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KIERKEGAARD, CLIMACUS E O ESTILO DO PENSADOR SUBJETIVO NOPOST-SCRIPTUM
Leonardo Araújo Oliveira
BRESUMO: Buscamos, com a presente comunicação, abordar a figura do pensadorsubjetivo, desenvolvida por Climacus no Post-scriptum . A partir dessa abordagem,trataremos da questão do estilo, tal como exposta nessa obra. Paralelamente,manteremos uma relação entre o conteúdo dessa exposição com o destaque empropostas estilísticas presentes na escrita do próprio Kierkegaard.
1135BPalavras-chave: Estilo. Climacus. Kierkegaard. Pensador subjetivo. Post-scriptum.
1136B ABSTRACT: The aim of this presentation is to discuss the image of the subjectivethinker, developped by Climacus in his Post-scriptum. By this topic, we’ll deal withthe question of the style, as exposed in that work. In parallel, we’ll maintain arelation between the content of this exposition and the stylistic proposals that figureson Kierkegaard’s writing style.
1137BKey-words: Style. Climacus. Kierkegaard. Subjective thinker. Post-scriptum.
1138BINTRODUÇÃO
1139BCaracterísticas fortemente presentes na filosofia contemporânea, como o
descrédito ao predomínio da razão, o caráter particular dos temas abordados, a
emergência da multiplicidade de interpretações, o enfraquecimento da linha divisória
entre filosofia e literatura, convergem para um ponto em comum: não seria mais
possível, tal como pretendia Hegel, realizar a filosofia como um sistema. Pensando
na recusa ao modo sistêmico de composição e exposição filosófica, Søren
Kierkegaard (1813-1855) figura como um precursor e anunciador da abertura em
que se regem os modos contemporâneos de se fazer filosofia.
1140BNo presente texto, trataremos da questão do estilo, a partir do conflito entre
dois tipos de se fazer filosofia, presente no interior do Post-Scriptum conclusivo não
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científico às Migalhas Filosóficas , de Kierkegaard (assinado pelo pseudônimo Johanes
Climacus em 1846), entre o pensador subjetivo e o pensador objetivo. Damos ênfase
temático-bibliográfica ao terceiro capítulo da segunda parte da obra, intitulado “a
subjetividade real, a subjetividade ética; o pensador subjetivo”, especialmente a
quarta seção, intitulada "O pensador subjetivo; sua tarefa, sua forma, isto é, seu
estilo”. Com isso, buscamos levar em consideração não apenas o correspondente ao
“conteúdo” expresso no Post-Scriptum , mas demonstrar, também, como alguns
temas do texto, sobretudo por sua inflexão existencial, se relacionam com sua forma
de expressão filosófica, através do uso da comunicação indireta, ou seja, também
destacamos como o conteúdo da filosofia de Kierkegaard é reduplicado no estilo.
1141BO PENSADOR SUBJETIVO
1142BEm sua autobiografia intelectual, o Ponto de vista explicativo de minha obra
como escritor , Kierkegaard expõe o papel do Post-Scriptum na batalha, enfrentadapor Johanes Climacus, contra a pretensão totalizante dos sistemas filosóficos:
1143B Aqui se situa o Post-Scriptum definitivo , o ‘ponto crítico’ de toda aobra que põe o ‘problema’ e que, por outro lado, graças a umaesgrima indirecta e a uma dialética socrática, fere de morte ‘oSistema’, pelas costas, numa luta contra o Sistema e a especulação(KIERKEGAARD, 1986, p. 85).
1144BEmbora o embate teórico com a tradição filosófica, sobretudo com a filosofia
moderna, possa posicionar Kierkegaard em sua própria formulação do conflito entre
Indivíduo e multidão79F
223, o século em que viveu gerou nomes como Marx e Nietzsche,
que, em favor de uma nova relação entre teoria e existência, também fizeram
esforços, ainda que de maneiras distintas, com vistas em enfrentar aquilo que o
mestre da ironia denomina de fantasmagoria do pensamento puro. Porém, segundo
Sartre, a partir de Kierkegaard surgem conseqüências filosóficas especificas:
223 Reforçando que a categoria de “Indivíduo”, Kierkegaard opõe à noção de “multidão”, concebendoessa última como uma abstração que dilui os indivíduos existentes.
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1145BSem dúvida, uma das preocupações constantes do século XIXconsiste em distinguir o ser do conhecimento que dele se tem; ditode outro modo: em rejeitar o idealismo. O que Marx reprova emHegel não é tanto seu ponto de partida quanto a redução do ser ao
saber. Mas para Kierkegaard – e para nós, que hoje consideramos oescândalo kierkegaardiano – se trata de uma certa região ontológicaem que o ser pretende [...] escapar ao saber e alcançar a si mesmo(SARTRE, 2005, p.16).
1146B A linha que liga ser e pensamento se inicia com a proposição de Parmênides
que diz “pensar é ser” e se estende, pela história da filosofia, à identificação
hegeliana entre realidade e racionalidade. Para Hannah Arendt,
1147Bapós a morte de Hegel, ficou evidente que seu sistema representavaa palavra final de toda a filosofia ocidental, pelo menos na medidaem que, desde Parmênides e apesar de suas várias mudanças eaparentes contradições internas, ela nunca tinha ousado questionar aunidade entre pensamento e Ser: to gar auto esti noein te kai einai .Os que vieram depois de Hegel ou seguiram suas pegadas ou serebelaram contra ele, e aquilo contra o que se rebelaram e com quese desapontaram foi a própria filosofia, a identidade postulada entrepensamento e Ser (ARENDT, 2008, p.193).
