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Dissertação.
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1
FERNANDA REGINA VILARES
A RESERVA DE JURISDIO NO PROCESSO PENAL
- DOS REFLEXOS NO INQURITO PARLAMENTAR
Dissertao apresentada ao
Departamento de Direito Processual da
Universidade de So Paulo como
exigncia parcial para obteno do grau
de Mestre em Direito Processual Penal,
sob a orientao do Professor Doutor
Jos Raul Gavio de Almeida
Universidade de So Paulo
Faculdade de Direito
So Paulo 2010
2
Quanto maior o poder, mais perigoso o
abuso. E. BURKE, Discurso de 07.02.1771
3
AGRADECIMENTOS
Certa vez um amigo disse que um trabalho acadmico nunca finalizado, ele
simplesmente abandonado. Outro, ainda, alertou sobre a necessidade de entregar a
dissertao com comeo, meio e fim, ainda que no se tenha atingido o nvel de excelncia
almejado, uma vez que o ttulo de Mestre s ser obtido se o trabalho estiver completo.
Assim, certa de que o trabalho poderia ser aprimorado em muitos aspectos e de que
eu iria alter-lo enquanto me fosse permitido, abandono esta dissertao com a convico
de que apesar de todos os esforos empreendidos, existem falhas, e estas devem ser
atribudas apenas a mim, considerando o apoio encontrado em todos aqueles que me
rodeiam.
Comeo, portanto, agradecendo a meu orientador, Professor Jos Raul Gavio de
Almeida, pois sem sua admisso, ateno e conselhos, no teria sequer iniciado esta
jornada. Ao Professor Antonio Scarance Fernandes, mestre na mais profunda acepo do
termo, com quem tanto aprendi e em cuja dedicao busco inspirao. Ao Professor
Mauricio Zanoide de Moraes, responsvel pela minha iniciao no Processo Penal, dada a
admirvel forma de lecionar, agradeo pelo grande estmulo minha veia acadmica, seja
pelo elogio, seja pela crtica. E ao Professor Gustavo Henrique Righi Ivahy Badar, pelas
preciosas consideraes feitas na ocasio do exame de qualificao.
Aos meus pais, Fernando e Rosria, raros exemplos de eternos estudantes, pelo
constante incentivo ao meu gosto pelas letras e pela sempre pronta ajuda, ainda que
desajeitada, nos momentos de aflio. A minha irm, Cludia, cuja admirao impulsiona-
me a sempre dar o meu melhor, pelo temor de desapont-la e pelo dever de servir de
exemplo. Ao amigo-irmo, Victor, pelo favor de revisar este texto. s minhas avs,
Antonia e Lecia, que sempre rezam e torcem pelo meu sucesso.
A todos os amigos, colegas de trabalho e colegas de estudos, cujos nomes no
posso transcrever pelo receio de cometer a injustia de deixar de mencionar algum.
Contudo, tenho a certeza de que todos se sentiro includos em meu agradecimento ao
lerem a descrio de todas as atitudes afetuosas recebidas nesse perodo. Agradeo-os,
assim, pela obteno dos textos mais inacessveis; pelo envio das mais recentes decises
dos tribunais sobre o tema estudado; pelo esclarecimento das minhas dvidas; pelas boas
vibraes emanadas; pelos momentos de desabafo; pelas palavras de encorajamento nos
4
momentos de desnimo; e pela compreenso diante das inmeras recusas aos reiterados
convites.
Por fim e, principalmente, agradeo energia csmica, que alguns chamam de
Deus, pela fora, serenidade e concentrao a mim proporcionadas, as quais me
possibilitaram superar todas as intempries ocorridas nos ltimos trs anos e atingir o
grande desejo de concluir a dissertao de Mestrado.
5
RESUMO
Este estudo tem por escopo explorar o instituto da reserva de jurisdio, analisando
suas origens, motivaes e conseqncias. Outrossim, visa estabelecer os critrios para se
eleger as situaes que devem ser submetidas a ela quando no houver previso expressa
no ordenamento jurdico, alm de aplic-lo ao mbito do Processo Penal, avaliando a
necessidade de sua aplicao nos meios de prova e nos meios de obteno de prova.
A reserva de jurisdio consiste no impedimento de outros rgos exercerem
atividades pertencentes ao ncleo essencial da funo jurisdicional, sendo corolrio do
princpio da separao dos poderes, um dos pilares do Estado Democrtico de Direito.
Embora se admita uma interpenetrao entre as funes estatais, existe uma parcela
de cada uma delas que s permite a interveno do rgo mais adequado e aparelhado para
desenvolv-la. No caso da funo jurisdicional, isso ocorre quando o conflito de interesses
a ser resolvido de forma definitiva envolve um bem constitucionalmente protegido ou um
direito fundamental e s pode ser solucionado pelo Poder Judicirio.
No obstante, pretende-se aplicar as concluses extradas acerca da reserva de
jurisdio a uma situao prtica que se costuma se apresentar problemtica, a investigao
perpetrada por meio das Comisses Parlamentares de Inqurito.
O objetivo dar ao 3 do artigo 58 da Constituio Federal, que confere aos
membros das CPIs poderes investigatrios prprios de autoridades judiciais, interpretao
mais consoante com a tese desenvolvida, ou seja, defender que apenas os magistrados
podem autorizar a efetivao de medidas restritivas de direitos fundamentais necessrias
no bojo de um inqurito parlamentar, ainda que no haja expressa previso no
ordenamento jurdico.
Palavras-chave: Reserva de jurisdio funo jurisdicional medidas restritivas de
direitos fundamentais Comisses Parlamentares de Inqurito poderes investigatrios
6
ABSTRACT
This work aims to explore the scope of the institute Judicial Reserve, analyzing
its origins, motivations and consequences. It also seeks to establish the criteria to choose
the situations that should be subjected to it when there is no express provision in the legal
system, and apply it to the scope of Criminal Proceeding, evaluating the need of its
implementation in the evidence and in the means of obtaining evidence.
Judicial Reserve is the prevention of other agencies carry out activities belonging
to the core of the judicial function, which is a corollary of the principle of separation of
powers, one of the pillars of the Democratic State.
Although it is accepted interpenetration between the state functions, there is a
portion of each that only allows the intervention by the most suitable and equipped agency
to develop it. In case of the judicial function, this occurs when the conflict of interests to be
resolved definitively involves a constitutionally protected good or a fundamental right, and
can only be resolved by the Judiciary.
Nevertheless, we intend to apply the conclusions drawn about the Judicial
Reserve to a practical situation that used to present problems, the investigation conducted
by the Parliamentary Committees of Inquiry.
The goal is to give the 3 of article 58 of the Constitution, which gives members of
CPI investigative powers similar to the judicial powers, interpretation more consonant with
the thesis developed, ie, defending that only judges can authorize the execution of
measures restricting fundamental rights on an parliamentary inquiry, although there is no
express provision in the law.
Keyword: Judicial Reserve judicial function measures restricting fundamental rights
Parliamentary Committees of Inquiry investigative powers
7
SUMRIO
1. INTRODUO ................................................................................... 10
2. DA ORGANIZAO DO ESTADO DEMOCRTICO DE
DIREITO ................................................................................................ 13
2.1. CONSIDERAES INICIAIS SOBRE PODER, ESTADO E DIREITO .................... 14
2.2. HISTRICO ........................................................................................................................ 17
2.3. OS PRESSUPOSTOS DO ESTADO DE DIREITO NA TEORIA DE CANOTILHO 22
2.4. CARACTERIZAO DO ESTADO DEMOCRTICO DE DIREITO NO BRASIL 26
2.4.1. SUBMISSO LEI .................................................................................................... 30
2.4.2. RESPEITO DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ............................................. 32
2.4.3. PODERES HARMNICOS E INDEPENDENTES ENTRE SI ............................. 35
2.5. DAS FUNES ESSENCIAIS AO ESTADO E SUA DIVISO ................................... 37
2.5.1. DA EVOLUO DA TEORIA DA SEPARAO DOS PODERES ..................... 37
2.5.2. CONTEDO DAS FUNES .................................................................................... 41
2.5.2.1. FUNO ADMINISTRATIVA .......................................................................... 44
2.5.2.2. FUNO LEGISLATIVA E DE CONTROLE ESPECFICO ........................ 46
2.5.2.3. FUNO JURISDICIONAL ............................................................................... 47
2.5.3. CONJUNTURA ATUAL: INTERPENETRAO DE PODERES E EXERCCIO
DE FUNES TPICAS E ATPICAS ............................................................................... 52
3. RESERVA DE JURISDIO ........................................................... 58
3.1. RESERVA RELATIVA E ABSOLUTA ........................................................................... 60
3.1.1. DEFINIO DO CONTEDO DOS NVEIS DE RESERVA ......................... 63
3.1.2. HIPTESES DE APLICAO DA RESERVA ABSOLUTA .......................... 65
3.2. FATORES JUSTIFICANTES DA CLUSULA DE RESERVA DE JURISDIO
68
3.2.1. A ESSNCIA DA FUNO JURISDICIONAL E SEUS ATRIBUTOS
INDEPENDNCIA, IMPARCIALIDADE E ISENO ................................................... 68
3.2.1.1. LEGITIMIDADE DO PODER JUDICIRIO ................................................... 72
3.2.1.2. INDEPENDNCIA OBJETIVA E SUBJETIVA (IMPARCIALIDADE E
ISENO) .......................................................................................................................... 73
3.2.1.3. GARANTIAS E INCOMPATIBILIDADES ...................................................... 77
3.2.1.4. BREVES CONCLUSES .................................................................................... 80
8
3.2.2. A NATUREZA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A
INDISPENSABILIDADE DE UMA DECISO JUDICIAL PARA SOLUCIONAR OS
CONFLITOS ENTRE ELES ................................................................................................ 81
3.2.2.1. CONTEDO ESSENCIAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O
SUPORTE FTICO DA NORMA ................................................................................... 82
3.2.2.2. CONFLITOS ENTRE NORMAS E SUAS SOLUES .................................. 88
3.2.2.3. O POSTULADO DA PROPORCIONALIDADE .............................................. 94
3.2.2.4. CONCLUSES PARCIAIS ............................................................................... 101
3.2.3. O DEVIDO PROCESSO LEGAL E A IMPERIOSIDADE DA MANIFESTAO
JUDICIAL ............................................................................................................................ 102
3.3. CRITRIOS PARA ELEGER OS CASOS DE RESERVA DE JURISDIO
ABSOLUTA IMPLCITAS..................................................................................................... 107
