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Circulações de conhecimento entre Europa, Brasil e Índia: o caso dos soros e das
vacinas antipestosas (1895-1910)
Matheus Alves Duarte da Silva1
matheus.duarte@ehess.fr
O aparecimento de casos de peste bubônica no Brasil, em outubro de 1899, e o
consequente problema da prevenção e do tratamento da doença foram os catalisadores
da criação do Instituto Soroterápico Federal e do Instituto Butantã, no Rio de Janeiro e
em São Paulo, respectivamente (STEPAN, 1976; BENCHIMOL, 1990; BENCHIMOL,
TEIXEIRA, 1993). O surgimento desses laboratórios foi entendido, por parte dos
historiadores que se dedicaram a essa temática, como o início de uma produção
“moderna” em bacteriologia e medicina no país. Ao analisar esse evento, a maioria dos
estudos insistiu nas relações estabelecidas entre as citadas instituições brasileiras e o
Instituto Pasteur de Paris, compreendido como o modelo de instituição a ser copiado no
Brasil e como o local de onde a moderna bacteriologia teria se difundido. Essa difusão
estaria materializada, por exemplo, no soro antipestoso, produto inventado em 1895 por
Alexandre Yersin e outros pesquisadores do laboratório francês (YERSIN,
CALMETTE, BORREL, 1895), cujo conhecimento foi transferido para as duas
instituições brasileiras a partir de 1900.
Nesse texto, gostaríamos de colocar em questão algumas dessas conclusões
citadas acima. Começaremos apresentando a história da utilização do soro de maneira
mais ampla, analisando a trajetória do produto antes de 1900. Para tanto, abordaremos
as missões de Yersin e Paul-Louis Simond na Índia, entre 1897 e 1898, momento em
que o soro francês foi testado em grande escala pela primeira vez. Discutiremos, assim,
as mudanças ocorridas em sua produção em função desses testes e a sua posterior
chegada, transformado, ao Brasil. Em seguida, mostraremos que o soro antipestoso
francês não era o único que existia e que soros alternativos, entre eles o dos professores
italianos Lustig e Galeotti, haviam sido testados na Índia com resultado similar, sem,
todavia, terem circulado para o Brasil. Por fim, trataremos da entrada de outro produto
1 Bolsista de Dourado Pleno da Capes (Processo nº 99999.001241/2015-00) na École des Hautes Études
en Sciences Sociales (EHESS) sob a orientação dos professores Dominique Pestre e Kapil Raj.
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no Brasil, menos discutido pela historiografia nacional, para fazer frente à doença: a
vacina antipestosa. Ela fora inventada na Índia, em 1896, por Waldemar Haffkine e
chegara ao Brasil graças à ação do médico italiano Camillo Terni, que a havia
modificado em 1899. A partir desse outro exemplo, compararemos as circulações do
soro e da vacina antipestosa entre Brasil, Índia e Europa.
Para compreender essa produção científica transnacional, a metodologia
escolhida foi a de seguir os atores envolvidos com a produção de conhecimento sobre a
cura e/ou a prevenção da peste bubônica. Analisaremos artigos, cadernos de campo e
cartas desses personagens, para além dos membros do Instituto Pasteur de Paris, que se
dedicaram ao estudo da doença. Do ponto de vista teórico, insistiremos na circulação de
conhecimento, ao contrário de uma discussão centrada na transferência (LOWY, 2006)
ou na difusão de conhecimento (STEPAN, 1976), conforme fornecida anteriormente
pela historiografia brasileira dedicada ao tema. Por circulação de conhecimento não
compreendemos simplesmente o movimento, o deslocamento de uma ideia, prática,
pessoa ou objeto científico, mas as mudanças que ocorrem nesse processo. Conforme
teorizado pelo pesquisador Kapil Raj (2013: 343): “por circulação nós entendemos não
a ‘disseminação’, ‘transmissão’, ou ‘comunicação’ de ideias, mas o processo de
encontros, poder e resistência, negociação, e reconfiguração que ocorre diante de
interações culturais”. Ainda segundo esse pesquisador (2013: 344), o conceito de
circulação sugeriria “um fluxo mais aberto e especialmente a possibilidade de mutações
e reconfigurações voltando ao ponto de origem”.
