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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
Instituto de Estudos da Linguagem
MIRESNEI BOMFIM DE OLIVEIRA
ENUNCIAÇÃO E RELAÇÕES DE SENTIDO ENTRE A
CONSTITUIÇÃO FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 E O
MARCO CIVIL DA INTERNET (LEI 12.965/14)
CAMPINAS
2019
MIRESNEI BOMFIM DE OLIVEIRA
ENUNCIAÇÃO E RELAÇÕES DE SENTIDO ENTRE A
CONSTITUIÇÃO FEDERATIVA DO BRASIL E O MARCO CIVIL DA
INTERNET (LEI 12.965/14)
Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em Linguística.
Orientador: Prof. Dr. Eduardo Roberto Junqueira Guimarães
Este exemplar corresponde à versão final
da dissertação de mestrado defendida pelo
aluno Miresnei Bomfim de Oliveira e
orientada pelo prof. Dr. Eduardo Roberto
Junqueira Guimarães
CAMPINAS
2019
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem
Leandro dos Santos Nascimento - CRB 8/8343
Bomfim de Oliveira, Miresnei, 1970-
B639e Enunciação e relações de sentido entre a Constituição Federativa do
Brasil de 1988 e o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14) / Miresnei
Bomfim de Oliveira. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.
Orientador: Eduardo Roberto Junqueira Guimarães.
Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Estudos da Linguagem.
1. Semântica. 2. Controle da Constitucionalidade. 3. Significação
(Linguística). 4. Sentido (Linguística). 5. Direito - Linguagem. I.
Guimarães, Eduardo Roberto Junqueira. II. Universidade Estadual de
Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.
Informações para Biblioteca Digital
Título em outro idioma: Enunciation and meaning relations between Federal Constitution of Brazil of 1988 and The Brazilian Civil Rights Framework for The Internet (Law 12.965/14) Palavras-chave em inglês:
Semantics
Constitutionality control
Meaning (Linguistics)
Sense (Linguistics)
Law - Language Área de concentração: Linguística Titulação: Mestre em Linguística Banca examinadora:
Eduardo Roberto Junqueira Guimarães [Orientador]
Débora Raquel Hettwer Massmann
Emílio Gozze Pagotto Data de defesa: 13-12-2019 Programa de Pós-Graduação: Linguística Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)
ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-6610-0296
Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/8080952823931325
BANCA EXAMINADORA:
Eduardo Roberto Junqueira Guimarães
Emilio Gozze Pagotto
Débora Raquel Hettwer Massmann
IEL/UNICAMP
2019
Ata da defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no
SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria de Pós Graduação do IEL.
Não oblitero moscas com palavras. Uma espécie de canto me ocasiona.
Respeito as oralidades. Eu escrevo o rumor das palavras.
Não sou sandeu de gramáticas. Só sei o nada aumentado.
Manoel de Barros
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a meus pais, Mires (in memoriam) e Noeni, que
representam para mim a materialidade de todo um esforço e luta históricos de
sobrevivência e resistência frente às determinações econômico-sociais capitalistas
em suas diferentes formas de exploração e manutenção das desigualdades sociais.
Sua luta foi, e é, o que me moveu, e move, para que eu chegue até aqui e não decline
de seguir em frente. Dedico também a meus familiares, em especial a meus filhos
Gabriel (meu alter ego! rs), Tainah (por extensão ao Guilherme e o Henriquinho) e
Bruno (nosso engenheiro!), que, além de sempre me inspirarem e significarem o novo
para mim, sempre incentivaram o pai em sua busca extemporânea. Da mesma forma
a meus irmãos Janaina e Emerson, em especial a ela, que sempre vibra (e chora)
com minhas conquistas. A meus sobrinhos, Gigi, Paulinho e Malu. A meus poucos
amigo/as e companheiro/as Daniela Morillos (companheira de muitas lutas), Luciane
Vegners (por me mostrar novos rumos), Gisele Falcari (meu segundo alter ego!) e
Eduardo Oliveira (o Edu, o chato! rs) pelo companheirismo sincero e o brilhantismo
no olhar e nas contribuições diretas e indiretas sobre o viver e sobre as críticas sempre
bem-vindas a meu trabalho. Aos colegas da Secretaria Acadêmica do IEL, pela
dedicação, honestidade, educação e presteza nas orientações burocráticas várias,
em especial ao colega Cláudio, pelos diversos e-mails pontual e prontamente
respondidos. A todos os colegas de academia que, certamente, contribuíram
imensamente para a formulação deste trabalho. Dedico este trabalho especialmente
a meu orientador, prof. Eduardo Guimarães, pelo brilhantismo notório do olhar e pela
paciência em ensinar, corrigir cada trecho deste trabalho como se a seu próprio, acima
de tudo, um exemplo de humildade dada sua grandeza e importância para todos os
colegas dessa militância que é atuar com semântica no Brasil. Minha dedicação se
estende também especialmente a prof.ª Débora Massmann, membro titular de minha
banca e que com todo carinho e competência, desde o início, na qualificação,
incentivou-me a seguir nesse caminho analítico-crítico do direito; e também ao prof.
Emílio, meu mestre em abstrações! Emílio é daqueles mestres a quem chamamos de
um bon vivant. Também a prof.ª Claudia Freitas e Ana Cláudia pela disposição em
contribuir. Enfim, a todos e todas que, direta ou indiretamente, contribuíram para
minha formação acadêmica. Salve Nietzsche, Marx e Engels!
RESUMO
O princípio do controle jurisdicional de constitucionalidade é o sistema pelo qual o ordenamento jurídico visa conservar a soberania da Carta Magna, pela ascendência de suas regras e costumes e pela verificação da compatibilidade vertical das normas infraconstitucionais em relação a ela. Este trabalho procurou analisar semântico- enunciativamente, de forma comparada, os textos jurídicos Constituição Federal do Brasil de 1988 e Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14), tomando-os enquanto acontecimentos de enunciação. Dessa forma, procurou demonstrar, pelo “primado da diferença” de viés enunciativo, que a relação entre esses dois textos não se dá como uma conformação, mas sim como uma diferença, o que faz da tentativa de controle constitucional, na verdade, um controle de sentidos, o que afeta todo o sistema hermenêutico-jurídico. A questão do sentido é, portanto, tratada dentro dos domínios da semântica do acontecimento e, por isso, entendida como relativa ao estudo das relações de integração tanto entre os elementos e seus respectivos enunciados quanto entre estes e o texto de que fazem parte, determinados por modos de significar específicos da temporalidade própria do acontecimento de enunciação. Nessa perspectiva, a análise metodológica do presente trabalho foi realizada através de procedimentos que consideram os enunciados recortados como núcleos desses corpora, sendo (a análise) realizada por recortes em trabalhos de sondagem orientados pelo funcionamento da língua, principalmente em dois modos de relação fundamentais: o de articulação e o de reescrituração.
PALAVRAS-CHAVE: Semântica; Controle de constitucionalidade; Significação; Sentido; Direito-Linguagem.
ABSTRACT
The principle of jurisdictional control over constitutionality is the system by which the legal system seeks to preserve the sovereignty of the Constitution by ascending its rules and customs and verifying the vertical compatibility of infra-constitutional norms in relation to it. This paper sought to analyze semantically and enunciatively, comparatively, the legal texts Federal Constitution of Brazil of 1988 and The Brazilian Civil Rights Framework for the Internet (Federal Law 12.965/14), taking them as events of enunciation. Thus, it sought to demonstrate, by the "primacy of difference" of enunciative bias, that the relationship between these two texts does not occur as a conformation, but rather as a difference, which makes the attempt at constitutional control in the indeed, a sense control , which affects the entire hermeneutic-legal system. The question of meaning is, therefore, dealt with within the semantic domains of the event and, therefore, understood as related to the study of the integration relations between the elements and their respective utterances as well as between them and the text of which they are part. by ways of meaning specific to the temporality proper to the event of enunciation. From this perspective, the methodological analysis of the present work was performed through procedures that consider the cut-off statements as nuclei of these corpora (the analysis) operated by cuttings in sounding- oriented probing works, mainly in two modes of relationship fundamental: articulation and rewriting.
KEYWORDS: Semantics; Constitutionality Control; Meaning; Sense; Law-Language.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CF/88 – Constituição Federativa do Brasil de 1988
MCI – Marco Civil da Internet
FNS – Formação Nominal Sujeito
FN – Formação Nominal
FP – Formação predicativa
GN – Grupo Nominal
CLG – Cours de linguistique générale
EC – Emenda Constitucional
ADin – Ação Direta de Inconstitucionalidade
L – Locutor
LT – Locutário
al-x – alocutor-x
at-x – alocutário-x
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................................ 11
2. A SEMÂNTICA DO ACONTECIMENTO: UMA BREVE INTRODUÇÃO................... 18
2.1. A natureza científica da linguística ..................................................................................... 18
2.2. Bases para uma análise semântico-enunciativa das leis ............................................ 22
2.3. O Texto como acontecimento de enunciação ................................................................. 23
3. RELAÇÕES ENTRE SEMÂNTICA E DIREITO ................................................................ 27
3.1. A Natureza ontológica do direito ......................................................................................... 27
3.1.1. O direito como uma téchne .............................................................................................. 39
3.2. Controle jurisdicional de constitucionalidade: o acontecimento como conformação .......................................................................................................................................................45
3.2.1. O modus de interpretar do ordenamento jurídico ..................................................... 46
3.2.2. O controle como paradigma interpretativo .................................................................. 61
3.3. Marco Civil da Internet e Constituição Federal como acontecimentos enunciativos .......................................................................................................................................................67
3.4. Configurações da cena enunciativa e espaço de enunciação jurídicos ................. 74
3.4.1. O político e a enunciação no Marco Civil da Internet e na Constituição Federal do Brasil de 1988 ............................................................................................................................. 76
3.5. Agenciamento da enunciação no acontecimento jurídico ........................................... 79
3.5.1. Análise do acontecimento produzido pelo dizer jurídico em cenas enunciativas ..................................................................................................................................................81
4. ANÁLISE SEMÂNTICO-ENUNCIATIVA DA LEI 12.965/14 E DA CONSTITUÇÃO FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 ......................................................................................... 86
4.1. Apresentação do objeto e do procedimento de análise ............................................... 86
4.2. Análise do preâmbulo da lei 12.965/14 ............................................................................. 88
4.4. Análise com base nas reescriturações enumerativas do texto da lei ...................... 99
4.5. O artigo 19 da lei 12.965/14 na perspectiva dos modos de relação da articulação e da reescrituração ....................................................................................................................... 114
4.6. O artigo 9º e o enunciado-título da FN neutralidade da rede ................................... 125
4.7. Análise do preâmbulo da Constituição Federativa do Brasil de 1988 ................... 134
4.8. Análise comparada dos acontecimentos CF/88 e Lei 12.965/14: relação por conformação e por diferença ..................................................................................................... 141
5. CONCLUSÕES ......................................................................................................................... 147
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................ 152
11
1. INTRODUÇÃO
A “necessidade” de regulação da ordem social é tema que atravessa
séculos. Isto porque, como não se sabe se é a necessidade que cria a situação ou é
a situação que cria a necessidade, as relações sociais foram, desde os meados do
século passado, impactadas pelas diversas demandas advindas das mais diversas
formas de transformações nos mais diferentes usos tecnológicos. A internet passou
de espaço virtual das mais diversas formas de “liquidez humana” a espaço de relações
tão judiciáveis quanto os espaços não virtuais.
No Brasil, país que ocupa há tempo o topo de ranking de acesso à rede
mundial, os denominados espaços virtuais foram efetivamente judicializados
(judicialização de espaços virtuais) quando a “forma de ocupação” de seus usuários
começou a atingir espaços alheios e culminar em demandas por direito e deveres. Por
outro lado, houve a necessidade da criação de um Marco Civil que regulasse tais
relações, o qual trouxe consigo demandas que vão além do direito.
Esse pano de fundo enseja outras relações, como dito, para além daquelas
imediatizadas por uma relação lógica materializada pela forma ação-reação, uma vez
que traz à baila discussões de ordem não apenas jurídicas, econômicas e políticas,
mas também linguísticas, no caso em particular, semânticas. Isto porque não se trata
de relações meramente empíricas, adstritas ao campo de uma “prática” virtual, mas,
antes, de relações simbólicas de classes definidas na língua, em cuja materialidade
encontram-se dispostas as diferentes “facetas” do real. No cerne destas relações,
também estão a semântica e o direito, enquanto objeto da ciência jurídica.
Não é de hoje que os diferentes campos da linguística se inclinam para o
estudo analítico das mais diferentes áreas do saber. No entanto, quando buscamos
estudos mais específicos, como o das relações entre uma ciência da linguagem e uma
ciência jurídica, apesar de parecerem acessíveis e óbvias, demandam esforços
maiores que o esperado. Principalmente se o trato primar pelas especificidades, tanto
da linguística quanto da ciência jurídica. Esta aproximação nos conduz
obrigatoriamente a duas consequências: de um lado, a perguntar que lugar ocupa o
Direito nesses entremeios; de outro, a uma espécie de “ajuste epistemológico”
12
(admitindo a dificuldade do proposto) para a definição dos “papéis” e lugares que estas
disciplinas, ou estes diferentes domínios do saber, ocupam nesta pesquisa.
Há vários motivos para se tentar explicar essa dificuldade, mas o que
aparece de sobressalto é o fato de que esses domínios de conhecimento são
fundamental e historicamente distintos num aspecto, o epistemológico. No lado
linguístico, por uma epistemologia que, desde Saussure1, encontra-se fundada numa
forma de conhecimento baseada na constituição de um objeto específico para a
linguística, a língua. Isto em Saussure, que abre um novo caminho na história dos
estudos da linguagem, com a produção de procedimentos específicos de análise. Com
ele, exatamente na caracterização da linguística, esta é colocada como ligada à
semiologia, ou seja, o estudo da linguagem é um estudo da significação, em última
instância. Saussure constitui isso a partir de um conceito como o de signo,
caracterizado por uma relação arbitrária entre seus elementos, o que se articula com
a noção de valor do signo e de seus elementos, colocando a questão da significação
como algo do plano das relações de linguagem.
No lado da ciência jurídica, observamos uma espécie de epistemologia que,
a partir da relação sujeito-objeto, trata o conhecimento como produto de uma
“transferência de propriedades” do objeto para o sujeito, para quem a coisa conhecida
é parte integrante de um sujeito cognoscente. Com base nestes termos, dizemos: a
ciência jurídica se apresenta como uma ciência social inexata de paradigma
metafísico-jurídico, dada a dinamicidade de seu objeto, o direito. Além disso, como
veremos, o princípio dessa ciência é o de sustentar verdades. Vamos desenvolver um
pouco mais este aspecto.
Ao tratar das tarefas atinentes à teoria geral do direito, Pachukanis (1988)
mostra como os conceitos ligados a qualquer domínio do direito são eminentemente
abstratos. Para o autor, as categorias jurídicas abstratas e fundamentais do direito
positivo não dependem do conteúdo concreto das normas jurídicas, de caráter
espontâneo das relações jurídicas e das normas, isto porque tais categorias
conservam sua significação mesmo diante das alterações ocorridas no conteúdo
material concreto do direito. Assim, para os neokantianos, as categorias jurídicas
1 Ferdinand de Saussure.
13
fundamentais representam uma realidade situada acima da experiência, de modo que,
o sujeito e o objeto das relações jurídicas, por exemplo, representam o a priori da
experiência jurídica, quer dizer, categorias independentes do sujeito e do objeto desta
ciência. Assim, a relação jurídica é a condição indispensável e única da ciência
jurídica. Não há, pois, ciência sem relação jurídica.
Desse modo, para um neokantiano, “a ideia do direito” não precede a
experiência, mas sim, após a experiência “prática”, o direito enquanto abstração.
Deve, pois, uma teoria científica do direito ocupar-se dessas abstrações? Para alguns
autores, há uma clara distinção entre uma jurisprudência dogmática e uma disciplina
prática, em certo sentido técnica (PACHUKANIS, 1988). O autor cita Karner para dizer:
“onde acaba a jurisprudência aí começa a ciência do direito” (PACHUKANIS, 1988, p.
17). Seria a jurisprudência capaz de evoluir para uma teoria geral do direito?
Segundo o direito neokantiano burguês, há duas categorias opostas para
responder esta pergunta, a do Ser e a do Dever-Ser, que se traduzem enquanto duas
espécies de pontos de vista científicos: o explicativo e o normativo. O primeiro encara
os objetos sob o aspecto do seu comportamento empírico; o segundo considera os
objetos sob o aspecto das regras precisas exprimidas através deles. Ainda, segundo
Pachukanis (1988, p. 21), autores marxistas, em regra, quando tratam de conceitos
jurídicos, pensam “no conteúdo concreto da regulamentação jurídica adaptada a uma
determinada época (...) naquilo que os homens consideram como sendo o direito
nesse estágio da evolução.”
Pachukanis (1988) trata, portanto, do conceito de direito exclusivamente
em termos de conteúdo, sem nada a expor sobre a forma jurídica, não obstante
considere que a teoria marxista deve, além de examinar o conteúdo material da
regulamentação jurídica na história, dar uma explicação materialista dessa
regulamentação.
Numa direção relativamente diferente, Althusser (1999) retoma Marx e
Engels e apresenta três características apontadas por estes autores relativas ao
Direito. É de se notar que, quando da apresentação desses conceitos, o autor não faz
referência ao direito como uma “ciência do direito” ou “ciência jurídica”, uma não
referência que, segundo o que podemos depreender do texto, está ligada justamente
14
ao sentido dessas categorias do direito, que são: 1. A sistematicidade do direito; 2. A
formalidade do direito; e 3. A repressividade do direito.
O sentido de sistematicidade e formalidade estão ligados de tal forma que
aquela é apresentada como correlata desta. Assim, a sistematicidade do direito (dada
como uma impossibilidade de contradição entre as regras que o constituem) e sua
formalidade (dada enquanto uma formalidade personal, isto é, definida por atos
formais que dizem respeito a pessoas jurídicas formalmente livres e iguais perante o
direito, e não por uma formalidade moral) constituem o que Althusser (1999) chama
de universalidade formal: o direito é válido para – e pode ser invocado por – toda
pessoa juridicamente definida e reconhecida como pessoa jurídica (isso tem estreita
relação com o modo de divisão do real). Isso (quero dizer: essa não cientificidade do
direito) está mais claro na definição que o autor (p.83) atribui ao direito: “(é) um
sistema de regras codificadas (Código Civil, Código Penal etc.) que são aplicadas, isto
é, respeitadas e contornadas na prática cotidiana.”
O direito operaria, assim, por uma sistematicidade (dinâmica) que lhe é
própria, constitutiva, que é “contornada” pela prática social. Este sentido o aproxima
mais da língua e menos da linguística. Com isso, queremos dizer que, assim como a
língua (com sua sistematicidade e dinâmica próprias!) configura-se enquanto objeto
da linguística (dados o sujeito e a história), poderíamos dizer, então, que o direito
configura-se como objeto de “uma” ciência jurídica (dados o sujeito e a história).
Com base nestes elementos, além dos que serão doravante apresentados,
é que argumentamos no sentido de uma não cientificidade do Direito. Por isso,
distinguimos, como o fazem alguns juristas, “direito” de “ciência do direito’ (termo que
não usei em meu trabalho) ou “ciência jurídica”. O direito é, assim, uma téchne, em
termos aristotélicos.
Neste trabalho, propomos a análise semântico-enunciativa de uma relação
dada em termos de linguagem muito específica entre dois textos jurídicos de grande
importância para sociedade hodierna: o texto da “Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988” e o do “Marco Civil da Internet de” (Lei 12.965 de 2014),
cuja escolha orientou-se pelo que representa a Constituição para o ordenamento
jurídico, enquanto um fato social implicado historicamente pelo processo de
15
redemocratização brasileiro e, no lado do Marco Civil, por sua indiscutível
materialidade, representativa que é de uma inflexão nos modos de relação social na
ordem transnacional, dada uma divisão internacional de diferentes fatores sociais.
Para tanto, apresentamos, a partir da semântica do acontecimento, de orientação
enunciativa e materialista, um estudo comparativo desses textos, a partir de uma
análise que seja capaz não só de demonstrar suas possíveis diferenças, como
também, e na medida do possível, apontar os possíveis desdobramentos sociais
decorrentes dessas diferenças.
A plausibilidade dessa análise assenta-se no fato de que, como
procuramos demonstrar desde o início, no capítulo 1, a teoria semântica de que
partimos possui particularidades que apresentam elementos capazes de demonstrar
e discutir os pressupostos presentes em outra ciência, seja por questionamentos, seja
por propostas de um novo olhar sobre determinados objetos. Para tanto,
apresentamos a semântica do acontecimento como “ferramenta” para uma possível
discussão relativa a algumas particularidades do direito, da ciência jurídica e do
ordenamento jurídico como um todo.
O capítulo 2, por sua vez, procura aprofundar uma discussão sobre a
natureza das ciências trazidas à baila pela análise. Assim, o conhecimento da
natureza da ciência jurídica e da ciência linguística tornam-se elementos fundamentais
para entender a comparação proposta no trabalho. No cômputo dessa
relação/discussão está o papel do direito que, como objeto da ciência jurídica, exerce
uma função fundamental para se entender como o discurso jurídico atravessa esse
modo de fazer jurídico (téchne) em sua relação com o lugar que produz conhecimento
para este fazer, a ciência jurídica. A questão é: como o sentido é tratado pela ciência
jurídica, consequentemente, pelo direito?
Ainda neste capítulo, que é elaborado com vistas à comparação entre
semântica e ciência jurídica, pensada a partir de sua disciplina prática, o direito,
discutimos que relações são possíveis se pensar a partir da comparação entre a Lei
12.965/14 (Marco Civil da Internet2) e a Constituição da República Federativa do Brasil
2 Esta expressão será doravante e eventualmente abreviada por MCI/14
16
de 19883. Isso para pensar a relação entre os textos infraconstitucionais e o
constitucional, isto é, como o sentido é pensado e operado dada uma relação entre
estes textos pautada no princípio do controle jurisdicional de constitucionalidade? Que
bases teria a teoria da constitucionalidade para afirmar que é possível tratar o sentido
da norma infraconstitucional como identificado, conformado ao texto constitucional?
O campo ou seção destinado a guardar a aplicação propriamente dita do
procedimento analítico da teoria semântico-enunciativa, no capítulo 3 deste trabalho,
destinou-se, por meio de suas ferramentas de análise, a apresentar, por meio de
sondagens seguidas de recortes dos textos jurídicos comparados, como se dá o
funcionamento dos diversos mecanismos por meio dos quais a significação e o sentido
são trabalhados em uma semântica enunciativa. Por isso, a análise investigou quais
as relações e inferências não previstas pela Teoria do Direito em seu rol de
procedimentos interpretativos e, a partir do método comparativo, procurou demonstrar
e questionar os princípios da constitucionalidade das leis. Assim, a análise, a título de
exemplo, dos artigos 2º, 3º, 9º e 19 do Marco Civil e do artigo 5º da CF/88 (dos direitos
sociais), além da análise do preâmbulo de ambas as leis, conduziram a investigação
para as primeiras respostas às indagações feitas, no início, em relação ao objeto de
pesquisa.
Este caminho permitiu algumas inferências, entre elas, algumas que deram
conta de como o sentido pretendido pelo controle de constitucionalidade deve ser
discutido se considerados outros domínios de conhecimento, neste caso, o caminho
oferecido pela semântica do acontecimento. Por isso, em termos de significação, resta
discutir se a passagem de um texto a outro se dá por uma conformação, o que
confirmaria os preceitos do controle jurisdicional, ou se tal passagem se dá por uma
diferença, o que, no limite, permitiria colocar o conceito de controle de
constitucionalidade “em suspenso”, do ponto de vista da análise.
Isto posto, espera-se que a presente pesquisa tenha condições de
expressar e demonstrar os liames existentes entre a linguagem jurídica, afinal direito
é essencialmente linguagem, e o social e, nessa medida, demonstrar também que a
semântica enunciativa, enquanto disciplina linguística e social, seja capaz de abrir
3 Esta expressão será doravante e eventualmente abreviada por CF/88
17
caminhos para uma reflexão prática em direção às práticas sociais, isto é, em direção
às ideologias que funcionam e movimentam as instituições sociais em geral. Segundo
Streck (2000, p.29), “é no quadro da matriz hermenêutico-linguística que então terá
que ser compreendida a condição essencial do direito na sua relação com a
sociedade.” A hermenêutica jurídica refere e designa um mundo prático, material,
ideológico, e é nesse quadro que deve atuar a Semântica Enunciativa oferecendo
alternativas à sociedade.
18
2. A SEMÂNTICA DO ACONTECIMENTO: UMA BREVE INTRODUÇÃO
2.1. A natureza científica da linguística
Em princípio, não há razão, nem necessidade, para que a linguística se
preocupe em defender seu status científico, ainda que diante da inquestionabilidade
do status de outras disciplinas como a física, a biologia ou a química (LYONS, 1981)
e do fato de que tenha, desde Saussure, um objeto definido. Outro fato é que, em
relação a este objeto, a ciência linguística percorreu caminhos “naturais” de uma
ciência, seja em relação às insatisfações próprias de uma ciência (veja-se o caso dos
estudos semânticos), seja em relação ao que Vogt (1977) chama de divisão do
universo fenomenológico (língua/fala) operado por linguistas teóricos ao longo dos
anos, que redundou em inflamadas discussões a respeito das conhecidas dicotomias
funcionais, que levaram, por si mesmas, a disparidades de opinião em torno da
natureza do objeto linguístico.
O uso que faço da expressão natureza científica no título deste capítulo não
é empregado enquanto uma defesa do caráter científico da Linguística, inclinação
praticamente “desnecessária” em nossos dias, mas como um modo de tratar da
especificidade de sua natureza, o que a diferencia de outras ciências. Não obstante
isso, para fins de esclarecimento e de contextualização, proponho, de início, uma
breve reflexão histórico-conceitual de sua cientificidade para, em seguida, tratar dos
aspectos mais específicos de sua natureza.
O primeiro capítulo do Cours de linguistique générale (CLG), obra póstuma
do mestre genebrino Ferdinand de Saussure, organizada por seus alunos Charles
Bally e Albert Sechehaye, já em seu primeiro parágrafo, trata a palavra ciência,
acompanhada da palavra objeto, o que reflete, de saída, a preocupação de Saussure
em apresentar uma profunda reflexão sobre a importância e preocupação em se
apresentar um objeto e um método em uma ciência humana. Tal uso correspondia,
segundo Bouquet (2004), entre outras coisas, a uma das preocupações do autor com
a cientificidade da linguística, a qual refletia um movimento europeu, à época, de
positivação dos objetos de estudos humanos, que permeou o período compreendido
entre os séculos XIX e XX.
19
Com efeito, não há razão, atualmente, para se construir um conjunto de
argumentos no sentido de defender o status científico da linguística. Porém, muito há
que se falar a respeito da natureza desse estudo científico da linguagem, dada sua
importância e abrangência no cômputo das ciências naturais, além de sua
repercussão nos estudos relativos a outros campos da ciência.
Parece lugar comum entre linguistas o fato de que, mesmo tendo percorrido
caminhos anteriores e posteriores a Saussure, a ciência linguística tem em seu
estudo, especificamente no Cours (pensado aqui com breve apriorismo) o epicentro e
o ponto de partida para o entendimento de sua natureza, a de uma linguística
propriamente dita. E, se eventualmente pensarmos em alguma forma de
estruturalismo ligado à linguística, entenderemos por estruturalismo, alinhado à
Hjelmslev (1991), uma posição científica que estuda a linguagem/língua, cuja
essência é a de uma entidade autônoma de dependências internas, isto é, uma
estrutura.
Por outro lado, evocar Saussure aqui implica apontar, como o fez Vogt
(1977) ao tratar do conceito de intervalo semântico, tanto riquezas quanto as
limitações no desenvolvimento de uma das principais disciplinas da linguística, a
semântica. Ocorre que, ao postular seu status de ciência, a linguística tem de assumir
a divisão de seu universo fenomenológico, operada por seu universo teórico. Dessa
divisão, nascem dicotomias funcionais, tais como sincronia/diacronia,
sentido/significação, enunciado/enunciação e, com destaque, a dicotomia língua/fala.
É justamente a partir desse corte, operado na definição da linguística como ciência,
que surge o mote de que seu objeto é a língua, e não a fala, a competência e não a
performance (VOGT, 1977). Para o autor, a distinção língua/fala recobriu,
historicamente, a fala como sendo o termo negativo, o que abriu espaço para que
outras ciências, e não a linguística, tentassem explicá-la.
De volta a Saussure, sabe-se que é considerado o fundador da linguística
moderna e, ainda que o estruturalismo não tenha sua origem nesse autor, Lyons
(1990, p.11) nos mostra que sua importância consiste em formular bases
fundamentais para a cientificidade linguística:
20
[...] as bases de sua cientificamente tese estruturalista são que uma língua é uma estrutura relacional única, ou sistema, e as unidades que identificamos ou postulamos como construções teóricas, ao analisar a frase de uma língua particular (sons, palavras, significados, etc.), derivam tanto a sua essência como a sua existência das suas relações com outras unidades do mesmo sistema linguístico.
Segundo Paul Henry (1992, p. 14), a questão de Frege sobre a
pressuposição em torno da ciência ou ilusão na linguagem ordinária, ainda que não
mais aceitável hoje, permanece. Isto porque
“a consolidação das posições materialistas em epistemologia e em história das ciências transforma os pontos de vista sobre o que Frege chamava ciência (e ilusão); a começar pelo que concerne à própria linguística e à característica de seu objeto”
Dessa forma, para autores como Henry, Pêcheux e Gadet, a cientificidade
não é colocada em termos estruturais, mas em termos materiais, isto é, enquanto uma
materialidade de língua. Tanto que Gadet e Pêcheux (2004) afirmam que o objeto da
linguística é o “real da língua”. Segundo estes dois autores, “a linguística não poderia
se reduzir a uma concepção de mundo. Ela comporta intrinsecamente uma prática
teórica que toma a língua como objeto próprio”, isto é, o objeto é este real da língua,
mais precisamente, de uma prática linguística que trabalhe a relação da materialidade
da língua com a materialidade da história.
Conforme Lyons (1982, p. 48), “o empirismo é muito mais do que a adoção
de métodos empíricos de verificação e confirmação”, sua natureza remete-se ao fato
de que o conhecimento provém da experiência, especificamente de dados da
percepção e dos sentidos, indo de encontro ao racionalismo, para quem a mente
interpreta os dados da experiência. Segundo Hjelmslev (1991, p. 33), “o método
‘cientificamente legítimo’ se resume, em última análise, ao método empiricamente
adequado”.
Nesse campo, eleva-se em importância os questionamentos trazidos por
Milner (2012, p. 9) ainda no prefácio de sua obra:
21
[...] por um lado, porque eu sequer acreditava na epistemologia: se Koyré e Lacan têm razão, e a ciência, desde Galileu, é apenas um campo característico para a observação, em função da combinação de dois caracteres – constituição de uma escrita matematizável e validação de toda técnica eficaz -, então a questão epistemológica fundamental “tal conjunto de proposições é uma ciência?” revela-se não tendo como ser mais frívola; basta esclarecer se essas proposições pertencem ao campo da ciência, isto é, se apresentam as características requeridas. [...] Isso porque, se é preciso que o marxismo seja ciência, vemos justamente que a ciência não teria como ser definida modernamente: onde está a escrita do marxismo, onde está a técnica que ele validaria?
Isso posto, caberá aos linguistas questionarem-se quando da “imposição”
da nomenclatura “ciência”, em nome de um cientificismo nomenclatural e vazio, contra
a objetividade da pesquisa em uma área que tem mais a mostrar enquanto área com
um objeto bem definido. Os questionamentos de Milner (2012) levam exatamente a
esse tipo reflexão, justamente porque “nós”, linguistas, podemos correr o risco de, em
nome da ciência, esquecermos o que há de mais fascinante na linguagem: o objeto
indicado, desde Saussure, até os dias atuais.
Não pode, nem deve, o status científico tomar conta da dinâmica imanente
do objeto científico da linguística. Ou seja, independentemente de classificações, a
linguística não perderá seu status, qual seja, o de tratar a linguagem como nenhuma
outra ciência o faz. Segundo Pêcheux (1988, p. 172), “a história da produção dos
conhecimentos não está acima ou separada da história da luta de classes”. Para o
autor, que postula contra um cientificismo de cunho idealista, “a produção histórica de
um conhecimento científico dado [deve ser pensada] como o efeito (e a parte) de um
processo histórico determinado, em última instância, pela própria produção
econômica”.
Para o autor francês, não há que se falar em uma formulação do
conhecimento científico alijada da história, por isso, ao se romper a epistemologia e
se reconhecer a forma-sujeito do discurso, chega-se a uma conclusão importante no
discurso: não há “discurso científico” puro.
22
2.2. Bases para uma análise semântico-enunciativa das leis
Em O aparelho formal da Enunciação4, Émile Benveniste (1974) postula
logo de saída, em sua tese sobre a linguagem, que a enunciação ocorre no
funcionamento da língua, diferente do que ocorre no modo e nas condições de
funcionamento de emprego das formas. Desse modo, a enunciação, segundo o
linguista francês, caracterizar-se-ia por “este colocar em funcionamento a língua por
um ato individual de utilização” (Ibidem, p. 82), isto é, ela é “o evento do aparecimento
de um enunciado” (GUIMARÃES, 2002). A questão que se coloca, contudo, é a
que/quem este funcionamento está reportado, se a um locutor, se a uma centralidade
do sujeito ou a qualquer outra rubrica. Nas últimas décadas, esta questão é colocada,
muito particularmente, por uma abordagem teórico-metodológica denominada
Semântica do Acontecimento (GUIMARÃES, 2002).
Assim colocada, a questão fundamental relativa ao objeto da ciência
linguística passará a girar em torno então de uma órbita que incidirá, e implicará,
segundo o que assevera Guimarães (2002), diretamente naquilo que se define por
língua e sujeito. De modo que o que se coloca pelo viés de uma semântica do
acontecimento é a possibilidade de um funcionamento enunciativo da língua não
operado por um locutor ou por uma centralidade no sujeito, a partir do que fora
colocado por Ducrot (1984) em sua teoria da polifonia da enunciação. Posto dessa
forma, o acontecimento, ainda que um acontecimento de/na língua, não é operado por
um sujeito em direção à língua, como um fazer histórico, e sim como um sujeito
constituído (historicamente) por um funcionamento cuja essência encontra-se na
reprodução de sua própria constituição como sujeito (GUIMARÃES, 2002). Assim, o
acontecimento, que é caracterizado como o que faz diferença na sua própria ordem,
constitui-se enquanto espaço de enunciação, o qual se constitui pelo funcionamento
da língua/línguas, funcionamento este que agencia falantes a dizer, os quais são
definidos enquanto figuras denominadas lugares de enunciação (GUIMARÃES,
2018).
4 O texto faz parte da obra Problemas de Linguística Geral vol. 2, do mesmo autor, em seu capítulo 5, edição de 1989.
23
Outro ponto importante aqui é o fato de que, em não havendo um contexto
que induza este ou aquele acontecimento, ou que interfira em seu
funcionamento/processo, deduz-se que há um acontecimento que, de fora, põe a
língua em funcionamento, em virtude de sua relação como o que Guimarães (2018)
chama de falante. Nenhuma dessas postulações seria possível sem um olhar atento
sobre a história da constituição da semântica, no final do século XIX, como disciplina
das significações.
A análise linguística da qual parto neste trabalho tem suas bases
principalmente nos trabalhos de Emile Benveniste (1989) como vimos, e de Michel
Bréal (2008). Além desses autores, importa observar inclusive, ao longo deste texto,
que contribuições há no trabalho de Oswald Ducrot (1972), principalmente no que diz
respeito à sua concepção de língua e de atos de fala, especificamente nas interfaces
que estabelece com a corrente pragmática e com a saussureana.
De início, sabe-se que, e isso se mostrou ao longo dos anos seguintes ao
final do século XIX, noções como sentido, referência e significação, entre outras
igualmente fundamentais à linguagem, fazem parte de um conjunto complexo de
conceitos pertencentes principalmente à semântica, mas que, por razões diversas,
não deve nem se limita a textos específicos, isso inclui, portanto, os textos jurídicos
como textos fundamentalmente importantes sobre os quais deve inclinar a análise
semântica.
2.3. O Texto como acontecimento de enunciação
As reflexões sobre o sentido nas línguas e na linguagem, do ponto de vista
enunciativo, colocam no epicentro dessa discussão a relação falante(s) e língua(s).
No percurso dessa busca, aparece o texto como modo fundamental de construção da
abordagem teórico-metodológica denominada Semântica do Acontecimento, tal como
apresentada brevemente acima.
24
Conforme demonstrado em sua obra intitulada Texto e Argumentação,
texto de 1987, Guimarães (2001) trata da “centralidade do texto” na reflexão que faz
do fato de linguagem que os Estudos da Enunciação, com Oswald Ducrot e J. C
Anscombre, introduziram como questão para a Linguística, conforme apontado por
Oliveira (2012). Em rápidas palavras, ocupar-nos-emos aqui em demonstrar como o
texto, enquanto unidade complexa em relação de integração com seus enunciados,
pode ser considerado um acontecimento de enunciação.
