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Com o acirramento do sistema econômico capitalista neoliberal, a flexibilização da produção e o agravamento de suas conseqüências diante da globalização estão surgindo alternativas para responder a emergência da desigualdade sócio-econômica, o desequilíbrio ecológico e a efetivação de direitos. Essas propostas estão inseridas no que foi denominada de Economia Solidária.
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Carla Yoshiko Yamamora Ligia Maria P. Boulhosa
Maria Célia Martins Maria de Fátima Rocha Carvalho
Cooperativa de Catadores Autônomos de Papel, Papelão, Aparas e Materiais Reaproveitáveis
(Coopamare): uma análise da viabilidade das
propostas da Economia Solidária
Trabalho de Conclusão de Curso para obtenção do grau de Bacharel em Serviço Social. Orientadora: Luzia Fátima Baierl
Pontifícia Universidade Católica São Paulo – 2002
1
Cooperativa de
Catadores Autônomos
de Papel, Papelão,
Aparas e Materiais
Reaproveitáveis
(Coopamare): uma
análise da
viabilidade das
propostas da Economia
Solidária
2
SSoobbrreevviiddaass
"Sou o nada, o anti-humano, o par de olhos que vê sem ser visto
O desemprego tirou-me o salário, o filho, o barraco
A miséria absoluta deu sentido à minha inexistência
Hoje sou útil à sociedade
Sou mais importante que toda a esquerda junta
Sou a maior evidência que algo anda errado
Sou a prova de que a teoria do sociólogo não funciona na prática
do Presidente
Tiro o meu sustento do desperdício do mercado
Sobrevivo da opulência do lixo
Chamam-me excluído, de fato é como eu me sinto"
Josias de Souza — morador de rua
(do documentário "Sobrevidas" de Kelly Santos, 1999)
3
Sumário
1. Apresentação ............................................................................................... 04
2. Introdução.................................................................................................... 11
3. Novos desafios para o Serviço Social ......................................................... 16
4. Formas de consolidação dos direitos da população de rua ......................... 26
5. Catadores de papelão: produto do processo de desenvolvimento da era
pós-moderna ................................................................................................... 44
6. Economia Popular de Solidariedade ........................................................... 59
7. Cooperativismo ........................................................................................... 80
8. Processo de construção e viabilização da Coopamare................................ 92
1) Caracterização da Coopamare ............................................................ 97
2) Rotina dos cooperados........................................................................ 120
9. Fortalecendo um novo projeto societário.................................................... 124
10. Bibliografia................................................................................................ 141
11. Anexo ........................................................................................................ 149
4
AAAA
Apresentação
escolha pelo tema cooperativismo, percorreu um caminho difícil e
complexo. Inicialmente, nos reunimos com a intenção de desenvolver um trabalho relacionado
a mobilização da população, ou melhor, da falta dela no cenário político brasileiro, ou seja,
tínhamos o entendimento que, atualmente, uma pequena parcela da população reivindica ou
participa de alguma forma de mobilização pela conquista de seus direitos. Não
compreendíamos a razão para isso, sendo mais fácil culpabilizar a própria população por esse
posicionamento, apesar de que, sentíamos que não era essa a resposta que nos satisfazia. Esse
pensamento pode ser melhor entendido se compararmos os dias atuais com os grandes
movimentos que ocorreram a partir da década de 70, em um contexto de extrema repressão e
pobreza, mobilizando milhares de pessoas na luta por melhores condições civis, políticas e
sociais e que marcaram fortemente a história democrática brasileira.
Hoje a impressão que temos é que sofremos de uma extrema apatia diante de tantos
desmandos na política pública que agudizam mais ainda a miséria e a desigualdade social
promovida por um sistema neoliberal injusto e selvagem, mas que cresce e se fortalece cada
vez mais.
5
Porém, estudando com um pouco mais de cuidado a questão da desmobilização
popular1, pudemos perceber o quanto somos levados a acreditar no que a ideologia promovida
pelo capital nos impõem sutilmente.
Primeiramente, devemos nos situar e entender que vivemos numa política de
desenvolvimento capitalista, e, em um país considerado dependente dos países centrais. Só
com isso, já podemos entender que vivemos em um sistema de exploração e, que portanto,
dificulta a formulação de mecanismos de participação social, não universalizando acessos, não
facilitando os encaminhamentos, não transparecendo os trâmites, hierarquizando decisões.
Em segundo lugar, pudemos entender, que nos dias atuais, esses movimentos tiveram o
seu “desaparecimento”, relacionado, em parte, à conquista da Constituição de 88, que
instaurou novas formas de gestão que abriram a possibilidade da participação direta da
população e a novas formas de negociação em que “técnicos de governos, associações de
moradores, entidades civis, representantes do Poder Legislativo, sindicatos e entidades
empresariais, negociam alternativas para regulamentação fundiária, para urbanização de
favelas e construção de moradias populares, gestão e usos de fundos públicos municipais para
desenvolvimento urbano e programas sociais, propostas de defesa ou recuperação do meio
ambiente, apoio à chamada economia popular, possibilidades de desenvolvimento local e
geração de renda, além de problemas setoriais ou questões pontuais ou mesmo episódicas.”
(Paoli e Telles, 2000:112) 2. Ao contrário dos grandes movimentos e associações populares em
1 Ver Francisca Fátima de FARIAS, Associativismo e Participação & Maria Célia PAOLI e Vera da Silva TELLES, Direitos Sociais: Conflitos e Negociações no Brasil Contemporâneo In: Cultura e Política nos Movimentos Sociais Latino-Americanos. 2 A descrição de várias dessas experiências pode ser encontrada em Daniel, 1994; Baierle, 1992; Kowarick & Singer, 1993; Pacheco, 1993, 1995; Caccia-Bava, 1995; Ferreira Netto, 1995; Villas-Bôas & Telles, 1995.
6
ativa na década de 70 e 80, que não tendo outro caminho a seguir diante de um sistema tão
cerceador, repressivo e desigual, recorriam tanto a relações clientelistas e de mandonismo,
quanto a revolta ativa, passeatas, greves e invasões, que tornavam visível a sua insatisfação.
Além disso, muito se discute sobre se realmente está havendo uma falta de participação
da população ou se esta participação na verdade não está visível, ou vem adquirindo novas
formas.
Portanto, inferir que os problemas que estão ocorrendo atualmente no país se devem, a
ausência de participação da população é mascarar a própria lógica do capitalismo que
necessita segregar para fortalecer uma pequena elite econômica mundial servindo-se da
expropriação para se valorizar. É não questionar a sua estrutura, permitindo criar uma cultura
de culpabilização individual e de constante competição entre os iguais. É inverter a causa e o
efeito, encarando a desmobilização popular como a grande questão a ser resolvida, ao invés de
problematizar aquilo que o gera.
A partir daí necessitávamos determinar melhor o objeto de nosso estudo. Foi nos
sugerido que realizássemos um trabalho sobre os destinos dos grandes movimentos populares
e dos seus líderes da década de 70 até os dias de hoje. Durante nossas discussões percebemos
que necessitaríamos de muito tempo e disponibilidade, o que não dispúnhamos, para
realizarmos uma pesquisa de levantamento dos destinos dos principais movimentos e a
localização de seus líderes nos dias atuais.
Portanto, voltamos a reavaliar as áreas de interesse do grupo. Depois de muita reflexão
levantamos os temas de maior preferência, que seriam: erradicação da pobreza e desigualdade,
7
preservação do meio-ambiente e formas de participação popular. Diante disso conseguimos
contemplar a todos com a idéia de falarmos sobre a COOPAMARE (Cooperativa de Catadores
Autônomos de Papel, Papelão, Aparas e Materiais Reaproveitáveis), cooperativa de
reciclagem de lixo formado por moradores de rua que, além de incluir todos os temas
desejados é uma alternativa que volta a ser usada por vários segmentos da sociedade, assim
como o Estado, tendo em sua lógica diversas finalidades.
Deste modo, o maior desafio posto nesse trabalho seria o de tentar levantar quais são as
possibilidades, e como desenvolver as potencialidades para que esses projetos de cooperativas
caminhem para o sucesso. Será esta uma alternativa para o desemprego estrutural que vem
afetando uma grande parte da população em escala mundial? Quais as dificuldades
encontradas na manutenção dos princípios do cooperativismo original de democracia,
autonomia e eqüidade em um contexto regulado pelas leis do mercado tendo como fim último
o do lucro? Como se dá as relações entre os cooperados, quais suas principais dificuldades em
relação a isso e quais são as possibilidades das relações de trabalho hierarquizadas serem
abolidas? Qual o entendimento que os cooperados, antigos moradores de rua, catadores de lixo
tem de seu lugar na sociedade, eles se sentem incluídos? E como o Serviço Social pode
contribuir para fortalecer esse projeto tendo como perspectiva a autonomia dos trabalhadores
inserido nos ditames do capital?
Para responder a essas indagações desenvolvemos o nosso trabalho através do estudo
de referências bibliográficas e pesquisas, tentando abranger vários temas recorrentes como:
economia solidária; população de rua; pobreza; meio ambiente, cooperativismo e Serviço
Social.
8
Também recorremos a fontes primárias para aprofundarmos melhor o assunto através
do entendimento de que muitas de nossas questões só poderiam ser contempladas através de
uma maior aproximação com a realidade, constatando se as propostas vinculadas a Economia
Solidária se consolidavam na prática.
Nesse sentido, participamos de reuniões de implantação da Incubadora Tecnológica de
Cooperativas Populares (ITCP) da PUC/SP, cujo trabalho se iniciou em 2001, dando origem a
um curso de cooperativismo do qual participamos. Além disso, nos fizemos presentes em
debates, fóruns, seminários, palestras e manifestações sobre a temática. Visitamos a
COOPAMARE, a OAF (Organização de Auxílio Fraterno) entidade que propiciou a origem da
COOPAMARE e ainda hoje a subsidia e o Projeto Associação “Minha Rua, Minha Casa”, que
se localiza embaixo do Viaduto do Glicério, promovendo trabalhos com a população de rua.
Com vistas a responder nossos objetivos realizamos entrevistas com Irmã Regina, com
formação em Serviço Social e Edy de Lucca, ambas, membros da equipe executiva da OAF;
Marilene de Souza Coelho (Nena) auxiliar de coordenação de trabalho da diretoria e três
cooperados e uma associada da Coopamare; Cleisa Maffei Rosa, estudiosa responsável por
uma ampla pesquisa sobre a população de rua que resultou na elaboração de políticas e
programas sociais no município de São Paulo e Fátima de Araújo Giorlano, Assistente Social
da Cáritas da Brasilândia.
Para os membros executivos da OAF e a auxiliar de coordenação da Coopamare
aplicamos questões para traçar um perfil da cooperativa: histórico de formação e luta da
cooperativa, organização, relações de trabalho, tomadas de decisão, formação dos cooperados,
direitos e benefícios, as relações com o mercado, dificuldades, avanços e desafios etc.
9
Para desenvolvermos um entendimento da subjetividade dos cooperados questionamo-
los sobre questões como vínculos, projetos futuros, satisfação, processos decisórios, apreensão
dos valores solidários, entendimento e interesse pelo funcionamento da cooperativa,
dificuldades, relações de trabalho, rotina do trabalho e histórico pessoal etc.
E para as assistentes sociais nossa principal questão foi relacionada ao trabalho
profissional que se desenvolve, ou que se poderia desenvolver, em uma cooperativa
essencialmente formada por populações com poucos recursos materiais e humanos, as
dificuldades, desafios, possibilidades, seu posicionamento sobre o projeto cooperativo etc.
Tivemos algumas dificuldades quanto ao acesso a cooperativa, devido ao momento que
a organização estava passando de restruturação interna e articulação política intensa com
outras cooperativas, associações, Fóruns etc. para a elaboração de uma Política Pública
Nacional de regulamentação sobre o destino dos resíduos sólidos, matéria-prima das
cooperativas de reciclagem. Segundo Nena, a cooperativa sempre esteve aberta a qualquer
pessoa que quisesse conhecer a organização, porém, no momento, era necessário restringir as
visitas para que pudessem se dedicar mais a dinâmica da organização e na resolução de alguns
de seus problemas. Impossível foi obtermos uma autorização dos cooperados para
participarmos de suas assembléias, instrumento principal da participação coletiva nas
cooperativas, o que seria essencial para nossa análise.
Outra dificuldade foi tentar encontrar alguma assistente social que estivesse inserida
em alguma experiência cooperativista. Justamente, no dia que tentamos marcar com a
assistente social da Coopamare ela estava em seu último dia de trabalho na cooperativa e
saindo de viagem. Outra assistente social vinculada a Coopamare é a Irmã Regina, porém, ela
10
mesma não se considera como uma profissional do Serviço Social. Tentamos outra assistente
social que trabalha nos fóruns de discussão de organizações de catadores, no entanto, sua
resistência em nos ajudar foi o motivo para que a descartássemos. Conversamos com Cleisa
Maffei que é assistente social, porém, sem nenhum conhecimento prático do assunto. E
finalmente, conseguimos contatar a assistente social da Cáritas que possui um histórico de
trabalho bastante rico em experiências solidárias.
Podemos afirmar, que o acúmulo de conhecimentos adquiridos na execução desse
trabalho foi indispensável para responder os questionamentos e indagações que surgiram na
escolha do tema e que poderão suscitar tantas outras que esperamos sejam respondidas no
decorrer desse trabalho. Porém, se assim não o for que pelo menos conceba o início de uma
reflexão e compreensão para o futuro, um futuro de todos e para todos.
11
AAAA
Introdução
tualmente com o acirramento do capitalismo neoliberal que gera o
enfraquecimento do Estado-Nação, a minimização das políticas públicas, privatizações, a
desregulamentação e precarização do trabalho, o alto índice de desemprego, a
institucionalização do trabalho informal, desigualdades econômicas com elevadas distorções
no acúmulo de capital e aumento da pobreza e violência, todos, no mundo, se questionam
sobre o que fazer?
Esta questão torna-se complexa quando entendemos que esse modelo econômico
independe e dispensa de qualquer controle público nas suas transações, o que poderia interferir
na sua “liberdade” econômica, sugerindo, com isso, que o maior empecilho para o seu pleno
desenvolvimento é a própria democracia. Democracia, aqui entendida, como governo do povo,
isto é, as decisões tomadas pelos representantes eleitos do povo deveriam espelhar a vontade
da maioria da população e prevalecer na condução das ações referentes ao seu território. No
entanto, o que tem se visto são decisões unilaterais tomadas por organismos transnacionais que
desrespeitam as decisões locais e a vontade de sua população, desvalorizando todo o processo
democrático e pondo em risco a legitimidade de seus representantes.
Hoje, diante dos resultados desta política extremamente selvagem surgem alternativas
de sobrevivência das mais variadas formas, vindas de diversas frentes, desde o acesso a
programas governamentais de assistência até a participação em atividades ilegais. Vale tudo
12
para continuar vivo, mas essas escolhas vão depender de sua situação material e familiar, das
oportunidades ou possibilidades existentes e da sua condição emocional e cultural. Estamos
diante de tempos difíceis, que devem ser respondidos com organização e união de esforços.
Respostas assistenciais e individuais não trazem transformações significativas, só aliviam a
situação por um certo período de tempo.
Diante disso, algumas ações estão sendo consideradas como possibilidade de conter um
grande potencial de transformação social, baseada em princípios próprios que afetam a forma
de produzir, decidir, distribuir os dividendos e de se relacionar. Essas atividades basicamente
produtivas, estão sendo agrupadas no que foi denominada de Economia Solidária.
O nosso estudo vai abordar o cooperativismo, como uma das expressões da Economia
Solidária. Apesar de não ser um tema novo, o cooperativismo, atualmente, vem ressurgindo
como uma resposta para a classe trabalhadora urbana pauperizada, e, isto pode ser constatado
através do aumento expressivo de cooperativas em áreas urbanas baseadas nos mais variados
ofícios. Muitas delas, nascem com o apoio do poder público e do grande capital com o intento
de participarem de programas de geração de emprego e de diminuírem os encargos
trabalhistas, através de terceirizações e subcontratações, respectivamente. Outras, no entanto,
são geradas por iniciativa popular, de grupos de pessoas com alguma especificidade, que pode
ser funcional, espacial, geracional etc., como uma forma de lutar contra a falta de
oportunidades de trabalho e de meios para subsistir. Porém, grande parte delas, não consegue
sobreviver em um contexto que exige capital intensivo, alta tecnologia e mão-de-obra
qualificada para enfrentar a concorrência de mercado. A questão é, como viabilizar as
13
propostas socializadoras das cooperativas na contemporaneidade, ao mesmo tempo, que
tentam se manter diante da extrema competição?
Em decorrência disso, escolhemos como objeto de nosso estudo a Coopamare, uma
cooperativa de reciclagem de lixo formada, em sua maioria, por moradores de rua, sendo a
primeira cooperativa urbana de catação de material reciclado no Brasil. Sua fundação foi em
1989, e sua permanência por mais de 10 anos demonstra o vigor e as possibilidades desse
projeto. Vale ressaltar, que outros pesquisadores tomaram a Coopamare como objeto de estudo
como Paulo Lourenço Domingues Jr e Carla Carusi Dozzi, expressando um interesse que não
se restringiu aos meios acadêmicos. A Coopamare serviu, e, ainda serve, como modelo para
muitas cooperativas urbanas populares.
A escolha por este tema e por essa cooperativa, em especial, também levantou a
problematização de outras questões que, hoje, estão em destaques na mídia, na política, no
patronato, na sociedade civil em esfera mundial como: a pobreza, a “exclusão” social, o
desemprego e a preservação do meio ambiente.
No primeiro capítulo, desenvolvemos as novas configurações que se apresentam para o
trabalho do assistente social na atual conjuntura de precarização e falta de empregos,
restruturação produtiva, minimização do Estado e privatizações. A Economia Solidária surge
como um campo de trabalho trazendo possibilidades de reiteração da direção social de um
projeto profissional que difere do tradicional Serviço Social e o seu entendimento só se dará
através de um processo, em que, primeiramente, devemos tentar apreender a realidade,
compreendê-la para que então, ações possam ser desenvolvidas.
14
Diante disso, o segundo capítulo é o início de uma jornada em que tentamos nos
apropriar do conhecimento para a obtenção de respostas aos nossos questionamentos.
Primeiro, resolvemos conhecer melhor o público-alvo de nosso objeto de estudo, que são os
moradores de rua: seu perfil, os espaços geográficos que ocupam, a motivação de sua
condição, a sua relação com o poder público e as ações que foram geradas desse embate.
No terceiro capítulo, falaremos sobre o impacto do desenvolvimento nas condições de
vida do homem que geraram situações em que pobreza e degradação do meio ambiente se
entrecruzam, como as famílias que vivem nos lixões e os catadores que sobrevivem de
resíduos jogados pela sociedade.
No quarto e quinto capítulo, explanaremos sobre a Economia Solidária e o
cooperativismo, respectivamente: o que é, como se dá, quais são as suas propostas e quais as
diferenças em relação a uma empresa capitalista, o seu histórico e os princípios para que
auxiliem na caracterização do nosso objeto de estudo, a Coopamare.
No sexto capítulo, levantamos o histórico da constituição da Coopamare, assim como o
seu funcionamento, analisando-a através do confronto entre os princípios colocados pelo
cooperativismo e pelos ideais da Economia Solidária e a realidade cotidiana da cooperativa.
Quais as suas dificuldades, quais as suas possibilidades, o que está sendo feito hoje para que
esse projeto prevaleça sem se descaracterizar.
No último capítulo, abrimos para o mundo para situar como esse projeto hoje se
coloca, seu maior desafio e como o Serviço Social pode contribuir para o seu fortalecimento.
15
São temas bastaste amplos que não podem ser apreendidos em apenas um trabalho. A
dificuldade de limitar as abordagens foi constante, mas procuramos explicitar conhecimentos e
fatos que consideramos relevantes para uma posterior análise, percebendo que, devido a
grande profusão de informações, ainda muito poderia ter sido desenvolvido, gerando outras
reflexões e aprofundando muito mais a questão.
16
NNNN
Novos desafios para o Serviço Social
“Desafio de decifrar os novos
tempos para que deles se
possa ser contemporâneo.”
(Iamamoto, 1998:49)
o início da constituição do Serviço Social no Brasil, na década de 20, a sua
base era a filantropia e o apostolado católico. Desde então, muita coisa mudou no Serviço
Social e essas mudanças seguiram as alterações presentes no curso da história mundial e
brasileira.
O Serviço Social entendido como uma “especialização do trabalho, uma profissão
particular inscrita na divisão social e técnica do trabalho coletivo da sociedade” (Iamamoto,
1998:22) coloca bases para desenvolvermos uma discussão sobre o Serviço Social na
atualidade.
Em primeiro lugar, é preciso esclarecer duas concepções da gênese da
profissionalização do Serviço Social que se desenvolveram nas discussões sobre a profissão:
uma como a tecnificação da filantropia, como resultado apenas da atuação de indivíduos,
desconsiderando a conjuntura em que o Serviço Social se desenvolve como profissão, com
uma “perspectiva particularista, endógena ou intrínseca e a-histórica” (Montaño, 1997:103) e a
outra como resultado de um processo sócio-histórico, na relação capital/trabalho, em que o
Estado passa a organizar e gerir o conflito de classes.
17
A primeira concepção decorreu da própria história constitutiva do Serviço Social,
originada da ação de senhoras da alta burguesia ligadas a Igreja Católica e com uma postura
messiânica e voluntarista no trato com a questão social, mas que se diferenciava da tradicional
caridade, apesar dela advir. Devido a sua ação preventiva e não apenas de cura para os males
morais, utilizávam-se da assistência como base para intervir ideologicamente na vida dos
trabalhadores, através de um tratamento sócio-educativo de cunho doutrinário e moralizador,
influenciado pelo ideário franco-belga, pelo pensamento de São Tomas de Aquino3, somado
ao racionalismo higienista4. Esse movimento laico, inserido no processo de Reação Católica,
tenta, em um primeiro momento, restabelecer o domínio da Igreja Católica após a perda de sua
hegemonia com a laicização do Estado. E em um segundo momento, luta contra a idéia de que
a questão social é uma área exclusiva de intervenção do Estado e do empresariado,
promovendo a idéia de justiça social, através de uma perspectiva de amenização das más
conseqüências do desenvolvimento capitalista liberal nas famílias operárias, principalmente
em mulheres e crianças, tentando impedir a influência que a classe operária sofria ao entrar em
contato com ideais comunistas e isso, segundo a Igreja, somente seria possível através de uma
sociedade baseada em princípios cristãos.
Com o progresso das Ciências Sociais, o Serviço Social, nos anos 40, amplia o seu
suporte técnico-científico fazendo uso da conservadora teoria social positivista norte-
3 Referente ao pensamento filosófico de São Tomás de Aquino caracterizado por uma perspectiva humanista e metafísica do ser. 4 “Ideário do movimento de médicos higienistas que exigiam a intervenção ativa do Estado sobre a questão social mediante a criação da assistência pública, que deveria assumir um amplo programa preventivo na área sanitária, social e moral” (Yasbek:22)
18
americana. Com um discurso humanista5, e, ainda baseado na filosofia aristotélico-tomista que
reforça seu caráter pragmático de apreensão do ser social de forma manipuladora e imediata
objetivando o reajustamento da classe operária. Até hoje, essa imagem assistencialista de
controle e readaptação se faz presente na profissão como resquício dessa herança
conservadora, e infelizmente, por sua falta de efetividade nos dias atuais, ainda se preserva no
discurso de alguns profissionais da área.
A segunda concepção, compreende o Serviço Social como uma profissão cujo
desenvolvimento está vinculado à fase monopolista do capitalismo, nos marcos do padrão
taylorista/fordista e da regulação keynesiana da economia, manifestando um novo
posicionamento das várias instituições como o Estado e a Igreja e de atores sociais como a
classe burguesa e a classe trabalhadora, no embate de divergentes e contraditórios interesses.
Diante do agravamento desses conflitos, amplia-se a ação para o enfrentamento destes, que se
limitava apenas a repressão e a assistência, para uma maior racionalização através da
institucionalização dessas disputas políticas e econômicas, restringindo o fator revolucionário
das lutas de classes que objetivavam a ampliação dos direitos civis, políticos e sociais. O
Estado, a partir disso, extrapola a sua intervenção de regulador do mercado de trabalho e da
exploração da força de trabalho, para conduzir a gestão da assistência social tentado legitimar
e consolidar a posição hegemônica dos interesses da burguesia com a centralização e
regulação dessas atividades, através da implementação de políticas sociais de âmbito nacional,
promovendo assim, uma política de controle e cooptação social.
5 Tem como objetivo a humanização das condições de vida e de trabalho da população atendida pelo Serviço Social, cujo elemento alienante não é contestado, promovendo a ideologia do trabalho como elemento constitutivo da ordem social “natural” (Iamamoto, 1997:28).
19
A profissionalização e institucionalização do Serviço Social está intimamente
vinculada a este processo, que através da implementação e ampliação de instituições sócio-
assistenciais como: a Legião Brasileira de Assistência (LBA), o Serviço Nacional de
Aprendizagem Industrial (SENAI), o Serviço Social da Indústria (SESI) e a Previdência
Social; promove a expansão do mercado de trabalho para o Serviço Social que, se antes era
legitimado pela sua atuação vinculada a Igreja, agora legitima-se também por intermédio de
um mandato institucional confiado a ele pelo Estado.
Essa determinação provoca consideráveis transformações à profissão que amplia sua
“clientela”, que “de pequenos segmentos da população pobre em geral, atingida
ocasionalmente pelas obras sociais confessionais, seu público se concentrará em amplos
setores do proletariado, alvo principal das políticas assistenciais implementadas pelas
instituições.” (Iamamoto, 1992:31), exigindo um aperfeiçoamento técnico-instrumental e
metodológico na sua intervenção profissional. Também insere em seu quadro profissional,
indivíduos dos setores médios da sociedade, em decorrência do aumento da demanda por esse
profissional e ao estabelecimento deste como categoria assalariada, transformando-o em
profissão legitimada dentro da divisão social-técnica do trabalho.
Logo, a profissionalização do Serviço Social não pode ser atribuída ao
desenvolvimento da sua base técnico-científica à filantropia, apesar deste fazer parte do
processo, mas sim, deve-se a sua inserção na produção e redistribuição do valor e da mais-
valia produzida coletivamente.
A reprodução do trabalho especializado do assistente social só é possível por causa do
seu valor de uso e esse é determinado sócio-historicamente. Como parte da divisão sócio-
20
técnica do trabalho social produzido pelo conjunto da sociedade, está também condicionado às
alterações que estão ocorrendo atualmente no mundo do trabalho. Isto é, sendo considerado
como um trabalho, suas determinações são dependentes das relações que ocorrem entre as
classes na sociedade, e, é aí, que são postos os limites e as possibilidades da ação deste
profissional. Cabe a ele decifrá-los dando início a efetivação da direção social do seu trabalho
que pode ser tanto para reproduzir a realidade posta, quanto para tentar construir alternativas a
ela.
O ato de decifrar, explicar e intervir nessa realidade é um desafio que requer uma
postura crítica, capaz e comprometida para propor ações criativas, inventivas e que são
resultado das próprias possibilidades existentes na realidade, tomando o cuidado de não se cair
em uma postura fatalista, de total aceitação de uma realidade pré-determinada, ou messiânica,
que também ignora os reais acontecimentos e limites superestimando a atuação dos sujeitos.
