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4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
AS PAISAGENS CULTURAIS DA UNESCO: a construção da relação sociedade-natureza na Lista do Patrimônio
Mundial
SANDY, JARDEL
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Geografia Universidade Federal do Rio de Janeiro, Departamento de Geografia. Av Brigadeiro Trompwski, s/n
Cidade Universitária. 21945-970 - Rio de Janeiro, RJ - Brasil jardelsandy@gmail.com
RESUMO Ao longo da segunda metade do século XX, principalmente a partir da década de 1970, a preocupação com os impactos das atividades humanas sobre o meio ambiente começou a encontrar ampla difusão em vários setores da sociedade, inclusive na esfera política. Paralelamente, o avanço da urbanização, da industrialização, as reminiscências da destruição causada por duas guerras mundiais e o tráfico internacional de arte constituíam ameaça ao patrimônio histórico e cultural de diversos países. Permeada por estas inquietações, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO formalizou a proteção de patrimônios naturais e culturais em escala supranacional ao criar a Lista do Patrimônio Mundial, em 1972. Durante o processo de formação desta lista, com a inscrição anual de novos bens desde 1978, houve a crescente valorização de políticas que buscassem tratar a cultura e a natureza de maneira integrada, na perspectiva da sustentabilidade. Em face disto, houve por parte da organização a tentativa de equacionar a ambivalência representada pela valorização separada de bens naturais e de bens culturais. A UNESCO criou em 1992 uma nova tipologia para a inserção de bens na lista: a paisagem cultural. Em linhas gerais, para que uma paisagem seja inserida no disputado rol dos patrimônios mundiais é necessário que representantes do país onde ela se encontra demonstrem, através de um dossiê de candidatura, que existe algum tipo de interação excepcional entre natureza e sociedade expressa pela paisagem que se quer patrimonializar. A pesquisa aqui exposta investiga a forma bipartida através da qual a UNESCO classifica e atribui valor aos bens patrimoniais, o esforço em integrar esta visão com a adoção da ideia de paisagem cultural e as implicações desta valorização da paisagem para o campo das políticas de patrimônio. Diante da importância desta discussão, que se refere a um conceito central para a Geografia, o presente artigo compila parte do aparato teórico-conceitual que sustenta a pesquisa realizada nos dois primeiros anos de doutoramento em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Palavras-chave: patrimônio, paisagem cultural, UNESCO.
4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
A dimensão geográfica da preservação da paisagem
Na história do pensamento geográfico observa-se a alternância no destaque dado a
conceitos-chave da disciplina como paisagem, região, espaço, lugar e território em função das
diferentes correntes que se estabelecem. Além de serem postos em maior ou menor
evidência, tais conceitos, que possuem forte grau de parentesco conforme Corrêa (1995),
estão permanentemente sujeitos a novas concepções, a redefinições. Haesbaert (2010)
clarifica este processo no que diz respeito ao conceito de região, que teria passado por
sucessivas mortes e ressurreições no decorrer da História do Pensamento Geográfico.
Longe de procurarmos realizar o mesmo exercício para o conceito de paisagem, antes,
buscaremos aqui apresentar algumas definições do conceito contextualizando-o na relação
frequentemente requerida como objeto da Geografia, a relação entre sociedade e natureza,
sendo esta relação mais clara nas concepções de paisagem vidaliana e saueriana, e mais
subjacente na concepção de Duncan.
Moraes destaca que “há uma intensa controvérsia sobre a matéria tratada por esta disciplina.
Isto se manifesta na indefinição do objeto desta ciência, ou melhor, nas múltiplas definições
que lhe são atribuídas” (MORAES, 1981).
A visão da Geografia como sendo a ciência de síntese da relação entre homem e natureza
persiste, bem como a ideia de paisagem como a expressão visual, ou sensorial de forma mais
ampla, dessa relação. Castro (2006) argumenta que o “determinismo científico que buscava
estabelecer leis de comportamento e qualidades humanas em função das qualidades do
habitat” ainda existe no “museu imaginário” ocidental. Também parece estar exposto neste
museu, e com especial destaque, o ideal possibilista de equilíbrio nas relações homem e
natureza, importante móvel na atual valorização da paisagem cultural, pensada agora na
perspectiva da sustentabilidade.
Conforme Castro (1997) pontua, “visões particulares sobre a natureza sempre alimentaram
concepções políticas e as correntes deterministas da geografia deram importante contribuição
aos seus discursos”, assim, respaldaram do ponto de vista ideológico a dominação da
civilização europeia sobre outros povos. Neste sentido o exemplo de Montesquieu, um dos
mais notórios pensadores do século XVIII, é bastante significativo por ter empreendido
teorizações sobre a relação civilização/natureza (GOMES, 1997) que alcançaram grande
difusão e que serviram de influência para o determinismo geográfico de Ratzel, por exemplo,
no século seguinte.