Um dos pontos importantes nos estudos enunciativos é a noção de
argumentação, que não é tratada segundo uma relação entre enunciados, mas a partir
da organização textual dada pela enunciação. Por uma questão de escolha
metodológica, ainda que não nos utilizemos da argumentação, a análise partirá do
texto considerado enquanto acontecimento de enunciação em cujo interior os sentidos
são determinados por diferentes modos de relação. Portanto, essa teoria assenta-se
numa noção de texto segundo a qual duas questões devem ser consideradas: a) de
um lado, deve-se levar em conta que há um acontecimento de leitura; e b) há um
acontecimento de enunciação em que o texto foi enunciado. É em relação a este
segundo fato de linguagem que o presente trabalho eminentemente debruça-se
(GUIMARÃES, 2013).
A posição semanticista assumida aqui trata de colocar uma especificidade
importante: a noção de texto não é, nem deve ser entendida ou reduzida àquilo que
ele simplesmente refere, ou a aspectos meramente formais ou a uma noção de
textualidade local entendida por relações referenciais internas de coerência capazes
de sustentar a posição interpretativa de que um determinado leitor, por sua leitura,
buscaria encontrar algo escondido no texto, uma intenção, uma ideia, uma “moral”.
Por esta posição, a de semanticista, escolhemos certos “aspectos” da linguagem e, a
partir deles, procederemos às análises que se projetam, uma sobre as outras, levando
a uma interpretação sustentada do texto. (GUIMARÃES, 2013).
Ora, se assumimos com Guimarães (2007) o fato de que o sentido de um
enunciado estabelece-se numa relação entre elementos linguísticos e o texto, e
também entre textos, enquanto unidade integrativa de que esses fazem parte, então
podemos igualmente assumir, e afirmar, que o texto, para além de suas peculiaridades
formais “já conhecidas”, é o próprio acontecimento e, além disso, ser capazes, à luz
25
da teoria, de responder à pergunta: o que é o acontecimento na perspectiva
semântico-enunciativa?
Guimarães (2002, p. 11) considera que “algo é acontecimento enquanto
diferença na sua própria ordem”. Quer isso dizer que o que caracteriza este
acontecimento de linguagem é a diferença de que não se trata de um fato acontecido
e recortado pelo tempo no qual estaria inserido, mas o fato de que ele (o
acontecimento) é que temporaliza, pela linguagem. Um acontecimento de enunciação
não é, portanto, um fato novo num tempo linear, dado por uma sucessão lógica, linear,
mas um fato de linguagem que funciona enquanto uma diferença que temporaliza na
enunciação de que constitui. “O acontecimento instala sua própria temporalidade:
essa é a sua diferença” (GUIMARÃES, 2005c, p. 11).
Assim, importa salientar que Guimarães (2005c) distancia-se do
posicionamento benvenisteano, segundo o qual o tempo da enunciação constitui-se
pelo locutor ao enunciar. De modo que, para o autor da semântica do acontecimento,
o presente do acontecimento não é o tempo no qual o locutor diz eu, em que se
inaugura uma temporalidade, “fundada” por um sujeito. Este sujeito não é, portanto, a
origem do tempo da linguagem, mas uma figura enunciativa tomada na temporalidade
do acontecimento, na materialidade histórica.
Outro ponto é: como entender a natureza dessa temporalidade inaugurada
pelo acontecimento na enunciação? Ela, a temporalidade, configura-se enquanto um
presente que abre em si uma latência de futuro, que atribui projeção ao
acontecimento, o que seria sua “interpretabilidade”. Há, assim, no dizer, um depois
incontornável e próprio dele, contra o qual não há argumento, contornos ou rearranjos.
Ao definir enunciação, Guimarães (2018, p. 37, grifo nosso) o faz a partir
de uma associação necessária com o conceito de acontecimento. Define-o, então,
enquanto uma instância diferencial de ordem temporal própria, não empírica (não é
um fato em si), ordem esta que lhe atribui o sentido específico de sua ocorrência. Diz
o autor:
Esta definição considera, de um lado, que o acontecimento não pode ser visto como algo empírico, como se acontecimento fosse, simplesmente, o fato de que algo ocorre. Por exemplo, um ônibus colidir com um prédio seria um acontecimento, que poderia ser descrito pelo enunciado um ônibus bateu no
26
prédio. A definição de acontecimento aqui considerada, diversamente dessa posição empirista, exige que algo seja relacionado a uma certa ordem que lhe atribui uma significação. Uma batida de um ônibus num prédio pode ser um ato que é parte de um roubo de um banco por uma quadrilha de ladrões, por exemplo, ou um acidente de trânsito. Num caso a colisão do ônibus é parte do acontecimento do roubo, no outro a colisão é um acontecimento no trânsito da cidade. Assim a ordem em que algo é considerado é que lhe dá o sentido de acontecimento específico.
Desse modo, dizemos, com Guimarães (2018), que é justamente o fato de
o acontecimento ser estabelecido a partir de uma diferença em sua própria ordem
(inaugurar seu próprio tempo) que é o que leva a caracterizar a enunciação. Dessa
forma, aquilo que é analisado deve estar circunscrito, dimensionado e, nesta
dimensão, o acontecimento será caracterizado. Aquilo que ocorre é acontecimento na
medida em que é tomado por suas especificidades numa dada história. É nesta
medida que o que ocorre será um acontecimento diferente.
Outro ponto apontado por Guimarães (2018, p. 38) é que o que torna um
acontecimento específico, dado um universo qualquer, isto é, o que dá especificidade
ao que ocorre, é “uma temporalidade de sentidos: um passado, um presente e um
futuro.” Justamente por isso, como dito acima, o acontecimento não está no tempo,
mas na constituição de sua própria temporalidade. Assim, o passado do
acontecimento não é algo anterior, mas o sentido de enunciações passadas; enquanto
que o presente é o próprio da relação de enunciação e seu autor e, por fim, um futuro
de sentidos que o acontecimento projeta.
Apoiados nessas considerações, dizemos que o texto, enquanto integrado
que está por enunciados, é uma unidade complexa não unívoca que se caracteriza
como o próprio acontecimento, objeto de nossa análise. No nosso caso, tomaremos
os textos “Constituição Federal do Brasil” e “Marco Civil da Internet” (Lei 12.965/14)
como acontecimentos, consideradas suas peculiaridades enunciativas e,
posteriormente, comparados segundo os critérios e objetivos da presente análise.
Assim, nos ocuparemos, por hora, em definir, brevemente, cada um desses
acontecimentos/textos, consideradas suas peculiaridades históricas, discursivas e
linguísticas no interior da ciência jurídica e do direito. É imprescindível notar, para a
análise que segue, e para a definição do que seja sentido, partiremos do pressuposto
27
teórico de que “enunciar num acontecimento é dizer algo com sentido, que se produz
pela temporalidade própria de cada acontecimento.” (GUIMARÃES, 2018, p. 41).
3. RELAÇÕES ENTRE SEMÂNTICA E DIREITO
3.1. A Natureza ontológica do direito
Nesta seção, não trataremos da questão jurídica como uma epistemologia
jurídica, que tem “a incumbência de estudar os pressupostos, os caracteres do objeto,
o método do saber científico e de verificar suas relações e princípios” (DINIZ, 2014, p.
22). Antes, procuro entender seu caráter científico a partir das possíveis relações que
estabelece com a ciência linguística. Além disso, tratarei de analisar, ainda que
brevemente, na parte final, o ordenamento jurídico do ponto de vista
discursivo/semântico, na medida em que esse enviesamento analítico aproxime-se da
teoria semântica. Importa também frisar, de antemão, a diferença epistemológica
entre direito e ciência jurídica, uma vez que não consideramos o direito como ciência
(epistéme) mas sim como uma arte (techné), no sentido dado pelos gregos, isto é,
como uma “forma de conhecimento prático”, mais especificamente, como se deve
fazer algo. Este aspecto do direito será pormenorizado no capítulo seguinte.
Isso pode ser visto na distinção apresentada e operada por Diniz (2014) em
sua obra. Para a autora, uma introdução à ciência do direito é uma epistemologia
jurídica e, por isso, não deve ser tratada como uma alusão direta ao direito, mas sim
como uma alusão à ciência que trata dos fenômenos jurídicos, não devendo ser
confundida com o direito. Este é concebido pela autora como objeto da ciência jurídica.
Isso põe de início uma tendência que deveremos seguir relativamente a um de nossos
objetos, talvez o principal: trataremos, menos, de ciência jurídica e mais de seu objeto,
o direito, especificamente em seu “espaço funcional” mais próximo: o do ordenamento
jurídico. Por fim, a autora enuncia o seguinte: “quem trata do direito está elaborando
ciência jurídica, mas quem se ocupa com a ciência do direito está fazendo
epistemologia” (DINIZ, 2014, p. 162).
28
Reveste-se de interesse observar em que termos, segundo a autora, são
colocados os conceitos de conhecimento, sujeito e objeto. Para ela, conhecer é trazer
para o sujeito algo que se põe diante dele, que é o objeto. Nesse sentido, o
conhecimento é visto como um “conteúdo” e o sujeito um recipiente desse conteúdo,
a partir daquilo, o objeto, que se manifesta diante do sujeito, ponto do qual divergimos
em vários aspectos, como veremos. Primeiramente, porque não tratamos na
semântica enunciativa de um “sujeito do conhecimento”, mas sim de um sujeito da
linguagem; depois, porque o conhecimento não é identificado com um conteúdo, mas
sim pelo reconhecimento, inclusive pela linguística, do primado do ser sobre o
conhecimento (HENRY, 1992), dado na materialidade da língua. Vemos, assim, uma
relativa centralidade no sujeito nessas concepções jurídicas e, além disso, o
conhecimento operado pela transferência das propriedades do objeto em direção ao
sujeito pensante. O objeto, então, “representa” o conhecimento dentro do sujeito: um
conteúdo (DINIZ, 2014).
Com isso, temos uma correlação dada por uma reciprocidade invariável,
na qual o sujeito é dado por cognoscente e o objeto como cognoscível, entre aquele
que conhece e aquilo que é conhecido pelo sujeito, respectivamente. Há aqui uma
noção de passagem de um “eu” a sujeito cognoscente, em relação ao objeto que este
sujeito conhece. Assim, por estes termos, entende-se que este objeto a ser conhecido
não é um “em si”, mas dado a partir da relação que estabelece com o sujeito
conhecedor, isto é, este objeto conhecido é uma imagem e não algo do mundo
extramental. Por isso, o sujeito só é sujeito se identificado na relação com o objeto
apreensível e o objeto somente é objeto quando apreendido pelo sujeito (STRECK,
2000).
Em outro campo, agora o da ciência, a atribuição “científico”, para qualquer
área, é carregada de significado e determinadas implicações, e, no caso do direito,
não é diferente.
Se analisarmos a abertura do tema realizada por Diniz, observaremos
determinadas implicações recorrentes à noção de ciência no campo do direito (DINIZ,
2014, p. 33):
A ciência é, portanto, constituída de um conjunto de enunciados que tem por escopo a transmissão adequada de informações verídicas sobre o que existe,
29
existiu ou existirá [...] o conhecimento científico é aquele que procura dar às suas constatações um caráter estritamente descritivo, genérico, comprovado e sistematizado. Constitui um corpo sistemático de enunciados verdadeiros [...] Como não se limita apenas a constatar o que existiu e o que existe, mas também o que existirá, o conhecimento científico possui um manifesto sentido operacional, constituindo um sistema de previsões prováveis e seguras, bem
como de reprodução e inferência nos fenômenos que descreve. (grifo meu)
Vemos que, por essa visão de ciência, o que se apresenta com caráter de
objetividade, na prática, não se realiza como tal. Isso porque termos como “adequada”
e “verídica” têm, em si, conotações peculiares ao Direito. Assim, por essa visão, não
resta à ciência a transmissão de informações, mas também que circulem no interior
desse espectro veritativo, dados os parâmetros de cada área. Daí a ideia de “campo
sistemático de enunciados verdadeiros”. Por fim, o sentido da operacionalidade ligado
ao de inferência encontra-se sustentado no argumento da necessidade de
sistematização do conhecimento, o que dará o tom dos objetivos da natureza da
ciência jurídica.
A ideia de uma sistematização do direito vem de uma outra ideia, a de que
sua natureza não deve ser pensada como um mero “conjunto de normas”, e sim como
um sistema jurídico (FREITAS, 2004), sobre o qual este autor considera necessária
uma reformulação, em termos de significado e extensão, uma vez que seu conteúdo,
justamente por força dessa natureza valorativa, transcende o positivado.
Essa visão abarca em si, entre outros, o tema do textualismo, próprio das
discussões de hermenêutica jurídica, que, de alguma forma dialogam tecnicamente
(em termos de linguagem) com o que se concebe de direito enquanto ciência. Cabe,
então, perscrutar mais de perto esse sentido de sistema atribuído ao direito.
Para o próprio Freitas (2004), o direito positivo não deve ser considerado
um sistema fecha em si mesmo, isto é, à base de definições alheias ao mundo material
e históricos, enquanto, apenas, valores, mas sim como um sistema aberto. O autor
salienta que “como objeto de cognição e de compreensão, o sistema jurídico mostra-
se dialeticamente unitário, aperfeiçoando-se no intérprete (...) o sistema jurídico nem
é, nem pode ser fechado” (p.37), outorgando unidade ao ordenamento jurídico.
30
O sentido de sistema, aplicado que está ao ordenamento jurídico, carrega,
“por si mesmo”, uma “inexplicabilidade” suficiente para atribuir-lhe o estigma de ser
obrigatório, conforme a explicação de Freitas (2004, p.38)
[...] a validade do sistema jurídico, ou a sua conformidade com eventuais regras de reconhecimento (Hart), funda-se, em última instância, sobre valores, mostrando-se inegável a concorrência de múltiplos elementos axiológicos em todas as construções jurisprudenciais, justificando-se a multiplicidade como sinal de pluralismo democrático
Para o jurista, o direito deve ser considerado como interativo, pois sua
cognição não comporta rígida dicotomia entre sujeito e objeto. Neste ponto, em que
se inclui o sentido de sistema, vemos emergir a ideia de que o observador não deve
descrever objeto senão pela valoração deste, sem a qual, não pode inserir-se
cognitivamente na história. “(...) a sua materialidade (do direito) determina a forma,
prévia ou supervenientemente. E o sistema não se constrói dotado de estreitos e
definitivos contornos...”5. Isto é, não há, no sistema jurídico, rigidez absoluta entre o
formal e o material.
Ainda que atrelado ao ramo da hermenêutica jurídica, o sistema jurídico é
assim definido por Freitas (p. 54):
[..] uma rede axiológica e hierarquizada topicamente de princípios fundamentais, de normas estritas (ou regras) e de valores jurídicos cuja função é a de, evitando ou superando antinomias em sentido lato, dar cumprimento aos objetivos justificadores do Estado Democrático, assim como se encontram consubstanciados, expressa ou implicitamente, na Constituição.
Por essa definição de sistema, inferimos alguns pontos em que ela se
sustenta e dá a entender. a) uma rede de valores hierarquizados e baseada em regras;
b) um lugar em que se “evita” a contradição; c) o sistema jurídico é finalística e
5 Ibidem p.39
31
sistematicamente baseado na Constituição. Com isso, é preciso que as decisões
atinentes a essa área estejam consubstanciadas pelo Estado de Direito.
Para Diniz (2014), o saber científico deve se calcar numa ordem de
“constatações verdadeiras”, o que mostra como o direito pauta-se, do ponto de vista
sistêmico, por uma questão veritativa, chegando a equipará-lo aos elementos da
própria ciência. Compara-o, inclusive, a quesitos como “coerência interna” do
pensamento tipicamente jurídico consigo mesmo, com seu objeto e com operações
ligadas a cognoscibilidade.
Falar em uma ciência jurídica implica o trato de concepções
epistemológico-jurídicas, o que Diniz (2014) o faz ao colocar esta ciência, de modo
particular, como distinta por seu método e objeto. No caso do objeto, por exemplo,
ocorre a necessidade advinda de que toda ciência, em regra, assim como todo
conhecimento, pressupõe um objeto. E qual é o objeto da ciência jurídica?
A resposta dá-se pelo próprio da sistematização dessa ciência, isto é, pelo
que resulta desse processo. Assim, seu objeto é o direito propriamente dito, apesar
dessa opinião não ser um consenso entre juristas. Evidentemente, por conta desse
cisma entre operadores da ciência jurídica, o problema da cientificidade do saber
jurídico como questão epistemológico-jurídica não deve ocupar aqui maior espaço do
que cabe ao objeto deste trabalho, inclusive pelo fato de ser objeto de estudo
específico da filosofia do direito. Mesmo assim, vale ressaltar que esse ponto toca o
tema proposto em vários aspectos, especialmente naquele que nos interessa
diretamente aqui: a fundamentação de um modo particular de se operar em seu
interior um modo particular de designação, nos termos em que colocamos aqui este
termo, como veremos mais adiante.
Em um estudo realizado por Alves (2010 apud LOURENÇO, 2008, p. 77),
já se apontava de modo bastante direto as implicações dessa concepção unívoca
transferida para as concepções de linguagem dentro do campo da ciência jurídica.
Não existe ainda no Brasil uma linha de pesquisa consolidada que faça a relação direito/linguística, ficando as discussões em torno do discurso jurídico, sendo tematizada por e entre linguistas, enquanto que as investigações sobre a linguagem se dão no âmbito da hermenêutica jurídica, que a concebe como unívoca, e, portanto, estática. A interpretação jurídica consagra o logicismo e concebe o silogismo como cânone. Faz-se necessário enxergar a linguagem [no âmbito do direito] sob uma nova perspectiva (...) (grifo meu)
32
Pelo exposto, inferimos que a “fronteira” linguística-direito é ainda pouco
discutida em termos integrados. Além disso, a crítica que o autor faz da concepção
majoritariamente unívoca relativa à linguagem dá o tom da discussão em torno de
duas abordagens distintas, a serem notadas. Em outro ponto, agora o do campo
interpretativo do direito, essa fala evoca em si mesma o elemento lógico, ou mais
acentuadamente, logicista, que permeia a interpretação jurídica operada por juristas
e magistrados.
Nesse ponto, Streck (2000) demonstra como a partir do apontamento de
uma crise debelada de paradigma no direito, e na dogmática jurídica, instauradas no
campo de uma hermenêutica jurídica, que o social é frontalmente afetado, sendo esta
crise constitutiva do saber jurídico instrumentalizado pela ideia de que não há direito
senão por uma dogmática, que obstaculiza a prática do estado democrático de direito.
Colocado nos seguintes termos pelo autor (STRECK, 2000, p. 77-78):
É neste contexto – crise do paradigma do Direito e da dogmática jurídica – que devemos permear a discussão acerca dos obstáculos que impedem a realização dos direitos em nossa sociedade. Se é verdade a afirmação de Clève de que a dogmática jurídica é constituinte do saber jurídico instrumental e auxiliar da solução dos conflitos, individuais e coletivos, de interesses e que não há direito sem doutrina e, portanto, sem dogmática (...) À evidência, o Judiciário e as demais instâncias da administração da justiça são atingidos diretamente por essa crise. (...) Quando, porém, surgem questões macrossociais, transindividuais, e que envolvem, por exemplo, a interpretação das ditas “normas programáticas” constitucionais, tais instâncias, mormente o Judiciário, procuram, nas brumas do sentido comum teórico dos juristas, interpretações despistadoras, tornando inócuo/ineficaz o texto constitucional. Isto porque o “discurso-tipo” (Veron) da dogmática jurídica estabelece os limites do sentido e o sentido dos limites do processo hermenêutico.
Por este dizer, entendemos que, em princípio, não há como desvincular,
ainda que se o tente, a ideia de uma dogmática implicada em um modo particular de
interpretação, no próprio do ordenamento jurídico, isto é, histórica e materialmente,
na medida em que o dogma jurídico impõe limites aos sentidos estabelecidos nesse
campo, em seus acontecimentos enunciativos. Neste sentido, há que se falar em
diferentes relações entre o Direito e diversas instituições sociais.
33
Segundo Althusser (1999), há relações diretas, por exemplo, entre Direito,
Estado e Ideologia. De tal modo que estas só podem ser explicadas do ponto de vista
da reprodução, de um lado, e da prática e da produção, de outro. O nome Direito
designaria, assim, três categorias: a da personalidade jurídica, ligada à definição dos
indivíduos enquanto pessoas de direito; a da liberdade jurídica, ligada ao usufruto dos
bens e à da igualdade jurídica (no sentido de que todos os indivíduos são dotados de
uma personalidade jurídica determinada). Há para o autor, desse modo, três
características ligadas à definição de Direito: 1. Sistematicidade do Direito; 2.
Formalidade do Direito; e 3. Repressividade do Direito.
O direito assume, para Althusser (1999, p. 84), do ponto de vista de sua
característica sistemática, a forma de um sistema que tende, naturalmente, à não-
contradição e à saturação internas, que seriam, segundo o autor argelino, dois
conceitos "técnicos" a partir dos quais se passaria a pensar a definição de direito, ou
ainda, relativos à sua natureza. Definidos nesses termos por ele:
a. "[o direito] é um sistema de regras [em que] deve reinar entre todas as [as suas] regras uma coerência tal que não seja possível invocar as vantagens de uma regra contra a outra, caso contrário o efeito da primeira regra seria destruído pelo efeito da segunda. É a razão pela qual o direito deve eliminar nele toda forma de contradição (...)”
b. "o direito deve ser saturado, isto é, deve apresentar um sistema de regras
que tendem a abranger todos os casos possíveis apresentados na "realidade", de maneira a evitar ser surpreendido por um "déficit" jurídico de fato, por onde poderiam se introduzir, no próprio Direito, práticas não-jurídicas que viessem a prejudicar a integridade do sistema.
Um pouco mais adiante, Althusser (1999, idem) faz uma crítica direita ao
modo como os juristas relacionam o texto jurídico à “realidade” (colocado entre aspas
pelo autor), e das possíveis implicações desse movimento:
Daí, esse outro aspecto da atividade "admirável" dos juristas que sempre se obstinaram em fazer entrar, simultaneamente, a diferença do "direito consuetudinário" e os desvios da jurisprudência (aplicação das regras existentes aos casos "concretos" que, muitas vezes, as excedem), no próprio Direito
34
Neste aspecto da definição, conforme apontado pelo filósofo, observamos
que, ainda que não se configure como uma menção direta ao aspecto semântico, ou
linguístico, da matéria, enquanto sistema que é, o direito tem em sua regra
interpretativa uma das formas práticas de um logicismo que nega a contradição,
“assegurada” (esta regra) que está por uma coerência, igualmente sistêmica, que lhe
assegura uma simetria tal entre as leis (entendidas aqui como regras) que, pela qual,
se garante a integridade do sistema, isso numa posição de que toda interpretação
seria uma inferência, uma dedução.
É justamente o objeto dessa crítica que aqui aparece como que constitutivo
da concepção de controle jurisdicional de constitucionalidade, o qual tem por dever, a
partir do princípio da supremacia da constituição federal, assegurar a supremacia
constitucional e o controle da estrutura infraconstitucional, conforme veremos logo
adiante. Antes de passarmos a este aspecto, o do controle, vejamos brevemente o
conceito de Direito em Louis Althusser.
Althusser (1999) propõe, em Sobre a Reprodução, uma análise
estritamente descritivo-teórica do Direito. Por ela, define-o enquanto um sistema de
regras codificadas aplicadas, isto é, de regras respeitadas e “contornadas” na prática
cotidiana. Considera o Direito Privado como o centro do sistema jurídico a partir do
qual os demais direitos sistematizam e harmonizam suas noções e suas regras. Dessa
forma, o direito privado enuncia regras que regem as trocas mercantis (compra e
venda) as quais repousam, em última instância, no “direito de propriedade”, instância
que se explicita segundo os princípios gerais jurídicos da personalidade jurídica (que
define os indivíduos como pessoas de direito), da liberdade jurídica (que regula o uso
e abuso dos bens-objeto da propriedade) e da igualdade jurídica (todos menos
“alguns”).
O filósofo argelino não trata, portanto, o direito em termos de uma ciência,
mas de uma “prática sistematizada de regras codificadas para condutas “sociais”, a
partir de um código eminentemente privado burguês, isto é, que atende a uma classe,
ainda que pretensamente direcionado ao social” (ALTHUSSER, 1999, p. 88) (Seria
este um dos berços da luta de classes inaugurada pela revolução burguesa pós
35
feudal?). Este é o ponto de inflexão em relação à consideração geral burguesa de
direito, ou, mais especificamente, do ordenamento jurídico inaugurado principalmente
pós século XX que vige até nossos dias. A pergunta é: o que essa não caracterização
da cientificidade do direito implica exatamente?
Para o que nos interessa diretamente nesta discussão, isto é, a
cientificidade do direito, exporemos o que Althusser (1999) nos apresenta de Marx e
de Engels (e, marginalmente, de Kant e de Hegel), como autores que argumentaram
com base em três importantes características do direito, ainda em sua época: sua
Sistematicidade (1); sua Formalidade (2); e sua Repressividade (3).
Com base nesses preceitos teóricos, em (1), o direito assume a forma de
um sistema que tende, “naturalmente”, à não-contradição e à saturação internas.
Quanto à primeira, o direito, na medida em que se coloca como um sistema de regras,
opera segundo uma coerência tal entre as regras que não seja possível a invocação
da vantagem de uma sobre a outra, caso contrário o efeito de uma sobre a outra seria
destruidor. Definidas nos seguintes termos pelo autor (ALTHUSSER, 1999, p. 84)
[o direito] é um sistema de regras [em que] deve reinar entre todas as [as suas] regras uma coerência tal que não seja possível invocar as vantagens de uma regra contra a outra, caso contrário o efeito da primeira regra seria destruído pelo efeito da segunda. É a razão pela qual o direito deve eliminar nele toda forma de contradição (...) [...] o direito deve ser saturado, isto é, deve apresentar um sistema de regras que tendem a abranger todos os casos possíveis apresentados na "realidade", de maneira a evitar ser surpreendido por um "déficit" jurídico de fato, por onde poderiam se introduzir, no próprio Direito, práticas não-jurídicas que viessem a prejudicar a integridade do sistema.
Quanto à segunda, o direito deve ser saturado, isto é, deve apresentar um
sistema de regras que tende a abranger todos os casos possíveis apresentados na
“realidade”, como uma correspondência desta, de modo a não ser surpreendido por
um “déficit” jurídico de fato, que venha a prejudicar a sua integridade.
Assim, a atividade de sistematização operada pelo sistema jurídico deve
ser compreendida não só como redução das contradições possíveis entre as regras
do direito existentes, mas também, e sobretudo, como redução das “contradições”
36
possíveis entre as regras já definidas no sistema interno do direito e as práticas-limite
parajurídicas da jurisprudência, cujo caráter próprio é reconhecer os “casos” que o
direito ainda não integrou e sistematizou verdadeiramente. Por aí, segundo Althusser
(1999), é que os juristas intentam fazer entrar, simultaneamente, a diferença do direito
consuetudinário (costumes) e os desvios da jurisprudência no próprio direito.
Pelo que se encontra previsto por (1), a atividade de sistematização
operada no direito é, e deve ser, compreendida não só como uma tentativa de redução
das contradições possíveis entre as regras existentes e próprias ao direito, mas
também, e principalmente, como redução das contradições possíveis entre as regras
já definidas no sistema interno do direito e as práticas-limite parajurídicas da
jurisprudência. Sendo assim, estabelece-se uma diferença entre a jurisprudência, que
se vincula ao exterior do direito, ou, direito dito “dos costumes”, e o direito escrito
(todos o sistema de regras jurídicas de consignação escrita).
Em (2), pressupõe-se que o sentido de formal atribuído ao direito não incide
sobre o “conteúdo” do que é trocado pelas “pessoas” jurídicas nos contratos de
compra-venda, mas sobre a forma desses contratos de troca, ou seja, sobre atos
(formais) das pessoas jurídicas “formalmente” livres e iguais perante o direito. Neste
aspecto da análise althusseriana, temos que, em termos analítico-discursivos, o
sentido de “livres” e “iguais” não é dado como transparente, nem por uma afirmação
do óbvio. Este aspecto é dado segundo uma perspectiva material-histórica da língua
– o qual deve ser sistematicamente apresentado e desenvolvido pela análise
semântica. Para Althusser (1999), o direito só pode ser sistematizado na medida em
que é formal, de modo que a formalidade do direito e sua sistematicidade correlativa
constituem o que ele chama de sua universalidade formal: o direito é válido para – e
pode ser invocado por – toda pessoa juridicamente definida e reconhecida como
pessoa jurídica.
Outro ponto importante apresentado por Althusser (1999), ainda relativo à
formalidade do direito, é o fato de que esta não deve ser considerada em termos
morais, como um formalismo, mas sim como uma formalidade vista funcional e
ontologicamente. Isso porque a moral é aquilo que produz aprovações e
condenações, o que não é o caso do direito, que não se importa em ser condenado
ou aprovado, ele simplesmente existe e funciona (como uma téchne) e não pode
37
existir e funcionar a não ser formalmente. O sentido de formalidade atribuído por
Althusser ao direito tem estreita relação com o sentido de político apresentado por
Rancière (1996), uma vez que funciona em seu interior (do político) uma latência de
contradição tal que não permite que o direito seja operado senão pelo dissenso, pelo
contraditório, pela afirmação de igualdade instada por práticas desiguais,
discriminatórias.
Em consonância com esta reflexão, está o que é dito por Guimarães (2002,
p. 16) sobre o político, que não é o que se fala sobre igualdade, direitos, mas
“caracterizado pela contradição de uma normatividade que estabelece
(desigualmente) uma divisão do real e a afirmação de pertencimento dos que não
estão incluídos”. Nesta instância política, entendida como fundamento das relações
sociais e de importância central para a linguagem, as relações são dadas pelo conflito
entre “uma divisão normativa e desigual do real e uma redivisão pela qual os desiguais
afirmam seu pertencimento”. Este aspecto será desenvolvido mais adiante.
De modo que, como vimos, a “forma do direito” não é uma referência aos
conteúdos trocados mercantilmente pelas pessoas jurídicas nos contratos, mas uma
referência à forma desses contratos de troca, a qual é definida pelos atos (formais)
das pessoas jurídicas formalmente livres e iguais perante o direito, que fazem parte
desses contratos (ALTHUSSER, 1999). Trata-se, portanto, de uma forma personal.
Assim, a formalidade do direito e sua sistematicidade correlativa constituem o que
Althusser chama de universalidade formal: o direito é válido para – e pode ser
invocado por – toda pessoa juridicamente definida e reconhecida como pessoa
jurídica. Ou seja, a formalidade universal do direito diz respeito a sua não
universalidade de fato, de não ser, em “essência”, direito para todos, mas para “toda
pessoa juridicamente definida (eis a linguagem!) e reconhecida como pessoa jurídica”,
uma universidade relativa, excludente.
Ao não entender a formalidade do direito como um formalismo, Althusser
(1999) postula, como vimos, que o funcionamento do direito não se orienta em termos
morais, isto é, sem a preocupação de ser aprovado ou condenado, como que por um
funcionamento apriorístico, à revelia de (não obstante o fato de que sua existência
dependa desse “existir formalmente”). O efeito dessa formalidade sobre o direito é de
apagar, no próprio funcionamento do direito, os conteúdos aos quais se aplica a forma
38
do direito. Todavia, esse apagamento operado por esta forma não tem por efeito,
segundo esse autor, fazer desaparecer como que “por encanto” esses conteúdos,
mas, em contrário, o formalismo do direito não tem sentido a não ser enquanto se
aplica a conteúdos definidos que estão necessariamente ausentes do próprio direito.
Tais conteúdos, segundo Althusser (1999), referem-se às relações de produção e
seus efeitos.
O autor depreende disso o seguinte (ALTHUSSER, 1999 p. 85):
1. O direito não existe a não ser em função das relações de produção existentes;
2. O direito não possui a forma do direito, isto é, sua sistematicidade formal, a não ser com a condição de que as relações de produção, em função das quais ele existe, estejam completamente ausentes do próprio Direito.
Assim, a singularidade do direito está no fato de que ele não é existente senão
em função de um conteúdo do qual faz em si mesmo totalmente abstração, que
equivale às relações de produção. Isso explica a fórmula marxista clássica (que
distingue relações de produção de direito) a respeito do direito: o direito “exprime” as
relações de produção, embora, no sistema de suas regras, não faça qualquer menção
às citadas relações de reprodução; muito pelo contrário, escamoteia-as.
Em Althusser, tal como em Marx e Engels, as relações jurídicas são
identificadas como relações burguesas (digo, a recusa marxiana do direito burguês)
e, portanto, não se deve definir, já em Marx, o modo de produção socialista
(socialismo) pela propriedade coletiva dos meios de produção, mas por sua
apropriação coletiva e comum pelos homens livremente “associados”. A revolução
socialista não se configura como a “passagem” de uma propriedade a outra.
Por fim, por [3], o direito é necessariamente repressor. Em Metafísica dos
costumes, Kant, a despeito do título, produziu uma obra pouco metafísica, que a
coloca muito à frente da concepção hegeliana de direito, dado seu idealismo delirante
se comparado ao de Kant, para quem o direito implica a obrigação.
Desse modo, o sentido de repressão do direito em Althusser (1999) é o de que
não poderia existir senão como um sistema correlato de sanções. Dito de outra forma,
não há contrato jurídico a não ser com a condição de que se aplique, de que se
39
respeite ou contorne o Direito. Portanto, há que se existir um Direito da aplicação (e
da não-aplicação) do Direito, do respeito/não respeito das regras que constituem o
contrato jurídico. Isto, no limite, leva as pessoas jurídicas do contrato a se
comprometerem a cumprir obrigações de trocas definidas, ou pré-definidas. Este
comprometimento mútuo implica sanções, caso as cláusulas do contrato não sejam
respeitadas.
3.1.1. O direito como uma téchne
Os gregos do séc. V a.C. atribuíram à palavra téchne um sentido mais
abrangente do que a sua tradução mais usual, arte, significa em seu uso corrente.
Assim, este termo não se refere apenas a uma habilidade ou destreza de um
especialista em produzir algo com maestria, mas também a algo considerado em uma
dimensão mais ampla, portanto, teórica. A téchne é, dessa forma, para o grego, uma
forma de conhecimento prático que difere de uma outra, a epistéme (ciência), ou, o
conhecimento teórico, termos que se intercambiaram, muitas vezes, como sinônimos,
durante todo o referido século (PUENTES, 1998).
Em outra direção, Aristóteles, em Ética a Nicômaco, procurou empregar
estes termos de modo distinto, entendo-os como atividades exclusivamente humanas,
de tal modo que a arte (téchne) é produzida por pensamentos oriundos da experiência,
dada por semelhanças, em outras palavras, uma atividade que “se gera apenas
quando se é capaz de enunciar um juízo universal aplicável a diversos casos
semelhantes” (PUENTES, 1998, p. 131). A distinção, pois, entre arte e ciência estaria
no campo da prática, na ordem pragmática e, embora o aluno de Platão não tenha
trabalhado mais precisamente nesse campo, deixou claro em algumas de suas obras
que a arte esteve atrelada a uma tentativa de solucionar as necessidades concretas
dos homens, como meio de tornar a vida mais prazerosa, e só depois dela é que seria
criada a ciência (epistéme), que não representa os prazeres do homem, mas tão
somente a contemplação.
Por fim, sobre a téchne, o filósofo grego concluiu que uma vez que ela se
ocupa do que pode ser criado, não pode se submeter àquilo que é necessário e eterno.
40
Aquilo que é produzido artisticamente não pode existir no próprio ente produzido,
mas sim naquele que o produziu, o que faz a arte não se sustentar por si mesma,
assim como uma cadeira não pode produzir outra cadeira. Arte é mimesis, a imitação
da natureza (phýsis), sem se referir nem ao necessário nem ao natural
(PUENTES,1998).
Ao longo do tempo, do ponto de vista epistemológico, a arte (téchne)
caracteriza-se, pois, como um modo de fazer, ou, um saber fazer, ou ainda, um
ensinar a fazer que, em muitos casos, confunde-se com ciência (epistéme), como
fizeram os gregos e, desse modo, entendida como uma abstração, um afastamento.
Neste sentido, propusemos, desde o início deste trabalho, distinguir, assim como o
fez Diniz (2014), direito de ciências jurídicas, no sentido de que quem trata de direito
elabora, na medida em que o pratica, uma ciência jurídica, e quem se ocupa desta
ciência, que inclui o direito, opera por uma epistemologia. Nesses termos, dizemos
que o direito é o objeto da ciência jurídica, sendo esta o lugar de onde se produz
conhecimento sobre essa técnica, essa arte (o direito).
O direito se consubstancia historicamente enquanto prática social pela qual
é possível localizar a emergência de novas formas de subjetividade, especificamente
como prática jurídica, dada por um história interna de verdade que se corrige por
princípios próprios de regulação, uma história de verdade tal como se faz na história
das ciências (FOUCAULT, 2002). De certo modo, neste lugar de práticas sociais,
jurídicas, vemos emergir uma forma peculiar de verdade que se forma sob um número
de regras e de subjetividade, de domínio do objeto, de certos tipos de saber, como
uma história da verdade. Tais práticas, segundo o filósofo francês, seriam formas
pelas quais a sociedade definiu certos tipos de subjetividade, formas de saber que,
por conseguinte, definiram relações entre o homem e a verdade.
Uma das formas pela qual o direito se estabelece em diversas sociedades
é pela ordem constitucional. No caso brasileiro, esta ordem estabeleceu-se segundo
o preceito kelseniano de um sistema lógico-normativo baseado num modelo que
coloca a Constituição no topo da pirâmide jurídica, norma esta considerada a lex
legum, a Lei das leis e fonte de todos os direitos e atos normativos. Dessa forma, o
ordenamento jurídico estatal é constituído por normas constitucionais dotadas de
preeminência em relação às demais leis e atos normativos. Assim, todas as normas
41
abaixo da Constituição devem a ela se adequar, de tal modo que a ela precisam se
conformar (VELOSO, 2000). A Constituição é, assim, considerada o nível mais alto do
direito positivo.
