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FONTE: http://www4.uninove.br/grupec/sala.htm
Ensinar a condição humana*
Maria da Conceição Xavier de Almeida1[1]
“Vida é mais um imperativo do que um conceito. Definir é sempre uma forma de matar”.Dietmar Kamper
Conhecer o humano é, antes de mais nada, situá-lo no universo e não
separá-lo dele”.Edgar Morin
Resumo: O conjunto das reflexões atuais sobre a reforma
do sistema educacional, da educação básica e a formação
de professores, requer dois investimentos cognitivos que se
complementam: o exercício de um diálogo capaz de
articular nossas competências e a escolha de meta-temas e
princípios que exponham, com clareza, o ideário da
educação que queremos. Desse ponto de vista é necessário
expor, problematizar e avaliar se a produção do
conhecimento de que dispomos como herança histórico-
cultural, responde, de maneira satisfatória, aos problemas
que emergem na sociedade contemporânea marcados pela
relação de complementaridade e oposição entre ciência,
tecnologia e meio ambiente. Mas que isso, interessa
perguntar se nossa prática como educador nos permite
projetar e construir as bases de uma sociedade futura. Abrir
as especialidades, prover métodos de pensar que rejunte
conhecimentos e reconstruir um sujeito capaz de
problematizar a condição humana, parece ser o protocolo
básico para repensar a educação. Uma reforma do
pensamento (E. Morin) orientada pela desconstrução e
1[1] Antropóloga. Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP. Professora dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Membro da Association Pour la Pensée Complexe – Paris. Coordenadora do Grupo de Estudos da Complexidade – GRECOM.
1
reconstrução dos atuais modelos cognitivos (H. Atlan),
certamente facilitará a escolha de fatos portadores de
sentido (J. Rosnay) que possam fazer da educação o ensino
da condição humana em sintonia com os domínios do
mundo que fundam essa condição.
Palavras chaves: educação, formação de professores,
conhecimento.
Abstract: The current set of reflections on reform of the
educational system, from basic education to teacher training
requires two cognitive investments that complement each
other: a dialogue capable of articulating our different areas
of competence, and the choice of meta-issues and principles
that clearly expose the educational ideal we want. From that
point of view, we must expound on, question and evaluate
whether the production of knowledge we have inherited
culturally and historically can satisfactorily solve the
problems that emerge in contemporary society, which are
marked by the complementary and antagonistic relationship
among science, technology and the environment.
Furthermore, we should ask if our educational practices
permit projecting and constructing the basis of a future
society. It would seem that a basic agenda for rethinking
education demands opening up specialisations, providing
methods of thought that rejoin knowledge from different
disciplines and reconstruct an individual capable of
questioning the human condition. A reform of thought (E.
Morin) oriented in deconstruction and reconstruction of
cognitive models (J. Rosnay) that can make teaching an
education of the human condition in harmony with the world
domains that are the basis of that condition.
Key words: education, teacher training, knowledge.
2
De onde partimos
Tudo que dizemos só faz sentido no âmbito de uma
compreensão de mundo partilhada coletivamente pelo
veículo da linguagem. A comunicação humana supõe
sempre um entendimento comum a partir do qual ganham
sentido as singularidades discursivas, a originalidade de
nossas formas de pensar e transmitir conhecimentos.
Sobretudo na ciência, expor nossa compreensão a respeito
do panorama que contextualiza o tema/problema do qual
tratamos, se constitui na regra básica do diálogo. Mas que
isso, possibilita a ampliação de nosso campo de referência
permitindo ultrapassar os lamentáveis monólogos coletivos
que impedem o avanço do conhecimento e a criação de
novas e criativas sínteses do pensamento diante do mundo.
Permitir o acesso a nossa visão de mundo, expor a
arquitetura argumentativa que relaciona as informações das
quais dispomos, e, por fim, procurar compreender os
pressupostos organizadores das idéias de nossos
interlocutores, se constitui nas condições necessárias
(mesmo que não suficientes), para articular e retotalizar as
micro-interpretações sobre a realidade.
Dito de outra forma, habilitar-se a entender o conteúdo das
idéias que nos são transmitidas supõe o manuseio cognitivo
das fontes que alimentam tais idéias. Fazendo uso de um
argumento instigante e provocador, diz Marcel Conche
(1998) que para compreender a filosofia grega “é preciso
tornar-se grego”, pensar como grego. E pensar como grego
é compreender as idéias de Homero, considerado por ele
como a Bíblia dos gregos, o paradigma alimentador dos
filósofos, o alimento que os tornou capazes de produzir
novas e singulares cosmologias do pensamento.
3
Hoje certamente não dispomos mais de uma única fonte
fundamental, a partir da qual organizamos nossas
interpretações de mundo. A multiplicidade das “grandes
obras” e das fontes heteróclitas torna ainda mais imperativa
a necessidade de expor as macro referências que nos
servem de suporte. Nesse sentido, para falar da formação
de professores supondo as relações ciência-sociedade-
tecnologia-ambiente exponho o que, do meu ponto de vista,
se constitui no contexto capaz de oferecer sentido ao tema,
que resignifico mais sinteticamente como a formação do
professor diante da sociedade atual marcada pela incerteza.
Incerteza e vontade
Se a incerteza do futuro contamina o presente, pelo
menos, sabemos, não estamos num ponto zero qualquer,
uma vez que nosso presente é, em parte, produto do
passado. Digo em parte porque, por força de escolhas nem
sempre conscientes, nem sempre livres, nem sempre
propriamente escolhas, temos deixado de lado ou excluído,
produtos importantes desse passado. Muitas habilidades,
saberes, estilos de vida e formas de pensar foram
certamente julgadas inapropriadas, apesar de terem
constituído importantes constâncias históricas que
consolidaram o padrão da espécie humana.
Se o futuro é incerto, podemos pelo menos lançar mão de
alguns dados, processos e caminho já percorridos, para
compreender e avaliar a história do presente. Longe, porém
da causalidade linear devemos estar atentos a um fato: não
somos hoje um simples produto do passado que nos foi
transmitido, porque somos simultaneamente produto e
produtores da nossa cultura. Além disso, nossa história é
fruto de uma dinâmica complexa que qualifica a condição
4
humana como sendo a permanente oscilação entre forças
de emancipação e regressão, ordem e desordem, avanço e
retrocesso, vida e morte, repetição e inovação. É a partir do
interior mesmo dessa dinâmica complexa que emerge a
condição reflexiva dos humanos. Dotada de uma certa
autonomia, a condição de refletir retroage sobre nossas
experiências, e é a partir dessa condição cognitiva que
exercitamos nossos atributos de vontade e liberdade. A
avaliação do caminho percorrido, a valoração do processo
no qual estamos imersos e a escolha de horizontes a serem
percebidos são, talvez, a trinidade antropológica que nos
caracteriza como sapiens-sapiens-demens. Uma tal condição
sapiental deve denotar menos a supremacia da espécie e
mais a sua responsabilidade diante de uma história
encenada conjuntamente com parceiros que, não só não a
escolheram, mais dela compartilham de maneira
compulsória ou pela domesticação.
Se a aventura humana na terra tem se dado graças a
complexificação crescente de nossas aptidões mentais em
intercâmbio com a natureza, e se da relação homem-meio
emergiu esse fabuloso processo cultural, talvez seja
imperativo perguntar sobre a nossa dívida para com outros
processos que foram interrompidos em favor de um projeto
civilizatório excludente porque “demasiadamente humano”.
Por fim, se a acumulação da cultura tem se dado pela
transferência, reorganização e resignificação de informações
de diversas ordens (física, biológica, psíquica, simbólica),
devemos atestar a importância do processo educativo como
mediador dessa acumulação. Cabe, entretanto perguntar
como temos praticado tal mediação, a partir de que
métodos de pensar temos intercambiado e reorganizado
informações, de que moldes mentais fazemos uso para
transmitir conhecimentos, experiências, conteúdos
5
interpretativos. Para pensar a formação de educadores
capazes de problematizar e articular os conteúdos da
cultura é necessário tomar consciência das condições de
produção do conhecimento operado historicamente e
discutir a educação como via de superação da
disciplinaridade fechada, não comunicante.
Cultura e conhecimento
Comecemos por explicitar as possibilidades cognitivas do homem
diante da necessária reconstrução de um conhecimento mais universalista,
complexo e dialogal. Situemos um começo, sem a preocupação de um ponto
zero.
Sabemos que apesar de integrante do complexo sistema que constitui
o meio ambiente, o homem dele se distingue pela faculdade da produção da
cultura e da construção da história. É como leitor simultaneamente utilitário
e especulativo do ecossistema que o homem têm respondido aos problemas
que lhes são postos. Mas é também como formulador de cosmologias
imaginárias que temos dialogado, lido e reconstruindo o mundo.
É pois a partir do contato com um mundo dado e um mundo
construído – ecossistema natural, códigos culturais, representações – que a
relação cérebro-espírito tem encontrado as bases e as condições para sua
complexificação e a produção do pensamento, do conhecimento e da
cultura. Somos seres ao mesmo tempo marcados pela necessidade prática e
pela competência especulativa, seres lógicos e míticos. Conforme dirá E.
Morin em O método III, “toda renuncia ao conhecimento
empírico/técnico/racional conduziria os humanos à morte”, mas igualmente
“toda a renuncia às (nossas) crenças fundamentais, desintegraria a
sociedade2[2].”
Para Edgar Morin o processo de complexificação da
natureza, animado pela pulsão cognitiva que ultrapassa o
utilitarismo, sustenta-se numa estrutura antropológica
2[2] MORIN. Edgar. O método III. O conhecimento do conhecimento. Lisboa: Publicações Europa-América, s.d. p. 144.
6
pendular que comporta, simultânea e dialogicamente uma
biologia, uma animalidade e uma humanidade do
conhecimento. Essa pulsão cognitiva é certamente o que
funda a constituição das sociedades humanas, sua
historicidade, constitui a cultura, produz um ser leitor,
interpretante e impressor de sentidos, vontades, desejos,
produtor e consumidor de conhecimento. “A cultura que é a
marca da sociedade humana, é organizada/organizadora
pela via do veículo cognitivo que é a linguagem; a partir do
capital cognitivo coletivo dos conhecimentos adquiridos, dos
saberes fazeres apreendidos, das experiências vividas, da
memória histórica, das crenças míticas de uma sociedade.