Bombaim em tempos de peste
Ao partir de Paris para Bombaim, em maio de 1897, o médico Paul-Louis
Simond sabia que a sua missão, custeada pelo governo francês e pelo Instituto Pasteur
de Paris, tinha como objetivo principal descobrir qual soro antipestoso funcionaria
melhor entre os doentes indianos (ROUX, 1897a: 2). O produto havia sido criado dois
anos antes em Paris e fora testado em humanos pela primeira vez em junho de 1896, na
China, pelas mãos do próprio Yersin (YERSIN, 1896). Esses primeiros testes haviam
sido bem-sucedidos, o que criara uma esperança entre as autoridades municipais de
Bombaim quando a peste surgira na cidade, em setembro de 1896. Elas, então,
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convidaram Yersin, em dezembro daquele ano, para testá-lo de maneira mais larga entre
os milhares de doentes da cidade (PILINSKI, 1897: 1). Após os três meses que ficara na
Índia, entre março e junho de 1897, Yersin descobriria, entretanto, que seu soro não era
tão eficaz como pensado anteriormente. Isso porque, na China, o soro havia produzido
uma taxa de cura de quase 93%, isto é, entre os 25 tratados, apenas 2 morreram
(YERSIN, 1897a: 88). Na Índia, porém, das 147 pessoas tratadas por Yersin, 71
morreram, gerando um taxa de praticamente 50% de cura (YERSIN, 1897b; 1897c;
1897d). Diante desses resultados, mudanças se faziam necessárias e seriam esses soros
modificados, produzidos no Instituto Pasteur, que Simond testaria nos doentes indianos
durante mais de um ano, até agosto de 1898 (SIMOND, 1898a).
O soro antipestoso era parte integrante do recente arsenal de cura pasteuriano,
que incluía, entre outros, a vacina antirrábica. A promessa de sucesso desses produtos
baseava-se na ideia de que a manipulação e a atenuação de micro-organismos poderiam
criar remédios capazes de curar ou evitar as doenças por eles causados (LOWY, 2015:
230-233). A fabricação de um soro obedecia a seguinte lógica: inoculava-se um animal,
geralmente um cavalo, com uma solução contendo os micro-organismos responsáveis
pela doença que se desejava curar. O corpo do animal, então, produzia uma reação,
desenvolvendo antígenos contra ela. Esses antígenos eram coletados do sangue para
depois serem usados no tratamento em humanos (YERSIN, CALMETTE, BORREL,
1895).
Entretanto, na produção do soro antipestoso, o processo comportava diferentes
problemas técnicos, pois não se sabia, por exemplo, se os micro-organismos a serem
injetados deveriam estar vivos ou mortos, em qual quantidade eles deveriam ser
inoculados nem a virulência deles. Por não se conhecer de maneira precisa essas
questões, Émile Roux, sub-diretor do Instituto, enviaria a Simond, ao longo de sua
estadia na Índia, diferentes tipos de soro, produzidos das mais diversas formas (ROUX,
1897b: 1). A principal modificação, feita após os testes iniciais de Yersin e que seria
testada por Simond, relacionava-se aos micro-organismos inoculados nos cavalos.
Inicialmente, foram utilizados bacilos vivos atenuados, mas, diante dos perigos de sua
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manipulação tanto para os animais quanto para os cientistas, começou-se a utilizar
bacilos mortos pelo calor.
Ao se acompanhar a estadia de Simond através de suas cartas e seu caderno de
campo, é possível observar as dificuldades que ele viveu na tentativa de realizar a
missão a ele confiada. De um lado, ele se confrontaria com as dificuldades impostas
pela sociedade na qual ele acabava de chegar. Simond não dominava totalmente o inglês
e nada das línguas locais (SIMOND, 1898b: 33), a região de Bombaim vivia uma tensão
social provocada pelas medidas adotadas pelo Governo Colonial para conter a difusão
da epidemia (ARNOLD, 1993) e determinados médicos ingleses ali baseados
desconfiavam da eficácia do soro antipestoso francês (SIMOND, 1898c: 1-2). De outro
lado, havia os problemas técnicos que acabavam alimentando as suspeitas dos ingleses.