A forma encontrada pelo sistema jurídico para a conformação entre o
expresso nas leis e atos normativos infraconstitucionais e a Carta Magna é o
denominado controle jurisdicional de constitucionalidade, expediente considerado
indispensável para a ordem e segurança jurídica constitucional, para a efetiva
verificação e manutenção da compatibilidade vertical das normas com o texto magno.
Segundo Veloso (2000, p. 18), “o sistema jurídico, que se apresenta nessa estrutura
escalonada, tendo, no ápice, a Constituição, deve ser coerente, racional. Qualquer
conflito (...) viola um princípio essencial, comprometendo a harmonia do
ordenamento”.
Na presente pesquisa, esta importante particularidade do sistema jurídico
representa o exato ponto em que convergem, apenas para efeito de análise, a téchne
do direito e a ciência linguística, expressada que aqui se encontra por uma de suas
disciplinas, a semântica do acontecimento. Ou seja, o sentido de “convergência” ora
trazido é considerado apenas em termos de “ponto de encontro”, isto é, como
ferramenta metodológica que justapõe de duas disciplinas e as compara em torno de
um objeto considerado. Assim, por hora, duas questões que se colocam são: 1. de
que forma a téchne do direito positivo (enquanto ordenamento jurídico) e a epistéme
linguística (enquanto semântica da enunciação) consideram a significação dadas as
relações estabelecidas entre o texto constitucional e as leis e atos normativos
consideradas, mais especificamente, entre a CF/88 e a Lei 12.965/14? e 2. Que
implicações há nesse modo de se pensar a significação entre textos distintos?
Inicialmente, poderíamos refletir sobre como são entendidos o sentido e a
linguagem no campo do Direito. Para tanto, observaremos o excerto a seguir, de um
dos representantes da teoria do direito brasileiro, Raimundo Bezerra Falcão. Num
primeiro momento, vemos o autor significar sentido e linguagem no meio jurídico e,
apesar da distinção que faz desses dois elementos, trata a linguagem como meio de
comunicação e o sentido como um predicado mental que categoriza as coisas no
mundo. Por isso, os manuais jurídicos, de modo geral, insistem na ideia de um sujeito
cognoscente, isto é, um sujeito de conhecimento que se coloca acima de tudo, e não
42
de um sujeito histórico, como o fazemos em semântica enunciativa (FALCÃO, 2000,
p. 79 e 80, com grifos do autor).
É que a linguagem, contendo sentido e sendo meio de comunicação, é meio formal de expressão do sentido. Pode ser tida até como sentido, desde que se aceite a definição do objeto cultural – e a linguagem o é - como sendo o sentido que o ser humano adiciona ao mundo cultural.
Assim, segundo os termos jurídicos, o papel do sujeito cognoscente é o da
“captação” de um sentido pré-existente ao texto, escondido, a-histórico, presente num
imaginário veritativo e em recônditos discursos ignorados no momento da
interpretação, mas sempre presentes e depreendido a partir de um “ritual” dado numa
situação (enquanto pragmático) reservado apenas a alguns sujeitos “escolhidos”
(sumo sacerdote), “separados” para tal função. Desse modo, para o direito, o sujeito,
e não a linguagem, nem a língua, tem papel central em qualquer tarefa interpretativa,
hermenêutica.
a captação de sentido, inexaurível, que se faz pela via da interpretação é que traz em si o milagre da salvação dos ordenamentos jurídicos, num tempo de interesse tão múltiplos, de mutações tão rápidas e de desigualdades tão permanentes e tão difíceis de remover(...) Outro ponto relevante para a interpretação jurídica é o que se refere à relação da linguagem (norma, no caso) com o intérprete. A prevalência, já o vimos, é do sujeito cognoscente. Portanto do intérprete. A linguagem do legislador, como voz do passado que é, não terá a pretensão de impor-se, por cima de tudo, ao intérprete. A voz do legislador sucumbiu, desaparecida, ao ser significativo da norma tal qual ela se põe, no ato da interpretação, ao espírito do intérprete, na sensibilidade da situação. (...) O intérprete é o sumo sacerdote do ritual divinizante da captação de sentido.
O primado do direito, segundo Falcão (2000), entende o sentido como
inesgotável e como elemento que opera no discurso a integração sócio-política por
uma dinâmica significativa que “libera” alternativas de justiça que civiliza e semeia a
igualdade. E é com base nessa ideia do justo, do verdadeiro, expressada em termos
de sentido pela “medida de justiça”, a medida exata entre o que consta num texto, o
constitucional, e outro texto, o da norma (Lei 12.965/14) que o argumento jurídico toma
43
como transparente, como a fiel “tradução das ideias e ideais” previstas por um
paradigma legal.
Com isso, dizemos que a constitucionalidade pretendida pelo ordenamento
jurídico, antes de preservar a norma constitucional e controlar as premissas ali
constantes, controla sentidos pela ideia de que, dada uma intertextualidade, ou mera
justaposição de textos, um texto refere outro como por uma conformação (a conforme
b), dada por um “idealismo jurídico”, e não pela materialidade histórica de cada texto.
Portanto, admitir “a difere de b" é admitir, consequentemente, em alguma dimensão,
que não seja possível uma constitucionalidade de b em relação à a. De tal modo que,
pelo princípio estrutural como é entendido o sistema, todo o ordenamento estaria
comprometido.
Ora, a semântica enunciativa, como as demais “semânticas”, encontra-se
num domínio de conhecimento, o da ciência linguística (epistéme), da qual é disciplina
fundamental. Neste domínio, conforme mostra Pêcheux (1973), o corte saussureano
continua efervescente pois, por ele, as diferentes teorias linguísticas produzem
afastamentos e retornos, principalmente pela consideração do equívoco como
constitutivo da linguagem, e não de premissas lógico-veritativas, como é o caso do
direito. Neste ponto, e em alguns outros, linguística e direito mantêm um certo
distanciamento. Além disso, o que sintetiza e reafirma tal diferença entre a arte
empírica prevista pela estrutura da téchne jurídica (por um como deve ser feito) e a
epistéme linguística (por um como é que se faz) é o fato de que o estrutural se
encontre implicado pela ordem simbólica, em vez da empírica. Guardadas as devidas
proporções, é nestes termos que pensamos a relação entre linguísticas e gramática
ou retórica, como domínios situados em um “como fazer”.
Por aquilo que depreendemos, como dito, da análise realizada pelo
instrumento de uma semântica do acontecimento, entendida como uma disciplina da
ciência linguística (epistéme) que trata da significação e do sentido como que
fundamentais para o estudo da linguagem, esta deve ser vista a partir de sua relação
com o mundo, com as coisas e com o real (GUIMARÃES, 2018). Assim, tratou-se neste
trabalho do acontecimento de enunciação enquanto produzido pelo funcionamento
da língua em espaços de enunciação, conceito que “desloca” o sentido corrente de
44
língua para outro lugar, o da enunciação e em outros termos em relação à história
dos estudos enunciativos.
O acontecimento é, assim, o que faz diferença na sua própria ordem, isto
é, um fato de língua dado por uma relação necessária entre um fato qualquer e a
significação, considerada sua ordem temporal própria e independente da ordem linear
do tempo (GUIMARÃES, 2018). Ora, sendo esta ordem justamente o que aufere
especificidade ao acontecimento, não pode, quando comparado, um acontecimento
equiparar-se a outro, por uma conformidade, igualdade, identidade ou referência. O
que torna os textos ora analisados acontecimentos específicos? Como a diferença
constitutiva do acontecimento é dada por uma temporalidade de sentidos, isso permite
dizer que ele não está no tempo e é isso que torna, por exemplo, a obra “Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988” um acontecimento per si, a qual, quando
considerada no espectro jurídico brasileiro, tem seu passado não atrelado a outras
constituições, mas ao sentido de enunciações passadas que nela se apresenta como
sentido.
Outro aspecto apontado por Guimarães (2018) é o fato de que a definição
de acontecimento dá-se diversamente da posição empirista, pois considera que um
fato deve estar necessariamente relacionado a uma certa ordem de acontecimento que
lhe atribua sentido, não como uma verdade correspondente no mundo, exterior a
própria enunciação de que o acontecimento faz parte, mas interna a este
acontecimento, de tal modo que signifique o mundo. A língua é o retrato do real.
Assim, a relação entre os acontecimentos CFB/88 e MCI/14 dá-se,
eminentemente, por uma diferença (a difere de b). Ou seja, há relações de sentido
suficientes tanto em a quanto em b para afirmarmos tratar-se de acontecimentos
distintos que, ainda que possuam o mesmo referente, não poderão possuir a mesma
designação, uma vez que esta relaciona-se ao funcionamento semântico dos
enunciados relacionando-os ao texto (acontecimento) de que estes fazem parte, isto
é, “os elementos que constituem o enunciado significam em virtude de suas relações
de integração no enunciado e do enunciado ao texto” (GUIMARÃES, 2018, p. 151).
Isto nos leva a considerar que o trabalho de sondagem, especificamente
orientado ao estudo dos modos de relação enunciativa de articulação e reescrituração
45
internos/externos aos enunciados, conduz fundamentalmente a caracterizar os
enunciados como o núcleo dessa análise semântica e, com isso, mais
especificamente nos modos de reescrituração, levar a observar o que aqui livremente
trato como “o primado da diferença”, isto é, ao fato de que “este modo relação
enunciativa leva a interpretar uma forma como diferente de si. O elemento que
reescritura atribui (predica) sentido ao reescriturado.” (GUIMARÃES, 2019, p. 85).
Pelo “primado da diferença” estabelecido por Guimarães (2018), afirmamos
que o “fenômeno” da significação ocorrido na relação entre os textos/acontecimentos
“Constituição Federativa do Brasil de 1988” e “Lei 12.965/14” é dado por uma relação
de diferença, e não por conformação, como quer a teoria jurídica da
constitucionalidade. Isto porque, o referido “primado” é o que perpassa todo o
presente trabalho enquanto contraposição ao posicionamento do ordenamento
jurídico, expresso no direito positivo brasileiro, cujas bases dão-se pela aceitação
tácita (discursivamente silenciada) de uma forma de controle, dita constitucional, mas
realizada politicamente como controle social de sentidos, no real recortado pela
língua.
3.2. Controle jurisdicional de constitucionalidade: o acontecimento como
conformação
A Constituição é considerada a “rainha das leis”. É assim chamada por
situar-se no topo da pirâmide jurídica, sendo a fonte primária de todos os direitos.
Inclusive, é por sua natureza, e a partir dela, que se confere o fundamento de validade
das leis e atos normativos da ordem jurídica (VELOSO, 2000).
É composta por um conjunto de regras, também denominadas normas
constitucionais e dotadas de preeminência e supremacia em relação às demais leis.
O controle de constitucionalidade é, dessa forma, dado por uma verificação da
compatibilidade vertical dessas normas, tido como expediente indispensável e vital
para a ordem e segurança jurídicas (VELOSO, 2000).
46
Assim, o sistema jurídico apresenta estrutura escalonada em que a
Constituição ocupa a posição maior, o ápice (CUNHA JÚNIOR, 2017). Para Veloso
(2000), essa é a forma em que o ordenamento se configura sistemicamente, pois,
“qualquer conflito, qualquer antinomia que agrida o postulado da primazia da Carta
Magna viola um princípio essencial, comprometendo a harmonia do ordenamento”
(Idem, p. 18). Em outros termos, um eventual “erro” de interpretação (movimento de
uma peça) altera a estrutura total. Assim, a ideia de controle e de supremacia
constitucional assenta-se, de certa forma, sobre um “estruturalismo jurídico”.
Quando uma norma de grau inferior entra em conflito com a Carta Magna,
promove-se o controle de constitucionalidade, o que ocorre quando são editadas, por
autoridades ditas incompetentes, normas que não seguem as regras de elaboração
legislativa, que a própria Lei Magna consubstancia. Essa inconstitucionalidade
aparece de duas formas: ou na violação de regras de competência
(inconstitucionalidade material) ou na inobservância das formas prescritas para a
obrigação e obrigatoriedade das leis (inconstitucionalidade formal).
Nesta pesquisa, interessam as duas formas, uma vez que em ambas o que
está em jogo é uma certa paridade normativa que exige do elaborador da norma
infraconstitucional a parametrização vertical tanto em termos de competência quanto
em termos formais, todos previstos na Constituição. E isso interessa aqui na medida
em que, pela visão enunciativa, não é possível pensar essa correspondência,
parametrização ou conformação entre dois textos distintos, em outros termos, entre
dois acontecimentos distintos.
Antes de adentramos nos pormenores do controle de constitucionalidade,
daremos destaque ao modo de interpretação proposta pela dogmática jurídica, mais
especificamente, pela doutrina (teóricos do direito), responsáveis que são por uma
das ações mais importantes do ordenamento jurídico, a interpretação particularmente
jurídica.
3.2.1. O modus de interpretar do ordenamento jurídico
47
Conforme vimos em Althusser (1999), o Direito assume a forma de um
sistema que tende à não-contradição e à saturação internas. Consagra-se, assim, na
tradição, como um sistema de regras respeitadas e contornadas de tal modo que, em
todas elas, deve haver o predomínio de uma coerência interna sistêmica “tal que não
seja possível invocar as vantagens de uma regra contra a outra, caso contrário o efeito
da primeira regra seria destruído pelo efeito da segunda” (p. 81).
Com base nesse “princípio” é que introduzimos e analisamos o conceito de
controle jurisdicional de constitucionalidade, o qual, dentro deste trabalho, representa
o ponto de partida para entender, na esfera do trabalho hermenêutico-jurídico
praticado alinhadamente ao ordenamento jurídico, as relações entre a carta magna
(instância constitucional) e o conjunto de normas (instância infraconstitucional) que a
ela (instância constitucional) se submete.
Ao colocar que a crise de paradigma do direito e da dogmática como um
impeditivo da realização dos direitos em sociedade, Streck (2000) o faz afirmando que
a dogmática jurídica é constituinte do saber jurídico instrumental, o que nos permite
afirmar que o discurso jurídico-dogmático não só instrumentaliza o direito, mas é
também um importante fator impeditivo de um Estado democrático de direito, na
medida em que, para este jurista, esta dogmática, ao instrumentalizar o Direito, não
consegue atender às demandas originadas na sociedade. O crescimento de direitos
transindividuais e a crescente complexidade social reclamam novas posturas dos
operadores jurídicos.
Porém, quando, em questões macrossociais, que envolvem a interpretação
das normas programáticas constitucionais, algumas instâncias de direito buscam o
sentido comum teórico dos juristas, em direção a interpretações despistadoras, o que,
conforme Streck (2000), torna o texto constitucional inócuo, ineficaz. Isto porque, para
este autor, deve haver uma mudança substancial do paradigma interpretativo
constitucional, na medida em que a Constituição não tem somente a tarefa de apontar
para o futuro, mas também a relevante função de proteger direitos já conquistados,
por uma principiologia constitucional que combata maiorias políticas eventuais que
legislam na contramão de uma programaticidade constitucional que respeite as
conquistas sociais.
48
Há, nesse movimento aparentemente simples, uma relação na qual ao
sentido são estabelecidos determinados limites no processo hermenêutico. Streck
(2000, p. 76) conclui assim a relação entre discurso e texto jurídico operada por esse
tipo de discurso dominante:
Apesar de tudo isso, o Direito, instrumentalizado pelo discurso dogmático, consegue (ainda) aparecer, aos olhos do usuário/operador do Direito, como, ao mesmo tempo, seguro, justo, abrangente, sem fissuras, e, acima de tudo, técnico e funcional. Em contrapartida, o preço que se paga é alto, uma vez que ingressamos, assim “num universo de silêncio: um universo do texto, do texto que sabe tudo, que diz tudo, que faz as perguntas e dá as respostas.
A relação entre o texto constitucional e os demais textos a ele ligados é
construída dentro do ordenamento jurídico eminentemente por um processo
interpretativo/hermenêutico. Por isso, para Freitas (2004) não há norma enquanto não
há interpretação, ainda que, para juristas como Bastos (2014), há que se distinguir
hermenêutica de interpretação. Tal pensamento encontra-se presente no trabalho de
teóricos ligados ao ordenamento jurídico diferentes posições que acabam por tecer
uma configuração determinada sobre a significação, do que se sabe não haver
concordância quanto ao sentido de interpretar.
Portanto, é possível dizer que exista um modus interpretativo dominante no
cotidiano dos juristas? No campo da dogmática jurídica, merecem destaque algumas
posições, entre elas, está a de Aníbal Bruno6, para quem interpretar a lei é penetrar-
lhe o verdadeiro e exclusivo sentido; para Paulo Nader7, interpretar é fixar o sentido
de uma norma e descobrir sua finalidade, pondo a descoberto os valores consagrados
pelo legislador; para Carlos Maximiliano8, autor que praticamente inaugura no Brasil
os trabalhos de hermenêutica jurídica, interpretar é a busca do esclarecimento, do
“significado verdadeiro de uma expressão (...) é extrair de uma frase, de uma
sentença, de uma norma, tudo o que na mesma se contém.” (STRECK, 2000, p.81).
6 Autor da renomada obra Direito Penal (1967) 7 Jurista autor de Introdução ao estudo do Direito (1995) 8 Conhecido autor de Hermenêutica e interpretação (1965)
49
O pensamento de Maximiliano aproxima-se do de Emílio Betti, de
posicionamento objetivo-idealista, para quem era possível a reprodução do sentido
originário da norma. Segundo Streck (2000, p. 82):
A tradição hermenêutica inaugurada por Maximiliano no Brasil tem uma similitude com a hermenêutica normativa de Betti, isto é, uma hermenêutica que dá regras para a interpretação, as quais dizem respeito tanto ao objeto como ao sujeito da interpretação.
Vemos que em todos estes posicionamentos acerca do que seja
interpretação predomina a visão de que interpretar seja um movimento em direção a
um texto que “esconde” um sentido a ser descoberto pelo intérprete, visão que se
distancia do pensamento de Streck, para quem o sentido do texto jurídico é dado e
colocado a partir da performatividade presente na língua, um posicionamento
claramente pragmático em relação aos processos hermenêuticos.
O interesse em arrolar brevemente essas posições, antes de expor o
conceito de controle de constitucionalidade propriamente dito, vem da ideia de que o
texto constitucional é o texto a ser interpretado, isto é, é sobre ele que juristas e
magistrados inclinar-se-ão quando tiverem de tomar suas decisões. Mas a pergunta
que fica é: como se dá essa forma de se interpretar a Constituição no ordenamento
jurídico?
Talvez não seja possível responder essa pergunta em poucas linhas, até
porque, como vimos, os autores não têm uma única opinião a esse respeito. Ainda
assim, é possível apontar para um “comportamento hermenêutico-interpretativo”
médio, digamos. Nessa área, Bastos (2014) pode representar essa “tendência” e nos
oferecer alguns aportes em direção a esse modo geral de interpretar o texto
constitucional.
Antes de mais nada, o autor fala de uma hermenêutica e de uma
interpretação constitucional, tal distinção é fundamental aqui. Bastos (2014)
reconhece que há uma relação entre o Direito e a realidade social em que está
inserido, ainda que, para o autor, esta visão de conjunto, que abrange o universo
social, deve reconhecer que o Direito é parte “essencial” desse todo, que ele coloca
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como “um segmento social-normativo, uma vez que é composto por normas
disciplinadoras da conduta das pessoas, físicas e jurídicas” (p.13).
Assim, a distinção, segundo Maximiliano (1988), estaria no fato de que a
Hermenêutica (jurídica) é o ramo da ciência dedicado ao estudo e determinação das
regras de interpretação a serem aplicadas sobre o texto jurídico que visam a
determinar o processo interpretativo de busca do significado da lei, e não a sua
aplicação, o que seria o caso da interpretação. A Hermenêutica seria, portanto, mais
ampla e anterior à interpretação.
No campo interpretativo propriamente dito, o autor traça a diferença entre
relações materiais e culturais, sendo estas últimas mais “frouxas” que as primeiras,
dado que não são submetidas ao rigor científico, e também pelo fato de que bens
culturais revelam apenas valores, o que leva o intérprete a descobrir emoções
humanas e o propósito de civilizações antigas (BASTOS, 2014). Em seguida, o autor
classifica o Direito do ponto de vista de um modus de interpretar (p. 14):
Enquanto fenômeno cultural que é, o Direito afasta-se radicalmente das denominadas ciências naturais, já que, quanto a estas, as conclusões obtidas caracterizam-se pela verdade decorrente do método empírico-indutivo a que se submetem as realidades próprias dessa ciência. (...) O Direito se situa no campo das realidades culturais e as leis são frutos desse universo, na medida em que buscam trazer em seu bojo a imposição de uma determinada norma da conduta.
No dizer do autor, a interpretação jurídica distingue-se das demais formas
de interpretação na medida em que seu objeto, relativo ao sujeito que o observa,
também se distingue do objeto das ciências naturais, “visto que todos os objetos
culturais, enquanto bens, só chegam ao homem pela via da interpretação” (BASTOS,
2014, p.18). Falamos assim em objeto cultural e objeto natural.
A classificação do modo de interpretar, para Bastos, passa antes por uma
classificação do objeto a ser interpretado. Assim, interpretar a lei configura-se como
um modo muito específico de interpretar, segundo o autor. Com isso, situa, de um
lado, a interpretação jurídica e, de outro, a interpretação das demais realidades
culturais. Trata assim dessa especificidade:
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Um primeiro ponto de dissociação decorre do próprio objeto em si. A interpretação jurídica parte da lei, vale dizer, de frases ou textos jurídicos, elaborados segundo regras próprias e com características peculiares. A lei regula a vida em sociedade, impondo-se indistintamente a todos. Por isso, e este é o segundo aspecto a ser realçado, qualquer interpretação que se faça a respeito desse conjunto normativo terá imediata repercussão na liberdade de cada indivíduo. Não é algo que se situe, portanto, apenas no plano teórico, já que a meta é a de solucionar os conflitos de interesses que surgirem na sociedade.
Nesse campo, teóricos, juristas e magistrados debatem acerca da
legitimidade das decisões judiciais que, sob o pretexto da aplicação do Direito,
legislam conforme os casos concretos em vez de o praticarem conforme as leis, o que,
segundo Bastos (2014), conduz, no campo do Direito Penal, a problemas de
tipificação do crime. Este autor aponta que, justamente por esse motivo, há que se
fixar uma distinção fundamental: a interpretação em outras áreas serve a um deleite
intelectual, enquanto que aquela relativa a lei atinge o indivíduo em sua conjuntura.
O fato é que, com base no que é afirmado acima, a ideia de que a
interpretação jurídica parte da lei, isto é, do texto jurídico, e que esta/e possui a
característica peculiar de regular a vida em sociedade, atribui a esse texto jurídico
uma espécie de “proatividade” muito particular, qual seja: é ele, o texto, que regula a
vida, e não o contrário; não é o texto regulado pela vida. Ora, se a vida não regula o
texto, este se impõe a ela e isso muda tudo no campo do significado, especificamente
na atribuição dos sentidos em hermenêutica jurídica, operada por meio do texto
jurídico.
Outro conceito trabalhado em hermenêutica jurídica é o de integração que,
diferentemente da interpretação, “pressupõe a ideia de tornar completo, chamar
alguma coisa para o campo de incidência da norma, absorver uma determinada
hipótese, a princípio não prevista.” (Bastos, 2014, p.44). Assim, integração não se
confunde com interpretação, pois esta serve para tornar possível aquele, isto é,
interpretar é algo sempre necessário, enquanto que integrar é uma necessidade mais
pontual, de finalidade específica, que se dá quando se está diante de um vazio
normativo.
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A afirmação mais interessante nesse campo, no que diz respeito aos
objetivos desta pesquisa, é que Canotilho (1991 apud BASTOS, 2014) afirma acerca
da relação conexa entre certos elementos da integração e da interpretação, quando
diz que ambas são voltadas à obtenção do direito constitucional. Com isso, estabelece
uma determinada relação entre os métodos de interpretação tradicionais do
ordenamento jurídico e a constituição propriamente dita.
Outro ponto trazido por Bastos (2014) é o que diz respeito à aplicação do
Direito, que tem estreita relação com a formação do ordenamento jurídico. Isto porque
o Direito não pode prescindir da abstração como instrumento de regulação, em grande
escala, da sociedade. O que, para o autor, é uma forma de o Direito, pela via da
abstração, regular, disciplinar o comportamento da sociedade, tendo por base os fatos
cotidianos, que se repetem, que são constantes. Assim, imediatamente à fase
interpretativa da lei, temos a fase formativa dela.
O papel do intérprete da lei, nesse caso, seria o de se utilizar dos recursos
fornecidos pela Hermenêutica, verificando em cada situação quais seriam as normas
capazes de regular a sociedade por meio do ordenamento jurídico. Assim, em ordem,
temos, a interpretação e, em seguida, a aplicação das normas constitucionais. Isso
ocorre, conforme Bastos (2014, p. 60), por “(...) a Constituição reclamar uma técnica
própria para a apreensão do real significado de seu conteúdo normativo. Verifica-as
que há uma especificidade interpretativa, em matéria constitucional”. Essa seria a
relação entre interpretação/aplicação das normas, inclusive a formação do
ordenamento jurídico, e a composição do conteúdo normativo relativo ao texto
constitucional. Há, assim, uma especificidade interpretativa em matéria constitucional.
Para se ter uma ideia de como a interpretação é pensada no meio jurídico
hermenêutico mais representativo, majoritário, do ordenamento, observaremos o que
diz Meireles Teixeira (2010 apud BASTOS, 2014, p.66):
Pode-se, portanto, dizer que a realização em aplicação do Direito supõe: a) o conhecimento exato do caso concreto, isto é, dos fatos com todas as suas circunstâncias e particularidades – é o que se denomina a quaestio facti; b) conhecidos os fatos, procura-se a norma aplicável – é o que se denomina a quaestio juris, no sentido amplo; c) finalmente, descoberta a norma aplicável, se o sentido e o alcance desta se apresentam duvidosos, faz-se mister interpretá-la – é o que se denomina a quaestio juris em sentido estrito. (...) Como se vê, a aplicação do Direito pressupõe a interpretação, pois não é possível enquadrar determinados fatos ou uma certa situação vital numa
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norma ou numa série de normas jurídicas, sem o pleno conhecimento do
sentido e do alcance destas”.
Vemos pelo exposto que a interpretação, que se encontra aqui ultimada no
processo, só aparece em caso de dúvida, isto é, para suprir um não-esclarecido pela
realidade empírica, o que a aproxima da noção de algo concreto, não-simbólico, o fato
gerador da lei. Ora, se pensarmos no nexo existente entre todo o processo de
interpretação e aplicação das leis e a constituição federal, resta entendermos como,
de fato, constitui-se, qual a natureza do texto constitucional.
A Constituição em si é formada por normas que não são de mesma
natureza, em outras palavras, não são possuidoras da mesma eficácia. Uma das mais
importantes diferenças entre elas é o fato de que algumas “desfrutam da capacidade
de incidirem diretamente sobre o caso concreto e outras necessitam, para tanto, do
advento de uma legislação integradora”. (BASTOS, 2014, p.63).
Assim, o bojo da Carta Magna é, pois, o fato de ser constituída, produzida
para produzir efeitos práticos, caso contrário, restaria letra morta, inócua. Há, assim,
normas de eficácia plena, em que não se tenciona a predisposição para atuar a efetiva
concreção, isto é, incidem diretamente sobre o real, “contém dentro de si todos os
elementos necessários para a sua aplicação”9.
No mais das vezes, temos ainda normas regulamentáveis,
irregulamentáveis, de integração, completáveis, restringíveis etc. Todas
demonstráveis no interior do texto constitucional, além de servirem a fins específicos,
seja para fins de aplicação, seja para fins de interpretação.
Ainda seguindo os passos de Bastos (2014, p. 70), vejamos o que o
magistrado diz a respeito da aplicação das normas constitucionais no tempo:
O advento de uma nova Constituição retira por completo a vigência e a validade da anterior. Isso ocorre em virtude de seu próprio caráter inicial e originário. Em outras palavras, a Constituição é a fonte geradora de toda ordem jurídica, que dela extrai o seu fundamento de validade.
9 Ibidem, p. 66
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Tal declaração, vista do ponto de vista do caráter validativo do texto
constitucional, chama a atenção para o fato de se apor a este a alcunha hierárquica,
suprema em relação às demais leis. Há que se registrar também a existência da
aplicação das normas constitucionais em relação ao espaço, ou, a territorialidade da
ordem jurídica, que, por ora, não se configurará como objeto de interesse desta obra.
O tratamento “diferenciado” dado pelos teóricos a uma interpretação
constitucional, relativo à interpretação das leis ordinárias, subconstitucionais, é factível
e explícito, inclusive, numa fala atribuída à doutrina, no sentido de uma individualidade
da interpretação constitucional. Isso porque, segundo Tércio Sampaio Ferraz (1996
apud Bastos, 2014, p 76), “não se pode levar à interpretação da constituição todos
aqueles formalismos típicos da interpretação da lei”. Tal indicação do autor remete,
em princípio, a dois fatores, um ligado a hierarquia clara entre o texto constitucional e
o texto ordinário; outro, relativo ao modo de se interpretar, diferente para cada caso.
A Constituição consagra-se, assim, como o fundamento último de validade
em relação a todas as demais normas do ordenamento jurídico e é esta a premissa
de que partirão seus intérpretes, os quais serão vistos mais pormenorizadamente em
breve. Conforme denomina Canotilho (1991 apud Bastos, 2014), essa forma de olhar
a Constituição engendra uma entrada na hermenêutica jurídica que a institui com uma
função determinantemente heterônoma de preceitos constitucionais relativamente às
normas hierarquicamente inferiores.
A implicação deste pensamento, que submete à ideia de hierarquização a
ideia de interpretação do texto, é assim descrita por Bastos (2014, p. 78, grifo nosso):
Sendo a Constituição o fundamento de validade de todas as demais leis, a determinação do significado do significado de uma das normas poderá importar no afastamento de uma regra infraconstitucional até então vigente, mas se torna incompatível com a norma constitucional da forma por que passa a ser compreendida. Aqui surge a importância de uma Corte Constitucional, que imponha erga omnes o sentido de determinada norma.
Observa-se de forma bem direta a relação entre hierarquização
constitucional-infraconstitucional e a interpretação do texto constitucional relativo à
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determinação do significado, que é, aqui, colocado como sinônimo de interpretação.
Além disso, devemos atentar para as diferentes direções para a compreensão do texto
Magno, isto é, até que ponto o texto infraconstitucional é pensado em direção ao
constitucional, ou o contrário, se, de fato, o texto constitucional determina o sentido
do infraconstitucional, inclusive, quando o faz, se faz, de que forma o faz.
Outro ponto trazido por Bastos (2014) é quanto ao caráter aberto e amplo
da Constituição, que aparece como uma característica/causa explicativa dos
frequentes problemas na área de interpretação. Isso porque, devido ao caráter
programático do texto constitucional e às suas consequentes mudanças (sociais,
culturais, políticas, econômicas...), implica a “atualização” constante das normais
constitucionais. Bastos (2014, p. 79, grifo nosso), trata assim essa questão:
Aqui a interpretação cumpre uma função muito além da de mero pressuposto de aplicação de um texto jurídico, para transformar-se em elemento de constante renovação da ordem jurídica, de forma a atender, dentro de certos limites oriundos da forma pela qual a norma está posta, às mudanças operadas na sociedade, mudanças tanto no sentido do desenvolvimento quanto no de existência de novas ideologias.
Essa “mudança de status” de ordem hermenêutico-interpretativa retira o ato
de interpretar de um lugar de inércia e o coloca em outro, o de uma prática jurídico-
política, caráter não discutido neste trabalho, mas de importância fundamental para
os campos do discurso. Além disso, apresenta o traço social que emana da análise
linguística.
No que diz respeito à natureza da linguagem constitucional, é formada,
segundo Bastos (2014), por enunciados de caráter eminentemente sintético e de
lacunas. Em certo ponto, pede atenção ao fato de que tal caráter merece minucioso
exame desse tema, atribuindo-o ao estudo das formas de integração desse “tipo” de
texto.
Segundo o eminente autor, a lacuna é o vazio normativo que não satisfaz
o aplicador/operador do Direito, isto porque, como dito anteriormente, o Direito é um
sistema aberto de normas e, por isso, “uma incompletude completável” (Idem, p. 81).
Justamente por isso é que se pode falar em lacuna na lei infraconstitucional, pois “é a
56
Constituição que institui o princípio da reserva legal, pelo qual ninguém será obrigado
a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei”.
Apesar do caráter amplo dos termos e princípios aplicados nas normas
constitucionais, que perdem em concretude, é possível dizer que ganham em
abrangência, uma vez que são encontrados presentes nas normas
infraconstitucionais. E não é a norma subconstitucional que interfere na aplicação da
norma constitucional, mas sim estas normas presentes nas leis ordinárias é que só
vicejam na medida em estão em conformidade com o princípio constante na Carta
Magna. (BASTOS, 2014).
Nessa perspectiva de se pensar uma interpretação das leis em direção à
norma constitucional, é de se observar o que aponta Gomes Canotilho (1991 apud
BASTOS, 2014, p. 84, grifo nosso):
A recente concepção de constituição como concentrado de princípios, concretizados e desenvolvidos na legislação infraconstitucional, aponta para a necessidade da interpretação da constituição de acordo com as leis, a fim de encontrar um mecanismo constitucional capaz de salvar a constituição em face da pressão sobre ela exercida pelas complexas e incessantemente mutáveis questões econômico-socais. Esta leitura da constituição de baixo para cima, justificadora de uma nova compreensão da constituição a partir das leis infraconstitucionais, pode conduzir à derrocada interna da constituição por obra do legislador e de outros órgãos concretizadores, e a uma constituição legal paralela, pretensamente mais próxima dos momentos “metajurídcos” (sociológicos e políticos)”.
A preocupação dos teóricos e doutrinadores é pertinente. Observa-se
verdadeira “força externa”, representada pelos dispositivos ordinários, no sentido de
se inverter a direção da significação. Deve o ordenamento jurídico, em seu campo
hermenêutico, pressupor que o Texto Magno comande, que dele se parta em direção
às leis, e não o contrário. “[...] não se pode dar conteúdo aos princípios constitucionais
a partir da definição encontrada na legislação ordinária.” (BASTOS, 2014, p. 85).
Outro ponto importante no tocante ao processo interpretativo relativo à
norma constitucional é o tocante às suas “fontes de interpretação”, expressão que
remete aos agentes da interpretação, isto é, o sujeito designado para interpretar a
57
regra jurídica (BASTOS, 2014). Num primeiro momento, uma questão que surge é:
qual é a interpretação mais relevante, aquela efetuada pelo Judiciário, pelo Executivo
ou pelo Legislativo? Seja na adequação, a cada caso concreto, seja relativo à norma
abstrata. Conforme Bastos, a mais relevante é aquela efetuada pelo Judiciário.
Veremos o porquê.
Independentemente da “forma de interpretar”, o que vemos predominar no
sistema jurídico que se verga em interpretar o texto jurídico é que o sentido aí é dado
enquanto uma referência às coisas que se encontram no mundo. Isso porque, a
obrigação de tornar/adequar o sentido de um texto (norma) a outro (constitucional)
obriga a se pensar uma forma de “adaptação” tal que exista um objeto comum entre
um e outro. Este objeto, ainda que um conceito-objeto, é retirado de um mundo de
confluências que assente os sentidos num mesmo lugar, retirando a história, o sujeito
e a língua das relações de sentido.
Antes de entendermos o motivo da preferência de Bastos (2014), veremos
como ele divide essas fontes da interpretação jurídica. Assim, são 5 (cinco) as fontes
interpretativas da Constituição, essenciais para o desenvolvimento de uma
hermenêutica constitucional, propriamente dita. São elas: 1. Interpretação político-
legislativa; 2. Interpretação jurisdicional: juízes e tribunais; 3. Interpretação promovida
pelo Poder Executivo; 4. Interpretação doutrinária; e 5. Fontes interpretativas
genéricas. De todas elas, e para os efeitos relativos e imediatamente ligados a este
trabalho, importa-nos, apenas, o estudo da segunda, a interpretação jurisdicional.
Na opinião de Diniz (2014, p. 449, grifo do autor), interpretar é uma forma
de se pesquisar a norma com vistas à busca e seu significado e de seu alcance,
levando-se em conta o fato de que seu sentido deve se adaptar às mudanças
operadas pela vida social. A autora define interpretação dentro de um contexto
jurisdicional, e não outro.
Interpretar é descobrir o sentido e alcance da norma, procurando a significação dos conceitos jurídicos. Devido aos motivos já mencionados – vaguidade, ambiguidade de texto, imperfeição e falta de terminologia técnica, má redação – o magistrado, a todo instante, ao aplicar a norma ao caso sub judice, a interpreta, pesquisando o seu significado. Isto é assim porque a letra da norma permanece, mas seu sentido se adapta a mudanças que a evolução e o progresso operam na vida social. Interpretar é, portanto, explicar, esclarecer, dar o verdadeiro significado do vocábulo, extrair da norma tudo o
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que nela se contém, revelando o seu sentido apropriado para a vida real e conducente a uma decisão.
Alguns pontos, nesta definição, chamam mais a atenção do que outros.