Assim se manifestam representações coletivas, consciências
coletivas, imaginário coletivo... Assim a cultura não é nem
superestrutura nem infraestrutura, esses termos sendo
impróprios numa organização recursiva na qual o que é
produzido e gerado torna-se produtor e gerador daquilo que
o produz ou o gera”3[3].
Esse conceito de cultura, que para Edgar Morin
implica, metaforicamente, um mega-computador complexo,
inscreve instruções, prescreve normas e comandos em
cérebros individuais, das sociedades arcaicas às pós-
industriais, e vem sendo construído, pouco a pouco, num
itinerário intelectual múltiplo, desencadeado principalmente
a partir da publicação de “O paradigma perdido”, de 1973.
Nesse livro é enfatizado que a substituição da floresta pela
savana, a ociosidade dos adolescentes, a copulação frontal,
o fogo, a instauração da exogamia, o fim do nomadismo, a
articulação da palavra, a aferição de significados, o exercício
das trocas e do poder, a criação do mito e da ciência, são
todos sinalizações da relação natureza-cultura mediada pela
imposição de problemas novos e instigantes. “A
3[3] MORIN, E.. La méthode 4: les idées - leur habitat, leur vie, leurs moeurs, leur organizations. Paris: Editions du Seuil, 1991, p. 17.
7
hominização teve como prelúdio uma desgraça ecológica,
um desvio genético e uma dissidência sociológica”4[4].
No interior desse macro processo, a complexificação
cerebral, instigada e alimentada pela relação constante
entre o homínida e o meio ambiente, desempenhou o papel
de “centro federativo-integrativo entre as diversas esferas
cujas relações mútuas constituem o universo antropológico:
a esfera ecossistêmica, a esfera genética, a esfera cultural e
social e, claro, a esfera fenotípica do organismo
individual”5[5]. Entre o cérebro humano e o meio ambiente
não há, portanto, de fato, nem integração nem adequação
imediata. Antes, uma zona de ambigüidade e incerteza. E é,
precisamente, a faculdade de indecisão, o ingrediente que,
ao mesmo tempo, limita e abre indefinidamente a
possibilidade de conhecimento6[6].
A zona de indecisão entre homem e meio define a
possibilidade do conhecimento, e este nada mais é do que a
tentativa de fechar a brecha cérebro X ecossistema-cultura-
praxis. A resolução das incertezas tem sido, historicamente,
exercitada através dos itinerários
simbólicos/mitológicos/mágico e empírico/racional/técnico
entendidos como excludentes pelo grande paradigma do
ocidente.
Com efeito, mais que atributos do pensamento, que
podem eventualmente articular-se, os itinerários míticos e
lógicos estão em constante interação como que contagiados
por uma necessidade comum. Por outro lado, a suposta
separação entre os ideários míticos, religiosos, científicos e
filosóficos só encontrará justificação nas matrizes da
racionalização da história ocidental que operam a arbitrária
disjunção entre razão e mito, como se razão e ciência não
4[4] MORIN, E.. O enigma do homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 63.5[5] Id. ibid. p. 136.6[6] Id. ibid. p. 130-131.
8
fossem sempre contaminados e embebidos pelos
dispositivos míticos. “Os dois modos coexistem
entreajudam-se, estão em constantes interações, como se
tivessem uma necessidade permanente um do outro; podem
por vezes confundir-se, mas sempre provisoriamente”. Essas
palavras conduziram Edgar Morin a afirmar,
categoricamente, que a relação entre os dois pensamentos
não se encontra historicamente ultrapassada, mas inscreve-
se como uma questão antropossocial inaugural em toda a
trajetória do processo civilizatório.
Fazer comunicar esses dois modos de pensar, que
pela força do paradigma da simplificação esfraqueceram
suas relações e parecem atuar separados é reabilitar a
dialógica da estrutura policêntrica e fracamente
hierarquizada do cérebro humano. Uma tal reabilitação
antropológica favorece o diálogo entre as especialidades
técnicas da produção do conhecimento. Isso “não implica
em que cada um de nós tenha que passar o tempo todo a
ler, a informar-se de todos os domínios... O problema não
está em que cada um perca a sua competência. Está em
que a desenvolva o suficiente para articular com outras
competências que, ligadas em cadeia, formariam o anel
completo e dinâmico, o anel do conhecimento do
conhecimento7[7]”.
Para que essa potencialidade seja posta em
movimento, é necessário operar uma nova articulação de
saberes e competências além de um esforço de reflexão
fundamental. Tal articulação e esforço excedem o projeto
individual dos educadores, mas supõe à partida uma
vontade individual fundamental. É uma tarefa que necessita
do encontro e da troca de experiências de todos aqueles
que trabalham em domínios diversos e que não se fecham
7[7] Id. Ibid. p. 33.
9
como ostras nas conchas de suas especialidades. Además,
nenhum conhecimento tem sentido fora de seu contexto
conforme assevera Edgar Morin.
Numa problematização a respeito da atual reforma do
ensino fundamental no Brasil, Luís Carlos de Menezes
destaca que dominar uma especialidade não é suficiente
para ter habilidade, competência e qualidades humanas.
Para ele a “natureza ou a sociedade não são disciplinares,
mas quanto mais aprofundado e especifico for o
conhecimento, mais disciplinar ele se apresenta, ou seja,
mais uso faz de códigos próprios, de linguagens específicas,
de instrumentos especiais. Por isso, há um lugar
insubstituível para as disciplinas, sempre que um
conhecimento sistemático estiver sendo tratado8[8]”.
Longe de protagonizar o fim das disciplinas, uma
reforma do pensamento e da educação reconhece como
imperativo fazer dialogar as estruturas de pensar, as
competências, os saberes produzidos. É ainda Menezes que
nos alerta para o fato de que mais que a destreza no
manuseio dos conteúdos específicos, a fecundidade de
acionar as competências está no fato de permitir a
transversalização dos redutos disciplinares. Nesse sentido,
pergunta: “escrever uma carta pessoal ou informação
técnica, saber como proceder diante de uma emergência
doméstica ou profissional, localizar informação e ser capaz
de interpreta-las, elaborar estatísticas de variáveis físicas e
sociais, conhecer hipóteses sobre o surgimento da vida no
planeta, tocar um instrumento musical ou dançar ou
representar ou desenhar, apreciar literatura, saber como se
elaboram as leis e conhecer a história da organização
política de diferentes povos, são habilidades restritas a
quais disciplinas?” Numa síntese arrojada Luis Carlos de
8[8] MENEZES, L. C. Competências e conhecimento no ensino médio. In: Jornal Tribuna do Norte. Caderno Viver – Polifônicas Idéias. Natal, 5 de agosto de 2000. p. 6.
10
Menezes reescreve em nossa alma de educador um
argumento fundamental que pode nos dispor a fazer
dialogar as competências de um educador ativo e inteiro
diante do mundo. “Há qualidades afetivas, sociais, práticas
e éticas, como solidariedade, curiosidade, criatividade,
iniciativa, expressividade, sociabilidade, interesse cultural,
preferência artística, responsabilidade coletiva, respeito
humano e tantas outras que não se podem restringir a
quaisquer disciplinas, ainda que possam ser promovidas
dentro de qualquer disciplina9[9]”. Essas qualidades aludidas
por Menezes podem vir a configurar estados disposicionais
do professor para uma organização mais orgânica do
conhecimento. A esse respeito faz sentido trazer de volta as
palavras de Montaigne contidas nos seus ensaios: “mais
vale uma cabeça bem feita do que uma cabeça cheia”.
Para Edgard de Assis Carvalho pensar a Educação do
século XXI é reabilitar como sugere Morin as inquietações de
Marx na terceira tese sobre Feuerbach. Nas palavras de
Carvalho, “qualquer teoria da mudança das circunstâncias
sócio-históricas e da educação traz consigo a necessidade
da educação dos educadores. Como fazer isso? Fomentando
a identidade entre ciência e arte, ciência e tradição,
estimulando a religação entre razão e sensibilidade. A
educação dos educadores deverá reconhecer que a função
escolar, em qualquer dos níveis em que exerça, precisa
estabelecer uma conexão forte entre presente e passado, de
um lado, e entre sociedade e indivíduo, do outro”. Conclui
Carvalho afirmando que o objetivo crucial da educação hoje
precisa se pautar pela “sustentabilidade e pela preservação
do capital cultural da humanidade10[10]”.
Para reabilitar o diálogo “entre razão e sensibilidade” de que fala
Carvalho e reaver as qualidades “afetivas, sociais, práticas e éticas”
9[9] Id. Ibid. p. 6.10[10] CARVALHO, E. de A. Educação para o século XXI. In: Jornal Tribuna do Norte.
11
sublinhadas por Menezes, o professor talvez tenha que contemplar-se no
espelho do antigo sábio, para atualizar sua imagem em sintonia com os
desafios da sociedade atual.
O sábio pré-iluminista e o intelectual moderno
Foi certamente o predomínio da rigidez sobre a razão que acabou
constituindo-se na matriz epistemológica iluminadora do pensamento
científico, notadamente na modernidade.
O Século das Luzes será o marco principal de referência da
transformação do antigo sábio no intelectual moderno. O sacerdote-mago,
guardião dos mitos e encarregado de anunciar a verdade foi substituído pelo
filósofo iluminista que passa a submeter à verdade sagrada à prova da
crítica. Produz-se um novo mito: a razão. Dessa ruptura nasce o intelectual
moderno. “O mito da razão emancipa o intelectual” afirma Morin em “Para
sair do Século XX”.
Dotado de uma simbiótica ambivalência, o sábio pré-iluminista se
constituía ao mesmo tempo como defensor de valores morais e um rigoroso
observador, sistematizador e interpretador dos fenômenos físicos e sociais
do seu tempo. O intelectual moderno emerge num interior de um matizado
processo sócio-histórico que elege a razão como o único critério definidor
da ciência. A partir daí os saberes e as experiências que não resistem ao
teste da razão e da demonstração serão classificados como míticos,
esotéricos, religiosos, transcendentais, metafísicos. Mutatis-mutanti a
transformação do educador, antes um sábio polivalente, hoje um especialista
num domínio estrito de competência, reatualiza o mesmo processo de
fratura e redução das condições ampliadas da comunicação do
conhecimento.
