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Bicho de Sete Cabeças
Comentários especializados à 2ª Sessão de Cinema
do Projeto de Pesquisa Estudos Foucaultianos
2014
2
Bicho de Sete Cabeças
Comentários Especializados à 2ª sessão de cinema
do projeto de pesquisa estudos foucaultianos
Filosofia Renan PAVINI
Análise do Discurso Alcione Gonçalves CAMPOS
Direito Márcia TESHIMA
Psiquiatria Eduardo Salviano Teixeira do PRADO
Psicologia Simone Martin OLIANI
Enfermagem Marcos Hirata SOARES
3
Bicho de Sete Cabeças:
2ª sessão de cinema do projeto de pesquisa estudos foucaultianos
Realização Estudos Foucaultianos
Centro de Estudos Sociais Aplicados
Colegiado de Curso de Letras Estrangeiras Modernas
Centro de Letras e Ciências Humanas
Apoio Centro Acadêmico Sete de Março (Direito)
Colegiado do Curso de Letras Estrangeiras Modernas
Organização
Márcia Teshima
Simone Reis
Alcione Gonçalves Campos
Dhyego Câmara de Araújo
Deise Suzumura
Juliana Orsini da Silva
Juliane D’Almas
José Eduardo Ribeiro Balera
Lilian Kemmer Chimentão
Liliane Mantovani
Paula Kracker Francescon
Rafael Leonardo da Silva
Coordenação Geral
Márcia Teshima
Simone Reis
4
Transcrição
Ana Paula Puzzinato
Revisão Dhyego Câmara Araújo
Simone Reis
Formatação Simone Reis
Catalogação na publicação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos da
Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina.
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
S493b Sessão de Cinema (2. : 2014 : Londrina, PR).
Bicho de sete cabeças [livro eletrônico] : comentários especializados
à 2ª Sessão de Cinema do Projeto de Pesquisa Estudos Foucaultianos
/ organização : Márcia Teshima...[et al.] ; coordenação geral :
Márcia Teshima, Simone Reis. – Londrina : UEL, 2014.
1 livro digital.
Disponível em: http://www.uel.br/projetos/foucaultianos/
ISBN 978-85-7846-274-1
1. Cinema brasileiro – História e crítica – Congressos. I. Campos,
Alcione Gonçalves. II. Teshima, Márcia. III. Reis, Simone. IV. Projeto de
5
Sumário
Apresentação ......................................................................................................... 6
Convenções gráficas transcricionais ..................................................................... 8
Transcrição da apresentação de Renan Pavini ........................................................ 9
Transcrição da apresentação de Alcione Gonçalves Campos ................................. 11
Transcrição da apresentação de Márcia Teshima ................................................... 14
Transcrição da apresentação de Eduardo Salviano Teixeira do Prado .................... 16
Transcrição da apresentação de Simone Martin Oliani ........................................... 20
Transcrição da apresentação de Marcos Hirata Soares ........................................... 24
Debate .................................................................................................................... 27
Registro de imagem (comentaristas/debatedores) ................................................ 53
Registros de imagens (público) .............................................................................. 54
6
Apresentação
Bicho de sete cabeças (2000) é um longa-metragem brasileiro baseado no relato
autobiográfico de Austregésilo Carrano Bueno. O filme conta a história de Neto (Rodrigo
Santoro), jovem que é internado em hospital psiquiátrico para tratamento de drogadicção,
após ter um cigarro de maconha encontrado em sua casa. Nesse local, Neto é submetido
à administração de medicamentos e procedimentos que o reduzem à condição animal.
Enquanto sofre, o jovem vive o ódio pelo ente familiar que o internou. Dirigido por Laís
Bodanzky, “O Bicho de Sete Cabeças” inclui em seu elenco Cássia Kiss, Othon Bastos e
Caco Ciocler, foi amplamente elogiado pela crítica e recebeu diversos prêmios nacionais
(no Festival de Brasília e Festival d Recife) e internacionais (Prêmio do Jovem Júri no
54º Festival de Locarno).
A exibição do filme Bicho de Sete Cabeças foi programada para a 2ª sessão de
cinema promovida pelo grupo de pesquisa Estudos Foucaultianos. Realizada em 16 de
abril de 2014, após o filme, tomaram seus espaços à mesa de comentaristas e debatedores
de diferentes áreas do conhecimento, a saber:
Alcione Gonçalves CAMPOS, mestre em Estudos da Linguagem pela
Universidade Estadual de Londrina, especialista em ensino de línguas estrangeiras (UEL,
2007) e graduada em Letras Anglo-Portuguesa pela mesma instituição. Atualmente é
aluna de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (UEL).
Sua atuação como docente de Língua Inglesa inclui diferentes sistemas e níveis de
educação, como escola de idiomas, ensino Fundamental e Médio e ensino superior.
Desenvolve pesquisa na área de formação de professores, com foco na constituição de
identidade profissional de professores de língua inglesa, analisando discurso em práticas
situadas. É membro dos grupos de pesquisa Letramento crítico: cognição e discurso e
Linguagem & Poder. Participa dos projetos de pesquisa Pensamento Crítico para Ação
Transformadora e Estudos foucaultianos.
Renan PAVINI, graduado em Filosofia, Especialista em Filosofia Moderna e
Contemporânea e Mestre em Letras, com a dissertação “Transgressão e linguagem nos
escritos de Antonin Artaud”, pela Universidade Estadual de Londrina. Atualmente é
professor colaborador nos cursos de graduação e especialização em Filosofia da UEL e
professor formador da especialização em Ensino de Filosofia pela UFSCar. Publicou o
capítulo “A loucura e suas ausências em Michel Foucault” no livro [Michel Foucault em
múltiplas perspectivas, Londrina: EDUEL, com apoio financeiro da Fundação Araucária].
Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Estética e Filosofia Contemporânea,
atuando principalmente nos seguintes temas: Michel Foucault, Antonin Artaud, Estética,
Loucura, Subjetividade, Racionalidade.
Márcia TESHIMA, graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina.
Pela mesma universidade, é titulada Mestre em Direito Negocial (2002) e atualmente é
aluna de Doutorado em Direito junto à Universidade de Buenos Aires. Docente do
Departamento de Direito Privado, atua junto ao Escritório Aplicação de Assuntos
Jurídicos (EAAJ) da UEL. Coordenadora o projeto de pesquisa Estudos foucaultianos e
participa do grupo de pesquisa Linguagem & Poder.
Eduardo Salviano Teixeira do PRADO, médico pela Universidade Estadual de
Londrina (2001 a 2006). Possui residência em Psiquiatria pela UEL (2008 a 2010).
Realizou estágio de observação em Neurologia do Comportamento e Neuropsiquiatria
pela University of California (UCLA), Los Angeles, CA, EUA (setembro a dezembro de
2010). Foi professor voluntário de Neuropsiquiatria na residência de psiquiatria da UEL
7
(2011 a 2013). É Mestre em Ciências da Saúde pela Universidade Estadual de Londrina
(2014). Trabalha como psiquiatra na Clínica de Neurociência Aplicada, em Londrina, PR.
Simone Martin OLIANI, Psicóloga Clínica há 19 anos, mestre em Análise do
Comportamento e especialista em Psicoterapia na Análise do Comportamento pela UEL.
Diretora e fundadora do PsicC – Instituto de Psicoterapia e Análise do Comportamento,
docente e supervisora de estágio do curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras de
Londrina. Membro da ABPMC – Associação Brasileira de Psicologia e análise do
Comportamento.
Marcos Hirata SOARES, bacharel em Enfermagem pela Universidade Federal de
São Paulo (2003), Especialista e Mestre em Enfermagem Psiquiátrica pela Escola de
Enfermagem de Ribeirão Preto-Universidade de São Paulo (2007). Estudante de
Doutorado em Enfermagem Psiquiátrica pela EERP-USP (2013). Pesquisador na temática
de álcool e outras substâncias psicoativas pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto-
USP (2010), subvencionado pelo convênio com a Secretaria Nacional de Políticas sobre
Drogas-SENAD e do Ministério da Saúde. Atualmente é docente da Universidade
Estadual de Londrina na área de Enfermagem Psiquiátrica e Saúde Mental e Revisor dos
periódicos Acta Paulista de Enfermagem, Revista Brasileira de Enfermagem, membro do
conselho editorial do Journal of Nursing Education and Practice e representante do
conselho Editorial da EDUEL. Tem experiência na área de Enfermagem em Saúde Mental
Comunitária e na pesquisa quantitativa sobre formação de recursos humanos e avaliação
de serviços em saúde mental, com os temas de Suicídio, uso de drogas e na Adaptação
cultural de instrumentos de medida de construtos subjetivos.
Tendo sido atribuído a cada especialista o tempo médio de 10 minutos para
apresentação de comentários iniciais sobre o filme, a sessão prosseguiu passando a
palavra ao público, para questões e comentários. Esta etapa da sessão de cinema é que
permite que a atividade seja interdisciplinar.
Propalada na década de 70 do século passado como meio para construção de
conhecimentos, interdisciplinaridade foi teoricamente concebida, discutida e
recomendada. De lá para cá, convivemos com uma profusão terminológica cujos
significados se avizinham conceitualmente, porém não diminuem lacunas de como tais
concepções se materializam na prática.
As sessões de cinema promovidas pelo grupo de pesquisa Estudos Foucaultianos
constituem exemplos concretos de atividades interdisciplinares de elevado teor
informacional, analítico e crítico. A permanência do público acadêmico até o
encerramento de cada sessão, bem como seus pedidos de continuidade dessa prática,
assim como de inclusão de comentaristas e debatedores de outras áreas do conhecimento
em próximas sessões de cinema nos asseguramda relevância desse tipo de atividade
cultural e nos incentiva a compartilhar a transcrição dos turnos de falas que materializam
o alcance de nossos objetivos educacionais. É este o propósito desta publicação.
Simone Reis
Universidade Estadual de Londrina
8
Convenções gráficas transcricionais
{ } – acréscimo de palavra(s) para clareza de sentido à frase
( ) – trechos ou palavras ininteligíveis
[...] – trechos suprimidos (ex: tais quais conversas paralelas)
Sublinhado – vozes sobrepostas
9
RENAN PAVINI. Bicho de sete cabeças é um filme com múltiplas possibilidades 1
de abordagens. Podemos pensar, só para citar algumas: relação médico-2
paciente; relação instituição-polícia-estado; relação econômica e farmacológica; 3
instituição como exclusão ética e moral; fronteiras entre razão e desrazão. De 4
certa forma, a ideia que pretendo trabalhar se relaciona com todas as anteriores, 5
embora não seja possível explorar todas e suas devidas relações em tão pouco 6
tempo. Então, vamos falar um pouco de como o louco perde a autoridade da fala, 7
como o indivíduo se torna impotente, incorpora o silêncio para toda uma 8
sociedade para quem ele é louco, para quem ele é exterior, para quem ele é 9
separado. Ora, o motivo de querer falar um pouco sobre essa temática se dá por 10
dois pontos especiais: primeiro, pelo título do livro que deu origem para esse 11
filme: O canto dos malditos; segundo, pelas reflexões que o autor Carrano Bueno 12
– o Neto do filme –nos deixa no final de seu texto, que cito a vocês: “Basta 13
entrarmos numa ala proibida, onde permanecem confinados e escondidos dos 14
olhos dessa sociedade de normais as vítimas do desleixo profissional, para ver 15
que experiências e abusos indiscriminados causam ao ser humano. Crime não 16
é apenas matar nosso semelhante. É também deixá-lo inútil, matando sua 17
iniciativa e vontade própria, transformando-o numa besta humana”. Sobre o 18
primeiro ponto, o título é ótimo por sua ambiguidade. Quando me veio à mão seu 19
exemplar, antes de percorrer suas linhas, acreditava que se travava da voz do 20
louco, de seu canto entoando todo o seu sofrimento, sua dor e, portanto, o canto 21
dos Malditos. De certa forma, não deixa de ser e talvez seu autor tenha pensado 22
nisso e não deixado explícito. O canto dos malditos, como repetidas vezes é 23
utilizada no texto – todas, da mesma forma – , é o lugar, dentro do internamento, 24
em que ficavam os loucos dos loucos ou, se quiserem, os loucos crônicos, onde 25
os demais pacientes tinham medo de se aproximar. Esse canto – canto espacial, 26
é verdade –é a exclusão da exclusão, o exterior do exterior. É esse lugar que, 27
gradativamente, Neto, um usuário de maconha, irá ocupar. Já sobre a citação, 28
vemos um debate extremo sobre a gestão de um hospital psiquiátrico que 29
trabalha com seus métodos obsoletos para vigiar e castigar e, talvez, o mais 30
brutal de seus métodos, o eletrochoque. E, ainda, um debate mais profundo 31
causado por esses métodos obsoletos: o recolhimento da liberdade do indivíduo, 32
de sua autonomia e sua vontade própria. Interessante observar que louco e 33
impotência, loucura e silêncio, sempre estiveram intimamente ligados, seja no 34
10
discurso médico/científico, seja no discurso estético/crítico, seja no filosófico ou 35
mesmo no artístico. Mas, antes, seria interessante observar como se dá um certo 36
silenciamento, ou melhor, isolamento (historicamente falando), como método de 37
tratamento em nossas instituições brasileiras. Em Danação da norma, Roberto 38
Machado e companhia realizaram um extenso estudo – sem dúvida, de 39
inspiração foucaultiana – sobre o nascimento da psiquiatria no Brasil e, em 40
determinado momento, afirmam que o hospício no Brasil é a realização de 41
isolamento formulado por Esquirol em dois principais textos “Da loucura” (1816) 42
e “Sobre o isolamento dos alienados” (1837). O isolamento tem uma justificação 43
dupla: ao nível das causas da doença e ao nível do tratamento. O hospício nada 44
mais faz do que separar o louco das causas de suas loucuras, inscritas na 45
sociedade e principalmente na família. O louco deve ser afastado do meio 46
doméstico que não só causa, mas acirra sua alienação mental. Trata-se de 47
reorganizar o contato entre o doente e a família, por meio do internamento. Para 48
isolar o louco, os médicos expõem motivos: A presença de parentes e amigos 49
relacionados a causas da loucura irrita e entretém o delírio; o isolamento significa 50
possiblidade de romper os hábitos do louco; a família concorda com as vontades 51
do louco (o louco toma o controle);as despesas e, principalmente o medo, 52
atrapalham a família. Retirando o perigo que amedrontava a família, o Alienista, 53
enquanto operador de uma transformação, se coloca como o protetor e defensor 54
da família. Nesse sentido, em um primeiro momento, o isolamento do louco é 55
prioritário para o tratamento do mesmo. Vejo que esse tipo de leitura nada se 56
distancia da apresentada no filme. Mas, esse tipo de isolamento que, sob a 57
perspectiva do filme, é mais uma amputação da alma, traz um isolamento muito 58
pior e mais brutal: a liberdade ou a reintegração social. O louco, entregue 59
novamente à sociedade, depois de ter se submetido aos mais variados 60
tratamentos em seu internamento, é calado em sua liberdade ou, corrigindo, o 61
louco é entregue para sempre a seu espaço próprio: ao isolamento e ao 62
silenciamento. Para pensarmos as consequências disso, quero trazer a vocês o 63
caso e as palavras de Louis Althusser. Como sabemos, Althusser é um 64