Primeiramente, a interpretação é vista como um desvelar, como um manto que
recobre o objeto a ser revelado (Este conceito conduz invariavelmente à ideia de que
a linguagem é transparente). Depois, as ditas imperfeições do texto-objeto da
interpretação são vistas como mera contingência que em nada interfere na
supremacia do pretenso texto. Observe-se que aqui não há qualquer menção ao texto
constitucional, ou a qualquer outra forma de hierarquia no âmbito desse conceito.
Desse modo, para Diniz (2014), o significado da norma estaria “escondido” em “algum
lugar” que caberá ao magistrado buscar e nos revelar. Tal esclarecimento é o
verdadeiro, o apropriado para a realidade, segundo a autora.
Nessa esteira, vale lembrar que, para Streck (2000, p.79), o processo
interpretativo/hermenêutico (os quais o autor não distingue) deveria ser pensado
enquanto portador de um caráter produtivo e não meramente reprodutivo, além disso,
“essa produção de sentido não pode, pois, ser guardada sob um hermético segredo,
como se sua holding fosse uma abadia do medievo”. Isso porque, para o autor:
o que rege o processo de interpretação dos textos legais são as suas condições de produção, as quais, devidamente difusas e oculta(da)s, aparecem – no âmbito do discurso jurídico-dogmático permeado pelo respectivo campo jurídico – como se fossem provenientes de um “lugar virtual”, ou de um “lugar fundamental”.
Antes de avançarmos no decurso do tema interpretação da norma
constitucional, importa determos o olhar sobre a relação sujeito-objeto trazida à baila
pelo eminente professor Streck (2000). Segundo este autor, as palavras da lei não
são unívocas e sim plurívocas. Isto porque a viragem linguística ocorrida no campo
da filosofia modificou a noção relativa de sujeito-objeto do conhecimento, no sentido
de que tal correspondência não deve ser mais regida pela relação entre pessoas
(=sujeitos) e objetos e sim como uma relação entre pessoas (atores sociais) e
proposições. Isto é, de sujeito-objeto para sujeito-proposição/enunciado.
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Assim, no processo interpretativo operado pelo intérprete da lei, “o jurista
não reproduz ou descobre o verdadeiro sentido da lei, mas cria o sentido que mais
convém a seus interesses teórico e político [...]” (STRECK, 2000, p. 80, grifo nosso).
Em relação ao sujeito, que é aqui colocado com um sentido razoável de autoria, o
jurista afirma que “[...] o significado da lei não é autônomo, mas heterônomo. Ele vem
de fora e é atribuído pelo intérprete”.
Ora, se o sentido não é a busca de um significado imanente ao texto e sim
um sentido trazido de fora pelo intérprete, uma espécie de autoria se apresenta nesse
processo. A questão que aqui se coloca é se, esgotadas essas duas possibilidades,
não restam outras. Por ora, não responderemos a essa questão, por razões de método
e ordem. Mas o faremos na seção em que nos debruçaremos para tratar da análise
semântica propriamente dita que aqui propomos.
De volta à proposta de leitura feita por Streck (2000), chama o autor a
atenção para o fato de que, mesmo diante dos avanços das teses “antimetafísicas” de
cunho linguístico-fenomenológicos, a dogmática jurídica ainda sofre do que ele chama
de “compulsiva lógica da aparência de sentidos, que opera como uma espécie de
garantia de obtenção, em forma retroativa, de um significado que já estava na lei
desde sua promulgação” (STRECK, 2000, p. 80), isto é, por uma suspensão da
história, do tempo.
A ideia que se tem do legislador, a qual é criticada por esse autor, é a de
que ele, o legislador, é visto pela dogmática jurídica como uma espécie de onomaturgo
platônico10, em que o Direito busca o “correto sentido da norma”, seu “sentido-
primevo-fundante.
O posicionamento de Streck (2000, p. 80, grifo do autor), relativo a este
papel consagrado na dogmática jurídica, aponta para uma inflexão teórica fundante e
importante, quando considerado o cânone jurídico predominante:
10 “Onomaturgo” ou “nomoteta” são expressões retiradas do diálogo platônico “Crátilo”, que
significa “aquele que cria palavra ou dá nome às coisas”. Aqui aplicado ao legislador enquanto um ser superior aos demais.
60
Predominantemente, ainda vigora na dogmática jurídica o paradigma epistemológico que tem como escopo o esquema sujeito-objeto, onde um sujeito observador está situado em frente a um mundo, mundo este por ele “objetivável e descritível”, a partir de seu cogito. Acredita-se, pois, na possibilidade da existência de um sujeito cognoscente, que estabelece, de forma objetificante, condições de interpretação e aplicação. O jurista, de certo modo, percorre a antiga estrada do historicismo. Não se considera já e sempre no mundo, mas sim, considera-se com estando-em-frente-a-esse-mundo, o qual ele pode conhecer, utilizando-se do “instrumento” que é a linguagem jurídica...
Há algumas razões para a escolha supracitada, a do ambiente jurisdicional,
operada, de modo geral, por todos esses autores, apesar de seus diferentes
posicionamentos. Por um lado, pelo volume de informações e, por outro, em termos
de volume de demanda próprio dessa área. Isso porque cabe ao órgão incumbido de
aplicar o Direito, em caráter preliminar à sua aplicação, proceder à interpretação,
individual ou coletivamente, naquilo que também se chama, no caso dos magistrados,
interpretação operativa. Por ela, como demonstra Bastos (2014, p. 93):
o julgador, a partir das normas supremas da nação, consubstanciadas em seu documento político básico, analisa todas as demais emanações normativas do Estado, para verificar a compatibilidade de seu conteúdo com o querer constitucional. A importância de um Tribunal Constitucional e de suas decisões é, nesse contexto, amplíssima.
Sobre o funcionamento do judiciário, é importante lembrar que, diferente de
outros poderes, ele só exerce a atividade judicial se provocado, induzido a, não lhe
cabendo a iniciativa processual. Assim, uma vez provocado, caberá ao julgador propor
uma resolução para o problema apresentado, para o qual deverá estar bem
preparado, tanto em relação à Constituição quanto em relação às demais leis
ordinárias, excluídas estas só no caso de serem ofensivas à Carta Magna. Assim, a
atividade de analisar uma lei à luz da Constituição tem o nome de controle de
constitucionalidade.
A base conceitual do controle de constitucionalidade é a relação harmônica
entre a lei a ser interpretada e a Constituição. No caso de incompatibilidade, o juiz se
verá impedido de aplicar a lei ao caso. A especificidade dessa situação é assim
apresentada por Bastos (2014):
61
Mas o que é importante notar é que o magistrado deve analisar a presença da inconstitucionalidade, e esta só será admitida no caso de não haver nenhuma interpretação que compatibilize a lei com a Constituição (dentro dos limites que a técnica da interpretação conforme a Constituição estabelece.
O tema do controle de constitucionalidade está intima e diretamente ligado
à interpretação da Constituição. Não obstante a isso, faz-se necessário demonstrar
como se dá tal procedimento dentro do ordenamento jurídico, de modo que fiquem
arroladas cada uma das implicações de sua “filosofia de uso”, digamos assim.
3.2.2. O controle como paradigma interpretativo
Como vimos, a ideia de um controle jurisdicional de constitucionalidade
passa antes por um modo de interpretar a letra de lei de um modo bem específico,
modo que regerá “os princípios” tácitos que comandarão as ações nesse percurso.
Tal relação de compatibilidade/incompatibilidade é dada entre a Lex Magna e as
demais leis do espectro jurídico, a qual é medida, e dada, enquanto uma
especificidade da lei maior sobre a menor, e não o contrário. Diferimos dessa posição,
na medida em que a vemos como uma diferença.
Assim, enquanto que para a teoria jurídico-dogmática a lei menor apenas
se conforma à lei maior, assumimos neste trabalho a posição de que este percurso
entre a Constituição Federal do Brasil de 1988 e a Lei 12.965/14, dito Marco Civil da
Internet, dá-se, fundamentalmente, por uma diferença. Isto é, trata-se não apenas de
textos distintos por estarem em “contextos” diferentes, mas por se tratar de
acontecimentos distintos: o acontecimento Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988 e o acontecimento Lei 12.965/14, Marco Civil da Internet.
Antes, porém, de nos aprofundarmos mais detalhadamente em cada um
desses acontecimentos, o que será feito nos próximos capítulos, estudaremos,
segundo a perspectiva do pensamento jurídico, a natureza do controle de
constitucionalidade e suas nuances.
62
Pode-se falar em uma evolução histórica do controle jurisdicional de
constitucionalidade das leis em nosso país. Isso porque, já em 1824, a Constituição
do Império do Brasil determinava essa tarefa ao Legislativo. Em 1891, em nossa
primeira Constituição republicana, influenciada que foi pelo Direito norte-americano,
estabeleceu o sistema de controle incidental ou difuso de constitucionalidade
(VELOSO, 2000).
Na Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926, que alterou a
Constituição Federal do Brasil de 1891, essa incumbência passou a ser dos tribunais,
federais ou estaduais, que deveriam também decidir sobre a constitucionalidade das
leis federais. Segundo Veloso (2000, p. 31) “A Lei 221, de 20.11.1894, que organizou
a Justiça Federal, é apontada pelos especialistas como um marco notável de nosso
sistema de controle de constitucionalidade”.
Entretanto, é partir da Constituição de 1934, a qual manteve o controle
incidental e difuso, que temos importantes inovações nesse assunto. Em seu artigo
179, há expressa exigência de quórum da maioria absoluta dos membros dos tribunais
para as decisões sobre inconstitucionalidade de lei ou ato do Poder Público, entre
outras limitações às leis ordinárias. Nesse sentido, e em relação à importância da
Constituição de 1934 relativa ao controle, Paulo Bonavides (1967 apud Veloso, 2000,
p. 31) assevera o seguinte:
Os historiadores constitucionais, quase todos, diz Paulo Bonavides, coincidem em assinalar a importância da Constituição de 1934 como um expressivo marco na progressão do País rumo a um controle direto de constitucionalidade, ressaltando que, de suas inovações, a que mais importa com respeito à via de ação é da representação interventiva (art. 12, § 2.º), “porquanto o exame de constitucionalidade pelo Pretório Supremo já não ocorreria apenas incidentalmente, no transcurso de uma demanda, mas por efeito de uma provocação cujo objeto era a declaração mesma de constitucionalidade da lei que decretara a intervenção federal”.
Em outra direção, tivemos a Constituição de 1934, conhecida como
“polaca”, dado que, pelo autoritarismo, auferia ao Executivo uma superconcentração
de poder, de modo que não era possível um controle constitucional. Essa Constituição
balizou-se no controle incidental, ou difuso. Com a redemocratização do País, operada
pela Constituição de 1946, manteve-se esta forma de controle, incidenter tantum, com
a ideia de uma instituição de controle abstrato. Com isso, este documento maior
63
promoveu um “um avanço na regulamentação da representação interventiva”
(VELOSO, 2000, p. 33). É justamente esta a solução trazida pela Constituição de
1946, que, apesar de ter representado, para este autor, “um novo e vigoroso passo
para a instituição do controle de constitucionalidade” de tipo incidental, não tinha por
objetivo trazer um “verdadeiro” controle concentrado de constitucionalidade, isto
porque:
“(...) a manifestação do STF, atendendo a representação do Procurador-Geral da República, não operava erga omnes [com efeito para todos], e tinha o escopo de constatar a violação de princípio constitucional sensível, para legitimar a decretação da intervenção da União no ente federativo.”
Ainda temos a EC/16, de 26.11.1965, que reafirmou o controle concentrado
da constitucionalidade, uma forma de controle não exclusivamente incidental, mas
também de “fiscalização constitucional genérica, abstrata, da norma em tese, com
escopo de averiguar o vício da constitucionalidade e o objetivo precípuo de defender
a ordem constitucional”11.
Por fim, a carta vigente, de 1988, deu manutenção ao nosso sistema híbrido
de controle, combinando os modelos difuso e concentrado. Para Veloso (2000, p. 34),
A constituição de 1988, que manteve o sistema híbrido de controle de
constitucionalidade, “trouxe, não obstante, importantes avanços, com vistas ao
aperfeiçoamento e à democratização da fiscalização constitucional [...]” Além disso,
“ampliou o número de legitimados ativos para ingressar com a ação direta de
inconstitucionalidade (...), extinguindo o monopólio do Procurador-Geral da
República”. Dessa mudança, introduziu-se no ordenamento jurídico brasileiro a
denominada Ação Direta de Inconstitucionalidade por omissão (ADin).
Veloso (2000, p. 35, grifo do autor) resume assim o modelo de controle
jurisdicional brasileiro de constitucionalidade:
Pelo exposto, e tentando fazer uma síntese, o controle jurisdicional da constitucionalidade, no Brasil, utiliza o método concentrado, sendo o controle abstrato, em tese, através da ação direta, a ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal, tendo por objeto leis e atos normativos federais e estaduais [...] Servimo-nos, também, do controle difuso, concreto, incidenter tantum,
11 Ibidem, p. 33
64
exercido por qualquer órgão, singular ou coletivo, do Poder Judiciário (CF, art. 102, III, a, b, e c; 97; 52, X).
Como pudemos observar, há, no ordenamento jurídico, dois grandes
sistemas de controle jurisdicional de constitucionalidade das leis: o difuso e o
concentrado. Em ambos os casos, o modelo brasileiro tem por base o direito norte-
americano, ou estadunidense, de controle jurisdicional, como já havíamos afirmado.
Mais especificamente, após a aprovação da Constituição dos Estados Unidos, em
1787, e na Convenção de Filadélfia, com ensaios de Alexander Hamilton, John Jay e
James Madison, além de um juiz chamado John Marshall.
O controle difuso, modelo adotado no Brasil desde a Constituição de 1891,
é um controle concreto, no curso de uma ação, por via incidental (incidenter tantum).
Trata-se, conforme Veloso (2000, p. 41), daquela que é “[...] feita pelo próprio juiz, ex
officio, afastando a aplicação da norma ao caso, sob julgamento, o que toma incabível
a locução ‘por via de exceção’” normalmente a ela atribuída. Quer isto dizer que, “no
curso de qualquer processo, qualquer das partes pode levantar o problema da
inconstitucionalidade, como questão prejudicial que o juiz tem de, previamente,
decidir”.
Nessa modalidade, o juízo de inconstitucionalidade é suscitado
incidentalmente, e por haver prejuízo em suspeição, o que quer dizer que durante
qualquer momento do andamento do processo, o que configura a supremacia da
Constituição em relação a qualquer outra lei ordinária. “Não há [porém] invalidação da
lei, de modo geral, perante todos. A decisão afasta, apenas, a sua incidência no caso,
para o caso e entre as partes.”. Lembrando que “a arguição de inconstitucionalidade,
perante qualquer juiz ou tribunal, pode ser suscitada pelo autor, pelo réu, ou por
qualquer pessoa que integre a relação processual.”12
O controle jurisdicional concentrado, por sua vez, é efetuado por via de
ação direta de inconstitucionalidade (ADIn) que, além de ser de competência exclusiva
12 Ibidem, p. 41
65
do Supremo Tribunal Federal, destina-se a alcançar a declaração de
inconstitucionalidade, em tese, de lei ou ato normativo federal ou estadual.
Diferente do controle difuso, no controle concentrado, dado pela ação
direita de inconstitucionalidade, não se julga uma relação jurídica específica, uma
situação particularizada, mas a validade da norma, in abstrato, isto é, ela é válida para
a unidade legal como um todo, não apenas em partes dela. Assim, caberá ao STF,
guardião-mor da CF, exclusivamente, julgar cada questão em primeira e única
instância.
Em relação aos adjetivos utilizados por Veloso (2000, p. 63) para definir a
Carta Magna, há que se observar o tom sistêmico, estrutural utilizado por este autor
para defini-la. Diz o autor que, seguindo a tradição jurídica alemã, uma lei que
contraria a Constituição, ou ainda, afronta o postulado da hierarquia constitucional,
“representa uma anomalia alarmante, um fator de insegurança que fere,
profundamente, a ordem jurídica, desestabilizando o sistema normativo” como um
todo.
Nesse ponto, em específico, cabe-nos lembrar o que Streck (2000) chama
de a não recepção da viragem linguística pelo modelo interpretativo jurídico vigorante
no Brasil. O autor refere-se a um modo muito específico de fazer direito, aquele
embasado numa filosofia da consciência, em vez de uma filosofia da linguagem. Isto
é, para o professor, o direito é linguagem, antes de qualquer outra consideração.
Desse modo, alinha-se a opinião do jurista Seixas de Meirelles, para quem o domínio
vigorante no Direito contemporâneo é o da filosofia do sujeito-proprietário de
mercadorias, um sujeito dotado de uma capacidade de autodeterminação e que é
abstraído pelo direito-positivo-histórico, sustentado por um paradigma hermenêutico
de cunho metafísico-essencialista, pelo qual o fenômeno é explicado depois de
reduzido à sua essência.
A predicação acima, realizada por Veloso (2000), faz jus ao que Streck
(2000, p. 80, grifo meu) denomina de dogmática jurídica, se não no todo, pelo menos
em parte. Isto porque a ideia de alarmar, ferir e contrariar o sistema vem, em parte,
de:
66
[...] uma compulsiva lógica da aparência de sentidos, que opera como uma espécie de garantia de obtenção, em forma retrativa, de um significado que já estava na lei desde sua promulgação. Acredita-se no legislador como sendo uma espécie de onomaturgo platônico ou que o Direito permite verdade apofânticas.
De modo que o Direito, por meio de sua dogmática jurídica, ao elaborar tais
enunciados, confirma sua herança liberal-individualista-normativista, como mostrado
por esse mesmo autor. O trabalho de crítica a esse sistema tem por base o
questionamento do atual discurso jurídico, que utiliza a lei e o saber contra eles
mesmos, no qual o sujeito não é um transgressor, mas sim um protagonista.
Streck (2000, p. 19) apresenta como alternativa de análise o método
fenomenológico heideggeriano de interpretação, ou hermenêutica universal, que é
apresentado por esse autor como “revisão crítica dos temas centrais transmitidos pela
tradição filosófica através da linguagem, como destruição e revolvimento do chão
linguístico da metafísica ocidental”.
A proposta é caracterizada como um projeto de analítica da linguagem, em
que, por meio uma imediata proximidade com a práxis humana, como existência e
facticidade. Neste campo, a linguagem, pensada enquanto sentido e denotação, “não
é analisada num sistema fechado de referências, mas, sim, no plano da historicidade
situacional, pragmático, o que também difere de nossa posição, material-histórica.
Enquanto baseado no método hermenêutico-linguístico, o texto procura não se
desligar da existência concreta”. (STRECK, 2000, p. 19)
A tarefa dentro da qual se desenvolve intensa e precipuamente, no Direito,
a interpretação da Constituição é o controle de constitucionalidade. Dela, urge
distinguir controle difuso de controle concentrado, embora o sistema brasileiro seja
um misto dessas duas formas. É no interior dessa atividade, portanto, que coabitam
interesses diversos, sejam linguísticos, pragmáticos, discursivos e jurídicos.
Entretanto, entender essa transição da Lei Magna para as leis ordinárias
hierarquicamente inferiores, e vice-versa, implica compreender, analiticamente, cada
uma delas enquanto acontecimento enunciativo.
67
3.3. Marco civil da internet e constituição federal como acontecimentos
enunciativos
O uso massificado da internet trouxe consigo um amplo espectro de
mudanças estruturais ligado às comunicações entre seus usuários, no campo das
novas tecnologias informacionais, especialmente porque culminou com a necessidade
da regulação dessas relações no campo efetivo da ciência jurídica. No Brasil, esse
conjunto de fatores resultou num longo debate social em torno dos direitos
relacionados ao uso da internet, que ficou conhecido como o Marco Civil da Internet
(MCI), o que se concretizaria, em 2014, com a criação e promulgação da Lei 12.965.
Em princípio, o MCI não recebe a proteção constitucional, apesar de
citações diretas a ela, o que foi recepcionado com bastante preocupação por parte
dos sujeitos envolvidos nesse debate. Trata-se, portanto, de uma ação no campo do
direito da tecnologia da informação que visa a humanizar as relações de internet, isto
é, no ambiente da chamada sociedade digital (GOULART, 2012).
Ora, se tomarmos a estrutura de qualquer lei, como é caso da lei que regula
o Marco Civil da Internet, veremos que, de início, há uma apresentação da lei seguida
de uma ementa, uma espécie de resumo do que será tratado em lei. Após isso, temos
o preâmbulo, que é, basicamente, um parágrafo introdutório que representa o
“espírito” em que foi criada uma lei. Em seguida, temos o conteúdo propriamente dito
da lei, divididos em títulos, capítulos e seções. Tais subdivisões serão compostas por
artigos, que serão, por sua vez, subdivididos em caput, parágrafos, incisos e alíneas.
Caput (cabeça) é a parte inicial do artigo, uma espécie de direcionamento
interpretativo de todo o artigo. Assim, em princípio, as partes de um artigo devem ser
interpretadas de acordo com o conteúdo dessa subdivisão única.
Temos, em relação ao Marco Civil, na parte introdutória da lei, a seguinte
divisão (em três sequencias ou enunciados): (BRASIL, 2014)
Ementa:
(1) “Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da
internet no Brasil”.
68
Preâmbulo:
(2) “A PRESIDENTA DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso
Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei”
Caput:
(3) “(art. 1º) Esta lei estabelece princípios, garantias, direitos e deveres
para o uso da internet no Brasil e determina as diretrizes para atuação
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em relação
à matéria”
Para se pensar em termos de unidade de análise semântica, é preciso
definir cada uma dessas unidades como enunciado, isto é, enquanto unidade de
linguagem, ou ainda, como elemento linguístico em um acontecimento de linguagem,
constituído de consistência interna e independência relativa integrado a um todo de
que faz parte. (GUIMARÃES, 2018). Nesta medida, a semântica do acontecimento
considera o sentido como componente constituído de relações que ocorrem no e pelo
acontecimento de enunciação, o texto.
Na apresentação das três partes acima, localizadas na parte introdutória
da lei, consideramos cada uma delas como que constitutiva dessas propriedades,
dada a enunciação de que fazem parte. Portanto, como será demonstrado no capítulo
destinado à análise do MCI, há algo de incontornável nessas definições porque o
homem fala e, quando fala, ele significa. Assim, podemos dizer, ainda que
provisoriamente e a título ilustrativo apenas, que palavras como garantias, direitos,
decreta, sanciono, funcionam em função de sua relação de integração “imediata” com
o enunciado e “mediata” com o texto.
Ainda em relação ao aspecto histórico da criação do Marco Civil, em
dezembro de 2009, existiam 26 propostas de regulamentação da internet no
Congresso Nacional brasileiro. Apesar disso, o Projeto de Lei nº 84/1999, mais
conhecido como “AI-5 Digital”, levou o Ministério da Justiça a iniciar um processo
público de consulta que tratasse do uso de internet no Brasil, o denominado Marco
69
Civil da Internet. Entre os anos de 2011 e 2014, e após debate online em duas fases,
o projeto foi assinado pela então Presidente da República Dilma Rousseff, até
culminar com a aprovação e sanção em 2014, com a Lei nº 12.695 (BRAGATTO;
SAMPAIO; NICOLÁS, 2015).
A iniciativa da consulta pública sobre a criação de uma Marco Civil da
Internet partiu da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça em
conjunto com a Escola de Direito do Rio de Janeiro, da Fundação Getúlio Vargas. A
justificativa é de que havia um “vácuo” na legislação de então, isto é, havia a
necessidade da criação de uma legislação que desse conta de mediar essas relações
nesse espaço e que garantisse regras específicas para usuários e provedores,
principalmente aquelas relativas à privacidade dos dados, à neutralidade e à liberdade
de seus usuários.
Inclusive, durante esse processo, houve a tentativa de aprovação do PL nº
84/99, do deputado Eduardo Azeredo (PSDB/MG), conhecida também como “Projeto
de Lei Azeredo”, ou “Lei Azeredo”, que, entre outros pontos polêmicos, versava sobre
a criminalização e a identificação obrigatória dos usuários da internet, com a guarda
dos registros de navegação pelos provedores, que, de certa forma, abstiveram-se do
debate público.
Uma das questões muito discutida à época dizia respeito às formulações
de políticas que contassem com a participação dos sujeitos para tomar decisões
desse porte, no caso específico, no campo de estudos e políticas de comunicação.
Por outro lado, discute-se se o público “exerce” papel passivo de espectador e, assim,
deva cobrar a possibilidade de sua participação ativa no processo. Nesse campo,
afirma Levy (2003 apud BRAGATTO; SAMPAIO; NICOLÁS, 2015, p. 2):
Essa segunda abordagem encontrou novo fôlego nos processos de abertura política e econômica dos anos 1990 que foram acompanhados pela emergência de um novo espaço de debate virtual e globalmente conectado por redes digitais, como proposto pela ciberdemocracia
Ora, o texto da lei que regula a relação entre usuários e provedor de
internet, por se tratar de instâncias reguladas pelo poder, é considerado como espaço
político, como o seria em diversas outras áreas do saber. Contudo, algumas ressalvas
70
a esse olhar sobre o político devem ser feitas, antes de prosseguirmos. Desse modo,
importa apresentar que implicações há em considerarmos o referido texto como
acontecimento enunciativo.
Ao considerarmos este texto legal como acontecimento de linguagem, que
se dá em espaços de enunciação, assumimos, em consonância com Guimarães
(2005c), entre outras coisas, o fato de que é um acontecimento dado por
agenciamentos políticos de enunciação. Isso porque, o político aqui não é tratado
como aquilo que se fala sobre a igualdade ou sobre os direitos de uma pessoa, ou de
forma negativa e idealista, como comumente tratado pela sociedade, isto é, como um
embate de ideias, lugar de engodo, enganos e corrupção. Antes, enunciativamente, o
político é tratado como o fundamento das relações sociais (GUIMARÃES, 2005c)
Mais especificamente, para Guimarães (2005c), o político deve ser definido
pela materialidade das relações que se estabelece “caracterizado pela contradição de
uma normatividade que estabelece (desigualmente) uma divisão do real e a afirmação
de pertencimento dos que ainda não estão incluídos” (2005c, p. 16). Além disso, o
autor sustenta que o político é incontornável e que isso se dá porque o homem fala.
Nesse sentido, entender o texto jurídico da Lei relativa ao Marco Civil da
Internet como acontecimento implica analisá-lo agora numa perspectiva de ordem
material não idealista, como regularmente se faz nas disciplinas ligadas à semântica
da enunciação e determinadas linhas da Análise do Discurso. Isto quer dizer que,
como acontecimento, conforme dissemos acima, o referido texto passa a ser pensado
enquanto uma instância diferencial de ordem temporal própria, não empírica, que
atribui o sentido específico a partir de sua ocorrência.
Assim, conforme Guimarães (2005c), o político, que aí se constitui como
contradição que instala conflitos determinados no centro do dizer desse discurso,
revela, pela linguagem e em termos enunciativos, uma contradição mais específica:
aquela entre a normatividade das instituições de direito que regulam e organizam
desigualmente o real e a afirmação de pertencimento dos não incluídos, neste caso,
aqueles a que a lei quer, ou pretensamente pretende, alcançar.
71
No que diz respeito à Lei Maior, parte-se do pressuposto de que uma
Constituição como a brasileira, independentemente de suas peculiaridades jurídico-
socais, tem como mote o cumprimento das exigências para o estabelecimento de
políticas públicas voltadas a um Estado Democrático de Direito. Há, assim, uma
espécie de deontologia do “cumpra-se” (que pode querer dizer “ausência de
cumprimento”), epistemologicamente ligada à noção de Constituição.
Como afirma Guimarães (2018, p. 37), “a definição de acontecimento [...]
diversamente dessa posição empirista, exige que algo seja relacionado a uma certa
ordem que lhe atribui uma significação”. Essa ordem é a sua própria ordem, que é o
que caracteriza a enunciação. Assim, são considerados neste conceito, de um lado, a
especificidade dessa instância e, de outro, a enunciação, cuja característica é oriunda
dessa especificidade, que é o que o faz diferente de outros acontecimentos, qual seja,
sua temporalidade (própria) de sentidos.
Na crítica que elabora relativa ao não cumprimento dos direitos previstos
na unidade constitucional, Streck (2000) o faz evocando, antes de mais nada, a ideia
de que deve o Judiciário, primordialmente, atentar para o fato de que um Estado
Democrático de Direito é perpetuado pela via do controle jurisdicional de
constitucionalidade das leis, o qual (Judiciário) “pode servir como via de resistência às
investidas dos Poderes Executivo e Legislativo, que representem retrocesso social ou
a ineficácia dos direitos individuais ou sociais”. Completa seu raciocínio tratando de
temporalidade desse acontecimento, diferente do modo como tratamos aqui: “a
Constituição não tem somente a tarefa de apontar para o futuro. Tem, igualmente, a
relevante função de proteger os direitos já conquistados”.
Num dos momentos em que constrói sua crítica, Streck (2000, p. 45) chama
a atenção para uma concepção de Constituição em que esta é, e deve ser tratada,
enquanto “espaço de regulação garantidor das relações democráticas entre Estado e
a Sociedade”. Um primeiro olhar sobre esta definição nos conduz a uma aceitação
sem ressalvas à ideia de garantia prevista nesse instituto, porém, uma análise
conduzida pela via político-enunciativa, nos termos em que colocamos acima, nos
mostrará que o político não é significado e constituído nos espaços de enunciação por
um dizer normatizado da dogmática jurídica, nem por sua afirmação de pertencimento
72
(a garantia que nos é “por direito”), mas por uma contradição que instala nesses
espaços o conflito no centro desse dizer.
Como vimos, para Guimarães (2018), algo só tem sentido de
acontecimento específico se tomado/considerado numa determinada ordem, caso
contrário, será tomado como um fato simplesmente ocorrido. Portanto, não é possível
tomar algo como acontecimento quando isolado, isto é, como tomado em sua
dimensão empírica. O acontecimento, visto desse modo, não é apriorístico.
A Constituição Federal, no modo como é concebida no Brasil, encontra-se
situada, como já apontamos, no topo da pirâmide jurídica (VELOSO, 2000) e
fundamenta a validade das leis e atos normativos. Assim, as normas que a constituem
são dotadas de preeminência em relação às demais leis que integram o ordenamento
jurídico estatal. Tais normas infraconstitucionais devem se adequar, isto é, ser
pertinentes, conformar-se com a Constituição, que funciona como o parâmetro, o valor
supremo, o nível mais elevado do direito positivo. Por isso, denominada a “Lei das
leis”.
Justamente para manter essa supremacia é que é criado um sistema de
defesa desse instituto, que seja capaz de “imunizá-lo”, que faça com que atos
normativos que o antagonizem percam sua eficácia e não se “concretizem” enquanto
lei, esse sistema é controle de constitucionalidade.
Segundo as concepções defendidas pela dogmática jurídica, a inexistência
de um controle da constitucionalidade das leis levaria à desarmonia da estrutura legal,
do ordenamento jurídico, uma vez que violaria o princípio essencial da Carta Magna.
Num país como o Brasil, cuja Constituição é do tipo rígida, o controle de
constitucionalidade é fundamental, além de ser o principal mecanismo de proteção
constitucional. (VELOSO, 2000)
Outro aspecto importante do sistema de proteção da Constituição brasileira
é que o judicial control é um processo de controle indireto, isto é, só funciona quando
sua função judicante é provocada por alguém que se sinta lesado. Tais características
relativas a esse acontecimento enunciativo lhe auferem particularidades fundamentais
para a análise linguística. Isso porque, a partir de 15 de novembro de 1889, na
73
transição de monarquia para república, a questão do federalismo passa
necessariamente por um Estado regido eminentemente por uma Constituição, aliás,
garantido por seu meio, em que a repartição de competências passa a ser uma tarefa
constitucional (BASTOS, 2014).
Ora, para pensarmos a Constituição como acontecimento, por exemplo,
alinhados com o que afirma Guimarães (2005; 2018), dizemos que a diferença que
constitui a especificidade do acontecimento “Constituição Federal” é uma
temporalidade de sentidos representada pela relação entre um passado, um presente
e um futuro, na qual a Constituição não é pensada como estando no tempo, mas como
uma instância constituída de seu próprio tempo:
Para caracterizar esse dizer de que o acontecimento é uma diferença em
sua própria ordem, e como essa instância conduz a caracterização da enunciação na
linguagem (GUIMARÃES, 2018), procederemos, em relação aos dois textos
escolhidos como acontecimentos, à configuração da dimensão dessas unidades de
análise, no intuito de caracterizar cada um deles.
Importa, antes de partirmos para a análise propriamente dita desses dois
acontecimentos, reafirmar, a partir da posição enunciativa que defendemos aqui, o
que dissemos acima a respeito da relação entre o acontecimento da Constituição
Federal do Brasil e o acontecimento do Marco Civil da Internet – Lei 12.965/14: não
se trata de uma relação do tipo em que o texto infraconstitucional (Marco Civil) é dado
por uma conformação do que se encontra enunciado no acontecimento da Carta
Magna, mas de algo enunciado enquanto uma diferença em relação ao texto
constitucional.
A posição defendida neste trabalho encontra-se “revestida” de um
significado demonstrado pelos mecanismos de análise disponibilizados pela teoria
semântica do acontecimento, que considera o sentido e o significado determinados
pela enunciação, em outras palavras, propor o deslocamento analítico das posições
idealistas e empíricas de noções interpretativas de orientação de filosofias da
consciência, próprias do olhar jurídico, e, em seu lugar, oferecer um leitura materialista
e simbólica (não-empírica) de tal modo que recoloque esta questão no domínio efetivo
74
das ciências da linguagem, que seja lastreada por uma relação política entre línguas
e falantes.
Nesse sentido, observamos o que afirma Guimarães (2008, p. 34, grifo
nosso):
Tomar o conceito de espaço de enunciação [...] permite considerar o funcionamento enunciativo a partir da relação entre falantes e línguas; indica claramente que a história das línguas pode ser retomada em outros termos, a partir da consideração das relações próprias do espaço de enunciação colocando em cheque as concepções históricas que privilegiam ou as relações internas às línguas, ou as relações chamadas de contato. O conceito de espaço de enunciação exige que estes aspectos sejam considerados como constitutivos do processo histórico do funcionamento da linguagem e das línguas.
Pelo que vimos, a análise linguística de viés enunciativo conduz a uma
inflexão analítica histórica nos estudos da linguagem, na medida em que propõe um
olhar sobre o texto enquanto acontecimento de linguagem, em que o sentido se
constitui como integrado ao texto. Isto quer dizer que, analisar algo dentro dessa
posição implica, de uma lado, assumir uma posição de materialidade histórica dada
por essa temporalidade própria de cada acontecimento e, de outro, conceber que a
análise e descrição de enunciados desse acontecimento é capaz de significar a partir
de relações entre elementos linguísticos desses enunciados e o texto com o qual se
encontram integrados (GUIMARÃES, 2018).
3.4. Configurações da cena enunciativa e espaço de enunciação jurídicos
Como visto anteriormente, o acontecimento de enunciação, constituído que
é por uma temporalidade própria, caracteriza-se pelo funcionamento da língua num
espaço de enunciação (GUIMARÃES, 2018), que é constituído, por sua vez, por
falantes enquanto determinados pelas línguas deste espaço, isto é, espaço de línguas
e falantes.
Vimos também que estes espaços distribuem desigualmente as línguas
para seus falantes e que, nessa medida, na medida dessa distribuição desigual, os
75
espaços de enunciação são políticos. De modo que, a análise desses dois
acontecimentos jurídicos se dará nas bases, segundo suas teorias, da análise de cada
uma dessas cenas enunciativas, pela caracterização do político nos dois
acontecimentos de enunciação, segundo os procedimentos específicos de análise
fundamentados nesses conceitos.
Não é demasiado repetitivo lembrar que toda a análise linguística à qual
recorremos aqui parte, primeiramente, da enunciação, e isto quer dizer que “a
enunciação diz respeito a algo que ocorre quando se diz algo” (GUIMARÃES, 2018),
mas não em termos contextuais ou ainda de com que intenção se diz algo, mas em
termos de um dizer que se configura enquanto um acontecimento de enunciação, de
linguagem.
Para melhor entendermos o que seja enunciação, Guimarães (2018)
esclarece que (primeiramente) precisamos compreender os conceitos de espaço de
enunciação, língua, falantes e qual a natureza da relação entre falantes.
O espaço de enunciação é uma instância política de regulação e de
disputas pela palavra dadas as relações simbólicas, entre língua e falante, que o
constitui. Assim, uma vez configurado o acontecimento, temos a relação enunciativa
assim configurada, em todas as suas nuances.
Guimarães (2005c, p. 18), define assim esses espaços:
São espaços “habitados” por falantes, ou seja, por sujeitos divididos por seus direitos ao dizer e aos modos de dizer. São espaços constituídos pela equivocidade própria do acontecimento: da deontologia que organiza e distribui papéis, e do conflito, indissociado desta deontologia, que redividem o sensível, os papéis sociais. O espaço de enunciação é um espaço político [...]
Nesta esteira, o fato de ser uma relação simbólica, faz com que esses
falantes não sejam tomados em uma dimensão empírica, ou seja, esses “falantes não
são indivíduos, as pessoas que falam esta ou aquela língua”13, no sentido de que não
13 Ibidem, p. 18
76
se trata de pessoas do ponto de vista fisiológico. Assim, o falante é uma categoria
linguístico-enunciativa.
Naquilo que se refere à língua, como vimos em Guimarães (2005c), falar,
por exemplo, uma língua como o Português, considerando espaço de enunciação de
que faz parte, é estar afetado pelas divisões aí produzidas, e não pelas variações,
como o concebido pela sociolinguística quantitativa. Assim, a relação entre falantes e
língua, tal como aqui concebido, é concebida pelo modo como os falantes se
identificam por essa divisão, marca de uma hierarquia de identidades.
