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d - Vaghetti, Andre Luis Do Amaral d - Vaghetti, Andre Luis Do Amaral d
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ANDR LUIS DO AMARAL VAGHETTI
A REPRESENTAO DA MULHER NA LRICA CAMONIANA
Dissertao apresentada ao Curso de Ps-Graduao em Letras, Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paran, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Letras. Orientadora: Prof.a Dr.a Anamaria Filizola
C U R I T I B A
2 0 0 2
UFPR UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN SETOR DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES COORDENAO DO CURSO DE PS GRADUAO EM LETRAS
P A R E C E R
Defesa de dissertao do mestrando ANDR LUS DO AMARAL VAGHETTI, para obteno do ttulo de Mestre em Letras.
Os abaixo assinados Anamaria Filizola, Patrcia da Silva Cardoso e Benito Martinez Rodriguez argram, nesta data, o candidato, o qual apresentou a dissertao:
"A REPRESENTAO DA MULHER NA LRICA CAMONIANA"
Procedida a argio segundo o protocolo aprovado pelo Colegiado do Curso, a Banca de parecer que o candidato est apto ao ttulo de Mestre em Letras, tendo merecido os conceitos abaixo:
Banca Assinatura Conceito
Anamaria Filizola (VX.ouuJI^jll^O e _
Patricia da Silva Cardoso - U I
Benito Martinez Rodriguez
Curitiba, 09 de abril de 2002.
Prof. Jos/Brges Neto Cqfofdenador
II
Agradecimentos
Agradeo a meus pais, William e Therezinha, pelo amor e dedicao que
ofereceram-me durante suas vidas. A minha amada esposa, Renata, cuja fora e
determinao tornaram possvel a realizao deste trabalho. Em especial, agradeo a minha
orientadora, Prof. Dr*. Anamaria Filizola, pois sem seu acompanhamento aos estudos e
reviso dos trabalhos, nada poderia ter sido feito. Enfim, a todos que, direta ou
indiretamente, contriburam para a realizao deste trabalho. Obrigado!
III
Sumrio
RESUMO IV
ABSTRACT V
INTRODUO Ol
I - AS POTICAS DO RENASCIMENTO EM PORTUGAL 13
H - A TRADIO MEDIEVAL E A REPRESENTAO DA MULHER NA POESIA DE MEDIDA VELHA DE LUIS DE CAMES 29
2.1 - A TRADIO LITERRIA PENINSULAR. 30
2.3 - O AMOR CORTS E O AMOR PLATNICO 42
ffl - A REPRESENTAO AO ESTILO CLSSICO E A INFLUNCIA PETRARQUISTA 71
CONSIDERAES FINAIS 93
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 98
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA. 100
IV
Resumo
Cames um tpico poeta de seu tempo, ele variado e mltiplo como o sculo XVI, mas sem tirar, de uma vez, os ps da Idade Mdia. Em sua obra, coexistem tradio e inovao, saber letrado e experincia vivida, mitologia e cristianismo, alegria e angstia, paixo carnal e idealismo amoroso. O poeta lembra a existncia breve e atormentada do homem. A obra lrica revela, de um lado, a influncia da tradio popular da Pennsula Ibrica e, de outro, a influncia de autores da Antigidade, como Ovidio, Horcio, Virglio, etc., e dos humanistas, como os italianos Petrarca e Sann azaro e os espanhis, Boscn e Garcilaso. A presena marcante da tradio potica peninsular, em Cames, evidencia-se nas redondilhas, com seu humor, sua linguagem coloquial e seu realismo na representao de dramas sentimentais, retomando e enriquecendo a poesia do Cancioneiro Geral, na representao das tpicas das cantigas de amor e de amigo. A densidade da poesia lrica camoniana revela-se plenamente nos textos de inspirao renascentista em medida nova - nos sonetos, odes, canes, clogas, etc. - a est expressa sua constante reflexo sobre a vida humana, a anlise do contraditrio mundo dos sentimentos, principalmente o amor, o qual tem a manifestao platnica. Embora, se possa reconhecer as diversas influncias recebidas por Cames, em sua obra lrica, no foi o poeta um simples imitador ou reprodutor de modelos, pois foi capaz de desenvolver, de modo criativo, temas comuns aos poetas de seu tempo, e at anteriores. Das caractersticas da poesia lrica camoniana, destacamos a viso idealizada da mulher, que, por influncia, de Petrarca e do Neoplatonismo em circulao na poca, vista, diferentemente das redondilhas por exemplo, como um ser superior, encarnao, no mundo terreno do Amor, para representar o Amor Absoluto, que purificado e livre das paixes carnais e cuja essncia reside no mundo eterno e transcendental; da a atitude de submisso e enlevo em relao mulher. Entretanto, isso no impede que Cames fale da atrao que o amor fsico exerce sobre ele. Coexistindo, portanto, as duas concepes de Amor na lrica camoniana, que tem sua representao desenvolvida a partir da figura da mulher.
Palavras-chave: Lus Vaz de Cames; poesia lrica; mulher; representao.
V
Abstract
Cames is a typical poet of his time; he is miscellaneous and multiple like the 16th. Century, but he did not give his feet of the Meddle Age completely. There are in his work, in the same time, tradition and innovation, scholar culture and vivid experience, mythology and christianise, happiness and misery, passion and lovely idealism. The Poet remembers the brief and stricken existence of the man. The lyrical work reveals the influence of the popular tradition of the Iberian Peninsula. On the other hand, it reveals the influence of the authors of the Antiquity like Ovidio, Horrio, Virgilio, etc, and the influence of the humanists like the Italians Petrarca and Sannazaro, or the Spanish Boscan and Garcillaso. The tradition of the poetic peninsular has the main mark presented in the old measure, with its humour, citizen language, and its realism to represent the sentimental dramas. So, and in the same time which it regained and became rich the topics of the love and friend chansons' of the poetry Cancioneiro Geral's. The density of the lyric poetry is showed fully in the texts that have the renaissance inspiration in new measure, as the sonnets, odes, chansons, eclogues, etc. In this texts is expressed the constant reflection about the human life, the contradictory analyse of feelings world's, mainly the love that has the platonic manifestation. It is possible to recognise the various influences in the Cames' lyrical work. However, the Poet was not a simple imitator or re-maker of the models, he was able to development, in a creative way, commons themes of the contemporary poets and so before this. In the lyrical poetry, we detached the ideal vision of the woman like a superior form, as influence of Petrarca and the neo-platonic in circulation in this the period, a re-fleshed in the overland world to present the absolute Love, that is purified and free of the fleshly passions and whose essence is in the eternal and transcendental world. Because of this, there is an attitude of the submission and devotion towards woman. However, this fact, do not arrest Cames to talk about the physical love and the attraction exerted over him. Therefore, there are two conceptions about the Love that has development the representation in the woman's figure.
Key-words: Lus Vaz de Cames; lyric poetry; woman; representation.
Introduo
Este trabalho pesquisa na obra lrica de Luis Vaz de Cames (15257-1580) o que diz
respeito s formas e os meios que utilizou para representar poeticamente as mulheres e sob que
influncias filosficas realizou tal representao. Nesta pesquisa, enfatiza-se a discusso quanto s
formas poticas cultivadas por Cames, buscando especificamente suas particularidades; assim
como, as tpicas e meios retricos que utilizou para representar a figura feminina em sua obra
lrica.
So cotejados os poemas camonianos que sofreram, direta ou indiretamente, influncia
da tradio potica peninsular, da potica Clssica ou do Renascimento; seja esta influncia atravs
da recuperao de temas e motivos, das formas cultivadas ou de ensinamento filosfico. Esta
anlise se d com o intuito de verificar em que medida Lus de Cames, ao mesmo tempo em que
se utiliza de uma tradio literria peninsular, acompanha, como homem de seu tempo, as
transformaes e influncias renascentistas trazidas da Itlia para Portugal por S de Miranda em
1527.
Busca-se, atravs de um nmero especfico de poemas, demonstrar a representao da
mulher na obra lrica camoniana em medida velha, sob a influncia da tradio e, em medida nova,
advinda da potica Clssica e do Renascimento. Nesta demonstrao, verifica-se tambm dois
estilos, aos quais o professor A.J. Saraiva denomina "engenhoso", relacionado aos de medida
velha, e "clssico", de influncia italiana em medida nova:
E fcil reconhecermos na obra potica de Cames dois estilos, no s diferentes mas talvez at opostos: um, o estilo das redondilhas e de alguns sonetos, na tradio do Cancioneiro Geral; o outro, o estilo de inspirao latina e italiana de muitos dos outros sonetos e das composies hendecasslabas maiores.1
Entretanto, necessrio notar que na obra lrica do poeta portugus h todo um
entendimento filosfico do qual o poeta era informado, como todo homem culto de seu tempo - o
1 SARAIVA, Antnio Jos. Literatura portuguesa. Lisboa: [s/n], 1966. p.80. v. 1.
2
neoplatonismo. Ser principalmente sob este fundamento filosfico que representar a mulher em
sua obra lrica.
Especificamente, trata-se primeiramente da representao da mulher na lrica
camoniana em seus referentes literrios mais prximos da tradio potica em Portugal, dos quais
temos conhecimento atravs do Cancioneiro Geral (1516), de Garcia de Resende (14707-1539),
por se encontrar compilado, nessa obra, boa mostra do que foi produzido na pennsula ibrica do
sculo XIV ao comeo do XVI. Em um segundo momento, trata-se da influncia italiana que se
percebe principalmente na introduo dos novos metros, como por exemplo o decasslabo, e de
formas poticas, como o soneto, a ode, a cloga, entre outras. Bem como na divulgao dos
fundamentos do Renascimento, do neoplatonismo e do petrarquismo desenvolvidos na Itlia.
Com estes referentes que se analisa, primeiramente, a figura feminina representada
por Lus de Cames nos moldes da tradio, ao estilo dos trovadores, aproveitando temas, motivos
e os recursos retricos no desenvolvimento gil e gracioso, e por vezes irnico, da caracterizao
da Senhora; representao lrica esta sempre sob a determinao do amor-corts e do sofrimento
lrico decorrente de sua irrealizao. Deve-se atentar tambm para o tratamento que o poeta
portugus d palavra, sublevando-a muito alm do preciosismo verbal daqueles antigos
trovadores, em uma nova dimenso de significado. Por outro turno, est desenvolvida a
demonstrao da influncia italiana, em especial do neoplatonismo petrarquista. Sob esta
influncia, Cames ir representar, da mesma forma idealizada, a mulher atravs de caractersticas
fsicas e psicolgicas que se realizam esteticamente atravs do entendimento que o eu-lrico tem do
Amor em suas vicissitudes. Nestas novas formas poticas, nota-se outra caracterstica fundamental
que faz parte da conveno potica clssica: a referncia mitolgica. Cames utiliza-a para atingir
a elevao e o encarecimento das caractersticas da mulher. Nota-se a transformao lrica da
mulher em musa ou em deusa e a transposio das caractersticas dessas para aquela -
Diana/castidade, Vnus/beleza, Minerva/sabedoria, etc.