Com isso devemos perceber que o produto de seu trabalho que está inserido no campo
da reprodução da força de trabalho e/ou criação da mais-valia, da redistribuição dessa mais-
valia e da defesa e/ou realização de direitos sociais de cidadania, está hoje sendo questionado
pelo contexto neoliberal e pela forma de acumulação flexível.
São vários os fatores que imprimem novas configurações ao mercado de trabalho do
assistente social. Uma delas é a transferência da responsabilidade do Estado de prover e
administrar serviços públicos à sociedade civil, gerando o desmantelamento das políticas
sociais públicas, consequentemente diminuindo o tradicional mercado de trabalho do
assistente social e reduzindo a quantidade, qualidade e variabilidade dos seus serviços e
produtos. Outra face dessa mesma questão é a refilantropização social conduzida pelas grandes
21
corporações, através da filantropia empresarial e pelas organizações não-governamentais que,
ainda não se apresentam como um significativo mercado de trabalho para o assistente social.
Essas manifestações contrariam a natureza do Serviço Social de defesa dos direitos para a
garantia da universalidade do acesso, tornando esses serviços focais, desconcentrados e
dissocializadores dos custos da reprodução da força de trabalho.
Outro fator de mudanças é a desregulamentação das relações de trabalho, inserida em
uma lógica capitalista de flexibilização das estruturas produtivas, da força de trabalho, e das
formas de organização desse trabalho, sendo isso uma conseqüência da globalização, que
exige um alto desenvolvimento técnico-científico e acentua o poder hegemônico do grande
capital financeiro. O assistente social sempre foi àquele profissional responsável pela
mediação nas relações patrão-empregado para intervir em qualquer conflito, interno ou
externo ao ambiente fabril, que interferisse na produtividade, criando formas para promover o
aumento desta. Com os novos processos de trabalho seguindo as exigências de qualidade total,
reengenharia da produção, planejamento estratégico e programas participativos, o Serviço
Social adquiriu novas atribuições e se adequou à nova estrutura dos processos de trabalho, se
submetendo também a essas mudanças com o mesmo impacto que os demais empregados.
Atualmente, com a flexibilização produtiva que reduz os postos de trabalho, terceiriza
os serviços, precariza e informaliza o trabalho, algumas empresas contratam o assistente
social para preparar o trabalhador para o desemprego, diminuindo as tensões pessoais dos
futuros desempregados e fornecendo informações sobre os recursos que vão estar a sua
disposição. Além disso, com a multifuncionalidade e a polivalência de funções, que beneficia
a empresa através da diminuição da quantidade de mão-de-obra empregada, torna-se
22
necessária a promoção de um “clima social” favorável, para que o trabalhador possa se sentir
participante e valorizado na empresa em que trabalha. Através de políticas de premiação e
participação restrita, contribuindo para que sua força de trabalho tenha uma melhor qualidade,
competitividade, produtividade e maior controle fomentado pelos próprios empregados,
mesmo a despeito do aumento de suas funções e da carga horária trabalhada e da diminuição
dos seus direitos sociais. O Serviço Social também é chamado para capacitar e treinar gerentes
que lidam diretamente com os operários, como parte da estratégia de cooptação emocional dos
trabalhadores, em que o corpo e a alma do trabalhador são apreendidos.
Hoje, também a gestão do não-trabalho traz novas incitações ao trabalho do Serviço
Social, pensando naqueles que estão fora do mercado de trabalho e devido a lógica da política
capitalista de exploração, que causa uma situação de desemprego estrutural, não têm
oportunidades de ingressar ou reingressar nele.
Em uma sociedade em que novas tecnologias produtivas são desenvolvidas
rapidamente, com uma cultura já fortemente estabelecida, baseada em acirrada competição e
concorrência, torna-se imprescindível um processo de aprendizagem permanente e hoje, tanto
o Estado neoliberal quanto organismos internacionais de regulação como o Banco Mundial,
promovem a formação profissional, porém, em funções essencialmente instrumentais, com um
caráter de adaptação dos trabalhadores às mudanças técnicas e de amenização em relação à
questão do desemprego. “Detalhados estudos econométricos indicam que as taxas de
investimentos e os graus iniciais de instrução constituem robustos fatores de previsão de
crescimento futuro. Se nada mais mudar, quanto mais instruídos forem os trabalhadores de um
país, maiores serão suas possibilidades de absorver as tecnologias predominantes, e assim
23
chegar a um crescimento rápido da produção (...) O desenvolvimento econômico oferece aos
participantes do mercado de trabalho oportunidades novas e em rápida mudança” (Banco
Mundial, 1995:26-35).
Essa tendência carrega ilusões que transforma a qualificação profissional num fetiche
capaz de romper com o desemprego, contudo, verifica-se que a quantidade da população
economicamente ativa fora do mercado de trabalho é maior do que os postos de trabalho vagos
no mercado, devido ao processo de restruturação produtiva e globalização do mercado de bens
e capitais. Além disso, a qualificação para o trabalho é uma relação social que depende não
apenas da escolaridade e capacitação, mas também de atributos de classe, de gênero, de etnia e
geracional. O que podemos concluir é que a educação formal e a qualificação profissional são
condições necessárias, mas insuficientes, para o desenvolvimento social.
Além de programas de qualificação do trabalhador, no momento presente, outras
formas de micro-empreendimentos de geração de renda para a população mais pobre são
acessadas como: prestadoras de serviços terceirizadas, trabalhos informais e autônomos, que
por vezes são ilegais, mas que se adequam a lógica neoliberal de desresponsabilização do
Estado e de liberdade do mercado econômico. Descobrir respostas para o enfrentamento da
crise e conseguir articular as forças, implica mobilização do poder, e, é o fundamento para a
reorganização da pressão social e a construção de uma identidade coletiva, para mudança nas
relações de poder, porém, isso só é possível na perspectiva de efetivação de direitos e não no
desconhecimento dele e na valorização da estrutura social financeira liberal.
Neste sentindo, uma outra alternativa são as experiências ligadas a chamada Economia
Solidária, que são compostas por cooperativas populares, associações, empresas falidas que
24
foram retomadas por funcionários em forma de autogestão etc., que mesmo tendo que se
adequar ao sistema econômico vigente e hegemônico, pois fazem parte dele, pretendem
contribuir com uma mudança cultural, ideológico e comportamental.
Essa direção social é confirmada pela assistente social da Cáritas:
“O maior desafio é trabalhar os valores que estão arraigados na pessoa, essa coisa da competitividade, superar isso, instalar uma nova cultura, é o maior desafio” (Fátima Giorlano, assistente social da Cáritas).
Atualmente, muitas dessas experiências estão em desenvolvimento no mundo todo.
Podemos destacar as experiências cooperativas autogestionadas como aquelas que estão
obtendo um maior apoio e visibilidade do poder público e da sociedade, como alternativa
contra o desemprego. A maior parte dessas cooperativas estão se desenvolvendo nas zonas
urbanas, e essa tendência vem demonstrar que o cooperativismo, mais do que uma
conscientização e necessidade de promover a solidariedade entre os homens, se tornou uma
alternativa para a grande bolsa de desempregados e grupos estigmatizados pela sociedade que
subsistem nas grandes cidades.
Esta posto aqui o nosso desafio, o de tentar entender quais são as dificuldades que
interferem no pleno desenvolvimento de um projeto social baseado em relações de eqüidade e
solidariedade, valores contraditórios àqueles fomentados pelo atual sistema hegemônico, o
capitalismo; e quais são as chances deste projeto promover uma revolução social, em que a
real democracia se inicie, diminuindo as diferenças sociais e econômicas, através de uma
intensa transformação cultural e ideológica em que a maior parte da população queira abrir
25
mão de seus interesses particulares para pensar e agir coletivamente, para que então, possamos
analisar e refletir se essas propostas se ajustam a direção social do atual Serviço Social e, se
assim o for, como ele pode contribuir para isso.
26
PPPP
Formas de Consolidação dos Direitos da População de Rua
or mais diferente que seja a conceituação que se desenvolva da população de
rua, este segmento social expressa sempre uma situação-limite de pobreza. A classe
trabalhadora brasileira vem sofrendo um processo crescente de empobrecimento nas últimas
décadas, o que amplia significativamente o contigente social de quem vive em situação de
miséria (Lopes, 1990). Percebe-se que este segmento social é definido como sendo de pessoas
que utilizam o espaço público para sua sobrevivência, ou seja, pessoas desprovidas do mínimo
necessário para sua subsistência.
A situação de rua em que muitos se encontram neste momento conjuntural,
principalmente na Grande São Paulo, em uma situação de transição econômica em que as
grandes questões sociais da cidade passam necessariamente pela má distribuição de renda, má
administração dos bens públicos e consequentemente desemboca em arruinar ainda mais a
situação fragilizada dos que se encontram sem trabalho, sem habitação, sem educação, e,
consequentemente, sem o acesso necessário, pelo menos, para a sobrevivência como já foi dito
anteriormente.
Na verdade, a desigualdade social e a pobreza não são privilégio da sociedade
moderna, mas um produto histórico que se modifica no espaço e no tempo (Zaluar, 1992).
Nessa direção trabalha também Telles, pesquisadora do assunto. “A pobreza não se reduz,
portanto, a uma questão meramente econômica, se constituindo também um parâmetro de
27
avaliação social. Nesse contexto a população de rua indiscutivelmente se encontra numa
situação de extrema pobreza, tem seu lugar social demarcado, sendo estigmatizada pela
sociedade e pela classe trabalhadora” (Telles, 1990:18).
Numa sociedade capitalista que se organiza com base na compra e venda da força de
trabalho, a legitimidade social, a dignidade pessoal se firmam através da ética do trabalho. A
carteira assinada é, nesse contexto, um signo do trabalhador honesto e digno.
É necessário apontar que, a partir da década de 90, os critérios que definiam a pobreza
ampliaram-se, não se reduzindo apenas aos fatores econômicos, mas também aos seus
vínculos sociais e seu acesso a bens e serviços. Aqui se muda o entendimento de alguns
conceitos como exclusão e marginalidade, influenciados pelo pensamento francês, destacando-
se Serge Paugam e Robert Castel.
Segundo Castel, o termo exclusão é usado de forma indiscriminada para citar variadas
situações-limites de pobreza o que apenas oculta e mascara as razões de fundo deste problema,
sem explicá-las. Para ele, essa situação tem que ser analisada por dois fatores: a sua
integração/não-integração por meio do trabalho e a sua inserção/não-inserção numa
sociabilidade sócio-familiar. A ausência ou precarização de algum desses fatores poderia levá-
lo a um processo de “desfiliação” ou segundo Paugam, “desqualificação”. Para Paugam, além
da situação do trabalhador no mercado de trabalho, é importante verificar a situação do
indivíduo de interdependência em relação a uma dada sociedade, através de vínculos sociais e
de proteção social para entendermos como a pobreza é representada socialmente.
28
Diante de uma conjuntura de recessão e desemprego, parte significativa da classe
trabalhadora fica cada vez mais exposta às condições precárias do mercado informal de
trabalho e à falta de emprego. Além das dificuldades objetivas da sobrevivência, essa situação
abala a imagem do provedor que confere legitimidade ao chefe de família.
Dentro desse grupo se encontra um contigente que pode ser caracterizado pela extrema
mobilidade. Além de ter trabalho irregular, não possui residência fixa e nem convivência
permanente com o grupo familiar, trata-se de um grupo basicamente masculino, que
geralmente realiza trabalhos temporários no campo e na cidade.
Freqüentemente, deixa a família na tentativa de obter melhores condições de vida ou
então em função de pressões ou conflitos. Reside alternadamente em diferentes habitações
precárias com mobilidade: ora está em pensões onde aluga um quarto ou mais freqüentemente,
uma vaga, ora em albergues da rede pública ou privada, ora em obras da construção civil.
Quando não existe outra possibilidade, a rua se torna o lugar de abrigo. Geralmente está
sozinho, aliando-se ocasionalmente a companheiros de trabalhos ou de aventura.
Demonstrações de uma pesquisa encomendada pela Secretaria Municipal de
Assistência Social da Prefeitura de São Paulo, e, feita pela FIPE-USP (Fundação Instituto de
Pesquisa Econômica-Universidade São Paulo) em março de 2000, vem constatando que mais
da metade das pessoas que moram nas ruas da cidade de São Paulo estão em situação de rua há
menos de um ano. Esta constatação foi feita no último censo realizado para detectar, com
exatidão, o número preciso desta população.
29
Segundo a pesquisa, a capital paulista tem 8.704 moradores de rua, número equivalente
a população da Barra Funda (região noroeste), com 8.806 habitantes, e representa um pouco
mais da metade do Pari (região central), com 14.772 habitantes. A minoria dessas pessoas são
mulheres (15%) e o restante são homens (85%), e destes 70% tem idade de 18 a 49 anos, e
passaram a viver na rua nos últimos 12 meses que somam um total de 52%, o que significa
4.527 pessoas em idade produtiva que passaram a morar nas ruas neste último ano. Do restante
dos 48% dos moradores de rua, 13% vivem na rua entre 1 a 2 anos, 16% estão entre 2 a 5
anos, 11% de 5 a 10 anos e 8% acima de 10 anos. Ou seja, quase 20% da população de rua,
vive na rua há mais de 5 anos, o que significa, que a rua é uma alternativa de moradia.
O desemprego é um dos fatores mais significativos pelos quais levam as pessoas a
buscar a rua como alternativa de sobrevivência, na maioria das vezes, expostos a uma
realidade severa e hostil, convivendo com as mais cruéis formas de violência. Para algumas
dessas pessoas, a única fonte de renda provém do que a população considera lixo. É o caso de
Osnivaldo de Oliveira, de 51 anos, que ganha entre R$ 5 a R$ 10 reais por dia com a venda de
material reciclado, no Bom Retiro, zona central e diz:
“Sou eletricista, mas estou nessa vida faz oito anos. Minha família é a “Laica”, comenta apontando sua cadela de estimação. Depois do plano Collor, nunca mais consegui ter uma vida decente, lamentou. Osnivaldo disse que não gosta de dormir em albergue porque não tem onde deixar seu carrinho”6.
6 Censo da Fipe constatou 8.704 moradores de rua de Alencar Izidoro, Folha de São Paulo, 29/03/2000, Cidade, pág. 04.
30
Firminio Evangelista da Silva, pedreiro de 38 anos, chegou do Rio de Janeiro em 1990,
e, na época, por intermédio de um albergue, conseguiu trabalho em sua profissão.
“Mas já faz 4 anos que estou vivendo na rua com minha mulher, catando papel e papelão. Não consigo arrumar nada. Sobrevivo com a venda do que recolho por aí”7, explicou desolado.
Um dado interessante notado é que na cidade de São Paulo o número de idosos entre os
moradores de rua é maior que o de crianças. As pessoas nessa condição com mais de 65 anos
somam 348 (4%), enquanto o número de crianças com menos de 12 anos são de 261 o que
corresponde a 3% do total8. No entanto, o número de idosos seria ainda maior se esses
moradores conseguissem suportar o envelhecimento precoce causado pelas condições de vida
nas ruas.
Benedito José dos Passos, 62 anos, por exemplo, já se considera “bastante velho”.
“Com pouco tempo de moradia, já dá para ficar gastado”9, afirma que perdeu o emprego há
um ano e hoje dorme em albergues da prefeitura.
Entre as crianças menores de 12 anos incluídas no rol dos moradores de rua, 261 (59%)
vivem acompanhadas de algum parente adulto, ou seja, com pelo menos parte da família. Esse
dado da pesquisa realizada pela FIPE, indica que não são indivíduos isolados que acabaram
nas ruas. Pelo menos 153 núcleos familiares estão nessas condições.
7 Ibdem. 8 Dados da Secretaria Municipal de Assistência Social. Folha de São Paulo, 02/2000 op. Ct. 9 Censo da Fipe constatou 8.704 moradores de rua de Alencar Izidoro, Folha de São Paulo, 20/03/2000, Cidade, pág. 04.
31
O censo atualizado da FIPE10 diferencia-se de levantamentos anteriores encomendados
pela SAS (Secretaria da Assistência Social), pelo fato de todos os incluídos nas estatísticas
terem sido abordados pessoalmente. Antes do censo da Fipe, pesquisas que tentaram
quantificar a população de rua em São Paulo, não seguiram critérios rigorosos da metodologia
científica. A última pesquisa do gênero, realizada em 1998, pela Secretaria da Família atual
SAS, constatou 6.453 pessoas, mas não foram abordadas pessoalmente, o que apontou uma
população de rua 35% menor. Neste atual censo, só foram levadas em consideração pessoas
que dormem em locais públicos, incluindo albergues. Não entrou na contagem pessoas que
ficam nas ruas durante o dia, pedindo esmolas, mas que a noite sempre voltam para dormir em
casa. A contagem foi feita no período noturno, desconsiderando as pessoas que vivem nessas
condições. Houve casos de moradores de locais improvisados como buracos na estrutura de
viadutos que não aceitaram falar, como a metodologia exigia contato direto, eles também
foram excluídos do levantamento, o que altera os dados reais sobre a população de rua.
No Brasil, não existem dados confiáveis sobre o número de pessoas que vivem nas
ruas, e, dependendo do projeto e procedimento de pesquisa, os resultados podem ser
diferentes. Por tratar-se de uma população móvel e bastante heterogênea, que se desloca não
só geográfica, mas também econômica e socialmente, torna-se difícil precisar o número de
pessoas que se encontram nas ruas da cidade, assim como as suas condições de vida. Isso é,
tais pessoas podem alternar a rua com outras situações habitacionais precárias, e, o trabalho na
rua através de bicos com atividades regulares, ou seja, na rua misturam-se o morador
tradicional, isto é, famílias que já estão na rua em sua segunda geração11, e os que ficam
10 Conforme pesquisa da FIPE-USP demonstrada na Folha de São Paulo 29/03/2000. 11 Filhos e netos que já nascem em situação de rua.
32
temporariamente nela, e, que, por vezes, percorrem vários pontos do país em empregos na
construção civil e em trabalhos agrícolas.
O trabalho, como política pública, com a população de rua na cidade de São Paulo é
recente, iniciado na gestão Luíza Erundina, tendo sido desenvolvida uma série de projetos
através de uma parceria entre a Secretaria Municipal do Bem-Estar Social de São Paulo,
algumas organizações privadas como a PUC-SP e o Centro Latino Americano de Saúde
Mental. Até então, havia apenas assistência nos meses de inverno, inexistindo uma pesquisa
sistemática, apenas dados de observação a partir de contatos feitos por organizações
assistenciais que atendiam esta população.
“Foi a primeira vez que, em São Paulo, o poder público assume a população de rua como responsabilidade pública” (Entrevista realizada com Cleisa Maffei Rosa).
Em 1989, constituiu-se, por iniciativa da Secretaria do Bem-Estar Social (SEBES), o
Fórum das organizações que trabalham com a população de
rua. A partir de uma iniciativa da SEBES de realizar um
trabalho inovador com a população de rua, foram criadas
parcerias com as organizações que tradicionalmente já
realizavam um trabalho com a população de rua e que
possuíam alguma atividade baseada na mobilização e
participação crítica desse grupo. Inicialmente, um convênio
foi feito com a COOPAMARE, onde a concessão
municipal passa a apoiá-la cedendo e autorizando-a a
Escritório da Coopamare sob o Viaduto Paulo VI
33
utilizar o espaço do Viaduto Paulo VI, na Rua João Moura, em Pinheiros, conforme aponta
Maffei, que desenvolveu um trabalho com a população de rua nesse período, vinculado a
Prefeitura de São Paulo.
“A população de rua não era atendida, não era contemplada. Na época o nosso trabalho foi de convencer o poder público, que deveria destinar uma verba com o convênio para uma iniciativa popular de população de rua que estavam mostrando uma possibilidade de organização e nós conseguimos. Então o primeiro convênio que a COOPAMARE fez com a prefeitura, com pequena verba deu um pequeno impulso” (entrevista realizada com Cleisa Maffei Rosa).
Vários outros resultados surgiram desse Fórum, como: “Levantamento sobre a
População de Rua”; “I Seminário Nacional sobre a População de Rua”; o projeto “A Casa
Acolhe a Rua”, e, uma dotação orçamentária específica para esse grupo.
Em maio de 1991 foi realizado o primeiro “Levantamento dos pontos de
concentração”12 da população de rua na cidade de São Paulo, na gestão da prefeita Luíza
Erundina, que foi de 1989 a 1992. Como resultado disso foi constatado que essas áreas
abrangiam toda região central e os bairros dos arredores.
A concentração da população de rua no centro da cidade parece estar ligada às
oportunidades de garantir a sobrevivência através de pequenos bicos e obtenção de alimentos
gratuitos, distribuídos por entidades filantrópicas, Igrejas, restaurantes e bares. Além disso,
pelo fato de o centro da cidade vir sofrendo um processo de deterioração progressiva, torna-o
12 Ponto de concentração, segundo Maria Antonia Vieira (coordenadora da pesquisa sobre população de rua), são os locais públicos, praças, avenidas, viadutos que esta população utiliza para pernoitar.
34
também lugar de agregação da população de rua pela oportunidade de utilização de imóveis
abandonados, viadutos, além de abrigos, albergues, marquises de lojas e prédios públicos; a
grande circulação de pessoas nessa área facilita a prática da mendicância (Maffei, 1994).
A partir desse mesmo levantamento, realizou-se a primeira contagem sobre a
população de rua na cidade e seu perfil. Foram localizadas 3.392 pessoas dormindo ao relento,
a maioria realizava alguma atividade para sobreviver, dois terços (2/3) tinham menos de 40
anos, mais da metade era branca e 50% delas cursaram o primeiro grau e já haviam tido
carteira de trabalho assinada.
Foi a primeira contagem oficial dessa população, que sequer os censos demográficos
do IBGE tinham conhecimento, já que, essa realiza a contagem pelo critério da localização
domiciliar. A partir da pesquisa, foram propostos serviços específicos como programas de
abrigos “A Casa Acolhe a Rua”, restaurantes comunitários, moradias provisórias e casas de
convivência.
De qualquer forma, esse levantamento permitiu dimensionar a população, uma vez que
havia muita controvérsia sobre o número de pessoas na rua em São Paulo, chegando-se a falar
de 100 até 200 mil pessoas, assim como conseguiu com que alguns mitos caíssem por terra
como, por exemplo, a idéia de que quem estava na rua era o migrante recém-chegado, o negro,
o nordestino e o vagabundo que nunca havia trabalhado.
Tanto o levantamento, o trabalho em parceria do poder público com entidades da
sociedade civil e a realização de uma política pública voltada especificamente a população de
rua mostrou-se como uma inovação histórica tanto científica, quanto política, em função de
35
um comprometimento com setores populares na melhoria de vida e na busca de sua cidadania
no plano dos direitos sociais e políticos.
Trata-se agora de uma abordagem ampla da questão da rua. A parceria entre poder
público, que visa metas, volume de atendimento, resultados mensuráveis e as organizações da
sociedade civil, que lidam diretamente com essa população e se preocupam fundamentalmente
com seu processo de “socialização”, no sentido de garantir a autonomia do movimento e as
reivindicações e interesses dessa população, enriquecem o enfrentamento dessa questão ao
atendê-la como parte de outras políticas, como emprego e moradia, ao invés de relegar a
questão a um problema que deve ser resolvido apenas pela assistência social. Além disso,
possibilitando um maior entendimento dessa questão ao permitir discussões e reflexões entre
abordagens tão distintas. Começa-se então, a criar uma metodologia, uma forma de trabalhar,
que supõe a gestão democrática com participação da sociedade civil na elaboração de políticas
públicas.
“Com a população de rua foi de 89 a 92 como supervisora regional. Fizemos um convênio com a PVC e fizemos uma pesquisa e junto com as organizações nós criamos um fórum e começamos a refletir sobre isso. Formamos serviços, casas de convivência...” (Entrevista realizada com Cleisa Maffei Rosa).
Foi aí, a partir do Fórum com representantes das secretarias municipais ligadas à
questão, e, entidades que trabalhavam com a população de rua, que se deu a aprovação de uma
unidade orçamentária específica para a população de rua, o que garantiu, manter vivo projetos
específicos a este segmento, mesmo nos governos posteriores.
36
“Para criar o item orçamentário a gente teve que criar algumas coisas que foi a base da lei. A gente criou alguns serviços: casas de convivência, abrigo, porque antes disso, não tinha nada, só dois albergues fechados onde as pessoas iam, depois de três a quatro dias as pessoas tinham que sair e não tinha nenhum seguro” (Entrevista realizada com Cleisa Maffei Rosa).
No ano seguinte é elaborado o decreto nº. 28.649 em que se reconhece oficialmente o
trabalho dos catadores de papel, organizados em cooperativas. É um documento histórico,
porque além de ser o primeiro no gênero, garante o direito dos catadores de transitarem na
cidade não mais como clandestinos, mas como trabalhadores autônomos.
Nesta direção o envolvimento das entidades no trabalho conjunto com a prefeitura
mobiliza setores da sociedade para recuperar a dignidade e a cidadania da população de rua.
Esse processo resulta na primeira manifestação do povo da rua em 10 de maio de 1991,
denominada Dia da Luta da População de Rua, na Câmara Municipal. Na ocasião, a
administração do PT anuncia a primeira Operação Inverno e a criação de novas casas de
convivência da Prefeitura, inspiradas no centro comunitário, criado e mantido pela OAF
(Organização de Auxílio Fraterno), procurando combinar, de um lado, a prestação de serviços
que respondesse às necessidades básicas da população de rua, e, de outro, uma metodologia de
trabalho coerente com a perspectiva do exercício da cidadania.
Com o término da gestão democrática e popular do PT, e, início da administração
Maluf, muda a orientação da prefeitura para os programas sociais. A partir daí, o executivo
rompe com o Fórum de representação de entidades que trabalham com a população de rua. No
entanto, ele não se extingue, sendo sustentado pelo legislativo através da Vereadora Aldaíza
37
Sposati, como um Fórum de consultas e discussões. Só em 1998 se restabelece, de forma
modesta, a relação com o executivo.
A partir da participação popular, do Fórum e de consultas às organizações, em
colaboração com os moradores de rua num processo de construção coletiva, foi elaborado o
projeto de lei de atenção à população de rua.
O projeto de lei foi apresentado por Aldaíza Sposati ao então presidente da Câmara, o
vereador Miguel Colassuono, em 10 de maio de 1994, 4º ano do “Dia de Luta da População de
Rua”.
Em setembro do mesmo ano a prefeitura faz uma “Operação Limpeza” para expulsar
do centro da cidade os moradores de rua. Para impedir o acesso destes, são cercados jardins e
praças públicas. A ofensiva aos direitos humanos levam as entidades a se manifestarem num
Ato Ecumênico em Defesa da Vida no Largo do Arouche.
Em 1995, o Projeto de Atenção à População de Rua é aprovado por unanimidade na
Câmara Municipal, mas sofre veto do prefeito Paulo Maluf. Em abril de 1997, a Câmara
Municipal derruba o veto: o projeto é transformado em lei.
A lei n.º 12.316/97, a primeira do gênero no Brasil, garante padrões éticos de dignidade
e não violência, estendendo direitos de cidadania a esta parcela da população. Aqui, então se
concretiza um ideal antigo da Constituição Federal, nos termos da Lei n.º 8.742/93, Lei
Orgânica da Assistência Social (LOAS) e a Lei Orgânica do Município de São Paulo. A
realização dos serviços poderia ocorrer por meio de parcerias entre o poder público municipal
e organizações sem fins lucrativos.