Determinados frascos de soro enviados por Roux não chegavam até Simond, outros
chegavam estragados (SIMOND, 1898d : 2) e mesmo os que ainda mantinham suas
propriedades intactas não eram capazes de curar os doentes da maneira como as
autoridades inglesas haviam imaginado. Por exemplo, entre os mais de 300 doentes
tratados por Simond até janeiro de 1897, a proporção de curados continuava em 40%
(SIMOND, 1898d: 1), mesmo com a manipulação de alguns dados feita por ele. 2
As críticas que determinados médicos ingleses começavam a fazer aos franceses
na Índia, impedindo o trabalho desses últimos em alguns momentos (SIMOND, 1898c:
1-2), não eram apenas devido aos resultados pouco animadores do soro do Instituto
Pasteur, mas também à comparação desses resultados com o de dois outros produtos
concorrentes na Índia. O primeiro deles era o soro antipestoso concebido, em abril de
1897, pelos médicos italianos da Universidade de Florença, Alessandro Lustig e Gino
Galeotti. Sua principal diferença é que os italianos não utilizavam bacilos vivos, como
os franceses faziam até aquele momento, mas destruíam os bacilos usando calor e ácido
para então inocular nos cavalos uma solução contendo “núcleo-proteídos” da doença,
que seriam a parte das bactérias responsáveis pela produção da toxina (LUSTIG,
GALEOTTI, 1897: 1027-1028). Segundo os italianos, as razões para essa mudança
2 Simond (1898f: 5) afirmaria em carta a Roux que ele não incluíra no relatório enviado às autoridades
inglesas os testes feitos com determinada versão do soro posto que ele não fora capaz de curar
praticamente ninguém.
5
baseavam-se, de um lado, na segurança do pessoal do laboratório e dos animais, pois
não se estaria lidando com bacilos vivos, e, de outro, na facilidade de dosar a substância
contendo os núcleo-proteídos (LUSTIG, 1899: III).
Tal qual os franceses, Lustig e Galeotti viajaram à Índia para testar seu produto
na população contaminada, chegando em junho de 1897 (LUSTIG, 1899: 31-50). Da
mesma forma que os cientistas do Instituto Pasteur, os italianos se confrontaram com os
problemas relativos à conservação do material e aos resultados diferentes que aqueles
observados, experimentalmente, em Florença. Até 31 de maio de 1899, o soro havia
sido testado na Índia em uma população de 475 pessoas e alcançado uma taxa de cura
de 39,36% (POLVERINI, 1899: 3). Desse total, 257 haviam sido tratados com o soro
produzido em Florença e 218 com o soro produzido pelos italianos em Bombaim. Isso
porque, diferentemente da versão do Instituto Pasteur, o produto italiano encontrou o
apoio das autoridades inglesas, que, convencidas da sua eficácia, resolveram
estabelecer, em outubro de 1898, um laboratório para sua a produção em Bombaim,
comandado pelo próprio Gino Galeotti (1899: 1). A criação desse local fora vital para a
continuação da produção do soro de Lustig e Galeotti, pois, na Itália, a pesquisa e a
manipulação do bacilo pestoso estava temporariamente interrompida em função de um
acidente ocorrido em um laboratório de Viena, seguido da morte de alguns funcionários,
em outubro de 1898 (LUSTIG, 1899: VIII).
Em fins do século XIX, portanto, no principal foco da doença naquele momento,
Bombaim, existiam diferentes tipos de soro antipestoso em disputa e a versão dos
médicos de Florença contava com a simpatia das autoridades coloniais. O soro francês,
por sua vez, não era uma unanimidade, sendo criticado pelas autoridades e médicos
ingleses. Mesmo entre os franceses as dúvidas eram grandes, pois o objetivo da missão
de Simond não fora cumprido, não se descobrindo qual era o melhor soro. Em sua
última carta a Roux, escrita em Calcutá, ele afirmaria que (1898a: 4): “para voltarmos à
Índia, é necessário ou que o governo [inglês] nos peça o envio do soro, ou que você
tenha a certeza de que um grande progresso se realizou no valor do soro”.