Esta formatação própria do espaço de enunciação, no qual se opera um
determinado modo de dividir os falantes segundo os valores dessa hierarquia, permite
afirmar que “estar identificado pela divisão da língua é estar destinado, por uma
deontologia global da língua, a poder dizer certas coisas e não outras, a poder
falar de certos lugares de locutor e não de outros”14.
3.4.1. O político e a enunciação no Marco Civil da Internet e na Constituição
Federal do Brasil de 1988
Guimarães (2018, p. 50, grifo nosso) define o político como segue:
[...] ele se caracteriza pela oposição entre a afirmação de igualdade em conflito com uma divisão desigual do real produzida enunciativamente pelas instituições que o organizam: organizam os lugares sociais e suas relações, identificando-os (ou seja, atribuindo-lhes sentido), e recortam o mundo das coisas, significando-as. Por este conflito o real se divide e redividem, se refaz incessantemente em nome do pertencimento de todos nós.
Para observamos a questão do político na enunciação da referida lei,
tomaremos, de saída, o que se encontra enunciado no caput do capítulo 1, intitulado
“Disposições preliminares”. Esta sequência, pela própria definição de Caput, designa
tudo o que deverá permear o acontecimento como um todo, isto é, toda a lei,
14 Ibidem, p. 21, grifo nosso.
77
especificamente a respeito do que nela deve constar em termo gerais (BRASIL, 2014).
Vejamos:
(1) Esta Lei estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil e determina as diretrizes para atuação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em relação à matéria.
O sentido que esta sequência produz faz significar uma enunciação que
instaura um conjunto de normas que divide indivíduos (sem especificá-los) instituições
ou pessoas que, de um lado, criam regras, de outro, obedecem a regras. Desse modo,
o acontecimento de enunciação apresentado é produzido por um agenciamento do
falante a dizer, em cuja cena enunciativa, a divisão dos lugares de enunciação não
aparece nomeada ou evidente, mas como uma resultante da relação entre enunciados
do texto, independência relativa.
Politicamente, apesar de se tratar de uma única língua, a Língua
Portuguesa oficial do Brasil, aquela utilizada pelos internautas, podemos dizer que o
real se encontra dividido entre aqueles usuários de internet (alfabetizados ou não) e
não usuários de internet (alfabetizados ou não). Isso é o que acontece quando este
enunciado entra em circulação na língua, quando passa a funcionar, que é o momento
a partir do qual o “direito” lhes é ofertado, assegurado.
Vemos, embasados na máxima constitucional de que todos são iguais
perante a lei, que o enunciado traz em si um elemento silenciado pela própria
enunciação. Isso se dá pelo fato de que seus usuários, na verdade virtuais, além de
não estarem previstos de fato no alcance desta premissa, têm sequer previstos
direitos como, por exemplo, o de inclusão. Portanto, neste acontecimento de
enunciação, afirma-se o igual, instituído por seu conflito com uma desigualdade não
enunciada, como que pertencente, tal igualdade, a todos.
Em outro aspecto, é imprescindível indicar, na enunciação, como se dá seu
funcionamento enunciativo, no agenciamento da enunciação, uma vez que, uma
resposta à pergunta “a quem se destina a liberdade de expressão?”, prevista no art.
2º desta lei, não é, nem pode ser, dada por uma resposta de cunho empírico do tipo
78
“a esse sujeito que usa a internet”, mas a quem se destina, enunciativamente, essa
promessa de garantia, isto é, a um tu presente na alocução de uma cena enunciativa
dada, como veremos em mais detalhes adiante.
Observemos agora, o caput do art. 5º da Constituição Federal:
(2) Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a à propriedade, nos termos seguintes:”
Em (2), caput do art. 5º da CF, dizemos, com Guimarães (2005c), que há
um dizer normativo do ordenamento jurídico associado a uma afirmação de
pertencimento de um direito de todos: o da igualdade. Ora, se o político não é o que
se diz sobre igualdade, mas a afirmação da igualdade dada por essa forma de
pertencimento de um direito do povo brasileiro, ou ainda, num espaço dividido
desigualmente pelo real, temos, na afirmação do universal dessa igualdade um
conflito, uma contradição engendrada pelo desenvolvimento desigual e combinado
das forças que operacionalizam o jurídico neste espaço.
Segundo Guimarães (2002, p. 17, grifo nosso), o político, além de outras
coisas, “é caracterizado pela contradição de uma normatividade que estabelece
(desigualmente) uma divisão do real e a afirmação de pertencimento dos que ainda
não estão incluídos”, o que é sugerido em (2) pela presença de Todos (uma inclusão
universal) que, embora esteja predicado pela ideia de igualdade, é “afetado”, por
exemplo, por uma exclusão no interior desse mesmo enunciado, qual seja, a de
estrangeiros não-residentes que estejam no país.
Assim, o sentido produzido neste enunciado, em termos políticos, não é
uma ideia que se tem de igualdade, ou o simples fato de o texto constitucional tratar,
entre outros assuntos, de igualdade. O político está aí representado por um conflito,
ou contradição, entre a normatividade própria do ordenamento jurídico, que se
interpõe enquanto uma afirmação da igualdade oferecida a “todos” e em cumprimento
dos tratados e convenções internacionais de estados republicanos, e a afirmação de
pertencimento expressa por todos, que na verdade é uma referência a alguns, isto é,
79
perante a lei, o que se põe, põe-se enquanto uma restrição e não enquanto uma
universalização, de fato.
Temos em tela a seguinte situação: o art. 5º da CF, caput que abre o
capítulo I do título II deste acontecimento, intitulado “Dos direitos e deveres individuais
e coletivos”, enuncia um assunto voltado ao que poderíamos denominar “direitos da
sociedade” com fundamento nas relações sociais. Em outros termos, temos o próprio
da mediação, realizada pelo Direito, das relações sociais. Em termos políticos e
enunciativos, na direção da teoria semântica a qual me afilio, o real jurídico,
organizado pelos preceitos de um ordenamento de tipo dogmático, assenta-se num
princípio político norteador que se dá por uma dinâmica social regida pelo conflito
entre a divisão normativa e desigual por ele engendrada e sua redivisão. Nesse caso,
ainda que os desiguais não afirmem, propriamente, seu pertencimento a este ou
aquele direito, eles se “veem”, por uma aceitação tácita coletiva, própria da “natureza”
das leis, “assistidos” por esses direitos.
Por isso se diz: “o político é incontornável [na medida em que...] porque o
homem fala”15. A incontornabilidade do político neste acontecimento de enunciação é
dada, por assim dizer, por uma divisão desigual de papeis, entre aqueles que podem
fazer/dizer coisas e aqueles que não podem fazer/dizer coisas. Por isso, trataremos
em seguida dos papéis enunciativos assumidos pelo sujeito no funcionamento da
enunciação.
3.5. Agenciamento da enunciação no acontecimento jurídico
Dizer que alguém é agenciado a falar implica perscrutar caminhos para
além de uma teoria semântica. Assim, assumir esta posição nos conduz a assumir,
logo de início, outras posições, assim como já o fizemos em outros momentos neste
trabalho. Por hora, cabe lembrar que o sentido de agenciamento utilizado por
Guimarães (2005c) é aquele oriundo, em grande parte, de Deleuze (1995). Já o
sentido concernente à enunciação é o de um espaço no/pelo qual seja possível
15 Ibidem, p. 17
80
considerar a constituição histórica do sentido, o que coloca de antemão a questão do
sujeito que enuncia, enquanto sujeito na linguagem. Outro aspecto é que esse sentido
de enunciação assumido pelo autor se coloca à parte de abordagens de cunho lógico,
empírico (falantes não são pessoas físicas), gramatical ou cognitivo (relativo à uma
intenção do sujeito), mensuráveis e matematizáveis.
Em face do colocado, dizemos com Guimarães (2018, p. 44) que “o sentido
se constitui exatamente pelos modos de agenciamento do acontecimento de
linguagem” e não por aquilo que nos é referenciado por uma correspondência direta
entre o elemento linguístico e seu mundo externo, ou ainda, pela intenção de um
sujeito dado um contexto imediato numa performatividade qualquer.
Pelo que vimos da cena enunciativa, sabemos que se trata de uma
disposição simbólica representativa de especificações locais nos espaços de
enunciação, em que essas especificidades de acesso à palavra (GUIMARÃES,
2005b) dão-se a partir da configuração enunciativa dessas relações, aquela entre
figuras da enunciação e suas respectivas formas linguísticas. Assim, a cena
enunciativa é constitutiva do agenciamento a dizer do falante
Na cena, cada lugar enunciativo representa uma configuração específica
de um determinado agenciamento enunciativo do falante, isto é, para aquele que fala
e para aquele para quem se fala (GUIMARÃES, 2002, p. 23, grifo nosso): “são lugares
constituídos pelos dizeres e não por pessoas donas de seu dizer”, justamente por não
serem donas é que diz, são agenciadas a falar, interpelado em alguma medida. Esses
lugares não se encontram estanques, mas distribuídos pela temporalização própria
do acontecimento, a qual é o fundamento da cena enunciativa.
Desse modo, o falante pode ser agenciado em Locutor, representado aqui
por “L”, que é o lugar que se representa no próprio dizer, como fonte deste dizer e,
“ao ser agenciado como aquele que diz, o Locutor diz somente na medida em que o
falante é também agenciado por um lugar social e político. “Assim, se o falante é
agenciado em o lugar que diz, este lugar que diz só o faz na medida em que o falante
se divide em lugar que diz e lugar social de dizer”, denominado alocutor, um lugar
oficial.
81
3.5.1. Análise do acontecimento produzido pelo dizer jurídico em cenas
enunciativas
Como vimos, é na cena enunciativa que se dá a conformação dos lugares
enunciativos, que é o caso, por exemplo, do alocutor, que é sempre um alocutor-x, o
qual, dado um acontecimento específico de que faça parte, será caracterizado pelo
próprio acontecimento enunciativo. Este lugar, o alocutor-x, tem por correlato um
alocutário-x, aquele para quem o alocutor diz, dada uma alocução (GUIMARÃES,
2018). Temos assim:
al-x -------------------correlato de---------------------at-x
Por esta correlação, entendemos haver uma relação em que um lugar
social de dizer (al-x) “dirige-se” a um lugar social a quem se diz (at-x), com “x”
enquanto uma variável representativa do nome desse lugar.
Segundo Guimarães (2018, p. 45, grifo nosso), “de um lado o Locutor se
apresenta como o lugar que diz, de outro o lugar que diz só diz enquanto de um lugar
social de dizer”. De tal modo que, para os efeitos de análise e aplicação do método,
o primeiro lugar será tratado por, apenas, Locutor (ou L simplesmente) e o segundo
lugar de lugar social de dizer, ou alocutor-x, em que “x” é uma variável a ser
preenchida pela consideração do lugar específico em que o falante é agenciado. Em
síntese, “o acontecimento da enunciação produz sentido nisto que chamamos cena
enunciativa constituída pelo agenciamento do falante em lugares de enunciação.
Estes lugares configuram o funcionamento da alocução”16. Além desses lugares
caracterizados acima, há ainda um outro aspecto dessa divisão de lugares que
constitui a politopia da cena enunciativa, o lugar denominado lugar de dizer, ao qual o
autor denominou Enunciador.
16 Ibidem, p. 46, grifo do autor
82
Uma relação de alocução na cena enunciativa se dá a partir das seguintes
figuras enunciativas:
Falante (f): aquele “agenciado a” e dividido em L e em al(-x)
Locutor (L): aquele que diz; falante enquanto agenciado em Locutor
Locutário (LT): aquele para quem o L se dirige, correlato de L
alocutor (al): Aquele que diz enquanto lugar social de dizer
alocutário (at): Aquele para quem o locutário diz algo enquanto lugar social
correlato de um locutário
Enunciador (Ei) = Representação de um lugar de dizer
Esquema de correlações17
Locutor (L) --------correlato de------------------- Locutário (LT)
alocutor (al-x) ----------correlato de-------------------- alocutário (at-x)
Assim, a título de exemplificação, observaremos o seguinte enunciado,
parte (recorte) da sequência (2), com vistas a pensar como o agenciamento do falante,
no caso em tela, isto é, neste acontecimento de enunciação, produz a cena
enunciativa. Temos então:
(2a) Todos são iguais perante a lei.
17 Nota: a figura Enunciador, também um lugar de enunciação, não possui correlato.
83
Podemos observar, no plano dos sentidos constituídos pelo acontecimento,
um primeiro aspecto desta análise: há, de uma lado, alguém que diz o que está em
(2a), e o diz enquanto falante que é agenciado a dizer neste acontecimento, ou seja,
o Locutor de (2a); de outro, aquele para quem o Locutor afirma essa garantia, que é
aquele para quem ele se dirige, isto é, seu Locutário, correlato desse Locutor.
Notemos que, se optarmos pela paráfrase de (2a), nos mesmos moldes de
parafraseamento que Guimarães (2018) vem apresentando, teríamos, por exemplo,
algo do tipo:
(2a') (Se) todos são iguais perante a lei, pode-se considerar, então,
que não há quem não seja alcançado por essa igualdade.
Ou ainda:
(2a'') (Se) todos são iguais perante a lei, pode-se considerar, então, que não há ninguém que deva ser tratado de forma/como diferente.
Uma das explicações possíveis para o que encaminha para esses
parafraseamentos é o fato de o elemento todos, unidade a partir/em torno da qual todo
o enunciado funciona e, por isso, “portadora” de uma independência relativa, ter como
propriedade uma consistência interna tal que, segundo o preceito lógico, trata-se de
uma referência a uma universalidade irrestrita, não cabendo exceções.
Assim, ao analisarmos essas paráfrases, vemos que, ao dizer todos, tanto
em (2a) quanto em (2a'), o Locutor apresenta-se como aquele que diz todos. Ainda
assim, o que vemos é que, por este caminho, encontramos, até onde podemos, pouco
a dizer, afora apresentar, formalmente, que lugares se apresentam no acontecimento
específico desta enunciação, o que, como veremos adiante, é algo a ser aprofundado
pela análise.
A cena enunciativa coloca também em jogo os lugares de dizer, os
enunciadores. Não se trata, portanto, de um lugar no acontecimento da enunciação
que projeta um tu, como os demais lugares, mas um modo de um eu apresentar-se
na sua relação com o que se diz, significando diferentes relações entre o lugar de
84
dizer e o que se diz (GUIMARÃES, 2005c). Esses lugares apresentam-se sempre
como a representação da inexistência dos lugares sociais de locutor.
Por esta perspectiva, e tomando de novo (2a) como a sequência de análise,
podemos afirmar que quem aí diz, em relação ao que diz, não é alguém que se
apresenta como que independente da história, acima de todos e que retira o dizer de
sua circunstancialidade. Tampouco é aquele que se apresenta como apagamento do
lugar social, ou ainda como aquilo que todos dizem, num todos diluído numa
identificação de fronteiras para esse conjunto de todos.
O lugar de dizer presente nesse enunciado, mais precisamente, nessa cena
enunciativa, significa o Locutor como que submetido a um regime de uma binaridade
valorativa, do tipo verdadeiro/falso, igual/desigual, permitido/não permitido. Assim,
dizemos que em (2) temos um tipo de afirmação não modalizada “em que o
enunciador, ao se apresentar como o lugar de dizer, apresenta-se como quem diz algo
verdadeiro em virtude da relação do que diz com os fatos” (GUIMARÃES, 2018,
p.132). Esta representação é uma forma de identificação do enunciador com o
universal, por isso, enunciador-universal. Por isso, um lugar de dizer como não social,
fora da história.
Estas conclusões, quando associadas a um modo próprio de
funcionamento do jurídico, identificam-se com um “modo geral” de enunciações
ligadas à legalização produzidas em cenas enunciativas próprias desses tipos de
acontecimentos. No caso específico do enunciador universal presente no enunciado
em tela, observamos que no agenciamento desta enunciação, em que o falante é
agenciado a falar, na medida em que é constituído pela relação com as línguas do
espaço de enunciação a partir do qual fala, além de colocá-lo em litígio com outros
falantes (GUIMARÃES 2018).
Em (2a’), o alocutor é um alocutor-legislador (aquele que oficialmente
legisla para e em nome dos brasileiros), do qual se relata um dizer dito do lugar de
dizer universal. Enquanto que o enunciador se apresenta como o lugar que garantes
a todos e todas a verdade desta afirmação, a de que todos e todas, isto é, sem
exceção, são iguais perante a lei. Assim, o acontecimento, significado em (2a’) acima,
se refere à igualdade como algo irrestrito e indistinto, “fazendo crer” que o que aí se
85
afirma sobre igualdade seja algo “previamente entendido” por aqueles para quem esta
lei, “supostamente”, visa a alcançar. Nesse sentido, o correlato do lugar social de
dizer, o alocutor desta cena, é o alocutor-legislado.
Por outro lado, a cena, por esse agenciamento, produz, politicamente, a
divisão Locutor/alocutor-legislador. De modo que o enunciador que acabamos de
analisar apresenta-se segundo a relação com o que se diz, neste caso, como
universal. Segundo Guimarães (2018, p. 64), “um aspecto importante na relação entre
os lugares de enunciação é que as correlações L/LT e al-x/at-x são estabelecidos em
relação ao modo como o enunciador (E) é agenciado”, no nosso caso, um enunciador-
universal que se apresenta como quem diz uma verdade, nos termos em que o jurídico
é apresentado para a sociedade historicamente. Isso porque dada a historicidade do
agenciamento enunciativo, que é caracterizada pelo espaço enunciativo e pela cena
enunciativa, dizemos que um instituto de verdade do jurídico encontra-se presente
nas formas como o falante é agenciado e nas suas respectivas correlações dentro da
cena.
Primariamente, podemos elaborar o diagrama representativo da presente
cena enunciativa, na forma como segue em (a):
(a) L -------------------------------------------------------------------------------- LT
Euniv. - Todos são iguais perante a lei
al-legislador-------------------------------------------------------------al-legislado
Conforme o que vimos, e considerando as relações do espaço de
enunciação, o falante, agenciado e dividido pelo acontecimento de enunciação, é
constituído pelas relações históricas entre línguas (GUIMARÃES, 2018). Isto implica
algo fundamentalmente importante nos estudos enunciativos do sentido e da
significação em linguagem, qual seja, o fato de que a linguagem não é vista nos
domínios enunciativos como algo fundamentalmente dialógico, mas histórico, como
86
pressupõe o próprio funcionamento do agenciamento enunciativo: dado pela
caracterização do espaço de enunciação, considerando que a relação que o constitui
seja entre línguas e falantes e não entre falantes simplesmente, e pelas configurações
e constituições díspares do acontecimento, ora apresentadas na presente cena
enunciativa.
4. ANÁLISE SEMÂNTICO-ENUNCIATIVA DA LEI 12.965/14 E DA CONSTITUÇÃO
FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988
4.1. Apresentação do objeto e do procedimento de análise
Conforme o que vimos até aqui, o acontecimento de enunciação toma o
falante e o agencia como lugar de enunciação e, nessa medida, estes agenciamentos
enunciativos produzem textos que integram enunciados diversos. Estes, por sua vez,
significam por esta relação com os textos. Há, portanto, diferentes modos de relação
dos enunciados nos textos que, de modo geral, nos interessam e que fazem parte de
um escopo analítico decisivo no que diz respeito aos objetivos do presente estudo.
Para tanto, entendemos que a significação e o sentido na enunciação são instâncias
produzidas a partir da mobilização da língua relativamente a uma materialidade
histórica, dentro de espaços de enunciação, especificamente na sua relação com
falantes.
Nessa medida, tomaremos como procedimentos de análise dos textos
jurídicos, e de seus respectivos enunciados, os modos de relação enunciativa da
articulação e da reescrituração, em cujo funcionamento encontra-se “previsto”, e é o
que nos interessa mais particularmente, o funcionamento enunciativo da enumeração,
por meio do qual estes modos de relação produzem coexistências de funcionamentos
e sentidos (GUIMARÃES, 2009). De modo geral, pensaremos a referência e a
designação de termos específicos.
Neste capítulo, analisarei, portanto, dois acontecimentos enunciativos em
específico, recortes do texto da Lei 12.965/14 e da Constituição Federal do Brasil de
1988. Como ato de trabalho procedimental, partirei da sondagem, a partir da qual
procurarei encontrar e explorar enunciados em recortes destes acontecimentos de
87
enunciação, explorando esses enunciados enquanto integrados ao texto do qual serão
recortados (GUIMARÃES, 2018) e que aí significam. Outro aspecto particular deste
procedimento será a análise comparativa de recortes realizados por sondagens
relacionadas a outras sondagens e, por assim dizer, de recortes operados em textos
distintos que contenham um mesmo elemento linguístico, tidos pelo ordenamento
jurídico como “complementares” e coordenados entre si. Este trabalho comparativo e
relacional de diferentes sondagens, espera-se, permitirá que a análise encaminhe, por
si, novos rumos e eventuais inflexões nos domínios da semântica da enunciação.
Para o desenvolvimento da presente análise, consideramos que o texto
jurídico possui um modo de funcionamento específico, um escopo a partir do qual se
configura e se estabelece um “padrão”, do ponto de vista do funcionamento de textos
que venham a compor um modelo de texto válido para o ordenamento jurídico em,
praticamente, toda a sua esfera. Ou seja, passadas todas as etapas de
formulação/composição da lei, (projeto, criação, sanção e promulgação) segue-se o
cumprimento de toda uma adequação ao “modelo geral” permitido nesses espaços.
Este “formato”, no sentido próprio de forma linguística e de sua disposição no texto,
interessa-nos diretamente, pois a língua é um sistema de regularidades moldado pelas
relações constitutivas dos discursos que, pela enunciação, movimentam seu
funcionamento (DIAS, 2015).
A partir disso, segundo os princípios enunciativos de que partimos e no
imbricamento entre forma e enunciação jurídica presentes no texto da lei, os
acontecimentos enunciativos sobres os quais especificamente nos debruçamos
configuram-se enquanto instâncias de funcionamento próprio dessas enunciações, e
com uma particularidade: a de possuírem “lugares” a serem formalmente preenchidos
pelos alocutores dessas enunciações por meio de um ritual, ou, de seu cumprimento.
Antes de tratar dessa particularidade, cumpre lembrar que enunciados são unidades
de análise semântica possuidoras de sentido, dados por três princípios básicos: a)
pelo modo de relação com o texto de que são parte constitutiva; b) por possuírem
independência relativa frente aos textos de que fazem parte; e c) por possuírem
consistência interna que os identifiquem e os “substanciem” enquanto unidade.
A referência a esses “lugares” a serem preenchidos por certas rubricas
jurídicas para a constituição dos textos de lei a que nos referimos acima diz respeito
88
ao fato de que não se tratam apenas de nomes (ainda que não apareçam formalmente
no texto de lei) dados pelos doutrinadores, mas de enunciados cujo sentido é dado na
enunciação pela “posição” que ocupam no formato geral da lei e, como tal,
possuidores de cenas enunciativas distintas uma das outras, como veremos a seguir.
Dessa forma, o texto legal possui, em regra nessa ordem, título, ementa,
preâmbulo e artigos constitutivos de um caput, o primeiro artigo, que encabeça o artigo
como um todo, incisos, parágrafos e alíneas. Em relação aos artigos, estes se
encontram no interior de divisões específicas: títulos e capítulos, que os nomeiam.
Dentro dos capítulos há ainda seções e subseções. Além disso, para a presente
análise, consideraremos a indicação do número da lei, seguida de sua data de
promulgação, como título do texto, além dos nomes que encabeçam tanto o título
propriamente dito quanto os capítulos e seções de cada um desses títulos. Isto posto,
podemos proceder à análise dos objetos, iniciando pela Lei 12.965/14.
4.2. Análise do preâmbulo da lei 12.965/14
No caso específico da Lei 12.965/14, lei que regulamenta o uso da internet
no Brasil, temos um nome que encabeça o texto, portanto, uma espécie de título
“geral” desta lei, “possuidor” que é de todas as características de um enunciado com
funcionamento de sentido relacionado ao texto que nomeia, qual seja, um enunciado-
título: “Lei 12.965, de 23 de abril de 2014”. Pelo princípio da sondagem, apresentado
acima e na metodologia do presente trabalho, neste texto, procederemos ao recorte
dos seguintes enunciados: o preâmbulo, que precede o “corpo” propriamente dito das
normas, mais os capita18 dos artigos 2º e 3º no capítulo I, intitulado “Disposições
preliminares”, do artigo 9º, na seção I do capítulo III, intitulado “Da Neutralidade da
Rede” e, por fim, do caput do artigo 19, na seção III do mesmo capítulo, intitulada “Da
Responsabilidade por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros”.
18 Capita é o plural de caput, em latim. Sobre este termo, é importante que se diga, o Dicionário técnico jurídico o define como “(termo) que designa a primeira parte de um artigo de lei, que contém seu fundamento”. (GUIMARÃES, 2014, p. 147. grifo meu).
89
Cada um desses elementos, inclusive aqueles que dirão respeito ao texto
da Constituição Federal do Brasil de 1988 em seções posteriores, respaldam-se numa
conveniência analítico-metodológica que tem relação direta com o objetivo geral desta
análise, qual seja, a escolha de elementos linguísticos específicos que sejam capazes
de demonstrar, por seu funcionamento enunciativo próprio, como o acontecimento
produz sentidos a partir de uma peculiaridade, a de sua temporalidade própria. Em
outros termos, um “mesmo elemento linguístico” funciona como uma diferença em
relação a outro acontecimento e não como seu correspondente, seu conforme, como
quer a teoria do controle de constitucionalidade que permeia todas as diretrizes
hermenêuticas do ordenamento jurídico brasileiro.
Os elementos e expressões linguísticas presentes nos enunciados desses
dois textos serão escolhidos segundo os critérios da própria análise. Desse modo, a
ideia é, localizados tais elementos de análise, relacioná-los de tal forma que sejam
capazes de responder as perguntas iniciais. Posteriormente, seguir com a
comparação efetiva de funcionamentos enunciativos em diferentes acontecimentos,
no interior do que considero, tal como Guimarães (2018), enunciados decisivos para
os propósitos imediatos deste trabalho, o que ocorrerá em seu capítulo conclusivo.
Isso posto, procederemos incialmente então com a análise do preâmbulo da Lei
12.965/14.
Para procedermos a esta análise, tomaremos o preâmbulo como a própria
sequência que intentamos analisar, isto é, tomando-o como um enunciado complexo,
enquanto recorte do texto desta lei. De saída, como veremos, a caracterização da
cena enunciativa parece ser o melhor percurso a se assumir para melhor entendermos
as relações que aí dentro funcionam e significam, ou seja, como este enunciado
“participa” do todo do texto de que faz parte, neste acontecimento de enunciação.
Além disso, entender seu funcionamento a partir dos lugares de enunciação que se
apresentam nesta cena enunciativa.
Tomemos, então, a seguinte sequência:
[1] A PRESIDENTA DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
90
Do ponto de vista da cena enunciativa que constitui o enunciado em [1],
temos nesta sequência um enunciado denominado preâmbulo da lei, enunciado título
nesta Formação Nominal, através do qual um lugar social de dizer, alocutor-legislador,
alocutor desta lei, abriga a figura do Congresso que estabelece, decreta, (alocutário-
presidente), lugar social que também pode vetar algo. Mais especificamente, temos,
na presente enunciação, o falante agenciado em Locutor pela divisão do
acontecimento, o qual é agenciado em um alocutor-legislador que abriga outro lugar
social de dizer, o de presidente. Estes lugares sociais de dizer têm em comum o
mesmo correlato, o alocutário-cidadão.
Consideramos então que os lugares sociais de dizer põem-se
decisivamente no centro do dizer na medida em que o Locutor, ao ser agenciado,
coloca, entre outras coisas, o alocutor-legislador como o alocutor-x do memorável que
não significa nesta enunciação, mas num acontecimento outro, anterior. Assim, o lugar
social que diz [1] na enunciação é um lugar social legalmente instituído e autorizado
constitucionalmente a dizer (faço saber), numa enunciação que se dá num presente
de um acontecimento que sucede outra enunciação, aquela que decreta a presente
lei, de modo que o alocutor-legislador é significado como aquele que elabora leis. Este
movimento é tratado pela pragmática como performatividade, ou seja, o alocutor
apresenta o texto, por este enunciado, como sendo a lei, e ela significa enquanto lei.
Estas considerações remetem a um outro aspecto da enunciação em [1],
dessa vez ligado à reescrituração que, no texto em questão, ocorre pela repetição da
primeira pessoa (eu), em eu sanciono, como alusiva à primeira pessoa, reescriturada
por elipse em (eu) faço saber. Por isso, dizemos, com Guimarães (2005a), que a
reescrituração pontua de forma constante uma duração daquilo que ocorre e que, ao
reescriturar, faz interpretar algo como diferente de si, além de recortar o que aí se
apresenta como passado, isto é, como memorável. Por este memorável, quem
sanciona a lei só o faz a partir, e depois, de quem decreta, submetendo
argumentativamente aquele a este: Ora, por um lado, é sabido que não há
sancionamento da lei sem a sua decretação, que antecede a sanção presidencial num
tempo diferente do acontecimento e, por outro lado, o funcionamento do sentido na
temporalidade própria do acontecimento da enunciação jurídica mostra como ela (a
temporalidade) organiza esses dizeres de tal forma que os lugares de enunciação são
91
interpretados como algo que significa per si, como se a linguagem jurídica
funcionasse independentemente, isenta da política.
Pelo parafraseamento de [1], temos:
[1’] Eu, a presidenta da República, faço saber que o Congresso Nacional
decreta e eu sanciono a seguinte Lei
Ou ainda:
[1’’] Eu, a presidente da República, faço saber que, tendo o Congresso
Nacional decretado, eu sanciono a seguinte Lei
Vemos que chegamos a [1’’] em decorrência de [1’]. De modo que, pela
sequência [1’’], vemos a reescrituração por substituição do termo reescriturado eu por
um termo apositivo (a presidente da república), elemento reescriturante neste
enunciado. Em seguida, retomada por elipse em faço saber e por repetição em eu
faço saber. Do ponto de vista das operações enunciativas, entendemos tratar-se de
uma enumeração, uma vez que temos claramente nesta ocorrência acumulação e
coordenação (GUIMARÃES, 2002), dada numa narrativa sintética que se caracteriza
pela apresentação de três ações distintas (um fazer saber, um decretar e um
sancionar) que, ainda que apresentadas pelo alocutor como simultâneas, não o são.
Isto porque, opera aí uma espécie de “apagamento de uma temporalidade” de certa
forma “hierarquizada” por uma deontologia jurídica: um ato, segundo as regras do
ordenamento jurídico, não deve suceder outro sem uma previsão legal. Mas, a análise
semântica da cena mostra que o modo como o alocutor organiza o enunciado, na sua
forma exaustiva, conduz a uma interpretação aparentemente linear de uma simples
sequência de fatos.
Em outros termos, há aí um lugar social de dizer (alocutor-presidente),
agenciado politicamente neste acontecimento, cujo dizer dá-se pela sustentação de
um argumento: uma autoridade autorizada a dizer enquanto tal, autorizada a fazer
saber e a sancionar que não pode dizer senão nessas condições de disparidade do
92
Locutor, nas condições presentes e determinantes no jogo (a presença de outro lugar
social) de sentidos operado pelo acontecimento político da enunciação. Neste
funcionamento, podemos ver que a relação entre o que elabora a lei e o que a
sanciona é dada por uma relação sine qua non, pela qual uma enunciação (a da
sanção) só é possível por outra que a antecede (a do decreto).
De outro lado, o enunciador do que é enunciado na sequência [1’],
podemos dizer, trata-se de um enunciador-individual. Isso porque o lugar de dizer,
especificamente nesta representação do modo como o Locutor apresenta-se na cena,
que aqui se apresenta como agenciado politicamente em lugar social de dizer
(alocutor), isto é, como aquele que faz saber. Assim, por esse funcionamento, a
linguagem é dada como independente da história, numa especificidade em que este
enunciador retira o dizer de sua circunstancialidade e como um lugar que se apresenta
como aquele que está acima de todos. As “implicações enunciativas” dessas
considerações serão vistas ao longo desta análise.
Segundo a teoria semântica do acontecimento, o acontecimento da
enunciação divide o real segundo o funcionamento de uma instância de dissenso, e
não de consenso. Nessa medida, em termos enunciativos, temos a instituição jurídica
organizando e identificando seus alocutores politicamente, pelo recorte do mundo das
coisas, significando-as (Guimarães, 2005a). Sistematicamente, o político “entranha-
se” no jurídico afirmando a igualdade nestes espaços pelo conflito desigual do real
dividido, organizando os lugares sociais e suas relações (o que veremos se reproduzir
em outros lugares desta análise). Esta mesma instância política que divide o real o faz
de tal forma que seu processo se dá, segundo o funcionamento político do
ordenamento jurídico, em nome do pertencimento de todos.
Todas estas posições, até aqui, põem em xeque posições linguísticas como
as de Austin (1990) que considera o sentido como depreendido de performativos como
os aqui dispostos ( faço saber, decreta e sanciono), pelo uso da palavra na linguagem,
entendido como ato de fala produzido por um sujeito individual, em termos
psicológicos e atrelado a um conjunto de situações pré-estabelecidas, meramente
contextos, sem as quais um ato não se realiza. Em outra perspectiva, apesar de não
distante desta, encontram-se as posições de cunho jurídico-hermenêuticas, que têm
suas bases fundadas em concepções como a de um sujeito de conhecimento, dado
93
definitivamente, pelo qual a verdade aparece, a-histórico, e não como tomado
historicamente, fundado e refundado na história, ou seja, como um sujeito histórico
propriamente dito. Como exemplo desse posicionamento, podemos observar como o
jurista Juarez Freitas se posiciona em relação aos estudos da significação e do sentido
no campo do ordenamento jurídico, dado por uma determinação sistemática. Segundo
Freitas (2004, p. 27):
Está claro, pois, que não se deve afastar a preocupação conceitual ou analítica, porém importa evitar exacerbá-la de modo a desprezar as instigantes situações concretas relacionadas ao universo da aplicação normativa. Em contrapartida, força admitir, sem abstração do mundo real, a imprescindibilidade ineliminável de consistência lógica do ordenamento jurídico, de sorte a dele se procurar ter uma percepção conceitual harmônica no que tange à concatenação de princípios, normas estritas e valores (...) resta afastada, por ingênua, qualquer visão acentuadamente normativista, pois a Ciência do Direito requer também e necessariamente uma fundamentação racional no espaço da decisão ou da escolha valorativa (...) Como objeto de cognição e de compreensão, o sistema jurídico mostra-se dialeticamente unitário, aperfeiçoando-se no intérprete, sendo ele o intérprete positivador [...] (grifo meu)
Pelo exposto, fica claro que para o ordenamento jurídico, assim como para
a teoria dos atos de fala, o sentido não é colocado como uma questão de linguagem
e sim psicológica, cognitiva. Antes, conforme exposto na posição de Freitas (2004), a
hermenêutica jurídica deve se embasar basicamente em dois “princípios”: de uma
lado, numa concepção da verdade como correspondente de um mundo real, empírico
e, portanto, lógico; de outro, fundada na ideia de um sujeito cognoscente, psicológico,
racional, em contrapartida a um sujeito histórico, como defende a semântica da
enunciação.
Do nosso ponto de vista, como vimos, o sentido é considerado a partir do
funcionamento da linguagem, no acontecimento da enunciação. O conjunto das
análises semânticas até aqui apresentado é fundamental e decisivo para procedermos
ao estudo comparado do sentido das palavras e expressões que estejam presentes,
a um só tempo, em enunciados da Lei 12.965/14 e da Constituição Federal do Brasil
de 1988, os dois acontecimentos que nos propusemos investigar.
94
4.3. Análise dos artigos 2º e 19: o sentido como diferença
O sentido é constitutivo das relações de linguagem, ou, mais
especificamente, das relações enunciativas do acontecimento, mas não se reduz a
uma relação interna, independentemente de sua exterioridade (GUIMARÃES, 2009).
Assim, a relação de linguagem que consideramos para a presente análise considera
a linguagem em uma relação com o seu fora. Este sentido é, pois, construído
linguística (relação linguagem-linguagem) e simbolicamente, neste caso com um
funcionamento estabelecido por sua conexão com as “coisas”.
Ainda sobre a posição enunciativa assumida nesta análise, é preciso que
se diga: ela não é estruturalista, no sentido de pensar a linguagem enquanto
unicamente estrutural, nem referencialista, no sentido de pensar a linguagem como
descrição de coisas “existentes”, dadas por alguma forma de classificação operada
na linguagem. Como a orientação hermenêutica do atual ordenamento jurídico
positivado brasileiro parece se respaldar predominantemente sobre esta última
concepção de linguagem, este aspecto representa um ponto de inflexão teórica muito
importante nas considerações seguintes. De modo que, numa outra direção,
entendemos, com Guimarães (2009), que, a produção do sentido dá-se,
eminentemente, por procedimentos enunciativos de dois tipos gerais, ou, dois modos
de enunciação: articulação e reescrituração.
Para pensar esse modo de produção de sentido, considera-se o
funcionamento semântico dos enunciados, consideradas estas unidades
fundamentais de análise, ou ainda, sequências linguísticas, entendidas
inexoravelmente enquanto unidades de sentido se integradas ao texto (GUIMARÃES,
2009). Assim, falar de sentido nestes domínios é considerar em que texto essa
unidade de análise esteja funcionando.