4. A RESERVA DE JURISDIO NO PROCESSO PENAL ........ 111
4.1. PROCESSO PENAL: FINALIDADES E A BUSCA DA VERDADE .................... 111
4.1.1. ESCOPOS DO PROCESSO PENAL ....................................................................... 111
4.1.2. A VERDADE PROCESSUALMENTE POSSVEL ............................................... 115
4.2. MEDIDAS RESTRITIVAS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS UTILIZADAS NA
INSTRUO PROCESSUAL E SUBMETIDAS RESERVA DE JURISDIO ......... 124
4.2.1. CONDUO COERCITIVA DE TESTEMUNHA ............................................... 129
4.2.2. BUSCA E APREENSO ........................................................................................... 131
4.2.3. INTERCEPTAO E GRAVAES TELEFNICAS ....................................... 136
4.2.4. QUEBRA DE SIGILO DE OUTROS DADOS ........................................................ 141
4.2.5. QUEBRA DE SIGILO FINANCEIRO .................................................................... 146
4.2.6. OUTRAS MEDIDAS RESTRITIVAS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS ......... 153
5. COMISSES PARLAMENTARES DE INQURITO ................ 154
5.1. O PODER LEGISLATIVO E A FUNO DE CONTROLE ................................. 154
5.2. COMISSES PARLAMENTARES DE INQURITO CONCEITO E ESSNCIA
156
5.3. PRESSUPOSTOS ......................................................................................................... 159
5.3.1. REQUERIMENTO QUALIFICADO ................................................................ 159
5.3.2. FATO DETERMINADO ..................................................................................... 161
5.3.3. PRAZO CERTO................................................................................................... 164
5.3.4. COMPETNCIA ................................................................................................. 165
5.3.5. CORRELAO ENTRE OBJETO E INVESTIGAO ............................... 166
5.4. PARALELISMO COM O PROCESSO PENAL ........................................................... 167
5.5. PODERES INVESTIGATRIOS ................................................................................... 169
9
5.6. LIMITES DA ATUAO ................................................................................................ 172
5.7. POSSVEIS RESULTADOS ............................................................................................ 174
6. REFLEXOS DA RESERVA DE JURISDIO NO INQURITO
PARLAMENTAR ................................................................................ 177
6.1. A INVESTIGAO REALIZADA NO MBITO DO INQURITO
PARLAMENTAR .................................................................................................................... 178
6.1.1. INVESTIGAES PRELIMINARES .............................................................. 179
6.1.2. A NATUREZA DOS ATOS PRATICADOS NA INVESTIGAO
PRELIMINAR ..................................................................................................................... 183
6.1.3. ATOS PRATICADOS NO MBITO DO INQURITO PARLAMENTAR . 188
6.2. COMPARAO DOS ATRIBUTOS ESSENCIAIS AOS EXECUTORES DA
FUNO JURISDICIONAL COM AS CARACTERSTICAS DOS PARLAMENTARES
190
6.3. SIGNIFICADO DA EXPRESSO PODERES DE INVESTIGAO PRPRIOS
DE AUTORIDADES JUDICIAIS ........................................................................................ 196
6.4. APLICAO DA CLUSULA DE RESERVA DE JURISDIO NO
INQURITO PARLAMENTAR ............................................................................................ 207
6.5. ATOS QUE PODEM SER PRATICADOS PELAS COMISSES
PARLAMENTARES DE INQURITO ................................................................................ 212
6.6. O DESRESPEITO CLUSULA DE RESERVA DE JURISDIO NO
INQURITO PARLAMENTAR CONSEQNCIAS E REMDIOS ........................... 214
7. CONCLUSO ................................................................................... 218
8. BIBLIOGRAFIA .............................................................................. 224
8.1. INTERNET ........................................................................................................................ 238
10
1. INTRODUO
A reserva de jurisdio impe-se a situaes em que a funo do Poder Judicirio
no pode ser exercida por qualquer outro poder, porquanto existe a necessidade de se
solucionar, de forma definitiva, conflitos de interesses que resultam em restries a bens
constitucionalmente protegidos. A interveno do Poder Judicirio seria indispensvel
nesses casos, por ser o nico poder imparcial e legitimado para autorizar limitaes a
direitos e garantias constitucionais.
O instituto conhecido, mas ainda pouco estudado, de modo que sua utilizao
acaba se restringindo s previses expressas no ordenamento, ignorando-se seu sentido
material, suas origens, sua razo de ser, isto , a possibilidade e a necessidade de se
estender a exigncia de deciso judicial prvia a casos no positivados. O prprio Supremo
Tribunal Federal vem postergando manifestao decisiva sobre o tema.
No Processo Penal sua definio de enorme importncia, tendo em vista que nas
fases de investigao preliminar e de instruo criminal freqente a necessidade de se
perpetrar medidas que afetam direitos fundamentais para a obteno de elementos de
prova. Exemplo so as interceptaes telefnicas, a quebra de sigilo de dados e a
realizao de exames atentatrios integridade fsica da pessoa, como o teste de DNA.
Por outro lado, as Comisses Parlamentares de Inqurito so uma realidade
inafastvel do cenrio poltico brasileiro. raro o dia em que se abre o jornal sem a notcia
de uma investigao levada a cabo no mbito do Parlamento, seja ele municipal, estadual
ou federal. Alm disso, os escndalos de corrupo e a explorao miditica desses casos
exigem uma resposta imediata ao clamor pblico por justia.
Nessa conjuntura, o inqurito parlamentar emerge como instrumento para
implementao da fiscalizao e controle do Poder Executivo, tarefa atribuda
expressamente ao Poder Legislativo por determinao constitucional. Para tanto, dado
mximo significado idia de eficincia, deixando-se de lado, muitas vezes, a legalidade.
No af de obter o maior nmero de informaes possveis para subsidiar suas atividades,
11
os parlamentares efetivam medidas que abalam direitos fundamentais dos envolvidos,
crentes de estarem autorizados pelo disposto no artigo 58, 3 da Constituio Federal.
Com efeito, referido preceito constitucional confere s Comisses Parlamentares de
Inqurito poderes investigatrios prprios de autoridades judiciais. Muitos enxergam neste
enunciado a possibilidade de atuar da mesma maneira que um magistrado atua na fase de
instruo processual, deferindo a realizao de todo e qualquer tipo de meio de obteno
de prova ou meio de prova. Ocorre que no a melhor interpretao. Em se tratando de
conceito jurdico indeterminado, h que se empreender esforo para delimitar seu exato
contedo.
Temos, portanto, dois obstculos a superar. O primeiro, considerado central neste
trabalho, a conceituao do instituto da reserva de jurisdio, bem como a definio dos
critrios para sua aplicao, tanto de forma genrica, como no plano especfico do
Processo Penal. Para tanto, ser necessrio entender a diviso de poderes existente no
Estado Democrtico de Direito brasileiro e, sobretudo, definir o contedo exato da funo
materialmente jurisdicional, a qual no poder ser compartilhada com nenhum outro poder
estatal.
Delineados os contornos da reserva de jurisdio e estabelecidos os critrios para
eleger os casos que a ela devem ser submetidos, importante analisar a busca da verdade
no Processo Penal, bem como os limites a ela impostos pelos direitos fundamentais dos
indivduos, de modo a aplicar as concluses acerca do tema central do trabalho aos meios
de obteno de prova e aos meios de prova, os quais tambm so utilizados no bojo do
inqurito parlamentar.
Ultrapassada esta fase, convm tratar do segundo obstculo, definir a extenso dos
poderes conferidos s Comisses Parlamentares de Inqurito. Trata-se da aplicao, em
uma situao prtica que comumente se apresenta como problemtica, da teoria sobre a
reserva de jurisdio que ser desenvolvida.
Uma prvia anlise sobre as caractersticas do inqurito parlamentar indispensvel
para que seja ultimada esta tarefa, mas ser dado especial enfoque definio de atos
investigatrios, bem como comparao das caractersticas dos membros dos Poderes
12
Judicirio e Legislativo, para que, ao final, sejam definidos os atos que podem ser
perpetrados no mbito de uma investigao parlamentar e aqueles que dependem de prvia
autorizao judicial, por fazerem parte do ncleo essencial da funo jurisdicional.
13
2. DA ORGANIZAO DO ESTADO DEMOCRTICO DE
DIREITO
Se a reserva de jurisdio envolve situaes em que apenas um dos poderes estatais
pode se manifestar sobre determinados assuntos, indispensvel analisar a estrutura desse
Estado para que entendamos o papel que cada um de seus rgos essenciais desempenha,
chegando, portanto, definio do contedo exato da funo jurisdicional.
Somente trilhando este caminho podemos entender o que um ato materialmente
jurisdicional, de maneira a conseguir definir as hipteses em que apenas o Poder Judicirio
poder efetuar a interveno num caso concreto. Encontraremos, assim, o que
denominaremos de ncleo essencial da funo jurisdicional, rea que no admitir a
interveno de qualquer outro rgo.
Outrossim, tambm objeto deste estudo estabelecer limites para atuao das
Comisses Parlamentares de Inqurito no que tange investigao pode elas desenvolvida.
Para tanto, fulcral lembrar que so comisses pertencentes ao Poder Legislativo, entender
as funes deste rgo e definir, por fim, at que ponto pode se imiscuir em atividades que,
a priori, so atribudas ao Poder Judicirio.
Desta feita, o entendimento acerca da composio de um Estado Democrtico de
Direito mostra-se como ponto de partida para nossos escopos. Passamos, portanto,
abordagem das noes iniciais de poder, Estado e Direito, para, depois de apresentar um
breve histrico sobre o desenvolvimento do Estado de Direito, enumerar seus pilares
essenciais e tratar de forma mais detalhada um deles, ponto central da primeira parte deste
estudo, a separao dos poderes ou diviso de funes. Neste ltimo tpico que
estudaremos as atribuies de cada rgo componente do Estado, dando especial ateno
funo jurisdicional, vedete de nosso trabalho.
Todo este esforo remete no apenas inteno de demonstrar a origem dos
institutos estudados, mas tambm e, principalmente, para dizer que, ao se afrontar a
14
clusula de reserva de jurisdio, seja explcita ou implcita, estar-se- afrontando, em
ltima instncia, a prpria essncia do Estado Democrtico de Direito, o que
inadmissvel numa sociedade que se diga defensora da liberdade e protetora da dignidade
da pessoa humana.