38
Na implantação da lei, alguns princípios tem que ser observados:13
� O respeito e a garantia à dignidade;
� O direito a pessoa a ter um espaço para se referir na cidade com privacidade, como
condição inerente à sua sobrevivência;
� A garantia da supressão de todo ato violento e de comprovante vexatória de
necessidade;
� A não discriminação no acesso aos serviços públicos, principalmente os referentes
à saúde, não sendo permitido tratamento humilhante;
� O exercício cidadão de participação da população, na proposição e no controle das
ações que lhes dizem respeito.
A lei estabelece a implantação e manutenção pelo poder público, de abrigos de
emergência para acolhida e pernoite no inverno com condições de higiene pessoal, vestuário,
guarda-volume e serviços de referência; albergues para acolhida e alojamento de pessoas em
tratamento de saúde, imigrantes, situações de despejo e mulheres vítimas de violência,
oficinas, cooperativas de trabalho e geração de renda para sua auto-sustentação.
Na gestão posterior, em vez de regulamentar a lei para que uma política de acolhida e
atenção seja desenvolvida na cidade, o prefeito Celso Pitta autoriza o ajuizamento de uma ação
direta de inconstitucionalidade no Tribunal de Justiça, alegando que legislar sobre o serviço
13Princípios retirados do impresso “População de Rua tem seus direitos garantidos” do Gabinete da Vereadora Aldaíza Sposati.
39
público é competência exclusiva do Executivo e que, ao interferir, o legislativo estava
desrespeitando a harmonia entre os poderes.
O gesto do prefeito vem reforçar o descompromisso desta administração com a área
social, servindo de repúdio esta atitude que não reconhece anos de luta de uma camada tão
sofrida, desprovida de direitos e lutadora.
Já na gestão atual, com a prefeita Marta Suplicy, consolida-se a relação das
organizações civis e o executivo. E o exemplo deste é o primeiro ato de seu mandato que foi a
assinatura do primeiro decreto n.º 40.232 da lei 12.316/97 regulamentando-o e reconhecendo a
cidadania do morador de rua através da confirmação de seus direitos, sendo implantado este
ano na cidade de São Paulo, um dos maiores programas sociais da América Latina; programas
e projetos de direitos humanos e sociais como: Renda Mínima; Bolsa Trabalho; Começar de
Novo; Operação Trabalho e Operação Moradia. A meta é investir 64 milhões de reais em
políticas públicas em 200114. O morador de rua é prioridade.
Cabe ressaltar aqui, a importância de um trabalho junto ao poder legislativo que possui
características diferentes do poder executivo, evidenciando o fato de que criar ou construir
uma lei que consolida direitos e serviços é uma questão que vai além de um período de gestão
do executivo.
Neste meio tempo, Belo Horizonte dá um salto de qualidade, concretizando e
ampliando a experiência de cooperativas de catadores de papelão com a ASMARE
(Associação dos catadores de Papel, Papelão e Materiais Reaproveitáveis).
14 Informativo mensal da Prefeitura de São Paulo – Secretaria da Comunicação/agosto de 2001.
40
Essa proposta de trabalho social que envolve parcerias entre poder público e entidades
sociais, como a própria OAF, vai amadurecer e desenvolver-se de forma mais atuante no
período da gestão petista na prefeitura de Belo Horizonte, que seguindo à experiência de São
Paulo vai crescendo e contribuindo no avanço da discussão e definição das políticas públicas
para a população de rua. Os catadores são reconhecidos como agentes da coleta seletiva e
considerados trabalhadores autônomos da limpeza pública. A ASMARE consegue aumentar
sua capacidade de armazenamento e comercialização de materiais recicláveis e devido ao seu
grande sucesso começa a prestar serviços de consultoria por toda a Minas Gerais e estabelece
parcerias como com a UNICEF15.
“(...)lá sempre tiveram a prefeitura como parceiro, aqui (SP – Coopamare) a gente tinha como inimigo, por isso pode-se ver o desenvolvimento da Asmare hoje, muito maior que a Coopamare e veio bem depois. A cidade é menor, as relações se estabelecem de outra forma. Em BH é legalizado. Os catadores hoje, são considerados trabalhadores autônomos, para ter seu espaço garantido.” (entrevista realizada com Edy de Lucca)
Durante o decorrer da gestão Marta Suplicy, um grupo de trabalho inter-secretarial,
reunindo representantes das Secretárias do Meio-Ambiente, Assistência Social, Serviços e
Obras, Implementação das Sub-Prefeituras e Habitação desenvolveram discussões relativas a
gestão do meio ambiente, tratamento e coleta do lixo. Sendo que algumas propostas foram
desenvolvidas como: a criação de uma política de gestão do lixo e de implementação de
centros de triagem de coleta seletiva com gerenciamento participativo, através de convênios
com cooperativas e associações para a coleta seletiva de lixo, incluindo também, catadores
15 PEIXOTO, Paulo, Em MG, catador de lixo sai da marginalidade, Folha de São Paulo, 9/12/2001, Cotidiano, p.C4.
41
individuais e outros grupos que poderiam participar da triagem; criação de Incubadoras de
Cooperativas de Coleta Seletiva apoiada no projeto de lei 074/2001 de Carlos Neder, ainda em
tramitação na Câmara dos Vereadores e promoção de um edital de licitação para a coleta de
lixo, incluindo a participação das cooperativas.
Já no final de 2001, a prefeitura abriu licitação para a coleta de 15 mil toneladas de
detritos residenciais e industriais na cidade de São Paulo, possibilitando a participação de
cooperativas, associações e qualquer outro grupo organizado, apenas, no trabalho de recolher
material reciclável, e não no de prestação de serviços para a limpeza urbana da cidade, já que,
a falta de estrutura financeira, técnica e material desses grupos não as permitiria competir com
as grandes companhias de coleta de lixo.
“Para participar da licitação, não existe uma lei ainda que possibilite isso, então hoje está tramitando entre os catadores nas cooperativas e associações nas licitações. Agora, nós, a curto prazo, a gente nem foi reivindicando muito isso porque as grandes empresas do lixo tem muito dinheiro, muita grana, muitos recursos que nós não temos. Nós queremos fazer um processo para vir a ser, mas mesmo assim a gente está elaborando essa proposta” (Entrevista realizada com Nena).
Segundo NENA, atualmente, as cooperativas
estão negociando com a Prefeitura um convênio para
um programa de coleta seletiva de lixo:
“Parece que os próximos anos vão ser através de convênios com as cooperativas, através da SAS e Secretaria do Trabalho, mas a médio e longo prazo, eu nem sei o que exatamente esse longo prazo quanto é,
Marilene de Souza Coelho (Nena) na Coopamare
42
mas que se você consegue se estruturar, você consegue competir” (Entrevista realizada com Nena).
Segundo o diretor da LIMPURB (Limpeza Urbana), Luciano Legaspe, isso faz parte de
uma política que pretende gerar oportunidades de trabalho para os 8.704 moradores de rua
contabilizados na última pesquisa da FIPE, “A idéia é transformar o catador num agente
reciclador”16, o que não excluiu a atividade de catação. “As cooperativas podem destacar
idosos e deficientes físicos para a triagem”17.
Foi realizada uma passeata, organizada pelos próprios catadores, em dezembro de 2001
do Vale do Anhangabaú até a Praça da Sé, “Um Ato à Preservação da Vida”, onde eles se
manifestavam dizendo quem eles eram, o que ofereciam, o que queriam e o que eles já haviam
conquistado.18
Esta é a complexidade no que se refere as formas de atuação e desenvolvimento de
projetos e ações propostas que dependem da conjuntura sócio-econômica e política e da
mobilização da sociedade em que foi percorrido um longo caminho de luta e esforços somados
de vários grupos que trabalham com a população de rua. Juntos foi possível construir, de
16 BARROS, Fernando, Audiência discute edital, O Estado de São Paulo, 24/03/2001, Política 17 Ibdem 18 Ver em anexo 1.
Passeata “Um ato à Preservação da Vida”
43
forma democrática e participativa a lei de Defesa dos direitos à População de Rua que hoje é
modelo para outras cidades.
44
DDDD
Catadores de Papelão: Produto do Processo de Desenvolvimento
da era Pós-Moderna
esde Cristóvão Colombo, quando então, italianos, espanhóis, portugueses,
holandeses, franceses e ingleses desenvolveram nas grandes colônias latino-americanas uma
economia baseada na monocultura agrícola e/ou na exploração que poderíamos dizer que foi, a
partir daí, que se iniciou o processo de esgotamento e extinção dos recursos naturais na
América Latina.
A partir de então, implementou-se um sistema de exploração mundial, que limitaria, à
poucos, os favorecidos que usufruiriam das conquistas materiais e tecnológicos da
humanidade. Três séculos de colonização passaram, e no século XIX, revoluções
independistas iniciaram-se na América Latina sem conseguir, no entanto, alterar a
configuração de subalternidade e dependência diante dos países centrais, é o que foi chamado
de neocolonialismo.
E já no começo do século XX, essa nova dependência configurou-se no imperialismo
norte-americano, processo este que se desenvolveu ao longo de todo este século.
Segundo Eric Hobsbawm19, no final do século XIX, em 1900, o planeta se dividia entre
um Velho Mundo desenvolvido (Europa, EUA...), com 33% da população mundial, e o
19 HOBSBAWM, Eric. 1989: o que sobrou para os vitoriosos, Folha de São Paulo, 12/11/1990, pg. 03.
45
restante da população vivendo em sua periferia. Um século depois, Hobsbawm aponta a
mesma ramificação entre o Velho Mundo desenvolvido e o mundo periférico, no entanto,
indicando o seu agravamento, isto é, a população do Velho Mundo desenvolvido havia se
reduzido a apenas 15% da população mundial, demonstrando um aumento na concentração de
riquezas mundiais (Resende (org.), 1995:52).
O fenômeno da globalização, inserido em um contexto de capitalismo neoliberal,
permite que se configure um padrão de organização e administração de negócios que beneficie
corporações transnacionais, tornando-as mais poderosas do que os governos dos Estados
Nacionais, principalmente, aqueles situados na periferia da economia mundial. Atualmente,
alguns poucos milhares de grandes corporações controlam mais da metade da produção e mais
de dois terços do comércio em todo o mundo. (Resende (org), 1995:20)
Esse enfraquecimento do poder e das funções dos Estados-Nação impede que sejam
revistas os padrões de consumo e de produção, principalmente nos países centrais, que com
isso: “ajudam a alimentar a degradação ambiental na periferia do sistema, seja pela importação
de matérias-primas escassas, seja pela exportação, por simples expulsão, de processos
produtivos mais agressivos ao meio ambiente” (Resende (org.), 1995:25)
“Existir é poluir20, de uma ou de outra forma” (Miller, 1975:265). Este é um princípio
que se coloca como inevitável, principalmente, nos dias de hoje de aumento da produtividade,
barateamento dos produtos, fortalecimento de uma cultura mundial de consumo gerando com
isso uma exacerbação na absorção desses produtos e, quando esses materiais cumprem sua
20 Poluição pode ser entendido como uma introdução de elementos estranhos ao ambiente natural que lhe causam prejuízo de algum modo.
46
função no processo econômico, transformam-se em uma grande quantidade de refugo, lixo e
sucata.
Porém, o que há alguns anos não era uma preocupação, hoje é visto como um risco a
sobrevivência do planeta. Isto se deve a muitos fatores decorrentes do desenvolvimento
industrial que reduzem a qualidade e impõem parcas condições de uma boa vida para o
homem, como os problemas de transportes urbanos, a poluição do ar, o buraco na camada de
ozônio, o aquecimento global da Terra, a falta de moradias, saúde pública precária, criação e
utilização de materiais pela indústria que são muito mais resistentes de serem destruídos e/ou
transformados naturalmente, ao contrário dos detritos orgânicos que podem ser facilmente
degenerados por bactérias, fungos etc., poluindo rios, mananciais, lençóis freáticos. Isso acaba
provocando um impacto muito mais profundo no meio ambiente e na vida do próprio homem.
Desde os anos 60, já se começava a pensar na necessidade de se promover um novo
tipo de desenvolvimento, que em 1972, na Conferência Mundial de Meio Ambiente Humano
das Nações Unidas em Estocolmo foi denominado de eco-desenvolvimento, mas foi
substituído pelo termo “desenvolvimento sustentado” em 1987 no relatório Brundtland
produzido pela comissão mundial das Nações Unidas para o meio ambiente e o
desenvolvimento. Esse termo traduziria a necessidade de promover um avanço no
desenvolvimento mundial buscando novas alternativas aliadas à preservação da natureza e de
um aumento na qualidade de vida do homem, isto é, desenvolvimento e ecologia não seriam
idéias antagônicas.
Outro fato que não pode deixar de ser citado é a ECO-92, conferência das Nações
Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada no Rio de Janeiro. Foi a maior
47
Conferência já realizada pelas Nações Unidas, até aquele momento, reunindo 178 governos e
com a presença de mais de 100 chefes de Estado, sendo assim denominado de “cúpula da
Terra”. Essa relevante participação pode demonstrar a importância e o destaque que este tema
está tendo na atualidade.
Apesar disso, como a prioridade da política neoliberal é reforçar o mercado e
enfraquecer o controle que o Estado exerce na movimentação financeira, para essa política,
especificamente, não importa se suas ações são prejudiciais ao meio ambiente, pelo contrário,
é necessário à manutenção do sistema, importando apenas o lucro, a acumulação.
Juntamente a isso, podemos acrescentar, a evolução tecnológica que o mundo vem
experimentando nas áreas de eletrônica e informática, telecomunicações, bio-engenharia,
novas fontes de energia e novos materiais que trazem transformações significativas no nosso
cotidiano, mas que, no entanto, não é acompanhada social e politicamente, cujas raízes são
profundamente vinculadas a nossa cultura. Além disso, muitas dessas inovações (80% a 90%)
pertencem a um grupo de cerca de 500 empresas, que controlam cerca de um quarto da
produção mundial21, movidos pela competição internacional, restritos a um isolado conjunto
da sociedade e sem se preocuparem com as conseqüências sociais que essas transformações
provocam.
Segundo pesquisa22, “cada pessoa gera durante toda a sua vida uma média de 25
toneladas de lixo. Uma montanha de restos de alimentos, papéis, plásticos, vidros etc.”
21 Ver estudos do United Nations Center for Transnational Corporations, Onudi (Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial) sobre a distribuição mundial dos processos de renovação tecnológica. 22 Segundo pesquisas do IBGE de 1995.
48
(Abreu,2001:17). O que se confirma na atualidade é que o volume produzido pelos seres
humanos aumenta de forma significativa, de ano para ano, causando sérios danos ao meio
ambiente e a saúde pública. É um problema visto, discutido, e agora, bastante fomentado pela
mídia e pela sociedade, de um modo geral, que clamam por uma solução urgente.
Cria-se uma situação inusitada, o que fazer com esse lixo? Há basicamente quatro
opções para os resíduos sólidos: depósitos a céu aberto ou os conhecidos lixões, aterros
sanitários23, incineradores24 e locais de reprocessamento.
Dados do IBGE de 1995, mostram que aproximadamente 80% das 100.000 toneladas
de resíduos domiciliares coletados no Brasil, todos os dias, são depositados em lixões a céu
aberto. Nesses locais o líquido gerado na decomposição do lixo (chorume) penetra no solo,
contaminando os lençóis de águas subterrâneos e os rios. Os gases provocam explosões e fogo
que em alguns casos causam vítimas fatais. O mau cheiro é sentido de longe e atrai ratos,
baratas, e, gente....gente miserável que não tem outra forma de buscar a sobrevivência.
Um outro dado importante é que não basta retirar o lixo da própria casa, colocá-lo no
saco, por na rua e pronto. O que se observa é a falta de uma política pública de gerenciamento
do lixo, promovendo a educação ambiental da população para que aprenda a lidar com o lixo,
selecionando-o, através de uma coleta seletiva para que seja destinado a um lugar correto para
ser reaproveitado.
23 Técnica de disposição final de resíduos sólidos urbanos no solo, por meio de confinamento em camadas cobertas com material inerte, segundo normas específicas, de modo a evitar danos ou riscos à saúde e à segurança, minimizando os impactos ambientais (Política Nacional de Gerenciamento de Resíduos Sólidos - Lei nº. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998). 24 O processo de engenharia que emprega decomposição térmica via oxidação a alta temperatura para destruir a fração orgânica e reduzir o volume do resíduo (Política Nacional de Gerenciamento de Resíduos Sólidos - Lei nº. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998).
49
No dia internacional dos Direitos Humanos, 10 de dezembro, os catadores de materiais
recicláveis fizeram uma passeata sob o tema “Ato de Preservação à Vida”, que foi deliberada
pela Comissão Nacional do Movimento dos Catadores (eleita no I Congresso Nacional de
Catadores). Essa mobilização teve como objetivo mostrar à sociedade quem eles são, o que
eles oferecem, o que eles querem, o que já conquistaram e com isso mostrar o valor do que
eles fazem. A passeata saiu do Vale do Anhangabaú e caminhou até a Praça da Sé, onde foi
apresentada a “Carta Aberta à Sociedade25.” Acompanhando a passeata percebemos o
desrespeito principalmente dos motoristas em relação aos catadores e suas carroças.
É uma situação perversa, escabrosa que reflete a desigualdade e o desrespeito para com
os cidadãos que sofrem ao participar de um sistema que mata em função da acumulação, não
apenas no Brasil, mas em todos os cantos do planeta. Bem se sabe que essa situação, típica do
sistema, leva as pessoas a se alienarem totalmente da realidade distanciando-se cada vez mais
das noções de direitos e cidadania, cuja efetivação, já são raras nas classes menos privilegiadas
e que na maioria das vezes se caracterizam como pessoas pouco qualificadas, com um corte de
gênero, classe e etnia, que acabam por ter que sobreviver de restos de alimentos estragados e
contaminados e de materiais rejeitados pela sociedade, ignorando completamente as normas de
higiene e de saneamento.
Essa população vai ocupar as áreas de riscos, sem as mínimas condições de habitação;
e parcelas dessa população vão viver com as sobras, com os resíduos produzidos pelos setores
que tem no consumo uma das bases de estruturação do sistema implantado. Neste período a
25 Ver em anexo 1.
50
indústria da miséria torna-se cultura e o assistencialismo vem na forma de perpetuar as
condições já instaladas de passividade e apatia das massas.
Quando se pensa ou se reflete a situação dessas pessoas que, por tal falta de
alternativas, sobrevivem diretamente do lixo, percebe-se a degradação em todos os aspectos,
desde a animalização do ser humano, bem como a relação de exploração, violência no sentido
amplo do termo, fazendo com que essas pessoas tirem proveito dos resultados maléficos do
“desenvolvimento”, como o extrativismo vegetal e mineral indiscriminado ou o contrabando
de espécimes nativas e que, ao destruírem o meio ambiente natural, desequilibram
completamente a vida do planeta.
Além disso, a humanidade hoje, está tomando noção de que muitos dos recursos
naturais26 do planeta estão se esgotando, sendo que muitos deles não podem ser renovados,
como é o caso dos combustíveis fósseis (carvão de pedra, petróleo, gás natural) e dos minerais
de um modo geral. Neste sentido Abreu, falando sobre esse assunto diz: “o lixo representa
mais que poluição, significa também desperdício de recursos naturais e energéticos” (Abreu,
2001:18).
O resultado desta exploração e do não aproveitamento dos resíduos sólidos recicláveis
é “um planeta com menos recursos ambientais, com mais lixo que além da quantidade
aumenta em variedade contendo materiais cada vez mais estranhos ao ambiente natural”
(Abreu, 2001:18).
26 Segundo Gomes, recursos naturais são: “tudo a que os seres vivos – e entre eles o homem – possam recorrer na tentativa de se manterem vivos” (Gomes Jr., 1978:108).
51
Diante dessa complexidade, a administração pública da cidade de São Paulo tem
ampliado sua preocupação com o aumento contínuo de um número crescente de materiais, de
todos os tipos, inertes, biodegradáveis e perigosos.
A forma de enfrentamento de como administrar os problemas relacionados ao lixo de
São Paulo é de responsabilidade da LIMPURB (Limpeza Urbana) e, mais recentemente,
também das Administrações Regionais que, a partir do segundo semestre de 2001, começaram
a trabalhar em parceria na execução do serviço de limpeza pública e fiscalização. A
LIMPURB é um órgão da administração direta, de estrutura departamental, burocratizado,
setorizado, e, que vem sendo marcado, nos últimos anos, pela descontinuidade administrativa,
o qual culminou em crises políticas, denúncias, instaurações de CPI27 etc., com um cenário
obscuro onde aponta um modelo de gestão conflituosa e falida.
Um outro problema é o número insignificante de aterros sanitários em relação a
extensão da cidade e a quantidade de habitantes em São Paulo, e, que no momento, são apenas
cinco, sendo que três estão ativos e apenas dois deles são para resíduos sólidos (Bandeirantes e
São João são para resíduos domiciliares28 e Itaquera para resíduos inertes29) e os quais pelo
tempo de uso, segundo dados, tem apenas mais uma ano de vida útil.
27 A CPI do lixo terá que investigar contratos e aditamentos com empresas para coleta, varrição e serviços complementares de 1987 até a gestão atual, o que corresponderia às gestões de Jânio Quadros, Luíza Erundina, Paulo Maluf, Celso Pitta e Marta Suplicy. 28 Resíduos urbanos domiciliares são aqueles provenientes de residências ou qualquer outra atividade que gere resíduos com características domiciliares, embalagens (Política Nacional de Gerenciamento de Resíduos Sólidos - Lei nº. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998). 29 cujo tratamento não seja tecnicamente viável (Política Nacional de Gerenciamento de Resíduos Sólidos - Lei nº. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998).
52
A tabela abaixo mostra os principais aterros operados na cidade de São Paulo, e, o seu
período de duração. Situamos apenas os resíduos domiciliares como uma amostragem, para
compreendermos um pouco melhor o universo dos resíduos sólidos e das políticas em debate
para a resolução do problema.
ATERRO SANITÁRIO PERÍODO DE DURAÇÃO
Bandeirante 1, 2, 3, 1979 a1996
Bandeirante 4 e 5 1995 a -
São João 1992 a -
Santo Amaro 1976 a 1995
Sapopemba 1979 a 1984
São Mateus 1984 a 1985
Vila Albertina 1977 a 1993
Jacuí 1980 a 1988
Lauzane Paulista 1974 a 1974
Jardim Damasceno 1975 a 1975
Vila São Francisco 1976 a1976
53
Carandiru 1977 a 1977
Engenheiro Goulart 1975 a 1979
Raposo Tavares 1975 a 1979
Pedreira Itapeva 1978 a 1979
Fonte: Arquivos do departamento de Limpeza Urbana - Relatório de controle.
Observa-se que apenas dois deles, estão em operação atualmente, o que significa que
os mesmos são insuficientes para absorver a quantidade de resíduos produzidos todos os dias
na cidade de São Paulo. Visto que este problema, pela sua dimensão, depende de políticas
públicas mais eficientes.
Na última década do século XX, é que se passou a discutir com mais eficácia, pelo
poder público, o destino dos resíduos produzidos nas grandes cidades, particularmente em São
Paulo, que produz diariamente mais resíduos do que todas as demais cidades do país, tanto
orgânicos, como inertes. Em São Paulo, e, também, na Região Metropolitana de São Paulo,
vem acontecendo vários movimentos, discussões, seminários sobre a política dos resíduos
sólidos.
No seminário “O desafio do lixo: uma questão ambiental e de inclusão social”, que
aconteceu em setembro de 2001, a coordenadora da área de meio ambiente do Instituto Polis e
coordenadora do Fórum Lixo e Cidadania da Cidade de São Paulo, Elizabeth Grimberg aponta
a necessidade de ações consorciadas para a destinação de resíduos, isto é, as empresas teriam a
54
responsabilidade de armazenar todo tipo de material produzido por ela, que não possua
tecnologia para ser processada, devendo promover também o desenvolvimento de novas
tecnologias como um compromisso ético com as próximas gerações. Além disso, segundo
Grimberg, as administrações públicas municipais devem promover ações em relação ao lixo
com uma política baseada em uma nova concepção de gestão, buscando compartilhar ações
institucionais entre as várias Secretárias com o objetivo de desenvolver condições dignas em
todas as áreas da vida.
Uma das soluções para o excesso de lixo, e que, na atualidade, se tornou mais
recorrente é a reciclagem dos materiais através de programas de coleta seletiva do lixo e de
incentivos a associações ou cooperativas de catadores de materiais recicláveis30, formados
geralmente por moradores de rua e desempregados. Segundo Grimberg, a coleta de recicláveis
poderia gerar trabalho para no mínimo 20 mil pessoas.
Os catadores, segundo a UNICEF (2000), recolhem entre 10% a 20% dos resíduos
produzidos nas cidades, encaminhando-os as empresas de reciclagem de plástico, vidro, papel,
alumínio e ferro, através de uma complexa rede de atravessadores. Aqueles que catam em
lixões ou em aterros perfazem 37% das capitais brasileiras, em 68% das cidades com mais de
50 mil habitantes e em 32% das demais cidades e aqueles que catam nas ruas estão em 67%
das capitais, em 64% das cidades com mais de 50 mil habitantes e em 32% das demais
(Pesquisa Água e Vida de 1998).
30 Catador de materiais recicláveis é o profissional que atua, individual ou coletivamente, na coleta, triagem, beneficiamento, comercialização, reciclagem de materiais reaproveitáveis, orgânicos e inorgânicos e na educação sócio-ambiental (Política Nacional de Gerenciamento de Resíduos Sólidos - Lei nº. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998).
55
“Carroças” ou “carrinhos” utilizados pelos catadores na recolha do material
É um trabalho exaustivo, extorsivo e desvalorizado. Isto é, exaustivo porque no caso
daqueles que possuem “carrinho”, requer uma rotina diária pesada de trabalho em que, de
modo geral, tem que se submeter a carregar o equivalente a várias vezes o seu próprio peso,
sendo muitas vezes mais visados pela intolerância do que aqueles que trabalham nos lixões,
que geralmente estão localizados fora das cidades.
“A gente encontra muitas barreiras, a gente é humilhado, sofre agressão. Eu já fui é...pessoas de carro mesmo, só que eu não revidei. Duas vezes que eu fui agredido eu conversei com o cidadão, e eu expliquei. Eu tava com a carroça, o farol tava aberto, o cara pegou, atravessou o farol fechado e quase que me pegou. Ele veio com tudo, daí eu falei: -Pára um pouco aí, eu não sei o que o senhor tem, mas eu tô fazendo esse serviço aqui, porque eu não tenho outra opção, mas se o senhor me dá trabalho, eu saio de fazer esse serviço” (Pedro, cooperado da Coopamare)31.
Extorsivo porque geralmente dependem de atravessadores, como os donos dos
depósitos ou compradores diretos dos lixões que detêm direitos abusivos sobre os materiais,
pagando muito pouco por eles, é uma cadeia de exploração e dominação onde o catador é o
mais prejudicado, pois está na ponta desta cadeia. Explorado pelo pequeno intermediário que é
explorado pelo médio intermediário, geralmente dono de um caminhão de coleta, que é
explorado pelo macro intermediário e que por sua vez é dependente da grande empresa de
reciclagem, geralmente vinculada ao capital internacional.
