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Criações libertárias, feminismos e práticas parresiastas
Margareth Rago - UNICAMP
O possível não preexiste, ele é criado pelo acontecimento. É uma
questão de vida.
Deleuze
Se discutimos, aqui, o tema da produção de subjetividades libertárias, se
buscamos, nesse importante Seminário, caminhos para realizar esses desejos de
transformação de nosso mundo, é inevitável agregar um outro adjetivo à palavra
subjetividade, aquele que remete à palavra filoginia, em geral, tão ausente de nosso
vocabulário cotidiano.1 Estamos cansadas de comportamentos, idéias, raciocínios,
práticas e pessoas misóginas.
Embora não estivesse voltado para as questões específicas do feminismo, a busca
de uma vida não-fascista marca a trajetória de Michel Foucault e seu esforço maior
dirige-se, em especial, a problematizar nossa atualidade, estranhando o que somos e
abrindo novas possibilidades de constituição de subjetividades éticas, ou de “devires
revolucionários”, na expressão de Deleuze. Como um velho anarquista, Foucault rejeita
tudo aquilo que nos liga ao poder, “o inimigo maior, o adversário estratégico: o fascismo
que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora”, como afirma
num prefácio ao livro de Deleuze e Guattari (FOUCAULT, 1977).
Assim, pergunta pelos caminhos de construção das relações de si para consigo e
para com os outros, que escapam às estratégias disciplinares, distantes também de uma
concepção do indivíduo cindido em seu próprio eu, aquele em que a alma tem primazia
sobre o corpo, como no cristianismo. Diz ele:
é talvez uma tarefa urgente, fundamental, politicamente indispensável a
constituição de uma ética de si, se é verdade afinal que não há outro ponto,
1 FIOLOGINA, do grego philos, amigo + gyne, mulher = amor às mulhres – antônimo de MISOGINIA, aversão às mulheres (Grande Dicionário Larousse Cultural da Língua Portuguesa, São Paulo, 1999, p. 432).
primeiro e último, de resistência ao poder político para além da relação de si
para consigo (FOUCAULT, 2001, 241).
Sabemos que os projetos revolucionários do passado carregavam em seus
objetivos a construção de um “novo homem” e de uma “nova mulher”, sujeitos
revolucionários por excelência, belos, admiráveis, justos, livres, proposta que também
não se realizou. Aliás, discutindo as técnicas de si construídas em nossa tradição e as
formas imaginadas de construção de outros modos de existência, Foucault aborda o tema
da produção da “subjetividade revolucionária”. Historicizando essa experiência,
perguntando por sua emergência, sugere que é desde meados do século XIX, que o antigo
tema de um trabalho sobre si se conecta com a idéia da revolução política, da “conversão
à revolução”. Em suas instigantes palavras:
Parece-me que é a partir do século XIX (...) seguramente por volta dos anos
1830-40, e justamente em referência aquele acontecimento fundador, histórico-
mítico que foi para o século XIX, a Revolução Francesa, que se começou.
Parece-me que, ao longo do século XIX, não se pode compreender o que foi a
prática revolucionária, não se pode compreender o que foi o indivíduo
revolucionário e o que foi para ele a experiência da revolução se não se leva em
conta a noção do esquema fundamental da conversão à revolução. O problema,
então, estaria em examinar de que modo se introduziu este elemento que
procedia da mais tradicional - (...) pois que remonta à Antiguidade - tecnologia
de si que é a conversão, de que modo se atrelou ele a este domínio novo e a este
campo de atividade nova que era a política, de que modo este elemento da
conversão se ligou necessariamente, senão exclusivamente, à escolha
revolucionária, à prática revolucionária. Seria preciso examinar também de que
modo esta noção de conversão foi pouco a pouco sendo validada – depois
absorvida, depois enxugada e enfim anulada – pela própria existência de um
partido revolucionário. E de que modo passamos do pertencimento à revolução
pelo esquema de conversão ao pertencimento à revolução pela adesão a um
partido (FOUCAULT, 2004b, 256).