2.1. CONSIDERAES INICIAIS SOBRE PODER, ESTADO E DIREITO
O poder necessrio em qualquer dimenso de atividade humana e existiu desde as
sociedades mais primitivas, exercendo uma funo de coordenao e coeso. Na sua
acepo ligada ao conceito de Estado, apareceu j na Grcia antiga, mediante as palavras
kratos (poder) e arch (fora) e permeia todas as designaes das formas de Estado como
democracia ou aristocracia.1
Orlando Viegas Martins Afonso preleciona que o poder do Estado, por um lado,
traduz-se como um controle sobre as situaes sociais e, por outro, como uma supremacia
sobre as pessoas, revelada pela capacidade de impor seus interesses a elas.2 Tal pode se
concretizar de diferentes formas, o que ensejar as diversas qualificaes do poder.
Noberto Bobbio nos ensina que direito e poder so duas faces da mesma moeda. Ao
mesmo tempo em que s o poder tem o condo de criar o direito, sendo essencial sua
positivao, s o direito capaz de limitar o poder.3 Em decorrncia dessa reciprocidade,
temos que o Estado, como expresso do poder, tem uma permanente relao com o
direito.4
1 BASTOS, Celso Ribeiro, Curso de Teoria do Estado e Cincia Poltica, 4 Ed. So Paulo, Editora Saraiva,
1999, p. 76; AFONSO, Orlando Viegas Martins, Poder Judicial Independncia in dependncia, Coimbra, Livraria Almedina, 2004, p. 11. 2 AFONSO, Orlando Viegas Martins, Poder Judicial..., p. 11. Nesse sentido a definio de poder dada por
Weber, segundo o qual poder a probabilidade de impor a prpria vontade dentro de uma relao social,
mesmo contra toda a resistncia e qualquer que seja o fundamento desta probabilidade. Ver DUTRA, Delamar
Jos Volpato, A legalidade como forma do Estado de Direito, in Kriterion, n. 109, Belo Horizonte,
Jun/2004, p. 61, obtido em www.scielo.br, acesso em 17.11.2008. 3 BOBBIO, Noberto, O futuro da democracia, Marco Aurlio Nogueira (trad.), 10 ed., So Paulo, Paz e Terra,
2000, p. 23. 4 A definio sociolgica de Estado preconizada por Weber revela adequadamente o fato do Estado ser uma
expresso do poder. Para ele, o Estado um instituto poltico que mantm a ordem atravs do monoplio da
15
A relao supra mencionada tambm constatada por Dalmo Dallari, segundo o
qual qualquer sociedade humana revela a presena de uma ordem jurdica e de um poder.
Na verdade, o autor defende que o conceito de poder estatal est contido no conceito de
ordem jurdica, a ponto de conceituar o Estado como a ordem jurdica soberana que tem
por fim o bem comum de um povo situado em determinado territrio.5
Nos termos desse conceito, todo poder possui qualificao jurdica. Apesar disso,
impossvel afastar totalmente o vis poltico da sua configurao. Por tal razo, a idia de
graus de juridicidade usada para explicar a alternncia dos fatores jurdico e poltico na
qualificao do poder:
...quando se diz que o poder jurdico isso est relacionado a uma graduao de
juridicidade, que vai de um mnimo, representado pela fora ordenadamente
exercida como um meio para atingir certos fins, at a um mximo, que a fora
empregada exclusivamente como um meio de realizao do direito e segundo as
normas jurdicas.6
Da mesma forma, Dalmo Dallari apresenta duas vertentes acerca da definio de
Estado, a poltica, que se liga idia de fora, e a jurdica, que d primazia ao componente
jurdico, destacando o elemento da ordem.7 Assim, sendo o Estado uma expresso de
poder, como dito por Bobbio, podemos traar um paralelo entre as duas noes e concluir
que, atualmente, busca-se o mximo de juridicidade em ambas, mas sempre so
encontradas notas polticas nelas.
No mesmo sentido, Celso Ribeiro Bastos assevera que o Estado de Direito
preconizado pelos modernos estudiosos, deve significar a subordinao do poder a normas
fora fsica, porquanto pode contar com a coero externa (o poder). Ver DUTRA, Delamar Jos Volpato, A
legalidade como forma do Estado de Direito..., p. 61. 5 DALLARI, Dalmo de Abreu, Elementos de Teoria Geral do Estado, 22 Ed., So Paulo, Editora Saraiva,
2001, p. 111 e 118. Para o autor, a noo de Estado deve dar maior nfase ao fator jurdico, sem, contanto,
ignorar os fatores no jurdicos. 6 DALLARI, Dalmo de Abreu, Elementos de Teoria Geral do Estado..., p. 113-114.
7 DALLARI, Dalmo de Abreu, Elementos de Teoria Geral do Estado..., p. 116-117.
16
jurdicas cuja positividade foi por ele declarada. Todavia, o poder nunca puramente
jurdico, de modo que mesmo no grau mximo de juridicidade, haver um vis poltico.8
Como se pode perceber, conquanto se reconhea a relao intrnseca entre direito e
poder, a idia de Kelsen, segundo o qual o Estado uma ordem jurdica isenta de
elementos polticos9 afastada pela maior parte dos autores, que temem o desvirtuamento
do Estado Legal preconizado pelo estudioso austraco, pois, conforme Delamar Jos
Volpato Dutra, o autor confundiu os conceitos de Estado Legal e Estado de Direito,
deixando de se perguntar acerca da questo de legitimidade ou justia, o que possibilita
justificar qualquer contedo.10
Com efeito, em diversos momentos histricos, a legalidade
formal foi utilizada para dar vestes legtimas a ditaduras, do que se pode citar o nazismo e
o fascismo como exemplos.11
Assim, o que diferenciar um Estado legtimo de uma ditadura sero os detentores
do poder. Como se sabe, um governo classificado como autocrtico quando o poder
exercido por apenas uma pessoa e denota a personalizao do poder, havendo uma
dominao de cima para baixo. J a democracia verificada nos governos em que o poder
conferido e exercido pelo povo como um todo, de baixo para cima, sendo conceito muito
mais abrangente que o de mero Estado legal kelseniano12
. O verdadeiro Estado de Direito
8 BASTOS, Celso Ribeiro, Curso de Teoria do Estado e Cincia Poltica, 4 Ed., So Paulo, Editora Saraiva,
1999, p. 79. 9 KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito..., p. 317. Delamar Jos Volpato Dutra afirma que tanto para Weber
quanto para Kelsen, o Direito visto como uma ordem de coero, ou organizao da fora. Ocorre que para
Kelsen validade da norma depende apenas de sua existncia. Para ele, o direito regula sua criao. o
Direito que regula a conduta dos indivduos que praticaro os atos de Estado que criaro o Direito. Ora,
diante disso, falar em Estado de Direito seria tautolgico, um pleonasmo, j que todo Estado, como ordem
jurdica, Estado de direito. Cf, A legalidade como forma do Estado de Direito..., p. 62-63. 10
DUTRA, Delamar Jos Volpato, A legalidade como forma do Estado de Direito..., p. 63. 11
DALLARI, Dalmo de Abreu, Estado de Direito e Cidadania, in Direito Constitucional Estudos em Homenagem a Paulo Bonavides, Eros Roberto Grau e Willis Santiago Guerra Filho (org.), So Paulo,
Malheiros Editores, 2001, p. 196; VERD, Pablo Lucas, A luta pelo Estado de Direito, Agassiz Almeida
Filho (trad. e pref.), Rio de Janeiro, Forense, 2007, p. 7; SILVA, Jos Afonso da, O Estado Democrtico de
Direito, in Direito Constitucional Brasileiro perspectivas e controvrsias contemporneas, Regina Quaresma e Maria Lcia de Paula Oliveira (coord.), Rio de Janeiro, Editora Forense, 2006, p. 11. 12
SILVA, Jos Afonso da, O Estado Democrtico de Direito..., p.7. Noberto Bobbio afirma que por regime
democrtico entende-se o conjunto de regras para a formao de decises coletivas em que est prevista e
facilitada a participao mais ampla possvel dos interessados. Ver BOBBIO, Noberto, O futuro da
democracia..., p. 22; SILVA, Jos Afonso da, Curso de direito constitucional positivo, 22 ed. rev. e atual.,
So Paulo, Malheiros Editores, 2003, p. 124.
17
deve ser entendido a partir da democracia, pois a partir desta que se revela a legitimidade
do Direito.13
Nessa esteira, segundo Bobbio, quando o poder pertence a apenas um indivduo ou
a um seleto grupo deles, temos um Estado desptico, que o ideal do ponto de vista do
poder. Por outro lado, quando o poder pertence ao povo e exercido pelo maior nmero de
pessoas possvel, temos um Estado Democrtico, ideal do ponto de vista do Direito.14
Ora, indubitvel que a evoluo histrica da humanidade nos defronta com as
mais diversas formas de governo e de exerccio de poder, evoluo esta que merece anlise
para que possamos compreender o sentido do Estado Democrtico de Direito preconizado
como a forma ideal de exerccio do poder de acordo com as normas jurdicas. Sendo assim,
passamos descrio da histria do desenvolvimento do Estado de Direito, desde sua
forma mais simples e liberal, equivalente ao Estado Legal, passando pelo Estado Social,
at chegar no atual Estado Democrtico de Direito, em que encontramos a configurao da
separao dos poderes e donde brota o instituto aqui estudado da reserva de jurisdio.
Sabemos da importncia do estudo das razes do surgimento de um instituto para
seu perfeito entendimento. Portanto, passamos a um breve esboo histrico do nascimento
do Estado Democrtico de Direito na histria da humanidade.
2.2. HISTRICO
A apario do Estado de Direito est ligada a uma determinada fase histrica da
evoluo do estado absoluto ao liberal. Com efeito, os monarcas absolutistas que
governavam o mundo at o sculo XVII, criavam e impunham as normas de forma livre,
de maneira que o poder era exercido ilimitadamente. A partir do momento em que se
passou a exigir o ajuste do exerccio do poder a prescries legais formuladas por um
13
DUTRA, Delamar Jos Volpato, A legalidade como forma do Estado de Direito..., p. 59. 14
BOBBIO, Noberto, O futuro da democracia..., p. 23.