intelectual francês respeitado por seus estudos de corrente marxista. Após 65
estrangular a mulher, em 1980, ele foi internado num hospital psiquiátrico. Dado 66
como inimputável pelo crime, foi proibido de ensinar e publicar. Viveu durante 67
anos a trágica condição de desaparecido. Em 1985, escreve sua autobiografia 68
11
O futuro dura muito tempo, onde se esforça em explicar o crime que cometeu 69
em estado de demência, pondo em evidência a fronteira – nada evidente – entre 70
a razão e a loucura. Em determinado momento, Althusser fala da estranha 71
condição em que viveu mesmo após ser liberado. Era como se estivesse morto, 72
ou pior, um morto vivo – pois a morte põe um ponto final na vida de um indivíduo. 73
Ele nos escreve: “O homem que é acusado de um crime sempre poderá, 74
juridicamente, se exprimir e se explicar publicamente. Que seja condenado ou 75
absolvido, sua voz é ouvida. Se for condenado injustamente, pode clamar sua 76
inocência. Já o louco se “beneficia de uma impronúncia”, nada será escutado 77
para explicar suas razões do drama que o acometeu. E quando sair do hospital, 78
se sair, o público ignorará tudo sobre seu novo estado, sua readaptação – ele só 79
tem uma solução, o silêncio e a resignação”. Ora, facilmente podemos perceber 80
como os efeitos dos tratamentos sobre Neto acabam com sua iniciativa e 81
vontade própria. Como ele se silenciou dentro e, pior, fora do internamento. Para 82
refletirmos um pouco, o momento que mais me toca no filme, momento em que 83
Neto está totalmente amordaçado, com uma camisa de força, foi quando não 84
conseguiu dar conta da garota no auge da sua juventude; foi quando percebeu 85
que não conseguiria trabalhar e tocar sua própria vida sozinho por causa do 86
tratamento a que foi submetido, foi quando foi expulso da casa de um amigo por 87
ser eternamente louco (manifestação de sua própria impotência). Enfim, parece-88
me que o momento em que Neto se encontra mais acorrentado é em sua soltura. 89
Isso não se passa no filme, mas a primeira vez que os pais de Neto o levam para 90
casa, ele se isola de tal maneira, cai em tamanho ostracismo, que ele próprio 91
quer voltar para o hospital, mesmo sabendo que corre o risco de levar novas 92
sessões de eletrochoques. Isso se dá porque, diante dos outros loucos, tão 93
diferentes mas tão próximos, ele poderia ser aceito. Ele poderia ocupar seu 94
lugar, no canto dos malditos... e talvez lá, por mais que não o compreendessem 95
e não o escutassem, ele estaria refugiado de tudo e de todos, de sua família e 96
da sociedade – e até de seu psiquiatra! ((palmas)). 97
ALCIONE GONÇALVES CAMPOS [00:00] ... Boa noite a todos. Em primeiro 98
lugar gostaria de agradecer às professoras Márcia Teshima e Simone Reis pelo 99
convite para participar dessa sessão de cinema, o que muito me honra. Com 100
relação à minha fala, gostaria de dizer que fiz uma análise de um recorte do filme 101
me pautando em estudos do discurso. A análise de discurso, segundo Orlandi 102
12
(2012), procura compreender a língua(gem) enquanto elemento simbólico e as 103
criações de sentidos por ela possibilitadas que são constitutivas do ser e de sua 104
história. Assim, nesses comentários, dou ênfase à constituição de Neto, 105
personagem central no filme Bicho de sete cabeças, pelo discurso do outro e seu 106
silenciamento. Baseio-me na teoria foucaultiana de discurso, mais 107
especificamente, na teorização sobre os sistemas externos de exclusão do 108
discurso: a) a palavra proibida (tabu do objeto; ritual de circunstância e 109
exclusividade do sujeito que fala); b) a segregação (da loucura); e c) a vontade 110
de verdade. Para isso selecionei dois excertos do filme. O primeiro é a cena da 111
conversa entre os familiares de Neto e o médico psiquiatra Dr. Cintra Araújo, “um 112
dos maiores psiquiatras do Brasil”, nas palavras do personagem Wilson, pai de 113
Neto. Nesta cena, o médico se coloca como autoridade absoluta do saber 114
psiquiátrico, usando uma linguagem direta, objetiva e assertiva, ou seja, sem 115
modalizações. Ele não deixa abertura para o questionamento da família sobre a 116
condição de Neto ou a necessidade de sua internação, embora não tenha feito 117
uma avaliação pormenorizada do paciente. Dr. Cintra, em uma das cenas 118
anteriores, o examina, pede pra ele respirar, mas é uma avaliação bem 119
superficial. A família, assim, se submete ao poder institucional conferido ao 120
médico e não questiona suas asserções, pois, como evidencia Foucault, o 121
discurso apoiado no suporte institucional que é naturalizado como verdadeiro 122
exerce uma espécie de pressão à qual é preciso submeter-se. Neto é constituído 123
então como dependente de drogas e portador de distúrbios de personalidade. 124
Sua voz nunca foi ouvida, apesar dele ter clamado em diferentes momentos para 125
falar com seu pai e com o médico. Sua voz é ignorada, pois não é digna de ser 126
ouvida, uma vez que ele não se encaixa nos padrões morais de sua sociedade. 127
O médico afirma que quaisquer de suas reclamações não passam de delírios e 128
mania de perseguição, reafirmando a caracterização como doente mental. Mais 129
uma vez, essas afirmações são feitas de forma assertiva, não deixando espaço 130
para dúvidas ou contestações. O médico atesta que Neto vai apresentar 131
comportamento agressivo e que terá delírios. Ele modaliza sua fala apenas no 132
momento em que remete a reclamações de perseguições que possam ser feitas 133
pelo paciente. Dessa forma, o psiquiatra utiliza e demonstra seu poder por meio 134
da linguagem que usa. Tipifica e estigmatiza o jovem Neto, que passa de um 135
adolescente aparentemente “normal” a um jovem com problemas físicos e 136
13
mentais, devido ao tratamento cruel e desumano que recebe no hospital 137
psiquiátrico. Quanto à sua voz, ela é silenciada; silenciada como a voz do louco 138
que é impedida de circular e, quando ocorre, é considerada nula, vazia de 139
verdade e, portanto, sem importância (FOUCAULT). Na segunda cena 140
selecionada, a família encontra Neto pela primeira vez após a internação. O 141
rapaz tenta alertá-los dos maus tratos e abusos sofridos no hospital. Sua 142
tentativa fracassa, uma vez que a família o vê, o identifica como dependente de 143
drogas e portador de distúrbios comportamentais e de personalidade. Mais uma 144
vez, sua voz não é ouvida. Nesta cena, a mãe usa uma linguagem afetuosa e 145
tenta estabelecer uma relação afetiva com o filho, sem, contudo dar importância 146
ao que ele fala; a irmã critica seu comportamento e parece ignorar o conteúdo 147
de sua fala, ela parece mais impressionada com o jardim do hospital, cenário 148
calmo e belo; o pai rebate tudo que o filho diz reafirmando sua condição de 149
drogado e rebelde e validando a autoridade médica. Neto e sua família não 150
conseguem estabelecer um diálogo, a voz do adolescente é considerada vazia. 151
Portanto, a constituição desse sujeito se dá a partir das formações discursivas 152
de ‘drogado’, rebelde e doente mental, reafirmadas nas falas do médico e da 153
família. O que legitima sua exclusão e seu silenciamento. A exclusão, do convívio 154
social, acontece com a internação, e o silenciamento, pela exclusão do discurso 155
e domesticação do corpo. Inicialmente, a exclusão do discurso, pelo 156
apagamento de sua voz, a partir do poder exercido pelo médico com autoridade 157
de anulá-la, relacionando-a a distúrbios e delírios e, portanto, a voz do louco, a 158
qual não se deve dar importância. Esse poder do psiquiatra é possibilitado pelo 159
que Foucault define como vontade de verdade, isto é, por práticas 160
institucionalizadas que atribuem o valor de verdadeiro e, portanto, legítimo ou 161
falso a determinados discursos e exercem coerção sobre outros. Na sequência, 162
esse silenciamento se torna físico, uma vez que as “drogas” ou remédios 163
ingeridos pelo paciente impossibilitam-no fisicamente de produzir qualquer 164
enunciado. Dessa forma, eu concluo, então, que a constituição desse sujeito se 165
dá em dois eixos: o da exclusão, pelo internamento compulsório, num primeiro 166
momento; e o silenciamento, pelo apagamento da sua voz, como a de doente 167
mental ou do louco que não deve ser ouvido e pelo apagamento da fala, e a 168
domesticação do corpo com o uso dos medicamentos. Exclusão e silenciamento 169
que resultam na opressão, o que remete à crítica foucaultiana às instituições que 170
14
nos governam ou que nos assistem. “Para ele, o objetivo maior dessas 171
instituições não é a defesa da sociedade, mas criar mecanismos que permitam 172
o exercício do poder, o poder de humilhar, reduzir e oprimir o próximo, que por 173
uma desdita qualquer é obrigado a ficar confinado ou constrangido numa das 174
suas edificações” (VOLTAIRE SCHILLING, 2011). Isso é demonstrado com a 175
análise desse filme que, sem alegorias ou metáforas, denuncia a situação dos 176
hospitais psiquiátricos da época. Então, falando desses hospitais psiquiátricos, 177
a sua função muitas vezes não era a função altruísta, uma função que objetivava 178
proporcionar tratamento digno aos pacientes, mas, sim, atender a diferentes 179
objetivos como a gente pode ver no filme, por exemplo, o financeiro – no caso 180
do médico que recebia o repasse financeiro do governo. Então, pra finalizar, eu 181
deixo aqui algumas questões a partir dessa reflexão. Essa reflexão nos permite 182
questionar o nosso contexto e momento histórico. Especificamente a respeito 183
dos hospitais psiquiátricos, podemos perguntar: O que mudou? As instituições 184
psiquiátricas foram extintas? Se negativo, como elas operam atualmente? E, 185
com relação ao nosso contexto de atuação – e aí no meu caso específico, a 186
Linguística Aplicada, o ensino de línguas – podemos nos indagar a que 187
interesses nossas práticas servem, que vozes silenciamos e que sujeitos 188
oprimimos. Obrigada. ((palmas)) 189
MÁRCIA TESHIMA: [06:38] Boa noite a todos. O filme nos convoca à reflexão 190
de que internações psiquiátricas involuntárias demandam um enfrentamento da 191
questão não apenas pela visão da Filosofia, Estudos da Linguagem, Psicologia, 192
Psiquiatria, Enfermagem, mas em especial, do Direito, uma vez que a mera 193
existência de legislações nacionais e internacionais de saúde mental, por si, só 194
não autoriza, tampouco garante respeito e proteção dos Direitos Humanos. Em 195
1974 – essa é a época que o filme retrata – Neto era um jovem de 17 anos de 196
idade, portanto, relativamente incapaz, de acordo com a legislação civil, que era 197
a de 1916, deveria ter sido assistido por seus pais ou seu representante legal 198
em todos os atos da vida civil. Mas, sem concordar com o procedimento 199
pretendido pelo pai e sem direito à voz, Neto não foi examinado por um 200
profissional da Medicina, tampouco por um médico da Psiquiatria; não foi 201
informado sobre seu tratamento, ao contrário, foi submetido a um internamento 202
psiquiátrico involuntário e nele sofreu torturas e eletrochoques. Kant uma vez 203
15
disse: “Coisas têm utilidade, seres humanos têm dignidade”. E dignidade aqui 204
deve ser compreendida como atributos psicofísicos, convicções, modo de vida, 205
seu caráter, sua honra, sua autonomia existencial enquanto ser humano. Assim, 206
embora a dignidade seja um direito reconhecido no âmbito tanto do Direito 207
Internacional como do Direito Nacional, o que nós observamos é que o direito à 208
dignidade veio com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. 209
Entretanto, no Brasil, somente com a Constituição Federal de 1988 é que se 210
consagrou a dignidade da pessoa como o mais importante princípio jurídico, ou 211
seja, o fio condutor de todos os ramos do Direito. Assim, Neto, ainda que 212
relativamente incapaz e usuário regular ou não de maconha, como ele alegou, 213
tinha o direito a ser informado e não poderia ter sido compelido a um tratamento 214
para o qual sequer fora examinado por um profissional, tampouco o consentiu. 215
No caso, o filme e a própria história de Austregésilo, revelam não apenas a 216
violação da integridade física dele, mas principalmente a violação de sua 217
dignidade enquanto pessoa. Aqui eu abro um parêntese apenas para situar como 218
era a legislação que existia no Brasil a respeito das internações que se faziam, 219
não apenas dos psicopatas, toxicômanos, mas também dos intoxicados 220
habituais, em estabelecimentos psiquiátricos públicos ou particulares. Para 221
vocês terem uma ideia, a legislação que vigia no Brasil e, portanto, à época em 222
que Neto foi internado, era o Decreto Federal de 1934, e nele se permitia que se 223
fizesse a internação por ordem judicial ou requisição de autoridade policial: 224
“Serão documentos exigidos para toda internação, salvo nos casos previstos 225
nesse decreto, atestado médico, que será dispensado somente quando se tratar 226
de ordem judicial”. Então, vocês veem aí que, só por essa previsão, ainda que 227
ela seja de 1934, Neto não teve essa possibilidade, tampouco assegurado o 228
direito a um exame médico ou pelo menos de consentir nos procedimentos que 229
seriam realizados. A legislação que nós temos hoje no Brasil data de 2001 e ela 230
é fruto e reflexo de lutas que tiveram início, tanto no âmbito internacional quanto 231
no âmbito interno, por um movimento de luta pelo processo de desinternalização 232
ou a extinção gradual de leitos nesses hospitais psiquiátricos. Então era um 233
processo de reforma antimanicomial. Por essa legislação, que é a Lei nº 10.216 234
de 2001, ela redireciona o modelo de tratamento e nesse documento é que se 235
estabelece a garantia e a proteção dos direitos das pessoas portadoras de 236
transtornos mentais, ou seja, dentro dessa terminologia “transtornos mentais” 237
16
nós colocamos todos os indivíduos, e aqui o Dr. Eduardo é quem pode esclarecer 238
melhor. Mas, Neto passa a ser internalizado nesse sistema a partir de 239
documentos institucionalizados pela própria sociedade, ou seja, a Lei nº 10.216 240
prevê três tipos de internação: a voluntária, a involuntária e a compulsória. Então, 241
vocês vejam que, mesmo para uma legislação de 1934, a de 2001 mantém esse 242
sistema de internação. Deixo aqui apenas uma reflexão e aquilo que meus 243
antecessores já colocaram: o que se percebe, não apenas no filme, mas aquilo 244
que traz à nossa realidade, é que todos esses indivíduos, de certa forma ou não, 245
sejam eles toxicômanos ou não, eles sempre são sujeitados ao sistema. 246
Obrigada. ((palmas)) 247
EDUARDO SALVIANO TEIXEIRA DO PRADO: [13:27] Boa noite a todos, é um 248
prazer estar de novo aqui. Obrigado pelo convite. Eu gostaria de começar com 249
uma frase de George Orwell: “Se a liberdade significa alguma coisa, será, 250
sobretudo, o direito de dizer aos outros o que eles não querem ouvir.” Hoje em 251
dia, no imaginário da maior parte das pessoas, a internação e o tratamento 252
psiquiátrico são sinais de tratamento desumano e cruel, e sobretudo ineficaz. O 253
filme “Bicho de Sete Cabeças” é um símbolo dessa visão estereotipada da 254
psiquiatria. Concordo plenamente com a absurdidade do internamento do 255