Essa discussão ressoa, ainda, em outro momento de suas aulas, quando
problematiza a “governamentalidade de partido”, forma de controle biopolítico dos
indivíduos. Mais uma vez como um velho anarquista, Foucault radicaliza a crítica às
formas de governamentalidade postas em prática pelo partido. Em O Nascimento da
Biopolítica, afirma que a origem do Estado totalitário não deveria ser buscada num
inflação do Estado liberal, mas em outro lugar, em especial, nessa forma política
emergente no século XIX, o partido:
...o princípio dos regimes totalitários não deve ser buscado do lado de um
desenvolvimento intrínseco do Estado e de seus mecanismos; em outras
palavras, o Estado totalitário não é o Estado administrativo do século XVIII, o
Polizeistaat do século XIX levado ao limite, não é o Estado administrativo, o
Estado burocratizado do século XIX levado aos seus limites. O Estado
totalitário é alguma coisa de diferente. É preciso buscar seu princípio não na
governamentalidade estatizante ou estatizada que se vê nascer nos séculos XVII
e XVIII, mas do lado de uma governamentalidade não-estatal, justamente,
naquilo que se poderia chamar de uma governamentalidade de partido. E´ o
partido, esta tão extraordinária, tão curiosa, tão nova organização, é esta muito
nova governamentalidade de partido que aparece na Europa no final do século
XIX (...) que está na origem histórica de algo como os regimes totalitários, de
algo como o nazismo, de algo como o fascismo. de algo como o stalinismo
(FOUCAULT, 2004a, 196).
Não vou me estender à posição claramente anarquista expressa aqui por Foucault,
tão próximo de Bakunin ou Malatesta, avessos à constituição do partido revolucionário,
mas quero destacar a historicização dos modos de subjetivação que o filósofo aponta no
Ocidente. Esta constatação da existência de modos diferenciados de construção do
indivíduo, tanto na relação com os códigos sociais quanto na relação consigo mesmo,
permite desnaturalizar as práticas modernas de existência e de produção da subjetividade,
evidenciando sua dimensão normativa, despotencializadora e sedentarizante.
Vale perguntar, nessa direção, se a importância que assumem os manuais e livros
de auto-ajuda na atualidade não se explicam, em grande parte, como efeito de uma
formação que enfatiza a obediência e a submissão às normas e às ordens vindas de cima.
Educado para a passividade e obediência, o indivíduo tem dificuldades para inventar por
si só novos modos de enfrentar e transformar a sua realidade.
Portanto, se podemos produzir outros modos de existência, como se discute em
nossos dias, se não acreditamos mais que somos desenhados por uma natureza pré-
existente, se já discutimos amplamente as implicações da noção de “militância”, com a
“falência das esquerdas”, podemos passar a desdobrar o tema de maneira mais afirmativa.
Criar novas relações de si para consigo e para com o mundo que escapem às incessantes
capturas do poder e que potencializem as criações libertárias é tarefa urgente. Esta supõe,
ainda, a instauração de práticas feministas, práticas que promovam a autonomia das
mulheres e que sejam, ao mesmo tempo, filóginas, isto é, que valorizem a cultura
feminina.
Nesse texto, convido a refletir, mesmo que brevemente, e acompanhada por
Foucault, Deleuze e o feminismo pós-estruturalista, sobre a necessidade do abandono do
“mundo dos clichês” e sobre as possibilidades de criação de vidas imaginativas, éticas,
libertárias e feministas, em constantes devires. Valendo-me das palavras de
Zourabichvili, ao reler Deleuze:
A doença do clichê nos deixa em um meio termo angustiante: não mais
acreditamos em um outro mundo, mas ainda não acreditamos neste mundo,
nas chances de encontro com ele, na chance que representa um encontro com
ele (...) O possível é o que pode acontecer, efetiva ou logicamente
(ZOURABICHVILI, apud ALLIEZ, 2000, 354).
- em busca da diferença ética
Num determinado momento de suas pesquisas, depois de publicar o primeiro
volume da História da Sexualidade, Foucault se volta para o mundo grego, onde encontra
outros modos de constituição da subjetividade. Vale observar que ele se volta para o
passado, não como um historiador cioso de encontrar os fatos históricos, e sim como um
filósofo que visa a construção de outros olhares e de conceitos úteis para enfrentar o seu
próprio tempo. Aliás, é ele mesmo quem diz que imagina a figura do filósofo semelhante
a de um jornalista atento para o presente, crítico das relações de poder, ao mesmo tempo
em que valoriza em Sócrates ser aquele que cuida para que cada um cuide de si mesmo
na cidade.