Assim, pode ser verificado, atravs da representao da mulher, algumas das
caratersticas da obra lrica do Poeta em suas duas distines principais: em medida velha e em
medida nova. O que demonstrado, analisando como representou a mulher - objeto do principal
tema de sua obra lrica: o Amor - e verificando os meios e o entendimento que o influenciaram
para desenvolver tal representao.
J
Esta representao das pessoas, mais precisamente das mulheres (Descriptio puelae), j
era teorizada e descrita pelos filsofos da Antigidade para ser aplicada nas produes artsticas.
Ccero (106-43 a.C), no De Inventione, e Horcio (sc. I, a.C), na Ars Potica, por exemplo,
talvez tenham sido os primeiros a descrever a forma como deveriam ser representados os seres
humanos na literatura, alm de teorizar o fazer potico da Antigidade.
Segundo Segismundo Spina2 , no sculo XII, Mathieu de Vendome, em sua Ars
Versificatoria, trabalha a tcnica da representao descrevendo a forma como deveriam ser
expostas as vrias partes do corpo e as disposies seqenciais em que elas surgiriam dentro da
obra de arte. Esta proposio determinava um sentido vertical e descendente como suposio,
talvez, a criao divina, ou seja, de cima para baixo.
Na lrica trovadoresca, percebe-se a ratificao dessa teoria da representao que foi,
freqentemente, utilizada pelos trovadores e influenciou os poetas dos sculos subseqentes; como
se nota na afirmao de Segismundo Spina sobre uma salutz ou salut d'amor, forma potica em
estilo epistolar de saudao a mulher, de Arnaut de Maruelh (1171-1190), que para o crtico :
Obra-prima de uma inspirao modesta (...) dos retratos mais completos que a poesia dos trovadores produziu. Os cnones retricos da descriptio puelae, previsto nas artes poticas - e pela de Methieu de Vendme em particular -, foram observados com fidelidade. (...) A viso onrica da mulher amada,(...) tornar-se- motivo bem explorado pelos poetas lricos europeus dos sculos seguintes.3
Pode-se perceber na poesia em circulao nesse perodo uma representao em
conformidade com os modelos estabelecidos pelos tericos. Nos cancioneiros, as representaes
partiam da cabea e eram descritos os cabelos, olhos, boca e terminavam no busto, raramente
passando alm deste ponto do corpo. Na cantiga do trovador Arnaut de Maruelh (1171-1190), l-se
a representao das caractersticas da damme scms mercy, pelo crtico comentada:
Dama corts e instruda, afvel para com todos, disposta a todas as graas, nas aes, nas palavras e nos pensamentos: a cortesia, a beleza, a conversao amvel e a agradvel companhia, a cultura e o carter, o corpo gracioso e a cor suave, o belo sorriso, o mover amoroso dos olhos e os
2 Cf. SPINA, Segismundo. A descriptio puelae. Separata de: . Da idade mdia e outras idades. So Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1964. p. 113-117. 3 SPINA Segismundo. A lrica trovadoresca, So Paulo: EDUSP, 1972. p. 173.
4
demais encantos pessoais, as boas aes e as palavras confortadoras, dia e noite me do o que pensar. (...) Quando cuido pensar em coisas diferentes, de vs recebo um mensageiro corts, [que ] o meu corao, vosso hspede: ele vem de vs e traz-me lembrana a vossa gentil imagem, graciosa e alegre, vossos lindos cabelos ruivos, vossa testa mais branca que o lrio, vossos olhos matizados e ri sonhos, o nariz direito e bem talhado, a face fresca de cores, branca e mais rosada que a flor, boca pequena e dentes alvos, mais alvos que a prata polida, queixo, colo e peito branco como a neve e a espinha-branca, as mos brancas e belas, os dedos delgados e polidos, o porte formoso, onde nada existe que o desmerea, vossas palavras espirituosas, agradveis e boas, o trato gentil, a resposta franca, o belo semblante que me oferecestes pela primeira vez, quando aconteceu avistarmo-nos ambos os dois.4
Do excerto acima, pode-se depreender como foi transmitido o modelo da representao
feminina da poesia medieval aos sculos posteriores e que, especificamente, no Renascimento foi
sendo reorganizado, permanecendo somente os detalhes de verdadeira atitude espiritual e das
caractersticas de valores mais significativos psicologicamente da mulher, como nos atesta
Segismundo Spina, noutro ensaio:
Observe-se que o retrato feminino na poesia trovadoresca foi aos poucos fixando os elementos da parte superior da criatura, at acabar numa descrio do busto; Petrarca incumbiu-se dessa fixao e assim transmitiu para os poetas lricos do Renascimento. E no processo de sublimao da figura feminina, o retrato feminino foi-se depurando progressivamente, a ponto de, em Cames, s figurarem aqueles elementos plsticos que possuem implcito um valor espiritual. 5
Lus de Cames expressou, especialmente nas cantigas e vilancetes de medida velha,
fundamentados no amor corts, este tipo de representao das caractersticas da mulher derivada
dos modelos tradicionais desenvolvida com os temas dos cancioneiros, como poder ser percebido
em um vilancete ao mote: " Descala vai pera fonte..."6; onde tais caractersticas da donzela foram
aproveitadas em termos psicolgicos e representam algo mais em relao ao amor e a experincia
do eu-lrico, distinguindo-se da "aguarela auinhentista"7 do estilo clssico anterior, ou seja, de uma
4 MARUELH, Amaut. (1171-1190). Apud. SPINA, Segismundo. A lrica trovadoresca., p. 170 -171. 5 SPINA, Segismundo. A descriptio puelae. p. 114. 6 CAMES, Lus de. Lus de Cames - lrica completa. (Pref. e notas Maria de Lourdes Saraiva). Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1980. p. 85. v. 1. ' Cf. FERREIRA, Maria Ema Tarracha. Antologia literria comentada. Lous: Ulisseia, p.189. v. 2.
5
pura representao plstica no bem definida para a atribuio de significados aos qualificativos de
maneira a aumentar sua carga semntica.
Assim, o esteretipo convencional v-se reforado na mulher camoniana
principalmente nos olhos, janelas da alma pelos quais entram os reflexos do mundo visvel e por
onde sai a luz do invisvel; nos cabelos, com seu matiz dourado fazendo referncia ao ouro e sua
preciosidade, metaforizando a raridade da beleza da mulher; e nos gestos e maneiras delicadas,
sugerindo a elevao espiritual da mulher. Na representao da mulher na lrica camoniana, vem-
se expressas as caractersticas plsticas realmente significativas para a descrio da psique e do
amor do eu-lrico por sua musa em uma comunho de significados.
Estas caractersticas da mulher e seus significados aprofundam-se ainda mais nas
composies em medida nova, devido importncia dada aos conceitos neoplatnicos ao longo do
Renascimento. Lus de Cames, a seu tempo, adota as novas formas e os metros em franca
circulao, bem como assimila os temas e os motivos clssicos atravs da vida leitura dos gregos
e latinos, e do prprio Petrarca, com quem compartilhava com mo diurna e noturna o esprito do
neoplatonismo. Entretanto, o poeta portugus filtra o modelo italiano em circulao e, portanto,
tambm convencional, atravs do entendimento que lhe determinava a experincia. Isto tornou
possvel a transformao das caractersticas da mulher e do sentimento camoniano em relao ao
amor e, conseqentemente, ao seu objeto, em algo muito mais depurado e intenso.
Em Cames, diferentemente de Petrarca por exemplo, o conceito platnico do amor e
de sua realizao lrica atravs da mulher idealizada, que se percebe atravs de sua caracterizao,
desenvolvido atravs do antagonismo, e ao mesmo tempo da dicotoma, entre o amor carnal e o
espiritual. O primeiro, em que Eros incita os desejos do corpo e atormenta o esprito; e o segundo,
em que o Amor tende a depurar os sentidos, lanando-os para o inefvel. Assim, para o poeta
portugus, no basta somente a contemplao da mulher amada; mas sim, h o desejo de
transformar-se nela, na cousa amada. Este desejo, no se constitui de maneira simples, passando
por uma srie de transtornos e desencontros provocados pelo destino ou pela fortuna. Em outras
palavras, o amor camoniano dado o distanciamento do objeto amado faz com que na distncia mais
se apure, diferentemente de Petrarca, para o qual esse distanciamento justificado pela
necessidade de sofrer seus males para que os merea.
6
A distino entre as musas de Petrarca e Cames marcada pelo antagonismo dos dois
entendimentos do amor em relao quelas, um sensual e outro espiritual. Na lrica camoniana,
coexistem as duas concepes em intenso combate para a permanncia, sobrevivncia, ou ainda a
existncia de ambos, como atesta Maria Vitalina Leal de Matos:
(...) duas teorias, ambas de realizao plena e perfeita do desejo, embora por vias inteiramente antitticas, uma sensual, onde se afirma o esplendor da realizao ertica, outra espiritual [influncia petrarquista] que exige a sublimao e a depurao do instinto sensorial, e uma prtica da insatisfao, da iluso-desiluso e do desejo como forma invencvel de tirania. 8
Outra opinio muito significativa, a respeito deste antagonismo entre as duas formas de
amor existentes na obra lrica de Lus de Cames, tambm pode ser acolhida de Aguiar e Silva,
quando se refere ao amor e ao desejo:
Vnus e as exigncias dos sentidos esto presentes (...) na lrica de Cames, mas o importante e o significativo que representam o apetite e o desejo que tm de ser jugulados a fim de no polurem o amor autntico, que gerem o sofrimento, o pecado e a mgoa da culpa, que sejam tidos como suprema expresso do engano e da mentira.9
Pode ser percebido tambm que Lus de Cames cria seu prprio conceito de beleza a
partir do modelo divulgado por S de Miranda, em que podemos atribuir maior supremacia dos
sonetos de influncia petrarquista, como por exemplo, "Um mover de olhos brando e piedoso"10.
Nesse, dentre outros, pode ser depreendido o ideal de beleza camoniano definido nas mais variadas
representaes de suas musas - "vrias flamas em que variamente ardia"-, e que igualmente est
expresso nas redondilhas de "Sbolos rios que vo por Babilnia", onde o eu-lrico diz que sua
musa:
8 MATOS, Maria Vitalina Leal de. Apud: Poesia Urica - Lus de Cames. (Org, seleo e notas de Isabel Pascoal). Lisboa: Ulissia, 1984, p. 28. 9 AGUIAR E SILVA Vitor Manuel de. Maneirismo e Barroco na poesia lrica portuguesa. Coimbra: [s. a] , 1971. p. 212. 10 CAMES, Lus de. Op. cit., p. 77. v. 2.
7
E aquela humana figura, que c me pde alterar, no quem s' h-de buscar: raio da divina fermosuxa que s se deve amar.11
Este ideal de beleza, derivado do conceito platnico de beleza, buscado pelo poeta
portugus como a forma de um reflexo da "divina fermosura", em uma tpica tambm
desenvolvida por S de Miranda, que cantara assim sua musa:
Este retrato vosso o sinal ao longe do que sois, por desemparo destes olhos de c, porque um tam claro lume no pode ser vista mortal Quem tirou nunca o Sol por natural? Nem viu, se nuvens no fazem reparo.12
Esse soneto, de influncia petrarquista, referente ao incmodo em descrever um
"reflexo" da beleza da mulher, Fidelino de Figueiredo entende que "exprime o desespero de pintar
um modelo de suprema formosura, para o qual so escassos os recursos da sua poesia"13. Essa
mesma impossibilidade de representar o modelo expresso na alma do eu-lrico ser tambm
verificada em Lus de Cames; entretanto, nesse a soluo encontrada ser, por vezes, o apelo
mitolgico, derivado da conveno potica do Renascimento e recuperada dos clssicos antigos,
como forma de representar o inefvel.