personagem Neto, entretanto o que quero discutir é a conduta disseminada de 256
tomar esses casos como a regra e não a exceção, de forma a ignorar os fatos 257
objetivos, os casos de doenças psiquiátricas graves com altíssimos riscos de 258
autodestruição e eletrodestruição, das evidências da neurociência e da eficácia 259
comprovada dos tratamentos medicamentosos. O tratamento psiquiátrico, 260
sobretudo no momento da internação hospitalar, foi associado nos anos 70, à 261
“repressão do sistema e de direitos da cidadania”, e o hospital psiquiátrico, 262
chamado de manicômio, associado a uma câmara de torturas, com supressão 263
da expressão individual de pessoas originais. Os médicos psiquiátricos foram 264
associados a torturadores e agentes do sistema antidireitos de cidadania. Partiu-265
se de uma incontestável realidade: a precaríssima condição dada aos doentes 266
mentais nos manicômios. Não havia ainda aqui, naquele tempo, na rede pública, 267
as modalidades de tratamento extra-hospitalar já usadas no resto do mundo: 268
hospitais-dia, pensão protegida, centros de convivência. Isso poderia ser 269
implantado naturalmente, mas, como em qualquer grupo militante, precisava-se 270
17
de uma bandeira revolucionária, de um perfil redentor, algo de apelo midiático 271
que chocasse a população e chamasse a atenção. O eletrochoque – um 272
procedimento terapêutico altamente eficaz, recomendado internacionalmente 273
por todos os grandes centros, pela Organização Mundial de Saúde e por toda a 274
psiquiatria moderna, indolor, que não lesa, destroi, nem frita neurônio de 275
ninguém – foi subliminarmente relacionado aos choques aplicados pelos 276
torturadores nos “porões da ditadura”. Aliás, o termo usado para se referir ao 277
ambiente hospitalar psiquiátrico era – e ainda é – “os porões da loucura”. Dava-278
se a entender que a internação tinha caráter punitivo e o tratamento era, na 279
realidade, uma repressão a serviço do sistema. Curiosamente, esse era o padrão 280
do que se fazia, então, no império soviético, onde os dissidentes eram internados 281
e tratados como loucos. As denúncias dessa violência eram arrasadoras e 282
constantes nos congressos internacionais de psiquiatria. Esses fatos não se 283
divulgavam, a não ser raramente, na mídia brasileira. O grupo antimanicomial, 284
cuja prática é bastante ruidosa, omitiu sistematicamente qualquer crítica a essa 285
situação nos anos 80. A doença mental, diziam, era uma ficção capitalista e 286
burguesa. A loucura poderia ser vista como uma reação sadia a um sistema que 287
não tolerava manifestações individuais de liberdade. A loucura era criativa, 288
transgressora, desafiadora do status quo. A loucura subversiva, criadora, 289
desafiava o poder constituído, representado pelo hospital psiquiátrico e pela 290
medicação antipsicótica. O modelo proposto foi a revolução antimanicomial 291
italiana, levada com sucesso uma década antes, nos anos 60, por Basaglia, que 292
propunha a desconstrução do modelo médico da psiquiatria. Ele foi responsável 293
pelo setor de psiquiatria da saúde italiana que, na década de 60, desmantelou o 294
modelo assistencial manicomial excludente vigente na Itália e no resto do mundo 295
até a descoberta, nos anos 50, dos medicamentos. Esses, os medicamentos, 296
que fizeram na Psiquiatria a verdadeira revolução e permitiram, graças a seus 297
resultados terapêuticos, até então desconhecidos, a reintegração de milhares de 298
pessoas ao convívio sócio familiar. Esses medicamentos são os neurolépticos 299
de primeira linhagem de medicamentos antipsicóticos introduzidos em 1952 na 300
França, e que, pela primeira vez na história da Psiquiatria, agiam nos delírios e 301
alucinações, bem como nas grandes agitações e transtornos de comportamento 302
que, até então, levavam à segregação dos doentes. Com a nova medicação, os 303
pacientes melhoraram dramaticamente e grande número deles, já aptos a uma 304
18
vida extramuros, podia ser devolvido à sociedade e às suas famílias. De fato, 305
nós vivemos tempos em que a histeria adquiriu ares de intelectualidade. O 306
histérico não crê naquilo que vê, mas naquilo que diz e repete. Sua experiência 307
direta da realidade é substituída por uma padronização compulsiva que enxerga 308
sempre as mesmas coisas pelos mesmos ângulos e não consegue nem imaginar 309
que possam ser vistas de outro modo. A mera tentação de fazê-lo, mesmo por 310
instantes, é reprimida automaticamente ou repelida com horror. É praticamente 311
impossível falar ao coração e à consciência profunda de indivíduos que trocaram 312
sua personalidade genuína por um estereótipo grupal ou ideológico. Diga você 313
o que disser, mostre-lhes mesmo as realidades mais óbvias e gritantes, nada os 314
toca. Só enxergam o que querem. Perderam a flexibilidade da inteligência. 315
Trocaram-na por um sistema fixo de emoções repetitivas, acionadas por um 316
reflexo de autodefesa grupal. Essa transformação torna-se praticamente 317
inevitável quando a unidade do grupo tem uma forte base emocional, como 318
acontece em movimentos fundados num sentimento de exclusão e 319
discriminação, como na luta antimanicomial. Não me refiro, é claro, aos casos 320
efetivos de perseguição política, racional, religiosa, ou àqueles, como no caso 321
do filme, que obtiveram uma conduta médica e familiar completamente 322
desproporcional e inadequada, e que feriam os Direitos Humanos. O que ocorre, 323
via de regra, é uma percepção metonímica da situação, na qual a parte que toca 324
emocionalmente substitui a visão do todo. Ou seja, casos excepcionais de 325
injustiça tomam por completo o lugar de uma ciência, robustamente 326
estabelecida, que é a Psiquiatria. Ignoram-se todos os estudos de Neurociência 327
e toda a infinidade de ensaios clínicos existentes. Ignora-se o fato patente de 328
que 10% dos pacientes com psicose cometem o suicídio, sendo esta uma das 329
mais terríveis formas em que a sua biologia pode não adaptá-lo ao meio e que 330
os tratamentos atuais revertem a grande maioria desses quadros e permitem um 331
retorno à adaptação e à liberdade desses pacientes. A partir dessa situação, 332
qualquer tentativa de apelar ao testemunho interior dessas pessoas está 333
condenada ao fracasso. A experiência que elas têm das situações vividas tornou-334
se opaca, encoberta sob uma densa camada de interpretações artificiais cujo 335
poder de expressar paixões grupais serve como um sucedâneo, hipnoticamente 336
convincente, da percepção direta. O indivíduo “sente” que está expressando a 337
realidade direta quando seu discurso coincide com as emoções padronizadas do 338
19
grupo, com os desejos, temores, preconceitos, ódios, que constituem o ponto de 339
intersecção, o lugar geométrico da unidade grupal. O mais cruel de tudo é que, 340
como esse processo acompanha o progresso do indivíduo no domínio da 341
linguagem grupal, são justamente os mais estupidificados, na visão metonímica, 342
que acabam se destacando aos olhos de pares e tornando-se os líderes do 343
grupo. Um grau elevado de imbecilidade coincide aí com a perfeita 344
representatividade que faz do indivíduo o porta-voz por excelência dos 345
interesses do grupo e, na mesma medida, o reveste de uma aura de qualidades 346
morais e intelectuais. Instaura-se um analfabetismo funcional no qual as palavras 347
repercutem em seus cérebros como estimulações pavlovianas, despertando 348
reações emocionais à simples audição, de modo direto e sem passar pela 349
referência à realidade externa. Nessa situação ouve-se, por exemplo, a palavra 350
“psiquiatria”. Pouco importa o contexto. Instantaneamente produz-se em sua 351
rede neural a cadeia associativa: psiquiatria – medicação – eletrochoque – 352
lobotomia – repressão – tortura – genocídio – ditadura. E o bicho sai gritando: 353
“Vamos protestar contra a opressão! Fechem os hospitais! Justiça!” De maneira 354
oposta e complementar, ouve-se a palavra “cidadania”, e começa-se a entrar em 355
êxtase, arrastado pelo mágico atrativo de imagens: cidadania – igualdade – 356
liberdade – justiça social – reforma psiquiátrica. Sou totalmente favorável à 357
ampliação irrestrita dos Direitos Humanos. Entretanto, devemos ficar alertas, 358
pois a história ocorre de forma circular e todos os movimentos fundados em 359
histeria metonímica militante prometiam um “mundo melhor”, mas trouxeram 360
apenas mais sofrimento e privações. Não podemos permitir que a luta por justiça 361
e liberdade torne-se, paradoxalmente, um impedimento ao tratamento adequado 362
de doenças cerebrais graves e incapacitantes, que muitas vezes necessitam de 363
internamento, a fim de evitar desfechos de vida desastrosos como suicídios, 364
homicídios, ou mesmo a fim de tratar eficazmente a escravidão da consciência 365
a sofrimentos indescritíveis causados por doenças médicas comportamentais 366
como a melancolia, a esquizofrenia ou as dependências químicas. ((palmas)) 367
SIMONE MARTIN OLIANI: [22:57] Obrigada pelo convite. Complementando o 368
que os colegas já mencionaram, pensei em discutir as questões relacionadas à 369
análise desse filme mostrando dois de seus focos principais. E nessa questão, 370
considerando esse drama que é representado no filme “Bicho de Sete Cabeças”, 371
20
é importante que eu, como analista do comportamento, possa tentar mostrar pra 372
vocês como é que os psicólogos, analistas do comportamento, poderiam dar um 373
enfoque diferente e contribuir para a análise que já foi feita até agora. A análise 374
profissional é a investigação das relações entre as respostas e o sujeito, e os 375
estímulos do meio. Pra que a gente possa trabalhar isso, estou considerando 376
Foucault e as relações de poder em todas as instituições que são representadas 377
nesse filme, e também gostaria de trazer aqui uma frase do Skinner que seria 378
interessante pra gente começar é que “os principais problemas enfrentados hoje 379
no mundo só poderão ser resolvidos, se nós melhorarmos a compreensão sobre 380
o comportamento humano em todos os níveis”. Já foi muito bem contextualizado 381
pelo primeiro colega, que falou sobre “O Canto dos Malditos”, e eu gostaria de 382
focar nos dois principais pontos que esse filme traz: a dificuldade de 383
relacionamento entre pai e filho, e a realidade desumana do sistema manicomial 384
brasileiro. Será que mudou? Neto é um adolescente típico, de uma grande 385
metrópole, vive problemas de relacionamento com a família, com o 386
comportamento do pai que não permite nenhum tipo de diálogo ou conversa, é 387
conservador, e uma mãe passiva, submissa. Representam uma sociedade de 388
classe média e Neto vive entre a escola, os amigos, andar de skate, e fumar 389
maconha. Os pais e a irmã mais velha se incomodam com esse padrão de 390
comportamento que ele apresenta, principalmente por ele ficar mais tempo com 391
os amigos. Após, então, à prisão dele por pichação, ele é internado no 392
manicômio pra trabalhar “a dependência química”. E esta decisão, conforme os 393
colegas já mencionaram, ocorreu sem que houvesse qualquer tipo de diálogo. 394
Na representação do poder dessa família, o pai decide, a irmã mais velha apoia 395
e a mãe, passiva e submissa, concorda. A análise do comportamento vai 396
enfatizar a funcionalidade da compreensão do comportamento, ou seja, em que 397
situação esse comportamento ocorre e qual a consequência produzida por ele. 398
Pensamos, então, que,ao perder o controle do seu filho, ao perder o poder sobre 399
o seu filho, a internação foi a solução encontrada, e internação manicomial. Neto 400
sente na pele a realidade completamente absurda, desumana, em que as 401
pessoas são submetidas por tal regime, de forma corrupta e cruel. E os familiares 402
“cheios de boas intenções”, cúmplices do sistema manicomial e de suas cruéis 403
torturas, só aceitando retirá-lo dali quando ele já estava com muitas dificuldades. 404
Quero destacar nessas relações de poder a violência sádica dos enfermeiros, 405
21
que usam todos os recursos do manicômio para subjugar os pacientes, desde a 406
camisa de força, o “quarto-forte”, o eletrochoque, etc., que acabaram por 407
conseguir robotizar Neto, transformando-o numa coisa. O problema da 408
corrupção que tem invadido como nunca as instituições, e o médico ali 409
representado nesta internação, está interessado muito mais em obter subsídio 410
federal, como já foi mencionado aqui na mesa. Nos dias de hoje está melhor, 411
vivemos outra realidade. No hospital psiquiátrico, o enfermeiro avisa ao Neto o 412
porquê da internação. “Seu pai acha que você é viciado”. Tais comportamentos 413
considerados rebeldes pela sociedade e incompreendidos pelo pai levam o 414
jovem a realizar atitudes de busca de emoção e liberdade vividas nessa fase, 415
sendo apoiado pelo grupo social, pelos amigos, e o que o influenciava a repetir 416
determinados comportamentos, inclusive usar maconha. Em decorrência da 417
emissão deste comportamento, pichar muros, utilizar drogas e emitir respostas 418
comportamentais de rebeldia fizeram com que o jovem fosse punido 419
positivamente em relação ao internamento (manicômio), no qual recebia maus 420
efeitos, como choques e uso de medicamentos, como também punido 421
negativamente em decorrência do isolamento, que é algo que na adolescência 422
é muito importante – a liberdade. E dentro do manicômio ele foi privado. A 423
essência da análise de contingências é identificar o comportamento e as 424
consequências, alterando consequências pra ver se o comportamento pode 425
mudar. Vamos analisar, então, as contingências na relação de poder dentro do 426
ambiente familiar de Neto. A relação de Neto com o pai: contingências aversivas, 427
cobrança do pai em relação ao filho, falta de diálogo e um ideal do que seria o 428
comportamento do filho estabelecido pelo pai. Exemplos nas falas: “Eu cheguei 429
aonde cheguei e quero ver onde você vai chegar.” “Isto é coisa de veado” – com 430
relação ao banho em comum. Do grupo de amigos do Neto: um comportamento 431
de esquiva do ambiente familiar, que era agressivo, e ele era também punido 432
pelos amigos quando ele saía com o pai, e contribuía para a manutenção do 433
comportamento arredio do Neto. Um exemplo: “Pô, ‘cê vai sair com o papai de 434
novo?” Prováveis variáveis que controlam o comportamento da família de 435
internar Neto: quando o pai de Neto encontra maconha na mochila do filho, ele 436
não tem qualquer tentativa de diálogo, não pede esclarecimento, o porquê da 437
maconha, com que frequência o fazia e se era apenas essa substância. Pode 438
ser questionado o fato do porquê do pai não buscar o diálogo. Será que era 439
22
esquiva, tanto da relação aversiva com o filho, isto é, nunca tinha tido uma 440
relação positiva entre os dois? Ou estigma de ter um filho usuário de drogas? 441
“Seria muito vergonhoso e precisava de uma solução rápida”, como ele mesmo 442
mencionou na fala com a filha. Com relação à instituição psiquiátrica, o filme não 443
fornece indícios de que se tratava de dependência química ou não. Nenhuma 444
avaliação psiquiátrica foi realizada e ele passa a tomar medicação sem que fosse 445
avaliado. Exemplos: “Seu pai acha que você é viciado” – o enfermeiro. “Eu não 446