Autor da obra que para muitos funda a geografia humana, Antropogeografia – fundamentos da
aplicação da Geografia à História, de 1882, Friedrich Ratzel também realizou estudos sobre a
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influência das condições naturais sobre os grupos humanos. “Estas influências atuariam,
primeiro na fisiologia (somatismo) e na psicologia (caráter) dos indivíduos e, através destes,
na sociedade” (MORAES, 1981).
A proposta de Ratzel exprimia o autoritarismo, que permeava a sociedade alemã; o agente social privilegiado, em sua análise, era o Estado, tal como na realidade que este autor vivenciava. A proposta de Vidal manifestava um tom mais liberal, consoante com a evolução francesa, e sua análise partiu do homem abstrato do liberalismo (MORAES, 1981:23).
A contraposição às ideias de Ratzel emergiram com a obra de Paul Vidal de La Blache, pai
fundador da geografia francesa, que deveria deslegitimar a reflexão geográfica alemã e ao
mesmo tempo fornecer subsídios ao expansionismo francês. Desta forma criticou a
politização explícita do discurso ratzeliano, o caráter naturalista e a minimização do elemento
humano, bem como a concepção fatalista e mecanicista da relação entre os homens e a
natureza. Vidal propôs uma postura relativista, ao dizer que tudo o que se refere ao homem é
mediado pela contingência (Op. cit). Neste sentido, temos que “a escola vidaliana enfatizava
o papel da indeterminação (as condições geográficas em vez dos fatores geográficos
ratzelianos) nas relações homem – meio ambiente” (MACHADO, 1995:349).
Foi na produção científica vidaliana que o conceito de paisagem, ou paisagem cultural,
aparece com destaque – ainda que, para aquele autor o que havia de relevante à análise
geográfica fosse o resultado da ação humana na paisagem, e não esta em si mesma. Os
gêneros de vida e sua expressão na paisagem refletiriam a organização social (MORAES,
1981; CLAVAL, 1999) “Vidal de La Blache definiu o objeto da Geografia como a relação
homem-natureza, na perspectiva de paisagem. Colocou o homem como um ser ativo, que
sofre a influência do meio, porém que atua sobre este, transformando-o” (MORAES, 1981).
Cabe pontuar que a obra de Vidal tinha caráter empírico-indutivo, baseava-se na observação.
A descrição da realidade deveria, pois, sempre colocar em relevo a conjunção de elementos físicos e humanos que resulta na estruturação de um espaço, que é a síntese da ação múltipla, diferenciada e relacional destes elementos. (...) Todos os conceitos utilizados pelos geógrafos deste período [final do século XIX e começo do XX], como região, paisagem, estado, cidade, têm esse traço comum de unidade reveladora do equilíbrio ou da harmonia, de resultado-síntese de uma dinâmica complexa (GOMES, 2006:17)
A paisagem adquire destaque ainda maior décadas mais tarde, já no século XX, na geografia
norte-america, com a Escola de Berkeley e os trabalhos de Carl Sauer, que chega a propor o
termo ‘paisagem’ para denotar o conceito unitário da geografia, para caracterizar a peculiar
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associação geográfica dos fatos (SAUER, 1996: 300). Entendia as paisagens culturais como
as formas que a organização de uma sociedade produzia em seu meio.
A geografia baseia-se, na realidade, na união dos elementos físicos e culturais da paisagem. O conteúdo da paisagem é encontrado, portanto, nas qualidades físicas da área que são importantes para o homem e nas formas do seu uso da área, em fatos de base física e fatos da cultura humana. (SAUER, 1996 [1925]).
Durante a década de 1960, a geografia passa por um movimento de renovação que fornece
perspectivas de fundamentação fora do positivismo clássico, como a fenomenologia, o
estruturalismo, o neo-positivismo, o marxismo, entre outras (MORAES, 1981). Diante da
emergência de sintagmas críticos nas ciências sociais, surge uma geografia cultural renovada
que tem em James Duncan um dos seus expoentes. Enquanto a abordagem saueriana
privilegiava as formas presentes nas paisagens culturais (morfologia da paisagem), para
Duncan o fundamental na paisagem consistia justamente em seu caráter simbólico e
subjetivo, que anteriormente não era visto como objeto científico legítimo.
[Duncan] divide essa qualidade estruturada e estruturante da paisagem naquilo que chama de significação da paisagem e retórica da paisagem. A primeira diz respeito aos significados que a paisagem possui e a segunda às formas que essa significação toma lugar. No estudo da significação da paisagem, devem ser levados em conta os significados atribuídos à paisagem pela população que nela vive, os não locais ou os outsiders e, ainda uma terceira, a do próprio pesquisador. Quanto à retórica da paisagem, entre as linhas de pesquisa que podem ser estabelecidas está o impacto da objetivação, a efetividade da paisagem como um veículo visual concreto de convencimento e de informação. (RIBEIRO, 2011:264)
Além das diferentes abordagens geográficas as quais um conceito pode estar submetido,
faz-se necessário também observar seus limites, possibilidades e pontos de contato com os
demais conceitos. As intersecções existentes entre os conceitos geográficos são análogas às
próprias intersecções observadas na realidade que ajudam a expressar. Deste modo, pensar
o patrimônio cultural como um importante ativo na gestão de uma paisagem, implica,
necessariamente, refletir quanto à gestão do território espelhado por essa paisagem. O
território aqui entendido como resultante da imbricação de múltiplas relações de poder, do
poder mais material das relações econômico-políticas ao poder mais simbólico das relações
de ordem mais estritamente cultural (HAESBAERT, 2010).