Pelo procedimento de sondagem, operar-se-á a análise de enunciados
jurídicos tomados por meio da observação desses dois modos determinados de
relação enunciativa no texto, nos acontecimentos de enunciação jurídica, mais
especificamente, em operações em que o modo enunciativo da enumeração ocorre
no interior de relações predicativas, atribuindo sentido às expressões linguísticas
95
nelas presentes. Isto nos leva a pensar que o funcionamento enunciativo da
enumeração, dado no interior de articulações e reescriturações, interessa-nos
objetivamente neste trabalho, mais que as relações de predicação propriamente ditas.
Esses dois modos de relação, apesar de não terem correlação direta com os sentidos
específicos dessas relações, fazem parte da produção de sentido que nelas
funcionam. No interior desses modos, há, por exemplo, o modo de relação por
coordenação, que, por sua vez, se relaciona com a enumeração (GUIMARÃES, 2018).
A coordenação é o processo de acúmulo de elementos numa relação de
contiguidade que toma elementos de mesma natureza e reorganiza-os como se
fossem um só da mesma natureza de cada um dos constituintes (GUIMARÃES, 2018).
Há, por assim dizer, uma especificidade importante ligada à articulação por
coordenação que diz respeito, de um lado, ao fato de que (por esta forma de
articulação) “o acontecimento especifica uma operação pela qual o Locutor relaciona
elementos do enunciado” e, de outro, à uma relação entre a coordenação e a
enumeração tal que existe entre elas uma correlação direta, isto é, a enumeração é
o correspondente dos sentidos que funcionam pela coordenação, assim como19 ocorre
a correspondência entre o modo de relação de reescrituração por expansão com a
enumeração, esta enquanto o sentido correspondente a esse modo de relação. Além
disso, pela relação entre enumeração e a exterioridade linguística, de modo que este
modo enunciativo de atribuição de sentido a expressões linguísticas é meio que dá o
acesso à materialidade histórica das coisas (GUIMARÃES, 2009).
Para Guimarães (2009), o funcionamento enunciativo da enumeração deve
ser analisado levando em consideração os funcionamentos da articulação e da
reescrituração, como vimos acima. De modo que, este funcionamento da enumeração
é que mostra como esses modos de relação enunciativa produzem coexistências de
funcionamentos e sentidos, ou seja, os sentidos são aí produzidos por uma forma de
funcionamento enunciativo específico.
Isso posto, para o tratamento do artigo 2º da lei 12.965/14, tomaremos
como procedimento de análise as relações de articulação, com ênfase no modo de
relação por enumeração (no interior de estruturas de reescrituração e articulação)
19 Vide os quadros nos quais estas relações são demonstradas. In: GUIMARÃES, 2018, p. 85 e 93.
96
presente em relações de predicação determinadas enunciativamente. Isso porque
qualquer expressão linguística funciona, de um lado, por uma relação do alocutor com
aquilo que se fala e com o acontecimento no qual ele fala aquilo que ele fala e, por
outro, por uma relação entre elementos linguísticos (GUIMARÃES, 2018).
Antes, porém, de analisarmos propriamente dito cada um dos artigos
escolhidos enquanto enunciados, importa notar uma característica presente
praticamente em todos esses enunciados jurídicos, presentes desde os capita de cada
artigo da lei 12.965/14. Em regra, trata-se de formações predicativas regularmente
seguidas de extensas enumerações, cujo funcionamento não é tratado pela
hermenêutica jurídica geral em termos históricos, enunciativos. Antes, e como é o
próprio do campo jurídico, tratados enquanto sentenças a-históricas sustentadas
eminentemente por posições referencialistas, que entendem a linguagem como
descrição de coisas existentes, via classificação de objetos do mundo, como vimos
acima. Assim, os termos-núcleo decisivos desses enunciados integrados aos textos
jurídicos significam, para a hermenêutica, estritamente por essa referência ao mundo,
isto é, sem se considerar as diferentes relações produzidas pelo acontecimento de
enunciação.
A sequência abaixo, tomada como enunciado, refere-se ao art. 2º da lei:
[2] A disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão, bem como: I – o reconhecimento da escala mundial da rede; II – os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais; III – a pluralidade e a diversidade; IV – a abertura e a colaboração; V – a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e VI – a finalidade social da rede. (art. 2º da Lei nº 12.965 de 23 de abril de 2014. Câmara dos Deputados – Brasil)
Tomaremos de [2] a sequência [2a]:
[2a] A disciplina do uso de internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão
97
Em se tratando da designação, como sabemos, esta deve ser vista,
primeiramente, como diferente da referência e da denotação (GUIMARÃES, 2005c).
Assim, para pensarmos a designação no campo da enunciação, ou ainda, o sentido
de palavras dentro desse espectro de considerações, é preciso inicialmente
refletirmos no modo como o nome, ou expressão nominal, significa no acontecimento
de enunciação. Para tanto, parte-se do pressuposto de que um nome significa, na
relação de predicação, enquanto termo que se integra com o restante do enunciado;
na formação nominal sujeito, significa por um modo particular de engajamento
enunciativo. Assim, numa relação de predicação, antes que invariavelmente se refira
a algo, um nome ou expressão nominal significa em virtude de sua relação com o
enunciado ou com o texto (GUIMARÃES, 2018).
Para pensarmos o funcionamento de nomes que em geral significam
conceitos, pensamos a significação em termos enunciativos, ou seja, o sentido não é
dado segundo uma referência a coisas que estão no mundo, mas segundo o que
significa no interior da enunciação onde a expressão se localiza. Nesse sentido,
retomaremos o enunciado [2a] para um maior esclarecimento dessa questão.
[2a] A disciplina do uso de internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão
Pelo que vemos, a expressão “liberdade de expressão” poderia ser
significada em [2a] como uma expressão referencial ou predicativa, por estar no
interior dessa unidade predicativa, porém, do ponto de vista enunciativo, tem seu
significado “implicado” pelas relações operadas no/pelo acontecimento de
enunciação, isto é, como um elemento que, antes de se referir, designa. Assim,
dizemos, com Guimarães (2005b), que a palavra “liberdade”, por exemplo, identifica
algo historicamente no mundo, em um tudo do modo como significa no enunciado [2a],
elemento este integrado ao texto da Lei 12.965/14. Para Guimarães (2018), quando
uma expressão linguística referencia, ocorre a particularização de algo na e pela
enunciação. Aqui, lembramos o que disse Guimarães (2002, p. 9) quando de sua
menção a Rancière:
98
“A designação de uma palavra, de um nome, (...) é sua significação enquanto algo próprio das relações de linguagem e também, e por isso mesmo, enquanto uma relação simbólica exposta ao real, enquanto uma relação tomada na história. Deste modo, a designação identifica objetos, tal como Rancière (1992)”.
Dessa forma, a referência a liberdade em [2a] é dada primeiramente como
referência a algo específico, particularizada por meio de uma articulação ocorrida no
interior dessa formação nominal (liberdade de expressão), isto é, operada em virtude
do modo como os elementos linguísticos, pelo agenciamento enunciativo, significam
nessa contiguidade, organizada fundamentalmente por uma relação do Locutor com
aquilo que se fala na enunciação, o que significa dizer que o sentido aí é dado pelo
acontecimento de enunciação que torna possível esta articulação. Podemos dizer
então que a palavra liberdade é, por um lado, referida nesta sequência enquanto uma
forma particular de sentido e, por outro lado, designada segundo uma ordem que
considera o sentido desta palavra na enunciação de que ela faz parte.
Assim, em termos enunciativos, a relação entre referência e designação é
entendida de tal forma que, segundo o domínio enunciativo, a referência deve ser
entendida (apenas) a partir da designação, em outros termos, a referência decorre da
designação, constitutiva que é do acontecimento de que este termo faz parte. Ora,
dado que a designação constitui uma relação com o real, investiga-se que relação há
na integração desse termo com o real trazido pelo texto da lei (GUIMARÃES 2018).
Após um breve levantamento, é possível observar que a palavra liberdade
aparece em 6 (seis) ocorrências em todo o texto da lei 12.965/14, sendo que, em 5
(cinco) delas, aparece dentro da mesma formação nominal, liberdade de expressão,
na qual a palavra liberdade aparece sempre associada a expressão de expressão, de
modo que em cada ocorrência encontramos um sentido particular, com seu sentido
determinado singularmente em cada acontecimento de que faça parte a expressão.
99
4.4. Análise com base nas reescriturações enumerativas do texto da lei
As operações enunciativas são modos de integração dos enunciados com
o texto (GUIMARÃES, 2009). Assim, os enunciados e seus elementos significam em
virtude da unidade que integram, o texto. Outro aspecto importante desse modo de
funcionamento enunciativo é o fato que ele é um meio pelo qual se tem acesso à
materialidade histórica das coisas, como apontamos acima, e, em decorrência disso,
coloca o estudo enumerativo numa posição muito particular nos estudos de linguagem
de cunho enunciativo: a relação da linguagem com sua exterioridade.
Desse modo, articulação e reescrituração são procedimentos gerais de
relações enunciativas do acontecimento que produzem sentido na linguagem, de
modo que uma de suas “formas” de funcionamento é a enumeração, na qual o sentido
não se dá como dependente de sua exterioridade e não apenas por relações internas
entre elementos de uma dada estrutura. Por outro lado, como aponta Guimarães
(2009, p.52), “as relações entre elementos linguísticos marcam operações
enunciativas que colocam em relação o Locutor com aquilo que fala”, e isso ocorre
porque esta relação se dá no acontecimento pelo agenciamento político da
enunciação. Do que inferimos que o Locutor não escolhe seu dizer, mas é agenciado
a dizer segundo os modos como o espaço de enunciação distribui as línguas aí dentro,
onde o sentido é construído por um funcionamento eminentemente linguístico.
Sobre este agenciamento político da enunciação é preciso que se diga:
funciona por uma ambivalência enunciativa configurada pela relação do Locutor com
aquilo que ele fala, no acontecimento em que fala, atrelada à uma relação entre os
elementos linguísticos (GUIMARÃES, 2009). De tal modo que esta marca aquela.
Assim, a relação entre o Locutor e as formas linguísticas, própria da enunciação,
ocorre da seguinte forma (Guimarães, 2009, p. 50):
o Locutor é agenciado a dizer pelo modo como as formas linguísticas se constituíram sócio-historicamente e pelo modo como o espaço de enunciação distribui as línguas, e os modos de dizer e o que dizer, para seus falantes. [De modo que] o Locutor só é Locutor enquanto falante determinado por este
espaço político de dizer, o espaço de enunciação.
100
A noção de falante é, pois, a de uma figura enunciativa simbólica, não-
empírica, determinada por suas relações com as línguas no espaço de enunciação de
que faz parte. Estabelecido o espaço de enunciação, temos a cena enunciativa,
categoria metodológico-descritiva (GUIMARÃES, 2018) fundamental que é
caracterizada pelo agenciamento político do falante da enunciação, isto é, o
acontecimento político de enunciação é o que produz sentido na cena, constituída que
é pelo agenciamento do falante em lugares (figuras) de enunciação: Locutor, alocutor
e enunciador. Pela concepção semântica, o funcionamento da linguagem e da
produção de sentido dados no acontecimento de enunciação se dá pela consideração
de que a enunciação mobiliza esses dois procedimentos gerais, dentro dos quais,
funciona a enumeração.
Na articulação, as relações semânticas são estabelecidas segundo o modo
como os elementos linguísticos, dado o agenciamento enunciativo do falante,
significam por suas relações de contiguidades, as quais são organizadas segundo
uma relação local que se dá de duas formas: uma pela relação entre os próprios
elementos linguísticos e outra pela relação entre Locutor e aquilo que se fala, de modo
que a articulação é significada pela enunciação por essas relações de contiguidade.
Há, assim, para Guimarães (2009), três modos de articulação: o de dependência e
coordenação, pelos quais o Locutor relaciona elementos do enunciado (internamente),
e o de incidência, pelo qual o Locutor relaciona o enunciado à enunciação.
Na reescrituração, temos um procedimento em que se rediz o que já foi dito
(GUIMARÃES, 2009), o que, do ponto de vista enunciativo, não quer dizer a mera
relação catafórica ou anafórica entre os elementos de um texto, mas uma relação tal
que, por determinados procedimentos, uma expressão linguística se reporta a outra
segundo “regras” dada pela integração enunciado-texto. Além disso, o procedimento
de reescrituração (redizer o dito) faz interpretar a forma reescriturada como diferente
de si, isso em virtude de fazer parte deste procedimento. Nessa medida, este
procedimento funciona segundo uma operação enunciativa fundamental para a
constituição do sentido pelo acontecimento enunciativo e, consequentemente, para
aquilo que aqui interessa em termos de enumerações presentes em enunciados
jurídicos.
101
Para melhor entender a enumeração como um dos modos de se produzir
sentido presente nos processos de reescrituração, é preciso inicialmente partir da
especificação que Guimarães (2009) faz do modo como é estabelecida a relação entre
o elemento reescriturado e o que o reescreve, isto é, da “natureza” desta relação, que
é caracterizada enquanto transitiva, simétrica e não-reflexiva.
• Transitiva: ela se constitui por um funcionamento à distância e
transversal (e não por relações de contiguidade). Assim, se y
reescritura x e z reescritura y, então z reescritura x.
• Simétrica: ela não se constitui pela ordenação dos elementos
linguísticos, mas pelo modo como a reescrituração opera os modos
de integração dos enunciados com o texto, que significam em virtude
do texto que integram. Assim, se x reescreve y, então y é também
uma reescritura de x. Ser simétrico, então, significa: ter a mesma
distância entre si, poder um “ocupar” a posição do outro.)
• Não-reflexiva: Se x reescreve y, então a relação de reescrituração é
desigual, isto é, x não é igual a y. X não significa no enunciado como
Y significa. Infere-se disso que esta relação entre x e y é não-
reflexiva. No caso de repetição (x1 é reescrito por x2), x2 significa
diferentemente de x1 em virtude de ser uma repetição. Essa
diferença entre x1 e x2 é o que dá sentido à repetição, isto é, a
reescrituração, apesar da aparência de igualdade e reflexividade,
não opera como uma identidade. De modo geral:
(...) um conjunto de reescriturações de um elemento linguístico qualquer em um texto, ou conjunto de textos, não é uma classe, não é um paradigma, pois a relação de reescrituração não é uma relação de equivalência, já que não é reflexiva. A característica da reescrituração está ligada a um aspecto fundamental: fazer sentido envolve sempre um diferente que se dá no acontecimento enunciativo. (GUIMARÃES, 2009, p. 54)
Há diferentes modos de se redizer o dito: repetição, substituição, elipse,
expansão, condensação e definição. A expansão é o modo de ampliar o dito, isto é,
uma reescritura por expansão/ampliação (dada por uma palavra, uma FN qualquer,
102
um período, um parágrafo) de um elemento linguístico (um título, uma FN etc.). A
condensação, em que um termo reduz outro, condensa toda uma narrativa, por
exemplo, feita anteriormente.
Além disso, esses diferentes modos de reescrituração, por sua vez,
produzem sentidos de diferentes maneiras, que podem se dar por sinonímia,
especificação, desenvolvimento, generalização, totalização e enumeração
(GUIMARÃES, 2009). Destes, interessa-nos diretamente a enumeração, isso porque,
para os fins desta pesquisa e da “natureza interpretativa” que orienta a doutrina
jurídica, há que se colocar uma diferença fundamental entre caracterização e
determinação.
Enquanto a relação por caracterização está ligada a uma ocorrência restrita
à “estrutura” da língua (relações internas da língua), ou seja, a uma forma de relação
cuja ocorrência se dá no interior de um Grupo Nominal qualquer em que um adjetivo
caracteriza um substantivo, a relação por determinação ocorre segundo uma relação
de sentido entre formas linguísticas tal que as relações internas da língua produzem
sentido enquanto relações próprias do acontecimento enunciativo, por isso tratadas
como relações enunciativas (GUIMARÃES, 2009).
Segundo Guimarães (2009), a reescrituração por enumeração é um modo
de expansão, que pode funcionar como o avesso da generalização e da totalização.
Para o autor, o estudo da reescrituração leva ao funcionamento enumerativo, e
também coloca em questão os procedimentos de expansão e condensação, e os
sentidos de enumeração e especificação. Vale ressaltar, porém, que a enumeração
não se apresenta apenas como reescrituração.
Guimarães (2009) entende a enumeração como um procedimento de
acumulação em que os elementos linguísticos vêm coordenados e em contato. Esta
definição conduz invariavelmente a duas diferenças fundamentais: de um lado, a
enumeração não se dá por repetição; de outro, ela não se dá no contexto da retórica,
como a arte do bem dizer. Além disso, como colocado por este autor, a enumeração
é caracterizada por determinadas oposições, já na sua apresentação.
103
Há diferentes formas de enumeração. Por meio de cada uma delas, o
Locutor apresenta a enumeração por meios de variados “recursos”: ou como uma
forma de argumento da enumeração específico, ou “apenas” um conjunto de
expressões como modos de apresentar aspectos de um conjunto como unidade de
sentido, entre outras. Segundo Guimarães (2009, p. 58), a enumeração é um lugar
interessante “para se observar como articulação e reescrituração se movimentam na
produção de sentidos”.
Para observamos este funcionamento no segmento a seguir, levaremos em
conta uma diferença importante. Numa receita de bolo, como no exemplo apresentado
por Guimarães (2009), o alocutor apresenta cada um de seus itens (do texto) como
coordenado assindeticamente a outros por um modo de relação apositiva, os quais
apresentam, cada um por sua vez, um dos elementos que compõem o “conjunto” dos
ingredientes do bolo, conforme apresentado do Guimarães (2009, p. 59):
(7) Bolo de fubá da vó Maria20 (7a) Ingredientes: – 4 ovos; – 2 xícaras de chá de açúcar; – 2 xícaras de chá de trigo; – 1 xícara de chá de fubá; – 3 colheres de sopa de margarina; – 1 xícara de chá de leite;
– 4 colheres de chá de fermento.
Por outro lado, do ponto de vista enunciativo, o que vemos é que esta
enumeração é uma reescrituração da expressão “ingredientes” (GUIMARÃES, 2009),
que precede imediatamente a enumeração. De modo que, a enunciação não “se
coloca” como uma organização/coordenação meramente formal de uma sequência de
elementos linguísticos dispostos enquanto partes de um “todo”, mas enquanto uma
reescrituração enunciativa dada por meio de procedimentos em que uma expressão
20 Exemplo apresentado por Guimarães (2009) como “sequências nº 7 e 7(a)”, na pág. 65 do artigo
“A Enumeração: funcionamento enunciativo e sentido”. Caderno de Estudos Linguísticos, 51.
104
linguística se reporta a outra segundo uma integração do enunciado ao texto, de tal
modo que o que é reescriturado é interpretado como diferente de si. Vemos, assim, o
termo enumerado “ingredientes”, independentemente do modo de relação apositiva
dessa sequência, atribui sentido ao termo enumerador, estabelecendo uma relação
de determinação, como vimos. Cada um dos termos enumerados apresenta-se como
“ingredientes”. Voltemos à sequência [2], como recorte do art. 2º da lei:
[2] A disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão, bem como: I – o reconhecimento da escala mundial da rede; II – os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais; III – a pluralidade e a diversidade; IV – a abertura e a colaboração; V – a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e VI – a finalidade social da rede.
Incialmente, tomaremos desta sequência uma outra, a [2a]:
[2a] A disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão, bem como:
Comecemos pelo aspecto da cena enunciativa. Vimos que o aspecto
político constitutivo do espaço de enunciação, e do acontecimento do funcionamento
das línguas (a enunciação), é a constituição por este espaço de uma distribuição
desigual das línguas para seus falantes e que é justamente esta enunciação que
estabelece as cenas enunciativas pela divisão dos lugares de enunciação
(GUIMARÃES, 2018). Neste acontecimento, esta divisão apresenta-se como uma
espécie de projeção das relações línguas-falantes. Temos assim, nessa configuração,
de um lado, o agenciamento das sistematicidades linguísticas e, de outro, o
agenciamento das condições histórico-sociais dos falantes. A cena é, pois, uma
105
categoria metodológico-descritiva fundamental para o modo como o sentido é tratado
pela semântica do acontecimento.
Ao tomarmos a sequência [2a], observamos que o sentido produzido por
ela faz significar uma enunciação que estabelece regras (juridicamente autorizado a
falar), ou normas, para aqueles que utilizam a internet no Brasil. Ou seja, há, de um
lado, aquele que, por uma deontologia jurídica, estabelece-as e, de outro, aquele que
deve obedecê-las, o usuário, de tal modo que este usuário encontra-se, conforme
apresentado pelo Locutor desta cena, segundo esse acontecimento enunciativo, como
um lugar enunciativo impedido de fazer algo em descumprimento do que aqui se
encontra arrolado relativo aos fundamentos da disciplina do uso da internet no Brasil
esteja previsto.
O falante é assim tomado, pelas sistematicidades linguísticas, como
Locutor, isto é, agenciado em Locutor, o qual é, pela divisão própria do agenciamento,
agenciado em um alocutor-legislador, um lugar social de dizer que elabora leis, o
alocutor-legislador e, de outro, seu correlato, o alocutário-usuário-de-internet, aquele
“instado” politicamente a obedecer a esta “palavra de ordem”.
Outro aspecto da cena enunciativa é aquele que diz respeito à sua
politopia. Assim, para a caracterização do lugar de dizer (enunciador) desta cena,
procederemos ao parafraseamento de [2a], teremos, assim, [2a']:
[2a’] (nós sabemos que) a disciplina de uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão.
A sequência [2a’] permite observar algo do modo de se apresentar o que
se diz, pois, o que é dito apresenta-se como um dever-fazer estabelecido, segundo
uma lógica deôntica, por um lugar coletivo, o dos legisladores. Na paráfrase
apresentada, este sentido aparece significado pelo nós sabemos. Esta coletividade é
também marcada por duas outras características, a impessoalidade da apresentação
106
do que se diz e pela não individualidade do lugar, o que garante a relação entre o dizer
e aquilo de que se fala (GUIMARÃES, 2018). Tem-se, então, um enunciador coletivo
(neste caso, o lugar de dizer dos legisladores), de que faz parte o alocutor-jurista (que
se inclui no nós da paráfrase acima. Dizemos então que o alocutor-jurista (lugar social
de dizer) apresenta o dizer de um enunciador coletivo21.
Temos, assim, a seguinte configuração desta cena:
Como podemos observar na ilustração, o enunciador, o lugar de dizer, é
um lugar de enunciação que se apresenta como quem diz de um lugar universal
(Euniv.). Este lugar não projeta um tu, como no caso das relações de alocução entre
L/LT e al-x/at-x, mas, antes, se mostra como um modo de o eu se apresentar na sua
relação com o que se diz (o que se diz por quem). No exemplo acima, o enunciador
coletivo apresenta um conjunto de regras e valores que deverão fundamentar e
orientar o modo como os usuários de internet no Brasil devam utilizá-la “como o que
se diz sobre algo a partir do lugar universal, da sustentação de uma verdade para
todos” (GUIMARÃES, 2018, p. 62)
21 A caracterização do alocutor-x como alocutor-jurista é uma forma de se especificar o
lugar social de dizer de legislador, alocutor-legislador, que pode representar qualquer agente político que atue nos processos legislativos de elaboração da lei. O processo legislativo de elaboração de uma lei envolve diferentes agentes sociais, não necessariamente agentes técnicos (juristas), mas sempre agentes políticos (legisladores). Portanto, jurista é aqui entendido como aquele que elabora a lei do ponto de vista técnico-jurídico, antes e durante sua submissão a todas as fases previstas em lei constitucional. Estes agentes formam um lugar coletivo, escolhido segundo critérios políticos e sociais, não se tratando, portanto, de um lugar universal. Disso decorre a caracterização de um enunciador coletivo que, embora não seja universal, diz como quem diz uma verdade não para todos, mas para um grupo social também específico, o de usuários de internet.
L -------------------------------------------------------------------- LT
Euniv. - A disciplina de uso da internet no Brasil tem como
fundamento o respeito à liberdade de expressão.
al-legislador ----------------------------------------------- at-usuário-de-internet
107
A partir destas considerações da cena enunciativa, relativa à sequência
[2a], passaremos a considerar os diversos aspectos relativos à reescrituração
enumerativa. Incialmente, devemos considerar o fato de que temos, em [2a], uma
relação de predicação e de que, consequentemente, teremos determinadas
Formações Nominais no interior do sujeito e/ou do predicado. Assim, dentro um
enunciado, poderá haver uma relação de predicação que se aplique, por exemplo, a
formação nominal sujeito que reescreva outro elemento da relação. O elemento
enumerado ou enumerador poderá, assim, ocupar diferentes lugares da predicação.
No exemplo apresentado por Guimarães (2009) acima, cada item da
enumeração é apresentado como coordenado assindeticamente aos outros, além de
apresentarem, cada um por sua vez, um dos elementos que compõem o “conjunto”
dos ingredientes do bolo. Mas, como podemos observar, essa enumeração é uma
reescrituração de “ingredientes”, que encabeça imediatamente a sequência
enumerativa. Como veremos à frente, a enumeração não é uma
organização/coordenação meramente formal de significação apriorística de elementos
linguísticos representativos do “todo” (GUIMARÃES, 2009), mas uma reescrituração
enunciativa dada por meio de procedimentos em que uma expressão se reporta a
outra segundo uma integração do enunciado ao texto.
Segundo Guimarães (2009), as expressões enumeradoras têm um modo
próprio de se formarem, como Grupos Nominais (GN) nos quais um adjetivo
caracteriza, por uma articulação, o nome enumerado. Isso permite inferir que o termo
enumerado determina o sentido das expressões enumeradoras que fazem de todo o
processo de reescrituração enumerativa. Por isso, em [2], podemos dizer, sem maior
aprofundamento, que “fundamento” (elemento enumerado) determina o sentido de
todos os elementos enumeradores que o sucedem.
Outro aspecto importante da enumeração é seu caráter empírico-exaustivo.
Por ele, a enunciação não é caracterizada como um modo de relação que classifica
os elementos enumeradores que reescrevem o elemento enumerado. Por este
entendimento, o elemento enumerado classifica o elemento enumerador, isto é, há
um conjunto de objetos que são/compreendem o “fundamento” do uso da internet no
Brasil, e a enumeração diz qual é cada um deles. Mas isto não se sustenta, pois,
conforme Guimarães (2002), a enumeração tem outros funcionamentos.
108
A título de exemplificação de como a exaustividade é aparece “prevista”
nos textos jurídicos, tomaremos um texto da obra Português Jurídico, de Paiva (2015).
Nesta obra, o autor busca definir o termo enumeração inserindo-o no interior de dois
outros conceitos, o de “descrição” e o de “conectivos”. Observemos cada uma das
duas definições.
(a) Descrição: em um processo, a enumeração circunstanciada, detalhada dos
caracteres de algo; ato ou efeito de escrever; reprodução, traçado, delimitação;
representação oral ou escrita de; exposição. (PAIVA, 2015, p. 93, grifo meu)
(b) Conectivos (...)
O domínio do uso de conectivos adequados é fundamental ao bom texto.
Ideia de...
enumeração, distribuição ou continuação
em primeiro lugar (plano, lugar, momento), a princípio, em seguida, depois de, finalmente, em geral, desde logo, por sua vez, quanto ao mais, por seu turno (...)
(PAIVA, 2015, p. 89, grifo meu)
Estes exemplos definem bem o caráter geral da exaustividade com que é
tratada a enumeração. Isso porque, em (a), temos a enumeração tratada como
sinônimo de descrição, por seu turno, ocorrida num processo (jurídico) de fatos
colocados de forma inventariada, orientada a apresentação de objetos do mundo, um
após o outro, justapostos, de forma a descrever as partes de um “todo”. Pensada
assim, a enumeração encontra-se circunscrita, delimitada, meramente como uma
ferramenta de exposição subjetiva de fatos.
No campo destinado a definir “conectivos”, Paiva (2015) define “conectivos”
como elementos linguísticos cuja função é a de “ligar” um termo do texto a outro, de
modo que o produtor do texto jurídico é levado a produzir o texto instado a dominar o
uso de elementos previamente definidos em uma tabela22. Esta é dividida em dois
22 A tabela presente em Paiva (2015, p. 89) foi resumida por considerarmos desnecessário
apresentar seus itens à exaustão.
109
blocos, sendo o da esquerda relativo ao “sentido” (ideia de...) atrelado a cada
conectivo e o da direita destinado a enumerar, na forma de uma lista, as mais diversas
formas, expressões (elementos enumeradores) linguísticas equivalentes.
Notemos que em “enumeração, distribuição ou continuação”, “distribuição”
e “continuação”, no interior desta enumeração, reescrevem “enumeração” de forma
sinonímica, isto é, trata-se de expressões-conceito que se equivalem. À direita da
tabela, uma longa enumeração por expansão em que o sentido dos elementos
enumeradores é apresentado como equivalentes e, como em (a), reescriturando
“enumeração”. De modo que o sentido de “enumeração”, e com isso seu conceito
neste texto didático, é apresentado como um modo de relação exaustivo e
homogêneo.
De volta às características da reescrituração enumerativa no texto da lei, e
com o intuito de aprofundarmos um pouco mais estes conceitos, procederemos ao
parafraseamento da sequência [2]:
[2’] São fundamentos da disciplina do uso da internet no Brasil o respeito à liberdade de expressão, bem como, o reconhecimento da escala mundial da rede; os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais; a pluralidade e a diversidade; a abertura e a colaboração; a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa
do consumidor; e a finalidade social da rede.
Ora, uma sequência X, do ponto de vista do acontecimento enunciativo,
pode ser feita a partir da formulação de uma tomada de posição do alocutor-x
(alocutor-jurista) do texto que diz [2a]. Temos que, o nome “fundamentos”, termo
presente no predicado desta relação de predicação, é especificado por um “conjunto”
de articulações modalizadoras, tais como: “o respeito à liberdade de expressão”, “o
reconhecimento da escala mundial da rede”, “os direitos humanos, o desenvolvimento
da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais” (...). Ou seja, o Locutor
mostra-se responsável pelo conjunto de preceitos legais que, segundo uma ordem
deôntica do ordenamento jurídico brasileiro, orienta o modo como deve se dar o uso
da internet no Brasil. Desse modo, fundamentos determina cada um dos elementos
dessa enumeração.
110
Num aspecto muito particular a ser notado nesta enunciação, vemos que o
Locutor mostra-se efetivamente responsável na medida em que é tomado por um
discurso econômico-liberal, determinado por expressões como “liberdade de
expressão”, “direitos humanos”, “exercício da cidadania”, “pluralidade”, “abertura” e
“livre iniciativa”, as quais, dado um memorável de enunciações, agenciam
politicamente o falante em Locutor. Outra razão para esta ocorrência é o fato de que,
como vimos, a enumeração em questão, como qualquer outra, não ocorre como uma
classificação dos termos enumerados, mas sim por sua determinação. Assim, na
medida em que estes elementos enumeram “fundamentos”, este lhes determina o
sentido.
Em [2’], a enumeração desdobra o enumerado em virtude de a Formação
Nominal Sujeito (FNS) a disciplina do uso da internet no Brasil vir posposta ao
predicado são fundamentos, de modo que a enumeração acaba por apresentar-se
como reescrituração de fundamentos, termo núcleo do predicado que, por sua vez, é
constitutivo de diferentes formações predicativas: o respeito à liberdade de expressão,
o reconhecimento da escala mundial da rede (...). A diferença aqui (em [2’]) é que a
Formação Nominal Sujeito reescreve o predicado ou, mais especificamente,
reescreve o núcleo (fundamentos) da expressão enumerada que se forma no interior
da formação predicativa.
Vamos observar um outro aspecto da reescrituração enumerativa de [2]
que diz respeito à heterogeneidade da enumeração, mas agora, por meio de outra
paráfrase desta sequência:
[2’’] O respeito à liberdade de expressão, bem como o reconhecimento da escala mundial da rede; os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade (...) são fundamentos da disciplina do uso da internet no
Brasil.
Também por esta sequência, constituída numa relação de predicação de
ordem direta (sujeito anteposto ao predicado) que não se apresenta como uma
definição, representa-se a exaustividade da enumeração, da qual costuma se valer a
dogmática jurídica que instrumentaliza a hermenêutica jurídica brasileira (STRECK,
111
2000), isto é, estaríamos diante de uma enumeração completa de todos os
fundamentos da disciplina que regula, para os efeitos desta lei, o uso da internet no
Brasil.
No entanto, o que vemos, de fato, é uma marcação da enunciação operada
pelo Locutor através da expressão “bem como”, cujo valor conjuntivo introduz o que
seriam os demais elementos da enumeração, imediatamente após a FN o respeito à
liberdade de expressão, primeiro elemento enumerador de fundamentos e, por assim
dizer, um elemento topicalizado na enumeração. É esta marcação do Locutor um dos
modos de se introduzir a heterogeneidade da enumeração, pela natureza distinta de
cada um dos seus itens.
Em [2’’], assim como em [2’], essa heterogeneidade significa o próprio
processo de enunciação do Locutor (GUIMARÃES, 2009). Assim, concluímos que a
enumeração não se apresenta como exaustiva, tampouco como um inventário de
fatos encerrados em si mesmos, delimitados e detalhados do caractere de algo, como
propôs Paiva (2015), ou um inventário de objetos do mundo, mas como “uma
construção de linguagem, que pode, sob o modo de inventário, apresentar uma
redundância com a que vem introduzida” por bem como, como propõe Guimarães
(2009, p. 62).
Para identificar o caráter heterogêneo da enumeração, é preciso indicar o
funcionamento, ou a “natureza”, das reescriturações presentes nos elementos
enumeradores, comparando seus funcionamentos em “função” da enunciação de que
participam, isto é, da integração do enunciado ao texto. Assim, na sequência [2’],
temos que fundamentos é reescriturado de modo “particular” pelo que vem logo em
seguida: o respeito à liberdade de expressão; o reconhecimento da escala mundial da
rede (...). Estes elementos enumeradores, portanto, reescrevem por expansão
fundamentos, como um modo de produzir seu sentido (de fundamentos) por um
desenvolvimento presente nesta expansão, aliás, sentido produzido pelo próprio modo
de reescrituração.
Como podemos ver na sequência [2a], o enunciado apresenta, ao significar
um desenvolvimento, uma articulação predicativa entre A disciplina do uso da internet
no Brasil e tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão. Conforme
112
Guimarães (2002), isso mostra um aspecto muito importante da enumeração, pois,
numa mesma sequência, podemos ter uma coexistência que faz significar duas
coisas: a articulação de predicação e a reescrituração por extensão com sentido de
desenvolvimento. Nesta relação, é possível também notar que esta reescrituração tem
sentido hiperonímico para “fundamentos”, que é o termo central desta predicação.
Trata-se, pois, de modos diferentes de significar a reescrituração enumerativa.
Um outro aspecto importante ligado à heterogeneidade enumerativa é,
como vimos, o fato de que, em um processo de reescrituração, o sentido é produzido
na medida em que o redizer, ao retomar a expressão/palavra que rediz, faz com que
ela signifique de outro modo (GUIMARÃES, 2018). Isso porque o processo de
reescrituração constrói sentido de palavras e expressões linguísticas em virtude do
próprio processo de que faz parte. Assim, essa retomada não se dá como uma
remissão ao mesmo, mas, ao se realizar, faz significar algo que não estava significado.
O caráter heterogêneo da enumeração advém do próprio de esta funcionar
enunciativamente, ou seja, a enumeração, em lugar de apresentar um todo
homogêneo e exaustivo, enumera elementos muitas vezes opostos, como é caso de,
na comparação entre determinados elementos enumeradores, presentes na
sequência [2], o Locutor opera um cruzamento entre expressões cujo sentido tem a
aparência de uma exaustividade, de um inventário exaustivo, quando o que
observamos é a própria heterogeneidade constitutiva da enumeração. Seria o caso
de comparar, por exemplo, reconhecimento da escala mundial da rede a livre
iniciativa; ou ainda, desenvolvimento da personalidade a finalidade social da rede.
Podemos dizer então, com Guimarães (2009), que a enumeração que
define quais os fundamentos que devem disciplinar o uso da internet no Brasil não o
faz por uma apresentação de uma informação homogênea caracterizadora desses
fundamentos, mas, de forma não-exaustiva, apresenta, por um processo de
reescrituração enumerativa enunciativa, uma enumeração na forma de um inventário
enumerativo marcado pela heterogeneidade constitutiva dos elementos que
reescrituram o nome fundamentos.
Se parafrasearmos, ainda mais vez, a sequência [2], numa certa disposição
de seus termos, teremos algo como abaixo:
113
[2’’’] Fundamentos (da disciplina...): - o respeito à liberdade de expressão; - o reconhecimento da escala mundial da rede; - os direitos humanos; - o desenvolvimento da personalidade; - o exercício da cidadania em meios digitais; (...)
Talvez, ao observarmos o modo como a enumeração é aqui disposta pelo
parafraseamento, entendamos porque ela é tratada como uma descrição, no sentido
de um inventário dos elementos de um estado de coisas relativas a fundamentos, em
vez de ser tratada como algo constituído pelo acontecimento de enunciação, de tal
modo que “o sentido da enumeração exaustiva do todo abre para a não-totalidade e,
portanto, para o não homogêneo” (GUIMARÃES, 2009, p. 64). Trata-se de uma
enumeração de quais são os fundamentos que disciplinam o uso da internet no Brasil.