O que pode parecer uma contextualização histórica da sucessão de
personagens do conhecimento, representa na verdade fixações normativas
excludentes de estados de ser do pensamento humano, em sua essência,
polivalente, polifônico, múltiplo. Reprograma-se pela via das escolhas
redutoras as interfaces entre homem e meio. As questões colocadas pelas
sociedades passam a ter domínios de resolução distintos. O conhecimento
12
como um recurso para fechar a brecha cérebro-meio tem agora diante de si
questões de natureza supostamente diferenciadas. Estabelecem-se divisores
entre o que é da ordem do racional e do irracional, e, mais particularmente,
opõem-se os problemas considerados ora míticos, ora metafísicos, ora
científicos. A fragmentação do pensamento torna-se visível pela produção
de especialistas não comunicantes. Emerge o descompasso na articulação
entre os itinerários míticos e lógicos. O pensamento simplificador
pulverizará a partir de então as questões a serem apreciadas pelas sociedades
humanas de forma insular e pontual.
Essa estrutura de operação do pensamento e produção do
conhecimento tem por base a emergência de uma sociedade pré-industrial
que vê multiplicados os problemas já existentes ao mesmo tempo em que se
defronta com o aparecimento de novos problemas. O aumento e
deslocamento populacionais, o redirecionamento da formação técnico-
profissional, o aparecimento de doenças provocadas pelas aglomerações
urbanas, etc. vão demandar uma nova organização na produção de saberes.
Essas contingências sócio-históricas consolidarão o perfil do intelectual e do
cientista como um especialista.
Vão sendo consagradas a partir daí as várias cadeias de separação
sucessivas entre natureza e cultura, o mundo real e o mundo imaginário,
produção material e produção do pensamento, trabalho manual e trabalho
intelectual, fazer e saber, teoria e prática, pensamento e ação. A separação
entre a arte da técnica e a estética da reflexão encontrará na sociedade
industrial nascente as condições favoráveis para expressar-se. Torna-se
então indispensável à formação de competências específicas gestadas pelos
adestramentos que confinam o indivíduo em um campo extremamente
restrito de atividades. A ciência passa a acentuar o caráter utilitário do
conhecimento, limitando o campo da reflexão a certos domínios. Entramos
assim nos “tempos modernos” de Chaplin: a repetição, a mecanização do
pensamento, a exaustão do corpo sem mente e sem desejo. Mentes treinadas
para pensar o extremamente útil, “corpos dóceis para o trabalho”, para usar
uma expressão de M. Foucault.
No cenário dessa lógica perversa, as instituições educacionais vão
aos poucos abrindo mão da reflexão e da crítica, para privilegiar a formação
13
de especialistas que reproduzem maquinicamente uma sociedade
fragmentada, comprometendo assim as condições de convivialidade e
diálogo social entre os saberes milenares da tradição e a ciência moderna.
Uma assepsia cognitiva passa a controlar as qualidades psico-afetivas do
conhecimento, e uma razão patológica proverá, por todos os meios a
domesticação da “lógica do sensível” de que trata Claude Lévi-Strauss.
A domesticação da tradição
A história da nossa espécie, vale dizer, do passado de
cada um de nós, desenhou-se por sobre diversos caminhos
possíveis, seguiu a reta da especialização e é ao mesmo
tempo uma história de ganhos e perdas. Mas que isso, o
caminho percorrido até hoje só foi possível às custas da
redução, assimilação e negação de diversas formas de
intercâmbio do homem com o meio através do
conhecimento.
A cultura que recebemos como herança funda-se na
divisão de dois domínios de saberes: de um lado a ciência,
do outro os saberes da tradição. A hegemonia de um
domínio sobre o outro e a incomunicabilidade entre eles se
constitui um dos problemas cruciais do nosso tempo. Longe
de apregoar a unificação de estilos diferenciados de dialogar
com o mundo, temos entretanto que julgar inadmissível o
paralelismo de saberes que tem em comum o mesmo
desafio: tornar possível e prazerosa a vida humana na terra.
Além do mais, a hegemonia da ciência se acorra num
fundamento sem fundamento. Isto porque a ciência nasceu
justamente da domesticação de parte dos saberes milenares
da tradição, mesmo que deles tenha aos poucos se
distanciado.
14
Do ponto de vista da função social e política do
conhecimento, cabem aqui algumas interrogações. Se “a
sociedade se põe os problemas que pode resolver”, como
afirmava Marx, como enunciar as questões centrais de
nosso tempo? Como indicar o problema chave de nossa
época? Pode-se dizer que tais questões são aquelas que a
comunidade científica anuncia? A essa convenção não se
deve contrapor a ausência da ciência frente a problemáticas
muitas vezes vitais de certas populações? A que serve o
paralelismo da produção do conhecimento na ciência e nos
saberes da tradição? Sabemos que internamente à ciência,
o paralelismo das descobertas científicas demonstra a
universalidade da sintonia cérebro-meio pela explicitação de
questões idênticas em lugares diferentes. Mas também
sabemos do desperdício, da duplicação e a
incomunicabilidade que constituem juntos a característica
da ciência moderna. Esse panorama se amplia em relação
se considerarmos o conjunto de nossos conhecimentos.
A partir desse raciocínio, algumas questões podem ser
delineadas: 1) A população que por interdição é destituída
do saber científico, estaria em atraso em relação às
questões enunciadas pela ciência num determinado
momento? 2) Seriam elas um empecilho a produção coletiva
do conhecimento? 3) Se é verdade que só a ciência sintoniza
adequadamente as questões postas e as resolve, como
entender que as populações que não dispõem daquele
conhecimento elaboram suas matrizes de referência
explicativa? 4) Os saberes não científicos teriam como
função ensaiar soluções para problemas que num segundo
momento, seriam resolvidos pela ciência?
Tais questões problematizam o processo educativo em
nossos dias, processo de dispersão que, ao invés de criador
é redutor e mutilante. De um lado, o saber científico
15
fracionado, não comunicante; de outro, o saber tradicional
“popular”, selvagem, tratado como filho bastardo da
aventura do conhecimento e excluído do âmbito da
socialização da cultura científica. Tal exclusão fundará
espaços, linguagens e atitudes mentais que se excluem
mutuamente.
Na formação acadêmica do professor, os conteúdos
que são transmitidos correspondem a uma história
domesticada das descobertas do homem. Está fora dos
programas a diversidade de explicações, especulações e
métodos de olhar, classificar e hierarquizar os fenômenos do
mundo, pelos intelectuais da tradição. São os métodos
científicos de previsão climática que são comunicados, e
nunca as formas tradicionais de leitura do ecossistema pelos
peritos da tradição. Ao exercício do pensamento analógico,
ferramenta mental tão fecunda nos saberes não-científicos,
são atribuídos reservas desclassificatórias. Se, nos
conteúdos escolares, há alusão a outras interpretações do
mundo, a elas são imputadas a qualidade de um saber sem
rigor, sem método, sem função, um saber menor.
Essa forma de interdito na circulação da cultura, consolida uma
sociedade de múltiplas exclusões e condena as populações não letradas a
redutos cada vez mais fechados. Dotados, entretanto de uma criatividade
não domesticada, essas populações têm respondido a desafios que talvez a
ciência fosse incapaz de enfrentar, se fosse desprovida de tantas
ferramentas, artifícios e próteses.
Um novo educador
16
A tarefa de repensar a formação de novos educadores
supõe um clima de efervescência de idéias, chamado de
calor cultural, por Morin, e implica identificar o que, na
nossa estrutura educacional favorece o “comércio” e a troca
múltipla de interações, opiniões, idéias e teorias. Não se
restringindo ao intercâmbio do que já foi dito, essa investida
apela para nossa criatividade no sentido de pensar um
educador capaz de, não se fixando apenas no compromisso
com o presente, poder lançar as bases para uma educação
do futuro.
Assim, mais que reformular as teorias e metodologias
particulares para pensar o mundo, é fundamental que nos
coloquemos o problema de recompor a estrutura de pensar.
Em segundo lugar, considerando o quadro interno do
conhecimento científico há que se propugnar pela
articulação entre ciências da vida, ciências do homem,
ciências do mundo físico. Aqui, não bastarão, certamente,
esforços de superposição de conteúdos disciplinares. Nessa
direção, a interdisciplinaridade deve ser ultrapassada pelo
horizonte da transdisciplinaridade, em busca do pensamento
complexo. Por outro lado, esse intercâmbio interno entre
disciplinas científicas não basta. É fundamental ampliá-lo
nos quadros do diálogo entre a ciência e os saberes da
tradição, conforme já assinalamos.
Esses exercícios supõem reativar ou configurar uma
estrutura cognitiva de múltiplas e complexas entradas.
Nessa nova e plurifocal rede cognitiva perde sentido,
certamente, a estrutura dual e fragmentada de pensar o
mundo e o homem. Esse é, parece, o horizonte posto hoje
ao conhecimento.
Diante deste horizonte é importante investir numa
reorganização do conhecimento capaz de prover uma
reforma na educação. Isso requer uma nova aliança entre
17
cultura cientifica e cultura humanística, a reforma do
pensamento e o exercício do diálogo. Essas idéias que
alimentam a base epistemológica de pensadores como Ilya
Prigogine, David Bohm e Edgar Morin podem fomentar
práticas educacionais capazes de religar os conhecimentos e
fazer dialogar nossas competências. Rediscutir como
hipóteses postulados tidos como indiscutíveis, imprimir
importância a fatos concebidos como aleatórios pela ciência,
refutar a ortodoxia e o maniqueísmo, por à luz nossas
crenças fundamentais, exercitar a criatividade do
pensamento, são alguns dos protocolos que favorecem a
emergência de um novo espírito cientifico e de um novo
educador.
Esse protocolo de intenções, talvez mais propriamente
uma pedagogia da complexidade precisa está
comprometido com um ideário educacional mais ético
diante dos graves problemas planetários, sem abrir mão, é
claro, da nossa herança milenar que, de uma certa forma,
ainda se mantém nos redutos dos saberes da tradição.
Há que se investir na disposição para ampliar os
limites do conhecimento e fazer dialogar as competências
disciplinares. Uma reorganização mais democrática dos
saberes poderá reduzir a exclusão inadmissível de parte
considerável de nossa sociedade diante das escolhas
coletivas. Esse desafio longe de configurar uma missão
própria de um especialista, pertence igualmente aos
epistemólogos, físicos, educadores, sociólogos, antropólogos
e intelectuais da tradição.