18
parlamento, iniciou-se um processo que culmina com o surgimento do Estado Democrtico
de Direito.15
Inocncio Mrtires Coelho tem interessante passagem sobre o surgimento do
Estado de Direito, a qual vale transcrever:
Precisamente por isso que, no plano histrico, sem discrepncias, juristas,
filsofos e cientistas polticos assinalam o surgimento do Estado de Direito no
momento em que se consegue pr freios atividade estatal por meio da lei, vale
dizer, no instante em que o prprio Estado se submete a leis por ele criadas, ainda
que isso possa parecer um paradoxo, e to embaraoso paradoxo, que j houve
quem estabelecesse comparao entre a idia do Estado de Direito e o mistrio
teolgico do Deus-Homem, o mistrio do criador da Natureza submetido a essa
mesma Natureza.16
poca da Revoluo Francesa, o desenvolvimento do capitalismo, bem como as
exigncias do mercado ensejaram a alterao dos padres de governo absolutista, impondo
a regulamentao do poder e do Estado pelo Direito. A limitao do poder real era vista
como um desenvolvimento dos direitos inatos do indivduo, defendidos por tericos como
Locke e Montesquieu, cujo meio de garantia seria a aplicao da regra tcnica da
separao de poderes. Corolrio dessa tendncia, o artigo 16 da Declarao Universal de
Direitos do Homem de 1789 consignou que s possua Constituio o Estado que
assegurasse a garantia de direitos e estabelecesse a separao de poderes. 17
A classe burguesa consolidou os valores do liberalismo dando particular nfase
liberdade e proteo do indivduo. Nesse primeiro momento, surge o chamado Estado de
15
VERD, Pablo Lucas, A luta pelo Estado de Direito..., p. 1-5; COELHO, Inocncio Mrtires, O Perfil
Constitucional do Estado Contemporneo: o Estado Democrtico de Direito, in Revista de Informao
Legislativa, ano 30, n. 118, abril\junho 1993, Braslia, p. 6. 16
COELHO, Inocncio Mrtires, O Perfil Constitucional do Estado Contemporneo..., p. 6. 17
VERD, Pablo Lucas, A luta pelo Estado de Direito..., p. 4; COELHO, Inocncio Mrtires, O Perfil
Constitucional do Estado Contemporneo...., p. 10.
19
Direito Liberal, classificado como meramente formal, pois o individualismo era o valor
preponderante.18
Esta forma de Estado de Direito apresentava como caractersticas bsicas
a primazia da lei e do sistema hierrquico de normas, a observncia da legalidade por parte
da administrao, a diviso dos poderes estatais e o reconhecimento e garantia dos direitos
individuais, classificados como direitos fundamentais de primeira gerao.19
Essas exigncias continuaram a existir nos modelos posteriores, embora o modelo
proposto tenha esgotado suas possibilidades em virtude de ser unilateral. A igualdade por
ele pregada era meramente formal, fundada na generalidade das leis. A garantia das
liberdades propiciou o desenvolvimento capitalista, o que gerou novas tenses e lutas
sociais. Nessa conjuntura, houve a necessidade desse Estado formal de Direito se
transformar em Estado material de Direito com o escopo de realizar a justia social,
preenchendo-se de contedos ticos, culturais e sociolgicos. Essa evoluo coincidiu com
o surgimento da segunda gerao dos direitos fundamentais, os chamados direitos
econmicos e sociais implementados pelas Constituies Russa de 1917 e de Weimar de
1919.20
Surge, assim, o Estado Social de Direito, cujo escopo converter em direito
positivo, aspiraes sociais, conferindo-lhes garantias jurdicas claras e seguras. Para Jos
Afonso da Silva, a palavra social pode ser interpretada de vrias maneiras, de modo que
este modelo de Estado serve tanto para a democracia quanto para o totalitarismo. Diante
18
VERD, Pablo Lucas, A luta pelo Estado de Direito, Agassiz Almeida Filho (trad. e pref.), Rio de Janeiro,
Forense, 2007, p. 6; COELHO, Inocncio Mrtires, O Perfil Constitucional do Estado Contemporneo..., p. 7.
Pablo Verd esclarece que as bases ideolgicas do Estado Liberal se fundamentam em pressupostos
jusnaturalistas, que possuem carter individualista por estarem assentados no homem, titular desses direitos
anteriores sociedade. A medida em que o Estado evolui, esses direitos passam a ser vistos como concesso
dele, e se fundamentam na prpria lei positiva. p. 79-80. 19
SILVA, Jos Afonso da, O Estado Democrtico de Direito..., p.8; VERD, Pablo Lucas, A luta pelo Estado
de Direito..., p. 13. 20
SILVA, Jos Afonso da, O Estado Democrtico de Direito..., p. 7, 11 e 15; COELHO, Inocncio Mrtires, O
Perfil Constitucional do Estado Contemporneo..., p. 10-11; VERD, Pablo Lucas, A luta pelo Estado de
Direito..., p. 77-78; CORTEZ, Lus Francisco Aguilar, Judicirio e Democracia: organizao e funcionamento
do Judicirio na Constituio Federal de 1988, Tese de Doutorado apresentada Faculdade de Direito da
Universidade de So Paulo, 2004, p. 161-162. Pablo Verd afirma que a Constituio Alem no economiza
no uso de expresses ricas em aspectos ticos, tais como dignidade humana, direitos sagrados e inviolveis,
respeito moral, famlia e ao casamento, ver p. 78.
20
desta observao e da necessidade de se extirpar o sentido burgus da expresso Estado
de Direito, o autor prope que a palavra social seja acoplada aps a mesma. 21
Inocncio Mrtires Coelho observa que este modelo foi insuficiente, tendo em vista
que no conseguiu realizar a democratizao econmica e social, no se concretizando a
participao poltica do povo. Como se sabe, em muitos locais, a tentativa de aplicao do
Estado Social de Direito ensejou o surgimento de regimes totalitrios, como o fascista e o
nazista.22
Para combater essa realidade, foram promulgadas as declaraes de direito ps-
segunda guerra mundial, tentando instaurar um novo constitucionalismo, o que s se
solidificou na dcada de 80, tendo em vista que a diviso do mundo em blocos retardou a
disseminao da democracia.23
Nessa conjuntura, revelou-se a necessidade de se integrar os valores da liberdade,
preconizado pelo Estado Liberal, e igualdade, grande escopo do Estado Social, o que se
buscou atingir por meio do Estado Democrtico de Direito.24
por isso que Jos Afonso
da Silva preleciona que este terceiro modelo de Estado um novo conceito que incorpora
os princpios dos dois modelos anteriores, superando-os, uma vez que agrega um
componente revolucionrio de transformao do status quo. O Estado Democrtico de
Direito emana, portanto, como uma frmula na qual convergem as concepes atuais do
socialismo e da democracia, sem deixar de lado, por bvio, as liberdades fundamentais.25
Assim, resta patente que o Estado Democrtico de Direito representa uma evoluo
do prprio Estado Liberal, no podendo ser rotulado como algo a ele contraposto. De
acordo com Noberto Bobbio, o Estado Liberal pressuposto jurdico do Democrtico.
Alm disso, o autor defende que o poder democrtico indispensvel para garantir a
21
SILVA, Jos Afonso da, O Estado Democrtico de Direito..., p.12-13; VERD, Pablo Lucas, A luta pelo
Estado de Direito..., p. 79. 22
COELHO, Inocncio Mrtires, O Perfil Constitucional do Estado Contemporneo..., p. 11-17; SILVA, Jos
Afonso da, O Estado Democrtico de Direito..., p. 15. 23
CORTEZ, Lus Francisco Aguilar, Judicirio e Democracia..., p. 162-163. Foi o que ocorreu no Brasil, onde
a democratizao foi deflagrada apenas na dcada de 80, com a campanha diretas j e culminou na
promulgao da Constituio Cidad em 1988. 24
COELHO, Inocncio Mrtires, O Perfil Constitucional do Estado Contemporneo..., p. 12-14. 25
SILVA, Jos Afonso da, O Estado Democrtico de Direito..., p. 8 e 16.
21
existncia e garantia das liberdades fundamentais, havendo, portanto, uma relao de retro-
alimentao entre liberdade e democracia.26
Bobbio construiu uma definio mnima de democracia, segundo a qual:
...por regime democrtico entende-se primariamente um conjunto de regras de
procedimento para a formao de decises coletivas, em que est prevista e
facilitada a participao mais ampla possvel dos interessados.27
Fica claro que num regime delineado desta maneira, um nmero muito elevado de
membros tem aptido para a tomada de decises. Ademais, no se deve menosprezar o
compromisso entre as partes de realizar o livre debate para a formao da maioria, tendo
em vista que a regra da maioria a fundamental na democracia.28
Para tanto,
indispensvel que os cidados possuam liberdade de pensamento e de expresso. Ao
mesmo tempo, o fato das decises serem tomadas pelo povo assegura que seus direitos
fundamentais no sero violados, o que comprova a tese de retro-alimentao.
Logo, a democracia permite que o Direito segundo o qual o Estado ser constitudo
seja manifestado livre e originariamente pelo povo. o que lhe confere legitimidade, nos
termos da teoria de Habermas, no bastando a mera observncia da legalidade, embora esta
tambm seja indispensvel. Neste Estado, o poder pertence ao povo, mas como no pode
26
BOBBIO, Noberto, O futuro da democracia..., p. 32-33. 27
Idem, p. 22. 28
Idem, p. 31. Embora no se possa deixar de lado a importncia da regra da maioria, deve-se consignar as
crticas tecidas por Fbio Konder Comparato, baseado em Rousseau. Para ele, a vontade que deve ser levada
em considerao no a da maioria, mas a geral. Elas diferem porque esta no pode ser obtida pelo mero
cmputo numrico, mas sim pela homogeneidade de contedo ou objeto das diversas manifestaes de
vontade. Nas palavras do autor: A expresso da soberania popular no fica, assim, confinada ao nmero dos votantes, mas qualidade dos votos. No rigor lgico desse raciocnio, a opinio da minoria, ou mesmo
de um s, deveria ser tomada como expresso da vontade geral e, portanto, da soberania, se todos os demais votantes defendessem, com seus votos, interesses particulares e no o interesse geral. Cf. COMPARATO, Fbio Konder, Para Viver a Democracia, So Paulo, Brasiliense, 1989.