sou viciado, você não me examinou”, e o enfermeiro repete: “Se você não tomar 447
remédio, isto vai confirmar que você é rebelde e agressivo”. Pelo fato de Neto 448
apresentar-se indignado por estar internado na instituição psiquiátrica, ele emite 449
resposta de agressividade e é punido positivamente pelos enfermeiros do 450
hospital. Durante a convivência com os internos da instituição, ele conhece 451
Rogério. Com sua experiência, ele ensina a Neto fatos que fazem com que ele 452
reflita sobre o seu próprio comportamento. Exemplo: “Se você brigar com o 453
médico, você leva uma injeção de Haloperidol”. Rogério especifica uma 454
contingência: exerça o contra-controle. Ele está dizendo: varie seu 455
comportamento para se esquivar dessa condição que é aversiva. Eles saem do 456
hospital e assustados com o que está acontecendo, as contingências ambientais 457
na família do Neto continuam as mesmas, nada se modificou. Os 458
comportamentos como permanecer arredio, calado, quieto, continuam a ocorrer, 459
uma vez que os comportamentos são determinados pelas contingências, e ele é 460
internado pela segunda vez após a briga na festa, e é levado pelos policiais para 461
outra instituição. E nós vemos outra relação de poder apresentada em estigma 462
quando os policiais ligam pra família: “Ele é meio louco, agressivo. A gente ficou 463
sabendo que ele é meio retardado. Já encaminhamos pra internação”. Neto 464
começou a seguir regras nessa nova internação, sugeridas por Rogério. 465
Apresenta comportamento de liderança do grupo, não toma medicação, ou seja, 466
tenta entrar em contato com determinados reforços e evita a estimulação 467
agressiva, contracontrole. Na segunda internação, quando o pai o retira da 468
instituição pela tentativa de suicídio, ele mostra-se bastante marcado por todas 469
as relações de poder a que ele foi submetido, e ele escreve para o pai as 470
seguintes palavras: “Eu não esqueci o que você fez comigo. Você sempre me 471
disse ‘eu cheguei aonde cheguei e eu quero ver onde você vai chegar’. Eu 472
cheguei aqui e você me fez menor que você”, mostrando as relações de poder 473
23
em que o filho agora denúncia ao pai. É importante a gente considerar, em 474
especial com relação à análise do comportamento e esse filme, que a análise do 475
comportamento considera a proposta da luta antimanicomial bastante 476
compatível com as propostas discutidas dentro de uma ciência do 477
comportamento. O tratamento de acordo com o movimento visa à integração do 478
indivíduo com a sociedade. Na análise do comportamento, nós vamos considerar 479
o comportamento funcional e não o comportamento dito patológico ou 480
disfuncional. É importante o que a gente considera, porque o objetivo do 481
comportamento humano é sempre apresentar o melhor resultado de adaptação 482
no ambiente onde se está. Quando nós modificamos contingências responsáveis 483
pelos comportamentos ditos “patológicos” – para nós são comportamentos 484
funcionais – nós podemos verificar, porque o ambiente se modifica e todo o 485
grupo também se modifica. Modificando, então, as contingências de 486
comportamento, teríamos uma relação muito melhor sucedida do que a 487
apresentada pelo personagem Neto no filme. E as instituições de hoje? E as 488
propostas de tratamento que temos disponíveis hoje? E as nossas políticas 489
públicas? E o conhecimento sobre dependência química na nossa sociedade, 490
nos profissionais de saúde? E a qualidade da formação dos profissionais de 491
saúde? Eu sou professora do curso de Psicologia. Não tem no curso de 492
Psicologia, mesmo eu dando a disciplina de psicopatologia na área do 493
comportamento, não tenho dentro da grade uma hora pra falar de dependência 494
química. Que profissional vai sair formado, se a gente não tem formação de 495
qualidade pra esse profissional de saúde? Se quiser, é na especialização e é 496
fora da instituição. Então, a gente precisa repensar algumas coisas, porque são 497
muitas questões pra gente fazer, a partir da reflexão desse filme. Eu gostaria de 498
agradecer. Obrigada. ((palmas)) 499
MARCOS HIRATA SOARES: Boa noite a todos. Bem, como eu fiquei por último, 500
vou tentar complementar as falas dos colegas que já com bastante sabedoria 501
exploraram diversos ângulos do filme. Então, eu vou tentar pegar alguns pontos 502
pra gente tentar complementar e encerrar essa discussão. Eu não sei o quanto 503
vocês sabem de enfermagem, mas a Enfermagem é uma profissão que faz 504
interface com diversas áreas, então a gente acaba tendo um pouco de contato 505
com várias coisas e a minha fala também vai ter um pouco dessa característica 506
24
de pegar um pouquinho de cada coisa. Talvez não fique um encadeamento tão 507
sequencial, mas aí depois vocês vão me perguntando, pra gente ir conversando. 508
Então, eu fiz alguns apontamentos, conforme foram falando, pra não repetir e 509
pegar outras coisas, tentando fazer uma aproximação, já que a proposta era uma 510
interpretação do filme à luz de Foucault. Algo que chama a atenção no livro da 511
“História da Loucura na Idade Clássica”, e tem um trecho em que ele fala que “o 512
asilo abriga assim não o tema social de uma religião onde todos os homens se 513
sentem irmãos numa mesma comunhão e numa mesma comunidade, mas o 514
poder moral da consolação, da confiança e de uma fidelidade dócil à natureza”. 515
Então, esse trecho me lembra muito quando ele volta para o hospital psiquiátrico 516
justamente porque lá ele se sente mais próximo dos outros que têm o mesmo 517
sofrimento. Então, na verdade, ele busca esse entendimento e a convivência de 518
outros que passam a mesma situação que ele. Então, isso me chamou a atenção 519
justamente nesse trecho que Foucault fala do asilo, que há 400 anos a gente vê 520
que tem a mesma estrutura. Outro trecho de um livro, que não é o Foucault, mas 521
é o Goffman, “Manicômios, Prisões, Conventos”, ele fala da instituição total, de 522
como a instituição hospital é definida. E um aspecto da instituição total é 523
justamente o fato da pessoa ter o mesmo espaço de convivência: a casa, a 524
moradia, o trabalho, o lazer, tudo num lugar só. E ali o cotidiano do hospital 525
psiquiátrico reflete exatamente isso, então, ele perde a privacidade dele, a 526
individualidade e realiza tudo ao mesmo tempo. Ali ele mora, realiza atividades, 527
tem lazer. Então, ele perde essa individualidade, e isso é como se dificultasse 528
ainda mais a reabilitação. Então, aquele momento em que ele sai do hospital e 529
tenta se reinserir novamente, aquilo foi destruído exatamente pela instituição 530
psiquiátrica, pelo modelo manicomial de encarceramento, isolamento, que já foi 531
levantado pelos colegas aqui. Então, o hospital psiquiátrico realmente não 532
permite essa reabilitação porque ele destroi exatamente tudo isso, a partir do 533
momento em que ele perde a identidade, que deixa de fazer as coisas por ele 534
mesmo. Quando o paciente sai do hospital, ele não sabe mais fazer comida, não 535
sabe pegar um ônibus, não sabe mexer com dinheiro. Então, é exatamente 536
aquilo que ele vivenciou. Aí, tem outro momento que chamou a atenção: é aquela 537
fala daquele paciente que era mais velho e que todo mundo falou: “Vai lá escutar 538
ele porque todo mundo escuta ele”. Então, é a hora em que ele punha a touca 539
na cabeça e ele também falou: “Aqui você tem que fingir, porque aqui você tem 540
25
que ser louco”. E aquele discurso dele me chamou a atenção, porque o que ele 541
falou nada mais é que a teoria de Pinel sobre alienação. Pinel chamava a loucura 542
de alienação e que nada mais é do que causada pelos excessos, as paixões. E 543
pra pessoa ser reeducada tinha que se aplicar o tratamento moral. Então, o que 544
era o tratamento moral? Era ser reeducado pelo trabalho, pela disciplina, e 545
através da relação de afeto, de compreensão, mas ao mesmo tempo é algo bem 546
assertivo. Mas, o que a gente observa e o que vem acontecendo ao longo do 547
tempo, desde Pinel, justamente foi uma depravação das intenções dele. Então, 548
mais pra frente o que vem acontecendo é que aquilo que era pra ser tratamento 549
passou a ser castigo. Então, aquilo ultrapassou os limites do tratamento e 550
começou a se perpetuar como um castigo. E, aí, lógico, onde é que entra a 551
Enfermagem nesse momento? Essa subserviência da enfermagem, 552
principalmente, categoricamente, tem uma explicação histórica. A origem da 553
enfermagem é ligada à prática da medicina e ao surgimento da medicina 554
enquanto estruturação de um discurso de poder sobre o corpo. Então, a 555
Enfermagem vem seguindo história, executando, e hoje, atualmente, isso é 556
muito combatido, é sempre muito criticado. Há todo um esforço nas instituições 557
em favor da desconstrução dessas práticas. E, hoje, temos algumas situações 558
em alguns locais, como o que se relatou no filme? Temos. Aqui em Londrina, se 559
você for aqui ao Shangri-lá, é muito parecido com aquilo que você vê. Tanto é 560
que meses atrás quase foi fechado pelo promotor de justiça. Só não foi fechado 561
porque não tinha onde pôr os pacientes. Mas também a gente vivencia 562
experiências boas. Na área acadêmica, sempre nos congressos, tem 563
experiências que vão construindo saberes e práticas diferentes, então, nós 564
estamos caminhando para um novo modelo, embora sejamos sempre invadidos 565
individualmente com notícias e problemas e deficiências, mas eu acredito que 566
ainda é importante ter essa esperança. [...] Em relação à visão da dependência, 567
o que a gente percebe é exatamente a visão dela simplesmente dentro de um 568
modelo médico, ou seja, a dependência simplesmente é um problema 569
farmacológico e que se trata apenas com medicamento. E observando no filme, 570
foi exatamente a falta de outros aspectos. Como é que não se consideraram os 571
problemas de relacionamento e afetividade do Neto, os problemas de 572
relacionamento entre a família? Então, aquilo simplesmente foi segregado. E 573
esse é o que a gente fala “o modelo médico” biologicista, que exclui tudo isso de 574
26
questão. O que vem se colocando enquanto crítica atualmente não é quanto à 575
internação. Como o Eduardo falou, a internação é necessária em alguns 576
momentos de crise, pra evitar uma piora de um quadro, mas o que a gente 577
combate é esse modelo manicomial, aquilo que a gente viu: a forma de se tratar 578
o paciente, de ele simplesmente ficar o dia inteiro dopado. É isso que a gente 579
combate, e não a internação em si. É que ao longo dos tempos foi se 580
caracterizando o tratamento por conta da mentalidade dos profissionais, da 581
resistência às mudanças. Então, hoje eu acredito que o mais difícil é exatamente 582
a mudança da mentalidade não só dos profissionais, quanto da sociedade. Por 583
quê? Hoje existe uma aceitação um pouco melhor, por exemplo, de uma pessoa 584
que tem retardo mental. Há algum tempo atrás, tinha uma propaganda daquela 585
menina com síndrome de Down, tocando bateria, e todo mundo: “Ah, legal, acho 586
interessante”. Tudo aquilo aproxima, a mídia faz aproximar à pessoa que aquele 587
que “não é normal” não é tão diferente assim. Mas, se a gente for pensar, quais 588
são as propagandas ou divulgações sobre as doenças mentais? Eu falo que todo 589
mundo sabe hoje sobre hepatite, sobre AIDS (Acquired Immunological 590
Deficiency Syndrome – Síndrome da Imunodeficiência Adquirida), sobre 591
hipertensão, mas alguém já viu alguma propaganda, algum folheto falando sobre 592
alguma doença mental? Ainda mais suicídio, também. Então, acho que esse é o 593
grande problema que a gente enfrenta, que é a visão da doença mental como 594
um tabu ou então como um problema de caráter. Eu escuto muito a fala de alguns 595
familiares assim: que depressão é doença de rico, porque o pobre tem três 596
empregos e não tem tempo pra ter depressão. Então, a gente tem ainda muito a 597
ser desconstruído. Mas, eu acredito muito na formação dos profissionais. Achei 598
muito importante que a colega Simone tocou na questão da formação, eu 599
também me preocupo bastante e acho muito importante essa formação 600
interdisciplinar. E, justamente com isso, agora a gente está desenvolvendo um 601
projeto de extensão em que participam {as áreas de} Enfermagem, Psicologia e 602
Direito na reabilitação de dependentes químicos presidiários. Então, a gente está 603
recomeçando o projeto, pra tentar dar uma esperança. É difícil, mas a gente pode 604
tentar fazer e vamos ver o que a gente consegue. Então, se faltou alguma coisa, 605
depois a gente pode abrir um debate e complementar com algumas perguntas. 606
Desculpe, se não ficou uma fala tão estruturada, mas fui tentando adaptar ao 607
que os colegas já falaram e fui me encaixando. Obrigado. ((palmas)) 608
27
JOSÉ EDUARDO BALERA: [48:01] Neste momento abrimos espaço ao público 609
para eventuais questionamentos. 610
P1: [48:22] Professor, qual é o nome do projeto de extensão? 611
MARCOS HIRATA SOARES: [48:30] Inclusão Social e Reabilitação Psicossocial 612
em Dependentes Químicos. 613
P2: [48:43] Dr. Eduardo, muito interessante a sua fala, e por isso eu queria o seu 614
esclarecimento. Qual o sentido que o senhor quis colocar com mais clareza em 615
relação à questão da neurociência e esses tipos de problemas ou os problemas 616
de depressão, enfim, os problemas que a gente está discutindo aqui? 617
EDUARDO SALVIANO TEIXEIRA DO PRADO: [49:09] Obrigado pela pergunta. 618
Existe uma evidência robusta aí desde o advento das neuro-imagens funcionais 619
e alterações das funções do cérebro durante esses quadros clínicos bem claros, 620
e uma mudança na alteração diante da resposta terapêutica. Esse fato era 621
desconhecido até algumas décadas porque a gente não tinha tecnologia pra 622
acessar o cérebro. E até algumas pessoas me perguntam: “Mas como que você 623
fala que é uma doença?” – porque as pessoas estão acostumas a pensar em 624
uma doença adquirida: “Ah, eu peguei AIDS, eu peguei tuberculose, eu peguei 625
hepatite” [...], mas existem doenças que não são uma coisa adquirida, mas são 626
desregulações de um equilíbrio. A hipertensão, por exemplo, é uma doença 627
assim. Todo mundo tem pressão, mas existem pessoas que tem uma 628
desregulação do equilíbrio da pressão e isso pode levar a um AVC (Acidente 629
Vascular Cerebral), a um infarto, diminui a expectativa de vida. O diabetes 630
também. Todo mundo tem glicose, mas existe uma desregulação do sistema de 631
insulina e a pessoa começa a ter uma elevação de glicose que acarreta 632
problemas pra ela a longo prazo. Então, as doenças psiquiátricas, em geral, não 633
são nada de novo ou adquirido. Algumas são, mas a maioria são desregulações 634
da homeostase, do equilíbrio, das redes neurais, porque o cérebro processa o 635
comportamento, assim como processa a motricidade, os movimentos, a 636
percepção dos sentidos, a linguagem. Desde 1817, a gente sabe que, se você 637
tiver um AVC na área frontal esquerda, você perde a capacidade de falar. Foi 638
Paul Broca que viu isso daí, que aqui temos o núcleo motor da fala. Então, o 639
28