31 Carla Carusi DOZZI. Cooperativas de Catadores de Papel: uma alternativa para moradores de rua.
56
“(...)na verdade o que eles estão gerando aqui é matéria-prima para essa ponta aqui que é a indústria, alguns desses aqui do meio, eles já fazem algum beneficiamento, tipo já transformar o plástico já numa matéria-prima mais sofisticada e com isso ela vale mais como matéria-prima(...).” (entrevista realizada com Edy de Lucca 2001)
E desvalorizado porque, apesar de terem um importante papel na economia, ao
diminuírem o lixo a ser tratado pelos municípios, e, reduzir o custo da captação e produção
desses materiais pelas empresas, seu trabalho é desprezado por grande parte da população,
pelo poder público e, por vezes, pelos próprios catadores.
“A maior parte do povo tem um mau pensamento das pessoas que trabalham assim com carroça, pensa que é maloqueiro, é isso, é aquilo! Não é por aí, mas tem muita gente que pensa assim. Só que se a cidade for depender só do caminhão da coleta seletiva, não dá conta, porque aí a cidade vira um caos! Porque a maior parte do material, o lixeiro não leva! Eles só levam o que está no saco, fechado. O resto é tudo a gente” (Pedro, cooperado da Coopamare)32.
Atualmente os catadores começam a se organizar e a questão toma outras dimensões,
dando início a discussões sobre sua própria realidade e dificuldades enfrentadas no dia-a-dia
de seu trabalho.
Em Brasília, no mês de junho de 2001, realizou-se o I Congresso Nacional de Catadores
de Materiais Recicláveis com a participação de 1600 trabalhadores, representando 17 estados
do país. A partir daí, foi criado um anti-projeto de lei, apresentado ao Congresso Nacional,
com o intuito de regulamentar a profissão de catador de materiais recicláveis. Além disso, foi
32 Idem
57
reclamada a inclusão de princípios e prerrogativas na Lei de Política Nacional de
Gerenciamento dos Resíduos Sólidos do deputado federal Emerson Kapaz, ainda em
tramitação no Legislativo, para que fosse assegurado o direito do catador ao trabalho, a sua
participação na coleta seletiva de todos os municípios e estados e a possibilidade de receber
incentivos públicos para a formação de empresas sociais de reciclagem. A lei, a princípio,
somente iria tratar da destinação do lixo, porém, com a mobilização dessa categoria percebeu-
se que a questão do lixo não era apenas de cunho ambiental, mas também sócio-econômico.
Outras prerrogativas levantadas no seminário “O desafio do lixo: uma questão
ambiental e de inclusão social”, que aconteceu em setembro de 2001, por Carlos Roberto de
Gáspari, coordenador do Centro de Estudos e Apoio ao Desenvolvimento, Emprego e
Cidadania (CEADEC) de Sorocaba e regiões são:
� A constituição em cooperativas ou associações dos coletores individuais em lixões
(apesar de que o ideal seria acabar com os lixões);
� Aprofundar a organização e a forma da cooperativa trabalhar a separação e
beneficiamento dos materiais para melhor geração de renda para os cooperados;
� Aprofundar no entendimento dos materiais coletados;
� Os cooperados não devem abrir mão da gestão nas cooperativas;
� Discutir com o poder público a regularização das cooperativas como prestadoras de
serviços públicos (sendo repassado o custo da coleta para as cooperativas);
� Aperfeiçoamento da rede de comercialização do estado e país;
58
� Necessidade de tecnologia para processar os materiais (apoio das universidades);
� Acesso a financiamentos para a compra de equipamentos, construção de galpões e
transporte.
O que podemos perceber é que, enquanto a lógica capitalista de desenvolvimento cria
problemas como o lixo, habitação e saneamento básico inexistentes ou precários, especulação
imobiliária, violência etc., também pode criar a possibilidade de mobilização de diferentes
segmentos de classe, contribuindo com isso com uma maior visibilidade e reflexão dos
problemas relacionados a pobreza e ao meio ambiente. Atualmente, se a sociedade civil, os
grupos comunitários e organizações políticas não se mobilizarem, as ações relacionadas a
proteção do meio ambiente e do homem permanecerão apenas curativas, paliativas com
resultados pouco significativos.
59
NNNN
A Economia Popular de Solidariedade
o início dos anos 70, desde o declínio do sistema de acumulação capitalista
fordista-keynesianista e a ascensão do sistema de acumulação flexível toyotista, juntamente
com a adesão crescente ao neoliberalismo, o mundo tem sofrido mudanças em uma velocidade
extrema, que já vinham se acelerado paulatinamente no decorrer da segunda metade do século
XX, mas que agora, com o desenvolvimento da tecnologia de comunicação, transporte e
informática, vencendo praticamente as barreiras de tempo e espaço através de tomadas de
decisões quase em tempo real, promovem alterações tanto econômicas, políticas, sociais,
ideológicas como também ecológicas. Podemos incluir a essa questão, a derrocada da antiga
União Soviética ante a revolução tecnológica e a sociedade de consumo, incapaz de
desenvolver sua produtividade econômica, quebrando anos de Guerra Fria, tornado assim o
sistema capitalista hegemônico.
Atualmente, podemos constatar que nunca se viu em toda a história da humanidade um
período de concentração e centralização tão intensa de capital em tão poucas nações e com tão
poucas pessoas. “Os países subdesenvolvidos com 75% da população mundial, atingem
apenas 19% do PIB mundial, tendo reduzido sua participação que há uma década alcançava
23%. Sua participação no estoque de investimento estrangeiro se reduziu de 25,2% para
16,9%, o que reflete outra vez a globalidade do fenômeno (...) a CEPAL - Comissão
60
Econômica para a América Latina, órgão das Nações Unidas – reconheça que, na mesma
década, o número da população no nível de pobreza na América Latina tenha crescido de 112
para 184 milhões de pessoas.” (Gadotti e Gutiérrez, 1993:65 e 66)
A acumulação flexível, segundo Harvey, “é marcada por um confronto direto com a
rigidez do fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de
trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de
produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos
mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e
organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças dos padrões do
desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por
exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado “setor de serviços”, bem como
conjuntos industriais completamente novos em regiões até então subdesenvolvidas (...). Ela
também envolve um novo movimento que pode ser chamado de “compressão do espaço-
tempo” no mundo capitalista – os horizontes temporais da tomada de decisões privada e
pública se estreitaram, enquanto a comunicação via satélite e a queda dos custos de transporte
possibilitaram cada vez mais a difusão imediata dessas decisões num espaço cada vez mais
amplo e variado.” (Harvey, 1992:140).
O efêmero, o fugaz, o novo são valores dessa era, acentuando o consumo de bens
supérfluos e com um reduzido tempo de giro no consumo, que diminui o tempo de vida dos
produtos e o individualismo muito mais competitivo, que permitem a inovação e o espírito
empreendedor para a formação de novos negócios em relações sociais de fracos vínculos, em
detrimento de relações mais solidárias e duradouras.
61
Esgota-se a capacidade de absorção de mão-de-obra, criando milhares de
desempregados, fato este, denominado há algum tempo atrás de “exército industrial de
reserva” como estratégia de forçar o engajamento do trabalhador à estrutura de trabalho
imposta pelo empregador, quebrando seus sindicatos e abaixando os seus salários. Atualmente,
esta situação de crescente desemprego é diagnosticada como “precarização do trabalho” e
“desemprego estrutural”, isto é, além de aumentar os novos postos de trabalho sem as
compensações legais e contratuais garantidas por lei, devido as transformações tecnológicas e
de divisão internacional do trabalho, diminuem as possibilidades de retorno ao trabalho
formal33, devido a política monetária que prioriza a estabilidade dos preços em detrimento do
crescimento econômico. Enfim, devemos entender isto como parte da lógica do capital, isto é,
ela é estrutural.
Esta situação, devido a desindustrialização, era expressa por muitos organismos
internacionais, como o FMI, como um fator positivo, pois demonstraria uma passagem
necessária, e, até desejável de um país industrializado e, portanto atrasado, para outro de
economia avançada, dando um caráter de naturalização ao fenômeno do desemprego, como se
fosse um fato inexorável e que não é produzido socialmente e, logo, impossível de ser alterado
pela ação dos próprios sujeitos. Além disso, diminui o acesso aos recursos e serviços sociais
oferecidos pelo Estado, em decorrência de crises fiscais e administrativas que elevaram os
custos públicos, diminuindo assim os investimentos em políticas sociais. E como processo da
33 Segundo o IBGE/ECINF de 1997, 12.870.421 de trabalhadores estavam no mercado informal, movimentando R$ 12.890 milhões em 9.478 milhões de empresas, sendo divididos em pequenos empregadores (12%), trabalhadores por conta própria (67%), empregados com carteira assinada (7%), empregados sem carteira assinada (10%) e trabalhadores não remunerados (4%). Sendo considerado pertencente a economia informal, segundo o ECINF, toda atividade exercida por trabalhadores por conta própria ou pequenos empregadores em atividade não agrícolas. O critério básico não é sua regularização junto às autoridades públicas, mas a forma particular de organização da produção e de divisão de trabalho.
62
globalização neoliberal, provoca o desmantelamento ou a transformação do setor público em
privado.
Harvey continua dizendo, “A acumulação flexível parece implicar níveis relativamente
altos de desemprego “estrutural” (em oposição a “friccional”), rápida destruição e
reconstrução de habilidades, ganhos modestos (quando há) de salários reais e o retrocesso do
poder sindical – uma das colunas políticas do regime fordista.” (Harvey, 1992:141). Isso acaba
gerando uma reestruturação no mercado de trabalho, através de contratos e regimes de
trabalho mais flexíveis em tempo parcial, temporário ou subcontratado em detrimento de
trabalhos formais em tempo integral. Essa nova realidade revive antigas formações
organizacionais subcontratadas com características domésticas, artesanais, familiares
(patriarcais) e paternalistas como formas de produção centrais no processo industrial. “Às
vezes, indicam o surgimento de novas estratégias de sobrevivência para os desempregados ou
pessoas totalmente discriminadas (como os haitianos em Miami ou Nova Iorque), enquanto
em outros casos existem apenas grupos imigrantes tentando entrar num sistema capitalista,
formas organizadas de sonegação de impostos ou o atrativo de altos lucros no comércio ilegal
em sua base. Em todos esses casos, o efeito é uma transformação do modo de controle do
trabalho e de emprego.” (Harvey, 1992:145).
Todas essas formas são entendidas através de diversas expressões na sociologia e na
economia como: economia informal, estratégias de subsistência, economia subterrânea e
outras similares.
É a partir desse cenário de informalização, terceirização, diminuição de postos de
trabalho nas indústrias, subproletarização, além do aumento da participação das mulheres no
63
mercado de trabalho devido a perda crescente da renda familiar, ao desemprego, e, também à
busca por independência, é que surgem projetos alternativos de geração de renda. Tratam-se
de iniciativas desenvolvidas pelos setores populares, através de experiências em diversas
atividades, como forma de reagir diante da crescente desigualdade e exploração a que são
submetidos tanto pelo poder do mercado, quanto pela conivência e a falta de apoio do Estado.
Incutindo-lhes a sensação de estarem abandonados em um mal-estruturado barco, deixado à
deriva e com poucas esperanças em seu resgate. Portanto, necessitam, por si só, terem a
iniciativa de realizarem o seu próprio salvamento a partir da utilização de suas
potencialidades, que muitas vezes ainda precisam ser descobertas e/ou desenvolvidas, tentando
lutar contra àquele que poderia ser o seu esperado destino, o definhamento e a morte.
A Economia Popular é um fenômeno que se estende a toda a América Latina,
resultando em diferentes atividades e iniciativas dos setores populares. Luís Razeto34, filósofo
chileno, distingue diversas formas de ação neste campo como:
� Microempresas e pequenas oficinas e negócios de caráter familiar, individual que
funcionam geralmente na própria residência do empreendedor (ex. oficina de
costura, artesanato, lojas de bairro, corte de cabelo etc.);
� Organizações econômicas populares formadas com o intuito de resolverem
determinados problemas, conjuntamente;
34 Luis RAZETO, “Economia de Solidariedade e organização popular” In: “Educação Comunitária e economia popular” de Moacir Gadotti e Francisco Gutiérrez (orgs.) (1999:34-58) Ed. Cortez 2ª edição
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� Iniciativas individuais não estabelecidas e informais que funcionam como
prestadores de bens e serviços (ex. comércio ambulante, serviços domésticos,
guardadores de carro etc.) ou que cumprem funções auxiliares para empresas
formais como forma de burlar as leis tributárias e trabalhistas;
� Atividades ilegais e com pequenos delitos (ex. delinqüência de rua, prostituição,
pequeno ponto de venda de drogas etc.);
� Soluções assistenciais e inserção em sistemas de beneficência pública ou privada
caracterizando-se como um paliativo a extrema pobreza.
Há outras formas distintas, porém, genericamente essas são as principais.
Segundo Razeto35 (1999), quando nos referimos a essas diversas experiências podemos
verificar que há diferentes graus de empenho, de permanência, de significados demonstrados
pela população. Para classificá-las podemos dividi-las em três níveis de estratégias36:
1. Estratégias de Sobrevivência: é uma atividade emergencial de sobrevivência, de
pouca duração, para tentar suprir apenas as necessidades fisiológicas básicas;
2. Estratégias de Subsistência: é uma atividade que consegue suprir as necessidades
básicas, porém, não permite o acúmulo ou o crescimento econômico do indivíduo.
É uma atividade que pode trazer uma certa estabilidade, mas não é desejada como
uma opção permanente;
35 Ibdem 36 O termo estratégia pode ser questionado, já que, em muitas dessas experiências, a adesão voluntária não se configura, isto é, o sujeito se encontra em uma situação em que inexiste outras possibilidades de escolha para suprir suas necessidades.
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3. Estratégias de Vida: ao contrário das outras duas situações, aqui as pessoas tendem
a valorizar o seu espaço de trabalho como um lugar que desenvolve relações sociais
abertas e solidárias, ou que pode oferecer mais possibilidades de crescimento
econômico, profissional, social etc., ou simplesmente representa a única
possibilidade de trabalho por razões de idade, capacitação etc. Sua escolha tende a
ter intenções permanentes e portanto, compõem-se em espaço de desenvolvimento.
Esses diversos graus de desenvolvimento podem estar presentes em qualquer das
diferentes atividades levantadas anteriormente, e, por trás delas estão outras culturas e
particulares histórias de vida, que também vão ser determinantes no discernimento dessas
estratégias.
Com a escassez de empregos no mercado de trabalho muitas ações foram sendo
desenvolvidas, por várias frentes, para tentar solucionar essa questão, porém, a maior parte
delas se restringiu a oferecer cursos de treinamento e recapacitação profissional, ou então,
financiamento para o desempregado que se dispusesse a abrir um novo negócio, salientando
que a presença desses agentes no mercado contribui para o aquecimento da demanda, em
decorrência do acréscimo de renda gerado, com efeitos imediatos de dinamização e expansão
do conjunto da economia através de compras de bens e insumos locais que proporcionam um
aumento no fluxo monetário local, ao contrário, das grandes empresas que possuem uma
propensão a fuga da renda para o exterior.
No entanto, ambas as propostas são respostas que se adequam ao sistema de
acumulação capitalista. Primeiro, porque são saídas individuais, isto é, não promovem ações
coletivas como forma de reivindicação, negociação e pressão de direitos sociais.
66
Conseqüentemente, imputa, também, em âmbito individual ao êxito ou não dessa nova
empreitada, isto é, se ele não conseguir um novo emprego ou não prosseguir com o seu novo
negócio é porque faltou competência ou vontade dele, não transparecendo os vários entraves
que a própria estrutura do capital promove a esses novos empreendimentos, como a falta de
ofertas de trabalho devido a ausência de crescimento dos mercados que acirra a competição
em um mercado tão reduzido dificultando o sucesso, também, das pequenas empresas.
Segundo, se fosse possível recapacitar todos os desempregados o único resultado a isso
seria uma intensa competição entre eles, já que o mercado de trabalho não teria como absorver
a todos, o que causaria uma queda nos salários. Além disso, a absorção de mão-de-obra para o
mercado de trabalho depende também de relações de classe, de gênero, de etnia e etárias, isto
é, ela é baseada em valores culturais o que implica a constituição de desigualdades e
preconceitos.
Terceiro, a formação de pequenas empresas por desempregados ou a sua escolha em
serem autônomos também faz parte da atual tendência de descentralização e flexibilização do
trabalho, porém, falta a esses novos empreendedores experiência profissional, reconhecimento
junto à uma clientela em potencial, e acesso as inovações tecnológicas que contribuiriam para
se manter em um mercado tão competitivo. Além disso, essas pequenas empresas funcionam
geralmente como subsidiárias ou subcontratadas de grandes firmas, competindo entre si para
poderem vender os seus produtos para essas grandes firmas. Isso beneficia apenas aos grandes
empreendimentos que conseguem comprar esses produtos a custos menores. Afora isso, o
crescimento dessas microempresas vai depender do crescimento dessas grandes empresas.
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E em quarto, essas pequenas empresas geralmente empregam mão-de-obra com baixo
salário com pouca ou total ausência de benefícios e incentivos como plano de saúde, seguro de
vida, treinamento, premiações etc. e sem segurança no emprego buscando apenas a legalização
da sonegação dos encargos sociais e que muitas vezes são estabelecidas como se fossem
cooperativas, porém, infringindo os princípios do cooperativismo, são empresas que são
popularmente conhecidas como “coopergatos”37.
Portanto, de um modo geral, são soluções parciais e dispersas que não contribuem para
a formação de uma identidade comunitária e de mudanças estruturais no sistema de produção e
distribuição da riqueza coletiva. “Embora vistos por seus impulsionadores como contribuições
à democratização econômica e à geração de emprego, que, é preciso salientar, quando não
nascem dos próprios setores populares, mas que são promovidos por interesses externos,
advêm, com muita freqüência, em formas de apaziguamento político, de geração de emprego a
baixo custo, de ocupação de mão-de-obra ociosa em terras de baixa produtividade, de
transferência de custos de infra-estrutura e manutenção, bem como de liberação de custos das
cargas sociais.” (Gutiérrez, 1993:25)
No entanto, muitas experiências de organização de economia popular desenvolvidas
pela comunidade constituem-se em grandes contribuições para o fortalecimento emocional e
econômico do grupo local, através da construção de um projeto carregado de expectativas e
novas esperanças e é “o que muitas instituições e organizações não governamentais têm feito
ao promover organizações econômicas populares, grupos de auto-ajuda, microempresas
37 O termo “gato” refere-se a figura do aliciador de “bóias-frias” ou de trabalhadores para grandes fazendas em várias regiões do país.
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familiares, cooperativas dos mais variados tipos, formas de autogestão38, hortas orgânicas,
oficinas de trabalho, organizações de consumo, grupos de saúde, centros de serviço à
comunidade, experiências de autoconstrução e construção de moradias populares, créditos
rotativos, núcleos de abastecimento, organizações de subsistência, programas de
desenvolvimento das comunidades etc.” (Razeto, 1989)
A economia popular é apenas uma forma de alternativa de trabalho. Outra forma
bastante conhecida e atualmente, bastante discutida é a economia solidária e que, segundo a
concepção de Razeto, “nem toda economia popular é economia solidária (...) nem toda
economia solidária é parte da economia popular.” (Gadotti e Gutiérrez (org.), 1999: 45)
A economia de solidariedade ou economia solidária é uma forma especial de se
produzir, distribuir e consumir produtos. Ao contrário da capitalista, a economia solidária nega
a separação entre trabalho e a propriedade dos meios de produção, isto é, aquele que trabalha,
também é, aquele que possuí o capital. Ela expressa uma racionalidade econômica própria,
baseada em comportamentos sociais solidários, de cooperação, comunitários e
autogestionários, e, sua finalidade básica é o desenvolvimento em caráter integral do
trabalhador que engloba a vida coletiva, cultural, educativa, profissional, política, econômica
etc, em detrimento da rentabilidade e do lucro.
Ela se manifesta de forma bastante heterogênea, como “diversas formas de
cooperativas de produção, de serviços, de crédito e de consumo, associações de produtores,
38 “A autogestão é um modelo de gestão onde o controle da empresa e as decisões são exercidos pelos trabalhadores. Eles decidem sobre tudo: metas de produção, participação dos resultados, política de investimentos, modernização, política de relacionamento entre as pessoas, mercado etc.” (Nakano, “A economia solídária no Brasil” de Singer e Souza (orgs.), 2000).
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empresas em regime de autogestão, bancos comunitários e organizações populares, no campo
e na cidade.” (Magalhães e Todeschini, 2000:135), sendo que algumas vezes pode ser
expressão de organizações não advindas de extratos da população de baixa renda como são as
instituições não governamentais constituídas por profissionais, cientistas e técnicos etc. No
entanto, de um modo geral, quando nos referimos a economia solidária estamos falando
daquela que é formada para enfrentar um conjunto de carências e necessidades concretas como
saúde, moradia, educação, alimentação, desemprego etc. envolvendo grupos de pessoas e de
famílias, portanto, não são iniciativas puramente individuais, tendo como principal
instrumento o seu próprio esforço, além de recursos, que por vezes são mínimos, e às vezes,
meios individuais de produção e distribuição.
Com isso, relações sociais de mutualidade e cooperação são estabelecidas através de
uma organização que pretende ser autogestionária, democrática e participativa e que ofereça
diversas atividades (econômicas, sociais, educativas, de desenvolvimento pessoal e grupal,
políticas e pastorais) com o objetivo de satisfazer e promover a evolução do trabalhador, tendo
como condição para o seu sucesso a formação de redes horizontais baseadas na troca de
informações e na busca de ações conjuntas para lutar contra o isolamento estabelecendo
relações com outros grupos e instituições que realizam diversas outras atividades, evitando
promover relações de competição e entendendo que a junção dessas pequenas empresas
resultará em uma grande empresa (como diz o dito popular: “a união faz a força”) e tudo isso
tendo como direção a realização e conquista de uma sociedade mais justa e igualitária.
Os defensores da economia solidária acreditam que os valores comunitários, de
cooperação, colaboração, mutualismo, coletividade são fatores que proporcionam diversos
70
ganhos ao trabalhador, e, um aumento no rendimento e na eficácia do empreendimento como
um todo. Podemos verificar isso através de várias expressões que revelam-se no processo
produtivo como: a cooperação no trabalho; a deliberação e gestão coletiva; a troca e o
compartilhamento de informações e conhecimentos; a melhor convivência no ambiente de
trabalho que proporciona uma maior satisfação, promovendo uma maior participação, com
relações menos conflituosas o que facilita a comunicação e favorece a identificação de
problemas de ineficiência no trabalho, reforçando o empenho de cada um em aplicar as
diretivas e propor inovações e a baixa rotatividade de mão-de-obra, promovendo uma maior
segurança e estabilidade no trabalho. Quando todos os trabalhadores atribuem um alto grau de
importância à empresa coletiva, tanto a dedicação, quanto o empenho em enfrentar riscos e
tentar resolver problemas torna-se um fator de fortalecimento e unificação do grupo.
Outro aspecto importante das economias solidárias é a educação e mais propriamente a
educação popular comunitária. Ela tem como princípio o desenvolvimento dos trabalhadores
e, mais especificamente, dos setores estigmatizados da população através da educação
vinculada ao trabalho, isto é, sua capacitação e aprendizagem seria simultânea a sua prática e
se empregaria fundamentado “no reconhecimento da diversidade cultural, na economia
popular, na multiculturalidade, no desenvolvimento da autonomia de pessoas, grupos e
instituições e na promoção da cidadania.” (Gadotti e Gutiérrez (orgs.), 1999:8).
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Segundo Gadotti, “a educação comunitária é aquela que associa o produtivo, o
organizativo e o educativo” (Gadotti, 1999)39, isto é, a educação popular comunitária parte da
prática, do real refletindo-a e analisando-a para então transformá-la, concebendo os processos
econômico-produtivos, relacionados aos políticos-organizativos, como componentes
essenciais para o processo de educação popular.
A partir disso, devemos acentuar a importância de não vislumbrar as experiências de
organizações pertencentes a economia solidária apenas do ponto de vista econômico, pois
essas práticas demonstram um grande poder de desenvolvimento sócio-político-educativo
através do trabalho de refletir, dialogar, criticar, construir soluções, participar, deliberar,
enfrentar novos desafios, além de muitas outras ações40. É um processo permanente que não
tem como objetivo a educação para o trabalho, mas sim para possibilitar ao trabalhador
produzir autonomamente.
Alguns outros elementos como o controle, a flexibilidade e a polivalência de funções,
tradicionalmente utilizados na gestão de empresas capitalistas de acumulação flexível são
também importantes para o sucesso de empreendimentos nas economias solidárias, porém,
esses elementos possuem uma outra dimensão.
Ou seja, a flexibilização é um conceito importante em um contexto globalizado e com
avanços tecnológicos que exigem tomadas de decisões rápidas em um mercado que se
39 Moacir GADOTTI, “Educação comunitária e economia popular” (1999:11-22) In: “Educação comunitária e economia popular” de Moacir Gadotti e Francisco Gutiérrez (orgs.) Ed. Cortez 2ª edição 40 Podemos supor quatro tipos de processos de educação desenvolvidos na prática: processo grupal participativo (a autogestão seria um exemplo); processo de expressão criadora (tem o objetivo de transformar a realidade e não reproduzí-la); processo praxiológico (supõe a dialética ação-reflexão como fator de mudança do nível micro e macro estrutural) e processo comunitário (consolidação de uma consciência organizativa coletiva como meio de sucesso). (Gadotti e Gutiérrez (orgs.), 1999: 27)
72
modifica constantemente. Em momentos em que as demandas podem variar exigindo
flexibilidade nas decisões em empresas autogeridas isso se processa através de deliberações
coletivas que promovem mudanças no número de horas trabalhadas, solicitando um maior
comprometimento dos trabalhadores com as resoluções gerais, no entanto, essas modificações
devem dar a possibilidade das tarefas serem executadas de forma mais criativa em um
ambiente de trabalho harmonioso, respeitando condições básicas de trabalho para evitar
situações de extremo desgaste e fadiga do trabalhador. Aqui a flexibilização tem como
objetivo um atendimento no prazo com uma produção de mercadorias de boa qualidade e com
a preocupação de manter as boas condições de trabalho do operário, ao contrário da
flexibilização do toyotismo que tem o capital financeiro como o seu principal coordenador
promovendo ações que desconsideram as conseqüências para os trabalhadores.
O controle é outro elemento necessário de ser explicado. Nas empresas
autogestionadas, o controle é coletivo e sua ação é sobre aquele que é o próprio dono da
produção. Pode se manifestar tanto como um autocontrole, isto é, o próprio trabalhador tem
interesse em se autodisciplinar tendo a noção que isso irá beneficiar a todos, inclusive a ele
mesmo ou, então, um controle que vem de seus próprios colegas, já que, em princípio, inexiste
uma divisão hierárquica e uma autoridade superior ou externa a ele, podendo sim, existir um
ou outro que tenha maior poder de legitimidade no grupo, mas essa posição também pode
alterar-se de tempos em tempos. Para que isso aconteça é necessário um ambiente de diálogo e
transparência nas relações intentando sempre a cooperação e não a competição entre os
trabalhadores.
73
Já nas empresas capitalistas de acumulação flexível, devemos entender que seu uso é
em favor de uma maior produtividade, com redução de custos, com maior qualidade e em
menor tempo, sugerindo uma autonomia ao trabalhador que é relativa e que é organizada por
um projeto definido e conduzido por atores externos da base de trabalho e que é fortemente
baseado nos conceitos de responsabilização e polivalência na gestão local. Aqui podemos
perceber que o uso do controle nos processos de produção das empresas de gestão toyotistas se
assemelham ao da economia solidária pois vale-se da participação dos próprios trabalhadores
para que isso se viabilize, porém, a diferença está no ambiente que é marcado pela competição
através de prêmios e remunerações diferenciadas por resultados e pela competência de cada
trabalhador com intenção de beneficiar a si e a própria empresa e não aos seus iguais.