22
ser exercido por todos concomitantemente, ser conquistado mediante legtimos e normais
processos democrticos. 29
Neste ponto, interessante observar uma questo terminolgica. A Constituio
portuguesa traz a expresso Estado de Direito Democrtico. Conquanto no se possa tax-
la de equivocada, a expresso Estado Democrtico de Direito, adotada pela Constituio
brasileira, muito mais adequada, pois o ideal que o adjetivo democrtico qualifique
diretamente o Estado, de sorte a irradiar valores da democracia sobre todos os seus
elementos constitutivos, sobretudo a ordem jurdica, conforme exposto no pargrafo
anterior.30
E por falar em Constituio Portuguesa, no poderiam ser olvidados os
apontamentos de J.J. Gomes Canotilho sobre pressupostos do Estado de Direito, pois, alm
do brilhantismo de sua teoria, ela serve perfeitamente justificao da defesa da reserva de
jurisdio, haja vista o autor ser um dos precursores do tema objeto deste estudo.
2.3. OS PRESSUPOSTOS DO ESTADO DE DIREITO NA TEORIA DE
CANOTILHO
Optou-se por abrir um item especfico para apresentar a viso de Canotilho sobre o
Estado de Direito por esta ser bastante peculiar. Os autores que tratam do tema no
costumam mencionar sua sistematizao, mas, em ltima instncia, aproxima-se do
defendido pelos demais doutrinadores, apresentando, por bvio, uma admirvel evoluo.
Canotilho enumera os pressupostos do Estado de Direito, englobando os materiais e
os formais. Com efeito, pressuposto, em sua acepo jurdica, definido
29
REALE, Miguel, O Estado Democrtico de Direito e o Conflito das Ideologias, 2 ed. rev., So Paulo,
Saraiva, 1999, p. 2 e 9; DUTRA, Delamar Jos Volpato, A legalidade como forma do Estado de Direito..., p.
59. 30
SILVA, Jos Afonso da, O Estado Democrtico de Direito..., p.15; DALLARI, Dalmo de Abreu, Estado de
Direito e Cidadania..., p. 196-197.
23
como circunstncia ou fato em que se considera um antecedente necessrio de outro31.
Sendo assim, o ilustre doutrinador portugus elenca circunstncias que devem ser
implementadas para que possa surgir um ambiente propcio ao desenvolvimento do Estado
de Direito. So pressupostos materiais a juridicidade, a constitucionalidade e os direitos
fundamentais; e so formais a diviso de poderes e a administrao local autnoma.
A juridicidade relaciona-se idia de ordenao atravs do direito, ponto que j foi
abordado em tpico anterior. No mesmo sentido do exposto, a lei formal no suficiente,
apontando-se para a idia de Justia, exigindo-se proteo aos direitos e equidade na
distribuio de direitos e deveres fundamentais.32
Diz o autor:
A justia far, assim, parte da prpria idia de direito (Radbruch) e esta
concretizar-se- atravs de princpios jurdicos materiais cujo denominador
comum se reconduz afirmao e respeito da dignidade da pessoa humana,
proteco da liberdade e desenvolvimento da personalidade e realizao da
igualdade.33
A constitucionalidade pressupe a existncia de uma constituio normativa
estruturante de uma ordem jurdico-normativa fundamental vinculativa de todos os poderes
pblicos. Seu principal dote a supremacia da constituio, expresso do primado do
Direito essencial ao Estado de Direito. Possui importantes implicaes, as quais passamos
a abordar.34
Deriva da constitucionalidade a necessidade do legislador se vincular
constituio, de maneira a elaborar as leis em conformidade com o que nela est prescrito,
isto , pelo rgo nela determinado, seguindo o procedimento nela firmado e dando-lhe a
forma necessria. Outrossim, o contedo da constituio o parmetro material dos atos
31
Dicionrio Houaiss, disponvel em http://houaiss.uol.com.br, acesso em 06.12.2008. 32
CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, Direito constitucional e teoria da constituio, 7 ed., Coimbra,
Almedina, 2003, p. 243-245. 33
Idem, p. 245. 34
Idem, p. 245.
24
legislativos, que no podem contrari-la. Tambm devem possuir conformidade com a
constituio todos os atos dos poderes pblicos. Tudo isso tem a ver com a fora normativa
da constituio, que, apesar de no ter o condo de realizar uma regulao completa de
todos os atos, no poder ser ignorada quando o fizer.35
Ainda, a supremacia da constituio exprime-se atravs da reserva de constituio,
segundo a qual determinadas questes no devem ser objeto de leis ordinrias. Sua
concretizao d-se, basicamente, por meio de dois princpios: o princpio da tipicidade
constitucional de competncias e o princpio da constitucionalidade de restries a direitos,
liberdades e garantias.36
O terceiro e ltimo pressuposto material do Estado de Direito o sistema de
direitos fundamentais. Trata-se da necessidade de haver uma base antropolgica que o
estruture, o que pode vir consignado por meio do respeito e garantia de efetivao dos
direitos fundamentais, ou pelo embasamento na dignidade da pessoa humana.37
Estes trs pressupostos j apontados relacionam-se idia de ordenao subjetiva, a
qual confere aos indivduos um status jurdico ancorado nos direitos fundamentais. Porm,
a seu lado, situa-se a ordenao objetiva que, conquanto no deixe de se relacionar com a
constitucionalidade, tem como princpio estruturante o quarto pressuposto do Estado de
Direito, a diviso de poderes.38
Na verdade, Canotilho enxerga o princpio da diviso de poderes como uma das
dimenses do princpio da separao de poderes que, por sua vez, possui uma dimenso
negativa e uma positiva. A diviso de poderes a dimenso negativa, a qual implica a
diviso, controle e limite do poder. Por sua vez, a dimenso positiva consiste na
constitucionalizao, ordenao e organizao do poder. A primeira garante e protege a
esfera dos indivduos, evitando a concentrao de poder. J a segunda, assegura a
35
CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, Direito constitucional e teoria da constituio..., p. 246-248. 36
Idem, p. 247. 37
Idem, p. 248. 38
Idem, p. 250.
25
ordenao das funes do Estado, servindo de esquema de competncias, tarefas, funes e
responsabilidades dos rgos constitucionais da soberania.39
Por fim, o quinto pressuposto seria a garantia de administrao autnoma local, que
tem relao com a problemtica do princpio democrtico, porquanto a democracia
descentralizada possibilita uma maior participao dos cidados. O prprio autor admite
que a conexo com o Estado de Direito no to clara, mas explica que a descentralizao
funciona como limite ao poder central.40
Expostos os pressupostos ao Estado de Direito, circunstncias que possibilitam seu
surgimento na realidade ftica, h que se afirmar que o princpio do Estado de Direito
propriamente dito um conceito constitucionalmente caracterizado, uma forma de
racionalizao, cujos elementos podem ser identificados no texto fundamental. Canotilho
afirma que, em geral, so considerados elementos do Estado de Direito a supremacia da
Constituio; a legalidade da administrao; a diviso dos poderes; a independncia dos
tribunais e a vinculao do juiz lei (que pode estar englobada no item anterior); e a
garantia da proteo jurdica, isto , dos direitos fundamentais.41
Deste rol, podemos extrair dois elementos essenciais discusso acerca da reserva
de jurisdio, a diviso dos poderes e a garantia dos direitos fundamentais, os quais sero
exaustivamente mencionados no decorrer deste trabalho.
Aps essa breve explanao terica, torna-se indispensvel anlise do Estado de
Direito existente na Constituio do Brasil de 1988, de modo a identificar e analisar a
presena desses elementos na estrutura erigida pelo Constituinte.
39
CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, Direito constitucional e teoria da constituio..., p. 250. 40
Idem, p. 253. 41
Idem, p. 255.
26
2.4. CARACTERIZAO DO ESTADO DEMOCRTICO DE DIREITO NO
BRASIL
Nossa Constituio Cidad incorporou os anseios da sociedade, abrindo
perspectivas para a realizao social profunda mediante a prtica de direitos sociais e
instrumentos de cidadania, fundando-se na dignidade da pessoa humana.42
Nesse sentido, o
artigo 1 da Constituio Federal do Brasil proclama e funda o Estado Democrtico de
Direito nos seguintes termos:
Art. 1 A Repblica Federativa do Brasil, formada pela unio indissolvel dos
Estados e Municpios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrtico de
Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo poltico.
Pargrafo nico. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituio.
O regime democrtico est consignado no pargrafo nico, ao se afirmar que todo
poder emana do povo. Observe-se, ainda, que a democracia estabelecida a representativa,
42
SILVA, Jos Afonso da, O Estado Democrtico de Direito..., p.17; CORTEZ, Lus Francisco Aguilar,
Judicirio e Democracia..., p. 167.
27
uma vez que a Constituio fala em exerccio do poder por meio de representantes. O
princpio da soberania popular , destarte, o fundamento maior do Estado Democrtico de
Direito, impondo a participao efetiva e operante do povo na coisa pblica, possibilitando
a garantia geral dos direitos fundamentais da pessoa humana.43
Os fundamentos previstos nos incisos do artigo so caractersticas decorrentes da
adoo da democracia como fator legitimador da ordem jurdica brasileira e merecem
ateno.
Segundo Miguel Reale, a soberania nacional o direito que cada Nao tem de
preservar sua prpria identidade cultural e salvaguardar seus prprios interesses.44 Com
efeito, pressupe a excluso da subordinao do povo e do Estado brasileiros a
determinantes externas de conduta ou atuao.45
A cidadania e a dignidade da pessoa humana so fundamentos que devem ser
interpretados conjugadamente, j que possuem ntima conexo. A cidadania pressupe o
respeito dignidade da pessoa humana, uma vez que este confere a dimenso jurdico-
poltica que cada cidado adquire nos termos no artigo 5 da Constituio. Alm do mais,
ambos so ncleos de irradiao dos demais direitos fundamentais.46
Alguns interpretam o valor da livre iniciativa como contrrio ao princpio
democrtico. No entanto, ao consignar os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o
constituinte pretendeu apenas vedar a estatizao da economia, sem que isso indique
inobservncia dos direitos sociais.47
43
SILVA, Jos Afonso da, O Estado Democrtico de Direito..., p.13-15. 44
REALE, Miguel, O Estado Democrtico de Direito..., p. 3. 45
SILVA, Jos Afonso da, O Estado Democrtico de Direito..., p.13-15. 46
REALE, Miguel, O Estado Democrtico de Direito..., p. 3; SILVA, Jos Afonso da, O Estado Democrtico
de Direito..., p.17. 47
REALE, Miguel, O Estado Democrtico de Direito..., p. 4; SILVA, Jos Afonso da, O Estado Democrtico
de Direito..., p.19.