cérebro funciona por redes de ampla escala, altamente complexo, porque a 640
gente tem 100 bilhões de neurônios, e cada neurônio tem 10 mil conexões. 641
Então, é praticamente uma quantidade infinita de possibilidades de conexões, e 642
essas conexões processam as funções. Um paciente, por exemplo, que 643
desenvolve Alzheimer, perde a memória por uma degeneração das redes 644
neurais que processam a memória. Um paciente com Parkinson perde a 645
capacidade de se movimentar porque existem lesões nos núcleos da base do 646
cérebro que são núcleos que produzem dopamina, que regulam a motricidade. 647
E a depressão, por exemplo, eles têm visto que há uma desregulação na rede 648
medial do cérebro, que é a rede do self, que é uma rede de ampla escala, e essa 649
rede é a rede da introspecção. Existe uma rede lateral de ampla escala que é a 650
rede da conexão comum, que é uma rede executiva, e a pessoa quando entra 651
em depressão ela transborda a capacidade de retorno e equilíbrio. Ela sofre uma 652
tensão emocional e essa rede do self, que a gente chama de rede default, ela 653
fica superativada e isso se correlaciona com o auto enclausuramento. A pessoa 654
fica presa nela mesma, sentindo as emoções e é incapaz de se conectar com a 655
vida, é incapaz de se conectar com as pessoas. E quando você trata, existe uma 656
desativação dessa rede, o que permite a conexão da pessoa de novo com o 657
presente. Então, com o avanço da neurociência a gente tem entendido isso daí 658
do ponto de vista biológico e visto uma resposta bem clara das alterações diante 659
dos tratamentos. 660
P2: [53:17] Mas a neurociência não exclui, por exemplo, as observações da 661
Psicologia Comportamental ()? 662
EDUARDO SALVIANO TEIXEIRA DO PRADO: [53:24] Não, são 663
complementares, porque a emoção é uma reação ao ambiente. Você não pode 664
pensar na emoção isolada. Tem uma frase que eu gosto, a gente fala sempre, 665
que é do Ortega y Gasset: “Eu sou eu e minha circunstância”. Então, do mesmo 666
jeito que a glicose vem do alimento e é processada pelo metabolismo da insulina, 667
o sistema imunológico te adapta diante de agressores eventuais e bactérias, 668
vírus, as redes neurais processam a realidade, dão um valor à realidade, um 669
valor de si mesmo e te impulsiona a tomar decisões diante da realidade. Elas 670
29
modulam a percepção da realidade e são dependentes dessa realidade, 671
intimamente dependentes. 672
P2: [54:16] Então, dentro dessa ideia [...] da Psiquiatria e da Psicologia, eu não 673
sei qual dos professores poderia contribuir, porque eu não conheço o Foucault 674
na dimensão e profundidade que vocês conhecem. Quando ele faz a análise 675
das questões ( ) por que ele exclui a questão na neurociência ou ele não aborda 676
a questão da neurociência? 677
EDUARDO SALVIANO TEIXEIRA DO PRADO: [54:42] Porque não existia. 678
P2: [54:44] Ah, tá. Então, talvez o discurso dele – agora ele faleceu e não tem 679
como a gente conversar, pelo menos em vida, com ele, não é? ((risos)) 680
EDUARDO SALVIANO TEIXEIRA DO PRADO: [54:54] Foi em 1974, mas ( ). 681
P2: [54:56] E a neurociência foi depois desse período que ela cresceu mais? 682
EDUARDO SALVIANO TEIXEIRA DO PRADO: [55:01] É. 683
P2: [55:02] Obrigada, professor. 684
EDUARDO SALVIANO TEIXEIRA DO PRADO: [55:03] Foi principalmente 685
depois de 1965, mas era uma coisa muito restrita à universidade. Na 686
Universidade de Harvard, pelo forte início, mas assim que disseminou mais foi 687
depois que a gente teve a isonomia tecnológica de neuro-imagem funcional, que 688
você pôde ver a atividade cerebral em vídeo e isso foi no final da década de 80 689
só. Mas isso é conhecido desde o século XIX, por Broca, Werner, que são 690
cientistas. O caso do Phineas Gage, que é um caso bem clássico dos Estados 691
Unidos, que o paciente mudou o comportamento depois de uma lesão frontal, 692
que é de 1848. Mas era uma coisa restrita, se disseminou depois da década de 693
80 e atingiu a todos nós, e todos nós temos noção da serotonina, noradrenalina, 694
mas o que eu disse é que às vezes a gente fica apegado a certos discursos e 695
ignora isso. 696
P2: [56:10] Obrigada. 697
30
SIMONEMARTIN OLIANI: [56:12] E a integração da Psicologia como Psiquiatria, 698
na medida em que o profissional médico observou ali que há esse desequilíbrio 699
e ele ajuda a obter as mensagens de novo, os psicólogos deveriam trabalhar em 700
sintonia, principalmente com os novos profissionais da Psiquiatria, como o Dr. 701
Eduardo, que acaba atuando – vamos dizer assim, numa metáfora – “utilizando 702
um raio laser” pra atingir o ponto que realmente está em desequilíbrio. É, em 703
contrapartida, o que se fazia no passado, como nós podemos ver no filme, que 704
era tiro de canhão pra matar formiga. Então, hoje, a Psicologia tem trabalhado 705
muito em sintonia com as novas tecnologias e, principalmente, fazendo uma 706
análise de contexto pra que a gente possa ajudar o nosso cliente a identificar o 707
que está acontecendo no seu ambiente, ajudá-lo a desenvolver análises 708
funcionais coerentes dentro do dado de realidade e a desenvolver com ele 709
repertórios pra que ele possa se adaptar e fazer o enfrentamento das situações 710
do contexto dele. Então, na medida em que ele consegue identificar o que, de 711
verdade, está produzindo o sofrimento, o psicólogo deveria ajudá-lo a encontrar 712
um jeito de fazer mudanças no ambiente pra que ele possa sentir-se melhor e 713
mais adaptado, e, daí, nesta direção, psicólogo e psiquiatra trabalhando juntos. 714
P2: [57:54] Obrigada. 715
P3: [58:01] Primeiro, eu queria parabenizar toda a mesa, porque foi muito bom o 716
debate proposto por todos. Acho importante essa interação entre várias áreas 717
do conhecimento. Eu sou das Ciências Sociais, então acho que ficou faltando aí, 718
mas é porque muita gente não dá, mas talvez um antropólogo, talvez fosse um 719
debate bastante legal. A minha primeira pergunta vai para o Eduardo. Eu não sei 720
se eu entendi direito, mas em um momento de sua fala você deu a entender que 721
o movimento antimanicomial em alguns momentos foi um pouco histérico. Eu 722
queria que você falasse um pouco melhor disso. E, aproveitando o gancho, sobre 723
se era histérico ou não, a professora Simone e o Marcos também comentassem, 724
pra propor um debate. Não querendo ser subversivo, mas propondo um debate 725
entre a mesa. Obrigado. 726
EDUARDO SALVIANO TEIXEIRA DO PRADO: [58:59] Obrigado. Eu estou 727
fazendo o papel de advogado do diabo aqui. Mas, assim, o que eu quis dizer 728
numa visão psicológica, mas é mais psicanalítica até, é que o histérico é aquela 729
31
pessoa que não vê os dados da realidade, mas vê só o que ele sente. Ele age 730
pelo que reverbera emocionalmente. Então, o certo é assim: ele sente raiva, está 731
com vontade de quebrar o copo, ele quebra a parede. Ele tá com vontade de 732
ficar deitado, ele vai e deita. Ele age por aquilo que ele sente e não pelo que ele 733
está enxergando objetivamente. E o que eu quis dizer é que quando você 734
começa a agir dentro de um pensamento metonímico – a metonímia é aquela 735
figura de linguagem quando você toma a parte pelo todo – então você pega 736
casos específicos de injustiça bem clara e você usa eles como argumento para 737
acabar com os hospitais psiquiátricos que salvam vidas, pra acabar com 738
eletrochoque que salva vida, entendeu? O eletrochoque é um procedimento pra 739
casos muito graves, que é altamente eficaz, tem 90% de resposta e tira a pessoa 740
de um quadro suicida, de um quadro psicótico, patológico grave. Então se ele 741
fosse mais usado, eu creio que grande parte dos suicídios seria prevenida. 742
Dentro da Medicina, a gente seguia sempre pelo princípio da beneficência e, às 743
vezes, o princípio da beneficência suplanta o princípio da autonomia, porque o 744
paciente quando está querendo se matar, a gente não pode permitir isso. E o 745
movimento antimanicomial levou isso ao extremo, inclusive de achar que o 746
paciente psicótico era, na verdade, um ser original, um transgressor. Só que 747
assim, você vê casos de psicose, por exemplo, um caso em que em um paciente 748
deu um surto psicótico e ele achou que estava com um tumor na glândula 749
suprarrenal e abriu o próprio corpo e tirou a glândula suprarrenal dele mesmo. 750
Ou um caso em que o paciente se castrou durante um surto psicótico. Ou o caso 751
em que o paciente mata familiares, mata a mãe, sem ser psicopata. Então, 752
assim, esses casos são casos muito graves e que, se o paciente fosse tratado, 753
não faria isso. Quantos casos a gente já viu assim, que o paciente queria cometer 754
o suicídio e depois o cara vem falar “como que eu pude pensar uma coisa 755
dessas?”. Porque a percepção dele estava distorcida. A percepção cerebral, na 756
realidade, estava distorcida. Então, a gente é a favor dos Direitos Humanos, mas 757
a histeria é você tomar isso a proporções extremas. E quando você age de forma 758
histérica, você causa mais prejuízo do que benefício. Hoje nós temos a droga se 759
tornando avassaladora no Brasil – a Simone trabalha bastante com pacientes 760
dependentes. O crack é hoje o que mais mata. Se você pegar todas as infecções 761
virais e bacterianas, todas as doenças infecciosas juntas, elas matam menos 762
que o crack. E o crack é a maior causa da criminalidade. Nós temos quase 763
32
70.000 assassinatos por hora hoje no Brasil – antes eram 50.000, então 764
chegamos aos 70 – e a gente não tem pra onde ir pra ganhar esses pacientes 765
porque os manicômios foram fechados. Em vez de, assim, moldar o padrão pra 766
uma utilização e pra ter esses lugares adequados, pra receber esses pacientes 767
graves, foram todos fechados e são pacientes que não têm como serem 768
acompanhados laboratorialmente, não têm estrutura, a família não tem estrutura. 769
Então, é a mesma coisa que você pegar, por exemplo, um caso de um falso 770
diagnóstico de infarto, em que o paciente não teve infarto, mas foi submetido a 771
uma angioplastia, pegou uma infecção hospitalar, ficou na UTI (Unidade de 772
Tratamento Intensivo) e tal, foi uma iatrogenia, e falar assim “Então, nós vamos 773
fechar todos os centros dos cardíacos, ninguém vai mais internar no centro dos 774
cardíacos, unidades coronarianas vão ser fechadas porque os pacientes podem 775
pegar infecção hospitalar”. Foi você pegar um caso à parte, a exceção e 776
considerar isso como um todo. 777
P4: [64:07] Eu tenho uma pergunta para o Dr. Eduardo. Pelo discurso que o 778
senhor utilizou, o senhor é a favor da lobotomia? O senhor faria isso com um 779
paciente {seu}? 780
EDUARDO SALVIANO TEIXEIRA DO PRADO: [64:21] Mas o quê? A lobotomia 781
ou o eletrochoque? 782
P4: [64:23] Eletrochoque é a mesma coisa ou é diferente? 783
EDUARDO SALVIANO TEIXEIRA DO PRADO: [64:26] Não, eletrochoque é um 784
choque só. 785
P4: [64:29] É só um choque? 786
EDUARDO SALVIANO TEIXEIRA DO PRADO: [64:30] É um choque, 120 volts 787
bi temporal. ((risos)) 788
P4: [64:34] Ah, é só um choquinho de 120 volts. ((risos)) 789
EDUARDO SALVIANO TEIXEIRA DO PRADO: [64:36] É corrente alternada... 790
P4: [64:38] Ah, tá. 791
33
EDUARDO SALVIANO TEIXEIRA DO PRADO: [64:39] Mas o que o pessoal não 792
sabe é que o eletrochoque é feito com o paciente anestesiado, o paciente não 793
sente nada e é um choque de 5 segundos, é feito em centro cirúrgico. Só que no 794
Brasil é muito restrito porque o SUS (Sistema Único de Saúde) proibiu na maioria 795
dos lugares. Então, a gente não tem muito. Mas todos os grandes centros 796
internacionais têm a eletroconvulsoterapia, e se você olhar artigos científicos é 797
um tratamento extremamente eficaz e não deixa nenhum dano no paciente. 798
Existem alguns efeitos colaterais leves e transitórios. Não tem nenhum efeito 799
colateral prolongado e é o que existe de mais eficaz pra tirar uma pessoa de um 800
surto psicótico ou de um quadro suicida. E é rápido. 801
P4: [65:37] Se acontecesse, por exemplo, você, sua pessoa, tivesse um surto, o 802
senhor mesmo se submeteria? 803
EDUARDO SALVIANO TEIXEIRA DO PRADO: [65:46] Eu? Na hora. ((risos)) Até 804
falo. Eu até falo: “Se eu surtar pode fazer eletrochoque em mim.” Se a minha 805
mãe surtar, eu faço nela. ((risos)) A gente tem que se basear em fatos científicos. 806
P5: [66:03] Meu nome é Ana Lúcia, eu sou professora aqui do LET 807
(Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas). Eu fiquei curiosa sobre essa 808
questão, que esclarecesse mais a questão manicomial. Como eu não sou da 809
área da saúde, eu gostaria que fosse esclarecido melhor isso, no âmbito dessa 810
instituição toda, do nosso cientista social. A gente fica com a impressão que essa 811
questão metonímica, a parte pelo todo, na hora do julgamento, do movimento 812
antimanicomial, quer dizer, talvez a parte não tenha sido uma parte tão pequena 813
assim em relação ao todo. Eu fico imaginando, fico ( ) aqui, porque afinal foram 814
muitas denúncias e a gente tem essa noção. Um fato vergonhoso no manicômio, 815
realmente. Então, o doutor em ciências daí, o médico na mesa, foi a única 816
pessoa que defendeu, que tentou nos esclarecer com relação a isso. Então, eu 817
acho importantes as outras opiniões, a opinião do professor Marcos, da 818
Enfermagem, que foi uma opinião muito honesta. Ele até citou exemplo, muito 819
corajoso. Mas é isso que eu estou sentindo falta, de esclarecer melhor. A 820
psicóloga Simone também nos colocou esse questionamento, “será que os 821
manicômios mudaram, até que ponto mudaram?”. Então, eu fiquei com essa 822
34
dúvida. Eu queria que vocês discutissem um pouquinho mais isso aí, pra 823
esclarecer pra gente que não é da área. Obrigada. 824
SIMONE MARTIN OLIANI: [67:41] Eu acho que a principal coisa que a gente 825
deveria pensar, em cima do que o Eduardo já falou, é se houve humanização no 826
tratamento, porque a denúncia no filme, ainda contextualizando com relação ao 827
filme, eram muitos cruéis os tratamentos que eram feitos naquela época. Então, 828
na década de 70, quem frequentou, quem conheceu e foi pra essas instituições, 829
via o quanto desumano era. [...] Nós estamos num processo de mudança ainda, 830
apesar de ter começado lá na Itália em 1960. Ainda tem muito pra ser mudado. 831
Agora, precisa-se de leitos de hospital psiquiátrico pra atender demandas 832
específicas? Precisa-se. Nós não temos leitos suficientes e especializados pra 833
demandas específicas. Ainda continua. Se alguém for hoje visitar as instituições 834
de Londrina, públicas, do SUS (Sistema Único de Saúde), nós veremos que 835
pouca coisa mudou. Tem psicólogo lá? Tem. Nesse do “Bicho de Sete Cabeças” 836
nem psicólogo tinha. Mas tem uma psicóloga, vamos dizer, numa instituição 837
pública daqui de Londrina. A psicóloga faz o quê? Trabalha com quantas 838
pessoas? Uma sessão de grupo por semana? Gente, isto é intervenção? Que 839
qualidade de intervenção é essa? Precisa-se de internação compulsória? O 840
Eduardo acabou de dizer dos problemas com relação ao crack. Nós tivemos uma 841
tragédia, quinta-feira da semana passada, em que o filho prendeu a mãe e a 842
agrediu violentamente em todos os níveis de agressão, que não vou entrar em 843