Dentro desse contexto, não nos parece tão evidente a escolha das autoridades
sanitárias brasileiras, em fins de 1899, de procurar no Instituto Pasteur de Paris, através
6
da compra de material e da contratação de ex-integrantes do laboratório, como Oswaldo
Cruz, a solução para combater a peste bubônica que acabara de chegar ao país
(STEPAN, 1976: 70-71). Não se pode recorrer a uma mera explicação de eficácia ou de
estabilização, pois o soro francês não possuía nenhuma dessas características naquele
momento. A resposta para tal questão parece se basear em outros fatores, sobretudo o
estabelecimento de redes internacionais de cientistas, conforme veremos para o exemplo
de outro concorrente do produto francês, a vacina antipestosa de Waldemar Haffkine.
A utilização da vacina antipestosa em Bombaim
Waldemar Haffkine era um judeu russo com formação em zoologia e que, diante
das perseguições religiosas em seu país, acabara se estabelecendo como preparador no
Instituto Pasteur de Paris. Em 1892, ele desenvolvera uma vacina no laboratório
parisiense contra o cólera e a testaria, alguns meses depois, em Calcutá, na Índia, um
dos principais focos do mal (LOWY, 1992). Por estar ali baseado, ele seria solicitado
pelo governo colonial para investigar o suposto aparecimento da peste bubônica em
Bombaim em setembro de 1896, o que sua análise bacteriológica acabaria confirmando.
Diante do alastramento assustador da moléstia, e com a sua formação pregressa,
Haffkine desenvolveria, em um laboratório improvisado em um hospital da cidade, uma
vacina contra a peste bubônica que seria utilizada pela primeira vez em 30 de janeiro de
1897, em uma prisão (HAFFKINE, 1897: 1462).
O processo para a produção da vacina obedecia a seguinte ordem: as bactérias
eram, primeiramente, cultivadas em gordura animal. A principal questão nessa fase
inicial era conseguir determinar se a substância cultivada era pura ou não, isto é, se
continha apenas bacilos de peste. A metodologia desenvolvida por Haffkine baseava-se
na observação visual, sendo necessário perceber se os micro-organismos tomavam a
forma de estalactites, o que obrigava a posse de um importante savoir-faire (CONDON,
1900:115). Se essa pureza fosse confirmada, o material contendo as bactérias era, então,
recolhido, aquecido a 70 °C e decantado, formando-se um líquido límpido e um
sedimento branco. Tanto o sedimento quanto o líquido eram misturados e injetados no
homem na quantidade de 3 cm³ (HAFFKINE, 1897: 1462).
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Dos primeiros 154 casos vacinados na prisão, 5 desenvolveram a peste e 2
morreram, enquanto entre os 173 prisioneiros não vacinados, 12 desenvolveram a
doença e seis casos se mostraram fatais (HAFFKINE, 1897: 1461). Após esses
resultados, a produção da vacina seria feita em maior escala. Durante os anos seguintes,
as instalações laboratoriais para a produção da vacina antipestosa sofreriam diferentes
mudanças. Em abril de 1897, o laboratório seria colocado em terreno pertencente à
Municipalidade para ser reinstalado, em dezembro daquele ano, em uma das
propriedades do Aga Khan III, líder da população muçulmana ismaelita da cidade
(HAFFKINE, 1898a: 1). Por fim, em agosto de 1899, o Plague Research Laboratory
seria instalado definitivamente em uma das propriedades do Governo Colonial, que
assumira, a partir de então, as responsabilidades pelo funcionamento do laboratório
(CONDON, 1900: 113-114).
Apesar de sua ligação anterior com o Instituto Pasteur de Paris, Haffkine seria
visto por Yersin e Simond, durante o período em que estiveram na Índia, e mesmo após,
como um concorrente. Os franceses, tanto em seus documentos privados quanto em
artigos científicos, criticariam largamente a vacina de Haffkine. Em artigo publicado
após sua estadia no país asiático, Yersin (1897: 370-371) afirmaria que “as inoculações
preventivas que Haffkine pode fazer em grande escala em seres humanos, em Bombaim,
mostram que a vacinação com culturas esterilizadas pode ser perigosa e que a
imunização assim adquirida não dura muito tempo”. Simond (1898e: 4), em carta a
Roux, contaria que “Haffkine fazia bastante propaganda sobre as suas inoculações com
culturas esterilizadas (...). A mortalidade entre os inoculados de duas ou três cidades foi
bem menor que entre os não-vacinados. Sem dúvida isso ocorre porque a injeção
provoca uma imunização de alguns dias. Entretanto, a reação febril é tal que os nativos
não querem mais ouvir falar de injeção”.