Em sua vertente crítica, (...) a filosofia é justamente aquilo que coloca em
questão todos os fenômenos de dominação em qualquer nível e sob qualquer
forma que se apresenta – política, econômica, sexual, institucional. Esta função
crítica da filosofia deriva, até certo ponto, do imperativo socrático: ‘Cuida-te de
ti mesmo’, isto é: ‘Fonde-toi en liberté par la maîtrise de toi’ (FOUCAULT
apud RABINOW, 1995, 233).
A questão da possibilidade de construção de um eu ético está na ordem de suas
principais preocupações, e leva-o, então, à pesquisa histórica da Antiguidade clássica.
Seu objetivo é claro e preciso: busca o conhecimento histórico do passado naquilo que
possa potencializar o presente na problematização da subjetividade e do poder, assim
como no destronamento das formas hegemônicas de constituição de si. Não se trata da
importação de antigos modelos de conduta, mas da importância da desnaturalização e da
inspiração para a criação de novos possíveis, na atualidade. Lembrando Deleuze:
Embora Foucault remonte aos gregos, o que lhe interessa em O uso dos
Prazeres, bem como em seus outros livros, é o que se passa, o que somos e
fazemos hoje: próxima ou longíngua, uma formação histórica só é analisada
pela sua diferença conosco, e para delimitar essa diferença. Nós nos damos
um corpo, mas qual é a diferença com o corpo grego, a carne cristã? A
subjetivação é a produção dos modos de existência ou estilos de vida
(DELEUZE, 1996,142).
No mundo greco-romano, Foucault encontra uma importante experiência da
liberdade nas práticas de si e, em especial, no “cuidado de si”, - que é também um
cuidado com o outro -, e que lhe serve de referência para contrapor-se às tecnologias
disciplinarizantes desenvolvidas na Modernidade, ou, mais recentemente para nós, às
novas formas de bioascese difundidas na “sociedade de controle” (DELEUZE,
1996,219). Nesta, a captura da subjetividade se sofistica enormemente, mas estamos
muito longe da tradição histórica: entre outras dimensões, todo um discurso médico-
fisicalista estimula o indivíduo a observar as regras de higiene, os regimes alimentares, o
fitness e o body-building, e um proliferante arsenal de cuidados estéticos corporais.
Afinal, o que importa é a aparência. É Francisco Ortega quem explica:
As modernas asceses corporais, as bioasceses, reproduzem no foco subjetivo
as regras da biossociabilidade, enfatizando-se os procedimentos de cuidados
corporais, médicos, higiênicos e estéticos na construção das identidades
pessoais, das bioidentidades. Trata-se da formação de um sujeito que se
autocontrola, auto-vigia e auto-governa. (...) (ORTEGA, 2008, 32).
As “estéticas da existência”, ou “artes do viver” do mundo grego-romano, ao
contrário das bioasceses contemporâneas, fornecem a Foucault um modelo de governo
ético, em que as técnicas paidéticas não se transformam em ortopedia, em que os
educadores não se transformam em líderes, e em que o ideal de formação do cidadão não
aponta para a criação de indivíduos submissos, ensinados a obedecer e, portanto, a
renunciar a si mesmos. Trata-se de um moral, ou de várias morais, como mostra ele, que
procuram formar o indivíduo autônomo, capaz de gerir a si mesmo e, logo, a própria
cidade. Segundo Foucault,
Entre os gregos e romanos – entre os gregos, sobretudo – para conduzir-se bem,
para praticar a liberdade como se deve, era preciso ocupar-se consigo mesmo,
cuidar-se de si mesmo, ao mesmo tempo para conhecer-se (...) e para formar-se,
para superar-se, para dominar em si os apetites que arriscariam levar-nos. A
liberdade individual era, para os gregos, algo de muito importante –
contrariamente ao que diz esse lugar comum, mais ou menos derivado de Hegel,
segundo o qual a liberdade do indivíduo não teria nenhuma importância diante
da bela totalidade da cidade: não ser escravo (de uma outra cidade, daqueles
que vos cercam, daqueles que vos governam, das suas próprias paixões) era um
tema absolutamente fundamental (...) tem-se aí toda uma ética que gira em torno
do cuidado de si (...) (FOUCAULT, 2001ª,1531).