A “identidade” de um conceito, um pouco como na própria construção de uma identidade social, não se define simplesmente pela concepção clara de um “outro” frente ao qual ele se impõe, mas pela própria definição que esse outro lhe concede – portanto, por sua imbricação. Isso significa que as “identidades” conceituais devem ser trabalhadas também através das
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fronteiras, no interior dessas delimitações que aparentemente separam, ou seja, também nos limiares, nas interfaces, nas interseções, sem o às vezes obsessivo estabelecimento de um recorte de delimitação estanque e bem definido (HAESBAERT, 2010:158).
Além da dificuldade que por vezes se impõem na definição clara dos limites de um conceito, é
preciso considerar ainda os diferentes significados que podem ser atribuídos por outras
disciplinas. Dentre os principais conceitos do quadro conceitual da geografia, a paisagem é
um dos mais utilizados.
O conceito de paisagem, assim como os outros conceitos, não é exclusivo do quadro conceitual da Geografia, sendo bastante utilizado, por exemplo, por arquitetos e urbanistas. Na Geografia, esse conceito tem sido tradicionalmente destacado pelo fato de essa ciência procurar definir seu campo de estudo nos aspectos e fenômenos que concorrem para modelar, organizar e modificar materialmente o espaço. É geográfico, neste sentido, aquilo que tem influência sobre a paisagem, como expressão e forma desse espaço (CAVALCANTI, 1998:96)
Ribeiro (2007) corrobora este raciocínio, ao elencar várias disciplinas que também tem se
debruçado sobre o estudo da paisagem em diferentes acepções. Para o autor, na geografia, a
qualificação de paisagem cultural se confunde com o próprio conceito de paisagem.
Paisagem é o termo utilizado por diferentes disciplinas, umas com mais tradição que outras, como a geografia, a arquitetura, a ecologia, a arqueologia. Embora haja um pequeno denominador comum, cada uma dessas disciplinas se apropria do termo de maneira diferenciada, conferindo a ele significados bastante diversos (RIBEIRO, 2007:14)
Como a noção de paisagem cultural, instrumentalizada por profissionais e técnicos de
diversas formações, tem sido incorporada nas políticas de preservação do patrimônio pela
UNESCO? Esta questão uma das indagações centrais para a pesquisa aqui exposta.
As inscrições na Lista do Patrimônio Mundial
Para que um país consiga obter a inscrição de um bem presente em seu território na Lista,
primeiramente, deve inseri-lo em uma lista indicativa, feita pelos órgãos de preservação dos
187 países signatários da Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e
Natural. Ao inserir um determinado bem nesta lista indicativa, o país deixa implícita a intenção
de, posteriormente, produzir um dossiê a respeito, no qual deverá constar sua localização
geográfica, as medidas de proteção, tanto as previstas, quanto as já implementadas e a
justificativa de seu valor universal excepcional. A Convenção ofereceu importantes diretrizes
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que nortearam a formação da Lista. Em seus artigos 4 e 5, os Estados ficaram comprometidos
a identificar, reconhecer e indicar os bens que fazem jus ao título.
Cada um dos Estados-partes, na presente convenção, reconhece que lhe incumbe a obrigação de identificar, proteger, conservar, valorizar e transmitir às futuras gerações o patrimônio cultural e natural (...) situado em seu território (...) adotar uma política geral visando dar ao patrimônio cultural e natural uma função na vida da coletividade (...) instituir em seu território serviços de proteção, conservação e valorização do patrimônio cultural e natural (...) desenvolver estudos e pesquisas científicas e técnicas, aperfeiçoar os métodos de intervenção que permitam ao Estado fazer frente aos perigos que ameacem seu patrimônio cultural ou natural (...) a tomar medidas legais, recursos adequados, científicos, técnicos, administrativos e financeiros para a identificação, proteção, conservação, valorização e restauro deste patrimônio (...) estimular a pesquisa científica nesse campo.1
O país que submeter a candidatura de um bem a patrimônio mundial deve deixar claro que
medidas protetoras já incidem sobre o bem a nível nacional. O Centro do Patrimônio Mundial,
criado pela UNESCO em 1992, verifica se a solicitação de inclusão está completa. Três
organizações funcionam como órgãos consultivos: o Conselho Internacional de Monumentos
e Sítios (ICOMOS), a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) e o Centro
Internacional para o Estudo da Preservação e Restauração de Bens Culturais (ICCROM)
tabela 1. Estes avaliam se o bem possui "excepcional valor universal" e se os critérios formais
e técnicos do dossiê de candidatura foram devidamente contemplados.