Embora essas críticas insistissem sobre os aspectos técnicos da produção da
vacina e nos efeitos colaterais da vacinação, havia, também, uma competição por espaço
entre o soro antipestoso francês e o produto concebido por Haffkine. Isso porque, ainda
que teoricamente o soro fosse concebido para ser utilizado depois do aparecimento da
doença e a vacina, antes, não era exatamente isso que ocorria no caso da peste bubônica.
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Os franceses, desde 1895, defendiam que o soro poderia também imunizar, ou seja, ser
utilizado antes do aparecimento da doença, em um processo conhecido como soro-
vacinação (YERSIN, CALMETTE, BORREL, 1895: 591). Yersin e Simond realizaram
esse processo na Índia e o defenderiam como mais seguro que a vacinação, posto que a
soro-vacinação não causaria os mesmos efeitos deletérios (YERSIN, 1897: 371;
SIMOND, 1898e: 11-12).
Apesar das críticas dos franceses, a vacina de Haffkine conheceria uma ampla
difusão na Índia, pois, além dos supostos benefícios que poderiam advir de sua
utilização, ela permitia à população indiana escapar do isolamento forçado estabelecido
pelo governo colonial. Durante os primeiros anos de existência do Plague Research
Laboratory, isto é, de 1896 a maio de 1901, o laboratório comandado por Haffkine
produziria 2.320.288 doses, que seriam utilizadas na Índia e exportadas para outras
partes do mundo (HAFFKINE, 1903: 1). Embora essa exportação não tenha atingido
diretamente o Brasil, a vacina antipestosa chegaria ao país por outros caminhos.
Reconfigurações e a chegada da vacina ao Brasil
Em fins de 1899, era publicado na Itália um texto de 20 páginas intitulado: Un
nuovo método di preparazione del vacino antipestoso, cujos autores eram Camillo Terni
e Ivo Bandi, médicos do Laboratorio Micrografico Municipale di Messina. O texto
começava apontando os problemas relativos à vacina desenvolvida por Haffkine na
Índia: seu processo de produção era lento, a imunização aparecia tarde, geralmente 12
dias após a inoculação, e a vacina poderia causar a febre e acelerar a marcha da doença,
caso a pessoa já estivesse com o bacilo em período de incubação (TERNI, BANDI,
1899: 3-4). Para resolver esses problemas, os italianos propunham um método
alternativo. O bacilo não deveria ser cultivado em tubos de ensaio, como fazia Haffkine.
Ao contrário, Terni e Bandi recomendavam que o bacilo fosse injetado no peritônio de
cobaias, que desenvolveriam em algumas horas uma peritonite. O animal seria, então,
sacrificado em até 48 horas e as bactérias recolhidas do peritônio seriam esterilizadas de
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maneira fracionada, durante dois dias. Por fim, a esse líquido seria misturado ácido
fênico, carbonato de sódio e cloreto de sódio (TERNI, BANDI, 1899: 4-5). Após testes
com animais, os autores afirmavam que a vacina produzida segundo essa nova
metodologia possuía as seguintes vantagens em relação à de Haffkine: uma produção de
bactérias em até 48 horas, uma imunização nos animais vacinados geralmente entre o
quarto e o quinto dia e a impossibilidade de agravar a doença durante o período de
incubação (TERNI, BANDI, 1899: 17-18).
Em dezembro de 1899, em função do aparecimento da peste meses antes em
Santos, litoral paulista, Terni desembarcaria no Brasil para estudar a doença. Em janeiro
de 1900, ele seria o responsável por confirmar o surgimento do primeiro caso de peste
bubônica na Capital Federal, o Rio de Janeiro (TERNI, GOMES, FRANCO, 1900: 42-
43). Durante os meses seguintes, ele realizaria estudos sobre a doença em um
laboratório localizado no Hospital de Paula Cândido, na Praia da Jurujuba, em Niterói,
para onde eram levados e isolados os casos suspeitos e confirmados de peste. Dentre os
trabalhos desenvolvidos no laboratório niteroiense, constavam testes com a vacina
antipestosa em humanos, cujos resultados seriam publicados nas imprensas leiga e
médica da Capital Federal (GUIMARAES, 1900: 1).