A redução da fadiga e do stress também deve-se a flexibilidade de horários, a
inexistência de chefias e ausência de cobrança por produção que permite que o operário
trabalhe sem o temor de ser punido. Contribui para isso, também, a rotatividade nos cargos ou
polivalência funcional que permite que os trabalhadores se rodiziem nas diversas atividades do
empreendimento evitando lesões por esforço repetitivo (LER) e desgastes psicológicos
próprios de algumas funções. Essa estratégia também possui outra qualidade de grande mérito
que é o de promover um conhecimento total do processo produtivo a cada trabalhador,
tentando, com isso, superar a divisão social do trabalho entre aquele que pensa e aquele que
faz.
Nas economias de acumulação flexível a polivalência também é um método bastante
utilizado com o intuito de reduzir custos e de melhorar e aumentar o aproveitamento do
trabalho direto, desempenhando tarefas de apoio e limpeza, ou através do desenvolvimento de
74
uma capacidade técnica que possibilite a operação de vários equipamentos, porém, enfatiza
melhorias operacionais circunscritas ao local de trabalho, restringindo as possibilidades de
crescimento das competências profissionais e impossibilitando sua participação em áreas de
cunho estratégico e portanto, não rompe com a relação de mando e submissão no trabalho.
“Dito de outro modo, o êxito dessas iniciativas econômicas depende de sua capacidade de
articular a lógica empresarial – voltada à busca de resultados por meio de uma ação planejada
e pela otimização dos fatores produtivos, humanos e materiais – e a lógica solidária, de tal
maneira que a própria cooperação funciona como vetor da racionalização econômica,
produzindo efeitos tangíveis e vantagens reais, comparativamente à ação individual e à
cooperação técnica não solidária” (Gaiger et al., 1999:25).
Portanto, quando essas empresas de economia solidária assumem plenamente o seu
caráter cooperativo seus ganhos não se resumem a geração de benefícios sociais, mas
contribuem muito para o aumento da eficiência, esclarecendo aqui que o conceito de
eficiência, segundo Antunes, não se limita ao aumento do faturamento, com menor custo, mas
possui outro caráter, que é o de contribuir para a qualidade de vida e a evolução do trabalhador
(Gaiger, 1999:16).
Apesar disso, algumas dificuldades são levantadas como empecilhos para a
implantação e o desenvolvimento das empresas solidárias, porém, não por gerarem resultados
negativos, mas porque necessitam de modificações nas relações existentes interna e
externamente às empresas de economia solidária.
Em uma análise micro podemos citar o processo de decisões coletivas que, apesar de
tender a ser mais acertado e eficaz do que aqueles feitos em empresas capitalistas tradicionais
75
em que as decisões são centradas em um pequeno número de pessoas, elas tendem a tomar
mais tempo. No entanto, essa questão pode mostrar-se de possível resolução pois, algumas
decisões que exigem processos rápidos de resolução são geralmente de pequeno alcance e
portanto, quebrando a regra, podem ser deliberadas por um pequeno grupo de pessoas, porém,
aquelas determinações que possuem uma grande importância devem ser determinadas por
todos os envolvidos na gestão, até mesmo porque, são resoluções que não devem ser tomadas
precipitadamente.
Outra grande questão é a comunicação, que consiste em mecanismo essencial de
efetivação na construção da democracia, facilitando o andamento dos vários processos de
decisão e ação, através de uma organização com relações mais transparentes e fluidas,
contribuindo assim para melhorar a produtividade e diminuir o cansaço.
Porém, tanto para essa questão quanto para a anterior, é necessário nos remeter a
formação cultural a que a população e, especialmente, as classes populares foram submetidas.
Através de interesses de dominação e exploração foi excluída a possibilidade de desenvolver a
capacidade do trabalhador de refletir e deliberar, sendo permitido apenas executar o mando de
outro, isso também exerceu influência na sua habilidade de manifestar e expressar o seu
próprio ponto de vista. Nas empresas capitalistas tradicionais o trabalhador não era mais do
que uma parte do maquinário, um objeto, uma coisa. Podemos verificar isso através dos vários
relatos de associados de uma cooperativa de Porto Alegre sobre as condições de trabalho em
sua antiga empresa: “a nossa opinião não valia nada”; “operário para eles era lixo”; o chefe
76
dizia “faz assim, assim que eu quero”; “faz assim e fim”; “não ia levantar a voz com superior,
simplesmente baixava”41.
Diante disso, algumas dificuldades são encontradas nas empresas em que a autogestão
e a troca de informações são necessárias para que a haja legitimidade e agilidade nas decisões.
Muitos trabalhadores se retraem ao ter que falar para um grupo grande de pessoas nas
assembléias, muitos pelo fato de terem dificuldades de expressarem-se corretamente, ou
segundo um termo usado por Marilena Chauí, despossuídos de um “discurso competente”,
preferindo, muitas vezes, calar-se ao ter que enfrentar as críticas e a humilhação de seus
colegas. Questão essa entendida muitas vezes como uma condição natural e com isso
induzindo os trabalhadores à auto-exclusão.
Contudo, a comunicação é, na verdade, um processo de evolução de aptidões e
habilidades, um exercício de ouvir e falar, uma construção que exige a conscientização das
diferenças entre os sujeitos. Segundo Melucci, “A comunicação requer portanto, uma
aprendizagem. Para aprender a comunicar-se e poder realizar a comunicação, são necessárias
duas condições: a primeira é a de reconhecer o próprio ponto de vista como situado. O outro
vê e define os fatos de outro modo, porque está colocado diversamente de nós; a segunda
condição consiste em identificar o espaço do consenso. O reconhecimento do que é diverso,
abre o caminho para reduzir a diversidade. As diferenças podem ser mantidas, mas pode-se
também desejar reduzi-las para crescer em proximidade e integração com os outros.”
(Melucci, 1994: 113-114).
41 Um maior conhecimento dessa experiência ver Gestão cooperativa: limites e obstáculos à participação democrática de Lorena Holzmann in Singer e Souza (org.), A economia solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego.
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Economicamente, a maioria desses empreendimentos sobrevivem por anos, apesar da
falta de bases de sustentação42 que os coloca em uma frágil situação, tendendo a prevalecer a
relação de dependência dessas organizações com as entidades que as geraram. Segundo
Magalhães e Todeschini43, “A maioria das organizações associativas e cooperativas encontram
enormes dificuldades de se estabelecer e de se viabilizar no médio prazo. A falta de
organizações de representação deste setor da economia e a falta de políticas nos sindicatos
para a representação desses trabalhadores exigem a readequação de políticas e de organizações
existentes para a interlocução com o Estado e a sociedade. Além disto, a falta de políticas
públicas ou privadas voltadas para a assessoria, acompanhamento, qualificação técnica, apoio
jurídico, comercialização e crédito e a falta de tecnologias adequadas às pequenas escalas de
produção deixam esses empreendimentos em frágeis condições de se viabilizar em mercados
cada vez mais exigentes.”
Segundo uma linha comum de entendimento, o maior trunfo desse novo modelo de
produção é a ruptura que ele estabelece com as relações sociais e a lógica capitalista de
produção de mercadorias, pois ao conceberem a possibilidade daquele que detém a força de
trabalho ser o mesmo que detém os meios de produção, desfaz-se o antagonismo entre capital
e trabalho e recupera as condições do trabalhador para uma existência integral, dominando o
processo e o produto do seu trabalho, superando com isso, o caráter alienante do trabalho, isto
42 Bases de sustentação: fontes de financiamento, redes de comercialização, assessoria técnico-científica, formação continuada dos trabalhadores e apoio institucional e legal por parte das autoridades governamentais. (Singer e Souza, 2000:23) 43 Reginaldo Sales MAGALHÃES e Remígio TODESCHINI, “Sindicalismo e economia solidária: reflexões sobre o projeto da CUT” In: “A economia solidária no Brasil – a autogestão como resposta ao desemprego” de Paul Singer e André Ricardo de Souza (orgs.) (2000:136).
78
é, estaria posto a alternativa de abolir a força de trabalho como mercadoria o que contribuiria
com a derrocada do sistema capitalista vigente na atualidade.
Porém, para o melhor aprofundamento desta questão devemos entender o conceito
dado por Godelier (1981) de modo de produção que refere-se a ele como, ao princípio último
organizador da vida social, assente nas condições materiais de existência a um dado tempo e
espaço histórico. Um novo modo de produção é decorrência do avanço das forças produtivas e
da constituição de um novo processo material que lhe corresponda e se incorpore, plenamente,
por meio de novas relações entre os homens, no processo geral de apropriação da natureza.
Segundo este conceito, Gaiger (1999:17) entende que “as empresas de autogestão inovam, tão
somente em seu âmbito interno e em seus vínculos mútuos, as relações que definem o
processo social imediato de trabalho, o que significa que não estão destruindo ou ameaçando
as relações oriundas e típicas do capitalismo, fundadas na divisão entre capital e trabalho e na
extração da mais-valia”.
Portanto, as empresas de economia solidária, na verdade, seriam uma nova forma
social de produção convivendo com tantas outras e não um novo modo de produção que é
atualmente hegemonicamente capitalista. O sistema capitalista de produção desfruta de uma
força que incessantemente se renova, apesar de submeter-se a inúmeras crises, e talvez uma
das razões para o seu vigor pode ser justificado pelo atributo que permite que diversos e
divergentes tipos de organizações se expressem em um único sistema. Isto aponta a
necessidade da economia solidária, para poder se desenvolver, de também gerar um ambiente
livre para experimentações organizacionais, já que, ainda constitui-se em um campo recente
repleto de expectativas e incertezas, no entanto, tomando o devido cuidado de não corromper
79
as suas características de cooperação tendo como objetivo último conjugar a satisfação do
consumidor com a do produtor, e quem sabe aí, poderá expandir-se e proliferar-se,
transformando-se em um novo modo de produção.
Para muitos, tradicionalmente a revolução socialista só seria possível através de uma
revolução política, com a conquista e detenção do poder estatal, sendo uma revolução que
ocorreria de cima para baixo. Porém, Paul Singer levanta a importância da economia solidária,
especialmente as cooperativas, como um princípio de um processo de revolução social que
culminaria em uma revolução social socialista, através da transferência dos meios de produção
para os trabalhadores, por intermédio de um lento processo de habilitação e de livre adesão,
pautados nos valores solidários e democráticos, que permitiria uma transformação social de
baixo para cima (Singer e Souza (orgs.), 2000).
80
OOOO
Cooperativismo44
cooperativismo pode ser considerado a forma mais antiga e forte de
produção, consumo e comercialização que tinha como intenção romper coma lógica de
exploração de mão-de-obra. Esta organização tinha como objetivo organizar de forma aberta e
democrática, os trabalhadores de acordo com seus interesses formando uma sociedade sem
classes, seguindo os princípios da ajuda mútua.
A cooperativa é uma sociedade civil sem fins lucrativos e com fins sociais, tem como
fundamento a igualdade de direitos e procura satisfazer as necessidades do trabalho. Este
fundamento fez com que ganhasse reconhecimento jurídico do Estado.
O principal objetivo é a obtenção de bens e serviços a partir do trabalho coletivo, por
isso toda cooperativa deve seguir duas condições: liberdade e comunidade, ou seja, a liberdade
de trabalhar em comunidade, opondo-se à idéia de competição e concorrência.
As idéias do cooperativismo estão fortemente ligadas às idéias de autogestão e
economia solidária. A autogestão é um termo que caracteriza as relações de trabalho e as
tomadas de decisão concernentes ao empreendimento, voltando-se sempre para formas
democráticas e igualitárias, sendo usado também por empresas privadas ou estatais. A
44 Para escrever esse capítulo, recorreu-se a: “Política Social e Cooperativas Habitacionais”, Ademir Alves da Silva, 1992; “A Economia Solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego”, Paul Singer e André Ricardo de Souza(org.), 2000; “A Economia Solidária” Paul Singer, 2001; “Gestão na Qualificação Profissional no Meio Rural”, CUT, Secretaria Nacional de Formação. Integração,1999; “Formação em cooperativismo”, USP e os sites: www.confecoop.org.co/historia/page3.html e www.sebraesp.com.br/sebrae/sebraenovo/cooperat-001.htm.
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economia solidária diz respeito à filosofia da cooperativa, também seu papel político,
econômico e social. Neste tipo de economia, o mercado funciona para servir a sociedade, de
acordo com seus interesses. Diferente da economia de mercado, onde quem fica subordinado é
o trabalhador.
No mundo, a cooperativa mais antiga que se tem documentos é uma cooperativa
inglesa de produção formada por trabalhadores de estaleiros, em 1760, e, a cooperativa de
consumo mais antiga formou-se em 1793. Acredita-se que as cooperativas surgiram das “trade
clubs”, que eram grupos de trabalhadores que juntavam fundos para situações de doenças e
óbvios.
As primeiras cooperativas que se formaram foram uma reação contra a exploração de
patrões, principalmente rurais, que tinham todos seus trabalhadores morando em suas terras e
dependiam da compra de artigos para sua subsistência em armazéns pertencentes aos próprios
donos dessas terras. Deste modo conseguia controlá-los, cobrando preços abusivos, fazendo-os
ficar endividados. As cooperativas formadas por estes trabalhadores iam de encontro a uma
tripla exploração, onde o patrão fazia papel de empregador, fornecedor e agiota, isto é, o
trabalhador era explorado na venda da sua mão-de-obra, no consumo de materiais acima do
valor e nos juros desse endividamento.
No entanto a maior propagação do cooperativismo ocorreu na época da Revolução
Industrial, na segunda metade do século XVIII. A Revolução Industrial constituiu em uma
alteração do sistema produtivo, onde antes era utilizado a ferramenta, passou a ser substituído
pela máquina, aumentando a produção e o ritmo de trabalho, o que gerou um aumento na
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exploração da força de trabalho do operário, já que, naquela época esses trabalhadores ainda
não possuíam direitos trabalhistas, sendo o trabalho quase escravo.
Nessa época o mundo estava passando pôr diversas transformações e Revoluções,
sendo a Revolução Francesa (1789) uma das mais importantes, pela instituição do estado de
direito e a defesa da declaração dos direitos do homem. Também há a difusão de diversas
formas políticas como o socialismo, o capitalismo de mercado, o anarquismo, ou seja, o
mundo passou por importantes mudanças.
Neste cenário surge o cooperativismo, como uma forma de organização autônoma na
defesa dos interesses dos trabalhadores, através do trabalho coletivo. Já foi considerado um
movimento socialista utópico, no entanto é comprovado que tem a mesma importância do que
a experiência do socialismo, pois defende os indivíduos contra os excessos do Estado e
também é uma forma de propulsão econômica mais informal e artesanal, contra o liberal-
individualismo e o monopólio.
Segundo a idéia de Marx sobre cooperação, no discurso inaugural, que pronunciou em
28 de setembro de 1864, por ocasião do lançamento, em Londres, da Associação Internacional
dos Trabalhadores, “o trabalhador associado, que maneja suas ferramentas com mão hábil e
entusiasmado, espírito alerta e coração alegre, poderia tornar o trabalho assalariado tão arcaico
quanto o capital já havia tornado ultrapassado o trabalho escravo e servil”. (Faria e Nakano,
1997:42)45
45 “Políticas Sociais – programas alternativos” In: São Paulo em Perspectiva v. 11, nº. 4 – Revista da Fundação Seade
83
Antes das grandes tentativas de cooperativas de produção econômica, existiram as
aldeias cooperativas, onde as pessoas vivam dentro de cooperativas. A mais conhecida é a de
Queenswood, formada por Robert Owen. Existiram muitas outras tentativas, umas mais outras
menos duradouras, de formação de cooperativas habitacionais no mundo, principalmente no
século XIX.
Robert Owen (1770 – 1858), foi um grande empreendedor e um dos grandes nomes da
história do cooperativismo. Era considerado um socialista utópico, pois apesar de ser dono de
uma fábrica, preocupava-se com a condição de vida de seus operários, então construiu e
reformou casas, montou escola, criou um armazém com preços acessíveis reduziu a jornada de
trabalho e aumentou os salários, sempre visando o bem-estar de seus funcionários.
Em 1832, criou o Labour Exchange, em conjunto com o movimento operário britânico.
Era uma espécie de armazém onde o trabalhador encontrava mercadorias acessíveis, avaliados
pelas horas de trabalho e este trabalhador tinha suas mercadorias avaliadas também em horas
de trabalho, o que lhe daria o poder de compra, ou seja, a moeda corrente era o trabalho.
O cooperativismo owenista atingiu seu máximo grau de florescimento nas décadas de
20 e 30 do século XIX, momento em que grande parte das cooperativas estavam ligadas ao
movimento sindical.
Em 1844 forma-se na cidade de Rochdale, próxima a Manchester, a primeira
cooperativa com bases fortes para se firmar, chamada Society of Equitable Pioneers (Pioneiros
Eqüitativos de Rochdale), formada por vinte e oito trabalhadores de ofício, onde grande parte
dos cooperados eram tecelões.
84
Acredita-se que esse movimento iniciou-se devido a uma grande greve dos tecelões,
em que esses perderam, fundando essa sociedade para garantir seus interesses.
Um dos principais líderes desse movimento foi Georg Jacob Holyoake, que rompeu
com o movimento owenista, após a decepção que teve em Queenswood, onde Owen permitiu
que essa cooperativa ficasse dependente de subsídios de simpatizantes ricos. Então Holyoke
achava que a cooperativa deveria se auto-sustentar e que o trabalho seria o maior investimento.
Os pioneiros foram os primeiros a reunirem as oito regras mais importantes para o
funcionamento de uma cooperativa em seu estatuto:
1. “A Sociedade seria governada democraticamente, cada sócio tendo um voto,
independentemente do capital que tenha investido” - é o princípio que distingue o
cooperativismo do capitalismo;
2. “A Sociedade seria aberta a qualquer pessoas que quisesse se associar, desde que
integre uma cota mínima e igual para todos de capital (no caso de uma libra)”;
3. “Divisão do excedente: o capital investido faria jus a uma taxa de juros (no caso de
10%)”;
4. “O excedente que sobra depois de remunerado o capital deve ser distribuído entre
os sócios conforme o valor de suas compras”;
5. “A Sociedade só venderia à vista”;
6. “A Sociedade vender apenas produtos puros e de boa qualidade”;
85
7. “Desenvolvimento da educação dos sócios nos princípios do cooperativismo”;
8. “A Sociedade seria neutra política e religiosamente”.46
A cooperativa dos Pioneiros de Rochdale foi um marco na história do cooperativismo,
que durou até 1906, quando foi absorvida pela Co-operative Whotesale Society (Sociedade
Cooperativa Atacadista). Se tornou um modelo seguido por todos os países que passavam por
uma consolidação do capitalismo, além de ser a matriz de todas as cooperativas modernas.
Em 1895 foi fundada a Aliança Cooperativista Internacional (ACI), que tinha como
objetivo fixar algumas regras básicas do cooperativismo no mundo. É um organismo
internacional, e como os demais, possuindo no seu interior diversas tendências: socialistas,
capitalistas, anarquistas etc. Sua fundação foi de extrema importância para que o ideal
cooperativista ganhasse maior credibilidade.
Em 1966 foi realizado um Congresso em Viena (XXIII Congresso da Aliança
Cooperativista Internacional), onde foram estabelecidos princípios que dariam forma ao
cooperativismo moderno, são eles:
1. Adesão livre;
2. Indiscriminação social, política, religiosa e racial;
3. Um homem, um voto;
46 “Formação em cooperativismo”, USP
86
4. Retorno das sobras;
5. Juro limitado ao capital;
6. Educação permanente;
7. Cooperação intercooperativa.
Como se pode perceber são muito semelhantes aos anteriores, utilizados pelos
Pioneiros, no entanto as regras 5 e 6, que excluíam os trabalhadores mais pobres, foram
retiradas e foi acrescentado a cooperação entre cooperativas, fundamental para sobrevivência
no mundo moderno, devido a concorrência de mercado, além do aperfeiçoamento de outros
itens.
Em 1902 é fundada a primeira cooperativa Rural Brasileira, pelo Padre Teodoro
Amstadt (jesuíta alemão), no Rio Grande do Sul. Na primeira década do século XX surgem
muitas outras cooperativas pelo país, mas só em 1907 é que promulga-se a legislação que
regulamenta o funcionamento das cooperativas.
A partir dessa legislação temos ao longo do tempo uma série de leis e fundações que
surgem para apoiar o cooperativismo:
1932 – Decreto n.º 22.239 de 19/12/1932: a legislação básica do Cooperativismo.
87
1933 – Criação do DAC – Departamento de Assistência ao Cooperativismo, na
Secretaria da Agricultura, Indústria e Comércio de Estado de São Paulo, o primeiro
órgão brasileiro, de nível oficial, na área (Utumi, 1980).
1934 – Decreto n.º 24.647 sobre o Cooperativismo Sindicalista (Pinho, 1977).
1938 – Decreto-Lei 581: retorno ao cooperativismo rochdaleano, conf. Dec. 22.239/32
(Pinho, 1977).
1945 – Consolidação da Legislação (Folha de São Paulo, 04/07/1982).
1951 – Criação do BNCC – Banco Nacional de Crédito Cooperativo.
1952 – Criação da UCESP – União das Cooperativas do Estado de São Paulo.
1956 – Criação da UNASCO – União Nacional das Associações Cooperativas.
1961 – Criação da OCA – Organização das Cooperativas da América.
1964 – Aprovação do Estatuto da Terra, em 30/11/0964. “Esta lei, que tinha o objetivo
de frear o processo que poderia ter levado a uma radicalização da luta de classes no
campo, se apoiava, dentre outros instrumentos, na criação de um sistema cooperativista
regido pelo Estado” (Burstyn, 1984).
1964 – Estudos de Panejamento Agrícola e Cooperativo pelo ISPECO – Instituto
Superior de Pesquisa e Estudo de Cooperativismo.
1964 – Instrução n.º 1 de 30/11/1964: Baixa normas para o registro, funcionamento e
fiscalização das cooperativas para construção de habitação, do BNH.
88
1966 – O BNH, por meio da RC 67/66, baixa as instruções para as Cooperativas
Habitacionais Operárias.
1966 - RC 68/66, do BNH: criação dos INOCOOPs – Institutos de Orientação às
Cooperativas Habitacionais (depois modificada pela RC n.º 95/66, de 06/10/66).
1971 – Lei 5.764, de 16/12/1971: Lei Nacional do Cooperativismo.
1977 – Criação do FUNACOOP – Fundo Nacional do Cooperativismo, com recursos
do Ministério da Agricultura e administração pelo BNCC. Objetivos:
a) desenvolver projetos de pesquisa científica e tecnológica que aproveitem a
atividade cooperativa em qualquer aspecto;
b) patrocinar bolsas de estudos em estabelecimentos de ensino legalmente
reconhecidos, que incluam cooperativismo no seu currículo disciplinar;
c) fomentar a produção intelectual sobre a doutrina e prática do
cooperativismo;
d) subsidiar a elaboração de projetos agro-industriais e outros para
cooperativas (Bursztin, 1984).
Como se pode observar o governo brasileiro criou diversos mecanismos para o
funcionamento das cooperativas, inclusive exige uma estrutura obrigatória para que seu
funcionamento seja regular, como uma empresa.
89
Na estrutura obrigatória de uma cooperativa deve existir:
• Assembléias Gerais - que é o órgão supremo da cooperativa, que delibera sobre todos os
assuntos de seu interesse com a presença de um quorum mínimo pré-estabelecido de
cooperados. Pode se dividir em:
a) Ordinária: ocorre nos três primeiros meses após o fim do exercício social,
que geralmente é de um ano. Nesta Assembléia o Conselho Administrativo
relata sobre a gestão, apresenta balanços e o parecer do Conselho Fiscal.
b) Extraordinárias: pode deliberar sobre quaisquer assuntos que sejam de
importância para a cooperativa. Somente esta assembléia tem competência
para deliberar sobre assuntos de: mudança de estatuto, fusão, incorporação
ou desmembramento, mudança do objetivo social e dissolução.
� Conselho Administrativo (ou Diretoria): são eleitos dentre os cooperados basicamente
três membros (presidente, vice-presidente e secretário), que terão um mandato não
superior a quatro anos e será renovado 1/3 por eleição. Este conselho tem como função:
administração financeira e do fundo de reserva, negociar contratos de compra e venda.
� Conselho Fiscal: é composto de três membros e três suplentes dentre os cooperados,
podendo ser reeleito somente 1/3 dos componentes. Tem como função fiscalizar a
administração em suas ações e contratos.
Além da estrutura obrigatória também existem os fundos obrigatórios que são:
• Fundo de Reserva: 10% das sobras líquidas do exercício social.
90
• Fundo de Assistência Técnica, Educacional e Social (FATES): que é 5% deste mesmo
excedente.
Para ser legal toda cooperativa deve possuir a estrutura obrigatória anteriormente
citada, mas a lei também prevê que podem existir a estrutura e os fundos facultativos:
• Estrutura Facultativa:
- Reunião de Decisão: é um órgão consultivo que auxilia o Conselho de Administração.
É aberta a todos os cooperados e delibera sobre ações do cotidiano. Sua pauta deve ser
anteriormente divulgada e deve ocorrer com uns quorum mínimo previsto no estatuto.
- Conselho Social: a composição é semelhante a do Conselho Administrativo, mas
difere na função, que é de apoio aos cooperados e à comunidade.
• Fundos Facultativos: podem ser decididos pelos próprios cooperados, por exemplo:
férias, 13º, aposentadoria.
Toda a estrutura de funcionamento de uma cooperativa é possível ser montada, no
entanto, a definição ou um conceito fechado dos objetivos desta ou uma explicação clara sobre
esse fenômeno é muito difícil, pois isso depende do momento histórico que se vive e a
localização e o funcionamento de cada cooperativa.
Isso prova que taxar o movimento cooperativista como socialista é errado, pois muitos
socialistas, como Lênin e Stálin, já afirmaram que quando o Estado satisfizer as necessidades
do povo as cooperativas somem. As pessoas que realmente acreditam no cooperativismo não
acreditam na sua extinção e muitas não são contra o capitalismo, já fazem parte deste sistema.
91
E também existem afirmações que as cooperativas são benéficas ao capitalismo, uma
vez que o governo cria condições para seu desenvolvimento, de certo modo controlando esse
progresso, não permitindo sua emancipação. Deste modo, garante o desenvolvimento das
forças produtivas, satisfaz o trabalhador e mantém os conflitos sociais em um nível suficiente
para a dominação pública.
Existe outra idéia que diz que há um caráter sócio-educativo nas cooperativas, pois no
momento em que um trabalhador se torna cooperado, fica mais fácil entender as relações de
poder na sociedade e podem ser trabalhados mecanismos anti-dominação.
A partir da análise de todas essas correntes, podemos perceber que o cooperativismo
não busca na realidade uma revolução social, apenas lutar por justiça social. Quer criar um
sociedade onde o trabalhador possa exercer livremente seu trabalho e receba por isso um valor
justo. A cooperativa busca dar ao seu cooperado, através de remuneração, preços e conduções
de trabalho mais justas, uma vida mais digna e honesta.