1 Chacun des Etats parties à la présente Convention reconnaît que l'obligation d'assurer l'identification, la protection, la conservation, la mise en valeur et la transmission aux générations futures du patrimoine culturel et naturel (...) situé sur son territoire (...) d'adopter une politique générale visant à assigner une fonction au patrimoine culturel et naturel dans la vie collective (...) d'instituer sur leur territoire, dans la mesure ou ils n'existent pas, un ou plusieurs services de protection, de conservation et de mise en valeur du patrimoine culturel et naturel (...) de développer les études et les recherches scientifiques et techniques et perfectionner les méthodes d'intervention qui permettent à un Etat de faire face aux dangers qui menacent son patrimoine culturel ou naturel (...) de prendre les mesures juridiques, scientifiques, techniques, administratives et financières adéquates pour l'identification, la protection, la conservation, la mise en valeur et la réanimation de ce patrimoine (...) d'encourager la recherche scientifique dans ce domaine. http://whc.unesco.org/fr/conventiontexte/ Consultado em 19 de dezembro de 2015.
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A União Internacional para a
Conservação da Natureza
(IUCN) é uma organização
internacional,
não-governamental que
fornece ao Comitê do
Patrimônio Mundial
avaliações técnicas dos bens
do patrimônio natural e,
através de sua rede mundial
de especialistas, relatórios
sobre o estado de
conservação dos bens
listados. Com mais de 1000
membros, a IUCN foi fundada
em 1948 e está localizada em
Gland, Suíça.
O Conselho Internacional
de Monumentos e Sítios
(ICOMOS) fornece ao Comitê
do Patrimônio Mundial
avaliações dos bens culturais
e mistos propostos para
inscrição na Lista do
Património Mundial. É uma
organização internacional,
não governamental fundada
em 1965, com um
secretariado internacional em
Paris.
O Centro Internacional para
o Estudo da Preservação e
Restauração de Bens
Culturais (ICCROM) é um
organismo
intergovernamental que
fornece conselhos de
especialistas sobre como
conservar propriedades
listadas, bem como a
formação em técnicas de
restauração. O ICCROM foi
criado em 1956 e está
localizado em Roma.
Tabela 1. Órgãos consultivos
Fonte: Elaboração própria. (http://whc.unesco.org/en/advisorybodies/)
Em seguida, a partir dos pareceres emitidos por estes órgãos, o Bureau do Patrimônio
Mundial, pequeno órgão executivo composto por sete membros do Comitê do Patrimônio
Mundial, recomenda a inscrição do bem ou solicita informações adicionais ao Estado-parte.
Ao final destes trâmites o Comitê do Patrimônio Mundial, composto por 21 representantes dos
Estados-Parte da Convenção, pode chegar a três decisões: a) inscrever o sítio na Lista do
Patrimônio Mundial; b) adiar a decisão, aguardando informações mais aprofundadas do
Estado-parte; c) recusar a inscrição2. Caso seja negada, a base argumentativa que estrutura a
2 Ver: http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/culture/world-heritage/heritage-legacy-from-past-to-the-future/
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proposição e a atribuição de valor ao bem precisam ser reformuladas. Caso seja aceita a
candidatura, o bem é inscrito na Lista do Patrimônio Mundial. No caso de ficar adiada a
inscrição do bem, duas categorias intermediárias estão previstas: referred (revisar parte dos
argumentos da proposição) e deferred (complementar com informações e esclarecimentos
adicionais).
Um ponto bastante importante a ser considerado na proposição de uma candidatura a
patrimônio mundial é a declaração de valor universal apresentada no dossiê entregue pelo
Estado-Parte. Através dela torna-se possível compreender como as autoridades do país
proponente e os redatores do material a entregue, agentes diretamente envolvidos, tentam
construir discursivamente as ideias de universalidade e excepcionalidade do bem em
questão, cruciais para a obtenção do título. Leal (2010) aponta que a própria noção de valor
universal excepcional passou por mudanças importantes desde a sua primeira formulação.
A definição de "universal" na frase "valor universal excepcional" requer comentário. Algumas propriedades podem não ser reconhecidas por todas as pessoas, em todos os lugares, como sendo de grande importância e significado. As opiniões podem variar de uma cultura ou período para o outro e o termo "universal" deve ser interpretado como referindo-se a um bem que é altamente representativo da cultura da qual faz parte (UNESCO, 1977).3
Atualmente, entretanto, o valor universal é pensado a partir de outra perspectiva na qual “a
valoração proposta parece visar menos à representatividade de uma cultura do que a relação
que o bem poderia estabelecer com outros bens, de outras culturas” (LEAL, 2010:52). Com
isso, a autora argumenta sobre a necessidade do bem indicado transcender os limites
nacionais, ou seja, dialogar com a história da humanidade torna-se tão ou mais importante do
que representar a própria cultura do qual faz parte – o que fica patente na definição mais atual
de valor excepcional universal.
