas. ... tem um rapaz que lava o feijo porque ns em
casa temos uma quantidade grande de feijo, a coluna no agenta (risos)
(Baiana Isadora)
Isto proporciona s mesmas um desgaste que se agrava, uma vez que,
esta profisso no apresenta regulamentao especfica no Brasil em relao a
sua sade e segurana no trabalho, em que as doenas e os acidentes
gerados pela atividade laboral ou os acidentes ocupacionais passam
despercebidas pela Previdncia Social. Eis um exemplo de acidente de
trabalho:
Ontem fui comer acaraj, mas a baiana no estava no ponto. Disseram que ela est internada h 15 dias porque o tacho cheio de dend quente virou em cima dela (Anotaes do Dirio de Campo).
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O fazer-acaraj associado ao uso de equipamentos, muitas vezes
improvisados, pelas baianas pode resultar em situaes adversas,
ocasionando em adaptaes nocivas do corpo ao trabalho. Atividades
exaustivas, prejudiciais a sade, constituindo riscos para Leses por Esforo
Repetitivo / Distrbios Osteo-musculares Relacionadas ao Trabalho (LER/
DORT).
As narrativas demonstram que muitas destas mulheres j apresentam
enfermidades relacionadas ao trabalho, uma vez que a exposio s atividades
que geram movimentos repetitivos acontece desde a infncia, quando j
iniciam algumas atividades. Toda a baiana tem [leses]. No comeo eu no
tinha, mas agora vai chegando aos quarenta, vai comeando a aparecer
tendinite, busite [sic], LER, por causa da movimentao repetitiva (Baiana
Isadora).
Em outros estudos realizados com trabalhadores artesanais tambm foi
identificada a presena de movimentos que possibilitem o aparecimento de
doenas relacionadas ao trabalho, principalmente, as LER/DORT. Pena (2008),
ao estudar as marisqueiras, tipo de trabalho artesanal com extrao de
mariscos, da Ilha de Mar, Salvador-Bahia, identificou nove casos de
LER/DORT entre as mesmas. Silva et al. (2006), estudando rendeiras, em uma
comunidade em Fortaleza-Cear, identificou a presena de esforos repetitivos
entre estas trabalhadoras, porm nenhum caso da doena foi diagnosticado a
poca.
Estas e outras questes relacionadas a sade da baiana se agrava
quando as mesmas priorizam o trabalho e os afazeres em detrimento de
preveno da sade, como a ida a um servio de sade, voc fica escrava de
si prpria (Baiana Solange). Alm disso, justificam que no apresentam plano
de sade e esperar pelo Sistema nico de Sade (SUS) demandariam muito
tempo. Alm disso, a ida a um servio pblico no garante o atendimento
adequado. Em estudo com mulheres obesas, Silva (1995) constatou que os
profissionais de sade apresentam limitaes para o atendimento estas
mulheres, uma vez que este profissional tem dificuldade de enxergar a mulher
fora do seu papel de me. Devido ao fato da maioria das mulheres brasileiras
e, neste caso, as baianas acumularem vrias funes (me, trabalhadora, dona
de casa) como forma inerente para a sua sobrevivncia, demanda um
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atendimento que percebesse estes mltiplos espaos ocupados pela mulher
hoje.
Em 2003, o Ministrio da Sade lana a Poltica Nacional de
Humanizao da Ateno e Gesto do SUS, conhecido como HumanizaSUS
que apresenta como um dos conceitos de humanizao do SUS: Luta por um
SUS mais humano, porque construdo com a participao de todos e
comprometido com a qualidade dos seus servios e com a sade integral para
todos e qualquer um. Apesar deste avano no servio pblico, isto no atinge
a baiana, pois a mesma no prioriza a sua sade, porque o seu trabalho a
sua principal fonte de renda, e este tempo para a realizao das atividades
sagrado.
Ademais da exigncia do seu trabalho e a escravizao no tempo, as
baianas utilizam de manobras para evitar a dor proveniente do processo de
trabalho: As vezes eu uso doutorzinho (para as dores no corpo), as vezes eu
fao massagem. No outro dia alivia, e pronto (Baiana Ana).
Neste sentido, de extrema importncia um olhar atento das polticas
pblicas para esta categoria profissional, no que tange os possveis danos
causados pelo processo de trabalho. Porm, alm deste fator, existem outros
que tambm proporcionam possveis causadores de enfermidade, como o
cheiro do dend.
III - Aparentemente no fumaa: o cheiro do acaraj Uma das atividades realizadas pelas baianas de acaraj o ato de fritar
os bolinhos de feijo, em tachos com azeite de dend aquecido, podendo este
a chegar a mais de 200C.