Foucault destaca, nesse trabalho, a historicidade das experiências subjetivas e
sexuais dos antigos, diferenciando-as claramente de outras épocas. Assim, os prazeres
pagãos diferem dos prazeres da “carne” cristã, assim como de outros discursos, como o
do sexo moderno, e talvez, diz Veyne, do do “gênero” pós-moderno, com o feminismo e
os direitos sexuais (VEYNE, 2008, 20). Ao invés de uma história do “amor”, como algo
abstrato e universal, a pesquisa histórica e o método empírico de Foucault dá visibilidade
a diferentes práticas e objetos. Na repetição, a diferença: na Grécia antiga, o Don Juan se
transforma em efeminado, pois é vítima dos prazeres, ao invés de ter controle sobre o
modo de experimentá-los.
- criações libertárias: a conversão a si
Examinando a “cultura de si” dos antigos, Foucault destaca a importância que
assume o preceito délfico “cuida-te de ti mesmo”, em relação ao famoso “conhece-te a ti
mesmo”. Para Sócrates, está em jogo a efetivação de um trabalho constante sobre si, a
realização de exercícios espirituais, mais do que a descoberta de um eu alojado no fundo
de si mesmo. No “cuidado de si” do mundo greco-romano, era fundamental a
preocupação consigo mesmo, um trabalho de “conversão a si”, de voltar-se sobre si
mesmo, a partir de todo um trabalho ético-estético de elaboração pessoal. Segundo
Foucault, o princípio do cuidado de si não era apenas condição de acesso à vida
filosófica, mas tornou-se o princípio de toda conduta racional, de toda forma de vida ativa
que se orientasse pelo princípio da racionalidade moral. Diz ele, “A incitação a ocupar-
se de si mesmo tomou, ao longo de todo o pensamento helenístico e romano, uma
extensão tão grande que se tornou, creio, um verdadeiro fenômeno cultural de
conjunto.”
Em nossos dias, ocupar-se de si mesmo é interpretado de modo suspeito, como
forma de individualismo exacerbado, sinal de vaidade ou egoísmo, em oposição aos
interesses públicos, ao bem comum. Já para os antigos gregos e romanos, era
imprescindível saber cuidar de si, ter o governo de si para a relação libertária também
com o outro. Contudo, com o cristianismo, a salvação pessoal passará a ser obtida pela
renúncia de si, pela negação dos próprios desejos, pelo sacrifício pessoal. Para aqueles,
ao contrário, tratava-se de dar-se uma forma estilizada de vida, o que implicava saber
“usar os prazeres”, para se chegar à vida temperante, equilibrada.
Nessa cultura do cuidado de si, as práticas de conversão a si aparecem ao lado das
práticas parresiastas, como momentos delicados e fundamentais da constituição da
subjetividade ética. Assim, ao contrário da conversão a si pregada pelo discurso militante
do passado, fortemente calcado nas formas do retorno a si instituídas pelo cristianismo,
Foucault destaca outras possibilidades históricas na experiência de si, das quais valoriza a
experiência helenística. Explico com mais vagar.
No cristianismo (sécs. III e IV), a conversão cristã se aproxima da metanóia, que
em grego designa a penitência e uma mudança radical do espírito. Segundo Foucault,
esta é súbita e exige uma passagem da obscuridade à luz, exige ruptura, produz uma cisão
do eu – “o eu que se converte é um eu que renunciou a si mesmo”; morrer para si,
renunciar a si, renascer em outro eu e sob nova forma são as formas dessa experiência
(FOUCAULT, 2004b, 260)
Na Grécia antiga, com Platão, trata-se de uma outra experiência do retorno a si. A
conversão a si implica um desviar-se das aparências. Fazer um retorno a si implica
reconhecer a própria ignorância e a necessidade de ter cuidados consigo, de conhecer-se e
transformar-se, “fazer ato de reminiscência” – como forma de conhecimento, retornar à
pátria ontológica, às origens, à casa, à verdade e ao Ser. Visa libertar-se pelo acesso à
verdade, desprendendo-se do corpo-prisão e deste mundo.