detalhe aqui. Ele precisa de ajuda ou ele deve ser preso? Será que não precisa 844
de uma justiça terapêutica? Eu acho, e é previsto em lei, que ele precisa de 845
ajuda, e a gente tem que oferecer ajuda de qualidade. Então, a gente precisa 846
pensar como o quê? A equipe de Enfermagem, a equipe da Psicologia ou mesmo 847
da Medicina, estão se preparando pra atender a essas demandas de forma 848
humanizada, oferecendo um tratamento realmente de qualidade para aqueles 849
que precisam? 850
MARCOS HIRATA SOARES: [70:14] No meu ponto de vista, eu enxergo o 851
problema da seguinte maneira: o que a gente vem vivenciando atualmente é uma 852
falha no sistema extra-hospitalar de dar conta da demanda desses pacientes que 853
foram desinstitucionalizados. E o que está acontecendo? Existe um conflito de 854
35
interesse, é claro, como foi relatado no filme. O dono do hospital, ele ganha. Na 855
época existia e foi muito denunciado pelo Paulo Amarante, que era a indústria 856
da loucura, principalmente na época que era do INPS (Instituto Nacional de 857
Previdência Social), que os hospitais eram custeados pela Previdência Social. 858
Então, atualmente ainda existe. Muitos donos de clínicas particulares 859
psiquiátricas têm interesse que o paciente seja internado. Então, muitas vezes 860
esse paciente vai pra lá e tem um subtratamento, ou seja, ele é tratado de forma 861
a só melhorar um pouquinho, mas assim que ele sai, ele volta pra ser internado 862
novamente. Então, não é o fato de estar internado que seja ruim. O problema 863
é estar internado e ele só tomar remédio, ficar dopado o dia inteiro, acordar, 864
comer e dormir. Isso não é tratamento psiquiátrico. Tratamento em saúde mental 865
envolve a medicação, tratamento psicológico, terapia ocupacional, reabilitação, 866
oficina, ou seja, tudo que... Por quê? Se ele simplesmente tomar remédio e 867
dormir, se a gente for pensar em reabilitação, que reabilitação ele vai ter, não é? 868
Não está se preparando ele pra voltar pra comunidade. Então, eu acho que o 869
problema é exatamente esse. As políticas de saúde não estão dando o suporte 870
devido ao tratamento, esse paciente está tendo falha no tratamento e está 871
voltando pra internação favorecendo o discurso pró. E outra, o problema da 872
droga, que é o assunto do filme, a gente sabe que o fenômeno da droga é muito 873
mais do que a dependência química, farmacológica em si. O problema da droga 874
é um problema sociocultural, econômico. Por quê? Adianta eu pegar essa 875
pessoa que têm dependência de crack, interno ele e trato, ele vai desintoxicar, 876
vai ficar com a saúde boa, e daí ele vai voltar pra onde? Se ele não tiver um 877
programa social que o reinsira no trabalho, que oferte outros caminhos, ele vai 878
sair dali e vai buscar o quê? A droga. Por quê? Porque só com droga pra 879
aguentar viver debaixo da ponte, sendo maltratado, sendo tocado fogo vivo. E 880
essa política do governo, a partir do momento em que SENAD (Secretaria 881
Nacional de Políticas sobre Drogas), a secretaria de políticas saiu da saúde e foi 882
pra justiça, você nota justamente esse caráter de combate à droga, essa política 883
de terror que os Estados Unidos já abandonaram há muito tempo porque viram 884
que não funciona. Então esse governo não vem favorecendo isso, ele vem 885
falando o discurso de ciência e tratamento, mas sem a retaguarda 886
socioeconômica. Então, eu vou fazer o que com essa pessoa? Ele vai pra onde? 887
Então, sem isso, é o que acontece. A gente fica mais preocupado realmente em 888
36
oferecer um tratamento melhor, porque é o que a gente pode fazer, mas não vai 889
trazer reabilitação e não vai melhorar a qualidade de vida, porque o problema 890
social não está sendo tratado. 891
P6: [74:57] É só uma curiosidade. O Eduardo comentou a importância da 892
neurociência, do diagnóstico de Psiquiatria hoje em dia. Mas, como que a 893
Psiquiatria usa isso mesmo assim pra fazer o diagnóstico de alguém? Porque 894
quando você vai iniciar o tratamento, é feito algum tipo de exame? Não é feito, 895
não é? É mais assim... pela conversa que vocês falam e aquilo... a medicação é 896
na base de experimentação. Quer dizer, isso é certo? 897
EDUARDO SALVIANO TEIXEIRA DO PRADO: [75:35] O método médico é a 898
anamnese. É a narrativa. A gente está sempre acostumado a se basear em 899
exames. Ela tem exame, tem alguma coisa. Mas o exame é complementar ao 900
método de anamnese médico, que é a narrativa do quadro. Então, você vai pedir 901
um eletrocardiograma para o paciente, com base no histórico que ele está te 902
relatando, é a anamnese que você faz. Então, o método médico é um método 903
descritivo, observacional e você se baseia em padrões de homeostase, de 904
equilíbrio, e na Psiquiatria a gente tem muito pouco exame complementar. A 905
neurociência dá uma base de entendimento biológico em grandes centros, em 906
estudos altamente complexos, que a gente ainda não tem disponibilidade na 907
prática, mas você tem inúmeros estudos nesses grandes centros, mostrando 908
alterações de redes neurais em pacientes com quadros psiquiátricos e doenças 909
assim que repetem os padrões típicos. ( ) bipolar, melancolia, esquizofrenia. 910
Então, os estudos de neurociência dão uma base biológica para os padrões 911
descritivos observacionais. Por exemplo, não tem exame pra medir a enxaqueca, 912
mas você sabe que você está morrendo de dor. Então, algumas coisas você 913
consegue confirmar no exame e outras você consegue descrever e observar. 914
Então, a pessoa que está em melancolia, você vê claramente que ela não está 915
como ela era, existe alguma coisa ( ). É porque a emoção é mais sutil. E a 916
Psiquiatria perdeu muito com o método psicanalítico. Ganhou e perdeu, mas a 917
Psicanálise tirou a Psiquiatria da Medicina, e começou a querer analisar e 918
interpretar. E a Medicina não é interpretativa, é observacional descritiva. Então, 919
37
a neurociência tenta trazer de volta a Psiquiatria para o método médico. E aí o 920
tratamento é baseado nesse método objetivo, descritivo. 921
SIMONE REIS: [78:16] Posso fazer um comentário? Eu sou Simone Reis, 922
professora aqui da UEL, Departamento de Letras Estrangeiras Modernas. O que 923
me chama a atenção no filme são os vários discursos que vão sendo 924
reproduzidos ao longo da película e muitos deles vêm do próprio pai, essa figura 925
ascendente sobre o filho, que está muito preocupado com as aparências: “O que 926
é que vão pensar, não é? Um filho maconheiro... fuma maconha". Depois, ele se 927
pauta na reputação de um médico: “Olha, ...publica livros.” Quando ele fala isso, 928
penso que temos de publicar menos e ter mais pé na realidade, estar com os 929
pés mais plantados no chão. Quando ele – o pai – vai para a clínica, a propósito 930
de uma visita ao filho, quando ele fala com aqueles dentes cerrados [...] o modo 931
de ele falar já está dando toda tonalidade e está dando continuidade a um tipo 932
de relacionamento que ele tem dentro da família. E chama a atenção também 933
como que, talvez, o olhar da família seja o olhar de muitas famílias que acham 934
que mandam aquele que é o problemático pra uma instituição para lá ser 935
"consertado". Acham que ele vai passar um tempo lá pra ser consertado e vai 936
sair totalmente reabilitado, pronto para pegar um emprego. Então, por algum 937
momento, quando a gente olha especificamente pra essa história de vida do Neto 938
e vê como ele era desprovido de outras oportunidades enquanto um jovem 939
menor de idade, eu pessoalmente fiquei pensando em quantas oportunidades 940
nós – ou muitas pessoas, que não são a maioria da população brasileira – 941
podemos proporcionar aos nossos filhos, que são oportunidades de 942
aprendizado, de convivência, especialmente de desenvolvimento. E quando a 943
gente vê alguém desprovido, a gente vê que o problema econômico tem um 944
grande peso no tipo de ocupação, no tipo de socialização que um jovem pode 945
ter. Mas, aí a questão de ele sair daquele lugar horrível – de repente poderíamos 946
chamar de inferno – e voltar para esse mundo – eu diria que esse lugar pode ser 947
visto como um purgatório, que é um lugar sem lugar, é o lugar onde ele não tem 948
o reconhecimento nem a solidariedade dos seus semelhantes quando ele estava 949
internado, é o lugar onde ele não tem lugar porque ele não é produtivo, não é 950
um sujeito produtivo; e é um lugar onde, por conta do corpo dele estar tomado, 951
talvez impregnado de medicações, ele não consegue sequer ter controle sobre 952
38
o próprio corpo. Então me chamou bastante a atenção isso. E aí qual que é a 953
pergunta que foi colocada várias vezes? “Será que mudou? Será que mudou a 954
situação nos hospitais, a situação nos manicômios?” Pessoalmente eu nunca 955
visitei um manicômio, nem gostaria, mas eu já visitei, já estive na clínia do 956
Shangri-lá {Clínica Psiquiátrica Londrina-CPL}. Há três anos, eu fui chamada pra 957
prestar um serviço voluntário à véspera do Natal, que era pra ajudar a cortar o 958
cabelo dos pacientes, e em três pessoas nós cortamos o cabelo de mais ou 959
menos 40 pessoas. Todos eram homens. Alguns tinham piolho, alguns tinham 960
um cheiro muito forte de urina, enfim, alguns pareciam que tinham um fiozinho 961
de lucidez. Queriam que eu cortasse seu cabelo e ninguém mais. E aí eu 962
perguntei para a enfermeira, que era uma das pessoas que cortavam o cabelo, 963
quanto tempo uma pessoa passava ali, porque o estado em que ela se 964
encontrava era muito semelhante ao que a gente vê no filme. As pessoas assim, 965
muitas sem o menor contato com a realidade. Eu fiquei pensando: “Quanto 966
tempo passa uma pessoa aqui e sob qual medicação?” porque a gente sabe que 967
as gerações de medicações têm efeitos diferentes, não têm, doutor Eduardo? 968
...na motricidade, na fala, enfim. E aí a enfermeira me disse assim: “Olha, tem 969
gente que está aqui há anos.” Aí, então, eu perguntei: “Mas como é possível uma 970
pessoa passar aqui anos?” Ela disse: “As famílias vêm, internam seus familiares, 971
dão endereços falsos, dão telefones falsos e abandonam os seus.” Então, eles 972
não têm onde ser colocados. Eu estou chamando a atenção para a questão da 973
família e volto lá no filme. Como a família é uma família que rejeita, que não 974
acolhe, que dá as costas, que se envergonha, que trata o doente como um 975
problema, talvez como um lixo, isso me lembra de um dos livros de Foucault, um 976
dos primeiros, eu já nem me lembro se era “Doença Mental e Psicologia” ou se 977
foi na “História da Loucura {na Idade Clássica}”... Foi no primeiro, “Doença 978
Mental e Psicologia”, que o Foucault diz que no Japão é diferente. No Japão, ele 979
fez esse levantamento à época, que as famílias japonesas não mandavam seus 980
doentes mentais, considerados doentes mentais, para serem internados. Elas os 981
tratavam e os mantinham em casa. Então, só para concluir, querendo chamar a 982
atenção para o papel da família nessa sociedade e o quanto ela contribui para o 983
estado em que estão as coisas. Dr. Eduardo, o senhor quer comentar, por favor? 984
A parte dos medicamentos, da diferença, porque eu, sem nenhum 985
conhecimento, como leiga, olhando o estado daqueles pacientes que disseram 986
39
que estão ali há anos, num estado muito parecido com o que a gente vê no filme. 987
Por favor, comente. 988
EDUARDO SALVIANO TEIXEIRA DO PRADO: [85:23] Eu estou falando demais. 989
((risos)) Realmente existem efeitos muito graves nos medicamentos quando mal 990
administrados. Aí entra no problema, que foi tocado pela Dra. Simone, que é o 991
da formação dos profissionais. A gente vê dentro da área médica uma formação 992
muito precária em Psiquiatria, algumas residências muito ruins e uma 993
despreocupação completa do médico com o bem estar do paciente. É quase que 994
um processo de psicopatização, o paciente é mais um, quase que vira um 995
negócio, não é uma vida que está lá, é mais um e tanto faz se virar um robô, se 996
virar um zumbi ou se tiver uma parada cardíaca pelo processo de medicamento. 997
Então, aí é uma coisa que eu acho que é interessante, que esse movimento 998
chama a atenção, e é um grande método do Philippe Pinel, que preconizou essa 999
humanização dos loucos, vê-los como seres humanos. Então, o medicamento 1000
tem que saber ser usado. Geralmente os medicamentos mais antigos são mais 1001
bloqueadores, têm uma ação menos seletiva no cérebro e podem causar 1002
parkinsonismo medicamentoso, aqueles quadros típicos lá em que o paciente 1003
fica parecendo um zumbi, um bloqueio mental. Mas existem medicamentos que 1004
são bem seletivos e que têm uma ação mais específica e, dependendo da dose, 1005
você consegue um equilíbrio sem efeitos colaterais. E a gente tem que pensar 1006
no quadro também. Sempre é um cálculo de custo-benefício, de análise de 1007
eficácia e segurança. E a gente vê, a família me remete muito àquele livro do 1008
Kafka, “A Metamorfose”, em que o doente é visto como o Samsa, que vira uma 1009
barata e é colocado no quarto; as pessoas não estão preocupadas com o bem 1010
estar dele, mas com a vergonha de ter um filho que virou uma barata, com o 1011
incômodo que ele causa pelas patas dele. A gente vê que o doente psiquiátrico 1012
para a família, às vezes, parece esse caso de “A Metamorfose” do Kafka. Existe 1013
essa visão ignorante, estigmatizante também, de achar tanto que é louco, que é 1014
uma visão estigmatizante, porque é uma doença e muitas vezes 100% 1015
recuperável, quanto também de achar que é falta de vergonha na cara ou falta 1016
de fé. Então, tem várias visões ali que as pessoas usam, e o doente, muitas 1017
vezes, além de sofrer pela doença, é considerado culpado por estar doente. Um 1018
doente com depressão... é um duplo sofrimento. 1019
40
SIMONE MARTIN OLIANI: [88:52] Com relação à questão que foi colocada, a 1020
respeito da família, ela perdeu aspectos culturais, como por exemplo, a cultura 1021
japonesa. Nós temos na cultura ocidental outra relação familiar. Nós vivemos 1022
nos dias de hoje uma difícil relação familiar. Os pais, os dois trabalham. Os filhos 1023
estão sendo cuidados por babás eletrônicas ou pelos avós que já não têm mais 1024
disponibilidade nem disposição para fazer essa segunda etapa de cuidado que 1025
é cuidar dos netos. Eu acho que é importante a gente pensar como é que as 1026
estruturas de família estão sendo colocadas e o que é mais fácil, o que as 1027
pessoas têm considerado mais fácil para lidar com a dor e o sofrimento. Parece 1028
que terceirizar tem sido mais fácil. E nesse caso, terceirizar não é só deixar com 1029
a babá, mas é terceirizar para o médico. Um médico corrupto – no caso do filme, 1030
remetendo ao filme – e ele próprio usuário de droga, porque ele também usa 1031
droga em uma das cenas. Então a gente tem que pensar como é que nós 1032
estamos terceirizando as nossas relações afetivas. E eu acho que a discussão 1033
vai muito mais longe porque é muito mais grave o que estamos vivendo nos dias 1034
de hoje com as nossas relações sociais. Nossas relações sociais são virtuais, é 1035
o WhatsApp. 1036