Partindo da investigao do objeto inspirador, a mulher, dentro da lrica camoniana e
da sua representao, nota-se como j era definida desde a Idade Mdia certa idealizao tanto das
caractersticas fsicas, essas que eram na maioria das vezes difusas, como das caractersticas
psicolgicas da dama. Assim, de que maneira Lus de Cames seguiu os modelos expostos pelo
neoplatonismo italiano idealizando sua (ou suas?) musa e realizando-a esteticamente? Verifica-se
uIbid. , p. 273-288. v. 1. 12 MIRANDA, S de. A pud. FERREIRA, Maria Ema Tarracha. Op. cit., p. 17. 13 FIGUEIREDO, Fidelino de. A crtica literria em Portugal (da Renascena actualidade). Lisboa: s. n.], 1910. p. 126.
8
que o fez atravs dos conceitos de Idia e de Beleza platnica circulantes no Renascimento que
influenciaram sobremaneira as Rhymas.
Devido ao entendimento de idealizao proposto por Plato, ou seja, as "verdadeiras"
formas somente sendo existentes no mundo das Idias (mundo inteligvel) e as representaes do
mundo visvel meras cpias, pode-se aduzir, para o entendimento da lrica camoniana por este
prisma, tambm razes para a idealizao das caractersticas da mulher em suas realizaes
estticas. Assim, pode-se perceber que a idealizao camoniana reside na contemplao das idias
ou dos objetos inteligveis existentes dentro da alma do poeta, atravs da visualizao ou da
reminiscncia; pois, para Cames, a musa encontrava-se no pensamento, preexistente como idia,
onde o eu-lrico estava constantemente vendo e buscando o rosto que na alma vejo; nunca
perdendo a viso de sua inspirao potica, nem tampouco sanando sua dor lrica, cuja causa
residia do antagonismo, que dos contrrios se acrescenta, entre a realizao do desejo e a
espiritualizao do amor.
Atravs da questo das tpicas da poesia lrica camoniana pode ser melhor
exemplificada a influncia platnica na representao das caractersticas da mulher em seu sentido
construtivo. Vejamos, por exemplo, como constante a palavra olhos e o verbo ver, bem como
seus derivados e sinnimos, levando-nos a lembrar o papel indispensvel que desempenham tais
vocbulos na gnese e no desenvolvimento do amor, na referida filosofia; bem como, a luz que
representa a emanao do Bem Supremo at o esprito (alma), formando as idias e que buscam
representatividade no mundo visvel.
Outra recorrncia a tpica da alma e o corpo unidos de forma indissolvel, que
levam o homem a consider-lo como uma priso - para Cames o desterro - onde aquela vivia
enclausurada. Assim, era entendido, no Renascimento, via neoplatonismo, a determinao de que a
alma, mesmo cativa, tinha a lembrana (reminiscncia) do Bem Supremo, quando era livre. Dessa
lembrana, surge o desejo e a esperana que so, ao mesmo tempo, causa e efeito das conturbaes
psicolgicas e amorosas existentes no homem. Em Cames, tal pode ser verificado na
representao lrica de uma vida onde s existiram mudanas e desencontros, em um estado de
desengano e desesperana em relao s expectativas incertas do futuro. Est claro que o eu-lrico
camoniano "Errei[ou] todo o discurso dos meus[seus] anos/ Dei[eu] causa a que a Fortuna
9
castigasse/ As minhas[suas] mal fundadas esperanas"//14. Como soluo a esses problemas, s
restava tentar fazer das belezas criadas as reminiscncias da Beleza Absoluta; e ento, esforar-se
para alcan-las.
Portanto, a figura que nos representa da mulher amada, inatingvel, est no refugio da
alma, imaculada e guardada de todos os desconcertos do mundo, donde:
(...) aquela cuja lembrana e cujo claro gesto n' alma somente vejo - porque nela est em essncia, puro e manifesto,15
Temos uma idia puramente platnica, pois a beleza criada reminiscncia da Beleza
Absoluta; donde deduz-se que a musa camoniana reside plenamente na alma, no simplesmente em
reflexo, mas fruida e compartilhando da substncia eterna; assim, no o objeto que se espelha na
alma, e sim, o amor que se reflete no objeto amado. Essa a mais pura criao do amor platnico,
o qual s pode ser visto pela introspeco da alma atravs da reminiscncia.
Cames foi influenciado profundamente na composio de sua obra lrica pelos
conceitos platnicos de Amor e Beleza que circulavam francamente no sculo XVI atravs de
textos neoplatnicos. Assim por analogia, pode ser deduzido que a figura feminina representada
nos sonetos, por exemplo, tambm estava sob as mesmas influncias e era idealizada.
A representao da mulher na lrica camoniana pode parecer, em um primeiro
momento, um tanto quanto vaga devido ao modo como desenvolvida pelo eu-lrico, pois as
caractersticas fsicas da mulher, muitas delas derivadas das tpicas poticas e que muito mais
sugerem estados psquicos e morais do que propriamente atributos fsicos, no nos permitem
tentarmos associ-las, optando-se pela anlise das caractersticas puramente fsicas da mulher
descrita, a um "retrato plstico", Sob este ponto de vista, Hernani Cidade opina no sentido de que:
Retrato? - Ser um termo demasiado ambicioso. (...) Os cancioneiros, que se contentavam com dois traos - a bem talhada, a do corpo delgado, a do bom parecer (...) Petrarca, esse, no dera de Laura mais do que uma silhueta
14 CAMES, Lus de. Soneto: Erros meus, m fortuna, amor ardente. Op. cit., p. 164. v. 2. 15 CAMES, Lus de. Oitavas: Quem pode ser no mundo to quieto. Op. cit., p. 215. v. 3.
10
hierrquica, pintada com o que a Natureza lhe oferecia de mais nobre como cor e relevo. (...) Cames lhe vai no encalo.16
Entretanto, tomando-se como ponto de partida as influncias petrarquistas italianizantes
ou as da tradio potica nota-se que existem alguns aspectos relevantes que devero ser
considerados. Primeiramente, certo que devido s influncias das poticas citadas anteriormente,
tanto da tradio peninsular como do petrarquismo italiano, a representao no era bem definida
em termos fsicos e somente dava um vago perceber da mulher descrita; assim, nos sonetos
camonianos por exemplo, no h, como aponta o crtico acima citado, um retrato propriamente dito
se tomarmos por referncia uma abordagem para a caracterizao puramente plstica. Mas, caso
seja considerada a influncia platnica e a tomarmos como fundamento para a representao
esttica, notar-se- que este processo ultrapassa o esteretipo e recai na busca do ideal e na
tentativa de sua expresso lrica; deve ser relembrado a tpica do desejo e impossibilidade de
representar algo (ou algum)17
Assim, a representao no era desenvolvida, por conseguinte, atravs da simples
atribuio de caractersticas fsicas, pois essas eram, em sua maioria, elevadas a condio de
smbolos morais e psicolgicos, os quais pertenciam a um mundo material (Mundo da Idias), e
portanto subjetivo, criados na mente do artista, de onde surge o fundamento da "contemplao"18.
Portanto, entende-se ser esse o fundamento filosfico da representao da figura
feminina na lrica camoniana, que tem sua realizao lrica desenvolvidas por recursos expressivos
que vo desde a influncia da tradio potica estabelecida em Portugal at a mais alta depurao
das formas e conceitos do Renascimento. E este o percurso que trilha a representao feminina na
obra lrica de Cames, e por onde se busca compreender parte da obra do Poeta.
Torna-se necessrio, ento, a determinao de um conjunto de textos poticos em que
se possa pesquisar o tema proposto. Mas para tal, seria necessrio, primeiramente, partirmos de
uma fonte nica. Caso complicado para um poeta que nem ao certo sabemos quando nasceu,
tampouco tem seu cnone lrico estabelecido de modo definitivo. Assim, decidimos adotar o
16 CIDADE, Hemani. Lus de Cames: o lrico. 3aed. Lisboa: Bertrand, 1967. p. 188-199. 17 Cf MIRANDA, S de. Soneto: Este retrato vosso o sinal e CAMES, Lus de. Elegia: Aquele mover de olhos excelentes, entre outras composies que desenvolvem essa tpica, conforme citado anteriormente. 18 Cf Vejo-a n'alma pintada, In: CAMES, Lus de. Op. cit., p. 174. v. 1.
11
recolhimento critico feito por Maria de Lourdes Saraiva e editado em Lisboa pela Imprensa
Nacional/Casa da Moeda - Lus de Cames: Lrica Completa (3. v.), em 1980. A escolha desta
edio crtica deve-se ao fato de recolher, fundamentalmente, os textos das edies antigas de
1595, 1598, 1616, 1668 e 1860/1869, bem como as compilaes modernas de Agostinho de
Campos (1923 e 1925), Jos Maria Rodrigues e Afonso Lopes Vieira (1932), Hernani Cidade
(1971) e a de lvaro Jlio da Costa Pimpo (1973). Neste recolhimento, a autora considera a
atribuio camoniana atravs do estudo das citadas edies, fazendo ressalvas a incluses ou
excluses ao cnone, compondo um conjunto de poemas atribudos ao poeta portugus pela maior
parte dos crticos modernos. Ao final de cada volume, ainda se estende uma antologia de autoria
duvidosa com a devida explanao a respeito.
Para a determinao do corpus fizemos uma distino primria na obra lrica
camoniana e selecionamos em cada uma delas um conjunto significativo de poemas que
utilizaremos na anlise da representao das caractersticas da mulher e dos mtodos que Cames
utilizou para represent-las em suas distintas particularidades. Das designadas por composies em
medida velha ao estilo engenhoso, recortamos os que seguem: "Vejo-a n'aima pintada", "Aquela
cativa", "[Vs] sois uma dama", "Sois fermosa e tudo tendes", "Ana quisestes que fosse", "Irme,
quiero madre", "Minina dos olhos verdes", "Vs, Senhora, tudo tendes", "Descala vai para fonte",
"Na fonte est Lianor", "Falso cavaleiro ingrato", "Se Helena apartar" e "Minina fermosa".
E, das denominadas composies em medida nova ao estilo clssico, selecionamos para
o propsito as clogas: "A rstica contenda desusada", "Aquela, que de Amor descomedido", "As
doces cantilenas que cantavam", "Ao longo do sereno" e "Cantando por um vale docemente"; as
odes: "To suave, to fresca e to fermosa", "To crua ninfa, nem to fugitiva"; a elegia: "Aquele
mover de olhos excelentes"; as canes: "Fermosa e gentil Dama quando vejo", "Vo as serenas
guas" e "Se este meu pensamento" e os sonetos: "Um mover de olhos brando e piedoso", "Quando
o sol encoberto vai mostrando", "Leda serenidade deleitosa", "Presena anglica, bela figura", "De
quantas graas tinha a Natureza" e "Dizei, Senhora, da beleza idia".