3 The definition of "universal" in the phrase "outstanding universal value” requires comment. Some properties may not be recognized by all people, everywhere, to be of great importance and significance. Opinions may vary from one culture or period to another and the term ”universal" must therefore be interpreted as referring to a property which is highly representative of the culture of which it forms part. Consultado em 14 de dezembro de 2013. Disponível em: http://whc.unesco.org/archive/opguide77a.pdf
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Valor excepcional universal quer dizer um significado cultural e/ou
natural que é excepcional o bastante para transcender limites nacionais
e possuir uma importância compartilhada para as gerações presente e
futura de toda a humanidade (UNESCO, 2008).4
Desta forma, hoje, os técnicos, intelectuais e profissionais de diferentes formações que
redigem os dossiês de candidatura apresentados à UNESCO e aos seus órgãos de
assessoramento precisam ser capazes de argumentar que o bem possui não apenas um alto
valor para a sociedade no qual está inserido, mas que em função de uma ou mais
características inerentes a ele ajuda a contar a história da humanidade, ou de parte dela e,
ainda, da evolução da Terra, no caso dos patrimônios naturais ou mistos. Com relação aos
patrimônios mistos, estes seriam aqueles que apresentam tanto valores naturais, quanto
valores culturais sem que haja uma relação excepcional entre eles. A categoria de bem misto,
criada para dar conta da dicotomia entre patrimônio natural e cultural, parece ter perdido
espaço para a categoria de paisagem cultural – para que um bem seja inscrito na Lista do
Patrimônio como paisagem cultural é preciso que o Estado signatário da Convenção da
UNESCO para o Patrimônio Mundial que está apresentando a candidatura, deixe explícito que
a uma relação excepcional entre um grupo humano e ao contexto ambiental em que este se
insere, ou seja, diferentemente do bem misto, a categoria patrimonial paisagem cultural tem
nesta relação o seu pilar principal.
Conforme exposto, para integrar a Lista do Patrimônio Mundial o bem deve conter o que a
UNESCO chama de valor universal excepcional se enquadrando em ao menos um de 10
critérios possíveis, estipulados pela própria organização. Seis com base na cultura e quatro
relativos à natureza e ao meio ambiente. Aqueles que se enquadram em um ou mais critérios
culturais são os patrimônios culturais; em um ou mais critérios naturais são os patrimônios
naturais; já aqueles que estão inscritos por condizerem tanto com critérios culturais, quanto
com critérios naturais são patrimônios do tipo bem misto.
4 Outstanding universal value means cultural and/or natural significance which is so exceptional as to transcend national boundaries and to be of common importance for present and future generations of all humanity. Consultado em 14 de dezembro de 2013. Disponível em: http://whc.unesco.org/archive/opguide08-en.pdf
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Os seis primeiros são critérios culturais: (i) representar uma obra-prima do gênio criativo
humano; (ii) testemunhar um intercâmbio de valores humanos considerável, durante um
período concreto ou em uma área cultural do mundo determinada, nos âmbitos da arquitetura
ou tecnologia, das artes monumentais do planejamento urbano ou da criação de paisagens;
(iii) aportar um testemunho único ou excepcional de uma tradição cultural ou de uma
civilização ainda viva ou que tenha desaparecido; (iv) ser exemplo eminentemente
representativo de um tipo de construção ou de conjunto arquitetônico ou tecnológico, ou de
paisagem que ilustre um ou vários períodos significativos da história humana; (v) ser exemplo
relevante de formas tradicionais de assentamento humano ou de utilização da terra ou do mar,
representativas de uma cultura (ou de várias culturas), ou de interação do homem com seu
meio, sobretudo quando este encontrar-se vulnerável em decorrência de impactos causados
por alterações irreversíveis; vi. estar associados direta ou tangivelmente a acontecimentos ou
tradições vivas, com idéias ou crenças, ou com obras artísticas ou literárias de significado
universal excepcional.
Os quatro últimos critérios se relacionam a aspectos naturais: (vii) representar fenômenos
naturais notáveis ou áreas de beleza natural e de importância estética excepcionais; (viii) ser
um exemplo representativo dos grandes estágios da história da Terra, nomeadamente
testemunhos da vida, de processos geológicos em curso no desenvolvimento de formas
terrestres ou de elementos geomorfológicos ou fisiográficos de grande significado; (ix) ser
exemplos excepcionais que representem processos ecológicos e biológicos significativos
para a evolução e o desenvolvimento de ecossistemas terrestres, costeiros, marítimos e de
água doce e de comunidades de plantas e animais; (x) conter os habitats naturais mais
representativos e mais importantes para a conservação em diversidade biológica específica,
compreendidos aqueles nos quais sobrevivem espécies ameaçadas que tenham um Valor
Universal Excepcional desde o ponto de vista da ciência ou da conservação5.