No que se refere aos profissionais da educação que
aqui nos interessam mais de perto, é preciso sublinhar o
importante papel que esses atores desempenham enquanto
mediadores da transferência e difusão dos conteúdos da
cultura científica. Mais que um simples transmissor de
18
conhecimento, o professor constitui-se numa referência
privilegiada para a construção da visão de mundo e da
estrutura de pensar do aluno, diga-se, do cidadão
planetário.
Investido da autoridade aferida pelo estoque do
conhecimento acumulado e do poder instituído pelo lugar
discursivo do qual fala, ao educador caberia hoje o exercício
de fazer emergir uma qualidade do pensamento que está
em parte adormecida: o prazer de conhecer. O incitamento
à criatividade, a atividade de interditar a ortodoxia e a
certeza, podem vir a prefigurar um novo perfil do educador,
em sintonia com as demandas culturais do próximo milênio.
Esse novo educador talvez tenha que incluir na sua agenda
duas tarefas que, mesmo distintas são complementares.
Uma diz respeito à reconstrução de seu próprio perfil
enquanto profissional da educação: a morte do sujeito
narcisicamente investido do poder é o mínimo que se espera
para reformatar-se os espaços discursivos do diálogo
professor-aluno. Essa tarefa amplia-se numa outra, sem
dúvida investida de maior envergadura e desafio. Trata-se
de exercitar uma verdadeira aeróbica dos neurônios no
sentido de desconstruir os imprintings paradigmáticos que
impedem novas e ampliadas sinapses cognitivas de alunos
cada vez mais ávidos em expor suas subjetividades, seus
mapas auto-biográficos e em compreender os conteúdos
disciplinares que se tornam significativos apenas pela
partilha e co-produção.
Certamente, a tarefa para reintroduzir o prazer na
práxis docente, supõe a reconstrução de um conhecimento
mais aberto, onde as noções de polifonia, ambivalência e
simultaneidade possam emitir novas mensagens a um
sujeito ativo que se singulariza. Para isso, ter-se-á que
exercitar um esforço fundamental para acessar o nosso
19
poliprograma cerebral atualmente adormecido pela
hegemonia da ratio cartesiana. Em outras palavras, ter-se-á
que questionar as imposições radicais das mundovisões
estreitas sugeridas pelos códigos da ciência, o que subtende
rediscutir a formação de professores.
É preciso que o professor seja formado para ampliar
suas escolhas cognitivas e de seus alunos para que possam
coletivamente arquitetar e ensaiar novas escolhas sociais,
éticas, políticas. É necessário que a escola se transforme no
lugar de fecundação de novas utopias realistas. Se é
imprescindível reformar as estruturas curriculares dos
cursos de formação de professores, se é indispensável
repensar a construção do perfil do professor diante da
sociedade atual, se é inadiável ultrapassar a idéia do
professor como mero transferidor de conteúdos científicos,
não é menos importante, e urgente, se colocar a questão da
auto-formação do educador.
Assim como a critica deve ser sempre precedida da
auto-crítica e a ética social se inicia com auto-ética de cada
sujeito, também a formação do professor deve ter por
complemento importante a auto-formação. Não é de mais
lembrar que toda transformação individual ou coletiva
requer uma intenção, uma vontade, uma prática ou mesmo
um consentimento, mas começa sempre pela transformação
do sujeito. Todas as mudanças supõe uma convicção
fundamental para a transformação, e essa convicção está
situada no indivíduo.
Apostar numa refundação do perfil do educador é
talvez abrir-se à dinâmica da reconstrução de nossos
métodos de ensinar e aprender. É com esse objetivo que
tomo aqui de empréstimo a noção de auto-organização
formulada por Henri Atlan e o argumento defendido por
Pierre Lévy de que o sistema cognitivo humano tem por
20
base uma diversidade de operações simultâneas. Vamos por
parte.
Henri Atlan sugere que a complexidade dos sistemas
vivos supõe a auto-organização pelo ruído. É a partir da
decodificação do ruído que se desestrutura a fixação do
padrão cognitivo e se ampliam os modelos de referência
internos ao sistema. É por isso que os processos de
aprendizagem “não dirigidos” são responsáveis, em grande
parte, pelo aparecimento de novos padrões de leitura do
mundo. O núcleo das idéias de Atlan a esse respeito
comporta duas noções/processos fundamentais: o delírio e o
transbordamento.
O delírio passa a ser entendido como uma projeção do
imaginário sobre o real e o elemento que exibe a condição
de “ambigüidade” do imaginário. Sublinha o autor, por
exemplo, que qualquer hipótese científica realmente nova é,
na sua origem, “da ordem do delírio”. O passo seguinte é,
supondo sempre a auto-eco-organização do pensamento, a
exposição dessa projeção ao real. E o feedback, ou seja, o
resultado da digestão e adequação do delírio ao mundo real,
que evitará sua potencial metamorfose patológica. A
ausência desse feedback, a partir do fechamento do sistema
cognitivo, pela via da “memorização excessiva” (fixação de
um molde inalterável) ou da “precisão demasiada” (fixação
numa projeção particular) encera o delírio no reduto de sua
negatividade. Daí porque os processos/mecanismos de
transbordamento do pensamento, pelos excessos de
imagens e leituras complexas, podem vir a se constituir num
importante antídoto de resistência frente ao que tenho
chamado de violência cognitiva, que impõe padrões
redutores e economizadores do policentrismo cerebral e da
polifonia imaginária. As noções de aceitação do ruído e de
21
“delírio organizador” parecem se impor hoje como idéias
sobre as quais é preciso pensar.
Da parte de Pierre Lévy, para o qual “pensar é um
devir coletivo no qual se misturam homens e coisas”
interessa reter a simultaneidade da operação cognitiva.
Sendo a educação um dispositivo que limita pela
seletividade, a escolha de métodos de leitura do mundo, ela
comporta em si, a possibilidade de fechamento e redução do
pensamento humano. Isto é, os métodos de transmissão da
cultura reduz a polifonia do pensamento. Mas não é só.
Numa síntese arrojada, Pierre Lévy mostra como a história
do pensamento no homem se traduz pela sucessão do que
ele chamou “os três polos do espírito” – oralidade, escrita,
informática. Manter-se em sintonia com o mundo atual é,
para Pierre Lévy, por-se a tarefa inadiável de promover a
fusão e ampliação dessas distintas “tecnologias do
pensamento”. Essa parece ser uma das estratégias
fecundas na prática do ensino. Tal proposição não deverá
excluir nenhum desses três polos, mais ao contrário, bricolá-
los num grande hipertexto da cultura onde o mito e o logos,
os desejos e as interdições, as narrativas e os diagramas, as
subjetividades e as objetividades teçam, conjuntamente, os
“nós” de um homem ainda em construção. “A sucessão da
oralidade da oralidade, da escrita e da informática como
modos fundamentais da gestão social do conhecimento não
se dá por simples substituição, mas antes por
complexificação e deslocamento de centro de gravidade”
(Lévy: 1993).
Em suma, a desconstrução da educação como
adestramento e a reconstrução do perfil do educador
supõem a aceitação da morte e da metamorfose do sujeito
cindido e fechado. Nas palavras de Henri Atlan, “na verdade,
foi o homem, enquanto sistema fechado, que desapareceu;
22
sistemas cibernéticos abertos, auto-organizados, são
candidatos a sua sucessão” (Atlan: 1992).
Nessa sucessão de mortes e renascimentos, valeria
também nos perguntar sobre a vitalidade de nossas
projeções de futuro quando nos detemos demasiadamente
aos fatos, processos, e diagnósticos do presente. A esse
respeito são bem vindas as reflexões de Joel de Rosnay no
livro “O homem simbiótico”. Para ele, dadas às
transformações rápidas, imprevistas e incertas das
sociedades contemporâneas, nenhuma de nossas projeções
teóricas teriam valor operativo de longo alcance. Para
Rosnay, o desafio que se impõe a todos nós é maior. Trata-
se de imaginar a sociedade que queremos e identificar, no
contexto de nossas sociedades atuais quais são os fatos
portadores de sentido, capazes de objetivar nossa
imaginação. Isso vale também para imaginar e construir a
educação que queremos.
No espaço desse artigo enuncie o que, para mim, são
alguns desses fatos portadores de sentido. Mas eles não são
suficientes, nem são os únicos, nem talvez os mais
fecundos. Somente o empenho coletivo para iluminar focos
de emergência de uma nova sociedade e de uma nova
educação, nos permitirão projetar para o futuro o que é
preciso começar agora. Os três últimos livros de Edgar Morin
sobre a reforma da educação – “A cabeça bem-feita”, “Os
sete saberes necessários à educação do futuro” e
“Complexidade e Transdisciplinaridade – a reforma da
universidade e do ensino fundamental”, podem descortinar
caminhos de por onde começar. Para Morin é fundamental
articular as disciplinas em torno dos meta-temas mundo,
terra, vida, humanidade, arte, história, culturas
adolescentes e conhecimento. Compreender que o erro é
parte integrante do processo cognitivo, que todo fenômeno
23
só ganha sentido em relação ao seu contexto; ensinar a
identidade terrestre e a compreensão; discutir a ética do
gênero humano e conviver com a incerteza se constituem
em diretrizes para fazer dialogar os conteúdos disciplinares
e restituir ao educador sua missão maior de ensinar a viver
a condição humana.
Bibliografia Referida
ATLAN, H. Entre o cristal e a fumaça – ensaio sobre a organização do
ser vivo. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
CONCHE, M. A análise do amor. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
LÉVY, P. As tecnologias da Inteligência – o futuro do pensamento na
era da informática. Rio de Janeiro: editora 34, 1993.
MORIN, E. O método III – O conhecimento do conhecimento. Lisboa:
Publicações Europa-América, s.d.
____. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo:
Cortez; Brasília: Unesco, 2000.
____. A cabeça bem-feita – pensar a reforma, reformar o pensamento.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
____. Complexidade e Transdisciplinaridade – a reforma da
universidade e do ensino fundamental. Natal: Editora da UFRN,
1999.
ROSNAY, J. de. O homem simbiótico – perspectivas para o terceiro
milênio. Petrópolis: Vozes, 1997.