Estes textos poticos so estudados a partir de um captulo inicial - "As poticas do
Renascimento em Portugal" - referente recuperao, atravs de bibliografia especializada, das
poticas circulantes no Renascimento; e tem o intuito de verificar o modelo de representao
convencionado neste perodo e que serviu de fundamento para o poeta portugus.
12
Em outro momento, no captulo denominado "A tradio medieval na representao da
mulher na poesia de medida velha de Lus de Cames", desenvolve-se a exposio da influncia
dos cancioneiros antigos e do Cancioneiro Geral, e o aproveitamento dos temas e motivos das
cantigas de amor e de amigo, de onde Cames obtm toda a graa e a agilidade das composies
ligadas s voltas sobre um mote proposto, e as caractersticas especficas da representao da
mulher sob esta influncia. Atravs da anlise das composies em redondilhas, verifica-se a
representao da mulher sob o modelo proposto pela tradio literria em Portugal advinda dos
cancioneiros.
"A representao ao estilo clssico e a influncia petrarquista" o captulo referente a
recuperao das caractersticas e influncias das composies em medida nova ao estilo clssico,
onde verificado a presena marcante da nova proposta italiana, tanto nas formas quanto nos
contedos. Percebe-se a aproximao entre a representao da figura feminina em Cames e a feita
por Petrarca e, em alguns casos, a transposio das caractersticas de uma para outra; tambm pode
ser notado, em outros casos, a distino entre ambas as musas. Nesta anlise dos poemas em
medida nova, demonstra-se a representao da mulher sob o novo estilo proposto pelo
Renascimento realizada por Lus de Cames.
I. As poticas do Renascimento em Portugal
de extrema importncia, para o estudo da Poesia, a determinao dos cdigos que
nortearam sua produo, ou melhor dizendo, descreveram-na, bem como instruram os
receptores para a compreenso dos textos literrios. Porm, nem sempre estes cdigos esto
compilados em manuais nicos e os temas que desenvolvem no tm o mesmo carter e
orientao. Pois, os mltiplos cdigos necessrios poesia, e que nela deve-se verificar,
compem um conjunto terico multifacetado. O texto potico deve, ento, ser analisado por
vrias perspectivas que comporo, a partir dos resultados, um todo significativo. Neste sentido,
alerta-nos Aguiar e Silva:
Ora, 1er um texto literrio luz de um cdigo reducionistamente desfigurado e empobrecido conduz inevitavelmente perda da eventual complexidade do texto, ocultando-se ou desprezando-se como excrescncias residuais, seno como anomalias, os elementos da forma do contedo e da forma de expresso refratrios grelha formular utilizada na sua decodificao. 1
No que diz respeito ao Renascimento, esta tarefa torna-se indispensvel e, em
contrapartida, rdua. Pos, primeiramente h que se considerar a delimitao do termo em seu
sentido artstico e cronolgico; no caso de nossas pesquisas, que tem como alvo Lus de
Cames, recortamos o perodo do sculo XVI. Em segundo lugar, nesse sculo fervilhava a
cultura europia com conceitos e idias fundamentadas em uma tradio medieval e outros
novos desenvolvidos a partir dos humanistas, e que eram a espinha dorsal do Renascimento,
seguidos de um estrangulamento destes fundamentos e que rumavam ao que se tem atribudo a
denominao de maneirismo. Tudo dentro de um mesmo sculo. Saraiva e Lopes, referindo-se a
obra de Lus de Cames, observam este acmulo terico e ideolgico pertinente ao sculo XVI,
que manifesta-se no poeta portugus.
Escreveu August-Wilhelm Schlegel que Cames, s por si, vale uma literatura inteira. Esta observao fundamenta-se decerto no facto de a obra multifacetada de Cames abranger diversas correntes artsticas e ideolgicas do sculo XVI em Portugal, ser elaborada sobre uma experincia pessoal mltipla que em nenhum outro escritor contemporneo realizou sozinho, e de, enfim, este poeta ter sido capaz
1 AGUIAR E SILVA, Vtor Manuel de. Amor e mundividncia na lrica camoniana. Separata de: Colquio-Letras. n. 55, p. 34, Maio de 1980.
14
de dar forma lapidar e definitiva a um conjunto de idias, valores e tpicos caractersticos da sua poca.2
Tornando-se, pelo exposto, necessrio ento destacar os textos tericos para melhor
aludirmos sobre eles.
Os estudos da rea humana desde a Antigidade eram divididos em Retrica e
Gramtica; e a Potica era parte integrante desta ltima e limitava-se ao estudo das tcnicas
versificatrias e estilsticas em um percurso puramente formal, conforme comenta Anbal Pinto
de Castro3 em importante pesquisa sobre os cdigos poticos circulantes em Portugal durante o
Renascimento. Nesse trabalho, o crtico revela que Antnio Nebrija dedicava o quinto captulo
das suas Introductiones in latinam grammaticen ao assunto de quantitate syllabarum metris et
accentu em 1481. Estevo Cavaleiro, em 1516, em sua Nova Grammatices Ars, compe um
captulo tambm tratando da tcnica versificatria e da conceituao dos tipos de metros (De
prosodia et de omnium syllabarum quantitate). Andr de Resende, em 1534 na sua Oratio pro
rostris, confere Gramtica a "funo de habilitar quem a estudasse a bem interpretar os
poemas". Em 1536, Jernimo Cardoso ir comear a conferir Potica, mesmo que juntamente
com a Retrica e a Gramtica, o carter de parte essencial ao aprendizado dos textos poticos;
mas que desde 1504, D Pedro de Meneses j considerava-a como parte integrante da Retrica,
apesar dos estatutos da Universidade de Coimbra de 1508, promulgados por D. Manuel I, no
registrarem qualquer meno Potica como disciplina regular.
A Potica somente ser incorporada efetivamente e distintamente aos estudos em
1537, quando o Cardeal-Infante D. Henrique reestrutura o Colgio de So Paulo de Braga, onde
primeiramente lecionaram a disciplina Nicolau Clenardo, Joo Vaseu e Marcial Gouveia. E, em
1547, o Colgio das Artes (Coimbra) passa a adotar a Potica e a Retrica como disciplinas
essenciais formao humanstica dos educandos, sem sofrer modificaes em seus
fundamentos com a reformulao aplicadas pela Companhia de Jesus em 1555. Este estudo era
desenvolvido e complementado com a leitura de textos antigos, tais como os de Virglio,
Lucano, Prsio, Juvenal, Horcio e Ovidio; entretanto, estes no eram objeto de um estudo
pormenorizado e sistemtico no campo ideolgico, mas proporcionavam aos alunos o
2 SARAIVA Antnio Jos & LOPES, scar. Histria da literatura portuguesa. So Paulo: Martins Fontes, 1973. p. 331. 3 Cf. CASTRO, Anbal Pinto de. Os cdigos poticos em Portugal do renascimento ao barroco: seus fundamentos, seus contedos, sua evoluo. Separata da: Revista da universidade de Coimbra, v. 31, p. 505-531, 1985.
15
conhecimento necessrio para uma futura abordagem direta das poticas, principalmente de
Horcio e Aristteles, ou atravs de seus comentadores, como Aquiles Estao e Tom Correia.
Em Espanha, a produo de tratados poticos foi, semelhantemente a Portugal,
pouco produtiva e tardia; a primeira traduo da Potica, de Aristteles, foi realizada por Pez
de Castro, por volta de 1530; entretanto, as grandes poticas espanholas foram publicadas a
partir do ltimo quartel do sculo XVI. El arte potico em romance castelhano (1580), de
Miguel Sanches de Lima, que traduz a potica horaciana; El arte potico espanhol (1592), de
Dias Rengifo e Arte para componner em metro castelhano (1593?), de Jernimo Mondragn,
so textos fundamentados nas poticas de Aristteles e Horcio e desenvolvem tcnicas
versificatrias aplicadas lngua espanhola. Anbal Pinto de Castro cita ainda a Philosophia
(1596) de Pinciano e o Cisne de Apoio (1602) de Alonso de Carbalho. Percebe-se que para os
tericos deste perodo, a perfeita construo potica e sua conseqente realizao esttica,
estavam intimamente ligadas ao amplo conhecimento das regras formais e estilsticas, devido a
importncia que conferiam s tcnicas versificatrias que ocupavam posio de destaque nas
Gramticas da poca, como por exemplo, nos De Institutione Gramtica libri tres (1572), do
Padre Manuel Alvares, ou ainda em obras mais especficas, como a Epometria (Epometria, seu
de metiendi carmina ratione, 1515.), de Aires Barbosa, ou o De componedis versibus, (1550),
que destinava-se a pormenorizar os principais metros. Entretanto, estas regras eram
fundamentadas no metro latino e tiveram de ser adaptadas gradativamente lngua vulgar, pois
uma regulamentao do nmero potico em lngua vulgar, s surgir em 1615, quando Felipe
Nunes publica sua Arte Potica e da Pintura.
A teoria horaciana pode ser verificada indiretamente em Portugal j em fins do
sculo XV, quando Cataldo Aquila Sicudo, instrutor de D. Joo II e de seu filho bastardo D.
Jorge de Lencastre, aplicava a seus discpulos a leitura dos Carmina horacianos. Andr de
Resende, na j citada Oratio pro rostris, revelava a necessidade dos estudos clssicos, mais
precisamente, da lngua grega, em versos que tornaram-se famosos e amplamente divulgados:
"Vos exemplaria graeca/ Nocturna uersate manu, uersate diurna"4. Um conselho que foi
seguido por muitos, inclusive Cames. Joo de Barros, em seu Dilogo em louvor da nossa
linguagem (1540), reitera, atravs dos textos horacianos, a necessidade de aprimorar a lngua
vulgar, neste caso a portuguesa, atravs do estudo das lnguas clssicas. Um dos principais
teorizadores da poesia em lngua vulgar que muita influncia exerceu em Portugal era o
4 A pud. CASTRO, Anbal Pinto de. Op. cit., p. 511.
16
espanhol Juan del Encina, pois sua obra Arte de la poesa castelhana (1505), e apesar de ter
sido publicada na Itlia, foi muitssimo divulgada e adotada pelos poetas portugueses.
O primeiro comentador direto de Horcio em Portugal foi Aquiles Estao, que em
1553 publica os In Quinti Horatti Flacci Poeticam Commentarii, nos quais atm-se ao estudo
filolgico, mas cuidando para no comprometer a teoria original a ser aplicada em uma poesia
pica j to requerida pelos portugueses. Este comentador conhecia e desenvolvia os estudos
dos grandes humanistas da poca como: Guilherme Bud, Aldo Manuzio, Pietro Bembo,
Robortello e Robert tienne; mas principalmente, faz a composio baseado nos textos da
Potica aristotlica como fonte primria dos textos horacianos. O texto aristotlico exposto
por Estao de forma a ratificar os textos horacianos.
Em Portugal, o intercmbio do conhecimento esttico formado principalmente,
como vimos, na doutrina terica de Aristteles e Horcio, formou um cdigo literrio mais ou
menos definido, que ter em S de Miranda e Antnio Ferreira (1528-1569) seus representantes
mais expressivos, sendo este ltimo o principal divulgador da Epstola ad Pisones, de Horcio.