Em alguns estudos foram evidenciados que a coco de alimentos,
principalmente, a fritura pode originar compostos orgnicos prejudiciais sade
como os Hidrocarbonetos Policclicos Aromticos (HPAs) (Pereira Neto et al,
2000).
Os HPAs pertencem a uma famlia de compostos que possuem dois ou
mais anis aromticos fundidos. So substncias que podem ser encontradas
em todos os compartimentos ambientais, em misturas complexas e sua
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importncia se deve ao fato de ter um potencial carcinognico (Pereira Neto et
al, 2000).
A exposio dos alimentos a altas temperaturas (acima de 200C) gera a
formao de HPAs, principalmente atravs da pirlise das gorduras. Estes
tambm podem ser produzidos por queima de outras fontes orgnicas como as
protenas e os carboidratos (Camargo & Toledo, 2002).
Segundo a Portaria 3214/78 NR1, anexo n 13 Agentes qumicos,
acrescentada pela Portaria 14 de 20/12/95: Hidrocarbonetos Policclicos
Aromticos e seus compostos carbono so considerados substncias
cancergenas (Brasil, 1978; Brasil, 1995). O contato desta substncia com os
olhos pode provocar irritao com vermelhido das conjuntivas. O risco est
mais associado ingesto e aspirao dos hidrocarbonetos, em que a partir
da no s a baiana, mas tambm os consumidores podem estar expostos.
Em pesquisa na cidade do Salvador com anlise de hambrgueres foi
identificado uma elevada quantidade de HPAs nestes alimentos que podem
contribuir para a aquisio de doenas. Este fato se agrava uma vez que ainda
no h estipulado a quantidade mnima deste componente que pode ser
ingerida pelo ser humano sem lhe trazer prejuzos a sade (Santana, et al.,
2009).
Nas entrevistas com as baianas, muitas referiram que a fumaa do
dend era prejudicial a sade, apesar delas no apresentarem nenhum
respaldo cientfico, o trabalho dirio proporciona o aparecimento de alguns
sintomas:
E outra coisa que me prejudica no acaraj o azeite. Tem dias que eu sinto muita rouquido. Agora mesmo estou sendo encaminhada para um oftalmologista para fazer um exame (das vistas) devido a fumaa (Baiana Maria). Porque aparentemente no fumaa, mas isso aqui esse cheiro todo dia bate em cima de voc e a pode vir um prejuzo sim, como para muitas Baianas j vieram (Baiana Helena). A fumaa incomoda um pouco, a fumaa do azeite que eu trabalho. A gente no pode ficar tomando essa fumaa toda hora, mas a gente tem que tomar, essa fumaa prejudica muito a sade da gente. Fica todo dia tomando essa fumaa no bom. A maioria das baianas comea a ter problemas cardacos devido a essa fumaa (Baiana Ana).
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Alm dos aspectos patolgicos que esta fumaa pode proporcionar s
baianas, existe uma particularidade simblica, encontrada na intersubjetividade
destes sujeitos que atribui a sua obesidade, o seu corpo gordo ao confronto
dirio com o cheiro do dend, resultante da fritura do acaraj. Misericrdia,
eu digo, s esse cheiro de acaraj aqui me engorda (...) possvel, porque
antes de eu trabalhar com o acaraj eu no tinha esse corpo (Baiana Helena);
Eu tenho pra mim que o que engorda a baiana o dend, a satura do dend, a fritura. Aquilo ali constante [aponta para a fumaa do dend fritando acaraj], voc engorda. No tem baiana que no engorde (Baiana Sara).
O seu corpo pode at estar emagrecido pela falta de uma alimentao
adequada, mas, ao se inserir no universo do acaraj como uma baiana, seu
corpo se encontra, a partir de ento, destinado a ser um corpo obeso.
Segundo a Teoria dos Miasmas, estudado por muitos pesquisadores
(Lan Entralgo, 1978; Machado, 1978; Czeresnia, 1997), no sculo XVIII,
muitas das enfermidades que assolavam os indivduos, naquela poca, eram
causadas pelo mau cheiro ou odores. Estes continham os miasmas e eram
transmitidos pelo ar. Enquanto a teoria do contgio estava relacionada ao tato,
a teoria miasmtica enfatizava o olfato. Eram relatados que as pessoas que
estivesse em locais com mau cheiro e o aspirassem poderiam ser
contaminados e desenvolver qualquer tipo de doena. Os miasmas seriam
todas as emanaes nocivas, as quais corrompiam o ar e atacavam o corpo
humano. A atmosfera podia ser infectada por eflvios resultantes da alterao
e da decomposio de substncias orgnicas, vegetais, animais ou humanas
(Chernoviz, 1890, p. 421). Para a 'teoria miasmtica', tanto o meio fsico quanto
o social seriam produtores de miasmas. Essas emanaes eram combatidas
pela renovao e circulao do ar. Tudo que estivesse parado, estagnado
poderia ser um elemento perigoso sade pblica, um produtor de miasmas.