Ensinar a condição humana*
Maria da Conceição Xavier de Almeida11[1]
11[1] Antropóloga. Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP. Professora dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Membro da Association Pour la Pensée Complexe – Paris. Coordenadora do Grupo de Estudos da
24
“Vida é mais um imperativo do que um conceito. Definir é sempre uma forma de matar”.Dietmar Kamper
Conhecer o humano é, antes de mais nada, situá-lo no universo e não
separá-lo dele”.Edgar Morin
Resumo: O conjunto das reflexões atuais sobre a reforma
do sistema educacional, da educação básica e a formação
de professores, requer dois investimentos cognitivos que se
complementam: o exercício de um diálogo capaz de
articular nossas competências e a escolha de meta-temas e
princípios que exponham, com clareza, o ideário da
educação que queremos. Desse ponto de vista é necessário
expor, problematizar e avaliar se a produção do
conhecimento de que dispomos como herança histórico-
cultural, responde, de maneira satisfatória, aos problemas
que emergem na sociedade contemporânea marcados pela
relação de complementaridade e oposição entre ciência,
tecnologia e meio ambiente. Mas que isso, interessa
perguntar se nossa prática como educador nos permite
projetar e construir as bases de uma sociedade futura. Abrir
as especialidades, prover métodos de pensar que rejunte
conhecimentos e reconstruir um sujeito capaz de
problematizar a condição humana, parece ser o protocolo
básico para repensar a educação. Uma reforma do
pensamento (E. Morin) orientada pela desconstrução e
reconstrução dos atuais modelos cognitivos (H. Atlan),
certamente facilitará a escolha de fatos portadores de
sentido (J. Rosnay) que possam fazer da educação o ensino
da condição humana em sintonia com os domínios do
mundo que fundam essa condição.
Complexidade – GRECOM.
25
Palavras chaves: educação, formação de professores,
conhecimento.
Abstract: The current set of reflections on reform of the
educational system, from basic education to teacher training
requires two cognitive investments that complement each
other: a dialogue capable of articulating our different areas
of competence, and the choice of meta-issues and principles
that clearly expose the educational ideal we want. From that
point of view, we must expound on, question and evaluate
whether the production of knowledge we have inherited
culturally and historically can satisfactorily solve the
problems that emerge in contemporary society, which are
marked by the complementary and antagonistic relationship
among science, technology and the environment.
Furthermore, we should ask if our educational practices
permit projecting and constructing the basis of a future
society. It would seem that a basic agenda for rethinking
education demands opening up specialisations, providing
methods of thought that rejoin knowledge from different
disciplines and reconstruct an individual capable of
questioning the human condition. A reform of thought (E.
Morin) oriented in deconstruction and reconstruction of
cognitive models (J. Rosnay) that can make teaching an
education of the human condition in harmony with the world
domains that are the basis of that condition.
Key words: education, teacher training, knowledge.
De onde partimos
Tudo que dizemos só faz sentido no âmbito de uma
compreensão de mundo partilhada coletivamente pelo
26
veículo da linguagem. A comunicação humana supõe
sempre um entendimento comum a partir do qual ganham
sentido as singularidades discursivas, a originalidade de
nossas formas de pensar e transmitir conhecimentos.
Sobretudo na ciência, expor nossa compreensão a respeito
do panorama que contextualiza o tema/problema do qual
tratamos, se constitui na regra básica do diálogo. Mas que
isso, possibilita a ampliação de nosso campo de referência
permitindo ultrapassar os lamentáveis monólogos coletivos
que impedem o avanço do conhecimento e a criação de
novas e criativas sínteses do pensamento diante do mundo.
Permitir o acesso a nossa visão de mundo, expor a
arquitetura argumentativa que relaciona as informações das
quais dispomos, e, por fim, procurar compreender os
pressupostos organizadores das idéias de nossos
interlocutores, se constitui nas condições necessárias
(mesmo que não suficientes), para articular e retotalizar as
micro-interpretações sobre a realidade.
Dito de outra forma, habilitar-se a entender o conteúdo das
idéias que nos são transmitidas supõe o manuseio cognitivo
das fontes que alimentam tais idéias. Fazendo uso de um
argumento instigante e provocador, diz Marcel Conche
(1998) que para compreender a filosofia grega “é preciso
tornar-se grego”, pensar como grego. E pensar como grego
é compreender as idéias de Homero, considerado por ele
como a Bíblia dos gregos, o paradigma alimentador dos
filósofos, o alimento que os tornou capazes de produzir
novas e singulares cosmologias do pensamento.
Hoje certamente não dispomos mais de uma única fonte
fundamental, a partir da qual organizamos nossas
interpretações de mundo. A multiplicidade das “grandes
obras” e das fontes heteróclitas torna ainda mais imperativa
a necessidade de expor as macro referências que nos
27
servem de suporte. Nesse sentido, para falar da formação
de professores supondo as relações ciência-sociedade-
tecnologia-ambiente exponho o que, do meu ponto de vista,
se constitui no contexto capaz de oferecer sentido ao tema,
que resignifico mais sinteticamente como a formação do
professor diante da sociedade atual marcada pela incerteza.
Incerteza e vontade
Se a incerteza do futuro contamina o presente, pelo
menos, sabemos, não estamos num ponto zero qualquer,
uma vez que nosso presente é, em parte, produto do
passado. Digo em parte porque, por força de escolhas nem
sempre conscientes, nem sempre livres, nem sempre
propriamente escolhas, temos deixado de lado ou excluído,
produtos importantes desse passado. Muitas habilidades,
saberes, estilos de vida e formas de pensar foram
certamente julgadas inapropriadas, apesar de terem
constituído importantes constâncias históricas que
consolidaram o padrão da espécie humana.
Se o futuro é incerto, podemos pelo menos lançar mão de
alguns dados, processos e caminho já percorridos, para
compreender e avaliar a história do presente. Longe, porém
da causalidade linear devemos estar atentos a um fato: não
somos hoje um simples produto do passado que nos foi
transmitido, porque somos simultaneamente produto e
produtores da nossa cultura. Além disso, nossa história é
fruto de uma dinâmica complexa que qualifica a condição
humana como sendo a permanente oscilação entre forças
de emancipação e regressão, ordem e desordem, avanço e
retrocesso, vida e morte, repetição e inovação. É a partir do
interior mesmo dessa dinâmica complexa que emerge a
condição reflexiva dos humanos. Dotada de uma certa
28
autonomia, a condição de refletir retroage sobre nossas
experiências, e é a partir dessa condição cognitiva que
exercitamos nossos atributos de vontade e liberdade. A
avaliação do caminho percorrido, a valoração do processo
no qual estamos imersos e a escolha de horizontes a serem
percebidos são, talvez, a trinidade antropológica que nos
caracteriza como sapiens-sapiens-demens. Uma tal condição
sapiental deve denotar menos a supremacia da espécie e
mais a sua responsabilidade diante de uma história
encenada conjuntamente com parceiros que, não só não a
escolheram, mais dela compartilham de maneira
compulsória ou pela domesticação.
Se a aventura humana na terra tem se dado graças a
complexificação crescente de nossas aptidões mentais em
intercâmbio com a natureza, e se da relação homem-meio
emergiu esse fabuloso processo cultural, talvez seja
imperativo perguntar sobre a nossa dívida para com outros
processos que foram interrompidos em favor de um projeto
civilizatório excludente porque “demasiadamente humano”.
Por fim, se a acumulação da cultura tem se dado pela
transferência, reorganização e resignificação de informações
de diversas ordens (física, biológica, psíquica, simbólica),
devemos atestar a importância do processo educativo como
mediador dessa acumulação. Cabe, entretanto perguntar
como temos praticado tal mediação, a partir de que
métodos de pensar temos intercambiado e reorganizado
informações, de que moldes mentais fazemos uso para
transmitir conhecimentos, experiências, conteúdos
interpretativos. Para pensar a formação de educadores
capazes de problematizar e articular os conteúdos da
cultura é necessário tomar consciência das condições de
produção do conhecimento operado historicamente e
discutir a educação como via de superação da
29
disciplinaridade fechada, não comunicante.
Cultura e conhecimento
Comecemos por explicitar as possibilidades cognitivas do homem
diante da necessária reconstrução de um conhecimento mais universalista,
complexo e dialogal. Situemos um começo, sem a preocupação de um ponto
zero.
Sabemos que apesar de integrante do complexo sistema que constitui
o meio ambiente, o homem dele se distingue pela faculdade da produção da
cultura e da construção da história. É como leitor simultaneamente utilitário
e especulativo do ecossistema que o homem têm respondido aos problemas
que lhes são postos. Mas é também como formulador de cosmologias
imaginárias que temos dialogado, lido e reconstruindo o mundo.
É pois a partir do contato com um mundo dado e um mundo
construído – ecossistema natural, códigos culturais, representações – que a
relação cérebro-espírito tem encontrado as bases e as condições para sua
complexificação e a produção do pensamento, do conhecimento e da
cultura. Somos seres ao mesmo tempo marcados pela necessidade prática e
pela competência especulativa, seres lógicos e míticos. Conforme dirá E.
Morin em O método III, “toda renuncia ao conhecimento
empírico/técnico/racional conduziria os humanos à morte”, mas igualmente
“toda a renuncia às (nossas) crenças fundamentais, desintegraria a
sociedade12[2].”
Para Edgar Morin o processo de complexificação da
natureza, animado pela pulsão cognitiva que ultrapassa o
utilitarismo, sustenta-se numa estrutura antropológica
pendular que comporta, simultânea e dialogicamente uma
biologia, uma animalidade e uma humanidade do
conhecimento. Essa pulsão cognitiva é certamente o que
funda a constituição das sociedades humanas, sua
historicidade, constitui a cultura, produz um ser leitor,
12[2] MORIN. Edgar. O método III. O conhecimento do conhecimento. Lisboa: Publicações Europa-América, s.d. p. 144.
30
interpretante e impressor de sentidos, vontades, desejos,
produtor e consumidor de conhecimento. “A cultura que é a
marca da sociedade humana, é organizada/organizadora
pela via do veículo cognitivo que é a linguagem; a partir do
capital cognitivo coletivo dos conhecimentos adquiridos, dos
saberes fazeres apreendidos, das experiências vividas, da
memória histórica, das crenças míticas de uma sociedade.