Em artigo divulgado no Brazil-Medico, em maio de 1900, o público leitor tinha
acesso a uma tradução na íntegra de uma conferência ministrada por Terni em 15 de
abril na Academia Nacional de Medicina do Rio de Janeiro. Nessa fala, o médico
italiano reproduzia parte dos argumentos do artigo de 1899, apresentando seu método de
produção da vacina antipestosa e procurando convencer os ouvintes brasileiros da
eficácia do mesmo (TERNI, 1900). Todavia, diferentemente do artigo publicado em
1899, Terni procuraria se aproximar de Haffkine no Brasil, afirmando que “quase
contemporaneamente às primeiras tentativas para a produção de um soro curativo,
Haffkine, seguindo outro caminho, preparou a vacina antipestosa destinada ao maior
sucesso, visto como realmente oferece as melhores garantias, podendo ser considerada
entre os mais eficazes meios de profilaxia individual contra a peste” (TERNI, 1900:
143).
10
Ao se acompanhar a trajetória de Terni nos meses seguintes à conferência de
abril, observa-se que ele conseguiu convencer paulatinamente as autoridades sanitárias
federais acerca de sua vacina. Em matérias publicadas n’O Paiz, noticiava-se que o
Ministro da Justiça e Negócio Interiores Epitácio Pessoa, a quem, à época, os serviços
sanitários federais estavam subordinados, fora vacinado contra a peste bubônica pelo
próprio Terni e que farmácias e consultórios médicos da cidade do Rio de Janeiro
passaram a aplicar em seus clientes vacinas antipestosas preparadas segundo o método
do médico italiano.3 Além disso, a vacina produzida pelo próprio Terni na Jurujuba
começaria a ser aplicada nos hospitais do Rio de Janeiro.
Esse sucesso geraria atritos com alguns críticos. Em sessão do dia 23 de junho
de 1900 do 4º Congresso Nacional de Cirurgia e Medicina, realizado no Rio de Janeiro,
Camillo Terni, que estava presente, ouviu a seguinte crítica proferida por Oswaldo
Cruz: “a julgar pelas conclusões de [Albert] Calmette, é perigosa a vacinação
[antipestosa] em época de epidemia, porque foi observado em animais que a inoculação
da vacina torna o organismo que a recebe sensível à peste. Refere-se à vacina Haffkine,
única sobre a qual julga poder falar”. 4 Nessa fala, Oswaldo Cruz recuperava as críticas
à vacina de Haffkine feitas pelos membros do Instituto Pasteur, dentre os quais Albert
Calmette.
A réplica do italiano a Oswaldo Cruz teria sido imediata, segundo a transcrição
do debate fornecida pelo jornal O Paiz: “a vacina é oferecida como meio preventivo,
julgando-se, portanto, que o indivíduo que a recebe não está infeccionado”. Ao final de
sua fala, ele procuraria se aproximar novamente do cientista russo, afirmando que “não
acostumando enfeitar-se com penas de pavão, nunca apregoou ser sua descoberta a
vacina antipestosa que prepara. Sempre disse tratar-se da vacina Haffkine, modificada
na técnica pelo orador [Terni]. Pede, portanto, que chamem a vacina que aqui tem sido
empregada, vacina Haffkine modificada por Terni”. 5
Essa controvérsia entre Oswaldo Cruz e Terni, que se desenvolveria em outros
espaços, foi analisada em texto anterior, cabendo recuperar aqui os principais
3 Informações publicadas nas edições d’O Paiz de 10 de julho e 12 de julho de 1900. 4 A transcrição desse debate encontra-se em O Paiz, 24 de junho de 1900, primeira página. 5 Idem.