A patrimonialização de paisagens culturais
A paisagem cultural foi adotada como uma nova categoria para inclusão de bens no rol dos patrimônios
mundiais na 16ªsessão do Comitê do Patrimônio Mundial em 14 de dezembro de 1992, realizada em
Santa Fe, Estados Unidos, portanto duas décadas após a criação da Lista do Patrimônio Mundial.
5 Os dez critérios podem ser consultados em http://whc.unesco.org/en/criteria/
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Ficaram definidos três tipos de paisagens culturais para fins de inclusão na Lista, expressando distintas
formas do homem se relacionar com seu meio6.
Paisagem claramente definida, projetada e criada intencionalmente pelo homem.
Engloba jardins e parques paisagens construídas por razões estéticas, que são muitas vezes,
mas nem sempre, associadas a edifícios e conjuntos monumentais religiosos ou outros (figura
1).
Figura 1. Paisagem claramente definida.
Jardim Kew/Inglaterra
Paisagem organicamente evoluída. Resulta de um imperativo social, econômico,
administrativo e/ou religioso inicial e desenvolveu sua forma atual por associação com e em
resposta ao seu ambiente natural. Tais paisagens refletem seus processos de evolução em
suas formas e características dos componentes (figuras 2 e 3).
6 Consultado e traduzido de http://whc.unesco.org/en/culturallandscape/#1
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Figura 2. Paisagem organicamente evoluída - Relíquia ou Fóssil
Blaenavon/Inglaterra
Figura 3. Paisagem organicamente evoluída - Viva ou Contínua
Rio de Janeiro/Brasil
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Paisagem cultural associativa. A inclusão de tais paisagens na Lista do Patrimônio
Mundial é justificável em virtude de serem poderosas associações religiosas, artísticas ou
culturais com elementos naturais. A evidência material da cultura, que pode ser insignificante,
ou mesmo ausente (figura 4).
Figura 4. Paisagem cultural associativa
Uluru kata/Austrália
A UNESCO estipulou ainda a subdivisão da paisagem organicamente evoluída em duas
sub-categorias: a) uma paisagem relíquia (ou fóssil) é aquela em que um processo evolutivo chegou ao
fim em algum momento no passado, seja de forma abrupta ou ao longo de um período. Suas
características distintivas são significativas, no entanto, ainda visível na forma material; b) paisagem
contínua é aquela que mantém um papel social ativo na sociedade contemporânea intimamente
associado com o modo de vida tradicional, e em que o processo evolutivo ainda está em andamento.
Ao mesmo tempo, mostra provas significativas da sua evolução ao longo do tempo.
Ribeiro (2007) pontua que a visão bipartida do patrimônio refletia os dois grandes grupos envolvidos na
Convenção de 1972: aqueles que defendiam a conservação da natureza e aqueles mais interessados
na preservação de sítios culturais. O autor pondera também que este raciocínio dicotômico já começa a
tornar-se anacrônico, haja vista a emergência da questão ambiental à época. Com efeito, Becker
(1995) associa àquele período, e àquele ano especificamente, o surgimento de uma “consciência
ecológica legítima” diante da percepção da impotência do homem em controlar a natureza e “houve
uma efetiva preocupação em estabelecer regras para a preservação do ambiente planetário”. Estas
inquietações também passaram a informar as políticas institucionais da UNESCO, que realizou a
Conferência de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano entre 05 e 16 de junho de 1972 e a
Convenção do Patrimônio Mundial entre
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Com o passar dos anos, o desenvolvimento de disciplinas como a ecologia política e a discussão em torno de categorias como a de desenvolvimento sustentável provocou uma valorização no contexto internacional das relações harmoniosas entre os homens e o meio ambiente. Foi em resposta a esse contexto que a categoria de paisagem cultural começou a ser pensada mais fortemente pela UNESCO (RIBEIRO, 2007:38)
Diante da ideia de sustentabilidade propagada exaustivamente pelos mais diversos meios de
comunicação, a paisagem cultural parece despontar como uma categoria-chave para pensar políticas
de preservação do patrimônio mundial atualmente. A necessidade de reflexão acerca da captura desta
categoria pela UNESCO para inserção de bens na Lista decorre de seu uso indiscriminado, da
banalização e das inúmeras definições do termo e da imprecisão com a qual muitas vezes tem sido
trabalhada. Situação que caba por colocar em xeque a validade da paisagem como uma categoria tanto
para atribuição de valor, quanto para a formulação de políticas públicas. Ribeiro (2011:262) pontua que:
No momento atual, um dos maiores riscos a que a categoria de paisagem cultural como patrimônio tem sido exposta diz respeito a sua abrangência. Por ser um conceito atual, com múltiplas possibilidades e uma vez que a documentação oficial existente é extremamente abrangente e genérica pode-se achar que tudo cabe dentro desta categoria. Espera-se então que a prática defina um perfil para os sítios que serão inscritos. Entretanto, como hoje ocorre em qualquer setor da área de preservação cultural, pressões do mercado e de grupos de interesses podem acabar provocando graves distorções na aplicação da categoria. [grifo nosso]
Nota-se uma dificuldade de inscrição de sítios urbanos como paisagem cultural. Contextos agrícolas
apresentam grande penetração nas candidaturas de paisagens culturais aceitas e inscritas como por
exemplo as
Entretanto, o aceite do Rio de Janeiro a primeira grande cidade inscrita como paisagem cultural –
recebendo o título de Paisagem Cultural Urbana, única na Lista de Patrimônio Mundial – pode ser
considerada sintomática, pois sinaliza uma questão relativamente recente, mas que ganha cada vez
mais espaço no plano internacional: a preocupação com os riscos ao patrimônio urbano. Houve, neste
sentido, a mobilização para a criação de uma nova tipologia e, em 10 de novembro 2011, durante uma
Conferência Geral da UNESCO foi adotada a nova Recomendação sobre Paisagem Urbana Histórica.