28
Por fim, o pluralismo poltico deve ser visto como a vedao ao totalitarismo e o
partido nico, que impedem o desenvolvimento de uma sociedade participativa, bem como
da efervescncia de idias tpicas de uma democracia.48
Vale mencionar, tambm, que para Jos Afonso da Silva o verdadeiro Estado
Democrtico de Direito que tiver os fundamentos acima expostos dever resultar na
realizao de alguns princpios relevantes, quais sejam: o princpio da constitucionalidade;
o princpio democrtico; a garantia da efetividade dos direitos fundamentais; o princpio da
justia social; o princpio da igualdade; e a diviso de poderes, esta ltima prevista no
artigo 2 da Constituio Federal.49
Miguel Reale defende, ainda, que os artigos 5 e 6 da Constituio brasileira, os
quais trazem em seu bojo a definio dos direitos individuais e sociais, so
desdobramentos do artigo 1 ora em estudo, de maneira que tambm devem integrar o
conceito de Estado Democrtico de Direito.50
Isso porque o terceiro modelo de Estado no
abandonou os preceitos do Estado Liberal e do Estado Social. Ao contrrio, simboliza uma
sntese de ambos com a adio dos princpios democrticos.
Essa breve anlise diz respeito estritamente aos contornos do Estado Democrtico
de Direito delineado pela Constituio Federal brasileira de 1988. No entanto, para uma
abordagem crtica completa, imperiosa a correlao com os pressupostos e elementos do
Estado de Direito preconizados por Canotilho e apresentados no item 2.3.
No que tange aos pressupostos, temos que a juridicidade nsita ao prprio
conceito de Estado como ordem jurdica, nos termos dos itens iniciais deste estudo, sendo
indiscutvel sua presena no Estado brasileiro. A constitucionalidade tambm resta patente
a partir do momento em que a ordem jurdica normativa fundamental do pas estruturada
por meio de uma constituio. Mencionamos, desde j, a presena indiscutvel da
descentralizao administrativa, haja vista o federalismo institudo.
48
REALE, Miguel, O Estado Democrtico de Direito..., p. 4; SILVA, Jos Afonso da, O Estado Democrtico
de Direito..., p.19. 49
SILVA, Jos Afonso da, O Estado Democrtico de Direito..., p. 20-21. 50
REALE, Miguel, O Estado Democrtico de Direito..., p. 3.
29
Os dois pressupostos faltantes merecem ateno especial. Alm de serem de
extrema importncia, ambos acabam implicando ou se relacionando com o que Canotilho
denominou de elementos do Estado de Direito e foram por ns destacados como centrais
nas discusses sobre as justificativas da reserva de jurisdio. Assim, passamos a analis-
los, tratando, em seguida, dos demais elementos.
O sistema de direitos fundamentais algo essencial ao Estado de Direito, e foi
lembrado com honras pelo constituinte brasileiro. Com efeito, no obstante a dignidade da
pessoa humana ter sido eleita como seu fundamento, os artigos 5 e 6 da Carta Magna e
seus inmeros incisos foram dedicados construo de um sistema de direitos e garantias
tpicos de um Estado cuja preocupao central o indivduo, a pessoa humana. Lembrando
que alm do sistema ser um pressuposto para a existncia do Estado de Direito, a garantia
desses direitos tida como um elemento do instituto, e os inmeros mecanismos de
proteo previstos nos dispositivos mencionados e em todo o texto constitucional
comprovam sua existncia no Estado brasileiro.
No que tange diviso de poderes, pressuposto e elemento do Estado de Direito
para Canotilho, ela est prevista no artigo 2 da Constituio de 1988, conforme j
mencionado acima, em dispositivo que deixa clara sua dimenso negativa, ao consignar a
independncia e harmonia dos poderes, claro mecanismo de controle recproco que ser
analisado pormenorizadamente adiante. Outro elemento aludido pelo autor portugus que
pode ser considerado corolrio deste a independncia do Poder Judicirio, tambm
insistentemente presente em nossa ordem jurdica.
Finalmente, o nico elemento que no constitui pressuposto do Estado de Direito
para Canotilho o princpio da legalidade. Em ltima instncia, por bvio, acaba se
relacionando com a idia de juridicidade e respeito lei, relao esta to natural e evidente
que, s vezes, deixa de ser mencionada expressamente.
Temos, portanto, que o Estado Democrtico de Direito possui as caractersticas
essenciais do Estado Liberal mencionadas em tpico anterior51
, conjuntamente com as
51
Primazia da lei e do sistema hierrquico de normas, observncia da legalidade por parte da administrao,
diviso dos poderes estatais e o reconhecimento e garantia dos direitos individuais.
30
caractersticas decorrentes da adoo do regime democrtico, que Canotilho divide em
pressupostos e elementos e ns as identificamos na ordem jurdica brasileira.
Diante da relevncia extrema de trs dos elementos estudados e das reiteradas
aluses feitas pelos autores consultados, eles sero explorados com maior profundidade,
at porque so erigidos por muitos como verdadeiros pilares do atual Estado Democrtico
de Direito brasileiro: o princpio da primazia da lei; a dignidade da pessoa humana; e a
independncia dos poderes.
2.4.1. SUBMISSO LEI
Como exposto acima, a primazia da lei um princpio que surgiu com vistas a
limitar o poder absoluto exercido pelos monarcas at o sculo XVI, que possuam livre
atividade criadora. Segundo Pablo Lucas Verd, a formalizao do Direito, a partir da qual
o Estado insere-se na juridicidade, iniciou-se com a escola naturalista protestante, que vai
de Grcio a Kant. A partir de ento, a lei passa a ser vista como esquema geral, formal e
obrigatrio, apoiada na fora do aparato estatal.52
E se a lei, ou melhor, o Direito, fruto da vontade do povo, ainda que por meio da
representao parlamentar, todos devem se submeter a ela, inclusive e, sobretudo, o
governante, evitando-se, assim, o cometimento de atos com abuso de poder. Essa a razo
maior de ser do surgimento do Estado de Direito.
Segundo esclio de Jos Afonso da Silva, a submisso ao imprio da lei a nota
primria do conceito de Estado de Direito, considerando-se a lei como ato formalmente
emanado do Poder Legislativo, o qual se compe de representantes do povo. Essa lei deve
ser geral e abstrata, para que dela deflua a igualdade.53
J sabemos que essa igualdade
meramente formal se legalidade no forem acrescentados elementos democrticos, razo
52
VERD, Pablo Lucas, A luta pelo Estado de Direito..., p. 16. 53
SILVA, Jos Afonso da, Curso de direito constitucional positivo..., p. 112-118.
31
pela qual para que haja um verdadeiro Estado de Direito, no basta a submisso lei,
sendo necessrios, no mnimo, o respeito dignidade humana e a diviso de poderes.
Muito pertinente a transcrio de um trecho da obra de Jos Joaquim Gomes
Canotilho em que discorre sobre o tema:
O princpio da legalidade postula dois princpios fundamentais: o princpio da
supremacia ou prevalncia da lei (Vorrang des Gesetzes) e o princpio da reserva
de lei (Vorbehalt ds Gesetzes). Estes princpios permanecem vlidos, pois num
Estado democrtico-constitucional a lei parlamentar , ainda, a expresso
privilegiada do princpio democrtico (da sua supremacia) e o instrumento mais
apropriado e seguro para definir os regimes de certas matrias, sobretudo dos
direitos fundamentais e da vertebrao democrtica do Estado (da a reserva de
lei).54
De qualquer maneira, resta patente que a legalidade foi um parmetro
implementado para proporcionar aos cidados tratamento digno e equnime. Digno
porquanto no sero admitidos atos abusivos por parte dos detentores do poder e equnime
porquanto todos recebero o mesmo tratamento de acordo com os ditames legais. Nesse
sentido, Miguel Reale aduz que o princpio da legalidade:
consiste em no pretender que a vontade individual ou coletiva seja superior
vontade objetivamente consubstanciada nos mandamentos da Constituio e das
Leis.55
54
CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, Direito constitucional e teoria da constituio..., p. 256. 55
REALE, Miguel, O Estado Democrtico de Direito..., p. 9.
32
Observe-se que o conceito de legalidade evoluiu a ponto de desenvolver diversos
vieses. Sob o ponto de vista de um cidado comum, a legalidade um direito negativo, por
assegurar que no ser obrigado a fazer ou deixar de fazer nada se no houver uma lei que
lhe imponha o dever. Mas sob o ponto de vista do Estado, que o verdadeiro
desenvolvimento da primazia da lei atinente aos primrdios do Estado de Direito, traz a
idia de que a administrao s pode ser exercida em conformidade com a lei. o que se
denomina legalidade estrita.56
A primazia da lei, portanto, contrape-se a qualquer exacerbao personalista dos
governantes e ope-se a qualquer forma de autoritarismo, pois sua raiz a idia de
soberania popular, na medida em que o poder emana do povo e os executores do poder so
meros representantes deles. Como tais, devem observar estritamente os enunciados legais,
que nada mais so do que a expresso da vontade do povo.57
Adiante, veremos que a existncia de um rgo judicial fulcral para garantir a
legalidade. Antes, porm, cumpre discorrer sobre a dignidade da pessoa humana.