11
argumentos da conclusão enunciada outrora (SILVA, 2015). Oswaldo Cruz e Camillo
Terni faziam parte de redes internacionais diferentes. O primeiro havia estudado no
Instituto Pasteur de Paris e, em 1900, havia sido nomeado para integrar o projeto de
estabelecimento do laboratório soroterápico federal que, grosso modo, iria produzir soro
antipestoso com técnicas semelhantes ao do laboratório parisiense. Terni, por sua vez,
fazia parte de outras redes, havia se formado na Itália e estudado com Koch em Berlim
(SEIDL, 1900: 152-153). Embora em 1899 ele fizesse críticas à Haffkine, no Brasil ele
procuraria se aproximar do cientista russo, concorrente dos franceses. Em suas
manifestações no Rio de Janeiro, Terni não apenas defenderia seu produto como
também faria duras críticas ao soro antipestoso do Instituto Pasteur, apontando
problemas relativos aos efeitos curativos e profiláticos (TERNI, 1900: 152). Havia,
portanto, uma ameaça aos planos de Oswaldo Cruz na proposta de Terni, pois se pode
imaginar que uma escolha das autoridades brasileiras em torno da vacina, e não do soro,
poderia colocar o projeto do laboratório soroterápico a perder.
Após o embate, os caminhos dos dois começaram a se separar. O italiano
continuaria produzindo sua vacina na Jurujuba até voltar à Europa, em 20 de setembro
de 1900, a pedido do governo de seu país (SILVA, 2015: 38). Oswaldo Cruz iniciaria,
em 31 de julho daquele ano, experiências no recém-inaugurado laboratório do
Manguinhos para testar os diferentes métodos existentes de preparação da vacina
antipestosa. Foram testados o método originalmente criado por Haffkine e o de Gaffky,
Pfeiffer, Sticker e Dieudonné, que compunham a Comissão Alemã enviada à Índia para
estudar a peste bubônica. Sua principal diferença para aquele de Haffkine era a
utilização de um meio sólido para o cultivo das bactérias, o ágar, e a inoculação apenas
dos corpos das bactérias. Além desses, foram testados o método de Lustig e Galeotti,
que haviam desenvolvido uma vacina utilizando praticamente os mesmos princípios de
seu soro e o de Terni e Bandi (CRUZ, 1901: 443).
A comunicação dos resultados dessas experiências ocorreu em dois momentos.
O primeiro, em 9 de maio de 1901, em sessão da Academia Nacional de Medicina, e
depois, em dezembro de 1901, em extenso artigo publicado no Brazil-Medico. Nesse
12
texto, Oswaldo Cruz, após narrar os testes realizados em Manguinhos com cada vacina,
afirmava que a melhor era a da Comissão Alemã, que tinha os seguintes méritos:
1. Inoculação vacinante feita exclusivamente com os corpos
microbianos mortos, sem outros elementos estranhos inertes; 2.
Possibilidade de proceder-se a uma rigorosa dosagem; 3.
Rapidez e segurança no preparo (CRUZ, 1901: 445).
A vacina Terni, por sua vez, era criticada naquele texto por várias razões.
Primeira, nas cobaias inoculadas em Manguinhos, a imunização apareceu entre o 10º e o
12º dia, e não no 4º ou 5º dia, como afirmava Terni. Segunda, a vacina Terni era difícil
de dosar, pois no líquido que era retirado do peritônio das cobaias estavam misturados
diferentes elementos, como pus, células epiteliais, etc. Por fim, o processo era caro,
posto que exigia o sacrifício de uma cobaia para cada 50 a 60 c.c. de líquido imunizante
produzido (CRUZ, 1901: 444-445).
Com base nesses testes, em 30 de outubro de 1900, o Instituto Soroterápico
Federal entregaria os primeiros frascos de vacina antipestosa. O modelo utilizado foi o
da Comissão Alemã, com uma codificação do tecnismo realizada pelos cientistas de
Manguinhos, sobretudo em torno da pesagem e da dosagem da vacina (CRUZ, 1901:
446). Apesar do início da produção da vacina, Oswaldo Cruz ainda se mostrava
hesitante quanto aos riscos de ela intensificar a epidemia, sendo mais favorável à soro-
vacinação. Cruz afirmava que:
Na carência de soro, convém isolar-se os indivíduos durante o
tempo máximo de incubação da peste, vaciná-los pelo processo
Haffkine e conservá-los longe do foco durante todo o período de
pré-imunização, isto é, de 10 a 12 dias. Só assim a vacina
antipestosa poderá ser usada sem receio (CRUZ, 1901: 474).