Temos, então, nesta sequência, uma coordenação assindética
estabelecida pela contiguidade dos elementos enumeradores. Além disso, essa
coordenação é uma reescrituração por expansão de fundamentos, palavra que, neste
caso, funciona como núcleo da FNS. Assim, cada uma das expressões enumeradoras
não forma (tal como no exemplo da receita de bolo trazida por Guimarães (2009)) um
conjunto chamado “fundamentos”, mas se trata de expressões que estão aí como
parte de “dever-fazer”. Assim, não se trata aqui de uma enumeração descritiva, mas
de um regramento dado numa ordem deôntica, apresentado pelo lugar de dizer de
uma coletividade, a de legisladores que elaboram a lei 12.965/14, na cena enunciativa,
um enunciador coletivo, como vimos anteriormente.
Além disso, a reescrituração, ao redizer algo como diferente de si, agencia
aí o sentido do regramento deôntico pelo lugar social de locutor, enquanto tradição
jurídica positivada e autorizada a organizar o estado de direito das pessoas. O texto
em que se encontra a sequência [2], artigo 2º da referida lei, é parte fundamental de
um regramento superestrutural que atribui diretrizes valorativas segundo uma
dogmática jurídica que instrumentaliza o direito e que dispõe um regramento tal que
fundamente a disciplina do uso da internet no espaço político brasileiro.
114
4.5. O artigo 19 da lei 12.965/14 na perspectiva dos modos de relação da
articulação e da reescrituração
Para adentrarmos na análise do art. 19, comparativamente ao art. 2°,
trataremos primeiramente da expressão liberdade de expressão. Como dissemos
anteriormente, esta expressão nominal aparece também em outros enunciados do
texto da lei 12.965/14. Dessa forma, procederemos à análise, a partir de agora, de um
primeiro recorte do que se encontra enunciado no artigo 19 desta lei. Temos então a
seguinte sequência:
[3] (a-caput) (a) Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
(...)
(b) § 2º A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal. (BRASIL, Lei 12.965, 2014)
Para analisar a sequência acima, resultado de um recorte operado a partir
do art. 19 da lei 12.965/14, continuaremos fazendo uso das duas principais operações
enunciativas que produzem sentido pelo modo como uma forma, a partir do enunciado
de que faz parte, a articulação e a reescrituração. Como vimos, o enunciado é a
unidade de análise da semântica, além disso, é visto por esta disciplina linguística
como uma unidade de linguagem cujo funcionamento apresenta uma consistência
interna aliada a uma independência interna (GUIMARÃES, 2018).
Esses modos de relação, portanto, ocorrem relativamente ao enunciado de
duas formas: um ligado à consistência interna do enunciado, a articulação; o outro,
ligado à sua independência relativa, a reescrituração. Tratam-se, portanto, de modos
de relação enunciativa que auferem sentido à diferentes formas de contiguidades
115
linguísticas, seja por relação local, remota, de predicação, de complementação,
caracterização, entre outras. Inicialmente, trataremos da operação enunciativa de
articulação.
A articulação é um modo de relação enunciativa dada por uma contiguidade
local relacionada a consistência interna dos enunciados e significada na enunciação.
Localmente, ela relaciona elementos linguísticos aos lugares de enunciação da cena
enunciativa, de tal modo que estes elementos significam por estas relações com os
lugares. A relação entre sujeito e predicado, por exemplo, é uma relação de
articulação. Assim, a organização interna dos enunciados pela articulação se dá por
três relações gerais específicas (GUIMARÃES, 2005a): dependência, coordenação,
incidência.
A relação de dependência ocorre quando os elementos contíguos ao
enunciado organizam-se como um só elemento. Na relação de coordenação, a
articulação toma elementos de mesma natureza e organiza-os como se fossem de
uma só natureza de cada um dos constituintes, em cuja contiguidade, os elementos
apresentam-se acumuladamente. Por fim, na relação de incidência, a articulação
vincula um elemento externo a outro (interno) que, ao se articular com ele, forma um
elemento de segundo tipo (GUIMARÃES, 2018), de tal modo que esse elemento
externo ao enunciado se faz nele presente para “avaliar”, “julgar”, “emitir alguma
opinião” sobre o dentro do enunciado no qual se insere.
Outro aspecto importante ligado aos modos de relação para a análise
semântica dos enunciados é pensar como o falante, agenciado politicamente em
Locutor, aparece relativamente ao acontecimento de enunciação, considera-se aqui,
portanto, a cena enunciativa relativamente aos modos de integração dos elementos
do enunciado ao enunciado e do enunciado ao texto. Nesse sentido, falando
especificamente dos modos de articulação em relação a este lugar de enunciação,
chamarei livremente de “papeis” do Locutor no modo articulatório de enunciados na
enunciação, que são assim divididos, conforme Guimarães (2018):
116
Articulação
dependência e coordenação Incidência
O acontecimento de enunciação especifica uma operação pela qual o Locutor relaciona elementos do enunciado.
O acontecimento de enunciação especifica uma operação pela qual a enunciação de um lugar de Locutor que se relaciona à enunciação de lugares de dizer diferentes. É preciso então o identificar, pela enunciação, quem seja esse enunciador do enunciado incidente. A enunciação que traz a “opinião” normalmente terá um enunciador-individual.
Observando os modos de relação de sentido na sequência [3], vemos que,
do ponto de vista da dependência, a expressão “liberdade de expressão”, estabelece
uma relação tal que o termo “liberdade” vincula-se ao termo “de expressão”
constituindo, assim, um único elemento, uma única unidade, na qual o funcionamento
é dado pela dependência de um, “de expressão”, a outro, “liberdade”.
Para pensar o modo de relação por coordenação, procederemos,
primeiramente, a um recorte da sequência [3], seguido de sua paráfrase, ficando
assim:
[3a] assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura
Este enunciado pode ser parafraseado por:
[3a'] (Esta lei visa a) assegurar a liberdade de expressão e (esta lei visa a) impedir a censura
Ou melhor:
[3a''] (Esta lei visa a) assegurar a liberdade de expressão e (também) a impedir a censura
Como dito acima, a relação de articulação por coordenação caracteriza-se
por um “trabalho enunciativo” em que elementos independentes (enunciados com
117
estrutura interna relativamente autônoma) vinculam-se a outros elementos (como se
fossem) de mesma natureza, formando um só enunciado. Assim, em [3a'], os
elementos-enunciados (Esta lei visa a) assegurar a liberdade de expressão e (Esta lei
visa a) impedir a censura são dois elementos, com relação de predicação interna, que
são vinculados formando o enunciado (Esta lei visa a) assegurar a liberdade de
expressão e (Esta lei visa a) impedir a censura por um “processo de acúmulo de
elementos numa relação de contiguidade” (GUIMARÃES, 2018, p. 81).
As relações de “a” e “de expressão” com “liberdade” são relações de
dependência, pois estes dois primeiros, atrelados ao último, funcionam como um
nome, como uma formação nominal (FN). Neste caso, temos uma relação
determinante-determinado. Por outro lado, “de expressão” também pode ser vista
como uma forma que especifica o nome, isto é, um especificador, por isso, uma
articulação por coordenação.
Desse modo, o enunciado, enquanto unidade linguística de significação,
possui não apenas relações internas dadas por articulação de seus elementos, mas
também relações de contiguidade que fazem dele um elemento que se integra ao texto
(GUIMARÃES, 2018). Acima de tudo, é preciso analisar o modo como estes modos
de relação se dão relativamente ao texto que integram, para daí se considerar seu
sentido, digo, o sentido do enunciado, o sentido do texto, ou ainda, o sentido do
enunciado ao texto, isto é, relações de sentido como um todo.
Segundo Guimarães (2018), não há correlação direta entre os modos de
relação por articulação e os sentidos produzidos internamente ao enunciado. Isso
porque o modo de relação traz consigo outra relação, com os lugares de enunciação
(Locutor, al-x, at-x, enunciador), que se constituem num acontecimento de enunciação
com temporalidade própria, onde o sentido é dado por esta especificidade temporal.
A partir de agora, nosso olhar se deterá um pouco mais sobre os processos
de reescrituração, modo de relação pelo qual a enunciação rediz o dito,
reinterpretando-o como diferente de si, como visto anteriormente na análise que
fizemos do art. 2°. Diremos então que, dados dois elementos x e y, dispostos numa
certa ordem formal-sequencial direta, y reescritura x, o que equivale a dizer que y
predica (= atribui sentido a) x. A reescrituração difere da articulação pois não se trata
118
de um modo de relação contígua ou ainda segmental. Desse modo, uma consideração
fundamental se constitui para esta relação: y, ao reescriturar x, significa,
cumulativamente, a soma do expressamente dito no enunciado anterior (x) e o fato de
que y, ao redizer o dito, diz também o não dito por/em x. (GUIMARÃES, 2018). Isso
tem a ver com o caráter exaustivo que esta operação dá a enumeração.
Outro aspecto importante da reescrituração diz respeito ao fato de que ela
coloca em funcionamento uma operação enunciativa fundamental na constituição dos
sentidos: a determinação semântica, pela qual uma expressão reporta-se a outra
por modos de relação específicos variados, que partem de um grupo básico formado
pelos seguintes modos: repetição, substituição, elipse, expansão e condensação.
Procuraremos aplicá-las ao caso em tela (a [3] e seus enunciados correspondentes e
consequentes: [3a'] e [3a'']).
Em relação à sequência [3], vemos primeiramente algo interessante ligado
a uma forma de reescrituração da expressão liberdade de expressão em seu primeiro
enunciado, que aparece reescriturada numa repetição por sinonímia no segundo
enunciado (§2º). Neste caso, observamos que o termo que reescritura a formação
nominal liberdade de expressão do primeiro enunciado desta sequência é o mesmo
que é reescriturado, isto é, uma repetição. Contudo, o que vemos nesse processo de
significação vai além de uma mera repetição.
Como vemos, o processo de repetição, diferente de outros modos de
relação, reescritura sem, por si mesmo, dar indicações mais “claras”, detalhadas,
sobre o sentido que guarda em seu processo, sem dar “pistas” mais diretas de onde,
por exemplo, encontra-se sua efetiva diferença ao reescriturar a formação nominal
com a qual se relaciona enunciativamente e, como vimos em Guimarães (2018), a
reescrituração rediz o dito reinterpretando-o como diferente de si e, dessa forma,
atribui sentido. Por isso, um caminho possível seria uma investigação mais
pormenorizada das contiguidades ligadas ao modo de repetição. Para tanto,
retomaremos a análise da sequência [3] procedendo desde já com um outro recorte,
desta feita a sua segunda parte (b), onde se enuncia a mesma expressão (liberdade
de expressão):
[3b] previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão
119
Antes de analisarmos este recorte de [3b], observamos que o primeiro
enunciado da sequência [3] tem em [3a] seu recorte. A paráfrase deste, [3a''], mostra
que temos duas formações nominais (liberdade de expressão e a censura) presentes
em relações de predicação, ambas no predicado, sendo liberdade o centro da
expressão nominal de que faz parte e censura o centro de outra. Trata-se, assim, da
existência de duas articulações de predicação que assim significam, por essas
relações entre as formações nominais. Isso mostra que a relação de alocução é
configurada por um al-legislador que enuncia para um at-provedor e que este mesmo
alocutor apresenta o enunciador, enunciador universal, fazendo aquilo que ele
assegura significar como que produzindo a conexão predicativa (GUIMARÃES, 2018),
de modo que o que é assegurado é feito pelo próprio enunciador desta cena, que se
apresenta como lugar de dizer que apresenta algo como verdadeiro, em virtude do
que enuncia em relação aos fatos.
Ora, em [3b], vemos, de saída, uma forma de reescrituração por
substituição anaforizada pela partícula que, que reescreve a FN previsão legal
específica “condensada” pelo elemento linguístico, sendo, portanto, o termo sujeito
que se articula nesta relação de predicação com o predicado onde está a outra FN,
liberdade de expressão. Estas relações mostram quais sentidos e como estes
funcionam especificamente neste processo. Desse modo, retomando [3b], vamos
proceder a sua paráfrase:
[3b’] Uma previsão legal específica deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal
Semelhantemente ao ocorrido em [3a''], o enunciado [3b’], traz o lugar
social de dizer, o al-legislador, apresentando o enunciador universal, mas, desta vez,
por meio de uma deontologia que faz significar nesta conexão predicativa a
responsabilização de seu alocutário, um at-legislador, por um futuro organizado em
torno do tempo próprio deste acontecimento de enunciação, isto é, por sua
temporalidade própria, específica, de sentidos. Há, dessa forma, um presente, que se
constitui pela relação entre o texto da lei e a enunciação de ele faz parte, e de um
futuro, especificamente como um futuro que esta lei projeta em seu presente, como
120
previsão de sentidos que se desdobrarão e que constarão em outras enunciações,
nas quais constem (ou, devam constar) o que aqui se enuncia como futuro do
acontecimento: o respeito a liberdade de expressão e demais garantias previstas na
CF/88.
Ainda em [3b’], podemos observar um outro aspecto muito importante, que
diz respeito à cena enunciativa deste enunciado. Como vimos, o lugar de dizer
(enunciador) alude o lugar social de dizer (al-x) e enuncia algo como uma disparidade
relativamente ao enunciado de que o sujeito faz parte: o sujeito significa conforme
uma relação com as coisas, com se estas fossem independentes da predicação. É
esta disparidade que faz o sujeito uma previsão legal específica significar neste
acontecimento como um fora da alocução, como algo preexistente, como uma
pressuposição de existência significada na alusão do enunciador ao alocutor.
Observamos então que a FN reescriturante liberdade de expressão
estabelece uma conexão importante numa integração entre dois enunciados distintos,
que, por outro lado, integram o todo do texto de que fazem parte. Ora, desta conexão,
infere-se um sentido dado pelo reescriturante que o conecta ao reescriturado e, assim,
remete-nos a outro aspecto particularmente interessante desta enunciação, só que,
dessa vez, a algo “fora do texto”, que diz respeito aos termos que se “avizinham” à
expressão reescriturante por repetição em [3b].
Vimos que a operação enunciativa da reescrituração por repetição não
apenas liga um termo a outro como forma de “comunicação” textual, ou, como se
costuma atribuir em situações como esta, a uma textualidade do conjunto, mas sim,
observamos que, ao operá-la, o Locutor atribui sentido por uma diferença, e essa
diferença se dá, principalmente, por uma deriva enunciativa incessante que aparece
nos pontos de identificação de correspondências e identidades que constituirão o
sentido (GUIMARÃES, 2009). Neste caso, temos, de um lado, uma forma linguística
que, embora se apresente como anaforizada e referenciada por uma igualdade com
outra forma, de outro, temos seu sentido se fazendo como uma diferença que constitui
a textualidade dessa sequência, isto em termos enunciativos.
No caso em tela, essa diferença se constitui como uma deriva enunciativa
que é estabelecida por uma correspondência entre o presente do acontecimento do
121
termo reescriturante (por repetição), que é enunciado no §2º da lei 12.965/14
(recortado por [3b]), e um memorável trazido pela menção que o Locutor faz da
Constituição Federal, especificamente pela referência que faz textualmente ao artigo
art. 5º da Carta Maior, de cujo texto faremos o recorte abaixo, que se “conecta” ao
enunciado em [3b’]. Temos, assim, a sequência abaixo:
[4] Art. 5º, IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. (DO BRASIL, 2010)
Para procedermos a esta análise, parafrasearemos [4] por:
[4’] (É sabido que apesar de) a manifestação do pensamento ser livre,
esta não deve ocorrer de forma anônima.
Ainda mais precisamente, poderíamos ter, de um lado, por sinonímia,
“manifestação do pensamento” como correspondente de “expressão do pensamento”
e, assim, termos “manifestação” por “expressão”. De outro lado, teríamos “ser livre”
por “liberdade”. A partir dessas considerações, podemos chegar à seguinte paráfrase
de [4’]:
[4’’] a liberdade de expressão não deve ocorrer de forma anônima.
Ora, pensando a cena enunciativa de [4’’], no agenciamento das condições
histórico-linguísticas de uma relação de alocução dada pelo espaço da cena da
enunciação jurídica, temos um alocutor-legislador que diz a um alocutário-legislado e,
nessa medida, o falante dividido e agenciado em Locutor apresenta-se no dizer
fazendo uso de (e sendo tomado por) uma sistematicidade específica, no uso que faz
de uma articulação linguística e deontológica como não deve, própria do jurídico, pela
qual atribui sentido particular a este dizer (GUIMARÃES, 2018). O Locutor, desse
122
modo, sustenta algo como: a liberdade de se expressar só deve ocorrer por uma
identificação, isto é, não há liberdade se ocorrida sem a devida identificação.
Desse modo, podemos dizer que o sentido de liberdade não é determinado
por seu elemento de articulação imediato de expressão, mas sim, por anônima, que,
nesta relação de predicação, dada por uma formação nominal sujeito, o lugar de dizer
universal alude o al-x e impõe um modo de configuração do real pelo qual se opera
uma espécie de “limitador” dessa “condição ou estado de liberdade”, neste
acontecimento de enunciação em específico. Além disso, esse modo impessoal do
enunciador se apresentar o que se diz na enunciação de [4’’] é apresentado como
uma “verdade para todos”, isto é, um enunciador-universal, num todos, vale dizer, cujo
limite é determinado pela própria instância política do acontecimento de enunciação.
E esse político aqui não é caracterizado pelo que se fala sobre liberdade,
nem sobre direitos, mas pela contradição da normatividade própria da lei, que
estabelece de forma desigual a divisão do real e afirmação do pertencimento dos que
não se encontram incluídos pelas liberdades e pelos direitos, na medida em que o
homem assume a palavra, ou seja, na medida em que fala, ainda que a palavra lhe
seja constantemente negada (GUIMARÃES, 2005c).
De volta ao enunciado [3a-caput], presente na sequência [3], procuraremos
indicar os sentidos nela produzidos, a partir de seu parafraseamento, seguido de um
procedimento de leitura um pouco mais pormenorizada de cada “etapa” do que nela
se encontra enunciado. Em seguida, procuraremos compreendê-la segundo o domínio
das considerações semântico-enunciativas propriamente ditas. Teremos então a
paráfrase da sequência como [3a-caput’]:
[3a-caput']: Com o objetivo de se assegurar a liberdade de expressão e de impedir a censura no ambiente da internet, o provedor de acesso a rede só poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado de um usuário a outro se, após ordem judicial específica, não tomar providências para tornar o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário e respeitados os limites técnicos e os prazos estabelecidos.
123
A partir da paráfrase de [3a-caput’], vamos imaginar que ocorre aí o
seguinte: existe um provedor-de-Internet (alocutário-provedor para quem um alocutor-
legislador diz na enunciação) que é responsável por administrar os conteúdos e as
relações na rede internacional. Supondo que exista, de um lado, um usuário A (UA) e,
de outro, um usuário B (UB), (referidos pela expressão “terceiros”), imaginemos que
UA cause algum dano a UB, expondo-o na internet causando-lhe algum tipo de
prejuízo. Assim, UB aciona a justiça, que emite uma ordem judicial contra UA, em
relação ao qual o Provedor-de-Internet fica responsabilizado de tomar determinadas
providências. Na hipótese de que tais providências não sejam tomadas, dispõe o texto
legal que o provedor seja civilmente responsabilizado pelo dano de UA a UB. Desse
modo, de uma forma muito específica e impessoal, o enunciador enuncia, isto é,
apresenta o que se diz sobre o asseguramento de uma liberdade de expressão, em
que aquilo que se diz encontra-se marcado pelo articulador somente poderá ser e que
também associa esse “direito” a algo que se relacione ao sentido de liberdade inferido
das relações que este termo estabelece neste enunciado.
Todavia, onde exatamente se “localiza” a relação entre esta liberdade de
expressão e a previsão de responsabilização civil do infrator, neste caso, o alocutário-
provedor? Mais especificamente, que relação existe entre essa liberdade de
expressão e o que é dito sobre a responsabilidade do provedor frente aos atos
danosos de um usuário relativamente a outro? Estaria sua explicação ligada ao fato
de que exista aí uma “noção preexistente” de liberdade em que esta esteja sugerida
por um “poder/não poder agir sem limites”?
Preliminarmente, podemos asseverar que as respostas a estas perguntas
não se dão por um olhar meramente referencial, isto é, por uma particularização tal
que associe o conceito de liberdade a algo exterior e pré-existente ao texto, nem
enquanto um texto com sentido “atrelado” ao intérprete da lei, como um texto à espera
de um sentido que este lhe possa atribuir, como quer a hermenêutica jurídica clássica.
Tampouco numa perspectiva de textualidade cuja base seja o engajamento linguístico
“conteudístico”, dado por relações de coesão inerentes estritamente ao texto. Antes,
o sentido, segundo o domínio semântico-enunciativo que representamos, é produzido
pelo acontecimento de enunciação de linguagem que, por uma temporalidade própria,
caracteriza-se, como vimos, por um funcionamento próprio da língua em relações de
124
alocução, em práticas de linguagem, pelo agenciamento de falantes em aqueles que
dizem (GUIMARÃES, 2005c).
Vemos que uma das possibilidades interpretativas, segundo o modelo
empírico-referencialista, para o asseguramento da “liberdade de expressão” expresso
pelo enunciado em [3a'] seria a de que o instituto legal procura simplesmente
resguardar o direito de alguém se expressar, no caso em tela, UA. Assim, a liberdade
de expressão seria interpretada como um direito que assiste a todos, indistintamente.
Além disso, a estes seria assegurado, segundo este “critério” de significação, o direito
de não terem seu dizer (aqui tratado como um expressar) censurado. Diante disso,
propomos uma análise que investigue, segundo os critérios das operações
enunciativas reescrituração e articulação, o modo como poderíamos depreender a
produção de sentido pelo modo como uma forma é afetada pela outra, dado o
agenciamento político de enunciação do acontecimento (GUIMARÃES, 2018) que
afeta o falante.
Decerto, o responsável por este dizer, o Locutor, que neste acontecimento
específico relaciona sua enunciação com o enunciado, associa a expressão nominal
liberdade de expressão a uma hipótese presente no enunciado [3a']: a do provedor
(seu alocutário) se omitir em relação a um dano causado por um usuário em relação
a outro. Neste caso, o sentido de liberdade, no acontecimento de enunciação, está
atrelado ao fato de que “ser livre” não significa poder falar qualquer coisa de alguém,
sentido este dado por um memorável, enquanto passo de significações, ligado ao
presente do acontecimento.
Assim, segundo esta enunciação, o único “instrumento jurídico” capaz de
limitar o uso “sem limites” do direito de expressão é dado pelo o asseguramento da
liberdade de expressão e pelo impedimento da censura, mas isso ainda não
“esclarece” o sentido. Isso porque, pelo modo como o enunciador alude o al-legislador,
não nos permite inferir nos termos do enunciado quais os limites dessa liberdade, ou
do expressar-se em relação ao outro, o que é confirmado pela “ideia” de que não há
censura. Afinal, o que diz a enunciação?
O sentido de liberdade de expressão não aparece aqui como o sentido
corrente no mundo: “todos são livres para expressar o que pensam”, mas,
125
particularmente neste acontecimento, como todos são livres para se expressarem
desde que não causem dano a alguém, isto é, num livre mas não tão livre assim, num
jogo instaurado no agenciamento por um poder-dizer/não-poder-dizer, pelo embate
liberdade/censura, no qual a liberdade de expressão é assegurada (no acontecimento)
por uma contradição que instala o conflito no centro do dizer, o qual é constituído
“pela contradição entre a normatividade das instituições sociais que organizam
desigualmente o real e a afirmação de pertencimento dos não incluídos”
(GUIMARÃES, 2005c, p. 17).
Outro aspecto importante ligado ao sentido de [3a-caput’], em termos
enunciativos e não referenciais, é sua relação de integração com outro enunciado
dessa mesma sequência [3], recortado como parte (b) de [3], numa referência ao §2º
do artigo 19, que apresenta no enunciado um memorável de significações trazido
menção ao art. 5º da CF/88, que, como vimos, estabelece justamente o limite à
liberdade de expressão: seu anonimato. Assim, o sentido é instaurado pelo
acontecimento de enunciação como um memorável de um sentido trazido de um
passado de significações para o presente deste acontecimento em [3a-caput’].
4.6. O artigo 9º e o enunciado-título da FN neutralidade da rede
O enunciado, unidade linguística que deve ser considerada sempre
integrada ao texto, é a unidade de análise da semântica enunciativa e, como vimos,
significa por sua relação de integração ao texto (GUIMARÃES, 2018, p. 75). Com base
nisto, analisaremos nesta seção o nome neutralidade enquanto elemento que integra
o enunciado-título “Da neutralidade da rede” e, como é próprio do funcionamento das
Formações Nominais (FN), este título significa a precedência do que a FN designa,
significa um existente significado pela FN. Por outro lado, o título, além de significar
essa precedência, assevera do que trata esta seção do texto da lei. A sequência na
qual se encontra o enunciado-título em questão é a seguinte:
[5] DA NEUTRALIDADE DA REDE. Art. 9º O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica
126
quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação. § 1º A discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada nos termos das atribuições privativas do Presidente da República previstas no inciso IV do art. 84 da Constituição Federal, para a fiel execução desta Lei, ouvidos o Comitê Gestor da Internet e a Agência Nacional de Telecomunicações, e somente poderá decorrer de: I - requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações; e II - priorização de serviços de emergência. § 2º Na hipótese de discriminação ou degradação do tráfego prevista no § 1º , o responsável mencionado no caput deve: I - abster-se de causar dano aos usuários, na forma do art. 927 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil; II - agir com proporcionalidade, transparência e isonomia; III - informar previamente de modo transparente, claro e suficientemente descritivo aos seus usuários sobre as práticas de gerenciamento e mitigação de tráfego adotadas, inclusive as relacionadas à segurança da rede; e IV - oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais. § 3º Na provisão de conexão à internet, onerosa ou gratuita, bem como na transmissão, comutação ou roteamento, é vedado bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados, respeitado o disposto neste artigo. (BRASIL, 2014)
Procederemos então ao recorte da sequência [5] para analisar o título do art. 9º da referida lei.
[5.1] (Título) Da neutralidade da rede
Antes de iniciarmos a análise propriamente dita, é preciso atentarmos para
o fato de que “o enunciado é a unidade de linguagem que apresenta uma consistência
interna no seu funcionamento, aliada a uma independência interna” (GUIMARÃES,
2018, p. 129) e, enquanto tal, a unidade de análise da semântica. Além disso, ele, o
enunciado, funciona constitutivamente em outra unidade, o texto, isto é, essas duas
propriedades do enunciado o fazem funcionar em virtude do modo de o texto integrar
esta(s) unidade(s). Mas, pensando os títulos de textos em geral, estariam eles, de
alguma forma, relacionados ao conceito de enunciado como o apresentado acima? E,
nessa medida, como se daria o funcionamento de enunciados-título na enunciação?
127
Comecemos pela afirmação de Guimarães (2018) que define título como
um enunciado, ou ainda, um modo específico de funcionamento dos enunciados e,
por isso, tratar-se de um enunciado-título, que pode ser um enunciado nominal ou um
enunciado que se constitui por uma determinada FN. Um aspecto muito importante
destas considerações é o fato de que enunciados-título, em regra, têm uma relação
particular com os demais enunciados do texto de que é título.
Ainda sobre os enunciados-título, Guimarães (2018) aponta que eles têm
normalmente estrutura nominal e apresentam-se como um engajamento de um eu
quanto ao título do texto enunciado e quanto ao estabelecimento do que ele enunciará
naquele texto, naquele acontecimento de enunciação. Nessa medida, a sequência [5]
acima é constituída por uma FN que integra uma formação preposicionada “Da
Neutralidade da Rede”, que funciona enunciativamente como o enunciado-nome da
seção do capítulo da lei de que faz parte e com ela estabelece, nesse acontecimento,
diferentes modos de relação.
“Da neutralidade da rede” é o nome deste texto, ou, algo como “aquilo de
que se fala/trata Há, por assim dizer, uma relação tal entre título e texto que
Guimarães (2018) denomina como autorreferencial. Para melhor caracterizar esta
relação particular entre os enunciados de um texto, vamos pensar a relação entre o
texto nomeado por seu título e a cena enunciativa. Num primeiro momento, partimos,
para pensar sua caracterização, das figuras enunciativas fundamentais do alocutor-x
e do enunciador com o que, de modo geral, inespecífico, a representação da cena fica
assim:
L --------------------------------------------------- AT
Ei – Da neutralidade da rede
al-legislador -----------------------------------at-provedor
Para caracterizar cada lugar enunciativo da cena, trataremos primeiro do
lugar de dizer (o enunciador). Neste caso, o lugar de dizer apresenta o título como um
128
lugar que se relaciona com o que diz como o que deve ser para todos, como lugar do
universal, mas, neste caso, como lugar de dizer que apresenta “regras”, como uma
“regra” para todos. Trata-se de um lugar de dizer acima da história, do qual se diz algo
sobre o mundo, portanto, de um enunciador universal (Euniv) (GUIMARÃES, 2002).
Por outro lado, o título é uma FN preposicionada enunciada de um lugar
social de dizer. Neste caso particular, vamos considerar que o alocutor-x é um
alocutor-legislador e que este al-x atribui um título à seção de um capítulo que integra
a lei enquanto “artigo 9° da Lei 12.965/14”, o qual estabelece uma relação correlata
com um alocutário-x, considerado aqui como alocutário-provedor, lugar social
responsável pela execução de serviços de transmissão de dados diversos. De modo
que este alocutor-legislador apresenta para seu alocutário-provedor a FN “Da
Neutralidade da Rede”, a qual é enunciada por um Euniv. Temos, então, a seguinte
caracterização da cena:
O Euniv significa o título como indicando a seção do capítulo de que é título,
pela relação de autorreferencialidade. De modo que, a cena do funcionamento do
título traz duas relações, a de nomeação e a da referência. A relação de nomeação
existe pela apresentação do nome pelo al-x e há, no dizer do Euniv, uma relação do
título ao que ele remete, isto é, o texto de que o título é parte. E, ao referir, o Euniv faz
alusão à designação, ao sentido da FN preposicionada, constituído por esta relação
(GUIMARÃES, 2018).
L ------------------------------------------------------ AT
Euniv – Da neutralidade da rede
al-legislador ------------------------------ at-provedor
129
No caso em tela, esta alusão do Euniv à designação será pensada não em
relação à FN como um “todo” (considerados todos os seus elementos), mas em
relação à expressão-núcleo dessa FN, neutralidade, que se constitui pelo
funcionamento “cruzado” de relações de articulação, próprias da FN, e da designação,
aludida pelo enunciador dessa cena. Assim, serão analisados os sentidos de
neutralidade. Por outro lado, dada a especificidade dos lugares de enunciador e
alocutor, temos que a FN é a “realização” dada pelo legislador, como título que nomeia
a seção do capítulo da lei. O título que nomeia esta seção poderia ser parafraseado
por algo como o título que dou a esta seção é Da Neutralidade da Rede. Desse modo,
como seria possível pensar o sentido de neutralidade nessa formação quando o que
é aludido aí é a FN como um todo, isto é, como um enunciado-título? Para
respondermos a esta questão, observaremos antes um outro aspecto importante que
envolve a enunciação dos enunciados-título.
Há uma relação muito particular neste funcionamento para que este sentido
de se referir à seção do capítulo da lei por seu próprio nome se constitua e, com isso,
se possa pontuar efetivamente como deve ser entendida a referência nos domínios
da enunciação. Ao mesmo tempo em que o alocutor-legislador e o Euniv integram a
cena, o Euniv, ao referir a seção do texto da lei, faz alusão ao alocutor-legislador, que
nomeou a seção ao apresentá-la (GUIMARÃES, 2018). Assim, para que o sentido da
referência se apresente, ela (a referência) necessita de reportar-se a um dizer que
produz enunciativamente uma designação, que produz uma relação de linguagem
com coisas enquanto significadas.
Ao tratar do enunciado-título em termos enunciativos, Guimarães (2018)
trata de outro aspecto muito importante e caro aos estudos enunciativos em
semântica: a existência de uma relação muito particular para que o sentido de referir-
se ao texto da lei, por sua própria FN, constitua-se. Isto porque, o Euniv, ao referir pelo
enunciado-título, faz alusão ao alocutor-legislador, que dá o enunciado-nome ao texto
da lei, na medida em que o apresenta a seu alocutário, o alocutário-provedor.
Para que o sentido dessa referência se apresente, ela precisa reportar-se
a um dizer que produz enunciativamente uma designação, isto é, dizer que produz
uma relação da linguagem com as coisas enquanto significadas. Ou seja, Guimarães
(2018), com esta afirmação, não nega que exista na linguagem uma relação de
130
referência às coisas no mundo. O que autor rejeita é o fato de que esta referência às
coisas seja, em si, uma relação com coisas significadas apenas por esta relação, daí
dizer: para se referir, é preciso, antes, designar.
O Euniv alude o al-x, alocutor-legislador, que de sua parte nomeia o texto.
Consideramos, então, que há duas indicações trazidas pela cena, uma do modo de
apresentação que constitui a nomeação, tal como no diagrama abaixo, e outra aquela
que constitui a alusão, tal como no diagrama anterior, que significam o caráter
autorreferencial dos enunciados-título (GUIMARÃES, 2018). Temos para a
apresentação da nomeação as seguintes relações na cena:
Por este modo, são constituídas as relações entre os lugares na cena da
enunciação em tela. Resta analisar como se dá a designação do nome neutralidade,
expressão núcleo constitutiva da FN preposicionada que nomeia e intitula o texto da
lei, isto é, deste acontecimento de enunciação.
Como podemos observar preliminarmente, o enunciado [5.1] configura-se
enquanto uma Formação Nominal que intitula e encabeça uma seção do capítulo da
lei em tela. Porém, em termos enunciativos, trata-se de uma expressão em cujo
interior funcionam, além de algumas regularidades gramaticais referidas a uma língua,
relações de sentido fundamentalmente importantes relacionadas à exterioridade da
língua.
L ------------------------------------------------------ AT
Euniv – Da neutralidade da rede
al-legislador ------------------------------ at-provedor
131
Isso porque, segundo o modo como consideramos o enunciado e os modos
como este produz sentidos, uma palavra presente nessa unidade de análise, apesar
de possuir uma consistência interna morfológica, não possui independência interna
que a integre por si só a um texto. É preciso então que seja primeiramente tomada
enquanto elemento desse enunciado e, assim, integrada a todo do texto, do
acontecimento. Somente a partir de sua integração ao enunciado é que ela será
considerada enquanto unidade significativa. “É a independência relativa, aliada à
consistência interna, então, que faz o enunciado significar e assim ser enunciado, e
não se reduzir a uma sequência de sons, ou de palavras, ou de formas,
simplesmente.” (GUIMARÃES, 2018, p. 16).
Ainda, segundo o autor, o sentido do enunciado e de seus elementos, como
é o caso de palavras e formações nominais, está ligado a diferentes modos de
funcionamento, como é o caso das relações de predicação, articulação, reescrituração
e outros, entre os quais, os enunciados-título que integram diferentes textos. Com
base nesse fundamento de que a palavra integra o enunciado e este integra o texto,
é que dizemos, com Guimarães (2002), que o sentido está ligado a essas relações de
integração de uma unidade linguística a outra, segundo o acontecimento de
enunciação a que estejam relacionados. O sentido se dá no acontecimento por esta
integração. Dessa forma, a unidade linguística que diretamente nos interessa nesta
análise, independentemente do procedimento analítico, é a palavra neutralidade. Para
tanto, incialmente procederemos à paráfrase da sequência [5.1], para pensarmos a
cena
[5.1’] (nós legislamos em nome de uma) neutralidade da rede
Por isso, entendemos que o sentido de um elemento linguístico, enquanto
elemento de um enunciado, é dado por suas relações tanto no enunciado quanto na
relação deste com o texto, e não como um sentido dado previamente, fora da
enunciação. Neste caso, o sentido de neutralidade é dado por essas relações
enunciativas, na especificidade do acontecimento de enunciação em que esse
“conjunto” de regularidades, associado à materialidade da língua, esteja inserido.
132
Tomemos então a palavra neutralidade, palavra central dessa formação
nominal que encabeça o enunciado-título, para analisar sua designação na sequência
[5], a ser analisada segundo sua relação de integração com o texto que intitula.
Sabemos que este nome pode se referir a algo que não esteja no texto em que
aparece. Mas, mesmo que se refira a algo, neutralidade só significa em virtude de sua
relação com o enunciado de que faz parte, e deste enunciado com o texto
(GUIMARÃES, 2018), e é com base nestas relações que este nome produz sentidos,
ou seja, que ele designa. Chega-se à designação de neutralidade pela análise de suas
relações de atribuição de sentido com outras palavras do texto, isto é, relações de
determinação semântica.
Determinar x é o mesmo que atribuir sentido a x. Para a descrição
semântica do sentido da palavra que escolhemos para sondagem (neutralidade), e
configurarmos o seu DSD (Domínio Semântico da Determinação), configuração
própria dessas relações de atribuição de sentido, analisaremos brevemente um dos
modos de relação enunciativa, o da reescrituração de neutralidade. A reescrituração
determina semanticamente neutralidade, e isso pode ser visto pelo recorte da
sequência seguido de sua paráfrase:
[5.2] DA NEUTRALIDADE DA REDE. (...) dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção, por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação. (...) A discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada (...) Na hipótese de discriminação ou degradação do tráfego (...) o responsável deve: (...) agir com proporcionalidade, transparência e isonomia.
Uma possível paráfrase de [5.2] é:
[5.2’] Neutralidade é o tratamento isonômico de quaisquer pacotes de dados (de internet) e, na hipótese de discriminação/diferenciação do tráfego, o responsável pela transmissão desses dados deverá agir com proporcionalidade, transparência e isonomia.