92
AAAA
Processo de Construção e Viabilização da Coopamare
Coopamare (Cooperativa de Catadores Autônomos de Papel, Papelão,
Aparas e Materiais Reaproveitáveis) é uma cooperativa sem fins lucrativos, que foi fundada
em 14 de maio de 1989, através de um projeto auxílio a moradores de rua, chamado de
“Comunidade dos Sofredores de Rua”, realizado pela OAF (Organização e Auxílio Fraterno).
A OAF é uma entidade, criada em 1955 por um grupo de
religiosas e de leigos sem vínculos formais com o Estado ou a
Igreja, para agir no centro de São Paulo com o objetivo de,
segundo a organização, minimizar o problema da pobreza, muito
evidente neste local. Constituía-se em uma ponte entre os mais e
os menos favorecidos, atendendo prostitutas, pobres, mendigos,
velhos, “desajustados” e algumas crianças através de doações que
vinham, em sua maior parte, da classe média, exercendo com isso
sua função “caritativa”.
Esta organização tem uma ligação com a Igreja Católica, somente por ser administrada
principalmente por religiosos, porque antigamente eram eles que faziam o papel que
atualmente fazem os agentes sociais. Para participar da OAF não é necessária vinculação
religiosa, basta “ter interesse pela pessoa humana”, como afirma Edy de Lucca, membro da
equipe executiva da OAF.
Entrada da OAF, no bairro do Glicério
93
Até a década de 70, o trabalho da OAF era exclusivamente assistencialista, foi quando
perceberam que este tipo de trabalho já não estava mais respondendo ao agravamento da
situação de vida do morador de rua. Os motivos da precarização social haviam mudado, os
moradores de rua passaram a ser pessoas que antes tinham emprego, casa e até alguma
escolaridade, mas que por diversos motivos perderam tudo e acabaram indo viver nas ruas.
Eram pessoas jovens, geralmente entre 20 e 40 anos, mas que dificilmente conseguiriam uma
recolocação pelo emprego formal.
Outro grande problema que a OAF enfrentou quando em seu papel assistencialista, é
que os moradores de rua passavam o dia inteiro na instituição e não tinham estímulos para
melhorar sua condição. Isso fazia com que a instituição não ajudasse realmente estas pessoas a
melhorar, não estavam fazendo uma função de conscientizar.
Através dessa discussão, seus princípios são reavaliados e em 1977 a OAF rompe com
esse caráter caritativo, vendo a pobreza como um processo inerente à própria estrutura da
sociedade, posicionando-se pela reivindicação e não pela substituição do papel, que a
organização entende, pertencer ao Estado. Passando a ter como objetivo a promoção da
consciência e a luta pelos direitos da população de rua.
Para chegar a essa conclusão a OAF parou o seu trabalho, pois somente assim
poderiam fazer uma reflexão mais profunda do objetivo de suas ações. Então decidiram
priorizar a rua e para isso foram viver nesta durante um período, entendendo que esse seria a
melhor forma de entender as necessidades reais de um morador de rua, com essa iniciativa
muitos profissionais saíram da OAF. Para a organização não foi algo negativo, pois a OAF
94
não tem grande preocupação com a formação profissional das pessoas, mas sim com seu
engajamento com a proposta.
O primeiro trabalho realizado pela OAF nesta nova fase foi a criação da Casa de
Oração que oferecia um local para que a população de rua pudesse se encontrar, tendo a
possibilidade de realizar atividades em grupo, com um objetivo maior de desenvolver o
aspecto espiritual que, segundo a sua própria ideologia, faz parte da essência humana, em
detrimento de concepções religiosas. Esse trabalho, baseado em uma relação de troca, não
tinha como finalidade uma ação educativa, de “catequização”, mas sim tinha como grande
preocupação o desenvolvimento da conscientização, formando uma identidade coletiva. A
partir deste trabalho surgiu o projeto da sopa comunitária, embaixo do viaduto do Glicério,
onde atualmente se encontra a “Associação Minha Rua, Minha Casa” (também apoiada pela
OAF); que era preparada e distribuída pelos próprios moradores de rua, estimulando,
principalmente, a convivência entre eles.
Segundo a irmã Regina, assistente social e co-participante da
OAF, foram esses dois projetos, da Sopa Comunitária e da Casa de
Oração, que geraram grandes mudanças na rotina da população de
rua, pois foram deles que surgiram uma série de projetos e
programas voltados a esta população.
Nos anos 80 a OAF decidiu trabalhar “com os pobres” e não
mais para eles, dando-lhes assessoria para que pudessem
desenvolver suas atividades. Então foi fundado o primeiro “Centro
Comunitário dos Sofredores de Rua”, com a finalidade de oferecer um núcleo de vivência, de
Irmã Regina Maria Manoel da OAF
95
formação comunitária e de trocas de
experiências entre a própria população de rua,
através de diversas atividades como música,
teatro, artesanato, oficina de móveis reciclados,
além da possibilidade de cuidar de sua higiene
pessoal. Foi em uma dessas reuniões que um
pequeno grupo de catadores de papel, trouxe sua experiência e discutindo suas dificuldades,
levantaram a necessidade da obtenção de um “carrinho” para poder recolher mais papel e
ganhar mais. Criaram um fundo comum, um passo que demonstrou maturidade no processo
coletivo, conseguindo, com isso, concretizar a construção deste “carrinho” através da compra
de duas rodas.
Houve, então, uma atividade programada pela organização que reunia os moradores
de rua em uma festa, chamada de “Missão”, uma espécie de manifestação e protesto que
reivindicava os direitos dos sofredores de rua. Para realização deste evento, era necessário que
cada integrante (morador de rua) doasse a renda de um dia de seu trabalho.
Foram os catadores de papel que conseguiram arrecadar o valor mais alto, então o
grupo ganhou um espaço no Centro Comunitário dos Sofredores de Rua, no bairro do Glicério,
que acabou se tornando o ponto de encontro das reuniões e local de discussão. Em 1986 foi
criada a “Associação dos Catadores de Papel”, como uma estratégia de resistência, de forma
organizada e legal à repressão de seu trabalho de catação na gestão Jânio Quadros, que
entendia que o lixo era de propriedade estatal. Com isso conseguiram alugar uma casa no
Centro Comunitário dos Sofredores de Rua, no bairro do Glicério.
96
Glicério, aumentaram sua coleta, obteram melhores preços no mercado e passaram a ter uma
balança industrial, ficando assim o grupo com um aspecto mais profissional.
A Coopamare surgiu com a evolução dessa associação, foi formada em 1989, com
apenas vinte catadores. A prefeitura cedeu um espaço sob o viaduto Paulo VI, em Pinheiros, e
promulgou um decreto municipal reconhecendo o trabalho do catador como atividade
profissional e garantindo o direito ao trabalho.
“Podiam catar isoladamente e trazer prá cá e aí passou a ser uma associação e de uma associação se transformou numa cooperativa. E foi a primeira cooperativa do Brasil de catadores, por isso que a Coopamare é importante” (Entrevista realizada com Edy de Lucca).
Também é importante destacar que foi
fundamental para o surgimento da Associação e
posteriormente da Cooperativa, segundo Edy de
Lucca, o encontro dos moradores de rua em projetos como o da sopa, onde eles puderam,
através de conversas, repensar questões como: Qual o significado do que faço? Isso é um
trabalho? Como posso melhorar meu trabalho? O que aconteceria se eu realizasse meu
trabalho junto com os outros? A partir do momento em que houve estas preocupações, eles
começaram a lutar pelo reconhecimento do seu trabalho. E a partir da troca e organização que
as necessidades individuais se coletivizam.
Da esquerda para a direita: Irmã Célia, Edy de Lucca e Irmã Fátima, em visita a
OAF.
97
1) Caracterização da Coopamare
A OAF auxilia a Coopamare nas discussões de estratégias,
além de dar um auxílio constante nas atividades diárias da
cooperativa. A organização possui uma equipe de educadores,
formada por alguns voluntários e profissionais, entre eles se
encontram assistentes sociais, psicólogos, pedagogos entre outros,
que têm a função de auxiliar todos os projetos em que a OAF tem
parceria, eles auxiliam nas decisões, aplicando sua metodologia
de trabalho através da produção coletiva baseada em uma
educação voltada a autonomia da cooperativa e do indivíduo
como cidadão.
As cooperativas populares, em sua maioria, possuem
poucos recursos tanto materiais, quanto humanos e para a sua sobrevivência seriam
necessários algumas bases de sustentação para lhe garantir uma maior resistência a
permanecer em um mercado normatizado por normas que conferem aos mais preparados e
com mais recursos a vitória.
“A coisa da participação na formação do capital do grupo, a compra de quotas, acaba sendo muito confuso para as pessoas e os grupos populares não tem como arcar, em geral, os grupos começam sem nenhum recurso” (Entrevista realizada com Fátima Giorlano).
A OAF, como entidade auxiliadora na fundação da Coopamare, presta a esse papel.
Desde o início foi ela que possibilitou encontros entre os catadores para trabalhar a construção
Placa disposta na entrada da Coopamare com os dizeres: “ Reciclagem de vidro: mais do que um benefício ecológico, uma preocupação social”
98
de vínculos promovendo uma identidade coletiva através da identificação de problemas e
objetos em comum. Sua presença foi essencial no planejamento e instituição da Coopamare,
além de prestar assessoria técnico-científica e apoio na formação continuada dos trabalhadores
que se estenderam desde a educação básica, até a técnica ambiental e dos princípios
cooperativos. Também serviu como fonte de financiamento inicial, papel este que atualmente
não lhe confere mais, já que a cooperativa já é auto-sustentável, porém precariamente. Outras
parcerias foram feitas como com a prefeitura, através da concessão de um terreno, e com a
Politécnica da USP, através de um apoio técnico.
Nena, como é conhecida por todos, faz parte deste grupo da OAF, com a função de
auxiliar a Coopamare, atuando na coordenação e na diretoria da cooperativa, fazendo um papel
de relações públicas e também de apoio aos catadores. Ela acha que a maioria dos cooperados
ainda não se apropriou totalmente da cooperativa, por isso sempre busca levar os problemas
procurando a forma mais didática, já que muitos são analfabetos, para que eles discutam, pois
isso faz parte do processo de conscientização.
“(...) assembléia, onde se discute alguns pontos cotidianos (...) para tomar algumas decisões este ano entramos na questão da saúde. Tem um grupo aqui da administração regional que está acompanhando a Coopamare. Essa semana discutimos juntos como poderia ser o programa de educação na área da saúde do trabalhador (...) kit cooperar reciclando e reciclar cooperando. A idéia é que cada ano fizesse esse curso, mas na realidade foram feitos dois com os catadores. Super legal para a qualificação, requalificação profissional que trata não só da saúde do trabalhador, mas da vida como um todo (...) Nós temos doze catadores inscritos para fazer o curso. Esse ano conversamos com o pessoal da administração regional na área da educação e existe a possibilidade de fazer a lfabetização na escola noturna aqui. Se não for possível
99
nós vamos buscar outras pessoas que possam. Tem pessoas aqui dentro que dizem: não vou mais participar dessa comissão enquanto vocês não conseguirem a alfabetização. O quê que eu vou fazer se eu não ler o que está lá?.”(entrevista realizda com Nena)
As decisões são tomadas geralmente em grupo, nas assembléias que ocorrem
semanalmente. No entanto, se houver a necessidade de alguma decisão urgente, a diretoria tem
autoridade para atuar.
“A Coopamare (...) já estava acostumada a tomar uma decisão imediata. Tem um dia que a administração regional chama urgente para falar com vocês, não dá tempo de reunir todo mundo. Nós reunimos a diretoria (...) nós nos reunimos com a administração regional para decidir alguma coisa.”(entrevista realizada com Nena)
Aqui, apesar da cooperativa ter como um dos princípios a tomada de decisões
coletivas, o fato dela estar inserida em um contexto onde o que predomina é a concorrência
proveniente do capitalismo, gera a necessidade da diretoria ter uma certa autonomia para
responder a competição externa. Assim, a cooperativa, não será prejudicada caso haja algum
assunto de urgência a ser resolvido. No entanto, segundo Nena, este é um empecilho que não
desvaloriza a importância deste processo coletivo:
“A cooperativa está legalizada. Então dia 22 nós temos que escrever no diário oficial que vai ter isso, isso e isso, e muitas vezes você faz uma reunião que é para decidir três pontos, e você decide um. Você tem que desenvolver todo um debate, toda uma discussão, que você não faria isso numa empresa que você chegaria lá e decide. Então, não é que atrapalha, mas ele é mais educativo, mais lento.” (entrevista realizada com Nena)
100
A diretoria é eleita a cada dois anos com a votação de todos os cooperados, existindo a
possibilidade de reeleição prevista no estatuto. Qualquer um dos cooperados pode se
candidatar a esses cargos e mesmo quando ingressa na diretoria, ele continua sendo catador, é
uma função a mais, não possui vantagens, apenas uma ajuda de custo, já que muitas de suas
funções como diretor exigiriam a sua ausência da cooperativa e de seu trabalho como catador,
prejudicando assim a sua subsistência. É um princípio determinado pela ideologia solidária
para que, quem esteja na diretoria, nunca fique fora da realidade das ruas, e se por
necessidade, o diretor tiver que se ausentar do seu trabalho na produção, que ele não se
prejudique e não se sinta desestimulado a permanecer em seu cargo.
“Ninguém é dispensado de ser catador para nada. O trabalho que fazem na diretoria é um serviço a mais, eles têm que conjugar as duas coisas. O ideal seria ter um pró-labore para eles, mas, no momento, não tem condições. O princípio de liberação está fora de pauta, mesmo se a Coopamare estivesse ótima financeiramente. Este é um princípio deles, do movimento e não da cooperativa, e não liberam ninguém para tal função. Lá não pode ter sindicalista de profissão, ter ”cabeçudo” que depois, não mais sabe o que se passa lá em baixo” (entrevista realizada com Irmã Regina).
Não existe uma preparação exclusiva para o catador que vai ingressar na diretoria, por
isso é importante que todos sempre participem dos cursos sobre gestão e cooperativismo, dos
fóruns de debates, das assembléias da cooperativa, entendam dos tramites gerais da
cooperativa, conheçam o mercado e tenham domínio técnico sobre o trabalho. Pois é tudo isso
que dá uma base maior para o catador que pretende exercer um cargo executivo na diretoria.
“Em geral, por ser um público-alvo da Incubadora as populações de baixo poder aquisitivo, o
baixo nível de escolaridade, com uma alta freqüência de analfabetos, e de capacitação
101
profissional é comum. Estes trabalhadores possuem pouca ou nenhuma qualificação gerencial,
e aqueles que assumem o papel de direção passam a exercer funções que não faziam no
passado. Estes gerentes / trabalhadores têm que aprender fazendo e não podem se permitir a
muitos erros, pois isso pode ser fatal para sua empresa.” (Sorbille, 1999:134)
Pela ausência de uma educação específica dos cooperados em cargos de gerência,
planejamento e estratégia na Coopamare, acabou inibindo muitos deles a participar e a
desenvolver um gerenciamento coletivo causando uma sobrecarga de funções à diretoria e
com isso uma lenta dinamização no funcionamento geral da cooperativa. Então, recentemente,
através de algumas discussões, eles resolveram descentralizar as responsabilidades de
diretoria, com a formação de comissões que tinham também como objetivo uma maior
participação dos cooperados. Essas comissões são divididas em: saúde e segurança no
trabalho; coleta seletiva e cidadania; cultura, esporte e lazer; segurança e manutenção;
educação e capacitação; relações públicas e produção e comercialização. Sendo que a
comissão de cultura, esporte e lazer não funciona por divergências internas que foram
incessantemente discutidas nas assembléias, e as de relações públicas e produção e
comercialização que são assumidas pela diretoria. Mesmo com esses pequenos entraves, a
Coopamare demonstra que está caminhando para uma gestão participativa. Um dos grandes
problemas, realmente, é a falta de disponibilidade dos catadores para participar dessas
comissões.
“(...) a gente quer reunir, preparar as coisas, mas eles precisam sair para a rua, para buscar o material, precisam do ingresso deles.” (entrevista realizada com Nena)
102
No entanto, constata-se que, nas cooperativas, as pessoas que compõem a diretoria são
geralmente as mesmas, mostrando uma certa dificuldade em rodiziar funções estratégicas e de
planejamento entre os cooperados o que possibilitaria que um maior número de pessoas
pudesse entrar em contato com essas funções e se capacitasse a elas, abolindo assim a divisão
social do trabalho entre aquele que pensa e aquele que faz. Isso evidencia uma concessão de
responsabilidades, legitimada pelos cooperados, que ainda não apreenderam o significado da
autogestão e do sentido de autonomia. Além disso, a dinâmica da cooperativa inserida em um
contexto capitalista de competição, não permite que haja um rodízio constante em cargos
gerenciais, o que arriscaria causar uma significativa margem de erros, inviabilizando sua
disputa no mercado com os seus já limitados recursos, com a existência de uma educação
permanente, inclusive para que os novos membros da cooperativa possam apreender os
compromissos e saberes da organização.
“Quando entram os novos, você sempre tá refazendo o processo e esse processo é lento demais. Nós decidimos fazer um contrato: comercializar com uma grande empresa o papelão. Só que tem que prensar o papelão, não tem prensista, aqui a gente faz rodízio, então você precisa implorar para os novos, eles vem aqui trazer o papelão, “eu trago o papelão, mas não quero prensar, que venda ele sem prensar.” Tem comprador, só que vale bem menos, a gente tá vendendo a 15 centavos o quilo e antes a gente vendia a 9 centavos. Só que para fazer com que eles entendam que para ganhar mais precisam prensar, o que eles teriam que tirar pelo menos uma hora no dia para prensar em rodízio, isso é uma luta.” (entrevista realizada com Nena)
Voltando a questão da divisão do trabalho e das diferenças de competências, devemos
esclarecer que sempre existiu e sempre existirá diferenças dentro de cooperativas, sendo que
muitos consideram essa condição até necessária para o pleno desenvolvimento das
103
potencialidades e do crescimento coletivo. O desafio é como conviver com essas diferenças
sem que elas se tornem um empecilho para o desenvolvimento dos cooperados e da própria
cooperativa. Identificar as diferenças de habilidades para combiná-los positivamente e
produtivamente ou tentando superar algumas diferenças, através da promoção de capacidades,
são soluções que demandam tempo e exigiriam relações mais abertas e profundas, o que iria
requerer uma nova cultura social, menos hierarquizada e mais comunicativa para concretizar
as trocas sociais.
“A pessoa que tem um cargo um pouco elevado, ele sempre tem aquele tom de voz, né? Mas aqui a gente sabe, nós temos o estatuto, e a gente sabe que nós não somos mandados por ninguém, entendeu? Nós aqui somos livres, a gente trabalha livre, nós não temos patrão, nós não somos empregados. No pensamento da gente quem é o patrão de nós, somos nós mesmos. Nós aqui somos patrão, sobre isso ai eu tô sossegado” (entrevista realizada com Aldair Marcos da Silva, cooperado).
A cooperativa, graças a sua organização, instituiu um projeto de coleta seletiva,
fechando convênios com escolas, universidades, bares, prédios, restaurantes etc., com dia e
horários para a coleta, já estabelecidos. Isto levou assim ao aumento da quantidade de material
recolhido e proporcionou a obtenção de melhores preços na venda.
“Eu já peguei alguns condomínios só que aí não peguei mais. É por causa do tempo, igual quando você assume um compromisso, você não pode faltar naqueles dias que você mata, aí você perde material e aí também você perde a confiança. Aí a cooperativa também perde o prestígio, perde o nome, né? Se marcou, tem que ir” (Pedro, cooperado da Coopamare)47.
47 Carla Carusi DOZZI. Cooperativas de Catadores de Papel: uma alternativa para moradores de rua.
104
Este programa é importante e traz benefícios significativos para a Coopamare, mas
ainda enfrenta problemas como a licitação da prefeitura, onde é pouco provável que consigam
vencer por estarem concorrendo com empresas grandes e, também existe o problema da
triagem, pois o material levado pela coleta vem muito misturado.
Outro projeto é a oficina-escola, que se constitui em uma oficina feita com material
reciclável, para filhos de catadores e jovens da periferia. Tem os cursos de reciclagem de
papel, que teria como proposta a divulgação e a ampliação da reciclagem do papel, e também
o curso de papel artesanal utilizando de fibras vegetais da flora brasileira. Conta-se também
com um trabalho de beneficiar alguns materiais encontrados no lixo. Todos esses materiais
depois de trabalhados são vendidos, como: vasos, blocos de anotação, folhas de papel, porta
lápis etc.
Todos são catadores dentro da Coopamare, mas nem sempre estão recolhendo material
na rua, existe um grupo que trabalha, principalmente, internamente com a função de fazer a
triagem do material (geralmente mulheres), mas se houver necessidade este grupo poderá
também sair para recolher material nas ruas. A triagem do material consiste em separá-lo de
acordo com a sua qualidade: vidro, papel, papelão, plástico etc. Essa equipe é necessária para
selecionar o material que chega dos convênios e de doações eventuais, pois o que chega dos
catadores já vem separado.
“(...) tem muitos condomínios, bares, restaurantes, empresas, que colocam o material limpo, perfeito, tem outras que vem todo misturado, que elas (triadoras) precisam reconhecer o material, separar, então elas mesmas fazem a reclamação, que o material não está vindo selecionado” (Entrevista realizada com Nena).
105
“Quando chega aqui, na maioria das vezes, não vem separado, daí a gente é que tem que separar. O pessoal pode trazer doação aqui todo dia, até onze da noite, tem gente aí. Para quem passa na rua não, mas para quem tem carroça e é cooperado tem exceção, eles abrem exceção, assim, recebe algumas vezes, fora do horário também” (Pedro, cooperado da Coopamare)48.
A triagem é um aspecto muito importante de ser observado, pois nesse ponto percebe-
se o quanto a Coopamare ainda está atrasada no que diz respeito não só à tecnologia, como em
educação técnica aos seus cooperados. Se houvesse um incentivo maior nesses dois pontos,
certamente a cooperativa se tornaria mais competitiva no mercado.
48 Ibdem.
Processo de separação e quebra de garrafas
de vidro
106
“(...) existe quase 120 tipos de plástico só que aqui nós separamos apenas 6 tipos de plástico.” (entrevista realizada com Nena)
Todos os catadores estão submetidos a um código de ética profissional (apresentado a
seguir), que explica os valores da profissão e as regras básicas de atuação. Este código é
importante, pois garante respeitabilidade do profissional junto à população e o caráter de
utilidade pública da profissão. Foi criado pelos próprios catadores, que sentiam a necessidade
de se estabelecer alguns parâmetros para os relacionamentos dentro da cooperativa, eles
queriam algo mais próximo do dia-a-dia e não tão formal como o estatuto. Este código visa
que os catadores se apropriem não só da cooperativa, mas também da sua profissão.
“Eles Fizeram um código de ética, como cuidar do espaço, a realação entre eles. Normalmente o estatuto é muito formal, tem que ser algo padronizado. O código de ética regula mais o dia a dia, o cotidiano como cada um deve se comportar dentro da cooperativa no dia a dia (...) O que eu escutei aqui até hoje é que ainda que você já esteja ou é cooperado, se você não tem algo, um parâmetro, um norte comum, a coisa pode ir para lá e para cá. Então, é melhor ter algo que é comum, é aceito que é o código de ética, que a gente decide, que eles decidiram, para a cooperativa seguir, é a necessidade de estruturar o cotidiano.” (entrevista realizada com Nena)
CÓDIGO DE ÉTICA PROFISSIONAL
São deveres dos profissionais catadores de papel autônomos:
1. Estar consciente do valor e da utilidade pública dos serviços prestados quanto ao
desempenho da sua função profissional;
107
2. Manter uma atitude altaneira, consciente de estar prestando um serviço de alto interesse
público quanto ao desempenho de sua função profissional;
3. Conhecer e reconhecer os benefícios econômicos e de preservação da natureza,
proporcionados pela reciclagem de materiais reaproveitáveis, decorrentes de sua atividade
profissional;
4. Conhecer e reconhecer os benefícios decorrentes de sua atividade profissional
proporcionados à comunidade local relacionados à limpeza, à saúde e a segurança pública,
bem como à redução de custos de serviços públicos;
5. Considerando a profissão como de alto interesse público, não praticar nem permitir a
prática de atos que comprometam a sua dignidade e sua natureza à sociedade;
6. Zelar pela limpeza, saúde e segurança pública, evitando a prática e impedindo atos que
possam comprometer ou prejudicar a vida em sociedade;
7. Exercer seu trabalho autônomo com lealdade, dedicação e honestidade para com a
população, colegas, demais trabalhadores, órgãos públicos e privados;
8. Não praticar qualquer ato que, direta ou indiretamente, possa prejudicar legítimos
interesses de seus colegas de profissão;
9. Proceder de maneira idônea quando no exercício de sua atividade profissional, prevenindo
acidentes, evitando situações ou exposições a riscos à saúde pessoal, familiar ou pública;
108
10. Colocar-se a par da legislação que rege o exercício profissional do autônomo, bem como
de toda legislação municipal, estadual e federal relacionadas à sua atividade, visando
cumpri-las corretamente, colaborando para a atualização e aperfeiçoamento das mesmas.
A Cooperativa conta hoje com 51 catadores, tanto cooperados como associados,
antigamente contava também com catadores avulsos, modalidade que foi suspensa no
momento pela cooperativa. Este tipo de catador trabalha por conta própria, recolhendo
material pela rua e vende por conta própria, sem nenhum vínculo. Há um certo desinteresse da
cooperativa pelos avulsos, pois trazem poucos benefícios para a cooperativa, já que o
pagamento dos funcionários e o fundo de reserva saem do pagamento da taxa de 10% que os
cooperados pagam, pois basicamente são eles os responsáveis pelo funcionamento da
cooperativa, o que torna pouco útil essa comercialização com os avulsos. Essa taxa
corresponde a 10% do total que cada um retira e é destinada ao pagamento dos que ficam na
parte interna, da manutenção e para o fundo de reserva, que é uma espécie de fundo para
investimentos futuros. Além disso, a cooperativa tem como concepção não uma organização
que tenha como fim último o capital, mas acima disso, o maior ganho, seria a possibilidade de
construir um projeto coletivo de um empreendimento autogestionário em que todos aqueles
que contribuam para a sua produção possam também contribuir com a sua constituição, que é
permanente.
“Nós ainda não abrimos porque a gente quer melhorar ainda o capital de giro (...) às vezes eles chegavam e tinham que desembolsar 200 reais, assim na hora, só para um, e existiam mais e mais, então a gente não tinha recurso para pagar todo mundo. (...) Já temos um fundo que não é o melhor ainda para a gente poder abrir (...), mas estamos atrás disso, melhorar esse
109
fundo, daí chamar de novo para comercializar com a gente.” (entrevista realizada com Nena)
O catador de papel, como sócio da cooperativa, passa a ter direitos de uso dos bens e
serviços da cooperativa, contribuindo com a conservação e a ampliação. A Coopamare está
aberta a todos os profissionais autônomos catadores de papel e tem como objetivo prestar
serviços aos catadores associados, proporcionado-lhes: maior ganho pelo seu trabalho de
coleta, valorização profissional, desenvolvimento de diversas atividades (cursos, reuniões,
festas) e desenvolvimento da capacidade econômica dos cooperados. Além disso o catador
quando cooperado, deve assumir a cooperativa como sua, não só fazendo seu trabalho, mas
divulgando e tentando atrair mais pessoas, tanto para trabalhar, como para participar dos
projetos. Isso nem sempre acontece devido à carência de uma formação, que desse para eles
consciência da importância que tem a cooperativa em suas vidas. Os catadores, em sua
maioria, além de não ter a formação básica, também não receberam informações suficientes
para desenvolverem seus valores, a chamada educação ideológica.