2.4.2. RESPEITO DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A idia do ser humano como valor absoluto originou-se com o surgimento do
Cristianismo e consolidou-se aps a obra de Kant sobre o tema, para quem o ser humano
um fim em si mesmo e a dignidade humana seria decorrente da razo e liberdade
humanas.58
56
MELLO, Celso Antonio Bandeira de, Curso de Direito Administrativo, 25 Ed. rev. e atual. at a EC 56 de
10.12.2007, So Paulo, Malheiros Editores, 2008, p. 101 e 105. Observe-se que a legalidade como direito do
cidado prevista no inciso II do artigo 5 da Constituio Federal, enquanto que a legalidade a que se
submete o aparato estatal, est consignada no artigo 37, caput, da mesma. 57
MELLO, Celso Antonio Bandeira de, Curso de Direito Administrativo..., p. 100-101. 58
COSTA, Helena Regina Lobo da, A Dignidade Humana: teorias de preveno geral positiva, So Paulo,
Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 21 e 24; GARCIA, Edins Maria Sormani, O fundamento da
consagrao da pessoa humana no texto constitucional brasileiro de 1988, in 15 anos da Constituio
Federal: em busca da efetividade, Jos Roberto Martins Segalla e Luiz Alberto David Araujo (coord.),
Bauru, EDITE, 2003, p. 212; WAJNGARTEN, Aron e BRIANI, Alberto, Aplicao do Princpio da Dignidade
33
Segundo Miguel Reale, o valor da pessoa humana :
valor fonte, ou seja, aquele do qual emergem todos os valores, os quais somente
no perdem sua fora imperativa e sua eficcia enquanto no se desligam da raiz
de que promanam.59
Por isso, o princpio da dignidade da pessoa humana considerado o fundamento
filosfico dos direitos fundamentais, expressando-se por meio deles. O princpio da
dignidade da pessoa humana uma diretriz estrutural e axiolgica que determinou a
inscrio dos direitos fundamentais em nossa Constituio e, ainda, exerce influncia sobre
o trabalho hermenutico do legislador, do administrador e do julgador. Note-se que
prevaleceu uma conceituao ampla dele, abrangendo tanto os direitos individuais quanto
os sociais.60
Conforme preleciona Flvia Piovesan, os direitos fundamentais so elemento bsico
de realizao do princpio democrtico. A Constituio de 1988 elegeu a dignidade da
pessoa humana como valor essencial, o que significa que a pessoa o fim e o fundamento
da sociedade e do Estado e, conseqentemente, da ordem jurdica.61
A dignidade da pessoa humana no apenas princpio fundamental da constituio,
mas tambm de todo ordenamento jurdico e das aes estatais. Com sua positivao, fica
Humana, in 15 anos da Constituio Federal: em busca da efetividade, Jos Roberto Martins Segalla e Luiz
Alberto David Araujo (coord.) Bauru, EDITE, 2003, p.41; TAVARES, Andr Ramos, Princpio da Dignidade
da Pessoa Humana, in 15 anos da Constituio Federal: em busca da efetividade, Jos Roberto Martins
Segalla e Luiz Alberto David Araujo (coord.) Bauru, EDITE, 2003, p. 16. 59
REALE, Miguel, O Estado Democrtico de Direito..., p. 100. 60
COSTA, Helena Regina Lobo da, A Dignidade Humana..., p. 31 e 37; MORAES, Maurcio Zanoide de,
Presuno de inocncia no Processo Penal Brasileiro: anlise de sua estrutura normativa para a
elaborao legislativa e para a deciso judicial, Tese apresentada Egrgia Congregao da Faculdade de
Direito da Universidade de So Paulo como exigncia parcial obteno do ttulo de Livre-Docncia em
Direito Processual Penal, So Paulo, 2008, p. 227. 61
PIOVESAN, Flavia, Direitos Humanos e o direito constitucional internacional, 7 ed. rev., ampl. e atual.,
So Paulo, Editora Saraiva, 2006, p. 26-28; WAJNGARTEN, Aron e BRIANI, Alberto, Aplicao do Princpio
da Dignidade Humana..., p.40.
34
claro que o homem o incio e o fim da sociedade, do Estado e do Direito, no sendo o
meio para a consecuo de algum outro objetivo.62
Nesse sentido, o Estado existe em funo de todas as pessoas e no o contrrio. O
mesmo deve ser dito com relao ao Direito. Uma prova disso no direito posto que o
captulo referente aos direitos fundamentais em nossa Constituio antecede ao captulo
que trata da organizao do Estado.63
Outrossim, deve ser destacado que a forma com que
a Constituio Federal de 1988 protege a pessoa humana denota que ela o valor supremo
da democracia, raiz antropolgica constitucionalmente estruturante do Estado.64
O seguinte excerto de Edlson Pereira Farias expressa muito bem o papel exercido
pela pessoa humana na ordem jurdica:
"A pessoa humana hoje considerada como o mais eminente de todos os valores
porque constitui a fonte e a raiz de todos os demais valores. Representa 'a fonte
principal de enriquecimento e de dinamismo da sociedade'. Por conseguinte, a
pessoa humana expressa a fonte e a base mesma do direito, revelando-se, assim,
critrio essencial de legitimidade da ordem jurdica."65
No mbito especfico do Processo Penal tambm se constata que o ser humano
um valor supremo contra o qual o Estado no pode perpetrar nenhuma ao violadora. Isso
porque os direitos fundamentais dirigidos a este ramo jurdico exigem que as investigaes
sejam levadas a cabo respeitando-se os limites e formas legtimas.66
Assim, retomando a idia de Estado de Direito material abordada em tpico
anterior, afirmamos que ele s ser realizado plenamente se houver respeito dignidade
62
MORAES, Maurcio Zanoide de, Presuno de inocncia..., p. 236-237. 63
WAJNGARTEN, Aron e BRIANI, Alberto, Aplicao do Princpio da Dignidade Humana..., p. 41; TAVARES,
Andr Ramos, Princpio da Dignidade da Pessoa Humana..., p. 27. 64
GARCIA, Edins Maria Sormani, O fundamento da consagrao da pessoa humana..., p. 224. 65
FARIAS, Edilson Pereira, Coliso de Direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a
liberdade de expresso e informao, 2ed. atual., Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 2000, p. 56. 66
MORAES, Maurcio Zanoide de, Presuno de inocncia..., p. 233.
35
humana e aos direitos fundamentais. O Estado Democrtico de Direito, ao contrrio do
Estado Legal, no se legitima por meio da mera subordinao lei. necessrio, tambm,
que se observem os valores fundamentais consubstanciados na dignidade humana.67
Por tal
razo, temos que o princpio da dignidade da pessoa humana um dos grandes pilares do
modelo de Estado Democrtico de Direito.68
Diante de tamanha importncia, essencial que exista um rgo com atributos que
permitam promover sua proteo da melhor maneira possvel. Nessa estrutura estatal
exposta, este rgo o Poder Judicirio e nenhum outro poder se imiscuir nessa atividade.
O porqu dessa conjuntura comea a ser explicado pelo estudo da teoria da separao dos
poderes, o que passamos a fazer no item seguinte.
2.4.3. PODERES HARMNICOS E INDEPENDENTES ENTRE SI
Os tericos do sculo XVII, como Locke e Montesquieu, conceberam a regra
tcnica da separao de poderes como meio de garantir o primado da lei e a limitao do
poder, com vistas a proteger os direitos fundamentais. Em suma, a teoria da separao dos
poderes foi concebida com vistas a garantir o Estado de Direito. Por tal razo, foi
consignada na Declarao de Direitos do Homem e do Cidado como requisito
indispensvel em uma constituio.69
A evoluo dessa teoria at os dias atuais possui inmeros fatores relevantes para o
objeto deste estudo, em funo do que ser tratada em item especfico. No entanto, por ora,
basta afirmar que o artigo 2 da Constituio Federal de 1988 consagrou a diviso de
poderes do Estado Democrtico de Direito brasileiro nos seguintes termos: so poderes
da Unio, independentes e harmnicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judicirio.
67
COSTA, Helena Regina Lobo da, A Dignidade Humana..., p. 37. 68
GARCIA, Edins Maria Sormani, O fundamento da consagrao da pessoa humana..., p. 222. 69
VERD, Pablo Lucas, A luta pelo Estado de Direito..., p. 4; COELHO, Inocncio Mrtires, O Perfil
Constitucional do Estado Contemporneo..., p. 10; TAVARES, Andr Ramos, Repartio de funes estatais:
fundamento, estrutura e finalidade, in Revista do Advogado, Ano XXIII, n. 73, novembro de 2003, p. 21-23.
36
Extrai-se do texto constitucional que no foi imposta ao Brasil a teoria radical de
separao total de poderes pregada por alguns que, como se ver, sequer foi defendida por
Montesquieu. A organizao dos Poderes de Estado brasileiros tem grande influncia da
teoria dos freios e contrapesos elaborada pelos tericos norte-americanos e, em virtude
disso, deve obedecer a essas duas premissas: independncia e harmonia.
Segundo Jos Afonso da Silva:
A independncia dos poderes significa: (a) que a investidura e permanncia das
pessoas num dos rgos do governo no dependem da confiana nem da vontade
dos outros; (b) que, no exerccio das atribuies que lhes sejam prprias, no
precisam os titulares consultar os outros nem necessitam de sua autorizao; (c)
que, na organizao dos respectivos servios, cada um livre, observadas apenas
as disposies constitucionais e legais.70
Sendo assim, todos os Poderes do Estado possuem total liberdade para o exerccio
de suas competncias, sem que os demais se imiscuam em seus assuntos. Todavia, para
no haver uma total segmentao da atuao governamental, tendo em vista a unicidade do
poder, h que se observar a harmonia em sua atuao.
A cortesia deve pautar a conduta de todos os rgos representantes dos Poderes
estatais, havendo respeito recproco s prerrogativas e faculdades de cada um. Por outro
lado, com vistas a atingir o equilbrio necessrio realizao do bem da coletividade,
evitando-se arbtrios e desmandos, a Constituio Federal permite, em alguns casos,
interferncias de um Poder no outro, de modo que a independncia preconizada acima no
pode ser tomada como absoluta. Exemplos dessas ingerncias so o poder de veto do
70
SILVA, Jos Afonso da, Curso de direito constitucional positivo..., p. 110.
37
Presidente da Repblica em face de atos legislativos e a declarao de
inconstitucionalidade das leis por parte dos tribunais.71
A existncia de uma colaborao entre os Poderes estatais facilmente depreendida
do exposto, sendo um dos pilares que sustentam o atual Estado Democrtico de Direito.
O tema, no entanto, enseja grandes discusses quando adentramos ao estudo de
cada uma das funes exercidas pelos poderes, tarefa que devemos empreender, haja vista
o objeto deste trabalho. Com efeito, pretendemos delinear com exatido a funo que deve
ser exercida por cada um dos Poderes estatais para, ento, demonstrar que a funo
essencial do Poder Judicirio no pode ser exercida por qualquer outro rgo. Alm disso,
pretendemos provar que a restrio de direitos fundamentais na aplicao da lei a casos
concretos no est contida no rol de atribuies relativas funo legislativa.
Destarte, faremos uma breve exposio acerca da teoria da separao dos poderes
para, depois, examinar pormenorizadamente o contedo das funes exercidas por cada um
deles. Considerando a amplitude do assunto, ele ser abordado em tpico especfico.