Já na cultura de si helenística e romana, a conversão a si é muito diferente das
anteriores, como explica Foucault: esta não se move no eixo de uma oposição entre este
mundo e um outro. Consiste em nos deslocarmos do que não depende de nós ao que
depende de nós; trata-se de uma liberação no interior deste eixo de imanência, liberação
em relação a tudo aquilo que não dominamos, para alcançarmos o que podemos dominar.
Portanto, não é uma liberação em relação ao corpo, não é uma cisão em relação ao corpo,
mas na adequação de si para consigo que a conversão se faz. O conhecimento é
importante, mas não decisivo da conversão como em Platão. Aqui, a conversão é uma
ascese, uma prática, um exercício, um trabalho sobre si (FOUCAULT, 2004b, 268 e
segtes).
Na conversão helenística e romana, nessa cultura de si, portanto, não há ruptura
subjetiva, como no modelo cristão. Segundo Foucault, Sêneca refere-se a uma
transfiguração de si, a uma mutação de si mesmo. Se há ruptura, não é no interior do eu
que ela se produz, explica ele. Pode ser em torno do que cerca o eu, do que o torna
escravo, dependente e cerceado – mas não se trata de uma ruptura de si para consigo.
Longe da imagem do giro do “pião”, cujo movimento se origina por impulso
exterior, esse trabalho sobre si visa fortalecer o indivíduo como um atleta, que se dá os
exercícios necessários no tempo e no modo que lhe convém. Mas aqui, a técnica de si
deixa de ser pedagogia, algo que se oferece aos jovens quando estão prestes a atingir
outra fase da vida. Esse trabalho é de fluxo contínuo, um trabalho constante de si para
consigo, que não visa à cidade, nem ao outro, mas toma a si mesmo como meta, pois visa
a construção de um eu ético.
- as práticas parresiastas
Nesse trabalho de escultura de si, ganha destaque outro conceito que Foucault
encontra entre as técnicas educativas dos antigos gregos: a parrésia, ou o franco falar, o
falar corajosamente que assume riscos e que pode se dar em contextos públicos e
privados. Fundamentalmente, a parrésia opõe-se à retórica. O parresiasta é aquele que
tem “a coragem da verdade”, é aquele que se arrisca, que não teme correr riscos, que ousa
dizer a verdade acerca das instituições e decisões políticas diante dos poderosos, sem
temer o rei. Ao mesmo tempo, a prática parresiasta está distante da confissão, dessa
relação com a verdade que Foucault entende como um importante dispositivo de controle
do indivíduo e de instauração da obediência. Para ele, quanto mais o indivíduo é incitado
a exprimir o seu eu mais profundo e a revelar as suas emoções mais íntimas, sobretudo
pela confissão, tanto mais fica submetido a essa forma de poder denominada de “governo
por individualização”, que se exerce na vida cotidiana, vinculando-o à sua identidade
(GROS, apud RAGO, 2006). Finalmente, o parresiasta também se distancia do “militante
iluminado”, aquele que se sente em condições de impor ao outro o que acredita ser “a”
verdade.
Trata-se da construção de uma “subjetividade expressiva”, segundo Nancy
Luxon, em oposição ao sujeito dividido e alienado para Marx, ou neurótico e obsessivo
para Freud (LUXON, 2008, 390). Ao contrário deste, que vai para dentro em busca dos
segredos do desejo, as práticas parresiastas de auto-formação se detêm na superfície da
atividade. Primeiro, trata-se de perceber-se a si mesmo, de prestar atenção aos próprios
movimentos e respostas, de escutar-se. Contudo, o conhecimento de que aqui se fala não
implica uma hermenêutica do sujeito, uma conversão a si nem no estilo platônico, com
base na reminiscência do que a alma conheceu em outros tempos, nem no modelo cristão,
que investe na recusa de quem se é, na crítica aos próprios desejos, na culpabilização do
prazer e na renúncia a si, como já dissemos. As práticas da parrésia, para fornecerem um
modelo de auto-governo ético, devem ser capazes de formar sujeitos coerentes, no dizer e
no agir, sem que suas relações sejam disciplinares ou de constrangimento, sem
objetivação dos indivíduos num “corpo de conhecimentos”, sem que as técnicas
paidéticas da parrésia se transformem em ortopedia. Aí, Foucault enfatiza as atividades
que estruturam as relações individuais com outros. Diz Luxon:
Enquanto as imagens espaciais do Panóptico organizam os corpos projetando
uma ordem espacial sobre eles, a parrésia mantêm os indivíduos como são
definidos pela particularidade da elaboração e ritmo que dão às suas práticas. As
práticas da parrésia educam o indivíduo para uma “disposição à firmeza”. Como
atingir esse auto-domínio que não é ortopédico? Não busca a verdade de si na
interioridade, mas examina os próprios passos para adquirir uma firmeza de
orientação. Diferentes das tecnologias confessionais, as técnicas parresiastas
ensinam duas coisas: ensinam o indivíduo a estabelecer seu padrão de valores e
então a começar o trabalho paciente de mover-se entre esse padrão e o mundo
em que vive. Nada de criação de um código ético universal que deva ser
internalizado como consciência, mas criação de relações consigo e com os
outros que forneçam um contexto imediato de reconhecimento desses valores
em uma comunidade (LUXON, 2008, 388).