Para a instituição
(...) paisagem urbana histórica é a área urbana compreendida como o resultado de uma estratificação histórica dos valores e atributos culturais e naturais, que se estende além da noção de "centro histórico" ou "entorno" para incluir o contexto urbano mais amplo e a sua localização geográfica. (UNESCO, 2010:04)
Esta nova categoria no trato com o patrimônio se desloca da clássica relação homem-meio e se
pretende bem mais abrangente que as definições clássicas de paisagens culturais. O discurso é o de
que o processo de urbanização na forma como vem se processando em diferentes formas no planeta,
de forma abrupta e não-planejada estaria constituindo uma ameaça ao patrimônio das grandes cidades
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(...) o desenvolvimento rápido e muitas vezes descontrolado vem transformando as áreas urbanas e a sua paisagem, o que poderá provocar a fragmentação e deterioração do patrimônio urbano com profundo impacto nos valores da comunidade, em todo o mundo (UNESCO, 2010:04)
O Rio de Janeiro, cidade que teve parte de seu território inscrita na Lista do Patrimônio da Humanidade
em 2012 esteve no centro desta discussão, tanto que, normalmente, para que a inscrição de uma
paisagem na Lista do Patrimônio Mundial seja deferida é necessário que seja apresentado um plano de
gestão. Entretanto, dado o ineditismo da proposta do Rio de Janeiro, sua inscrição foi aceita sem esse
plano, que ficou pronto e foi entregue apenas em 2014, data pré-definida quando da inscrição. Há certa
expectativa com relação à forma como o Brasil encaminhará a questão.
As políticas modernas de conservação urbana, que se refletem nas recomendações e cartas internacionais, criaram condições para a preservação das áreas urbanas históricas. No entanto, os desafios presentes e futuros exigem a definição e a implementação de uma nova geração de políticas públicas que identifiquem e protejam os estratos históricos e o equilíbrio de valores culturais e naturais em ambientes urbanos (UNESCO, 2010:04) grifo nosso
Rio de Janeiro – Paisagens Cariocas entre a montanha e o mar, título do dossiê entregue pelo Brasil,
através do IPHAN7, para apreciação do Comitê do Patrimônio Mundial busca em diversos trechos
enfatizar esse equilíbrio de valores culturais e naturais em ambientes urbanos presentes na cidade.
Tratou-se de uma candidatura em série (o Parque da Tijuca, o Pão de Açúcar, as fortificações, o Aterro
do Flamengo), ou seja, os bens não correspondem a uma área contínua, sendo pensados em unidades
com necessidades específicas de gestão que compõem um todo, a paisagem carioca entre a montanha
e o mar. O recorte excluiu áreas com grande relevância para a população carioca, como por exemplo, o
estádio Mário Filho – Maracanã, o Sambódromo, bem como o bairro de Madureira, na zona norte da
cidade, berço de importantes agremiações carnavalescas. A área inscrita na Lista da UNESCO
corresponde às paisagens mais difundidas no imaginário estrangeiro com relação à cidade. O que
permite compreender que a seleção de bens considerados patrimoniais é eminentemente metonímica,
onde uma área patrimonializada representa muitas vezes um contexto mais amplo.