Mas nem s atravs dos tericos e comentadores era feita a divulgao dos cdigos
poticos; os poetas, por sua vez, tratavam de aplic-los ao mesmo tempo em que promoviam
sua expanso. Talvez tenhamos, como dissemos, em S de Miranda e Antnio Ferreira os que
mais se aplicaram nesta matria em Portugal; o primeiro, trazendo da Itlia as novidades
mtricas por l desenvolvidas e distintas das de seu pas, apegadas ainda ao sistema mtrico
medieval e castelhano; e o segundo, desenvolvendo fielmente a teoria horaciana da Epstola ad
Pisones, em seus conselhos a Diogo Bernardes (15207-1595) e a Pero de Andrade Caminha
(1520-1589) reunidos nos Poemas Lusitanos (1598).
Ao lado de Horcio, tem-se a divulgao mais direta de Aristteles em Portugal,
haja vista que este era a matriz daquele e que teve o incio, como aludimos anteriormente em
Estao, facilitado a partir da publicao da traduo latina do italiano Alessandra de Pazzi, em
1536 2, com os comentrios de Robortello (Francisci Robortelli, Utinesis in Librum Aristotelis
De Arte Potica Explicaciones, de 1548) e Castelvedo (Potica dAristotele Vulgarizzata et
Spostaper Ludovico Castelvedo, de 1570), entre outros.
5 PAZZI, Alessandro de. Aristotelis Potica, per Alexandrum Pacciuin, Paritiam fiorentinuai, in aioum conversa Veneza: Aedibus Haeredum Aldi e Andreae Asulani Soceri, 1536. A pud. CASTRO, A. P. Op. cit., p. 513.
17
Mas os cdigos poticos circulante no sculo XVI no estavam carregados somente
com as disposies retrico-estilsticas fundamentadas em Aristteles e Horcio; Plato,
embora divulgado diretamente em Portugal quase no fim do sculo6, teve suma importncia no
que diz respeito ao critrio imitativo da poesia (imitati) e sua interpretao foi amplamente
trabalhada principalmente pelos neoplatnicos italianos, como por exemplo, Marsilio Ficcino
(1433-1499), Castiglione (1479-1529), Pietro Bembo (1470-1547), entre outros. Sem esquecer-
nos que talvez o maior neoplatnico tenha sido Petrarca (1304-1374) e que j se fazia muito
conhecido e imitado desde o sculo anterior. Este entendimento da criao potica ter amplo
desenvolvimento nos poetas do Renascimento em especial no sculo XVI. Eric Auerbach
discorre a respeito deste carter imitativo da arte neste perodo, opinando que:
Em primeiro lugar, tda a Renascena artstica da Itlia repousa, como a da literatura, na imitao dos princpios gerais da arte antiga. A completa realizao das formas corporais, sobretudo as do corpo humano; sua plena evidncia no mundo aqui de baixo; o equilbrio harmonioso da composio e da articulao dos diferentes membros de um conjunto; a luz plena difundida pelo mundo das coisas visveis e sensveis - tudo isso constitui herana da arte antiga." '
O crtico ainda reitera que desde os pintores do sculo XIV, tais como Giotto, at os
mestres do sculo XVI, referindo-se a Rafael, Leonardo Da Vinci e Miguel ngelo, houve um
esforo contnuo em imitar a Antigidade, e que este processo foi ao mesmo tempo uma
imitao da "Natureza" sensvel em suas formas mais belas e mais perfeitas.
Os artistas do Renascimento entendiam a poesia como imitao, seja o objeto dessa
situado no mundo real ou psquico, segundo o entendimento aristotlico ou platnico, e para
realizar o processo criativo os fundamentos estavam compilados a partir de Horcio. Assim,
partindo do conceito de poesia como imitao, os poetas criavam sob o debate dos tericos,
pendendo ora para um lado ora para outro, entre o processo determinado pelo engenho, ligado
pelo furor animi, e o determinado pela arte, em que o sustento da tcnica criativa advinha de
uma cultura literria slidamente fundamentada e do trabalho do poeta sobre o texto. Antnio
Ferrerira tenta conciliar as duas tendncias, pendendo um pouco mais para a segunda:
6 O primeiro tratado potico de matriz platnica em Portugal, talvez seja o de Tom Correia, "De antiquitate et arcar.orum Poesis et Poetarum differentia", publicado no "Globus canonum st arcar.orum linguae sanctas et divinae", em 1568 de Fr. Lus de S. Francisco; e muito posteriormente, a "Arte potica e da pintura", em 1615, de Francisco Nunes.
18
Questo foi j de muitos disputada S'obra em verso arte mais, se a natureza. Ua sem outra vale pouco ou nada. Mas eu tomaria antes a dureza Daquela que o trabalho e a arte abrandou. Que dest'outro a corrente e a v presteza.8
Esta disputa entre a arte e o engenho, ou a coexistncia paralela no
desenvolvimento potico, veremos, por exemplo, expressas em Cames, o qual requer o auxlio
de ambas para a composio de sua pica, mas d maior valor a "ua furia grande e sonora" na
invocao s Tgides. A arte, por exemplo, seria adquirida mediante o estudo com mo diurna
e noturna dos clssicos e o trabalho, quase que exaustivo, sobre o texto potico em que,
portanto, o tempo se fazia essencial.
Do estudo profundo dos clssicos, e da cultura adquirida conseqentemente,
derivavam tambm os modelos perfeitos aos quais os poetas deveriam imitar. Diogo Bernardes,
em uma carta endereada ao Conde de Monsanto, alm dos preceitos horacianos, recomenda
um formulrio de leituras a serem feitas com o intuito de desenvolver a cultura clssica e a
apreenso dos modelos nela expostos. Assim, escreveu o poeta:
Em Homero acharis grandes louvores Do fero Aquiles
Em Virglio outros tais Ovidio com seu verso triste, e brando Do seu desterro tratar queixoso. Por Corina, e por Roma suspirando.
Petrarca e Sannazaro cujos peitos O douto Apoio encheu d'alta doutrina, O Bembo, e o Laso,ao mesmo Apoio aceitos. Vernica com Laura Tarrcina E aquela famosssima Vitria Que sobre o nosso Sol, o seu empina.
7 AUERBACH, Eric. Introduo aos estudos literrios. (Trad. Jos Paulo Paes). So Paulo: Cultrix, 1972. p. 159. 8 FERREIRA, Antnio. Poemas lusitanos. (Carta XIL do livro I). Lisboa: S da Costa, 1957. p. 106. v. 2.
9 BERNARDES, Diogo. Carta n. 28, In: Obra Completa (Pref. e notas Marques Braga) Lisboa: S da Costa, 1945.
19
Entretanto, esta imitao no poderia ser feita de maneira indiscriminada, pois
corria o risco de ser um simples decalque ou um parfrase; o exigido dos poetas do
Renascimento era que transformassem os modelos, somente atravs da contaminao, em uma
superao potica - a imitatio convertida em transformatio, e nesta converso que baseia-se
todo o processo de representao potica do Renascimento. Segundo Anbal Pinto de Castro, a
poesia ainda imitao, mas o objeto dessa imitao alarga-se progressivamente da realidade
verdadeira aos resultados de uma imaginao exercida em funo da fantasia ou da ptica
atravs da qual o poeta observa essa realidade, que pode cada vez mais livremente transformar
ou distorcer, com o fim nico de proporcionar um prazer esttico, liberto de qualquer outro
intuito que no seja agradar e divertir. 10
Notar-se- ento que o cdigo potico do Renascimento j apresentava uma
transformao operada, mais ou menos a partir da metade do sculo XVI, em que toda a carga
terica estava sendo reformulada em seus princpios criativos. Esta reformulao deve-se, em
parte, ao declnio dos princpios dos humanistas e a expanso dos ideais neoplatnicos, os quais
conferiam uma maior importncia, como denota-se do supra citado, imaginao e fantasia;
como conseqncia, um alargamento significativo dos cdigos temticos e uma profunda e
substancial alterao no equilbrio harmonioso que conferiam estes mesmos cdigos no incio
do sculo. Conforme ainda Anbal Pinto de Castro, "ao mesmo tempo, a organizao do
discurso potico exigida por este alargamento temtico conseqente do recurso fantasia e da
valorizao de contedos emocionais, acolhe com avidez o recurso argcia, subtileza, como
outros tantos meios de melhor captar o destinatrio" u .
Anbal Pinto de Castro conclui seu artigo atentando profunda transformao do
cdigo esttico-literrio ocorrida a partir da segunda metade do sculo XVI, pois estes padres
renascentistas alteraram-se, inicialmente, com rapidez e ousadia e, posteriormente, propiciando
o desenvolvimento de uma nova esttica que, freqentemente, se tem denominada maneirismo.
Esta nova perspectiva potica, em Portugal, no foi pautada sobre um cdigo esttico-literrio
slidamente prescrito, tampouco teve sua expresso manifesta claramente; entretanto, estas
sucessivas transformaes no cdigo renascentista proporcionaram o desenvolvimento de outro
cdigo, que resultou em uma esttica mais segura e calcada em uma teoria estruturada e
sistematizada - a poesia barroca em Portugal.
10 CASTRO, Anbal Pinto de. Op. cit., p. 529. 11 Idem..
20
Toda esta transformao sentida por Cames, tendo em vista a multicodificao
circulante em todo o sculo XVI, e que, em certa medida, foi aplicada em sua lrica. Nessa,
vemos um poeta ligado a um conjunto de valores, processos e noes somente analisveis
dentro de um mundo com uma tradio medieval, ou um poeta fielmente representativo de um
Renascimento em suas aportaes clssicas, ou ainda o que contempla de conceituoso em
relao as idias e os sentimentos; e, neste ltimo aspecto, Jorge de Sena nota o aspecto
maneirista em Cames, em que "reduz sempre as emoes a conceitos, conceitos que no so
idias, mas a vivncia intelectual delas"12. Confirma-se ento, o desenvolvimento, na obra do
poeta portugus, de um "hipercdigo" em que mesclam-se as mltiplas estticas artsticas
afloradas ao longo do sculo XVI. Segundo Segismundo Spina, este arcabouo terico estaria
concentrado em Cames que "reparte-se por todos os perodos estticos que vm desde o
tecnicismo maneirista do fim da Idade Mdia (para no recuarmos romntica feudal
cavalheiresca e ao estilnovismo) at ao conceptismo seiscentista, passando pelo maneirismo
ps-rafalico"13. Resumidamente, desta posio em que encontra-se Cames, pode-se entender
que est entre o perodo em que o princpio da imitatio identificou-se a analogia e a fidelidade
aos modelos; nesse, Cames mostrar-se- um fiel seguidor do exemplo potico de outros
autores ao fundamentar seu texto sobre aquele princpio da analogia atravs de uma trama de
paralelismos, em que cada poema tem um referente muito prximo. Por outro lado, quando o
princpio da imitatio sofre uma transformao substancial, notar-se- um acompanhamento do
Poeta adaptando os textos sua sensibilidade num impulso lrico em que ressalta suas
incertezas e experincias. sob este ltimo aspecto, que fundamenta-se o principio da imitao
ao modelo petrarquista, onde este no mais resume-se ao repositrio estilistico-formal em um
imitatio stili, mas a sua superao em relao vida, e principalmente sua reflexo, expressa em
uma imitatio vitae.