É importante salientar, ainda, que esse cuidado de si do paganismo, em suas
diferentes modalidades, não consiste em uma atividade solitária, não se destina a separar
o indivíduo da sociedade; ao contrário, supõe as relações sociais, pois ocorre nos marcos
da vida social e comunitária. Diz Foucault, “o cuidado de si (...) aparece como uma
intensificação das relações sociais.” Não se trata, portanto, de renunciar ao mundo e aos
outros, mas de modular diferentemente a relação com os outros pelo cuidado de si.
- subjetividade, feminismo e ética
Gostaria agora de perguntar pelos aportes da teoria e da experiência feminista a
esse debate. A crítica feminista foi radical ao buscar a liberação das formas de sujeição
impostas às mulheres pelo patriarcalismo e pela cultura de consumo da sociedade de
massas e se, num primeiro momento, o corpo foi negado como estratégia mesma dessa
recusa das normatizações, desde os anos oitenta, no Brasil principalmente, percebe-se
uma mutação nessas atitudes e a busca de novos lugares para o feminino. As mulheres
voltaram sobre si mesmas, num movimento bastante diferente do que se poderia
imaginar, não mais se espelhando no olhar médico do passado, mas a partir de suas
próprias indagações, questionamentos e subversões. Com muitas suspeitas, dúvidas e
inquietações.
Essa busca estimulou a emergência de outras formas de feminilidade, de novas
concepções de sexualização, beleza e sedução, inclusive corporais, que poderiam
aproximar-se das “artes da existência”, isto é, técnicas de constituição estilizada da
própria subjetividade desenvolvidas a partir das práticas de liberdade. Embora não seja
possível definir um sujeito único do feminismo, pode-se afirmar que as feministas, de
modo geral, estão preocupadas tanto com o refinamento do espírito, quanto com a beleza
corporal, a saúde, a agilidade, a elegância e a moda, na construção de si e de uma nova
ordem social e sexual. Mostrando que poderiam existir modos diferentes de organizar o
espaço, outras “artes de fazer” no cotidiano, da produção científica ou artística à
formulação das políticas públicas, das relações sexuais aos modos de subjetivação, a
crítica feminista evidenciou que múltiplas respostas são sempre possíveis para os
problemas que enfrentamos e que outras perguntas deveriam ser colocadas a partir de
uma perspectiva feminista, isto é, a partir de um pensamento que singulariza, subverte e
diz de onde fala.
É no contexto dessas reflexões, que a feminista deleuziana Rosi Braidotti propõe
a figuração de subjetividades nômades:
Falando como uma mulher feminista branca, anti-racista, pós-estruturalista,
européia, eu apoio figurações de subjetividade nômade, para agir como uma
desconstrução permanente do falologocentrismo eurocêntrico. Consciência
nômade é o inimigo dentro desta lógica (BRADITOTTI, 2002).