“(...) o voto é dos cooperados. Isso é um conceito porque eles é que assumem os riscos de tudo.” (entrevista realizada com Nena)
O funcionamento da cooperativa depende fundamentalmente do trabalho dos catadores,
pois são eles os responsáveis pela coleta dos materiais comercializados. A cooperativa
redistribui os ganhos aos cooperados pela quantidade de material reciclável recolhido por cada
um49 e esses colaboram pagando uma taxa de administração.
49 Essa distribuição vai depender dos critérios de cada cooperativa que podem ser através de compras efetuadas, se for uma cooperativa de consumo; através da proporção de dias de trabalho se for uma cooperativa de produção; ou com base no capital, matérias-primas ou produtos que cada cooperado consegue obter se for uma cooperativa de crédito, de produção, ou mistas.
110
Cozinha Comunitária na Coopamare
Já os catadores associados são aqueles que comercializam seu material com a
Coopamare sem terem vínculos, mas recebem
quinzenalmente como os cooperados. Eles não
participam nas decisões da cooperativa e nem
utilizam os espaços como a cozinha e os
armários, não tendo direitos e nem deveres em
relação à cooperativa, mas é nela que
conseguem um preço melhor pelo seu produto do que no resto do mercado.
“Antes de ser cooperado, você não tem direitos que o cooperado tem, quem não é cooperado tem que pagar para tomar banho no banheiro, o custo na luz, na água, que o terreno aqui é da Prefeitura, né, então não paga nada, é só conservar, agora que é cooperado, não paga luz, não paga banho, às vezes tem roupa pra lavar, assim 4 ou 5 peças de roupa, não pode lavar um monte, né, e sexta-feira tem reunião, que a gente recebe sexta-feira, né” (Pedro, cooperado da Coopamare)50.
Ser um catador associado é uma espécie de estágio, pois para se tornar cooperado é
necessário passar por um período de avaliação e de conscientização, de aproximadamente 6
meses, onde este catador será observado pelos companheiros e pela diretoria, além de se
aproximar mais das regras e objetivos da cooperativa; em algumas cooperativas são checados
documentos e vida anterior, o que não é o caso da Coopamare, já que ela visa atender a grupos
estigmatizados. Então o indivíduo poderá ser convidado a ser cooperado ou, então, oferecer-se
por interesse próprio. Em caso de qualquer negativa, tanto do associado, quanto da
50 Carla Carusi DOZZI. Cooperativas de Catadores de Papel: uma alternativa para moradores de rua.
111
cooperativa, o trabalhador pode permanecer na organização como associado, até o momento
em que ambos se sintam impelidos a realizar um compromisso mútuo.
“Os associados ainda não cumprem com todos os critérios, os objetivos, estão desenvolvendo um processo de conhecimento da cooperativa (...), mas você tem que desenvolver todo um trabalho com eles (...), porque chega aqui e tem várias regras que eles não estão acostumados com isso, a gente faz este processo, associar eles a cooperativa.” (entrevista realizada com Nena)
O compromisso é um dos pontos principais trabalhados, atualmente, entre o catadores,
cooperados e associados. Pois é essa consciência do compromisso que cria o vínculo do
catador com cooperativa e com os demais companheiros. Quando o vínculo se forma,
realmente, a cooperativa se fortalece, uma vez que a partir de então os trabalhos serão feitos de
maneira mais integrada, com maior interesse e maior participação.
“Nossa nova discussão é compromisso ou é regras? A cooperativa, ela tinha uma coisa assim: tem que ter regras (...). A gente tem discutido muito com eles, e ainda não aceitam porque sempre foi regras, mas a gente tá tentando discutir compromisso.” (entrevista realizada com Nena)
No entanto essa distinção na prática não é muito rigorosa, nem muito clara para grande
parte dos catadores, pois os associados podem opinar durante as reuniões e também participar
de alguns eventos. Só que não possuem o mesmo vínculo e nem as mesmas responsabilidades
que os cooperados, ficando isentos de direitos e deveres. Este tipo de relação interessa para a
cooperativa, porque eles estão investindo em pessoas que poderão se tornar cooperados,
embora na prática essa relação seja semelhante com a do cooperado.
112
O que pudemos perceber é que tantos os avulsos, como muitos associados preferem
manter-se como tal, não participando das decisões e desestimulados a contribuir com a
construção do projeto. Muitas justificativas são usadas para isso: falta de documentação,
passagem na polícia, medo de perder a liberdade, satisfação com os proveitos obtidos na sua
relação com a cooperativa etc.
“Segundo eles, muitos deles se sentem mais livres (...), não querem assumir um compromisso (...). Como na sociedade, muitas vezes não quer assumir um compromisso, é preferível até ser avulso, porque você vem, traz seu material, não tem que participar de reunião, não tem que nada. É só seu dinheirinho. É toda uma cultura de rua envolvida aí também.” (entrevista realizada com Nena)
Porém, na Coopamare, assim como em boa parte das cooperativas populares, podemos
perceber que a grande motivação desses trabalhadores para a sua inserção em um
empreendimento solidário não se deveu a sua identificação com os princípios cooperativos, ao
contrário, a dinâmica da cooperativa de participação e construção coletiva foi até
desestimulador para uma população habituada à solidão e a falta de um convívio social.
“Trabalho em grupo é difícil em qualquer lugar, agora, você imagina este trabalho com a população de rua que é um grupo todo desestruturado ou individualista como é o catador” (entrevista realizada com Irmã Regina).
A cooperativa foi mais uma forma de lutar contra o crescente desemprego e a pobreza,
constituindo-se mais como uma estratégia de sobrevivência, principalmente para aqueles que
são avulsos e associados, valendo-se da catação como uma atividade emergencial, do que de
estratégia de vida, em que se tem a cooperativa como um projeto de desenvolvimento e
113
crescimento futuro. O que pudemos observar, também, é que, em um processo, a Coopamare,
para aqueles que já são cooperados, tornou-se de estratégia de sobrevivência, muito mais em
uma estratégia de subsistência, em que os cooperados tem no seu trabalho a compreensão de
uma certa estabilidade para suprir suas necessidades básicas, apesar de ainda, os rendimentos
serem poucos e o trabalho ser árduo e por isso, sua continuidade nessa atividade não ser tão
desejada.
“Eu pretendo sair da rua, se Deus quiser, eu tenho muita fé nisso! Quando eu tiver com todos os documentos em ordem, eu vou voltar para a minha profissão. Porque o meu objetivo, não é de ficar na rua. Eu acho um trabalho importante, mas eu estou batalhando tanto, para conseguir trabalhar na minha função, que eu sempre trabalhei e eu gosto, né? Mas eu ainda acho a cooperativa importante...me dá sobrevivência, dá para eu me manter, não precisa estar pedindo as coisas para os outros; não precisa estar aí pedindo para almoçar, para jantar, estar dependendo dos outros. Então eu acho a cooperativa importante” (Pedro, cooperado da Coopamare)51.
Porém, para muitos cooperados que já apreenderam o significado do trabalho como
construção de um projeto coletivo de transformação das relações de trabalho, a Coopamare é o
seu espaço de desenvolvimento social, político, econômico e profissional, isto é, sua estratégia
de vida e geralmente esses cooperados são aqueles que estiveram presentes desde o início da
implantação do projeto cooperativo ou que se envolveram na direção e organização dela de
forma mais efetiva, e ainda há outros que, devido a algumas dificuldades de inserção no
mercado de trabalho, como a idade, também se apropriam da cooperativa como seu projeto de
vida.
51 Ibdem.
114
“Nem penso em voltar a trabalhar de segurança, nem penso nisso não, porque a situação que está hoje o país, a gente que está nessa idade ninguém pensa mais na gente, só pensa naqueles que são mais novos. É trabalhar e malhar” (entrevista realizada com Aldair Marcos da Silva, cooperado).
Esta postura contrária à dinâmica do cooperativismo, ressalta valores que se
intensificam em uma nação que tem a heterogeneidade e a dualidade do mercado como um
problema histórico, marcada por desigualdades sociais agudas, deficiências no sistema de
proteção social, sistema educacional precário e ausência de políticas públicas sociais e de
emprego. Era o trabalhador o principal responsável pelas suas condições de vida e de sua
subsistência.
O famoso “jeitinho brasileiro”, não só denotava uma cultura política de corrupção e
ilegalidade na figura do malandro, mas mostrava o abandono e a direção social das elites e do
poder público, o que conduzia o trabalhador a desenvolver estratégias que levava-o a
informalidade, demonstrando uma grande capacidade de adaptação às adversidades, porém,
longe da disciplina do trabalho e despossuído de uma identidade coletiva.
No lado oposto da informalidade, principalmente a partir de 1950, estava o trabalhador,
disciplinado e submisso, inserido nas fábricas, onde é treinado a se sentir confortável em uma
função alienante, de obediência, envolto em uma mística de segurança, proteção e
culpabilização individual, com a institucionalização de normas reguladoras de proteção ao
trabalhador, o que facilitou a apreensão de uma cultura do trabalho em que o trabalho
assalariado se torna o pilar da sociedade.
115
O cruzamento desses dois mundos em um contexto de desamparo ao trabalhador,
fundada no consumo, no indivíduo, na valorização do capital e do mercado, colocando-o em
uma situação de “acidadão”, produziu situações relativas e contraditórias que colocaram
dificuldades na apreensão de uma cultura de autogestão, compartilhamento e solidariedade
Isso fez com que muitos preferissem permanecer na informalidade, ausentes de uma dinâmica
que não seja a sua própria, descrentes de uma outra alternativa que não seja aquela criada por
eles mesmos.
E há ainda aqueles que sonham com um trabalho formal, “estável”, apreendendo o
significado simbólico da cultura do trabalho criada de práticas sociais concretas e dinâmicas
em um conjunto de valores e representações, que historicamente foram produzidas por uma
minoria dominante para vender a ilusão de assim sê-lo um vencedor, um batalhador
conquistando respeito e admiração da comunidade. “A experiência autogestionária
contemporânea, no Brasil e alhures, deixa claro que muitos trabalhadores preferem ser
assalariados, mesmo tendo a oportunidade de trabalhar por conta própria ou em cooperativas.
Se no futuro o socialismo se tornar hegemônico, é possível e até provável que a maioria
prefira integrar empresas socialistas” (Singer e Machado, 2000:48).
“ Catadores ‘Autônomos’ e cooperativados trabalham muito e ganham quase a mesma coisa, a principal diferença: quem está sozinho reclama de exploração, mas rejeita o modelo de cooperativa; quem está na associação se diz satisfeito com o que recebe e valoriza o treinamento e o apoio. Everaldo Rebeiro de Sousa, 43 anos, catador a 5 anos é um dos que querem entrar para a cooperativa, mesmo achando que é explorado ‘não é bom receber por mês’, justifica ele.”52
52 Folha de São Paulo, 20/05/2000, “Reconhecimento da profissão é desafio”
116
Até mesmo, muitos associam a perda da carteira de trabalho com sua permanência
como desempregado, demonstrando a ilusão de um mercado justo.
“Enquanto não saem os meus documentos, aí eu continuo batalhando, mas a partir do momento que eu tiver meus documentos, eu vou voltar a ter a minha profissão de novo.” (Pedro, cooperado da Coopamare)53
Porém, atualmente muitos trabalhadores já sentem os dissabores e a insegurança de um
mercado de trabalho instável, desregulamentado e precarizado, gerando uma desmistificação
da segurança de um trabalho formal, apesar de ainda possuir o atrativo de ser um trabalho
mais respeitado e valorizado socialmente.
“Aí depende do que eu ia ganhar, né. Já apareceu muitos, vários, mas não vou deixar a Coopamare para mim ganhar um salário mínimo. Tem um senhor que ele me conhece há muitos anos, aí nas Perdizes mesmo, nome dele é Dr. Mário, de uma imobiliária, queria que eu fosse trabalhar com ele, para eu ganhar um salário mínimo, um salário mínimo não é nada, né? Não dá pra nada, né. Ele me conhece, sabe minha situação fala que é melhor do que ficar catando papelão aí, você vai ter uma casa pra morar, você vai trabalhar em uma imobiliária e tal, tal. Aí eu conversei com ele e disse vou ver, depois dou a resposta, não deixei desanimado, mudei de conversa e vim embora” (entrevista com Moisés de Almeida, cooperado da Coopamare).
Além disso, devemos levantar outro fator específico, ao se fazer a análise da população
trabalhadora da Coopamare. A maior parte se constitui de pessoas que convivem ou
53 Carla Carusi DOZZI. Cooperativas de Catadores de Papel: uma alternativa para moradores de rua.
Moisés de Almeida compõe o Conselho Fiscal da Coopamare
117
conviveram nas ruas para a sua subsistência. Muitos tinham na assistência social e caritativa
seu modo de subsistir, o que estigmatiza o indivíduo, pois os coloca na categoria de pobre,
altera sua identidade anterior e influência em suas relações com a sociedade, baseada em uma
cultura paternalista e/ou de isolamento. Interioriza-se, assim, aspectos negativos como a
discriminação, a estigmatização, que criam nesse indivíduo uma identidade negativa: “quando
a pessoa para dizer quem é, já se sente humilhada” (Paugam, 1999:71). “Superar a cultura
paternalista parece ser outro grande desafio. Os trabalhadores esperam que façam tudo por
eles. Isso não é só o trabalhador, é todo mundo, pois existe uma cultura de dependência, da
expectativa da iniciativa de terceiros, esperando que o Estado resolva, que o sindicato resolva,
a Incubadora, a associação, a Universidade, ou qualquer outra instituição que se prontificar a
isso.” (Sorbille, 1999:135).
Situação levantada também por um dos cooperados em relação a outros moradores de
rua:
“A pessoa que entra aqui, é porque leva à sério! Mas tem pessoas que não pensam assim, tem pessoas que têm uma cabeça totalmente diferente... Tem muita gente que fala...ah, eu já estou ferrado mesmo, então deixa eu ficar aqui bebendo, deixa o barco rolar! Não é por aí...ele se acomoda. Acha que é mais fácil ficar pedindo na rua aí, do que pegar um carrinho, uma carroça e sair para pegar material. Então...olha meu, se a tua opinião é essa aí, a minha é totalmente diferente! Eu, igual o outro falou para mim: é tem as comunidades que tem comida, tem coberta, tem agasalho...eu vou trabalhar para quê? Ora...trabalhar para quê? Se você não acha trabalho e ficar acomodado, aí é que você não vai achar mesmo!” (Pedro, cooperado da Coopamare)54.
54 Ibdem
118
Promover uma cultura de autonomia, participação e construção de uma identidade
coletiva, esbarra em elementos culturais colocados hegemonicamente pelo capital. Muitos
trabalhadores se colocam em uma posição de incapacidade para executar trabalhos de decisão
e de estratégia, qualificados apenas a fazerem aquilo a que eram demandados, com
dificuldades para desenvolverem posturas mais criativas e de iniciativa, outros estão tão
desestimulados, desesperançosos e desacreditados de si mesmos, que se apoiam na
dependência do outro. Há ainda aqueles que, acostumados a informalidade e a um cotidiano
próprio, abominam a idéia de terem que seguir uma disciplina ou normas construídas
coletivamente, e ainda há aqueles que são descrentes da capacidade da própria cooperativa de
se manter como uma construção feita por todos.
Portanto, seria frágil falar que o cooperativismo e a Economia Solidária, em si, seriam
capazes de estabelecer uma nova cultura do trabalho e das relações sociais. “Refletir sobre a
possibilidade de constituição de uma nova cultura do trabalho pode se tornar um mero
exercício intelectual se não temos como referência a realidade concreta das iniciativas dos
trabalhadores que, ante a crise do emprego, vêm buscando novas formas de sobrevivência
fundadas no trabalho participativo e solidário. (...) Uma nova cultura teria como requisito a
desmercantilização da força de trabalho, por meio de um processo de desalienação do
trabalhador com respeito ao produto, ao processo e a si mesmo como trabalhador, como
produtor de conhecimento e de cultura” (Singer e Souza, 2000:223).
Os catadores recebem cursos de capacitação na própria Coopamare, promovidos por
cooperados ou por profissionais, com palestras sobre assuntos variados, mas de grande
importância para sua instrução. A Coopamare também conta com o apoio de algumas
119
entidades, como a OAF, e convênios com empresas que têm interesse na comercialização de
produtos recicláveis, como a indústria de papel. Assim, estruturados, os catadores ganharam
legitimidade junto a fabricantes e intermediários, e maior visibilidade junto a comerciantes,
donas de casa, empresas e a população de modo geral. Mas apesar de toda essa estrutura a
quantidade de produtos que a cooperativa coleta ainda é muito pouco para conseguir
comercializar direto com a indústria, geralmente este comércio é feito com os atravessadores.
Para solucionar esse problema a Coopamare está buscando parcerias de outras cooperativas,
como a Coorpel (Cooperação na Reciclagem de Papel e Materiais Reaproveitáveis) e a Cruma
(Cooperativa de Reciclagem Unida pelo Meio Ambiente), que são cooperativas de São Paulo
que trabalham com material recicláveis, assim, unidas, poderiam formar uma cooperativa de 2º
grau e adquiririam quantidade para o comércio direto com a indústria, conseguindo um
rendimento maior.
Os atravessadores são um dos elementos mais claros da exploração do capitalismo nas
cooperativas, principalmente no setor que trabalha a Coopamare. Pois como a cooperativa não
tem quantidades suficientes para vender para a indústria o material pronto, os atravessadores
compram esse material, beneficiam para poder vender e, então, negociam com grandes
empresas com um rendimento muito maior.
Outros relacionamentos importantes para a Coopamare são: o Comitê Metropolitano de
Catadores, que luta pelos direitos da classe e a prefeitura, e como faz parte do poder público,
pode ser uma grande aliada no processo de inclusão social.
O catador é considerado um trabalhador autônomo, portanto, um dos principais
objetivos da Coopamare é fazer com que eles assumam seu ofício tendo a consciência da
120
importância desse trabalho, e que a sociedade e o governo valorizem cada vez mais a
profissão.
“A lei está exigindo agora que todos tenham reconhecimento legal (...), mas legalmente ainda falta alguns estarem inscrito na prefeitura.” (entrevista realizada com Nena)
2) Rotina dos catadores
Os catadores que passam todos os dias pela Coopamare são em sua maioria homens,
que chegam coletar mais de 200 quilos diariamente de diversos materiais, como papel,
plástico, vidros, latinhas, entre outros objetos que acabam sendo reutilizados em seus
carrinhos ou casas, quando possuem. Recebem em média de 200 a 300 reais por mês, pois o
material reciclável ainda não é muito valorizado em nosso país e, também, a Coopamare não
possui equipamentos avançados para produzir um material de melhor qualidade de modo a
conseguir melhor preço em sua venda
O trabalho na rua é feito pelo catador e sua carroça, isso faz com que sua área de
atuação seja restrita aos bairros próximos à cooperativa, como Pinheiros, Jardim Paulista,
Perdizes e Consolação. Além disso, os catadores têm que concorrer com muitas pessoas que
recolhem esses materiais como uma segunda opção de renda e com os chamados catadores
motorizados. Esta competição traz prejuízos tanto para os catadores quanto para a cooperativa,
que quer aumentar cada vez mais a quantidade de material coletado.
121
A Coopamare possui uma rotina semanal programada. Todas às 6a feiras acontece uma
reunião coletiva para cooperados e associados que se interessarem, onde são tomadas decisões
e são trocados experiências e informações. Durante a manhã ocorre a assembléia e depois é
servido um almoço para todos, preparado por eles mesmos. Nessas reuniões eles fazem
diversas atividades como música, teatro, se tornando um momento de convivência e
relaxamento para todos, além de ser muito importante para o funcionamento da cooperativa.
“Toda a sexta-feira depois da reunião a gente recebe. Então, cada sexta-feira são escalados 2 para fazer o almoço. Aí faz o almoço, a gente almoça, aí vem o Guilherme depois do almoço e dá a palestra. Depois do Guilherme, aí vem a Beth discutir os problemas da cooperativa, as sugestões, o que tem que ser feito, o que não tem que ser feito, então, é isso daí, aí depois da reunião é que a gente recebe, né” (Pedro, cooperado da Coopamare)55.
Às 2a. feiras ocorre uma reunião da diretoria, onde são discutidos os programas
semanais e mensais e são apresentadas as contas ao Conselho Fiscal.
Na Cooperativa o trabalho é muito livre, cada catador trabalha quanto tempo quiser,
como quer e não é exigido nem uma habilidade específica para ingressar na cooperativa, basta
ter consciência da importância do seu trabalho e o da cooperativa e se associar.
Para o seu funcionamento a cooperativa conta com uma prensa, três balanças, um
caminhão e uma perua, além dos carrinhos de coleta utilizados pelos catadores. É um
equipamento ainda muito precário, que acaba refletindo diretamente no baixo valor que
55 Ibdem
122
Carlos Roberto Fabrício (Carlinhos)
cooperado, ex-presidente e um dos
fundadores da Coopamare
conseguem durante a comercialização, pois existe grande diferença entre vender, por exemplo,
uma garrafa plástica inteira e a mesma triturada.
Os catadores estão conseguindo devagar o seu objeto, que é o reconhecimento da
produção pelas autoridades e pela sociedade em geral. As autoridades já os reconhecem como
autônomos, mas a sociedade ainda os discrimina, não entendendo isso como um trabalho sério
e de grande importância para a preservação da natureza.
“Hoje eles se sentem mais incluídos, mas há uns dez anos atrás eram excluídos. Agora, no (último) congresso a gente descobriu que o censo que foi feito, foi feito com pessoas de casa e não foi feito com o pessoal da rua, então eles foram excluídos.” (entrevista realizada com Carlinhos, cooperado da Coopamare)
Apesar de ainda ter muito que aprender e o que crescer a
Coopamare já conseguiu ajudar muita gente, muitos dos catadores
que passaram a ser cooperados conseguiram melhorar sua
qualidade de vida, trocando a rua por uma casa própria.
Infelizmente esta realidade não é a de todos, já que muitos ainda
moram na rua, mas aos poucos cada vez mais aumenta a
quantidade de catadores eu conseguem um lugar para morar. Outro grande problema é o
preconceito da sociedade com a profissão de catador, o trabalho na rua é confundido com um
trabalho marginal, pois muitas vezes, ocorre do catador mexer nos lixos em busca de materiais
e é confundido com um mendigo à procura de comida e isso compromete a dignidade de seu
trabalho.
123
E outra questão é que, apesar da luta pelo reconhecimento da profissão ser legítima e
necessária, devemos considerar que as condições de trabalho do catador, carregando grandes
quantidades de material, brigando na locomoção dos seus carrinhos em meio ao pesado
trânsito de São Paulo, com parcos equipamentos de segurança, ainda não é o ideal para um
trabalho humanizado. Modificações em sua forma de trabalho poderão decorrer do próprio
fortalecimento do projeto cooperativo que exigirá condições de trabalho mais humanas e
menos precárias para promover os objetivos da Economia Solidária de subordinar os interesses
do capital aos das necessidades dos cooperados.
124
AAAA
Fortalecendo um novo projeto societário
“Pensar o futuro implica a liberdade da crítica, a
desconstrução dos consensos estabelecidos e a
capacidade de retomar, hoje, de forma
contraditória, a tradição crítica. Como tradição,
mas, fundamentalmente, como crítica, numa
crítica da própria tradição crítica, para repensar
o futuro e reinventar a utopia, sem perder os pés
no presente.” (Faleiros, 1999:164)
tualmente, podemos perceber que os rumos da política neoliberal e da
globalização estão sendo questionados no mundo todo, de Chiapas a Otawa, do Japão a Nova
York, através do que foi denominado de Movimento Antiglobalização. Este movimento é uma
resposta da sociedade civil organizada, formada por uma rede de movimentos e organizações
sociais das mais variadas bandeiras, que basicamente contestam as conseqüências de uma
política capitalista neoliberal globalizada que atinge a todos os seres do planeta, submetidos a
tomadas de decisões que são centralizadas pelas instituições supranacionais, como a União
Européia, clubes de decisão como o G8 ou instituições de gestão como o FMI (Fundo
Monetário Internacional) e o Banco Mundial para serem implantadas pelos Estados Nacionais.
É uma resposta contra a falta de canais de participação e de decisão da população que contesta
a legitimidade da representatibilidade dos líderes políticos e que, na maioria das vezes, tem no
interior de suas decisões interesses particulares de uma elite mundial.
Estas mobilizações geraram ações que impulsionaram mudanças na direção das
discussões, intensificando-as em razão da ocorrência de dois eventos que impactaram o
125
mundo: o atentado ao World Trade Center no dia 11 de setembro em Nova York e o colapso
da Argentina.
Um exemplo desse redirecionamento foi o Fórum Econômico Mundial (FEM) que
aconteceu agora em fevereiro de 2002, em Nova York (tradicionalmente era em Davos, na
Suiça), reunindo 3 mil líderes mundiais, acadêmicos, executivos de grandes corporações,
religiosos e agentes culturais, além de, milhares de ativistas de uma dezena de organizações
não-governamentais. Tradicionalmente, este fórum pouco discutia as conseqüências das
relações econômicas e políticas vigentes mundiais de concentração de renda, empobrecimento
crescente da população mundial, desemprego e devastação ambiental.
No entanto, após todos os grandes acontecimentos que marcaram o ano de 2001,
principalmente no segundo semestre, como a falência da Argentina, que colocou a eficiência56
dos programas de ajuste ordenados pelo FMI em dúvida, fazendo com que Horst Koehler,
diretor-gerente do FMI, chegasse a admitir abertamente, o desacerto que a política econômica
mundial estava gerando com a valorização na consolidação fiscal em detrimento das condições
de vida do homem; e o atentado ao World Trade Center colocando questões de como lidar
com o terrorismo que cresce em uma política mundial segregacional, desigual, de exploração e
dependência, transparecendo velhos rancores dos países periféricos contra a principal potência
mundial, comparando o ato a uma vitória de David contra Golias. Estas ocorrências
orientaram os rumos dos debates do fórum a temas mais sociais como: “a redução da pobreza
56 Aqui o termo “eficiência” deve ser entendido como ao sucesso de preservar um sistema que favorece política e economicamente uma elite mundial, sendo considerada, do ponto de vista social, ineficiente já que não promove o crescimento, aumenta a dívida pública, porém, garante a arrecadação fiscal para o pagamento dos juros da dívida externa às grandes instituições financeiras.