Primeiramente, neutralidade aparece reescriturada em [5] numa forma de
expansão por desenvolvimento/definição em tratar de forma isonômica quaisquer
133
R
ede
pacotes, que, por sua vez, aparece reescriturada por condensação generalizada em
isonomia. Neutralidade aparece também reescriturada por substituição em
proporcionalidade, em transparência e em isonomia, formas que a reescrituram e lhe
atribuem sentido.
Por outro lado, temos também uma relação de antonímia entre neutralidade
e discriminação. Ou seja, vemos que os sentidos de neutralidade são determinados
por esse modo de relação e, por isso, dizemos que estas reescriturações e seus
respectivos sentidos determinam o sentido de neutralidade neste acontecimento de
enunciação. Outra relação possível, agora dada pela articulação de dependência
entre neutralidade e de rede, em que uma se vincula à outra constituindo assim um
único elemento. Para caracterizarmos a relação de determinação entre estes
elementos, parafrasearemos novamente [5.1], enunciado-título da sequência [5]:
[5.1’’] (deve haver) neutralidade na rede
Ou ainda:
[5.1’’’] a rede deve ser neutra
A relação de predicação trazida pela paráfrase [5.1’’] permite concluir que
neutra (neutralidade) atribui sentido a rede e que as relações de sentido
(determinação) atribuídos à neutralidade não a tomam enquanto um conceito
relacionado ao mundo ou a um sentido preexistente ao que se encontra enunciado no
texto dessa lei. Desta sondagem em torno de neutralidade, podemos apresentar o
DSD-1 a que chegamos.
┴
D
SD - 1
N
eutralidade
prop
orcionalidade
Isonomia
rede
Proporcionalidade
Neutralidade transparência
T
T T
T
DSD - 1
134
Dado o que se disse acima sobre a relação da referência e da designação,
é enquanto designa, tal como no DSD – 1, que neutralidade se apresenta no título da
seção, e é nesta medida que a FN neutralidade da rede refere-se a uma característica
da rede.
4.7. Análise do preâmbulo da Constituição Federativa do Brasil de 1988
Todos os Estados com Constituição escrita e rígida, como é o caso do
Estado brasileiro, têm sua lei maior regida por uma teoria do poder constituinte, que
distingue poder constituinte de poderes constituídos. Assim, Poder Constituinte é
aquele a quem é atribuído o poder de criar a Constituição, enquanto poderes
constituídos são aqueles estabelecidos por ela. Segundo Emmanuel Sieyès23, a
titularidade do Poder Constituinte é da nação, porém, segundo teorias modernas do
direito, tal titularidade é do povo, que tem o poder de determinar a criação ou
modificação da Constituição.
O exercício do poder de criação de uma Constituição é exercido então
segundo o princípio da participação democrática direta, por meio de Assembleia
Constituinte, no caso brasileiro da Constituição de 1988, soberana e não exclusiva.
Passada a fase constituinte da Carta Magna, chegamos ao texto propriamente dito da
Constituição Federativa do Brasil, especificamente a de 1988, vigente no Estado.
A Constituição é a lei fundamental e suprema de um Estado, criada
segundo a vontade soberana do povo. Além, ela determina a organização político-
jurídica do Estado, em que dispões sobre sua forma, quais os seus órgãos integrantes
bem como suas competências e também sobre a aquisição, exercício e limitações de
seu poder (CANOTILHO, 2003). Segundo a corrente dominante da doutrina jurídica,
há vários “sentidos” definidores da Constituição, sendo os três principais o sociológico,
o político e o jurídico. No aspecto hierárquico, o texto constitucional segue a teoria
23 Abade francês Emmanuel Sieyès, No séc XVIII, às vésperas da Revolução Francesa, defendeu, em sua obra O que é o Terceiro Estado?, uma tese inovadora que rompia com a legitimação dinástica do poder.
135
kelseniana, para quem o fundamento de validade das normas está na hierarquia entre
todas elas. Neste caso, o fundamento da Constituição positiva escrita é a norma
hipotética fundamental, norma pressuposta, imaginada.
Estruturalmente, a Constituição é dividida, de forma geral, em três partes:
preâmbulo, dogmática e disposições transitórias. Segundo Canotilho (2003), o
preâmbulo é a parte que antecede o texto propriamente dito da Constituição (dogma).
Sua função é a de apenas definir as “intenções” do legislador constituinte,
proclamando os princípios da nova constituição e rompendo com a ordem jurídica
anterior, orientando sua interpretação, de modo que não se consubstancia enquanto
norma constitucional, segundo orientação do próprio STF (2008, grifo nosso), de onde,
pela sondagem, teremos a seguinte sequência:
[6] Controle concentrado de constitucionalidade. Devem ser postos em relevo os valores que norteiam a Constituição e que devem servir de orientação para a correta interpretação e aplicação das normas constitucionais e apreciação da subsunção, ou não, da Lei 8.899/1994 a elas. Vale, assim, uma palavra, ainda que brevíssima, ao Preâmbulo da Constituição, no qual se contém a explicitação dos valores que dominam a obra constitucional de 1988 (...). Não apenas o Estado haverá de ser convocado para formular as políticas públicas que podem conduzir ao bem-estar, à igualdade e à justiça, mas a sociedade haverá de se organizar segundo aqueles valores, a fim de que se firme como uma comunidade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...). E, referindo-se, expressamente, ao Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988, escolia José Afonso da Silva que "O Estado Democrático de Direito destina-se a assegurar o exercício de determinados valores supremos. ‘Assegurar’, tem, no contexto, função de garantia dogmático-constitucional; não, porém, de garantia dos valores abstratamente considerados, mas do seu ‘exercício’. Este signo desempenha, aí, função pragmática, porque, com o objetivo de ‘assegurar’, tem o efeito imediato de prescrever ao Estado uma ação em favor da efetiva realização dos ditos valores em direção (função diretiva) de destinatários das normas constitucionais que dão a esses valores conteúdo específico" (...). Na esteira destes valores supremos explicitados no Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988 é que se afirma, nas normas constitucionais vigentes, o princípio jurídico da solidariedade. [ADI 2.649, voto da rel. min. Cármen Lúcia, j. 8-5-2008, P, DJE de 17-10-2008.]24
24 http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=555517
136
Assim, conforme assevera o órgão judicial supremo, em [6], o preâmbulo
não deve servir de parâmetro para a declaração de inconstitucionalidade das leis
inferiores, tampouco estabelece limites para o Poder Constituinte Derivado, não
dispondo, portanto, de força normativa e sem caráter vinculante. Apesar disso, como
podemos observar, é considerado juridicamente relevante no que diz respeito a seu
caráter norteador da hermenêutica jurídica, ou seja, para a interpretação e aplicação
das normas constitucionais, texto que o sucede. A promulgação da Constituição é,
pois, o procedimento da autoridade competente que atesta o surgimento de um novo
provimento normativo com força vinculante e obrigatória e sua publicação é o
procedimento que dá ciência aos seus destinatários (FERREIRA FILHO, 1984), ela se
encontra presente, segundo o domínio teórico que utilizamos, na enunciação do
preâmbulo da lei maior, especificamente, num acontecimento de enunciação.
Antes de partirmos para a análise propriamente dita do texto do preâmbulo,
importa apresentar brevemente uma nota explicativa (sequência [7]) dada por outra
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), desta vez datada de 15.08.2002. Nela, o
então ministro Carlos Velloso declara que o preâmbulo da CF não constitui norma
central, e também explica que invocação ao nome Deus neste enunciado não deve
ser interpretada como norma de reprodução obrigatória na Constituição Estadual. Este
ponto, que será tratado mais adiante, interessa-nos, particularmente.
[7] Preâmbulo da Constituição: não constitui norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força normativa. [ADI 2.076, rel. min. Carlos Velloso, j. 15-8-2002, P, DJ de 8-8-2003.]25
Iniciaremos então a análise desse texto preambular à Constituição Federal
de 1988 (CF/88) procedendo com a sondagem a partir de seu recorte, da qual teremos
nossa próxima sequência. Temos então o seguinte:
25 http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=375324
137
[8] Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
Como vimos, a enunciação caracteriza-se pela produção e organização de
textos, como o do preâmbulo, dados num acontecimento com temporalidade própria,
além do fato de se dar em espaços configurados por esse acontecimento, pela relação
entre língua e os falantes, os quais são agenciados politicamente a falar determinados
por essas línguas, mas não numa relação empírica (sujeito individual que fala uma
língua) e sim numa relação organizada enquanto “espaço regulado e de disputas pela
palavra e pelas línguas, enquanto espaço político” (GUIMARÃES, 2005c, p. 18).
Outra particularidade do acontecimento, no modo como o consideramos, é
que ele não diz respeito a uma relação entre sujeito e situação, como quer a
pragmática e o discurso hermenêutico-jurídico em geral, mas sim a uma relação
sujeito, língua, história. O sentido, por fim, pode se dar em espaços de línguas e
falantes em acontecimentos de enunciação considerada a materialidade histórica,
através de memoráveis que o constituem. Feitas essas considerações, repercutiremos
primeiramente a cena enunciativa do preâmbulo.
Na medida em que os espaços de enunciação distribuem desigualmente
as línguas para seus falantes é que podemos considerar estes espaços como
políticos, nos quais o acontecimento da enunciação produz sentidos constituindo a
cena enunciativa e seus respectivos lugares de enunciação, como dissemos acima.
Assim, em [8], temos algo que diz respeito a sua configuração enunciativa, isto é, um
Locutor, que aí se apresenta enquanto lugar do que enuncia como origem do dizer e
que é também predicado por um lugar social distribuído segundo uma deontologia
jurídica do dizer. Este Locutor (L) diz a um Locutário (LT), que é seu correlato nesta
enunciação específica, caracterizando assim uma relação eu-tu. Assim, o alocutor-
138
constituinte, ao dizer “nós promulgamos x”, o faz não porque alguém (empiricamente)
aí se coloca enquanto essa origem do dizer, mas porque, enquanto alocutor-
constituinte, ele pode se dar como origem daquilo que se faz saber, o que só é
possível na medida em que o Locutor é constituído no acontecimento como um lugar
social de dizer, neste caso, um alocutor-constituinte (al-x), que também tem um
correlato, o alocutário-cidadão (at-x).
O presente constituído em [8] é o presente do Locutor relacionado à
temporalidade do acontecimento. Por isso, o “nós” é aí visto como aquele que
promulga algo, a Constituição, e como um “nós” que cumpre um ofício, ao marcar e
configurar a representação da origem do dizer, um dizer que não é provido de um
lugar social senão pela divisão desse dizer, isto é, de L a al-x, dada pelo agenciamento
das sistematicidades linguísticas, o Locutor (aquele que diz), e pelo agenciamento das
condições histórico-linguísticas, os alocutores, enquanto lugares sociais de dizer.
Outro aspecto a se observar em [8] é que este nós que promulga algo, a
CF/88 é também o nós que, ao mesmo tempo, institui um Estado democrático de
direito, que poderiam ser vistos simplesmente neste caso como dois performativos
dados segundo uma ordem em que a palavra corresponde a uma ação e, assim,
produz sentido. Mas, nos termos da semântica da enunciação, Guimarães (2018)
afirma que a disparidade constitutiva da cena enunciativa não diz respeito apenas ao
Locutor, mas também ao alocutor. Para o autor, enquanto os lugares sociais do dizer
(os alocutores) se põem no centro do dizer e marcam o lugar do confronto, do
desentendimento. A questão é: a que forma de confronto/conflito está relacionado o
lugar social de dizer (al-x)?
Conforme o que apresenta Guimarães (2005c), essa forma de conflito é
dada pela relação entre o alocutor-x e o memorável que atravessa o acontecimento
de que ele, o lugar de enunciação, faz parte. Assim, pode-se considerar em [8] o
alocutor-x do memorável apresentado como um outro alocutor-constituinte, anterior
ao presente do acontecimento do lugar social de dizer, que significa na enunciação a
ruptura entre este regime e o regime apresentado pelo (e a partir do) presente do
acontecimento, pelo Locutor, qual seja, regime este promovido pela materialidade
histórica (presente na língua) do processo de redemocratização do Brasil em 1988,
que marcou, segundo os termos do enunciado e seus modos de integração ao texto
139
constitucional, o início de um período de liberdade e a plenitude do regime
democrático.
Isso explica, por exemplo, o fato de que a enumeração presente no
enunciado [8] significa, neste espaço de enunciação, por seus elementos estarem
integrados ao texto, determinados (por relações de determinação) que são pelas
relações de alocução descritas acima, nos lugares de enunciação representantes do
agenciamento político do falante. Assim, palavras-elementos da enumeração como
liberdade, igualdade, pluralista, entre outras, significam pelo conflito instalado, no
dissenso, marca precípua do político neste acontecimento de enunciação do espaço
jurídico.
Dadas as configurações da cena enunciativa em tela, que encaminham os
sentidos operados pelo acontecimento de enunciação em [8], podemos pensar o
político segundo o domínio das posições histórico-materialistas, conforme o que
expõe a semântica do acontecimento. Para Guimarães (2005c), há no político uma
divisão que afeta materialmente a linguagem, sendo uma instância sempre dividida
pela desmontagem da contradição, pela enunciação dos que não podem falar. Por
esta concepção, o político não deve ser associado nem ao falso nem ao verdadeiro,
tampouco considerado como o que se fala sobre igualdade, direitos (humanos),
deveres, nem como o lugar do engano, mas sim como fora dessas concepções
negativas. Assim, o autor define o político enunciativamente como que (GUIMARÃES,
2005c, p. 16):
(...) caracterizado pela contradição de uma normatividade que estabelece (desigualmente) uma divisão do real e pela afirmação de pela afirmação de pertencimento dos que não estão incluídos. Desse modo, pelo político, se estabelece um conflito entre uma divisão normativa e desigual do real e uma redivisão pela qual os desiguais afirmam seu pertencimento.
No enunciado [8], o alocutor-constituinte agenciado politicamente a dizer,
enuncia a seu alocutário, sob a proteção de Deus. Ora, se procedêssemos com duas
paráfrases de uma parte de [8], veríamos isso com mais especificidade:
140
[8a] Nós, representantes do povo brasileiro, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.
Podemos, ainda, parafrasear [8a] elidindo a expressão sob a proteção de Deus:
[8a'] Nós, representantes do povo brasileiro, promulgamos a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.
Sob certos aspectos, claramente vemos que a elisão da formação nominal
preposicionada sob a proteção de Deus em [8a'] não traria nenhum prejuízo aos
propósitos do enunciador em questão, que é significado por um modo impessoal de
se apresentar o que se diz na enunciação. Ocorre que, em termos de modos de
relação por articulação e seus sentidos, há algo que deva ser dito aqui. Isso porque,
há uma relação de contiguidade significada nesta enunciação dada por uma
articulação por incidência de uma formação nominal preposicionada (sob a proteção
de Deus) em relação ao enunciado de que ela faz parte, e não da relação de um termo
da formação nominal em relação a ela. Como vimos em outras ocasiões, as
articulações são relações internas ao enunciado, mas também são relações (variadas)
de contiguidade que fazem do enunciado um elemento que se integra ao texto
(GUIMARÃES, 2009).
Na articulação por incidência, da enunciação de sob a proteção de Deus,
sobre o acontecimento da promulgação e não sobre os alocutores da promulgação,
nem sobre o sentido do que se promulga26, o acontecimento enunciativo especifica
uma operação pela qual a enunciação de um lugar de Locutor se relaciona à
enunciação de lugares de dizer (enunciadores) diferentes. Em [8a], identificamos o
enunciador do enunciado incidente como um enunciador coletivo, que enuncia um
comentário trazido pela enunciação a partir do lugar de outro enunciador. Nela, o
enunciado em [8a] implica uma divisão do real entre os que acreditam nessa forma de
26 Uma hipótese inicial que merece análises futuras mais detalhadas.
141
proteção e os que não acreditam nela, sem que isso afete a distribuição específica
dos direitos constitucionais.
Temos, de um lado, a afirmação de uma diferenciação/distribuição dada
por uma divisão política dissensual: os que acreditam e os que não acreditam em
deus. E não só isso. De outro lado, a distribuição é recortada e organizada por um
memorável que remete a outra divisão, aquela que divide o Estado da Igreja, mas que
é “anulada” pela temporalidade própria presente do acontecimento que organiza aí
dentro os sentidos, a mesma divisão que subverte o laicismo, silenciado pelo discurso
jurídico em operações de agenciamento político do falante, e transforma o
incontornável da língua em transparente.
4.8. Análise comparada dos acontecimentos CF/88 e Lei 12.965/14: relação por
conformação e por diferença
Assumir a posição enunciativa no terreno da semântica é, de certa forma,
contrapor-se ao que está inscrito na tradição de outros domínios, relativamente à
noção de sentido. Em primeiro lugar, porque, desta posição, especificamente naquela
a que me afilio aqui, consideramos o acontecimento como uma instância pensada
enquanto diferença na sua própria ordem, isto é, capaz de produzir sua temporalidade,
e não como um fato novo no tempo (GUIMARÃES, 2005c). Em segundo lugar, porque
uma semântica que assume esse posicionamento enunciativo, material e histórico,
difere de posições referencialistas, aquelas que consideram o sentido dado por uma
correspondência única com o mundo das coisas, como o faz, por exemplo, a lógica e
certas posições da filosofia da linguagem. Ou ainda, que buscam na instância textual
“uma ideia”, uma “moral” do texto, como querem as interpretações idealistas.
A partir desse relativo conflito de posições relativas à significação e ao
sentido, aqui ligeiramente abordado, é que se realiza a análise comparativa que
propomos, especificamente no que diz respeito à relação comparativa entre posições
da semântica e do direito. De modo mais direto, trata-se de aplicar as concepções
semântico-enunciativas às noções previstas num “modo de interpretar a lei”, próprias
142
de um discurso jurídico dogmático lastreado principalmente por questões de cunho
veritativo.
Desse modo, interessa-nos colocar os textos jurídicos em questão segundo
uma análise comparativa baseada na semântica do acontecimento para, assim,
aplicar esse dispositivo teórico a partir da enunciação, enquanto acontecimento de
linguagem, e dessa forma entender, pelo funcionamento da língua, como o sentido aí
se constrói.
Para tanto, consideramos, como já vimos, dois textos jurídicos dos quais
partimos como acontecimentos em si: a Constituição Federal do Brasil de 1988
(doravante CF/88) e o Marco Civil da Internet – Lei 12.965/2014. Em relação ao
primeiro texto/acontecimento, como sabemos, é nossa Lei Magna vigente, além de
possuir a marca de um texto política e historicamente constituído num período
denominado redemocratização do Brasil, dadas suas nuances relativas ao período em
que foi promulgada e sancionada, e também pelas mudanças que propõe no tocante
à novos rumos da democracia nacional a partir de então. Em relação ao Marco Civil,
como sabemos, é um texto/acontecimento que, após várias discussões sociais
objetivas, notabilizou-se, pretensamente, pela “necessidade” de se regularem as
condutas/ações virtuais de usuários, provedores e demais conteúdos de internet em
todo o território nacional, apresentando seus direitos e deveres no ciberespaço.
De modo geral, pode-se dizer que a construção do Direito se realiza por
uma exploração hermenêutica operada, organizada e ditada pelo ordenamento
jurídico, que é constituído por juristas, juízes e pela doutrina (intérpretes da lei). Com
isso, segundo Streck (2000), temos o engendramento de uma crise desse sistema,
uma vez que, justamente por “essa” forma de interpretar o direito, própria desses
atores sociais, o direito das pessoas se coloca, cada vez mais, distante dessas
mesmas pessoas.
A proposta deste trabalho não é a de estudar de modo particular as
nuances e implicações de uma interpretação jurídica, mas discutir em que medida
esse modo de interpretar implica uma contradição, ou, um problema que a superfície
dos textos, bem como a noção de que qualquer texto são suas “ideias”, não é capaz
de explicar. Isto porque o que uma análise comparativa propõe é que é possível, pela
143
linguagem, desconstruir conceitos tidos como verdades absolutas dentro do ambiente
jurídico, mais especificamente por meio de uma semântica, relegada, há anos, à
marginalidade por muitos operadores do direito.
Ora, a comparação que este texto propõe não é a mera justaposição com
base numa simetria vazia, mas operada, em princípio, pela ideia de que se compara
aqui acontecimentos, de um lado a CF e, de outro, o Marco Civil. Mas uma questão
coloca-se logo de saída: a melhor forma de darmos início a uma comparação no
campo jurídico é partir da premissa de que qualquer texto oficial (leis ordinárias,
decretos, decretos-lei, portarias etc.) deve passar pelo “crivo” constitucional, ou seja,
a Constituição tem o poder de Lei Magna, suprema em relação às demais leis, por
isso, convencionou-se chamar sistema constitucional e sistema infraconstitucional
(VELOSO, 2000).
Pelas regras do ordenamento jurídico, há um sistema de controle de
constitucionalidade das leis em geral, previsto na própria CF/88, que organiza
preceitos em relação aos quais o sistema infraconstitucional não pode infringir. Por
esta hierarquização, entende-se que qualquer lei deve orientar-se pela Constituição,
o que significa que uma determinada é medida em termos de constitucionalidade e
inconstitucionalidade (VELOSO, 2000).
Até aqui, de certa forma, retomamos o que já foi dito anteriormente. Para
avançarmos na análise a que me propus no início, partiremos do seguinte pressuposto
do Direito: segundo os preceitos do ordenamento jurídico, o cumprimento da
constitucionalidade de um texto infraconstitucional, operada por uma forma específica
de controle, dá-se como uma conformação do texto constitucional relativa ao texto
infraconstitucional.
Vejamos o que diz Bastos (2014, p. 26, grifo nosso) a respeito da
interpretação jurídica:
Interpretar é atribuir um sentido ou um significado ao texto. Esta atividade é sempre necessária quando se tem em vista que os preceitos normativos são sempre abstrações da realidade. Ademais, para que as normas possam cumprir a sua finalidade de disciplinar um número infindável de situações necessitam apelar para um alto nível de abstração e
144
generalidade. Tal fato gera como consequência a circunstância de que diante de uma determinada situação concreta aparecerá sempre a pergunta consistente em saber-se se dita situação encontra-se abarcada pelo preceito normativo ou não.
Por este entendimento, inferimos tratar-se a ideia da interpretação como
um sentido “atribuído” pelo leitor-intérprete, que faz “escolhas”, segundo este autor,
diante da lei. Trata-se de uma questão de “vontade” do intérprete. Ora, se as palavras
estão dispostas e “à espera” de quem as interprete, é fácil deduzir que, nestas
instâncias, interpretar é algo ocorrido ligado quase que estritamente ao leitor, portanto,
numa instância mais parecida com o que se faz ao se determinar se um texto é ou
não constitucional.
Pela abordagem de uma ciência da linguagem, é preciso definir de saída
uma unidade de análise, que, no caso da semântica enunciativa, é o enunciado, que
possui uma consistência interna e uma independência relativa ao lugar em que
aparece, o todo de que faz parte num acontecimento de enunciação (GUIMARÃES
2018).
Assim, o sentido, segundo esta posição, não é, nem pode ser dado
primariamente pela relação entre diferentes acontecimentos, mas sim, antes, pelas
relações previstas enunciativamente na unidade imediata de que faz parte. Neste
aspecto, não é possível pensar uma linearidade do tipo A especifica B, B é
especificado por A, em que A e B são acontecimentos distintos, portanto, de ordem
temporal distintas. Esta regra infringe a teoria que aqui propomos utilizar na medida
em que retira elementos constitutivos desses textos e os “transportam” para outros
textos, ou, acontecimentos.
A proposta que uma análise semântico-enunciativa faz para o caso em
questão é a de, após a aplicação de um dos procedimentos analíticos disponibilizados
pela teoria, operar com a comparação. Assim, pegaríamos um mesmo elemento, por
exemplo, a palavra liberdade, ou a expressão liberdade de expressão, tanto na CF/88
quanto no Marco Civil/14, para, só assim, procedermos à análise comparativa.
Além disso, para operar com essa análise semântica, é preciso definir em
que ordem do acontecimento a análise será tomada, haja vista que, em alguns
145
momentos, neste mesmo trabalho, tomamos o texto legal como um acontecimento na
ordem dos textos legais, ou então, tomamos o funcionamento enunciativo de uma
palavra, portanto tomados numa ordem diferente da primeira, isto é, tomados numa
ordem das palavras que compõem aquele texto, aquele acontecimento. Para a
comparação a que pretendo apresentar, parece mais adequado
tomarmos/assumirmos o segundo método.
Do ponto de vista semântico-enunciativo, relativo a uma conexão entre
esses dois acontecimentos, uma possível diferença de sentido aparece como
diferença e não como conformação. Até porque, se a interpretação jurídica considerar
a diferença entre esses acontecimentos, terá de admitir uma “ampla”
incompatibilidade constitucional entre o que se encontra disposto nas “leis em geral”
(lei infraconstitucional) e na Constituição, o que desarticularia o princípio do controle
constitucional. Seria o caso, por exemplo, de, diante dos diferentes sentidos de
liberdade, neutralidade, igualdade, apresentados pela análise semântica, admitir o
desarmônico, o que levaria a uma importante desconstrução sistêmico-interpretativa
das normas jurídicas operadas pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Vamos nos utilizar, então, da designação para tratar das questões até aqui
levantadas. Antes de mais nada, analisaremos o que diz Guimarães (2018, p. 151) a
respeito da designação:
O funcionamento semântico dos enunciados os relaciona com o texto. Por outro lado, os elementos que constituem o enunciado significam em virtude de suas relações de integração no enunciado e do enunciado ao texto.
Como dito anteriormente, são exatamente essas relações de integração
que nos interessam no campo da designação, que não é aqui tratada como sinônimo
de referência ou denotação. Assim, um termo (um nome, por exemplo) significa na
medida em que se integra ao enunciado por meio de diferentes tipos de relação.
Para entender, de início, o significado de designação, é preciso tomar nota
de que seu conceito não deve ser confundido com o de referenciação nem com o de
predicação, já tratado aqui. Assim, na designação, embora tenhamos um elemento do
enunciado se referindo, pela predicação, a algo, do ponto de vista da designação,
146
essa mesma expressão que se refere a algo significa em virtude de sua relação com
o enunciado no texto (GUIMARÃES, 2018). É justamente por esse tipo de relação que
a designação se diferencia dos demais funcionamentos, por produzir sentido para a
formação nominal (ou verbal) de um determinado enunciado.
Em outros termos, não distantes destes aqui apresentados, Guimarães
(2005c, p. 9) definiu assim designação:
[...] é o que se poderia chamar de significação de um nome, mas não enquanto algo abstrato. Seria a significação enquanto algo próprio das relações de linguagem, mas enquanto uma relação linguística (simbólica) remetida ao real, exposta ao real, ou seja, enquanto uma relação tomada na história. É neste sentido que não vou tomar o nome como uma palavra que classifica objetos, incluindo-os em conjuntos, [mas sim] como considerou Rancière (1992), [como] nomes que identificam objetos.
Tomo esta definição para o que aqui me proponho analisar e afirmar: a
significação é dada como uma relação tomada na história, e por isso exposta ao real,
e não fora dela, isto é, dada como mera classificação de coisas, como uma referência
a um mundo de coisas que ratificam informações linguísticas de objetos presentes no
mundo, num universo de ideias e ideais veritativos, como o que parece acontecer no
universo da interpretação jurídica, mais especificamente, da dogmática jurídica.
Segundo o próprio Guimarães (2018), a ideia de identificar objetos tem a
ver com o fato de que as coisas que existem no mundo são tomadas pela linguagem
em razão daquilo que (do modo que) uma expressão significa no enunciado específico
de que faz parte.
147
5. CONCLUSÕES
Considerando as diferenças fundamentais entre ciência jurídica, direito e
ciência linguística, este trabalho se dedicou a analisar os textos jurídicos da CF/88 e
do MCI/14, o que implica pensar o direito não como como um espaço de
construção/desconstrução de saberes, nem, portanto, como uma epistéme, mas como
uma téchne, isto é, como um “modo de saber fazer algo”, uma prática. Há diferentes
implicações epistemológicas de um olhar científico da linguística para aquilo que é
uma prática, entre elas, e talvez a principal, é o fato de que o direito se apresenta
socialmente como uma prática jurídico-dogmática. Não obstante, o trabalho mostrou
também que o direito não pode ser visto como uma racionalidade instrumental e
transparente, mas opaca, ou seja, é uma prática que produz sentidos.
A consideração acima encaminha, consequentemente, outra questão muito
importante, que diz respeito às resultantes apresentadas por este trabalho atinentes
à relação comparativa entre dois textos jurídicos, pela qual o sentido é determinado
por/como uma diferença e não por/como uma conformidade. Considerando-se o texto
como um acontecimento, dizemos com Guimarães (2002) que ele possui uma
temporalidade própria de sentidos, isto é, como uma instância constitutiva de uma
ordem própria. Isto, de certa forma, o “singulariza” e, nessa medida, seus elementos,
como o enunciado, o integram produzindo sentidos por seus diferentes modos de
relação, considerada a enunciação de que fazem parte. Consequentemente, um
mesmo elemento linguístico não produz os mesmos sentidos pelo simples fato de
integrarem, a um só tempo, dois acontecimentos distintos. A enunciação é
determinante nesta questão.
A análise do sentido trazido pelo acontecimento na designação da palavra
neutralidade mostrou que, dada sua relação de articulação na FN preposicionada que
a integra (“Da neutralidade da rede”) e o modo como aí funciona enunciativamente
enquanto enunciado-título da seção (art. 9º da Lei 12.965/14), este (sentido)
acontece/funciona enquanto associado ao modo como o Euniv, ao referir, faz alusão à
designação de neutralidade, de modo específico. Ora, se a rede é neutra, como é
sugerido pela relação de determinação (rede é determinada por neutralidade) no
148
interior dessa articulação, inferimos que esta rede virtual, segundo as especificidades
dos lugares de enunciação desta cena, significa enquanto um espaço por onde podem
passar quaisquer dados (livremente), manipulados (livremente) por seus usuários,
cuja responsabilidade e controle é de um outro lugar enunciativo, o do correlato do
alocutor-legislador, o alocutor-provedor-de-internet. Isso associa o sentido de
neutralidade ao de liberdade, colocando em questão o princípio constitucional de
liberdade (caput do art. 5º da CF/88) no sentido de quem é efetivamente alcançado
por essa liberdade.
Estas análises mostram que, no seu funcionamento histórico, a
Constituição se expõe a novos acontecimentos de enunciação: novas leis que, ao
legislarem em virtude das condições que demandam novas regulações, modificam o
próprio sentido da constituição. O sentido de liberdade de expressão na constituição
não é um conceito atemporal, é um conceito que se movimenta polissemicamente,
por novas leis, que tratam de sua especificação, em virtude da própria historicidade
das leis (e, portanto, da Constituição).
Por outro lado, a análise enunciativa realizada sobre a Formação Nominal
liberdade de expressão, constante na CF/88, mostrou que, dadas as operações
enunciativas de reescrituração e articulação em que FN aparece, o sentido de
liberdade aparece designado neste acontecimento enquanto “assegurado” segundo
uma contradição instalada, no centro desse dizer, entre a normatividade instaurada
pela legalidade do Estado que organiza desigualmente o real e a afirmação de
pertencimento dos não incluídos. Essa contradição apresenta-se na medida em que
a mesma enunciação traz, de um lado, um todos (todos são iguais perante a lei) e
uma liberdade de expressão subsumida pela exigência do não anonimato.
O sentido da liberdade de expressão aparece, assim, como o que, de algum
modo, exige a neutralidade dos controladores da rede. E, na medida em que a questão
se apresenta como neutralidade na lei, ela acaba por abrigar o sentido de um certo
tipo de controle, pelo sentido de que a liberdade de expressão, fundamento
constitucional, cercado que é pelo sentido da intocabilidade, exerce-se, segundo a lei,
fora do anonimato, ou seja, dentro de certas condições que exigem uma conformação
da liberdade pela responsabilidade, sustentada pelo princípio constitucional do
149
controle jurisdicional de constitucionalidade, mas que, de modo decisivo, é mostrado
pela análise como algo que há na lei infraconstitucional, mas que difere pela
especificação que enuncia da expressão constitucional.
Não se trata, assim, de uma conformação, como quer a teoria do controle
jurisdicional de constitucionalidade, pois, o que temos nesta comparação entre os
textos da lei não é uma relação direta entre a forma e o sentido, mas uma relação
estabelecida pelo acontecimento enunciativo e, nesta medida, distinta. As análises
relativas à reescrituração, entre outras, mostraram que este processo “liga pontos de
um texto com outros do mesmo texto, e mesmo pontos de um texto com pontos de
outros textos” (GUIMARÃES, 2018, p. 93, grifo nosso). Finalmente, esta mesma
reescrituração, ao retomar alguma palavra ou expressão, faz com que ela signifique
de outro modo. Trata-se, pois, de uma relação dada por uma diferença, ao que
livremente chamei de “primado da diferença”.
O controle jurisdicional de constitucionalidade, considerado como um
controle constitucional, é um controle de sentidos, que busca a unicidade da
significação. Nesta medida conforma sentidos de um a outro texto, portanto, de um a
outro acontecimento. Assim, o “controle de sentidos” dá-se por uma noção de
transparência da linguagem jurídica. Este modo de tratar a questão desconsidera,
segundo o ponto de vista deste trabalho, a própria natureza do funcionamento do texto
As duas questões acima (a do direito como uma téchne e a da relação entre
textos como uma diferença) confluem em direção a um aspecto fundamental do
direito: o direito é um sistema de regras cuja coerência (sistêmica) interna é regulada
segundo uma ordem de que não seja possível evocar as vantagens de uma regra
sobre a outra, de modo que, em caso contrário, o efeito da primeira regra seria
destruído. Por este motivo, o direito deve eliminar toda forma de contradição. Isto o
leva a se apresentar como um sistema saturado, isto é, que apresenta um sistema de
regras que abrange todos os casos da “realidade”.
O resultado desta pesquisa, entretanto, mostrou que isso não é possível,
pelo fato de que o direito, enquanto um sistema deôntico de normas e de controle
social, opera pela linguagem (a Constituição e as leis se fazem com linguagem),
embora sob a suposição de uma transparência, ou seja, conforme a noção de que,
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pretensamente, essas normatividades o conduzem “naturalmente” à produção de
justiça material. A noção de materialidade histórica ligada à enunciação é trazida pela
análise semântica aqui feita no sentido de que a realidade não se apresenta na lei
como algo preexistente, da ordem empírica, a ser alcançado por um sistema de regras
numa relação do tipo sujeito-objeto, mas, antes, significada segundo diferentes modos
de produção de sentidos, em espaços de enunciação regulados por relações entre
falantes e línguas, segundo agenciamentos políticos de enunciação, pelos quais,
simbólica e materialmente, esses sentidos são produzidos.
Em sentido amplo, o campo de estudos dos domínios de conhecimento da
linguística e do direito são pouco explorados. Nesse sentido, pelo modo como a
análise foi encaminhada neste texto, é possível dizer que a semântica, pelo modo que
se coloca aqui, insere-se num campo maior de uma ciência crítica ao direito. Em se
tratando de uma análise semântica voltada ao texto jurídico, isso é ainda mais difícil.
Por isso, em muito os resultados desta pesquisa podem contribuir, e de forma
recíproca, para a relação epistemológica entre esses dois domínios. Isso porque,
como demonstrou a pesquisa, o direito, enquanto pertencente ao domínio social, o
alcança e nele pode interferir de forma decisiva. Portanto, ao questionar a orientação
interpretativa do ordenamento jurídico brasileiro (hermenêutica jurídica), a análise
semântica espera contribuir para uma sociedade melhor.
Por outro lado, alguns percalços foram encontrados nesse caminho de
desenvolvimento da pesquisa. Entre eles, dadas as dificuldades de tempo, a de um
maior aprofundamento na leitura da bibliografia, que, com o passar do tempo,
mostrou-se cada vez mais intrigante, mas, ao mesmo tempo, “distante”. Registre-se,
por exemplo, a falta de uma maior dedicação à análise do texto constitucional, que
mereceu maior aprofundamento do ponto de vista da análise semântica. Inclusive, na
própria dificuldade de análise do texto jurídico em suas peculiaridades, em alguns
casos, muito diferentes em relação ao que antes vínhamos tratando em outras
análises.
Das diversas implicações que a presente pesquisa trouxe, a partir de um
olhar semântico-analítico para o direito, há a possibilidade trazida pela própria noção
política prevista na obra de Guimarães (2002), qual seja, aquela que diz respeito à
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distribuição de desigualdades e a afirmação de pertencimento, que coloca o político
como algo próprio da divisão que afeta materialmente a linguagem. Para este autor, o
político não é caracterizado como aquilo que se fala sobre direitos e igualdade, mas
pela contradição de uma normatividade que estabelece a divisão do real pela
afirmação de pertencimento dos que não são incluídos.
Esta relação, por sua vez, encaminha a presente análise para um caminho
que ela não percorreu, mas que, oportunamente, o fará. Isso porque, o político, da
forma como é caracterizado pela semântica do acontecimento, implica o direito, na
medida em que fala de “afirmação de pertencimento” e de normatividades que dividem
o real. Portanto, o político e jurídico encontram-se absolutamente implicados e,
embora não tenham sido tratados aqui com a profundidade merecida, certamente
farão parte inescusável de pesquisas futuras.
Por isso, como demonstram os resultados desta pesquisa, e como
reconhece a própria razão crítica do direito, para além das ontologias ingênuas que
sustentam a dogmática jurídica, há que se evidenciar a importância social das teorias
contemporâneas do significado e da linguagem para a construção do direito, o que
representaria, no atual cenário, uma mudança de paradigma no universo jurídico.
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