Atravs da divulgao e expanso do neoplatonismo, o cdigo esttico do
Renascimento adapta-se, cada vez mais, teoria da imitao {mimesis) visando a captao das
idias, em seu sentido platnico, da beleza suprema. No tratado Da pintura antiga (1549), de
Francisco de Holanda (1517-1589)14, nota-se a manifestao destes conceitos em relao ao
tratamento mimtico dado aos objetos representados pelos artistas, como sendo "eternas e
12 SENA, Jorge de. A poesia de Cames: ensaio de revelao da dialtica camoniana. Apud. SPINA, Segismundo. Da idade mdia e outras idades. So Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1964. p. 110. ]3 Ibid., p. 110.
14 Cf. SARAIVA, Antno Jos & LOPES, scar. Op. cit. p. 303-4.
21
divinas cincias increadas", no sentido de uma imitao da capacidade criadora de Deus. Estas
idias estticas, que tambm so fiis aos tratados italianos do perodo, demonstram que o
artista (ou poeta) poderia ser um co-participante do poder criador de Deus, que era fonte nica
de toda a beleza. Segundo o entendimento do pintor anteriormente referido, a "pintura" era
considerada como um prottipo da criao humana e at de Deus, para ele, pintar conceber e
executar, ao mesmo tempo, descobrindo as relaes que regulam a natureza, formando assim as
idias ou arqutipos que se exprimem no mundo visvel. Francisco de Holanda, discpulo de
Miguel-ngelo (1475-1564), sob a influncia platnica, entendia que a reproduo da natureza
deveria ser concebida como a apreenso e a expresso plstica de uma "idia" preexistente na
mente divina, a qual estaria relacionada s formas naturais e sensveis ao intelecto do artista. O
autor do tratado Da pintura antiga, pode ser considerado um dos principais teorizadores
europeus do maneirismo.
A difuso do neoplatonismo, e mesmo da obra de Plato, como nos referimos
anteriormente, no se realizou atravs de tratados poticos perfeitamente estabelecidos; seus
fundamentos estavam centrados no conceito de amor, em suas manifestaes e sua conseqente
realizao esttica. Segundo Aguiar e Silva, "a doutrina do amor neoplatnico apresenta-se ao
investigador como um objeto de anlise configurado pela interao diacrnica de diversos
fatores."13. Assim, vemos sendo desenvolvida esta teoria a partir de Dante (1265-1321) e a
poesia do dolce stil nuovo; de Petrarca e dos petrarquistas que o seguiram, copiaram e
reformularam; de textos filosficos, como por exemplo o De amore, de Marslio Ficcino, o Itre
libri d'Amore de Francesco Cattani da Diacceto, ou os Dialogi d'Amore de Leo Hebreu, entre
outros; ou ainda, textos hbridos situados entre a literatura e a filosofia, como o caso dos
Assolani, de Pietro Bembo, ou II libro del cortegiano, de Baltasar de Castiglione 16.
Como percebe-se, sob este fundamento neoplatnico que tem suas razes
desenvolvidas durante sculos anteriores, florescem, no sculo XVI, os processos mimticos
que tratam e representam o amor e a mulher. Esta ento ser descrita como um ser superior,
quase divino, de beleza inefvel e a atitude submissa e reverente do amador, tal como ocorre na
lrica provenal e no romance corts, ser uma constante na lrica deste perodo. No que diz
respeito a Cames, seguir as convenes temticas e formais do petrarquismo, em seu
entendimento neoplatnico, e falar incessantemente do amor obedecendo ao mesmo cdigo
15 AGUIAR E SILVA Vtor Manuel de. Op. cit., p. 33. 16 Idem.
22
amoroso. Sua elocuo lrica dividir-se- entre duas posies contrastantes, uma divina,
benfica e outra terrena, por conseguinte, malfica. Sob este paradoxo, existe uma atitude
fundamentada na imitao, em que o Poeta empenhou-se em construir o discurso lrico atravs
da aprendizagem dos modelos, mas imprimindo uma expresso original e pessoal, onde a
prtica de uma "maneira" individual marca a personalidade inconfundvel do poeta portugus.
A concepo do amor stilnovista entende-o como uma guerra entre o corpo e a
alma, e a mulher como sendo um anjo {figura angelicata), perante a qual o amador haver de se
colocar em posio submissa e devota, com a qual lhe ser propiciado uma elevao espiritual e
um fortalecimento moral cujo objetivo a ascese a Deus e o Bem Supremo. Sob este
entendimento, a realizao lrica do amor no se processa de maneira simples, segundo Hemani
Cidade,
Os sentimento que ele [Petrarca] exaltava e transfigurava pela poesia radicavam na sua vida de amante cristo. O apetite da carne no apenas o convertia a cultura clssica e escolstica em prazer cerebral de subtil anlise: sublimava-o a tica crist em estmulos de nobreza e at em impulsos de mais alta ascenso espiritual.17
E referindo-se a Dante, o crtico comenta que, "(...) perante Beatriz morta, concebe-
a como personificao, no apenas do amor que redime, mas da f que revela. ela que o guia
ao Cu, onde lhe mostra e explica as verdades que salvam a alma"18. Petrarca ter uma atitude
semelhante nos Trionfi, pois,
(...) j antes de morta, Laura para ele doce e pura, plena realizao do ideal das perfeies fsicas e morais. Da sua beleza como que emana um diadema que acende o ar em torno [de si], (...) enche de luz, turba de comoo humana as prprias solides, aquieta o espao, condenando troves a desterro.19
nestes termos que ser caracterizada a figura feminina dentro do cdigo
petrarquista e que se pode perceber, no s em Cames mas na maioria dos lricos da poca, a
17 CIDADE, Hemani. Lus de Cames - o lrico. 3. ed. ver. e alt.. Lisboa: Bertrand, 1967. p. 137-138. 18 Ibid., p. 138. 19 Idem.
23
realizao esttica de uma expresso mais madura e profunda da anlise psicolgica e da
captao dos mltiplos matizes da vida sentimental em que esto demarcados os impulsos
contraditrios, os desejos opostos e a conseqente melancolia. A expresso destes preceitos,
assumidos pelo neoplatonismo de Petrarca, ser realizada atravs da adoo dos recursos
estilsticos e formais, bem como do repositrio tpico que o prprio poeta florentino depositara
em sua obra lrica. Atravs deste modelo , os poetas do sculo XVI buscavam atingir dois
objetivos principais: serem verossmeis no processo mimtico e divulgar os modelos clssicos,
com os quais aprendiam os ensinamentos ou contrapunham-se quando a arte assim os permitia.
Segundo Eric Auerbach,
O modelo mais admirado, ao lado dos antigos, foi Petrarca Sua lngua, suas formas poticas, suas metforas, sua terminologia amorosa foram imitadas, cultivadas e por vezes mesmo exageradas a um grau em que o artifcio comea a se aproximar da frioleira. Tda a produo potica da Renascena, inclusive de outros pases europeus, se colocou sob a influncia do petrarquismo.20
Este modelo neoplatnico, foi propagado, em certa medida, pela Academia
Platnica, fundada por Lorenzo de Mdici, II Magnifico (1448-1492), tendo colaboradores
como Pico delia Mirandola, Leo-Batista Alberti, Marclio Ficcino entre outros. L se
procurava conciliar o esprito da beleza antiga com o Cristianismo; pois, segundo o mesmo
crtico supra citado,
(...) a concepo platnica da beleza corporal e terrestre como imagem enfraquecida e provisria da verdadeira beleza, incorprea e divina, e o amor da beleza terrestre como encaminhamento para a beleza eterna, foi uma das idias mais caras aos homens da Renascena, que aspiravam a um Cristianismo humanista.21
Buscando estes objetivos, Lus de Cames, como homem de seu tempo, criou um
estilo prprio luz de Petrarca, que, em momentos francamente visveis, parafraseia-o. No
soneto, "Eu cantarei de amor to docemente", por exemplo, o eu-lrico camoniano expressa seus
objetivos e mtodos, os quais nortearo seu fazer potico.
20 AUERBACH, Eric. Op. cit., p. 163. 21 Ibid, p. 162.
24
Eu cantarei to docemente, Por uns termos em si to concertados, Que dous mil acidentes namorados Faa sentir ao peito que no sente. Farei que amor a todos avvente, Pintando mil segredos delicados, Brandas iras, suspiros magoados, Temerosa ousadia e pena ausente. Tambm, Senhora, do desprezo honesto De vossa vista branda e rigorosa, Contentar-me-ei dizendo a menor parte, Porm, pera cantar de vosso gesto A composio alta e milagrosa. Aqui falta saber, engenho e arte. 22
Neste soneto, inspirado no primeiro quarteto do petrarquiano "Io cantarei d'amore
si novamente, " , no qual o mestre italiano tenta comover o objeto de seu amor em relao aos
seus sentimentos, percebe-se o desenvolvimento das idias camonianas sobre os vrios temas
que o amor lhe sugerir e, com referncia mulher, no a busca pela sua comoo e
conseqente aceitao que o detm, mas a certeza que para descrev-la falta saber, engenho e
arte. Na verdade, fica implcito que os versos que comovero a todos os leitores, no
comovero a amada.
Do programa potico de Petrarca, notar-se-, em algumas composies camonianas,
a enunciao das qualidades da amada em um esboo de sua representao feita atravs das
"pinceladas" essenciais destacadas com o rigor da percepo do efeito perturbador que ela
possui. Bem como, em outras, estas "pinceladas" tero um toque mais leve e espiritualizante do
que no florentino. Nestes casos, segundo H. Cidade, existem "mais as finas graas do porte,
recatado e simples, do que os encantos exteriores de uma figura que Petrarca se compraz em
repetidamente chamar humilde, mas a que atribui grave beleza divina, capaz de quebrar toda a
dureza, petrificar de temor os coraes"24 E conclui que, em Cames, a "mulher avassaladora,
mais divina do que humana, mais para estarrecer de temerosa admirao do que para se fazer
amar, to diferente, por isso mesmo, do misto de simplicidade, bondade, melancolia suavssima,
doura, serenidade, melindrosa timidez, que bem parece o nosso Poeta copiou do natural"25.
22 CAMES, Lus de. A pud. CIDADE, Hernani. Op. cit., p. 141.
Io cantarei d'amor si novamente, Ch'al duro flanco il di mille sospiri Trarrei per forza, e mille alti desiri Raccenderei nella gelata mente.
In: V., Soneto %l.Apud. CIDADE, Hernani. Op. cit., p. 141. 24 CIDADE, Hernani. Op. cit.. p. 144. 25 Idem.