Inicialmente, supunha-se que a doena estava no ar e que, portanto, era
necessrio faz-lo circular (Martins, 1997).
Pode-se realizar uma analogia aos miasmas de provenincia espiritual
que tambm so nocivos sade incorprea. Estes seriam todas as sujidades
associadas ao profano que ficariam presas ao corpo imaterial (ou Esprito)
podendo tambm ocasionar enfermidades. Segundo Carrel (2005) quando os
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sinais e sintomas de uma doena se fazem presentes no corpo, indicam que a
causa desta manifestao j se encontra no Esprito.
Em ambos os casos deve haver uma higienizao do corpo ou do
Esprito em que evitaria certos tipos de enfermidades.
Em Salvador, nas festas de largo, pode ser percebido, as limpezas que
so realizadas atravs dos banhos de folhas, banho de pipoca, banho de sal
grosso, que so preceitos, oriundos do Candombl, realizados para retirar o
mau olhado proveniente das relaes interpessoais e espirituais.
Segundo Souza Junior (2003), o equilbrio que existe entre o fiel e o
orix designado pelo fechamento do corpo. Segundo o autor Fechar o
corpo o mesmo que passar por uma srie de prescries rituais capazes de
garantir a sua proteo. Ter o corpo fechado significa ter ax, ter fora, fora
que pode aumentar ou diminuir. ter poder, sucesso, realizaes. Significa
estar sadio. Afirma tambm que o corpo se abre em situaes especficas
quando o ax diminui e o corpo fraqueja, o que se expressa na doena.
H nas falas das baianas uma combinao entre a teoria qumica da
mudana de estado (do lquido azeite de dend - para o gasoso
representado pela fumaa na fritura do bolinho no azeite e a idia da teoria
miasmtica de que, pelo olfato, aspirando a fumaa de modo contnuo, a
quituteira fica obesa (s esse cheiro... me engorda, aquilo ali constante, voc
engorda).
As falas acima tambm expressam uma viso tradicional do adoecer a
viso ontolgica, onde doena entra e sai do homem como por uma porta
(Canguilhem, 2006, p.19). A herana, os aspectos dinmicos da pessoa no
tm importncia, ou, pelo menos, no tm tanto importncia como os agentes
externos, em particular a fumaa, relacionada a tantos valores simblicos pelos
saberes religiosos.
IV - Gordura sadia x gordura doentia: o corpo das baianas e o trabalho
Diante das narrativas, foi identificada uma diferena entre o corpo para o
trabalho de baiana e o corpo para a vida social. O corpo para estas mulheres
mais do que um instrumento de execuo do trabalho. Ele faz parte de um
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campo esttico em que este corpo volumoso adicionado s suas roupas, suas
vestimentas, seus adereos se apresentam como uma condio para suas
vendas. como se o encontro do fregus com um corpo gordo e caracterizado
se apresentasse de forma positiva, trazendo a idia defendida h tempos atrs
em que gordura seria significado de poder e ostentao. Porque o corpo da
gente representa mais a baiana, a gente meio magrinha fica meio estranha. A
gente fortizinha j sai mais, a baiana sai mais, representa mais um pouco a
baiana (Baiana Ana, grifo nosso).
Segundo Meurer & Gesser (2008), existe um elo entre a beleza e o
poder retratados pelos corpos esculpidos da sociedade contempornea,
sugerindo a idia de que pessoa obesa, que um dia inspirou obras de arte,
hoje condenada pelo contexto scio-cultural e pela medicina e responsvel por
sua obesidade, devido falta de vontade de se exercitar/disciplinar e de
autocontrole. No entanto, neste estudo, a mulher enquanto trabalhadora, esse
elo se apresenta situado em seu corpo volumoso, centrado na baiana de
acaraj como um carto postal da cidade do Salvador.
Este fato pode ser observado na baiana Ceclia. Seu ponto localizado
no corao do Pelourinho, onde h muita passagem de turistas. Porm a
mesma no permite que lhe tirem uma foto sem que lhe paguem uma quantia
de R$10,00 ou comprem o seu acaraj. A partir da corpo e beleza passam a
ser atributos do mercado como um objeto de consumo.