MARCOS HIRATA SOARES: [00:00] ... O exemplo de como ela vem se 1037
relacionando, essa questão da família vem um pouco do lado da história. O 1038
modelo de internamento, isolamento, exclusão da família na assistência ao 1039
doente, é desde que a humanidade é humanidade. Então, isso, em parte, explica 1040
porque toda família tem tendência a não querer o contato com aquele familiar. 1041
Na fala da maioria da população, tem uma fala que é muito presente, o marido 1042
de uma senhora falou assim: “Olha, ele nem trabalha e só dá trabalho.” Então, 1043
nessa sociedade de consumo em que a gente vive isso é uma coisa que pesa 1044
muito, uma pessoa que não tem renda e que ainda gera gastos. Então, a 1045
sociedade em que a pessoa não produz, isso aí é uma coisa extremamente 1046
pesada. Tem um autor, que é o Bauman, que tem um livro que se chama 1047
“Sociedade Líquido-Moderna”, e ele vem trazer a discussão de como a 1048
sociedade ( ) atualmente, que é um pouco disso que a Simone colocou, que é 1049
como as gerações estão se construindo. Então, a liquefação dessa esfera, ou 1050
seja, as pessoas buscam as relações, o prazer, tudo de uma maneira muito 1051
rápida, muito fugaz e muito instantânea, ao mesmo tempo sem satisfação. E as 1052
41
necessidades vão sempre caminhando de forma a nunca serem atingidas. Então 1053
( ) de pegar, por exemplo, um celular. Cada dia existe um celular com mais uma 1054
funcionalidade, ou seja, a necessidade da pessoa nunca é satisfeita, sempre vai 1055
ter algo mais. Se a gente for pensar na questão do corpo, um corpo perfeito; 1056
existe uma diferença muito grande entre a estética do corpo e a saúde. Ou seja, 1057
um corpo esteticamente perfeito não necessariamente significa que é um corpo 1058
perfeitamente saudável. E se você for numa academia, sempre vai ter algo pra 1059
melhorar naquele corpo, nunca termina. Então, essa sociedade da liquefação 1060
das relações e a busca incessante pela satisfação dos desejos, isso realmente 1061
vem assustando muito, principalmente academias, por tamanhas modificações 1062
que muitos não estão conseguindo acompanhar essas mudanças e de uma 1063
forma prever o que vai acontecer. Então, com isso, e isso preocupa muito, a 1064
forma como as pessoas vêm se relacionando nessa virtualidade e isso vai se 1065
repercutindo na maneira como também as famílias se lidam. Antigamente, 1066
enquanto a televisão era um bem de consumo de custo alto, você tinha uma 1067
televisão em casa, não é? Aquelas de tubão e pronto, todo mundo comia ali na 1068
sala, compartilhava o dia a dia. Hoje não, cada um tem sua televisão no seu 1069
quarto, porque hoje se tornou um bem mais acessível, as pessoas têm mais 1070
acesso, mas ao mesmo tempo se isolou, cada um vive no seu mundo, sua 1071
realidade. Então, eu não preciso mais me chatear com o problema do outro 1072
porque eu vou viver no meu mundo. Aí, eu me lembro de uma frase de um 1073
menino que saiu numa entrevista uma vez, na verdade ( ) estavam investigando 1074
os problemas auditivos que essa geração podia ter por causa do fone de ouvido 1075
muito alto, e aí eles entrevistaram o menino no ônibus: “Por que você usa o fone 1076
de ouvido muito alto?” “Ah, é porque tudo é muito chato.” Ou seja, a pessoa está 1077
cada vez mais se alienando do meio. Ou seja, o problema do outro, o que o outro 1078
tem, o que o outro passa, o que o outro sente, é muito chato. Então, eu vou ficar 1079
no meu mundo porque tem mais graça, e isso, o mundo virtual, é que está 1080
trazendo, tornando isso possível, a gente se isolar numa fantasia em que eu não 1081
preciso ter contato com o problema do outro porque isso é muito chato. E esse 1082
infelizmente vem ( ), mas ( ) de tudo que entra na academia. Eu não sei ali na 1083
Medicina ou Psicologia, mas ( ) são muito parecidos, porque eu também dou aula 1084
na Medicina, é esse mesmo comportamento, de um distanciamento do problema 1085
do outro justamente por essa dificuldade de lidar com isso, porque ele vem sendo 1086
42
construído isso dentro da forma de família. Então, se dentro da família já não 1087
consegue ouvir ou escutar o outro, dar conta de escutar o problema do outro, 1088
como é que ele vai sentar pra fazer terapia ou como ele vai sentar na beira da 1089
cama ou do leito pra escutar um paciente, se ele não consegue nem escutar a si 1090
mesmo? Então, eu acho que é mais ou menos isso. 1091
P7: [05:06] A minha pergunta é direcionada à professora Alcione, da Análise do 1092
Discurso, mas se os outros professores querem comentar, o tempo já está se 1093
esgotando. Acaba que foi feito bastante comentário, mas eu queria voltar no 1094
ponto e até que a professora retome o comentário dela acerca desse discurso 1095
do pai, do medo do pai, de que “vão falar que meu filho é maconheiro”, fala dos 1096
livros, do psiquiatra renomado que “tem tantos livros publicados”, mas ele na 1097
verdade teme o que o jornal fala. O filho fala “eu não sou viciado em maconha”, 1098
mas os jornais falaram que sim. Como esse tipo de discurso, na verdade, 1099
constroi a ideia do pai, no caso que o Neto não é louco, o Neto pode ser no 1100
máximo dito como usuário de droga, tampouco pelo ( ) – que a gente vê no filme 1101
– que ele é viciado a gente não pode afirmar, mas que a gente tem um pai com 1102
uma atitude com medo desse discurso que pode atingir, na verdade, o pai e não 1103
o Neto: a questão do maconheiro, do que os jornais falam, na visita à instituição 1104
psiquiátrica também, a questão de não falar que “eles estão me dando droga”. 1105
“Não, eles não estão te dando droga, eles estão te dando remédio”. Foi também 1106
o que os professores falaram. E aí acaba trazendo ( ) à questão dos usuários de 1107
maconha, porque em certo momento, a impressão que a gente tem do pai é que, 1108
se o Neto assumisse que ele só estava bêbado, ele não seria tão problemático 1109
do que naquele momento ter coragem de assumir que ele tinha fumado 1110
maconha, por exemplo. 1111
ALCIONE GONÇALVES CAMPOS: [06:58] É, se a gente pensar que a gente 1112
está falando da década de 70, então são todos discursos que para o pai são uma 1113
vergonha. E o pai também é atravessado por esses discursos. Então, discursos 1114
que interpassam a sociedade e que nos constituem enquanto membros dessa 1115
sociedade, desse grupo social. Então, quando o pai diz “eu não quero meu filho 1116
estampado no jornal”, algo do tipo, como notícia de jornal, essa ideia de ter um 1117
filho rotulado como usuário de maconha, o que, talvez, pra nossa sociedade 1118
43
atual, se a gente pensar nos dias de hoje, 2014, isso não fosse encarado como 1119
tão vergonhoso, a gente pensa, na década de 70 é um pouco diferente. Então, 1120
assim, todo o discurso do pai também reflete aquela sociedade e aquela família 1121
representante da classe média. Então, o pai tinha essa vergonha – acho que foi 1122
colocado aqui pelos colegas. O pai tinha essa vergonha e a princípio ele não via 1123
o filho como louco realmente, mas qual foi a alternativa que ele achou? Colocar 1124
em uma instituição que desse conta disso. 1125
P7: [08:18] É que ( ) família é outra, as instituições ( ) essa é nossa cultura. 1126
ALCIONE GONÇALVES CAMPOS: [08:23] Exato. 1127
RENAN PAVINI: [08:27] É interessante nesse ponto porque na verdade, quando 1128
a gente pega o filme, a gente tem que transportar ele – pelo menos eu faço muito 1129
isso – para a época propriamente em que aconteceu o caso do Carrano Bueno. 1130
Na verdade, era uma época de ditadura militar, onde indivíduos como o Neto, 1131
usuários de maconha, de certa maneira pouco transgressores, mas devido à 1132
época ( ) transgressores, eles eram conhecidos, como o texto diz, como “os 1133
cabeludos”. E de certa maneira, existia muita política e muito comercial pra 1134
conter algum avanço desses possíveis potenciais transgressores. E é 1135
interessante que no final, o pai do Carrano Bueno dá um depoimento falando 1136
porque que ele ia internar o filho dele, que na verdade foi que quando ele achou 1137
o baseado de maconha, o cigarrinho de maconha, ele foi consultar um amigo 1138
policial e ali o circo já estava armado. Então, na verdade, a questão do pai 1139
propriamente internar o seu filho, logicamente que isso se deve a toda uma não 1140
consciência do pai sobre a temática, mas isso deve realmente ir no seio dessa 1141
estrutura social que foi formada tanto por uma política quanto pelo militarismo. E 1142
infelizmente o pai foi consultar não a irmã, não a mãe, mas foi consultar um 1143
policial, ou seja, um militar. 1144
MÁRCIA TESHIMA: [10:04] Gostaria só de fazer uma complementação e 1145
aproveitando isso que o professor Renan falou, a questão da contextualização 1146
do filme. Até o final da década de 80, a legislação brasileira teve ali a 1147
predominância de modelos de proteção prioritariamente voltados para a 1148
sociedade e para a família do portador de distúrbio mental e não a ele próprio. 1149
44
Então, os direitos da pessoa com sofrimento mental eram praticamente vazios 1150
em termos de normatividade. Como eu havia dito antes, a nossa legislação 1151
datava de 1934 e depois delasó o Código Civil de 1916. A partir de 2001, quando 1152
trouxe uma lei que reintroduziu ou tentou reorganizar esse modelo de saúde ou 1153
de assistência à saúde de uma pessoa que seja portadora de transtornos 1154
mentais. Então, o que acontecia? O recolhimento de uma pessoa a qualquer 1155
instituição psiquiátrica, inclusive por razões que não fossem médicas – exemplo, 1156
gravidez indesejada ou questões patrimoniais sucessórias – simplesmente as 1157
famílias colocavam as pessoas, estas que não se ajustavam ao modelo da 1158
sociedade, dentro dessas instituições. Então, não eram só situações como a de 1159
Neto, mas de qualquer pessoa que causasse incômodo pra vida doméstica. E a 1160
lei, o Código Civil de 2002, num capítulo onde ele trata da curatela – as pessoas 1161
que precisam de alguém que cuide, que faça a gerência da vida dessa pessoa 1162
doente – estabelece que, quando elas não se adaptam ao convívio doméstico, é 1163
recomendado que se faça o recolhimento dessas pessoas em estabelecimentos. 1164
Assim, “estão sujeitos à curatela e, portanto, aqueles que não se adaptarem ao 1165
convívio doméstico e daí remetê-los a estabelecimentos adequados, aqueles 1166
que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário 1167
discernimento para os atos da vida civil, inciso III, os deficientes mentais, os 1168
ébrios habituais e os viciados em tóxicos, e também os excepcionais sem 1169
desenvolvimento mental completo”. Então, vocês vejam que a Legislação Civil 1170
ainda determina que esses indivíduos são considerados interditos, mesmo não 1171
se adaptando ao convívio doméstico; devem ser postos em instituições, em 1172
clínicas, porque não há como tratar ou manter. Então, ainda que esse modelo 1173
tenha mudado, pra dizer assim “não mais a sociedade e a família da pessoa 1174
portadora da doença”. Hoje, o olhar que se tem do direito é para a pessoa, é 1175
para o indivíduo, não mais patrimonialista, não mais contratualista na legislação, 1176
só preocupada com essas questões, mas principalmente com o sujeito. Mas, 1177
mesmo com essa visão de proteção do sujeito, ainda se estabelece a 1178
necessidade não apenas de dar um tratamento a esses indivíduos, mas, se 1179
necessário, também a internação, seja ela a internação involuntária, como 1180
também a compulsória. O Centro de Apoio Operacional das Promotorias de 1181
Proteção à Saúde Pública do Estado do Paraná apresentou um relatório no qual 1182
traz os dados do período de janeiro a dezembro de 2013, através da central de 1183
45
regulação dos leitos psiquiátricos no estado, e revelou que 93 internações são 1184
compulsórias, ou seja, são por ordens judiciais, contra 30 internações que são 1185
involuntárias, ou seja, o Poder Judiciário interna três vezes mais que o próprio 1186
Sistema Único de Saúde. Então, é lógico, que a gente tende a analisar as 1187
particularidades de cada pedido de internação compulsória, mas, se a gente for 1188
verificar em todos esses casos, a maioria deles é de mães de famílias que não 1189
têm o apoio, não tem as instituições adequadas para fazer o tratamento dessas 1190
pessoas que são toxicômanas e precisam de um acompanhamento médico, um 1191
acompanhamento psiquiátrico, e que muitas vezes veem na internação 1192
compulsória a única medida para salvar não apenas a vida da pessoa, mas 1193
principalmente pra protegê-la em relação à sua integridade física, em relação a 1194
terceiros também. 1195
P8: [15:46] {Minha pergunta} é para a professora Simone. Eu vi muito, vejo, ou 1196
em postos de saúde, ou em vários locais, propagandas a respeito de tratamento 1197
de dependentes químicos, usuários de droga, e em quase, ou acho que em todos 1198
que eu vi – não vi muitos, não tenho nenhum dado empírico, mas assim, do meu 1199
cotidiano – que, assim, tratamento psicológico, os familiares, os usuários, as 1200
etapas do tratamento e a questão da espiritualidade, da religião como um 1201
mecanismo de todos, que eu percebi, para tratar esses usuários. Eu queria saber 1202
qual é a visão da Psicologia ou pelo menos a sua, sobre essa questão da religião, 1203
da espiritualidade no tratamento dessas pessoas: se é positivo, se é negativo, 1204
como que se dá isso dentro da Psicologia. 1205
SIMONE MARTIN OLIANI: [16:38] Normalmente a gente vai escutar esse 1206
discurso dentro das comunidades terapêuticas, porque elas são custeadas por 1207
entidades religiosas. E daí não é espiritualidade, é religiosidade. O que 1208
normalmente nós temos visto por aí é biblioterapia e não psicoterapia. Então, a 1209
gente tem que tomar cuidado porque pode utilizar o aprendizado de um 1210
comportamento compulsivo do uso de substância por um comportamento 1211
obsessivo pela religião. A espiritualidade eu considero bastante eficaz porque 1212
pode ajudar o indivíduo a ter consciência de si mesmo, pode ajudar o indivíduo 1213
a utilizar a fé para agir com coragem, isto é, dando um sentido pra seu objetivo 1214
de vida. Se for usado de forma adequada – estou falando de espiritualidade 1215
46
como um todo, de uma forma muito ampla – pode ser que seja uma das variáveis 1216
que contribuem no tratamento, do mesmo jeito que o trabalho, a arte-terapia, 1217
terapia ocupacional ou qualquer outra atividade que possa ser de integração 1218
social. Precisa capacitar esse indivíduo pra fazer essa reestruturação e ele 1219
consiga encontrar um jeito de viver bem nesta sociedade que é extremamente 1220
alienante. E tem que tomar cuidado porque senão ele vai viver esta alienação 1221
dentro da religião. O que a gente tem visto muito por aí. E daí o que acontece? 1222
Decepciona-se com o primeiro líder religioso e ele recai novamente. Então, eu 1223
acho que a gente tem que pensar o tratamento em todos os aspectos porque a 1224
dependência química é algo muito complexo de se tratar. Temos que pensar em 1225
aspectos biológicos, temos que pensar em aspectos sociais, aspectos 1226
psicológicos, incluindo todos os grupos sociais que esse indivíduo tem contato, 1227