Assim se manifestam representações coletivas, consciências
coletivas, imaginário coletivo... Assim a cultura não é nem
superestrutura nem infraestrutura, esses termos sendo
impróprios numa organização recursiva na qual o que é
produzido e gerado torna-se produtor e gerador daquilo que
o produz ou o gera”13[3].
Esse conceito de cultura, que para Edgar Morin
implica, metaforicamente, um mega-computador complexo,
inscreve instruções, prescreve normas e comandos em
cérebros individuais, das sociedades arcaicas às pós-
industriais, e vem sendo construído, pouco a pouco, num
itinerário intelectual múltiplo, desencadeado principalmente
a partir da publicação de “O paradigma perdido”, de 1973.
Nesse livro é enfatizado que a substituição da floresta pela
savana, a ociosidade dos adolescentes, a copulação frontal,
o fogo, a instauração da exogamia, o fim do nomadismo, a
articulação da palavra, a aferição de significados, o exercício
das trocas e do poder, a criação do mito e da ciência, são
todos sinalizações da relação natureza-cultura mediada pela
imposição de problemas novos e instigantes. “A
hominização teve como prelúdio uma desgraça ecológica,
um desvio genético e uma dissidência sociológica”14[4].
No interior desse macro processo, a complexificação
cerebral, instigada e alimentada pela relação constante
13[3] MORIN, E.. La méthode 4: les idées - leur habitat, leur vie, leurs moeurs, leur organizations. Paris: Editions du Seuil, 1991, p. 17.14[4] MORIN, E.. O enigma do homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 63.
31
entre o homínida e o meio ambiente, desempenhou o papel
de “centro federativo-integrativo entre as diversas esferas
cujas relações mútuas constituem o universo antropológico:
a esfera ecossistêmica, a esfera genética, a esfera cultural e
social e, claro, a esfera fenotípica do organismo
individual”15[5]. Entre o cérebro humano e o meio ambiente
não há, portanto, de fato, nem integração nem adequação
imediata. Antes, uma zona de ambigüidade e incerteza. E é,
precisamente, a faculdade de indecisão, o ingrediente que,
ao mesmo tempo, limita e abre indefinidamente a
possibilidade de conhecimento16[6].
A zona de indecisão entre homem e meio define a
possibilidade do conhecimento, e este nada mais é do que a
tentativa de fechar a brecha cérebro X ecossistema-cultura-
praxis. A resolução das incertezas tem sido, historicamente,
exercitada através dos itinerários
simbólicos/mitológicos/mágico e empírico/racional/técnico
entendidos como excludentes pelo grande paradigma do
ocidente.
Com efeito, mais que atributos do pensamento, que
podem eventualmente articular-se, os itinerários míticos e
lógicos estão em constante interação como que contagiados
por uma necessidade comum. Por outro lado, a suposta
separação entre os ideários míticos, religiosos, científicos e
filosóficos só encontrará justificação nas matrizes da
racionalização da história ocidental que operam a arbitrária
disjunção entre razão e mito, como se razão e ciência não
fossem sempre contaminados e embebidos pelos
dispositivos míticos. “Os dois modos coexistem
entreajudam-se, estão em constantes interações, como se
tivessem uma necessidade permanente um do outro; podem
por vezes confundir-se, mas sempre provisoriamente”. Essas
15[5] Id. ibid. p. 136.16[6] Id. ibid. p. 130-131.
32
palavras conduziram Edgar Morin a afirmar,
categoricamente, que a relação entre os dois pensamentos
não se encontra historicamente ultrapassada, mas inscreve-
se como uma questão antropossocial inaugural em toda a
trajetória do processo civilizatório.
Fazer comunicar esses dois modos de pensar, que
pela força do paradigma da simplificação esfraqueceram
suas relações e parecem atuar separados é reabilitar a
dialógica da estrutura policêntrica e fracamente
hierarquizada do cérebro humano. Uma tal reabilitação
antropológica favorece o diálogo entre as especialidades
técnicas da produção do conhecimento. Isso “não implica
em que cada um de nós tenha que passar o tempo todo a
ler, a informar-se de todos os domínios... O problema não
está em que cada um perca a sua competência. Está em
que a desenvolva o suficiente para articular com outras
competências que, ligadas em cadeia, formariam o anel
completo e dinâmico, o anel do conhecimento do
conhecimento17[7]”.
Para que essa potencialidade seja posta em
movimento, é necessário operar uma nova articulação de
saberes e competências além de um esforço de reflexão
fundamental. Tal articulação e esforço excedem o projeto
individual dos educadores, mas supõe à partida uma
vontade individual fundamental. É uma tarefa que necessita
do encontro e da troca de experiências de todos aqueles
que trabalham em domínios diversos e que não se fecham
como ostras nas conchas de suas especialidades. Además,
nenhum conhecimento tem sentido fora de seu contexto
conforme assevera Edgar Morin.
Numa problematização a respeito da atual reforma do
ensino fundamental no Brasil, Luís Carlos de Menezes
17[7] Id. Ibid. p. 33.
33
destaca que dominar uma especialidade não é suficiente
para ter habilidade, competência e qualidades humanas.
Para ele a “natureza ou a sociedade não são disciplinares,
mas quanto mais aprofundado e especifico for o
conhecimento, mais disciplinar ele se apresenta, ou seja,
mais uso faz de códigos próprios, de linguagens específicas,
de instrumentos especiais. Por isso, há um lugar
insubstituível para as disciplinas, sempre que um
conhecimento sistemático estiver sendo tratado18[8]”.
Longe de protagonizar o fim das disciplinas, uma
reforma do pensamento e da educação reconhece como
imperativo fazer dialogar as estruturas de pensar, as
competências, os saberes produzidos. É ainda Menezes que
nos alerta para o fato de que mais que a destreza no
manuseio dos conteúdos específicos, a fecundidade de
acionar as competências está no fato de permitir a
transversalização dos redutos disciplinares. Nesse sentido,
pergunta: “escrever uma carta pessoal ou informação
técnica, saber como proceder diante de uma emergência
doméstica ou profissional, localizar informação e ser capaz
de interpreta-las, elaborar estatísticas de variáveis físicas e
sociais, conhecer hipóteses sobre o surgimento da vida no
planeta, tocar um instrumento musical ou dançar ou
representar ou desenhar, apreciar literatura, saber como se
elaboram as leis e conhecer a história da organização
política de diferentes povos, são habilidades restritas a
quais disciplinas?” Numa síntese arrojada Luis Carlos de
Menezes reescreve em nossa alma de educador um
argumento fundamental que pode nos dispor a fazer
dialogar as competências de um educador ativo e inteiro
diante do mundo. “Há qualidades afetivas, sociais, práticas
e éticas, como solidariedade, curiosidade, criatividade,
18[8] MENEZES, L. C. Competências e conhecimento no ensino médio. In: Jornal Tribuna do Norte. Caderno Viver – Polifônicas Idéias. Natal, 5 de agosto de 2000. p. 6.
34
iniciativa, expressividade, sociabilidade, interesse cultural,
preferência artística, responsabilidade coletiva, respeito
humano e tantas outras que não se podem restringir a
quaisquer disciplinas, ainda que possam ser promovidas
dentro de qualquer disciplina19[9]”. Essas qualidades aludidas
por Menezes podem vir a configurar estados disposicionais
do professor para uma organização mais orgânica do
conhecimento. A esse respeito faz sentido trazer de volta as
palavras de Montaigne contidas nos seus ensaios: “mais
vale uma cabeça bem feita do que uma cabeça cheia”.
Para Edgard de Assis Carvalho pensar a Educação do
século XXI é reabilitar como sugere Morin as inquietações de
Marx na terceira tese sobre Feuerbach. Nas palavras de
Carvalho, “qualquer teoria da mudança das circunstâncias
sócio-históricas e da educação traz consigo a necessidade
da educação dos educadores. Como fazer isso? Fomentando
a identidade entre ciência e arte, ciência e tradição,
estimulando a religação entre razão e sensibilidade. A
educação dos educadores deverá reconhecer que a função
escolar, em qualquer dos níveis em que exerça, precisa
estabelecer uma conexão forte entre presente e passado, de
um lado, e entre sociedade e indivíduo, do outro”. Conclui
Carvalho afirmando que o objetivo crucial da educação hoje
precisa se pautar pela “sustentabilidade e pela preservação
do capital cultural da humanidade20[10]”.
Para reabilitar o diálogo “entre razão e sensibilidade” de que fala
Carvalho e reaver as qualidades “afetivas, sociais, práticas e éticas”
sublinhadas por Menezes, o professor talvez tenha que contemplar-se no
espelho do antigo sábio, para atualizar sua imagem em sintonia com os
desafios da sociedade atual.
19[9] Id. Ibid. p. 6.20[10] CARVALHO, E. de A. Educação para o século XXI. In: Jornal Tribuna do Norte.
35
O sábio pré-iluminista e o intelectual moderno
Foi certamente o predomínio da rigidez sobre a razão que acabou
constituindo-se na matriz epistemológica iluminadora do pensamento
científico, notadamente na modernidade.
O Século das Luzes será o marco principal de referência da
transformação do antigo sábio no intelectual moderno. O sacerdote-mago,
guardião dos mitos e encarregado de anunciar a verdade foi substituído pelo
filósofo iluminista que passa a submeter à verdade sagrada à prova da
crítica. Produz-se um novo mito: a razão. Dessa ruptura nasce o intelectual
moderno. “O mito da razão emancipa o intelectual” afirma Morin em “Para
sair do Século XX”.
Dotado de uma simbiótica ambivalência, o sábio pré-iluminista se
constituía ao mesmo tempo como defensor de valores morais e um rigoroso
observador, sistematizador e interpretador dos fenômenos físicos e sociais
do seu tempo. O intelectual moderno emerge num interior de um matizado
processo sócio-histórico que elege a razão como o único critério definidor
da ciência. A partir daí os saberes e as experiências que não resistem ao
teste da razão e da demonstração serão classificados como míticos,
esotéricos, religiosos, transcendentais, metafísicos. Mutatis-mutanti a
transformação do educador, antes um sábio polivalente, hoje um especialista
num domínio estrito de competência, reatualiza o mesmo processo de
fratura e redução das condições ampliadas da comunicação do
conhecimento.