Em estudo de Ferreira (2006), realizado no Rio de Janeiro, com
mulheres obesas, a autora identificou um corpo obeso apto para o trabalho.
Entre um corpo magro e gil e um magro e doente este ltimo parecia ser
ameaador para o trabalho. Particularmente neste grupo, o uso do corpo pode
compreender uma viso mais utilitria, fruto da importncia da fora fsica nas
ocupaes desempenhadas (trabalhos informais).
No sculo XIX, um pouco de adiposidade era sinal de status e riqueza e
conseqentemente prestgio social. Em contraponto a essa idia do sculo
retrasado, hoje o mnimo sinal de gordura rechaado. Alm disso, os
referenciais de obesidade e magreza podem mudar com o tempo. No passado,
era preciso ser bem mais gordo para ser julgado obeso e bem menos magro
para ser considerado magro. (Fischler, 1995, p 79). Porm este referencial
pode tambm mudar com o lugar, o ambiente que ele est alocado. Ser gordo
em Salvador, no necessariamente implica o mesmo em outras localidades
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(Santos, 2008 p, 98). O termo obeso para o doente, portador de uma
patologia, mas o termo gordo no necessariamente se refere a uma doena.
H em Salvador, com sede no Pelourinho, uma Associao dos Gordos e
Obesos de Salvador (ASGOBS). Distino no separao e, no por acaso,
ela foi adotada para nomear esta organizao da sociedade civil.
Segundo Tonial (2001) o corpo magro est relacionado entre as classes
mais populares enquanto corpo fraco, inapto para enfrentar as tarefas dirias
de trabalho. Porm nas classes mais altas, o corpo magro representa um
padro utilizado como forma de ascenso ou promoo social, como requisito
de insero no mercado de trabalho e como smbolo de status social.
No Brasil, o estudo de Zaluar (1985) revelou que para as mulheres das
classes populares, a obesidade era por vezes valorizada como elemento de
fora. Silva (1995) verificou em seu estudo com mulheres obesas de baixa
renda que a obesidade era um atributo sexual importante no grupo. Freitas
(2002) realizou um estudo em um bairro popular de Salvador, onde a
obesidade, nesta comunidade, no considerada uma doena, mas antes uma
escolha de ser, em que a esttica corporal representa sade e atrativo sexual.
Em outros momentos histricos ser obeso significava beleza, grandiosidade e
feminilidade (Meurer & Gesser, 2008). O corpo ertico e sensual era
representado pelas formas arredondadas.
Neste sentido h um paradoxo existente nos discursos destas mulheres
que elegem um corpo obeso para o trabalho de baiana e um corpo mais magro
para a vida cotidiana. Que as baianas magras me perdoem, mas a gordura em si, eu t falando aquela gordura sadia, que voc fica bem na roupa. Aquela gordura doentia no, no serve, nem pra mim nem pra ningum. Pelo menos a minha ela sadia (Baiana Helena).
Baiana magra feinha, baiana magra feia (risos). Eu reclamo assim: eu sou gorda para meu marido, quando eu tiro a roupa aquele negcio, mas eu gorda para o meu trabalho? Eu me acho o mximo. H 13 anos eu era um palitinho, vestia as roupas, ficava tudo balanando em mim, e agora no, eu to chique, eu me acho um mximo (Baiana Joana).
Este corpo obeso para a vida social no satisfatrio, pois quando no
esto em seus pontos de trabalho, o referencial de corpo referido por estas
trabalhadoras o padro de beleza divulgado pela mdia: corpos magros,
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esculpidos e belos. Eu queria perder uns quilinhos (Baiana Helena).
Adicionado a isso, este corpo obeso sempre relacionado com a esttica que
apresenta a baiana de acaraj, mas no como um corpo doente que pode ser
adquirir outras enfermidades. Porque tem pessoas que gorda demais por
doena n? E tem aquelas pessoas gordinhas, cheinhas, que uma gorda
cheinha, mas a sade t inteira (Baiana Helena).
Eu sou uma pessoa que eu gosto de tudo de mim, eu no sinto complexo de nada, eu no me acho feia de nada, tudo para mim est confortvel, eu to achando agora que eu estou com uma barriguinha, estou caminhando todos os dias pela manha e fechando a boca, s tenho colesterol alto. Baiana Maria
Segundo Gonalves (2004), estas mulheres podem achar a sua
corpulncia normal, por exemplo, pelo fato de que algumas doenas
atualmente associadas obesidade pela Medicina como hipertenso arterial,
diabetes, colesterol elevado e muitas outras, no apresentarem sintomas nas
fases iniciais, o que pode tornar mais difcil a busca pelo tratamento, pois no
sente a doena (dor, por exemplo). Este fato pode ser agravado quando se
sabe que existe por detrs de todo o processo de trabalho um ritual de
oferenda. Neste sentido, agradar o orix pode trazer uma sensao de prazer e
satisfao, mascarando todo processo de dor e sofrimento que pode gerar este
tipo de trabalho.