25
O modelo codificado no Renascimento da representao da figura feminina que
Cames assumiu pde ser resumidamente exposto por Segismundo Spina em artigo escrito em 26
1961 , em que o crtico atribui ao Poeta o carter essencialmente renascentista no que se refere
representao da mulher, considerao esta feita principalmente aos sonetos, onde nota a
existncia de dois elementos essenciais. Segundo o douto professor, os sonetos dividir-se-iam
em um tom "dissertativo", em que o eu-lrico estaria ligado problemtica amorosa; ou em
outro "pictrico", descrio plstica da Natureza ou da mulher amada, sendo neste ltimo
muito mais exercida a razo que a imaginao 27 Seguindo este pensamento, nos sonetos
teramos ento, no exclusivamente, os fragmentos da representao da mulher feita pelo eu-
lrico camoniano, em que por um lado predomina a beleza fsica e por outro a beleza moral.
Estes fragmentos, que so apresentados na descrio, corroboram com a tradio romnica na
ordem da construo do texto potico; ou seja, no sentido descendente e at o colo, onde os
recursos utilizados para o processo de composio plstica seriam extrados da Natureza
conforme a arte petrarquista (ouro, prolas, rubis, etc.). Por outro lado, ainda segundo Spina,
Cames desenvolve a concepo estilnovista da figura angelicata ou donna angel cata, ou
ainda representa-a em um tom hiperblico segundo o modelo trovadoresco. Seguindo o
percurso que nos leva este comentrio, poder-se-ia deduzir, juntamente com Spina, que, devido
"ao conjunto de notas que definem a fisionomia espiritual do objeto amado, Cames situa-se
plenamente naquele Segundo Renascimento de que fala Wlfflin (...Y 28. Do exposto,
depreende-se o conceito que o crtico compartilhava de Renascimento.
Pois, segundo Spina, o crtico alemo citado adota, inicialmente, como distino
entre os dois Renascimentos que prope, a temporal ou cronolgica; dividindo-se entre a
segunda metade do sculo XV, ou seja, de 1450 at 1500 a "primeira Renascena" e de 1500 at
1550, a "segunda Renascena", na qual estaria includo Lus de Cames com no mximo vinte e
cinco anos. Ento perguntamo-nos pelos trinta anos restantes da vida do Poeta. E certo que o
cdigo potico foi diferenciando-se desde o modelo tradicional dos trovadores, passando por
Dante e Petrarca e os neoplatnicos, at chegar em Cames, mas isto no se deu em um fiat lux
puramente teorizador. O que se notar no poeta portugus a fuso destes mltiplos cdigos, o
26 SPINA, Segismundo. Op. cit., p. 107-112. 21 Cf. SPINA, Segismundo. Ibid., p. 110. 28 Ibidem.
26
que tambm no se operou por decreto; esta fuso foi desenvolvendo-se, talvez, no perodo em
que o crtico alemo considera como Renascimento e teve sua expresso mxima em Cames,
possivelmente, posterior a 1550.
Segundo Wolfflin, conforme a leitura de Segismundo Spina, o que distingue o
segundo Renascimento do primeiro so as novas noes de talhe e dignidade humana, os
sentimentos inditos de elegncia nas atitudes, uma harmonia e uma ondulao e leveza nos
cabelos, em um novo ideal no modo de representar o corpo humano, onde este predomina e
ocupa quase todo o espao e sem o uso de detalhes irrelevantes; a "gravidade clssica" impe
rigor entre o desejo de ampliar e a moderao na expresso. Estes aspectos esto conformes
com o estilo do Classicismo renascentista e se distinguem, em sua concepo, do estilo gtico
medieval e do estilo realista da arte quatrocentista. So sob estes aspectos que S. Spina
demonstra a vinculao da representao camoniana da mulher "segunda Renascena" de
Wolfflin, afirmando que o Poeta "j esta longe daquele preciosismo do sculo XV e daquela
raa hiertica de que fala Wolfflin referindo-se s mulheres de Guirlandaio: Cames situa-se
plenamente na poca de Leonardo, Miguel-ngelo, Andrea del Sarto e Rafael" 29. Se assim,
em que se relacionam os dois primeiros pintores aos dois ltimos? Com certeza, ser o comum
a eles que "situa plenamente" Cames no mesmo perodo esttico.
A arte clssica do Renascimento, e aqui entendemos pertinentes os dois ltimos
pintores citados anteriormente, e que tinha como lema o regmim hominis e a dignitas hominis,
fundamentava-se na crena de que no existia conflito entre a ordem divina e a ordem humana,
entre a f e a razo. Entretanto, estes valores foram abalados profundamente durante o sculo
XVI por razes sociais, polticas, religiosas e filosficas interligadas. Assim, percebe-se no
decorrer do sculo um sentimento contrrio ao representado pela arte anterior; um sentimento
"anti-clssico", ao qual associa-se a denominao de maneirismo, que diferentemente ao que
aludiu Spina, foi a primeira denominao dada aos artistas que pintavam, ou buscavam pintar,
maneira de Miguel-ngelo.
29 Ibid, p. 112.
27
As caractersticas fundamentais, aue segundo Geors Weise30, so nicamente da
esttica maneirista e que comportam este sentimento de contrariedade e, conseqente, agonia,
podem ser representadas pelo uso das anttese abstratas e das metforas conceituosas, que
poderemos verificar em Cames, as quais "remontando poesia trovadoresca provenal e ao
dolce stil rruovo, aparecem como um elemento estilsticamente importante do Canzioniere de
Petrarca e, sobretudo, do petrarquismo dos sculos XV e XVI"31, quando atravs delas, "no s
se difundem uma imagem estilizada e espiritualizada da mulher amada, mas tambm uma
linguagem potica preciosista (...) num jogo refinado e cerebral de subtilezas psicolgicas e
formais"32.
Aguiar e Silva reitera a importncia e a introspeco das caractersticas maneiristas
derivadas do petrarquismo, no sentido de que,
Com efeito, este filo petrarquista do maneirismo literrio europeu representa um elemento anticlssico, de raiz medieval, equivalente aos fatores goticizantes que se observam na pintura maneirista; representa um elemento ulico, elegante e artificioso, que est em ntima conexo com as figuras estilizadas, esbeltas e frias da pintura (...) constitui uma manifestao de intelectualismo, de subtileza cerebralista e anti-realista (...), pelo seu pendor espiritualizante, pelas suas ligaes com o neoplatonismo, pelo teor de alguns de seus elementos psicolgicos - o taedium vitae, o senso da labilidade das coisas terrenas e humanas, a angstia da ausncia, o desejo (...) da morte - facilmente se conjugou com o pessimismo, o desengano e o escetismo de raiz contra-reformista." 33
Atravs do exposto, busca-se compreender a padronizao, pelo menos dos poemas
camonianos em que a representao feminina de cunho petrarquista. Pois, com base em
estudos comparativos entre Petrarca e Cames, notar-se- que o cdigo potico petrarquista
ser depurado e replasmado em uma nova maneira de produo lrica; talvez este seja o tom
pessoal, de que fala Saraiva, fundamentado na experincia, reflexo e no entendimento
humano.
30 Apud. AGUIR E SILVA Vtor Manuel de. Teoria da Literatura. Coimbra: Almedina, 1984. p. 473. 31 Idem. 32 Ibidem.,, p. 474. 33 Ibidem., p. 475.
28
Na lrica camoniana notar-se- a efervescncia destes mltiplos cdigos poticos
que circulavam no sculo XVI e que, em certa medida, estavam interligados entre si, seja
afinando-se ou contrapondo-se. O conceito de amor e a conseqente representao de seu
objeto - a mulher - estar em transformao e na busca de uma harmonia cognicvel; busca esta
talvez infrutfera e geradora de uma tenso lrica sem igual: Oh! Quo caro me custa o
entender-te, Molesto Amor..., dir, em um soneto, Cames.
Na concepo do amor provenal a mulher era descrita como um ser anglico que
sublima e apura a alma dos amantes, tal como faz Beatriz, de Dante, e Laura, de Petrarca.
Cames adota o entendimento e o modelo que deles advieram; h em seus sonetos, odes,
canes e redondilhas, a representao de uma mulher amada iluminada por uma luz
sobrenatural que lhe transforma as feies carnais, esta luz que refulge por toda a lrica confere
mulher o brilho dos cabelos dourados e de seus olhos, os quais exercem um extraordinrio
poder sobre a natureza e o prprio eu-lrico. Estas caractersticas externam um revestimento
visvel e material de um ideal que transpira gravidade, serenidade, altura. Entretanto, em
Cames, o objeto deste amor no era somente alvo de uma conveno metafsica como para
aqueles dos quais adotou o modelo; a lrica camoniana contempla a tenso entre o desejo carnal
e o ideal do amor platnico e a tentativa de uma fuso entre eles. Segundo Saraiva e Lopes, o
que "Cames pretende nada tem a ver com a extirpao, no esprito, do amor humano, mas a
sua transposio a um plano, inatingvel mas a seu crer real, em que ele deveras se realize"34.
Ainda segundo os crticos anteriormente citados, esta tenso camoniana existente
entre a espiritualidade e a carnalidade da mulher pe a tenso humana em um terreno concreto,
com a qual desenvolver a representao do objeto do amor; por vezes "em estilo corts
medieval e neoplatnico , como suserana distante ou mensageira dos Cus (...) ou, de um modo
mais naturalista, como presa de caa nos jardins de Vnus"35. E nisto, transmite-nos uma
sensao potica reformulada da "simples plangncia espiritualista" de Petrarca e dos
petrarquistas de um modo geral.
34 SARAIVA, Antnio Jos & LOPES, scar. Op. cit., p. 341. 35 Idem., p. 343.
II. A tradio medieval e a representao da mulher na poesia de medida velha de Lus de Cames
Lus Vaz de Cames foi um poeta que nasceu dentro de uma tradio literria ainda
marcada profundamente pela esttica artstica da Idade Mdia; apesar de j estarem desenvolvidos,
principalmente na Itlia, os ideais do Humanismo e do Renascimento, .em Portugal, no que
concerne produo potica, tais ventos no comearam a soprar antes do retorno da Itlia de S
de Miranda (1481-1585) em 1526, que levou para Portugal as novas formas e, principalmente,
algumas reflexes e influncias dos artistas italianos e alguns espanhis, como Boscn e Garcilaso,
com os quais teve contato. Assim, Lus de Cames serviu-se tambm da tradio literria medieval
para compor boa parte de sua obra lrica em medida velha seguindo os tpicos da lrica galaico-
portuguesa e da poesia palaciana, essa ltima compilada principalmente no Cancioneiro Geral
(1516), de Garcia de Resende (14707-1539), bem como os artifcios retricos que eram veiculados
neste tipo de poesia.
H que se notar que, segundo Antnio Jos Saraiva, "os tpicos de toda a poesia
camoniana no so originais (...) O que pessoal o tom em que Cames os trata: intenso,
emocionado, vivido - o que nos parece mostrar que no se trata meramente de temas meditados,
antes de problemas experimentados"1. Portanto, j existiam na poesia medieval os temas e os
motivos que so recuperados e desenvolvidos por Cames em suas composies em medida velha
e que fazem parte de uma tradio literria em Portugal; assim como toda uma instruo retrica
advinda do preciosismo daqueles cancioneiros, que serviram de instrumentao para um hbil jogo
de palavras, no qual,
a palavra era concebida, neste caso, no como um intermedirio da expresso, mas como um objeto. O poeta empenhava-se em desenvolver essas virtualidades encerradas no corpo fontico, no contedo semntico, e nas relaes etimolgicas do vocbulo, que desta forma era tratado como substncia. este o fundamento dos jogos de palavras to freqentes em Cames. 2
1 SARAIVA, Antnio Jos. Literatura portuguesa. (Histria Ilustrada das Grandes Literaturas). Lisboa: 1966. p. 85. v. 3. 2 SARAIVA, Antnio Jos. Op. cit., p. 81.