É nessa lógica que as discussões sobre as relações de gênero ganham sentido,
como um modo de escapar da filosofia do sujeito e das armadilhas da afirmação das
identidades, para entrar num novo campo epistemológico e político, capaz de se abrir
para a formulação de novas perguntas e respostas, ou antes, para criar novos modos de
pensar e existir. E é ainda nesse sentido, que o diálogo com Foucault e Deleuze, entre
outros filósofos contemporâneos, foi e é enriquecedor para o feminismo, pela profunda
crítica que aqueles lançam ao pensamento cêntrico e à ciência ocidental, assim como
pelas saídas que apontam. Vale lembrar que, para Deleuze, o devir é essencialmente
feminino, um “devir-mulher”, que aliás também importa às mulheres, que não nascem
prontas, como se sabe, e que também tem de “devir-mulher”. Segundo ele, “o homem se
apresenta como uma forma de expressão dominante que pretende impor-se a toda
matéria, enquanto a mulher, o animal, a molécula tem um componente de fuga que
escapa a toda formalização” (DELEUZE, 1997, 11).
Nessa direção, perguntando “o que o feminismo tem a oferecer ao futuro do
pensamento? O feminismo teria um futuro no pensamento?”, Elisabeth Grosz afirma a
necessidade de reconceitualização do que o feminismo entende por subjetividade, já que
discorda que se trata de reconhecer identidades, o que seria defender uma política servil:
O feminismo (...) é a luta para tornar mais móveis, fluidos e transformáveis, os
meios pelos quais o sujeito feminino é produzido e representado. É a luta para
se produzir um futuro, no qual as forças se alinham de maneiras
fundamentalmente diferentes do passado e do presente. Essa luta não é uma luta
de sujeitos para serem reconhecidos e valorizados, para serem ou serem vistos,
para serem o que eles são, mas uma luta para mobilizar e transformar a posição
das mulheres, o alinhamento das forças que constituem aquela ‘identidade’ e
‘posição’, aquela estratificação que se estabiliza como um lugar e uma
identidade (GROSZ, 2002).
Portanto, o feminismo tem uma dimensão política profundamente crítica e
libertadora, que não pode ser negligenciada, afinal, têm sido enormes as suas
contribuições, especialmente ao questionar as formas e as práticas masculinas de um
mundo que, misógino, é opressivo para as mulheres, e ao mostrar a maneira pela qual a
ciência fundamentou essas concepções, com seus conceitos sedentários, mascarando sua
realidade de gênero.
O feminismo trouxe novas perspectivas, juntamente com novas imagens do
pensamento, ao revelar que o mundo poderia ser outro, isto é, feminino e filógino, e que
as mulheres não são apenas sistemas reprodutivos passivos, nem natureza transbordante e
incontrolável ameaçando destruir a cultura, com seu desejo ninfomaníaco e selvagem,
como sugerem várias peças e filmes dos inícios do século XX.
Deixou claro que as feministas são capazes de inventar novos mundos, organizar
de modo não-elitista, de dar respostas diferentes das já conhecidas e que não satisfazem
apenas a alguns setores sociais e sexuais. Mostrou que as mulheres podem criar novas
ciências, novas formas de produção de conhecimento, - as epistemologias feministas,
transversais -, pois estão em todas as classes e grupos sociais, orientadas por agendas
feministas, como observa Sandra Harding (HARDING, 1991).
Finalmente, esse movimento não visou apenas o benefício das mulheres, pois
atingiu e desestabilizou também a solidez da identidade masculina do guerreiro,
valorizada, desde o século XIX, em oposição ao modelo aristocrático de masculinidade
da “sociedade de corte”, e reforçada pelo sucesso de Tarzan, desde as primeiras décadas
do XX. Expondo a unilateralidade e limitação dessa identidade masculina, que exclui
tudo o que é considerado culturalmente feminino, como as emoções, os sentimentos, a
fragilidade e a possibilidade de experiências e vivências mais reais, porque mais
integradas psiquicamente, forçou a busca de novas formas de invenção de si também para
os homens. Como afirma aquela autora:
as mulheres não são as agentes exclusivas do conhecimento feminista. O
pensamento feminista deve fundamentar suas análises críticas da natureza e das
relações sociais no âmbito das vidas das mulheres. Entretanto, os homens
também precisam aprender como fazer o mesmo a partir das suas condições
históricas e sociais particulares, agindo como homens traidores da supremacia
masculina e das relações de gênero convencionais (HARDING,1991, 311).
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