2.5. DAS FUNES ESSENCIAIS AO ESTADO E SUA DIVISO
2.5.1. DA EVOLUO DA TEORIA DA SEPARAO DOS
PODERES
Embora a teoria da separao dos poderes s tenha ganhado corpo e divulgao no
sculo XVII, sua elaborao remete Antiguidade, quando Plato e Aristteles
desenvolveram a teoria da constituio mista e sua idia de equilbrio de foras diversas.72
71
SILVA, Jos Afonso da, Curso de direito constitucional positivo..., p. 110-111.
38
J sob a influncia do movimento iluminista, John Locke delineou a existncia de
trs Poderes no Estado, o Legislativo, que seria responsvel pela edio de leis; o
Executivo, a quem caberia a aplicao das leis; e o Federativo, cuja atribuio era cuidar
das relaes exteriores, sobretudo de assuntos ligados a paz e guerra. Enquanto o Poder
Legislativo deveria ser exercido pelo Parlamento, os demais eram conferidos ao monarca.73
Como se percebe, o autor ingls no mencionou o Poder Judicirio.74
Mas foi Mostesquieu, estudioso francs que se debruou sobre a realidade inglesa,
que elaborou a grande sistematizao sobre a separao de poderes na obra Do Esprito da
Leis. O autor norteou-se pela idia de pessimismo antropolgico, partindo do pressuposto
de que todo aquele que possui poder sem limites tende a se corromper, de modo que devem
ser criados mecanismos que impeam qualquer abuso.75
O estudioso transplantou para mbito da teoria poltica uma viso mecanicista do
universo, em que os trs rgos do Estado apresentariam um equilbrio semelhante quele
que se verifica na trajetria dos astros.76
A teoria de Montesquieu vislumbrou trs funes, as quais deveriam ser
desempenhadas por trs rgos, ou centros de autoridade, distintos, os quais foram
denominados de poderes em sua obra.77
Karl Lowenstein esclarece que a teoria da
separao de poderes significa que, por um lado, o Estado tem de cumprir vrias funes e,
por outro, os cidados so beneficiados quando elas so exercidas por diferentes rgos.
72
REIS, Jos Carlos Vasconcellos dos, Controle externo do Poder Judicirio e Separao de Poderes, in
Direito Constitucional Brasileiro perspectivas e controvrsias contemporneas, Regina Quaresma e Maria Lcia de Paula Oliveira (coord.), Rio de Janeiro, Editora Forense, 2006, p. 195; RUSSOMANO, Rosah, Curso
de Direito Constitucional, 5 ed. rev. e atual., Rio de Janeiro, Freitas Bastos Editora, 1997, 136; CORTEZ,
Lus Francisco Aguilar, Judicirio e Democracia..., p. 171. 73
REIS, Jos Carlos Vasconcellos dos, Controle externo do Poder Judicirio... p. 196; RUSSOMANO, Rosah,
Curso de Direito Constitucional..., p. 137 74
REIS, Jos Carlos Vasconcellos dos, Controle externo do Poder Judicirio..., p. 197; CORTEZ, Lus
Francisco Aguilar, Judicirio e Democracia..., p. 171. 75
REIS, Jos Carlos Vasconcellos dos, Controle externo do Poder Judicirio..., p. 197; TAVARES, Andr
Ramos, Repartio de funes estatais..., p. 22. 76
REIS, Jos Carlos Vasconcellos dos, Controle externo do Poder Judicirio..., p.. 197. 77
KORZENIAK, Jose, La separacion de los poderes del gobierno, in Defensa de La Constitucion Nacional,
Facultad de Derecho y Ciencias Sociales, Montevideo, 1986, p. 25; RUSSOMANO, Rosah, Curso de Direito
Constitucional..., p. 137.
39
Trata-se, portanto, de uma distribuio de funes estatais com o escopo de controlar o
arbtrio.78
Rosah Russomano afirma que o Montesquieu tratou do Poder Legislativo, Poder
Executivo do Direito Internacional e Poder Executivo do Direito Civil, mas os demais
autores costumam adaptar a terminologia, falando em Poder Legislativo, Executivo e
Judicial, respectivamente.79
Com efeito, para Montesquieu, a funo legislativa seria aquela responsvel pela
elaborao das leis gerais e abstratas, podendo alter-las ou ab-rog-las. O Poder Executivo
do Direito Internacional, ou apenas executivo, trata dos assuntos de guerra e paz, defende a
soberania, ou seja, cuida das relaes internacionais e executa as leis. Finalmente, o Poder
Executivo do Direito Civil, ou Judicial, tem a atribuio de punir os crimes ou julgar as
querelas dos indivduos. Cumpre ressaltar que o Poder Executivo deve ser exercido pelo
monarca, porquanto necessite de uma ao imediata; o Legislativo deve ser confiado aos
representantes do povo; e o Poder de julgar deve ser exercido por pessoas extradas do
corpo do povo que possuam mandatos temporrios.80
Merece destaque a dissidncia existente entre os autores acerca da natureza do
Poder Judicial. fato que, para o autor, o Judicirio deveria ser apenas a boca que
pronuncia as sentenas da lei. Em vista disso, Antonio Umberto de Souza Junior entende
que o Judicirio seria nulo, como resposta desconfiana que existia com relao ao
magistrado da fase absolutista.81
J Luiz Francisco Aguilar Cortez propugna que a funo
judicial residual nesse contexto, uma vez que no possui autonomia e os tribunais no
seriam permanentes.82
Dalmo Dallari esclarece que a limitao da atribuio de julgar do
Estado decorre de uma excessiva preocupao com a liberdade individual, deixando-se de
78
LOWENSTEIN, Karl, Teora de La Constitucin, Alfredo Gallego Anabitarte (trad.), Barcelona, Ediciones
Ariel, 1970. p. 55. 79
KORZENIAK, Jose, La separacion de los poderes del gobierno..., p. 25; RUSSOMANO, Rosah, Curso de
Direito Constitucional..., p. 137. 80
KORZENIAK, Jose, La separacion de los poderes del gobierno..., p. 25; RUSSOMANO, Rosah, Curso de
Direito Constitucional..., p. 137; REIS, Jos Carlos Vasconcellos dos, Controle externo do Poder
Judicirio..., p. 198. 81
SOUZA JUNIOR, Antonio Umberto de, Entre a primeira e a ltima palavras ensaio sobre a amplitude da
reserva constitucional de jurisdio, in Revista da Faculdade de Cincias Jurdicas e Sociais do Centro
Universitrio de Braslia, n. 13, janeiro/junho 2006, p. 79. 82
CORTEZ, Lus Francisco Aguilar, Judicirio e Democracia..., p. 171.
40
lado a eficincia da atividade.83
Nesse sentido, pertinente a transcrio do seguinte
excerto:
Quanto funo de julgar, v-se o relevo dado por Montesquieu, e pelos
Iluministas em geral, legalidade como proteo dos direitos individuais, naquele
momento histrico em que o processo, de carter inquisitorial, colocada acusados
merc do julgador.84
De todo o exposto, percebe-se que Montesquieu sempre pregou o controle
recproco, expondo uma realidade de combinao de poderes. Foi a Revoluo Francesa
que deturpou a teoria e exagerou na idia de separao das funes. Outrossim, a expresso
poder referia-se to somente a elas, e no a rgos subjetivos.85
Para evitar que a excessiva rigidez dos limites entre as funes prejudicasse a
harmonia propugnada, foi elaborado por Bolinbroke o sistema de checks and balances
(freios e contrapesos). O escopo era justamente permitir o controle recproco entre os
rgos estatais, autorizando seu entrosamento com harmonia. Esse modelo aperfeioado
pelos federalistas, comprometidos com a democracia, aumentou a relevncia do papel
desempenhado pelo Judicirio, que seria o responsvel pela fiscalizao da observncia das
regras e princpios que garantiriam o equilbrio. 86
83
DALLARI, Dalmo de Abreu, Elementos de Teoria Geral do Estado..., p. 218. 84
REIS, Jos Carlos Vasconcellos dos, Controle externo do Poder Judicirio..., p. 198-199. 85
RUSSOMANO, Rosah, Curso de Direito Constitucional..., p. 139. 86
Idem, p. 140; SOUZA JUNIOR, Antonio Umberto de, Entre a primeira e a ltima palavras..., p. 80-81;
41
2.5.2. CONTEDO DAS FUNES
Canotilho explica que, ao se falar em separao de poderes, no se est
referindo a uma repartio do prprio poder do Estado, mas sim diviso da sua atividade,
de modo a resultar na existncia de diversas funes estatais diferenciadas.87
Para melhor
compreender o tema, imprescindvel a definio da idia de funo e sua relao com os
rgos e Poderes estatais.
Jorge Miranda preleciona que a expresso funo do Estado pode ser dotada de
dois sentidos: o primeiro seria relacionado com a idia de necessidade coletiva, finalidade
estatal, e sofre grande alargamento em virtude do crescimento exponencial das
necessidades humanas;88
j o segundo sentido denotaria os atos e atividades desenvolvidos
pelo Estado, sendo manifestao especfica do poder poltico. Nesta ltima acepo, a
funo deve ser entendida como meio para atingir o fim.89
Neste sentido de atividade, a funo se caracteriza como um complexo ordenado de
atos destinados a um ou vrios fins. Apresenta como caractersticas: a permanncia; o fato
de ser um conjunto de atos; e as especificidades que lhe so atribudas por seus elementos
materiais (suas causas ou resultados), formais (seus trmites) e orgnicos (os quais se
revelam por seus agentes).90
Observe-se que a determinao do rgo ou agente ao qual ser atribudo o
exerccio da funo apenas um de seus elementos caracterizadores, de maneira que
devemos dar especial ateno ao contedo material da funo para diferenci-la das demais
e mais ainda s caractersticas que lhe so atribudas pelo prprio Direito. Na verdade,
87
CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, Direito constitucional e teoria da constituio..., p. 551 e 552. 88
Nesse sentido, esclarecedor o trecho da obra de Celso Antonio Bandeira de Mello, para o qual funo pblica, no Estado Democrtico de Direito, a atividade exercida no cumprimento do dever de alcanar o
interesse pblico, mediante o uso dos poderes instrumentalmente necessrios conferidos pela ordem
jurdica. Cf. MELLO, Celso Antonio Bandeira de, Curso de Direito Administrativo..., p. 29. 89
MIRAN
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