Terni não estava mais no Brasil para defender sua vacina, mas ainda contava
com aliados importantes no Rio de Janeiro, entre os quais Carlos Seidl, diretor do
Hospital São Sebastião. Este, ao ouvir as críticas de Oswaldo Cruz à vacina Terni
proferidas na citada sessão da Academia Nacional de Medicina, teria rebatido e
afirmado:
[Acho] um tanto exagerados os receios externados pelo Dr.
Oswaldo Cruz, relativamente à vacina antipestosa em tempos de
13
epidemia de peste. Não [contesto] o valor dos argumentos
oriundos dos trabalhos de laboratório, citados pelo Dr. Cruz, [...]
[pergunto], entretanto, se os fatos demonstrados pelas
experiências de laboratório em animais foram comprovados na
espécie humana. [Pergunto] mais se as milhares de vacinações
efetuadas no Rio de Janeiro, durante a última epidemia de peste,
justificam os receios externados e provam o perigo apontado.6
A matéria não informa se houve uma réplica de Oswaldo Cruz a Carlos Seidl.
Em todo caso, a opinião desse último parece não ter encontrado eco na produção da
vacina antipestosa em Manguinhos. Isso, porque, nos anos seguintes de epidemia de
peste bubônica no Rio de Janeiro, o laboratório continuaria preparando-a partir da
reconfiguração dos procedimentos originais desenvolvidos pela Comissão Alemã
enviada à Índia (CRUZ, 1906: 502).
Considerações Finais
A circulação dos soros e das vacinas antipestosas entre a Europa, a Índia e o
Brasil conheceu uma história com semelhanças e diferenças. Tanto o soro antipestoso
francês quanto o italiano haviam sido criados em laboratórios europeus, mas seus
efeitos só foram conhecidos quando os primeiros testes foram realizados entre os
milhares de doentes na região de Bombaim, na Índia. Enquanto o soro francês foi
criticado na Índia, o italiano agradou as autoridades daquele local, permitindo uma
transferência de conhecimento para a região. E por que não foi esse soro que chegou ao
Brasil, quando da ameaça do espraiamento da doença, em 1899 e 1900, mas a versão
francesa? Conforme defendido no presente artigo, essa resposta não deve ser buscada
apenas na eficácia dos produtos, mas, sobretudo, no estabelecimento das redes
internacionais dos cientistas brasileiros, que os ligavam ao Instituto Pasteur. Foi a força
dessas redes que permitiu a circulação do soro francês, modificado após os testes na
Índia, ao Brasil. O soro italiano, por sua vez, nem seus criadores, possuíam esses laços
com o Brasil e, sobretudo, naquele momento, o produto de Lustig e Galeotti era
produzido na Índia e não na Europa.
Uma circulação diferente, no entanto, envolveu a vacina antipestosa. Ao
contrário do soro, ela seria criada na Índia por Waldemar Haffkine. Pesquisadores
6 Transcrição fornecida pelo Brazil-Medico, nº20, 22 de maio de 1901, páginas 195 e 196.
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europeus, como Camillo Terni e os membros da Comissão Alemã enviados a Bombaim,
procurariam modificar o processo original. Esse conhecimento sobre a sua produção
chegaria ao Brasil através do savoir-faire de Camillo Terni. A vinda do italiano ao país
modificaria a lógica das redes internacionais, permitindo que ele começasse a produzir a
vacina no Rio de Janeiro e construísse uma rede de aliados, que envolviam o Ministro
da Justiça e Carlos Seidl, por exemplo. Essa rede facilitaria o emprego da vacina de
Terni no Rio de Janeiro, entre 1900 e 1901. No entanto, após as críticas de Oswaldo
Cruz e, principalmente, depois da abertura do laboratório de Manguinhos, a vacina
antipestosa de Haffkine seria novamente reconfigurada para ser utilizada no Rio de
Janeiro, ao longo da primeira década do século XX, em larga escala. A rede montada
por Camillo Terni, por sua vez, se enfraqueceria paulatinamente com a sua partida, e a
produção da sua vacina seria posteriormente abandonada na Capital Federal.
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