30
Por outro lado, pode-se notar que nas composies camonianas em medida velha h
algo de diferencial em relao a toda uma tradio potica peninsular, talvez devido existncia do
Poeta concorrer com a transio, ou a permanncia, entre dois estilos distintos - o das composies
do Cancioneiro Geral e as do Renascimento - e que, segundo Costa Pimpo,
talvez no fosse ousado dizer que Cames, apesar de ter chegado tarde, foi, verdadeiramente, o criador da graa cortesanesca em poesia (...), e o que melhor deixou adivinhar, atravs das suas composies, o estilo de conversao galante,, a arte de agradar, pelo bom dito improvisado, pela finura do dilogo, pela subtileza, pelo jogo.3
Ainda sobre a influncia da tradio medieval, A.J. Saraiva e Oscar Lopes opinam no
sentido de que o Poeta "soube realizar a sntese entre a tradio literria portuguesa (ou mesmo
peninsular) e as inovaes introduzidas pelos italianizantes. Foi o melhor poeta portugus de escola
petrarquista, e, ao mesmo tempo, o mais acabado artfice da escola do Cancioneiro Geral, na
redondilha e no mote glosado"4. , sobretudo, a esse comentrio que destina-se esta seo, pois h
que se verificar como Cames representou as mulheres sob este modelo da tradio medieval em
Portugal.
Para tal, necessrio relembrar o que era, ou em que consistia, a tradio literria
medieval em Portugal e, em certa medida, como se dava a representao das mulheres, para que se
possa ter parmetros de comparao entre aquelas e as apresentadas em Lus de Cames sob esta
perspectiva.
2.1 A tradio literria peninsular
Conforme Saraiva e Lopes5, os textos literrios produzidos na pennsula ibrica entre
os sculos XII e XIV esto recolhidos em compndios denominados "cancioneiros", dos quais
3 PIMPO, lvaro Jlio da Costa. Rimas de Lus de Cames. Lisboa: Atlnda, 1943, p. 19. Apud FERREIRA M. E. Tarracha. Op. cit., p. 186. SARAIVA Antonio Jos & Lopes, Oscar. Histria da literatura portuguesa, 7. ed., Porto: Porto EctOicL, 1973. p.
332. 3 SARAIVA Antnio Jos & Lopes, Oscar. Op. cit., p. 43 et. seq.
31
existem trs: o Cancioneiro da Ajuda (CA), compilado em fins do sculo XIII, o Cancioneiro da
Biblioteca Nacional (CBN), antigo Colocci-Brancutti (CCB), e o Cancioneiro da Vaticana (CV),
estes dois ltimos compilados na Itlia no sculo XVI, cujas cpias dos manuscritos originais, que
datam provavelmente do sculo XIV, infelizmente esto perdidas. Nestes cancioneiros tem-se uma
vasta coletnea de poemas, em torno de 1680 segundo E. Gonalves e M.A. Ramos 6, dos quais
interessa-nos principalmente dois gneros de poesia: as cantigas de amor e de amigo, por
fornecerem subsdios da representao das mulheres pelos poetas medievais.
Influenciado por estes dois gneros, dos quais se encontra primazia da influncia das
cantigas de amor, Lus de Cames desenvolveu um estilo prprio a que A. J. Saraiva chama de
"estilo engenhoso"7. Estilo esse, que vinha sendo desenvolvido e aperfeioado em Portugal e
Frana desde a Idade Mdia, e que era marcado pela versatilidade retrica com que os poetas
desenvolviam seus temas, tornando-os preciosidades com o jogo de palavras. E este estilo que
Cames supera, e em certa medida ultrapassa, em suas composies de medida velha; pois
transforma, atravs das estruturas retricas e estilsticas do modelo tradicional, em finssimas
reflexes sobre a mulher e o prprio homem em relao aos sentimentos por eles experimentados,
principalmente o amor.
2.2. As cantigas de amigo
Segundo Cleonice Berardinelli, "veremos que, a par das cantigas de amor que no
constituem novidade na lrica amorosa, l encontraremos as cantigas de amigo, em que a mulher
que fala, como narrador de uma situao por ela vivida, podendo ela tambm falar. De ambos os
tipos encontramos exemplos em Cames"8.
Distingue-se aqueles dois gneros de poesia basicamente pelo eu-lrico, que no
primeiro um homem quem fala e no segundo a mulher quem toma a voz lrica. Esta distino,
feita atravs do sujeito lrico, est caracterizada e descrita em um fragmento remanescente do
Cancioneiro da Vaticana, no qual est inserido inicialmente um tratado potico denominado Arte
6 Cf. GONALVES, Elsa & RAMOS, Maria Ana. A lrica galego-portuguesa. Lisboa: Editorial Comunicao, 1983. p. 18-19. 7 SARAIVA, Antnio Jos. Lus de Cames. Lisboa: Europa-Amrica, 1959. p. 28-32. 8 BERARDINELLI, Cleonice. Estudos camonianos. Rio de Janeiro: MEC/UFF, 1973, p. 61.
32
de Trovar9 que define, entre outras coisas, os gneros de poesia. Nesse, tem-se a distino entre
cantigas de amor e de amigo, como se verifica do excerto:
E por que alguas cantigas i h em que falam eles e elas outrossi, por m bem de entenderdes se som d'amor, se d'amigo; por que sabede que, se eles falam na prima cobra e elas na outra, [ d'] amor, por que se move a razom d'ele, como vos ante dissemos; e, se elas falam na primeira cobra, outrossi d'amigo (...)10. [grifo nosso]
Nas cantigas de amigo mais tradicionais h uma caracterstica distintiva designada
como paralelismon, que dispe os versos em dsticos seguidos de um refro (como um terceto) que
se liga a um outro dstico, com uma variante da rima, tambm seguido do refro; formando-se,
assim, o par de dsticos que compem a unidade rtmica do poema. Pois, como nota Cleonice
Berardinelli12 analisando os metros dos trovadores antigos, a unidade mtrica no era o verso e sim
o p mtrico. Esta disposio possibilitava ao poema ser cantado ou associado a uma melodia (bo
de dizer) e tinha seu carter propriamente popular; segundo Elsa Gonalves13, crticos como
Carolina Michaelis entre outros, atribuem a origem das cantigas de amigo a uma tradio
autctone, anterior influncia provenal.
Um bom exemplo de cantiga de amigo que obedece a esta regra de paralelismo
podemos observar nos versos de D. Dinis, o rei trovador, que se seguem:
-Ai flores, ai, flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! ai. Deus, e u ? Ai, flores, ai flores do verde ramo, se sabedes novas do meu amado! ai, Deus, e u ? Se sabedes novas do meu amigo, Aquel que mentiu do que ps comigo! Ai, Deus, e u ? Se sabedes novas do meu amado. Aquel que mentiu do que mi jurado! Ai, Deus, e u ? Vs me preguntades polo voss' amigo,
9 Cf. GONALVES, Elsa & RAMOS, Maria Ana. Op. cit., p. 21. 10 Ibidem, p. 21. 11 Isto no significa que no existam cantigas de amor que desenvolvam-se sobre este recurso; pelo contrrio, conforme anotado posteriormente, em mais da metade das cantigas de amor pode-se encontrar este tipo de construo. 12 BERARDINELLI, Cleonice. Op. cit., p. 57 et seq. 13 Cf. GONALVES, Elsa & RAMOS, Maria Ana. Op. cit., p. 31.
33
e eu bem vos digo que san' vivo, ai, Deus, e u ? Vs me preguntades polo voss' amado, e eu bem vos digo que viv' e sano, ai, Deus, e u ? E eu bem vos digo que san'e vivo e s[e] er vosc' ant'o prazo sado, ai, Deus, e u e ? E eu bem vos digo que viv' e sano e s[e] er vosc' ant'o prazo passado, ai, Deus, e u ?
(CV. 171)14
Percebe-se nesses versos, que podem ser reduzidos a poucas palavras significativas:
Onde est o amigo? Est bem, e vivo, e estar junto dela (da amada) em breve. A composio em
paralelo dos versos e as suas variaes seguidas do refro que do, como se percebe na leitura, o
carter rtmico ao poema.
Porm, esta estrutura paralelstica foi se desenvolvendo em variantes nas quais os
dsticos do lugar a estrofes (copias) com um nmero maior de versos e esses desenvolvem a idia
central da estrofe anterior em vez de repeti-la, aproveitando somente as palavras das rimas. A
estrutura em paralelos consiste fundamentalmente na repetio, na qual o prprio refro j assim se
constitui; entretanto, este recurso ultrapassava, por vezes, o nvel da troca de palavras; podendo ser
sinttico - onde as palavras so colocadas em paralelo com a mesma funo sinttica, fnico - onde
h a aproximao do som das palavras e conceptual, ou de pensamento - em que os conceitos so
aproximados ou contrapostos em versos ou copias subseqentes. Esta estratgia utilizada na
construo dos poemas denominada variao.
Esta foi a soluo utilizada pelos poetas medievais como sada para a monotonia
imposta pelo paralelismo, tendo em vista a sua repetitividade, e para alcanar, conseqentemente, o
desenvolvimento da idia central do poema Basicamente, a variao consistia na repetio do
verso, ou parte dele, em outra copia com a substituio da palavra rimante por um sinnimo, ou a
transposio dessa para outro lugar, ou ainda, a repetio do conceito pela negao do mesmo. Em
todos os casos, o paralelismo e a adoo do refro so caractersticas apresentadas em quase todas
as cantigas de amigo e mais da metade das de amor nos cancioneiros galaico-portugueses15.
14 Apud. TAVARES, Jos Pereira (Introd, org. e notas). Antologia de textos medievais. Lisboa: S da Costa, 1961. p. 40-41. 15 Cf. GONALVES, Elsa & RAMOS, Maria Ana. Op. cit., p. 69.
34
Esta estrutura de composio, condicionada a um refro, foi amplamente trabalhada por
Cames em seus poemas de medida velha, seja repetindo os versos de um mote literalmente ou
transformando-os com os recursos da variao, conforme aludimos anteriormente, modificando-
lhes o significado; e ainda, a prpria repetio enftica de certas palavras que mudam,
freqentemente, o sentido atravs de um jogo lrico gracioso e ligeiro fazem com que os conceitos
permaneam escondidos atrs de uma porta, da qual a chave est na identificao dos recursos
estilsticos e retricos de sua formao unidos em um todo significativo. Note-se o exposto no
desenvolvimento da barcarola camoniana em lngua castelhana: "Irme, quiero, madre", como se
segue:
A este moto: Irme, quiero, madre, aquella galera, com el marinero ser marinera.
Voltas. Madre, si me fuere, d quiera que v, no lo quiero yo, que el Amor lo quiere. Aqul nio fiero hace que me muera, por un marinero ser marinera.
l, que todo puede, madre, no
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