(...) a noção de paisagem permite ressaltar que uma das mais fortes determinações semânticas do imaginário geográfico reside na seleção de certos atributos do mundo ao redor: tais predicados são colocados em primeiro
7 O IPHAN também tem promovido diversas discussões a nível nacional quanto à preservação das paisagens culturais brasileiras, sendo emblemática a Carta de Bagé. Para o instituto, são exemplos da Paisagem Cultural as relações entre o sertanejo e a caatinga, o candango e o cerrado, o boiadeiro e o pantanal, o gaúcho e os pampas, o pescador e os contextos navais tradicionais, o seringueiro e a floresta amazônica, por exemplo. Como estes, outros tantos personagens e lugares formam o painel das riquezas culturais brasileiras, destacando a relação exemplar entre homem e natureza. Encarte sobre Paisagem Cultural – IPHAN, 2009. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=1756
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plano e acabam mesmo por designar inteiramente a realidade à qual querem se referir. (MACIEL, 2013:264)
A principal contribuição desta candidatura foi promover a reflexão da relação homem – natureza no
contexto urbano. As paisagens inscritas pela UNESCO até então se referiam exclusivamente a
contextos sociais agrícolas tradicionais, a jardins históricos e a outros locais de cunho simbólico,
religioso e afetivo. A inscrição de parte da segunda maior cidade do Brasil como patrimônio mundial
representa um desafio às instituições envolvidas que, ao objetivarem a manutenção da relação
homem-meio que serviu de base para o deferimento da candidatura, precisarão levar em conta um
quadro social, político, cultural e ambiental bastante complexo. Como avalia Pierre Halévy:
A lista [do Patrimônio Mundial] não é uma coisa imóvel, é algo evolutivo, que se modifica todo dia, todo ano. É uma coleção de regras fixas à qual a gente deve se adaptar. Cada candidatura significa uma renovação do conceito de patrimônio mundial. Cada uma deve trazer um enriquecimento a este conteúdo. (HALÉVY, 2002:33)
A crítica feita por Ribeiro (2011) quanto ao uso indiscriminado da categoria de paisagem cultural se
deve ao fato desta ser utilizada de forma banalizada e simplista na medida em que se argumenta que a
paisagem une o homem e a natureza que se encontravam separados. A atual configuração da
sociedade e o nível de interferência humana nos processos naturais em escala global tornam obsoleta
esta visão e, incorre na dificuldade de conceber uma paisagem não cultural nos dias de hoje. Para o
autor é preciso realizar um “deslocamento conceitual” refletindo a paisagem como um sistema de
significação que é comunicado, reproduzido, experimentado e explorado (DUNCAN, 1990: 17, apud
RIBEIRO, 2011). Assim partindo de uma visão mais complexa e problematizada acerca da paisagem
seria possível apreender também a sua dimensão política e dos significados conferidos a ela “pelas
populações que vivem essa paisagem” atentando para a necessidade de ouvi-las, viabilizando uma
gestão democrática e cidadã da paisagem. Assim, pensar a paisagem mais do que como o reflexo de
uma relação entre homem e meio ambiente, mas também como um campo de representações e
afirmação identitária pode constituir uma possibilidade de operar com a categoria paisagem cultural de
forma mais cuidadosa nas políticas públicas de preservação do patrimônio cultural.
Considerações finais
Atualmente, para além de contextos agrícolas que tradicionalmente têm apresentado grande
penetração nas candidaturas de paisagens culturais, a atenção do corpo técnico da UNESCO
está voltada para a preservação da paisagem nos conjuntos urbanos. As Recomendações
sobre a paisagem histórica urbana sinalizam esta preocupação mais recente e corroboram a
associação entre preservação da paisagem e sustentabilidade.
A partir da identificação de padrões de inscrição na Lista do Patrimônio Mundial, foi possível
definir seis estudos de caso para a presente pesquisa I – Terraços de Arroz das Cordilheiras
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Filipinas (1995); II – Região Vinícola do Alto Douro (2001); III – Paisagem de Agave e Antigas
Instalações Industriais de Tequila, no México (2006); IV – Paisagem Cultural Cafeeira da
Colômbia (2011), V – Paisagens Cariocas entre a Montanha e o Mar (2012); VI – Vale do Rio
Elba em Dresden (2004). As paisagens culturais I e II são bastante representativas dos modos
de vida associadas ao estilo de vida rural. As paisagens III e IV acabam por sinalizar uma nova
geografia do patrimônio mundial a partir da valorização de paisagens rurais externas ao
contexto europeu e asiático, mas ainda ratificam a valorização da paisagem atrelada ao
contexto rural. A paisagem V indica uma quebra de paradigma por tratar-se da primeira
inscrição nesta categoria de uma grande metrópole, sendo por isso sui generis. A paisagem VI
enriquecerá a análise aqui pretendida por constituir a única paisagem cultural retirada da lista
em virtude da construção de uma ponte que a teria descaracterizado. Através do método
comparativo, pretendemos compreender como o conceito de paisagem foi mobilizado na
produção dos dossiês de candidatura destas inscrições, como foram idealizados diferentes
planos de gestão, o valor universal excepcional reclamado por cada Estado-parte, entre
outros critérios comparativos ainda a ser definidos.
Ao trazer os apontamentos de pesquisa de doutoramento ainda em curso, buscamos destacar
a importância do conceito paisagem cultural dentro da ciência geográfica, suas intersecções
com as políticas de patrimônio levadas a cabo pela UNESCO e de como esta organização tem
admitido a possibilidade de a paisagem servir ao propósito de atenuar a valorização
dicotômica de cultura e natureza.
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