O que pode parecer uma contextualização histórica da sucessão de
personagens do conhecimento, representa na verdade fixações normativas
excludentes de estados de ser do pensamento humano, em sua essência,
polivalente, polifônico, múltiplo. Reprograma-se pela via das escolhas
redutoras as interfaces entre homem e meio. As questões colocadas pelas
sociedades passam a ter domínios de resolução distintos. O conhecimento
como um recurso para fechar a brecha cérebro-meio tem agora diante de si
questões de natureza supostamente diferenciadas. Estabelecem-se divisores
entre o que é da ordem do racional e do irracional, e, mais particularmente,
opõem-se os problemas considerados ora míticos, ora metafísicos, ora
36
científicos. A fragmentação do pensamento torna-se visível pela produção
de especialistas não comunicantes. Emerge o descompasso na articulação
entre os itinerários míticos e lógicos. O pensamento simplificador
pulverizará a partir de então as questões a serem apreciadas pelas sociedades
humanas de forma insular e pontual.
Essa estrutura de operação do pensamento e produção do
conhecimento tem por base a emergência de uma sociedade pré-industrial
que vê multiplicados os problemas já existentes ao mesmo tempo em que se
defronta com o aparecimento de novos problemas. O aumento e
deslocamento populacionais, o redirecionamento da formação técnico-
profissional, o aparecimento de doenças provocadas pelas aglomerações
urbanas, etc. vão demandar uma nova organização na produção de saberes.
Essas contingências sócio-históricas consolidarão o perfil do intelectual e do
cientista como um especialista.
Vão sendo consagradas a partir daí as várias cadeias de separação
sucessivas entre natureza e cultura, o mundo real e o mundo imaginário,
produção material e produção do pensamento, trabalho manual e trabalho
intelectual, fazer e saber, teoria e prática, pensamento e ação. A separação
entre a arte da técnica e a estética da reflexão encontrará na sociedade
industrial nascente as condições favoráveis para expressar-se. Torna-se
então indispensável à formação de competências específicas gestadas pelos
adestramentos que confinam o indivíduo em um campo extremamente
restrito de atividades. A ciência passa a acentuar o caráter utilitário do
conhecimento, limitando o campo da reflexão a certos domínios. Entramos
assim nos “tempos modernos” de Chaplin: a repetição, a mecanização do
pensamento, a exaustão do corpo sem mente e sem desejo. Mentes treinadas
para pensar o extremamente útil, “corpos dóceis para o trabalho”, para usar
uma expressão de M. Foucault.
No cenário dessa lógica perversa, as instituições educacionais vão
aos poucos abrindo mão da reflexão e da crítica, para privilegiar a formação
de especialistas que reproduzem maquinicamente uma sociedade
fragmentada, comprometendo assim as condições de convivialidade e
diálogo social entre os saberes milenares da tradição e a ciência moderna.
Uma assepsia cognitiva passa a controlar as qualidades psico-afetivas do
37
conhecimento, e uma razão patológica proverá, por todos os meios a
domesticação da “lógica do sensível” de que trata Claude Lévi-Strauss.
A domesticação da tradição
A história da nossa espécie, vale dizer, do passado de
cada um de nós, desenhou-se por sobre diversos caminhos
possíveis, seguiu a reta da especialização e é ao mesmo
tempo uma história de ganhos e perdas. Mas que isso, o
caminho percorrido até hoje só foi possível às custas da
redução, assimilação e negação de diversas formas de
intercâmbio do homem com o meio através do
conhecimento.
A cultura que recebemos como herança funda-se na
divisão de dois domínios de saberes: de um lado a ciência,
do outro os saberes da tradição. A hegemonia de um
domínio sobre o outro e a incomunicabilidade entre eles se
constitui um dos problemas cruciais do nosso tempo. Longe
de apregoar a unificação de estilos diferenciados de dialogar
com o mundo, temos entretanto que julgar inadmissível o
paralelismo de saberes que tem em comum o mesmo
desafio: tornar possível e prazerosa a vida humana na terra.
Além do mais, a hegemonia da ciência se acorra num
fundamento sem fundamento. Isto porque a ciência nasceu
justamente da domesticação de parte dos saberes milenares
da tradição, mesmo que deles tenha aos poucos se
distanciado.
Do ponto de vista da função social e política do
conhecimento, cabem aqui algumas interrogações. Se “a
sociedade se põe os problemas que pode resolver”, como
afirmava Marx, como enunciar as questões centrais de
nosso tempo? Como indicar o problema chave de nossa
38
época? Pode-se dizer que tais questões são aquelas que a
comunidade científica anuncia? A essa convenção não se
deve contrapor a ausência da ciência frente a problemáticas
muitas vezes vitais de certas populações? A que serve o
paralelismo da produção do conhecimento na ciência e nos
saberes da tradição? Sabemos que internamente à ciência,
o paralelismo das descobertas científicas demonstra a
universalidade da sintonia cérebro-meio pela explicitação de
questões idênticas em lugares diferentes. Mas também
sabemos do desperdício, da duplicação e a
incomunicabilidade que constituem juntos a característica
da ciência moderna. Esse panorama se amplia em relação
se considerarmos o conjunto de nossos conhecimentos.
A partir desse raciocínio, algumas questões podem ser
delineadas: 1) A população que por interdição é destituída
do saber científico, estaria em atraso em relação às
questões enunciadas pela ciência num determinado
momento? 2) Seriam elas um empecilho a produção coletiva
do conhecimento? 3) Se é verdade que só a ciência sintoniza
adequadamente as questões postas e as resolve, como
entender que as populações que não dispõem daquele
conhecimento elaboram suas matrizes de referência
explicativa? 4) Os saberes não científicos teriam como
função ensaiar soluções para problemas que num segundo
momento, seriam resolvidos pela ciência?
Tais questões problematizam o processo educativo em
nossos dias, processo de dispersão que, ao invés de criador
é redutor e mutilante. De um lado, o saber científico
fracionado, não comunicante; de outro, o saber tradicional
“popular”, selvagem, tratado como filho bastardo da
aventura do conhecimento e excluído do âmbito da
socialização da cultura científica. Tal exclusão fundará
39
espaços, linguagens e atitudes mentais que se excluem
mutuamente.
Na formação acadêmica do professor, os conteúdos
que são transmitidos correspondem a uma história
domesticada das descobertas do homem. Está fora dos
programas a diversidade de explicações, especulações e
métodos de olhar, classificar e hierarquizar os fenômenos do
mundo, pelos intelectuais da tradição. São os métodos
científicos de previsão climática que são comunicados, e
nunca as formas tradicionais de leitura do ecossistema pelos
peritos da tradição. Ao exercício do pensamento analógico,
ferramenta mental tão fecunda nos saberes não-científicos,
são atribuídos reservas desclassificatórias. Se, nos
conteúdos escolares, há alusão a outras interpretações do
mundo, a elas são imputadas a qualidade de um saber sem
rigor, sem método, sem função, um saber menor.
Essa forma de interdito na circulação da cultura, consolida uma
sociedade de múltiplas exclusões e condena as populações não letradas a
redutos cada vez mais fechados. Dotados, entretanto de uma criatividade
não domesticada, essas populações têm respondido a desafios que talvez a
ciência fosse incapaz de enfrentar, se fosse desprovida de tantas
ferramentas, artifícios e próteses.
Um novo educador
A tarefa de repensar a formação de novos educadores
supõe um clima de efervescência de idéias, chamado de
calor cultural, por Morin, e implica identificar o que, na
nossa estrutura educacional favorece o “comércio” e a troca
40
múltipla de interações, opiniões, idéias e teorias. Não se
restringindo ao intercâmbio do que já foi dito, essa investida
apela para nossa criatividade no sentido de pensar um
educador capaz de, não se fixando apenas no compromisso
com o presente, poder lançar as bases para uma educação
do futuro.
Assim, mais que reformular as teorias e metodologias
particulares para pensar o mundo, é fundamental que nos
coloquemos o problema de recompor a estrutura de pensar.
Em segundo lugar, considerando o quadro interno do
conhecimento científico há que se propugnar pela
articulação entre ciências da vida, ciências do homem,
ciências do mundo físico. Aqui, não bastarão, certamente,
esforços de superposição de conteúdos disciplinares. Nessa
direção, a interdisciplinaridade deve ser ultrapassada pelo
horizonte da transdisciplinaridade, em busca do pensamento
complexo. Por outro lado, esse intercâmbio interno entre
disciplinas científicas não basta. É fundamental ampliá-lo
nos quadros do diálogo entre a ciência e os saberes da
tradição, conforme já assinalamos.
Esses exercícios supõem reativar ou configurar uma
estrutura cognitiva de múltiplas e complexas entradas.
Nessa nova e plurifocal rede cognitiva perde sentido,
certamente, a estrutura dual e fragmentada de pensar o
mundo e o homem. Esse é, parece, o horizonte posto hoje
ao conhecimento.
Diante deste horizonte é importante investir numa
reorganização do conhecimento capaz de prover uma
reforma na educação. Isso requer uma nova aliança entre
cultura cientifica e cultura humanística, a reforma do
pensamento e o exercício do diálogo. Essas idéias que
alimentam a base epistemológica de pensadores como Ilya
Prigogine, David Bohm e Edgar Morin podem fomentar
41
práticas educacionais capazes de religar os conhecimentos e
fazer dialogar nossas competências. Rediscutir como
hipóteses postulados tidos como indiscutíveis, imprimir
importância a fatos concebidos como aleatórios pela ciência,
refutar a ortodoxia e o maniqueísmo, por à luz nossas
crenças fundamentais, exercitar a criatividade do
pensamento, são alguns dos protocolos que favorecem a
emergência de um novo espírito cientifico e de um novo
educador.
Esse protocolo de intenções, talvez mais propriamente
uma pedagogia da complexidade precisa está
comprometido com um ideário educacional mais ético
diante dos graves problemas planetários, sem abrir mão, é
claro, da nossa herança milenar que, de uma certa forma,
ainda se mantém nos redutos dos saberes da tradição.
Há que se investir na disposição para ampliar os
limites do conhecimento e fazer dialogar as competências
disciplinares. Uma reorganização mais democrática dos
saberes poderá reduzir a exclusão inadmissível de parte
considerável de nossa sociedade diante das escolhas
coletivas. Esse desafio longe de configurar uma missão
própria de um especialista, pertence igualmente aos
epistemólogos, físicos, educadores, sociólogos, antropólogos
e intelectuais da tradição.