126
mundial e a busca de igualdade” e a “luta dos países pobres contra a AIDS” . “Criamos um
novo programa para este encontro especialmente destinado a estimular a discussão e a prover
soluções que nos ajudem a lidar com a fragilidade dos dias de hoje.” (Klaus Schwab,
presidente do FEM)57
Concomitante a esse evento e contrapondo-se a ele foi realizado em Porto Alegre a
segunda edição do Fórum Social Mundial, conhecido como Anti-Davos (em referência ao
local tradicional do FEM) priorizando os temas sociais ao econômico. Também, devido ao
atentado ao World Trade Center, este fórum teve um redirecionamento das estratégias do
movimento para discussões que fossem mais propositivas tendo como tema principal: a paz, já
que qualquer contestação ao imperialismo norte-americano poderia ser distorcida como um
apoio ao terrorismo, o que não impediu muitos de manifestarem seu anti-americanismo. O
evento teve a participação de 42 entidades internacionais e 8 nacionais, mais de 15 mil
delegados de cerca de 4 mil organizações de 80 países diferentes e com mais de 60 mil
pessoas, que discorreram sobre temas amplos nas 27 conferências, em mais de 100 seminários
e cerca de 800 oficinas58, como: o controle de capitais financeiros; economia solidária, dívida
externa, controle de patentes, sustentabilidade ambiental, democratização da mídia e migração
. O sucesso e o alcance dessas mobilizações é outra evidência de que as convicções do
capital neoliberalismo estão ruindo. No entanto, ainda é muito cedo para festejarmos alguma
conquista. O sistema capitalista prevalece justamente pela sua grande capacidade de
modificação e adaptação e certamente, a possibilidade de sua extinção não se dará apenas pelo
57 “Pauta Social invade Fórum Econômico” de Sérgio Dávila in: Folha de São Paulo, Brasil – A12, 27/01/2002 58 “Fórum Social Mundial, a mobilização continua” in: Informes – Boletim Eletrônico da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais – Abong, 14 a 20/02/2002, no.172.
127
temor dos recentes acontecimentos e pelas discussões em grandes fóruns. Contudo, está claro
que algo tem que ser feito para diminuir as desigualdades sociais, o esgotamento dos recursos
naturais e os distúrbios climáticos e ambientais, a crescente violência que está inserida nos
vários âmbitos das relações sociais, assim como todos os seus desdobramentos.
A Economia Solidária faz parte desse grande movimento mundial que propõe outras
bases culturais, ideológicas, econômicas e políticas que não sejam alicerçadas no lucro, no
consumo desmedido e na competição, tentando unir pessoas das mais variadas etnias, gêneros,
idades e classes com o único objetivo de desenvolver relações mais solidárias e justas,
promovendo uma vida com mais qualidade, lutando pelos direitos, com respeito às diferenças,
à cultura, ao meio ambiente, enfim, ao homem.
O cooperativismo, como principal ator desse grande movimento solidário, é uma
esperança que está sendo construída e reconstruída ao longo do tempo, mas que, no entanto,
ainda não passa de “um pingo em um grande oceano”. Segundo uma pesquisa realizada pela
OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico) em 1993 aponta que
esses empreendimentos cobrem apenas em torno de 3% dos desempregados na Europa
(Azeredo, São Paulo em Perspectiva, no.11:56) e no Brasil, segundo o IBGE, representa cerca
de 0,5% do total de trabalhadores ocupados (Singer e Souza, 2000:10) não influenciando as
condições de oferta e demanda de trabalho.
128
Apesar disto, em um contexto de crise econômica e aumento do desemprego, o
crescimento das cooperativas no Brasil59 e no mundo demonstram seu grande potencial como
alternativa à geração de trabalho e renda.
Muitos criticam esses empreendimentos por considerá-los uma nova forma dos
trabalhadores submeterem-se aos mandos do mercado capitalista, através de terceirizações,
legalizando a sonegação de encargos sociais e intensificando a exploração do trabalhador.
Porém outros, em oposição, consideram-nos como um importante instrumento para a
promoção da sociabilidade, da ampliação da organização social e na apreensão de novos
valores e saberes que tem a qualidade de promover um maior crescimento político,
educacional, cultural e social ao trabalhador, além de garantir-lhe a subsistência e, por vezes, a
sua qualificação da força de trabalho no mercado moderno.
Contudo ainda se coloca como um projeto contraditório, não pelos seus princípios em
si, mas pela sua relação com o contexto liberal. Em nossa cultura ocidental democrática
fortemente baseada no consumo, na mercantilização das relações e no lucro, marcada por
interesses individuais que se sobrepõem aos do coletivos, muito se fala nos direitos, mas
pouco se sugere dos deveres.
O dever nasceu de uma necessidade de se criar instrumentos que pudessem
desenvolver a liberdade nas relações comunitárias. O dever na sociedade capitalista serviu
para alienar e explorar o trabalhador objetivando um dever para com o capital e não para com
59 “Entre 1990 e 1998, a taxa de crescimento do número de cooperativas foi de 44% e a taxa de crescimento do número de cooperados atingiu 53%”. Dados da OCB (Organização de Cooperativas Brasileiras). (Singer, 2000:95)
129
a humanidade. A consciência e o entendimento dessas regras é um atributo da moral e da
cidadania e sem esse conhecimento, a liberdade perde a sua característica de atributo humano.
A cidadania só é possível, com uma atitude consciente e livre, e a liberdade só se
concretiza através da humanização e da evolução da relação do homem com o mundo, do
homem com seus semelhantes, e dele consigo mesmo. Quanto mais esse indivíduo estiver
desprovido de meios para a sua subsistência física, psíquica e mental, mais árduo será a sua
tarefa de apropriação das noções de liberdade, direitos e deveres para a sua vida em sociedade.
Essa alienação de sua própria situação de vida acaba animalizando-o ainda mais.
Estabelecer deveres e respeitar direitos legitimados coletivamente são fundamentais
para uma vida comunitária. E aqui encontramos o nosso paradoxo. Como promover isso em
uma sociedade em que a vontade do grupo deve submeter-se ao do indivíduo, onde regras
paralelas são criadas informalmente para o alcance de anseios particulares, onde até a vida
alheia perde a sua essencialidade diante de desejos singulares?
A Coopamare, com a sua particularidade de ser constituída, em sua maioria, por
moradores de rua, cidadãos virtuais, pessoas que normalmente são privadas do acesso ao
mínimo necessário para desenvolver sua humanidade, estabelece uma potencialidade de
contribuir para fortalecer este projeto em uma dinâmica tão contraditória.
Alguns princípios e normas de rotina da Coopamare como: a divisão dos excedentes,
estabelecida no estatuto de fundação da organização; regras de organização, para um bom
entendimento no andamento do trabalho; código de ética, construído como uma necessidade
de normatizar padrões de conduta para a construção de uma identidade social para o catador;
130
alguns compromissos como a pega do material em horário e lugar combinado e até mesmo a
assembléia geral semanal são de fácil assimilação, pois, geralmente, não exigem que o
cooperado promova grandes mudanças nos valores e verdades, presentes em sua cultura,
remetendo-se mais aos seus hábitos.
Porém, princípios como: a autogestão; horizontalidade nas relações de trabalho; opção
por decisões que favoreçam a maioria e não apenas a um indivíduo; desenvolvimento do
diálogo e da comunicação; exercício de uma postura pró-ativa e participativa; apropriação da
propriedade coletiva como sua também; necessidade de um aperfeiçoamento integral de suas
potencialidades; assim como a solidariedade; cooperação e noções de coletividade são de mais
difícil apreensão e sua progressão somente se dá na dinâmica das relações sociais e do
trabalho.
Solucionar esses empecilhos demandam ações com resultados a longo prazo e com
intenso exercício de reflexão, análise e construção constante da prática do trabalho e de seus
significados. Não é uma tarefa de incutir verdades, mas sim de incitar o pensamento crítico
para a possibilidade de escolhas conscientes, com posturas direcionadas.
O Serviço Social possui uma tradição histórica como elemento capacitador de mão-de-
obra na “construção e incorporação da informação, da ideologia, da disciplina, das
habilidades, das rotinas, das condições de vida e dos deveres para a vida na sociedade do
trabalho assalariado” (Faleiros, 1999:168), no entanto, atualmente suas ações se apoiam em
um outro projeto profissional e societário que demanda desse profissional um maior
aprofundamento e reorientação dessa tradição, “deixando de lado o caráter de adaptação, de
treinamento, reforço de hábitos, e adotando a perspectiva crítica, formadora, da aprendizagem
131
nas condições cada vez mais complexas do cotidiano, onde se exige mudanças de perspectiva,
mudanças de trajetória e mudanças de condições” (Faleiros, 1999:167).
Este caminho difere do posicionamento do tradicional Serviço Social que visava o
estímulo apenas à motivação pessoal ou mobilização de recursos. Contrariando este
posicionamento, o Serviço Social pretende colocar outras prerrogativas no sentido de dar
ênfase às relações sociais, tentando modificá-las no contexto desses empreendimentos para
que se espalhem como cultura do dia-a-dia, refletindo e modificando as relações de poder,
fortalecendo a cidadania, a autonomia e a identidade através da participação efetiva do
trabalhador nas decisões do empreendimento. Isso fortalece a natureza do Serviço Social de
defesa dos direitos, intencionando o desenvolvimento do sujeito e de suas condições básicas
de vida, no momento, que tenta preparar o trabalhador a ser mais realizador e participante das
decisões que lhe concerne, no exercício político da sua reivindicação e conscientização de suas
potencialidades e de seu importante papel como fazedor da história. “Ao invés de pedintes, os
usuários se tornam cidadãos. (...) Reinventar-se como sujeito é reinventar relações, porque só
se é sujeito numa relação. (...) tanto na dinâmica do fortalecimento interno das relações entre
os participantes como no enfrentamento do dominante (...) Não se trata de reinventar o
indivíduo isolado, mas de reinventar relações” (Faleiros, 1999, 168).
A partir disso, podemos entender que, diante dessas grandes transformações nas
relações sociais, no mundo do trabalho, no meio ambiente em que vivemos, mudanças estão
sendo solicitadas. E essas mudanças devem ser efetuadas nas práticas em que a realidade
histórica é construída e mediada que são o trabalho, a cultura simbólica e a sociabilidade. “Os
seres humanos vão sendo aquilo que se vão fazendo e este fazer-se, este constituir-se só se dá
132
mediante a ação e não pelos seus desejos, pelos seus pensamentos e teorias. (...) Assim, a
educação não poderá mais ser vista como processo mecânico de desenvolvimento de
potencialidades. Ela será necessariamente um processo de construção, ou seja, uma prática
mediante a qual os homens estão se construindo ao longo do tempo.” (Severino, 2000:68).
A existência do homem historicamente só foi possível com o trabalho, prática esta que
possibilitou a sua efetivação como espécie humana, desenvolvendo relações e estabelecendo a
sua vida em sociedade. A expressão desse trabalho é uma construção coletiva produzida não
por uma pessoa, mas por um sujeito coletivo e a realização desse trabalho depende de relações
sociais que são peculiarmente embebidas pelo poder, por isso é uma prática política. Além
disso, o agir humano tem suas especificidades, em que a subjetividade torna-se instrumento de
sua prática, uma prática envolta em intencionalidade, uma intencionalidade possível graças à
experiências passadas e acumuladas, graças a cultura.
É baseado nesse tripé (prática econômica ou produtiva, prática política e prática
simbolizadora) que a educação deve contribuir para construir um real sujeito de direito,
lutando contra um trabalho que pode tirar a dignidade do homem, uma convivência social que
pode afligi-lo e sufocá-lo e uma cultura que pode aliená-lo, através de ideologias vazias.
Consequentemente, essa educação permitiria aos homens uma distribuição e um
domínio dos recursos naturais e dos meios de produção e tecnológicos de forma mais
eqüitativa, através da apropriação por um grande número de pessoas desses bens naturais e dos
conhecimentos científicos e técnicos desenvolvidos coletivamente.
133
A educação deveria garantir a percepção das relações de poder que possibilitaria a
apreensão do funcionamento das emaranhadas redes políticas que estão presentes em todos os
âmbitos da vida de um homem, diminuindo as desigualdades sociais na correlação de poderes
para que essas relações sociais se humanizem, diminuindo a dominação e a opressão para
garantir que todos participem nas tomadas de decisão de assuntos de interesse coletivo.
E é também através da educação que seria possível desvendar os processos ideológicos
de reprodução social para construir um futuro baseado em um sentido, em um projeto de
sociedade onde se pudesse instaurar uma verdadeira transformação na sociedade.
Acreditamos que o cooperativismo inserido nos ideais da Economia Solidária, pode ser
um fértil campo para a inserção do Serviço Social e de outras formações profissionais que
tenham como perspectiva a mudanças nas relações políticas, culturais e de trabalho. É um
projeto que tenta romper com a separação entre força de trabalho e meios de produção, isto é,
aquele que trabalha também é o dono dos meios de produção.
“A Cáritas dava um financiamento inicial de 2 mil reais e esse equipamento era da Cáritas (...) De uns, mais ou menos 6 anos, a gente foi percebendo que o espírito era cooperativo, a gente tentava trabalhar esse espírito, mas a gente acabava tutelando o grupo durante muito tempo, porque o equipamento era nosso e o grupo perdia a autonomia com aquele bem e nós começamos a discutir com os financiadores a possibilidade da implementação de um Fundo Rotativo (...) Ao invés de dar a fundo perdido, esse dinheiro que retorna, retorna para o Fundo Rotativo e esse Fundo Rotativo vai para o financiamento de novos projetos. Então, você não perde o equipamento, apesar dos juros serem simbólicos, você dá autonomia para o grupo, esse grupo passa a gerir, inclusive esses bens que a Cáritas financiou” (Entrevista realizada com Fátima Giorlano, assistente social da Cáritas).
134
Procura tanto incentivar o constante diálogo e a comunicação, quanto tenta promover
uma continua educação em que o cooperado possa ter a possibilidade de socializar e apropriar-
se de conhecimentos produzidos coletivamente. Sua organização procura quebrar com as
rígidas hierarquias verticalizadas, contribuindo, com isso, com uma maior participação de
todos os cooperados nas decisões do grupo através das assembléias, na candidatura aos cargos
de direção e no rodízio de funções. Além disso, é preciso um intenso e longo processo de
assimilação dos ideais solidários e cooperativos baseada na constante reflexão da direção de
sua prática e nas relações do dia-a-dia, promovendo a construção de uma identidade coletiva e
de pertencimento social.
Essa ação tem como orientação a fomentação da participação ativa dos cooperados
como forma de fortalecer o projeto solidário, assim como os seus membros. E o assistente
social, no desempenho da sua prática profissional, deve aproveitar as oportunidades existentes,
para possibilitar a problematização da distribuição do exercício de poder e de funções na
cooperativa, trabalhando situações concretas de vivência de modo a facilitar uma reflexão com
todos sobre como seria possível realizar uma redistribuição mais eqüitativa desse mesmo
exercício.
“Esse projeto eu escrevo com o grupo, logo quando eu comecei, ainda hoje aparece gente que traz o projeto escrito e eu não aceito porque a discussão tem que ser feita com o grupo, o grupo é que tem que construir o projeto que é deles e eu participo junto com eles (...) A experiência que eu tenho é assim, quando é uma pessoa que constrói o projeto, e aquela pessoa vai embora por alguma razão, o projeto acaba, às vezes é lindo, mas acaba. Agora, quando o grupo constrói o projeto, aí é diferente, ele ganha outra dimensão, então uma pessoa pode ir embora” (Entrevista realizada com Fátima Giorlano, assistente social da Cáritas).
135
A valorização da prática dos cooperados também é básica como estratégia da prática
profissional, não só em funções de base da cooperativa, mas também, nas relacionadas com o
planejamento, administração, tomadas de decisão, estabelecendo uma prática em que os
cooperados devem ser encarados como sujeitos detentores de saberes, em uma relação de
reciprocidade com o profissional, em que a ação deverá ser construída com eles e não para
eles.
Essa diferença do saber e da prática, pode ser constatado na experiência relatada por
Nena:
“(...) nós fizemos agora uma parceria com a Poli (USP), então eles vão trabalhar com a gente num primeiro momento a logística da cooperativa. Os catadores dizem: não precisa mexer aí porque está tudo perfeito(...) O quê, que esses caras vem aqui? Nunca cataram na vida e agora vem nos dizer o que é certo e o que é errado(...) Então agora eles estão vindo, trabalhando junto com eles, vendo como eles fazem(...) Mas se eles chegarem dizendo isso não, isso não. Eles vão deixar eles bonitinho no cantinho deles. Porque essa resistência dos saberes eles tem, cada um deles tem que saber juntar.” (entrevista realizada com Nena)
Isso é particularmente essencial em um trabalho que lida com grupos estigmatizados,
como é o caso da Coopamare. O assistente social tem que trabalhar com as representações
negativas socialmente construídas sobre eles e que são por eles interiorizadas, gerando a
crença de que são despossuídos de capacidades e habilidades ou possuem deficiências no
desenvolvimento de sua personalidade e de seus relacionamentos pessoais, criando uma
ideologia que conduz a autoculpa de seus problemas.
136
“Procurar compreender, conhecer a história dessas pessoas, deixar eles falarem, se expressarem. Eles tem uma auto estima baixíssima, não se sentem pessoas porque tem que viver catando lixo. Você associar uma oficina de papel artesanato você pode ajudar na relação com eles que a partir do papel que está jogando no lixo esse papel pode se transformar em papel de arte, por exemplo“ (Entrevista realizada com Cleisa Maffei Rosa).
Segundo a Irmã Regina, o assistente social tem uma função muito importante neste
processo todo, pois é o profissional mais indicado para trabalhar o processo de “inclusão”, tão
difícil, principalmente em um grupo como o dos moradores de rua. O assistente social tem que
ser bastante criativo e trabalhar da melhor maneira questões como agregação, educação,
socialização, respeito, entre outras.
O assistente social deve com isso
tentar valorizar experiências passadas e
habilidades existentes através de seu
desempenho para se auto-organizar e para
criar alternativas de luta para a sua
sobrevivência, além disso, o profissional
deve também estabelecer, com os cooperados
conjuntamente, uma relação de identificação de seus problemas para encorajá-los a
especularem sobre qual o seu lugar na estrutura de uma sociedade capitalista, qual os motivos
para isso e as suas possibilidades.
“É preciso ter um olhar sem preconceito. É possível? Primeiro rever os valores que a gente tem, realizar pesquisas, se relacionar, criar vínculos, conhecer de
Dinâmica de grupo com os catadores, promovida pelo Fórum “ Recicla São Paulo”
e organizada por uma assistente social
137
fato quem é essa população de rua. Para isso o Serviço Social dá uma certa abertura até no ponto de vista da aproximação. (...) O Serviço Social é uma das profissões que estabelece vínculo, que favorece a auto-estima, e isso já é uma grande coisa para se sentirem reconhecidos, o primeiro passo profissional é estabelecer vínculos.” (Entrevista realizada com Cleisa Maffei Rosa).
Para isso, o profissional deve ter uma consciência muito clara das mediações que estão
presentes no quotidiano do seu trabalho, agindo de acordo com suas reflexões, para então,
através de uma análise crítica de sua ação e mediações, produzir mais conhecimentos que irão
gerar novas ações e reflexões. Isso é que potencializa o exercício da cidadania.
No entanto, alguns assistentes sociais, na sua prática quotidiana, não tem competência
ou não estão inclinados a desenvolver uma ação política direcionada para o fortalecimento e a
autonomia de seus usuários, preferindo individualizar as situações, apreendendo somente as
diferenças entre eles e ignorando as suas mediações. Um exemplo disso, seria a dificuldade de
se trabalhar com indivíduos que incorporaram fortemente a cultura do trabalho de
competitividade e/ou submissão. Refletir conjuntamente com eles as mediações de seu antigo
trabalho de como e para que suas relações eram estabelecidas e provocar um enfrentamento
dos seus reais desejos para com o mundo pode ser um boa prática simbolizadora.
“Em geral as funções do grupo não estão muito bem determinadas, nem o projeto em si. As relações com a comunidade também são restritas e o Serviço Social vai lá para isso. (...) os grupos estão muito focados no micro, (...) necessidades imediatas e individualistas. (...) determinar qual a necessidade do grupo (...) acaba ampliando a visão dessas pessoas, (...) você vai discutir relação de trabalho. Então, quando eles começam a discutir a diferença de um trabalho não cooperativo para um trabalho cooperativo, você está discutindo
138
economia, e a postura trabalhista do país, na verdade, do Estado” (Entrevista realizada com Fátima Giorlano, assistente social da Cáritas).
Outra dimensão seria em relação a expectativa dos usuários com as respostas da prática
profissional. Segundo a assistente social da Cáritas, Ftino:
“O maior desafio do Serviço Social em cooperativas é que o pessoal acha que o Serviço Social é milagroso. E acaba frustrado, um pouco, porque a gente não tem todas as respostas. (...) você tem que trabalhar com muita ansiedade, com muita expectativa, muita frustração.” (Entrevista realizada com Fátima Giorlano, assistente social da Cáritas).
Os usuários do Serviço Social, geralmente querem uma solução imediata para um
problema particular, no entanto, essas respostas envolvem um processo que pode exigir tempo
e o envolvimento deles para que haja alguma mudança, e de modo geral, se não houver uma
rápida resposta do profissional a essa questão, por mínima que seja, torna-se muito difícil o
envolvimento desse indivíduo em uma ação política mais ampla. Normalmente, esse indivíduo
considera que tal ação de cunho político não tem nenhum efeito concreto, motivados pela
descrença em sua própria força e de seu grupo, ou acostumados a estarem dependentes da
assistência.
Outros profissionais, devido às suas obrigações, priorizam na sua prática aspectos
técnicos e instrumentais, esquecendo de valorizar o exercício do desenvolvimento de uma
visão mais totalizante que implique a compreensão do problema e a ação que pode ser gerada
por ela.
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“Alguns instrumentos são exclusivos do psicólogo, por exemplo, teste psicológico, ninguém vai fazer, o assistente social não pode fazer, o assistente social pode fazer uso das dinâmicas, essa coisa toda, mas teste psicológico, não. O que é que o assistente social faz que mais ninguém pode fazer, que o psicólogo não pode, que o pedagogo não pode, o professor não pode. Então, esse instrumental específico nós não temos, que acho, cria um problema de identidade.” (Entrevista realizada com Fátima Giorlano, assistente social da Cáritas).
Portanto, poderemos nos deparar com situações em que esse profissional não
conseguirá apreender o sentido do problema e enxergar caminhos que o auxiliem nessa
resposta, outras vezes a solução para o problema poderá estar bastante clara e ele tentará criar
diversas formas para resolver estas dificuldades, e ainda existe a possibilidade dele possuir o
entendimento da situação, mas a sua ação será pela manutenção do problema.
Então, será somente a partir do momento que esse profissional assumir seu papel como
agente facilitador de mudanças, promovendo uma educação em que sua função não seja
apenas de transmitir conhecimentos, mas de adquiri-los num processo conjunto com o seu
usuário, auxiliando na reflexão do seu modo de pensar a vida e as suas relações é que o
Serviço Social poderá ser efetivamente um profissional com potencialidade para promover a
cidadania. É um desafio a longo prazo que requer unir a prática à reflexão constante em um
exercício crítico e dialético, tentando levantar conjuntamente todos os limites e as possilidades
colocadas na realidade através de uma visão totalizante e de uma ação reformadora que não
desvincula o econômico da reforma moral e intelectual, tendo claro que, tanto o projeto de
Economia Solidária, quanto o do Serviço Social são atividades de formação e assim são
projetos que se constróem de acordo com a dinâmica de seu contexto.
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Hoje não se tem ainda respostas prontas quanto ao cooperativismo, a autogestão, elas
estão em construção, em constante experiência, é uma experiência viva. E não será ela sozinha
a possibilidade de mudanças do modo de produção capitalista. Isolada ela não tem força. No
entanto, caminhamos para um processo em que milhares de pessoas reclamam pela
implantação de uma real democracia, contestando a legitimidade das lideranças políticas; em
que a participação popular de movimentos organizados se faz cada mais presente exigindo
mais espaço nas decisões concernentes ao interesse público como a destinação orçamentária e
a co-gestão de equipamentos públicos essenciais e em que o próprio sistema político
neoliberal está sendo questionado mundialmente. Sensação de insatisfação que pode não ser o
suficiente para gerar mudanças profundas e globais, mas que pode possibilitar mais vigor as
práticas que já estão em andamento, incentivando sua luta e fortalecendo suas convicções.
141
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• Gabinete da Vereadora Aldaíza Sposati. Câmara Municipal. “População de Rua
tem seus Direitos Garantidos.” São Paulo, 2001.
• Prefeitura Municipal de Porto Alegre DMLU/SMIC/SMED. (contribuição para o
debate) – “Formulação de uma Política de Governo com Relação aos
Papeleiros, Carrinheiros, Carroceiros e Recicladores de Resíduos Sólidos
Recicláveis de Porto Alegre: qualificação do processo de resgate social,
político, econômico e cultural dos excluídos.” 2001.
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• Revista: Vila Madalena, “Coletando Dignidade – Reintegrando moradores de rua
e desempregados à sociedade, Cooperativa de Catadores de Papel, Aparas e
Materiais Reaproveitáveis (Coopamare) sensibiliza comunidade, que vem
aderindo à coleta seletiva do ‘lixo que não é lixo’.” de Fernanda Yuglend –
Reciclagem p. 24.
• Secretaria Municipal do Bem-Estar Social – SEBES, Prefeitura do Município de
São Paulo, “Cidadania para quem precisa – A Assistência Social na Cidade
de São Paulo de 1989 a 1992.”, 1992.
• Textos em Debate nº. 3. “Avanços e Desafios, fórum de estudos sobre população de
rua.”
• Treinamento Tecnológico: “Formação em cooperativismo”. Professores: Paul
Singer, Fernando Haddad, Sonia M. Portella Kruppa e Gustavo Luís
Gutiérrez; Colaboradores: Selene Ferreira de Moraes, Juan Ricardo Cruz
Moreira, Fernando Kleiman e Silvana T. de Campos; Revisão: Professora
Silvia Telles. USP – Coperação Universidade Empresa (Projeto Atual – tec).
• Vídeo da Coopamare, 2000.
Sites
• www.uol.com.br/aprendiz/desingsocial/coopamare/menu.htm
• www.confecoop.org.co/historia/page3.html
• www.sebraesp.com.br/sebrae/sebraenovo/cooperat-001.htm
149
Anexo1
CARTA ABERTA À POPULAÇÃO
Um ato à Preservação da Vida
Nós, catadores e catadoras do estado de São Paulo, estamos aqui hoje, no Dia Mundial dos Direitos Humanos, conscientes da nossa cidadania e da importância do nosso trabalho, para apresentar a toda a sociedade a nossa luta. Quem somos? � Somos trabalhadores e trabalhadoras que há muitas décadas, encontramos no lixo a
nossa sobrevivência e de nossas famílias. � Somos uma categoria profissional que elaborou uma tecnologia de geração de trabalho e renda. O que nós oferecemos?
Oferecemos a prestação de nosso serviço, colaborando com a limpeza pública, gerando matéria prima para a indústria e preservando a natureza.
O que nós queremos? � Queremos o reconhecimento do nosso trabalho pela sociedade e pelo poder público;
� Queremos o reconhecimento de nossa categoria profissional; � Queremos a nossa inclusão na Lei da política nacional de destinação dos resíduos sólidos , que nos assegurará � o direito ao trabalho; � a nossa inclusão nas coletas seletivas de todos os municípios e estados; � incentivos públicos para formação de empresas sociais de reciclagem. Já caminhamos bastante.... � Realizamos em Brasília no mês de junho deste ano, um Congresso de Catadores de três
dias, com a participação 1600 trabalhadores representando dezessete estados do País; � Apresentamos ao Congresso Nacional um ante-projeto de lei que regulamenta a profissão dos catadores e catadoras de materiais recicláveis; � Hoje o Brasil recicla 82% de alumínio e nós somos responsáveis por grande parte da coleta dessas latinhas; Contamos com a sociedade para a defesa deste nosso direito!
COLETA SELETIVA FEITA PELOS CATADORES, JÁ! Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis
Regional Sudeste
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