ou se não tem, que precisa ter, e incluir espiritualidade, se isto faz bem para esse 1228
indivíduo. E é espiritualidade como ele concebe e não como a agência do poder 1229
impõe. Então, eu acho que é importante pensar no indivíduo como um todo pra 1230
ajudá-lo a encontrar um jeito de ser feliz. 1231
P8: [19:28] Obrigado. 1232
P9: [19:29] Posso fazer uma última pergunta? Para a Márcia. Márcia, a gente vê 1233
que o Direito entra naquela questão da colisão de direitos fundamentais. Então, 1234
a gente vê um paralelo entre a liberdade da pessoa, cerceada por uma 1235
internação e, ao mesmo tempo, o contraposto disso, essa liberdade cerceada 1236
vai servir para o bem da pessoa. E aí você falou desses mecanismos jurídicos 1237
de intervenção, não é? Então, eu só gostaria que você explicasse um pouquinho 1238
pra gente esse lado do Direito, da intervenção, como que funciona, qual é o 1239
procedimento pra aquela família entender que a pessoa realmente precisa 1240
procurar a justiça pra poder ter acesso à internação de forma gratuita. Como que 1241
funciona, como que a gente pode ter esse acesso por meio de via judicial, quais 1242
são os procedimentos? 1243
MÁRCIA TESHIMA: [20:38] Quando você fala da colisão de direitos, se a gente 1244
pensar no direito do paciente ou a liberdade do indivíduo de ir e vir, quando é 1245
cerceada ou é limitada – e a gente faz um contraponto com um outro direito, que 1246
é o direito à saúde, direito à vida – no direito propriamente dito, a gente não diz 1247
47
que um princípio é afastado ou tem um valor maior em relação ao outro. Na 1248
realidade, se são princípios como direito à vida, direito à liberdade, são princípios 1249
e, portanto, estão no mesmo patamar. O que acontece é que, dependendo da 1250
situação do indivíduo, muitas vezes o que acontece é que o julgador, o juiz, terá 1251
de relativizar um desses princípios e fazer com que prevaleça outro. Não significa 1252
que ele esteja dando um peso, mas entre a vida de um indivíduo e a liberdade 1253
dele, ainda que seja por tempo limitado. Então, se aquilo representar a vida, se 1254
aquilo é para a saúde dele, então, é necessário você fazer essa restrição. Em 1255
termos práticos, como funciona um processo de internação compulsória, que é 1256
aquela ordenada pela justiça, normalmente ela é precedida de uma solicitação 1257
por algum membro da família da pessoa que necessita desses cuidados, ou o 1258
pai, ou a mãe ou um irmão. Na ausência dele e em se tratando de pessoa pobre, 1259
carente, sem condições de recurso, sem qualquer familiar próximo que possa 1260
fazer isso por ele, o próprio Ministério Público tem a legitimidade de solicitar essa 1261
medida, mas normalmente ela é submetida à apreciação do poder judiciário, 1262
mediante atestado médico, normalmente é um atestado de um psiquiatra, no 1263
qual faz a recomendação dizendo da necessidade, do porquê dessa medida. A 1264
gente chama de uma medida última. Você deve tentar uma internação voluntária, 1265
uma involuntária, mas que depois se torna voluntária, e se não houver essa 1266
possibilidade de você utilizar essas outras modalidades, então, a compulsória é 1267
a última medida que se tem disponível. Mas, normalmente ela deve conter um 1268
arrazoado, dizendo do porquê e qual a necessidade dessa medida. Baseada 1269
nesse laudo médico, atestado ou uma declaração, a justiça vai autorizar. 1270
Normalmente, a internação compulsória, quando é decretada, a clínica que 1271
recebe o paciente deve comunicar ao Ministério Público num prazo de 72 horas. 1272
Por que isso? Porque é preciso também que o promotor de justiça verifique se 1273
essa internação procede, se ela não tem exatamente uma daquelas conotações 1274
de interesse financeiro: “Quero interditar meu pai só porque ele resolveu namorar 1275
uma pessoa mais nova” ou “porque ele não concorda com o processo de 1276
inventário” ou “Quero tirar dinheiro dele”. Então, a lei exige esses cuidados. 1277
Assim, para aqueles que são carentes – e carentes na essência da lei – que não 1278
podem custear honorários de advogados, muito menos os custos processuais, 1279
os núcleos de práticas jurídicas, assim como a defensoria pública, são órgãos 1280
capacitados para fazê-lo. Mas, entre dois princípios, muitas vezes é preciso 1281
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relativizar um deles para que você proteja a vida daquele que necessita e, no 1282
caso aqui, a gente está falando da pessoa portadora de transtornos mentais ou 1283
mesmo aqueles que têm dependência química e que precisam disso. 1284
P9: [25:01] Obrigada. 1285
P10: [25:04] Posso fazer mais uma pergunta? Eu queria fazer para a Simone. 1286
Na sua fala você cita uma menor compreensão do comportamento humano, 1287
certo? Então, baseado em algumas atitudes do Neto, podemos ter outra visão 1288
atual. Por exemplo, fumar maconha, em alguns países pode ser uma forma de 1289
tratamento e tal, e a pichação pode ser tratada como arte, como grafite, na 1290
atualidade. Então, como que a gente pode pensar a compreensão do 1291
comportamento humano baseado no poder ou na força através da coerção 1292
existente na sociedade? E, só para fazer um gancho, um dos personagens fala 1293
sobre a fome, que passar fome ou ver um ente querido passar fome, pode te 1294
levar à loucura. Quer dizer, “passar fome” é uma questão social. Como a gente 1295
pode pensar isso? 1296
SIMONE MARTIN OLIANI: [25:53] Nossa! Eu acho importantes essas reflexões 1297
que você trouxe e nós temos várias questões que podem ser derivadas disso, 1298
com a sociedade da época e com a sociedade atual. O companheiro Renan 1299
acabou mencionando isso, contextualizando o filme para aquela época em que 1300
pichação era crime. Em Londrina, continua sendo crime. Vocês viram aí a 1301
questão da Cidade Limpa, que tem uma pichação que é um grafite e o 1302
estabelecimento foi multado por isso. Eu acho que temos que analisar várias 1303
questões de “ordens” de coerção que existem dentro de uma cidade ou dentro 1304
de uma sociedade. Eu acho que a sua pergunta merece um aprofundamento 1305
com relação a isso. Entretanto, para a gente poder discutir mais profundamente, 1306
eu gostaria de ser convidada por você para ir para a sua sala para a gente 1307
discutir, porque remete a “n” questões de aspectos sociais de uma sociedade, a 1308
questão de valores da sociedade, a questão da coerção dos organismos de 1309
poder dentro desta instituição, e eu penso nos organismos de poder em todas 1310
as instituições, passando pela igreja, passando pela Medicina, passando pela 1311
justiça, passando pela Psicologia, que também é um mecanismo de poder. Eu 1312
acho que poderíamos analisar não só questões sociais, econômicas, como fome, 1313
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mas várias outras que fazem com que uma sociedade queira que as pessoas 1314
estejam enquadradas dentro do sistema pra que essa sociedade esteja 1315
normatizada. Eu acho que tem muita coisa pra gente discutir aí. A gente pode 1316
discutir porque precisa de aprofundamento e, dado o adiantado da hora, acho 1317
que os nossos neurônios aqui já não estão fazendo conexões. ((risos)) 1318
RENAN PAVINI: [28:10] Eu só queria complementar a fala. No fundo, a própria 1319
ideia de loucura – me desculpe, eu não consigo vê-la como antigamente, não 1320
existe por si só – ela só pode ser inserida dentro de um quadro social. Então, em 1321
determinado momento e em determinada sociedade, algo vai ser proibido de 1322
fazer. Não existe cultura na ( ). É até interessante, tem um textinho que é bem 1323
didático, que é do João Frayze Pereira, um professor, acredito que ele é da USP 1324
(Universidade de São Paulo) ou da UNICAMP (Universidade Estadual de 1325
Campinas), que ele vai tentar didaticamente reconstruir o conceito histórico de 1326
loucura, também muito inspirado no Foucault, que em determinado momento ele 1327
vai fazer a relação da seguinte forma: se a gente pensar numa cultura xamânica, 1328
um xamã que recebe o rótulo de esquizofrênico por nós (ocidentais), que tem 1329
um ataque esquizofrênico, logicamente, não é computado pelos seus 1330
semelhantes porque não se tem o conceito de esquizofrênico. Na verdade, é o 1331
homem tendo um contato com o divino, e esse homem, na verdade, é 1332
considerado xamã justamente por ter esse ataque. Então, ele se aproxima mais 1333
da divindade do que qualquer outro homem da sua tribo. Na nossa cultura, de 1334
certa maneira, esse tipo já é catalogado como uma doença. Temos nossos 1335
métodos - ainda bem – mas de certa maneira essa construção da loucura deve 1336
ser considerada, sim, cultural. Se em determinada sociedade fumar maconha 1337
não pode e em outra pode, isso é uma questão social? É. Mas, se eu considerar 1338
basicamente que a ideia de loucura não é constituída socialmente, eu tenho que 1339
considerar, no mínimo, que ela é um termo ideológico, um termo romântico. 1340
EDUARDO SALVIANO TEIXEIRA DO PRADO: [29:56] Tem um estudioso da 1341
Universidade de Standford, que é o Sapolsky, e ele estudou esquizofrenia em 1342
culturas indígenas e culturas xamânicas da África, e o quadro é bem diferente 1343
do médium xamã. Eles mesmos, os próprios moradores da cultura tribal falam 1344
que o cara está louco, que não é um padrão típico de uma conexão divina. É 1345
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uma coisa interessante, porque a esquizofrenia, se vocês virem, ela tem um 1346
padrão estabelecido em todas as culturas. Um por cento da população tem esse 1347
padrão de esquizofrenia, sendo índio, sendo europeu, africano, australiano... 1348
Então, ela é uma doença claramente biológica e a reação de alucinação não é 1349
condizente com a cultura; existe uma quebra cultural. Até aqui na cultura 1350
brasileira a gente sabe diferenciar aquele que tem um padrão religioso, porque 1351
o psicótico tem uma quebra do comportamento que destoa do padrão que ele 1352
tinha antes, de uma forma drástica e, como eu falei, extremamente destrutiva. 1353
Um quadro psicótico tem 10% de risco de suicídio. Então, é interessante ver esse 1354
lado. 1355
RENAN PAVINI: [31:45] Isso não é um sim, eu não estou descartando esse lado, 1356
mas propriamente a questão é que a cultura de certa maneira determina a sua 1357
loucura ou a loucura é determinada pela cultura. 1358
SIMONE MARTIN OLIANI: [31:54] É uma ausência de contexto. 1359
RENAN PAVINI: [31:55] Sob... sob...sob um olhar europeizado, sob um olhar 1360
que não é o psiquiátrico, com certeza você acharia esse tipo de esquizofrenia 1361
em qualquer tipo de tribalismo. 1362
EDUARDO SALVIANO TEIXEIRA DO PRADO: [32:06] Os caras da tribo falam 1363
que o cara está louco, que não tem nada de conexão com o divino, não, só nos 1364
xamãs ( ). 1365
RENAN PAVINI: [32:13] Ah, sim, mas há culturas também que trabalham a ideia 1366
da morte como algo bom. 1367
EDUARDO SALVIANO TEIXEIRA DO PRADO: [32:20] Então, mas ele não está 1368
louco, ( ) morte e tal, ( ) eles tinham ( ). 1369
SIMONE REIS: [32:32] Com licença, vou pular na conversa, nessa questão de 1370
loucura ser definida culturalmente. Vou pegar, então, um exemplo, do Foucault 1371
na primeira obra dele “Doença Mental e Psicologia”. Ele dedica cinco capítulos 1372
para esse livro bem breve. Ele começa primeiramente prestando homenagem às 1373
ciências estabelecidas: Psiquiatria, depois vai pra Psicologia, depois vai para os 1374
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Estudos Culturais, Antropologia, História e assim por diante. E ele, na minha 1375
leitura, e já por saber que ele era homossexual, ele tinha uma agenda que me 1376
parecia escondida. A gente sabe que o homossexualismo deixou de ser 1377
enquadrado como doença mental no século passado, na década de 90, ou seja, 1378
há muito pouco tempo. Então, imagina, a pessoa que tem uma conduta em 1379
relação à sua sexualidade, ser enquadrada como anormal, como doente mental. 1380
Ele precisou buscar em estudos culturais, na Antropologia, especificamente, 1381
para a minha surpresa, no referencial de uma mulher – e essa pessoa, essa 1382
antropóloga estudou comunidades indígenas nos Estados Unidos – e, através 1383
dela, ele teve acesso a quê? Na cultura X, naquela cultura, as pessoas ou os 1384
indígenas que tinham hábitos ou gestos efeminados ou aqueles que se vestiam 1385
de mulher não eram considerados anormais. Foucault foi buscar naquela cultura, 1386
naquela referência, teve esse capricho pra dizer que a loucura é um conceito 1387
socialmente construído. Dependendo de cultura para cultura, a loucura não vai 1388
ser tratada como tal. Agora, como o Eduardo coloca, não há uma contradição 1389
porque quem está definindo o que é loucura ou o que é normalidade é a cultura. 1390
Quando ele diz que na tribo X os próprios reconheciam, por exemplo, uma 1391
ruptura do comportamento padrão, realmente a pessoa saiu daquela 1392
normalidade. Eu acho que é por aí. Por exemplo, na Psiquiatria, Psicologia, em 1393
outras ciências e também na Análise do Discurso, quando há essas rupturas, 1394
quando a gente sai do gênero, a gente consegue detectar, então, aquilo que é 1395
incomum. 1396
SIMONE MARTIN OLIANI: [35:30] Eu acredito que a gente ainda tem muito a 1397
aprender. Considerando que nos últimos tempos muita coisa tem mudado e a 1398
gente está num processo, segundo alguns estudiosos, de expansão do universo 1399
– nem falam mais universo, falam de multiverso – eu acho que aí tem muita coisa 1400
pra aprender. Tem alguns autores, como Carl Sagan, que revolucionaram na 1401
década de 70 e 80, e continuam sendo atuais, questionando várias questões a 1402
respeito de ciência. Nós estamos falando aqui de ciência em todos os níveis, 1403
inclusive da Filosofia. Manter a mente aberta, não considerar nenhuma verdade 1404
como imutável, mas questionar, continuar questionando, duvidando, pra que a 1405
gente possa continuar aprendendo e experimentar de novo. Questionar eu acho 1406
que é o grande segredo de a gente continuar aprendendo. E gostaria de ir lá à 1407
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sua sala pra gente discutir controle social pra manutenção de determinados 1408
comportamentos culturais. Eu acho que é bem legal a gente poder aprofundar, 1409
mas o que a gente precisa é continuar aprendendo. 1410
SIMONE REIS: [37:00] Vou fazer um último comentário. Ainda hoje eu participei 1411
de uma banca de qualificação de tese e falei para o candidato: “Não espero de 1412
um futuro doutor que ele assuma posições extremas”. [,,,] eu defendo que, como 1413
estudiosos de Foucault, a gente não deve lê-lo passivamente, nem aceitar tudo, 1414
e temos de ver o tempo do qual ele falou, a que tempo ele se remeteu[,,,] temos 1415
de ver como eram as condições do seu tempo em relação aos avanços da 1416
ciência. Eu, pessoalmente, leio Foucault com bastante resistência e tenho muita 1417
confiança nos avanços da ciência. 1418
JOSÉ EDUARDO BALERA: [38:11] Agradecemos a participação dos 1419
convidados, dos presentes e desejamos uma boa noite. ((palmas)) 1420
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