No que se refere aos profissionais da educação que
aqui nos interessam mais de perto, é preciso sublinhar o
importante papel que esses atores desempenham enquanto
mediadores da transferência e difusão dos conteúdos da
cultura científica. Mais que um simples transmissor de
conhecimento, o professor constitui-se numa referência
privilegiada para a construção da visão de mundo e da
estrutura de pensar do aluno, diga-se, do cidadão
planetário.
42
Investido da autoridade aferida pelo estoque do
conhecimento acumulado e do poder instituído pelo lugar
discursivo do qual fala, ao educador caberia hoje o exercício
de fazer emergir uma qualidade do pensamento que está
em parte adormecida: o prazer de conhecer. O incitamento
à criatividade, a atividade de interditar a ortodoxia e a
certeza, podem vir a prefigurar um novo perfil do educador,
em sintonia com as demandas culturais do próximo milênio.
Esse novo educador talvez tenha que incluir na sua agenda
duas tarefas que, mesmo distintas são complementares.
Uma diz respeito à reconstrução de seu próprio perfil
enquanto profissional da educação: a morte do sujeito
narcisicamente investido do poder é o mínimo que se espera
para reformatar-se os espaços discursivos do diálogo
professor-aluno. Essa tarefa amplia-se numa outra, sem
dúvida investida de maior envergadura e desafio. Trata-se
de exercitar uma verdadeira aeróbica dos neurônios no
sentido de desconstruir os imprintings paradigmáticos que
impedem novas e ampliadas sinapses cognitivas de alunos
cada vez mais ávidos em expor suas subjetividades, seus
mapas auto-biográficos e em compreender os conteúdos
disciplinares que se tornam significativos apenas pela
partilha e co-produção.
Certamente, a tarefa para reintroduzir o prazer na
práxis docente, supõe a reconstrução de um conhecimento
mais aberto, onde as noções de polifonia, ambivalência e
simultaneidade possam emitir novas mensagens a um
sujeito ativo que se singulariza. Para isso, ter-se-á que
exercitar um esforço fundamental para acessar o nosso
poliprograma cerebral atualmente adormecido pela
hegemonia da ratio cartesiana. Em outras palavras, ter-se-á
que questionar as imposições radicais das mundovisões
43
estreitas sugeridas pelos códigos da ciência, o que subtende
rediscutir a formação de professores.
É preciso que o professor seja formado para ampliar
suas escolhas cognitivas e de seus alunos para que possam
coletivamente arquitetar e ensaiar novas escolhas sociais,
éticas, políticas. É necessário que a escola se transforme no
lugar de fecundação de novas utopias realistas. Se é
imprescindível reformar as estruturas curriculares dos
cursos de formação de professores, se é indispensável
repensar a construção do perfil do professor diante da
sociedade atual, se é inadiável ultrapassar a idéia do
professor como mero transferidor de conteúdos científicos,
não é menos importante, e urgente, se colocar a questão da
auto-formação do educador.
Assim como a critica deve ser sempre precedida da
auto-crítica e a ética social se inicia com auto-ética de cada
sujeito, também a formação do professor deve ter por
complemento importante a auto-formação. Não é de mais
lembrar que toda transformação individual ou coletiva
requer uma intenção, uma vontade, uma prática ou mesmo
um consentimento, mas começa sempre pela transformação
do sujeito. Todas as mudanças supõe uma convicção
fundamental para a transformação, e essa convicção está
situada no indivíduo.
Apostar numa refundação do perfil do educador é
talvez abrir-se à dinâmica da reconstrução de nossos
métodos de ensinar e aprender. É com esse objetivo que
tomo aqui de empréstimo a noção de auto-organização
formulada por Henri Atlan e o argumento defendido por
Pierre Lévy de que o sistema cognitivo humano tem por
base uma diversidade de operações simultâneas. Vamos por
parte.
44
Henri Atlan sugere que a complexidade dos sistemas
vivos supõe a auto-organização pelo ruído. É a partir da
decodificação do ruído que se desestrutura a fixação do
padrão cognitivo e se ampliam os modelos de referência
internos ao sistema. É por isso que os processos de
aprendizagem “não dirigidos” são responsáveis, em grande
parte, pelo aparecimento de novos padrões de leitura do
mundo. O núcleo das idéias de Atlan a esse respeito
comporta duas noções/processos fundamentais: o delírio e o
transbordamento.
O delírio passa a ser entendido como uma projeção do
imaginário sobre o real e o elemento que exibe a condição
de “ambigüidade” do imaginário. Sublinha o autor, por
exemplo, que qualquer hipótese científica realmente nova é,
na sua origem, “da ordem do delírio”. O passo seguinte é,
supondo sempre a auto-eco-organização do pensamento, a
exposição dessa projeção ao real. E o feedback, ou seja, o
resultado da digestão e adequação do delírio ao mundo real,
que evitará sua potencial metamorfose patológica. A
ausência desse feedback, a partir do fechamento do sistema
cognitivo, pela via da “memorização excessiva” (fixação de
um molde inalterável) ou da “precisão demasiada” (fixação
numa projeção particular) encera o delírio no reduto de sua
negatividade. Daí porque os processos/mecanismos de
transbordamento do pensamento, pelos excessos de
imagens e leituras complexas, podem vir a se constituir num
importante antídoto de resistência frente ao que tenho
chamado de violência cognitiva, que impõe padrões
redutores e economizadores do policentrismo cerebral e da
polifonia imaginária. As noções de aceitação do ruído e de
“delírio organizador” parecem se impor hoje como idéias
sobre as quais é preciso pensar.
45
Da parte de Pierre Lévy, para o qual “pensar é um
devir coletivo no qual se misturam homens e coisas”
interessa reter a simultaneidade da operação cognitiva.
Sendo a educação um dispositivo que limita pela
seletividade, a escolha de métodos de leitura do mundo, ela
comporta em si, a possibilidade de fechamento e redução do
pensamento humano. Isto é, os métodos de transmissão da
cultura reduz a polifonia do pensamento. Mas não é só.
Numa síntese arrojada, Pierre Lévy mostra como a história
do pensamento no homem se traduz pela sucessão do que
ele chamou “os três polos do espírito” – oralidade, escrita,
informática. Manter-se em sintonia com o mundo atual é,
para Pierre Lévy, por-se a tarefa inadiável de promover a
fusão e ampliação dessas distintas “tecnologias do
pensamento”. Essa parece ser uma das estratégias
fecundas na prática do ensino. Tal proposição não deverá
excluir nenhum desses três polos, mais ao contrário, bricolá-
los num grande hipertexto da cultura onde o mito e o logos,
os desejos e as interdições, as narrativas e os diagramas, as
subjetividades e as objetividades teçam, conjuntamente, os
“nós” de um homem ainda em construção. “A sucessão da
oralidade da oralidade, da escrita e da informática como
modos fundamentais da gestão social do conhecimento não
se dá por simples substituição, mas antes por
complexificação e deslocamento de centro de gravidade”
(Lévy: 1993).
Em suma, a desconstrução da educação como
adestramento e a reconstrução do perfil do educador
supõem a aceitação da morte e da metamorfose do sujeito
cindido e fechado. Nas palavras de Henri Atlan, “na verdade,
foi o homem, enquanto sistema fechado, que desapareceu;
sistemas cibernéticos abertos, auto-organizados, são
candidatos a sua sucessão” (Atlan: 1992).
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Nessa sucessão de mortes e renascimentos, valeria
também nos perguntar sobre a vitalidade de nossas
projeções de futuro quando nos detemos demasiadamente
aos fatos, processos, e diagnósticos do presente. A esse
respeito são bem vindas as reflexões de Joel de Rosnay no
livro “O homem simbiótico”. Para ele, dadas às
transformações rápidas, imprevistas e incertas das
sociedades contemporâneas, nenhuma de nossas projeções
teóricas teriam valor operativo de longo alcance. Para
Rosnay, o desafio que se impõe a todos nós é maior. Trata-
se de imaginar a sociedade que queremos e identificar, no
contexto de nossas sociedades atuais quais são os fatos
portadores de sentido, capazes de objetivar nossa
imaginação. Isso vale também para imaginar e construir a
educação que queremos.
No espaço desse artigo enuncie o que, para mim, são
alguns desses fatos portadores de sentido. Mas eles não são
suficientes, nem são os únicos, nem talvez os mais
fecundos. Somente o empenho coletivo para iluminar focos
de emergência de uma nova sociedade e de uma nova
educação, nos permitirão projetar para o futuro o que é
preciso começar agora. Os três últimos livros de Edgar Morin
sobre a reforma da educação – “A cabeça bem-feita”, “Os
sete saberes necessários à educação do futuro” e
“Complexidade e Transdisciplinaridade – a reforma da
universidade e do ensino fundamental”, podem descortinar
caminhos de por onde começar. Para Morin é fundamental
articular as disciplinas em torno dos meta-temas mundo,
terra, vida, humanidade, arte, história, culturas
adolescentes e conhecimento. Compreender que o erro é
parte integrante do processo cognitivo, que todo fenômeno
só ganha sentido em relação ao seu contexto; ensinar a
identidade terrestre e a compreensão; discutir a ética do
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gênero humano e conviver com a incerteza se constituem
em diretrizes para fazer dialogar os conteúdos disciplinares
e restituir ao educador sua missão maior de ensinar a viver
a condição humana.
Bibliografia Referida
ATLAN, H. Entre o cristal e a fumaça – ensaio sobre a organização do
ser vivo. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
CONCHE, M. A análise do amor. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
LÉVY, P. As tecnologias da Inteligência – o futuro do pensamento na
era da informática. Rio de Janeiro: editora 34, 1993.
MORIN, E. O método III – O conhecimento do conhecimento. Lisboa:
Publicações Europa-América, s.d.
____. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo:
Cortez; Brasília: Unesco, 2000.
____. A cabeça bem-feita – pensar a reforma, reformar o pensamento.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
____. Complexidade e Transdisciplinaridade – a reforma da
universidade e do ensino fundamental. Natal: Editora da UFRN,
1999.
ROSNAY, J. de. O homem simbiótico – perspectivas para o terceiro
milênio. Petrópolis: Vozes, 1997.
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