No candombl, os corpos mais aceitos so os volumosos, corpulentos,
por existir uma relao destes com os rituais desta religio. Estes corpos
significam sade e beleza. Neste sentido, um freqentador desta religio no
deve realizar nenhum tipo de dieta, ou regime, pois quem determina as formas
anatmicas do seu corpo o Santo que faz sua cabea, ou seja, o Orix e
isso determinado desde o seu nascimento.
Nas narrativas percebe-se uma relao com as formas do corpo e o
Candombl. Vou logo dizer, numa roda de samba, quando t todo mundo
vestido, as gordinhas ressaem mais at. Porque a roupa combina mais, cai
melhor a roupa (Baiana Helena).
Neste sentido, o conhecimento do corpo, das percepes sensoriais,
para o Candombl um aspecto importante para a inicializao, e
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possibilidade de danar no rito pblico desta religio (Barbara, 2002). A
gestualidade e a dana podem ser entendidas como uma linguagem ou como
uma outra possibilidade da palavra, pois o corpo que fala ao grupo social
(Leite, 1996).
O corpo volumoso da baiana e os movimentos de suas mos e braos
se apresentam de forma inerente ao trabalho, no mais como um instrumento
apenas para a execuo das tarefas. A movimentao do seu corpo na batida
da massa e fritura dos acarajs remete a um ritual presente nas festas de
Terreiro que a dana dos Orixs. Com o corpo movimentando de forma
cadenciada, ombros levemente arqueados, seus braos seguram forte a colher
de pau, como quem segurasse o chicote de Ians. Seus braos levantam e
abaixam a colher na massa, em um movimento circular de fora para dentro,
como quem puxasse o alimento para si. Ao formar o bolinho com a colher e
coloc-los em pequenas quantidades nos tachos para fritar, as baianas
realizam mais um movimento, agora, lateralizado. Com os braos arqueados,
na altura dos ombros, estas mulheres afastam e aproximam seus membros do
corpo em um movimento tpico da dana africana.
Um momento de naturalizao das relaes com o sagrado ao colocar a
panela no meio de suas pernas estas mulheres estabelecem um elo com a
fertilidade representada por cada bolinho retirado do seu ventre. Assim com
sua me Ians.
Este ritual se encerra na venda do acaraj para o cliente, sempre aberto
ou furado, nunca fechado, com o intuito de impedir que o utilizem de forma
prejudicial baiana, uma vez que a sacralizao com o divino deve ocorrer da
me para a filha. o sagrado e o profano que se encontram no universo do
acaraj.
V - Todo mundo acha que baiana gorda porque come acaraj o tempo todo: as prticas alimentares no tabuleiro
O trabalho da baiana apresenta muitas atividades e isto requer
dedicao desta trabalhadora sua atividade laboral. Devido a isto, a baiana
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prioriza o seu trabalho em detrimento de outras atividades como, por exemplo,
o lazer, a alimentao e o cuidado com o corpo.
Em muitas narrativas foi referido que a quantidade de trabalho que elas
realizam muito grande impossibilitando a ida a servios de lazer como ir ao
teatro, ao cinema, praia, e tambm a prtica de atividade fsica, como
caminhadas, pois o tempo que se apresenta para o trabalho e para o
descanso.
Adicionado a escravizao no tempo, estas trabalhadoras no
apresentam uma rotina alimentar, principalmente, em seu ambiente de
trabalho. Em sua maioria elas no se alimentam enquanto esto trabalhando,
pois referem no ter tempo para isto. Aqui eu no como. Porque eu no sinto
fome por causa das coisas que eu fao. Uma vez na vida e s como metade (o
acaraj) porque no desce, enjoa (Baiana Sara).
Alm disso, o acesso aos alimentos pode conduzir os grupos menos
favorecidos a diferentes arranjos de sobrevivncia. Nessa perspectiva, as
estratgias de consumo alimentar so caracterizadas pela seleo de gneros
bsicos e de alta densidade calrica como as gorduras e acares atravs dos
quais os indivduos conseguem as calorias necessrias para a tentativa de
reproduzir a fora de trabalho de que necessitam.
Os alimentos que se fazem presentes em seu ambiente de trabalho so
os que so
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