1148BKierkegaard questiona a adequação entre ser e pensamento, e a noção de
verdade que dela deriva, a partir da existência. A existência não é precedida pelo
pensamento ou por uma essência, ela se compõe no constante movimento do
tornar-se, e, ao contrário de ser definida segundo a pré-eminência do pensamento,
pré-existe a ele (CF. KIERKEGAARD, 2010, p.94), fazendo-o pensar, e a pensar,
inclusive, o impensado, a saber, o paradoxo, que é descrito por Climacus, nas
Migalhas filosóficas , como a grande paixão do pensamento (Cf. KIERKEGAARD, 2011,
p.59).
1149BUma proposição de cunho ontológico acerca do conhecimento é a de que ele
possui uma realidade, mas disso não se permite inferir que pensamento e ser se
unificam em uma relação de identidade. No plano existencial, o ser do saber –
enquanto abstração especulativa da objetividade – e o ser da existência – como
experiência vivida da subjetividade – são estruturas distintas e heterogêneas entre
si. O conhecimento objetivo, o saber sistemático, a produção científica, se aplicados
à existência, resultam apenas em falsos saberes (Cf. KIERKEGAARD, 2010, p.342-343). Nesse nível argumentativo, Kierkegaard/Climacus estabelece, no Post-scriptum ,
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a diferenciação entre pensador objetivo e pensador subjetivo, e o subsequente
desenvolvimento do problema da comunicação e da estilística, cunhado na categoria
da comunicação indireta. Essa problemática se concentra, em maior grau, na
segunda parte da obra, no interior do terceiro capítulo da segunda seção, onde
destacamos o quarto parágrafo, intitulado O pensador subjetivo; sua tarefa, sua
forma, isto é, seu estilo .
1150BSe o exercício do pensamento puro é o que define a qualidade de um
pensador, o pensador subjetivo é desqualificado, bem como todos os problemas
existenciais, que não encontram um ambiente próprio nas filosofias de sistema; o
pensador subjetivo é um dialético existencial (Cf. KIERKEGAARD, 2010, p.345). O
pensamento próprio à existência não é concebível sem paixão, pensar sem paixão
seria possível somente com a anulação da existência no processo do pensamento.
Assim, o pensador subjetivo argumenta com base em uma dialética da interioridade
existencial apaixonada. Se a existência é paradoxal, se o sentimento que impera na
tentativa de alcance e construção de si mesmo é o de uma imensa contradição, o
pensador subjetivo não escapa de seus problemas com abstração, objetividade,
cientificidade, pois assume como sua a tarefa de compreender-se na existência e deimpedir sua diluição na dialética da história universal. Nesse sentido, Climacus afirma
que a tarefa mais elevada para o homem é a de chegar a ser subjetivo (Cf.
KIERKEGAARD, 2010, p.166).
1151BO pensador subjetivo se apropria da verdade com paixão, estando
acompanhado pelo paradoxo como parte integrante da existência. Evitando que o
domínio do pensamento se infeste de quantificação, o pensador subjetivo retira a
verdade do âmbito científico e a torna um problema existencial. Assim, Kierkegaard,como o pensador subjetivo que descreve, advoga que o único conhecimento
essencial é aquele cuja relação com a existência é essencial (Cf. KIERKEGAARD,
2010, p.199). Nota-se aqui a defesa de uma relação intrínseca entre pensamento e
existência, que pode ser inteiramente compreendida apenas se for diferenciada do
postulado que busca estabelecer uma relação, nas mesmas condições, entre
pensamento e ser:
1152BQue o conhecimento essencial se relaciona essencialmente com aexistência, não obstante, não significa aquela identidade abstrata
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entre pensamento e ser mencionada acima, nem tampouco que oconhecimento se relacione objetivamente com algo que exista comseu objeto. O que significa é que o conhecimento se relaciona comaquele que conhece, o qual é essencialmente um existente, e que,
por tanto, todo conhecimento essencial se relaciona com a existênciae com o existir (KIERKEGAARD, 2010, p.199).
1153B Verdade e ser; verdade e existência: essas relações devem permanecer
inconfundivelmente distintas uma da outra, na medida em que é precisamente a
existência que desconstrói a ligação entre sujeito e objeto, a identidade entre
pensamento e ser e o conceito de verdade que dela deriva. São, portanto,
perspectivas opostas, pois a tese que identifica pensamento e ser, como anuncia
Climacus, “expressa que o pensamento tenha abandonado a existência
completamente, que tenha emigrado e encontrado um sexto continente em que é
totalmente auto-suficiente, acomodado sob a absoluta identidade entre pensar e ser”
(KIERKEGAARD, 2010, p.327).
1154BEscapar do predomínio das teorias estatutárias, da quantificação do
pensamento, da limitação e adequação da verdade à objetividade, é se diferenciar do
pensador abstrato-objetivo. Na primeira parte do Post-scriptum , nas teses sobre
Lessing, essa diferenciação é apresentada:
1155BEnquanto o pensamento objetivo é indiferente ao sujeito que pensae à sua existência, o pensador subjetivo, enquanto existente, estáessencialmente interessado pelo seu próprio pensamento, existe nele.Portanto, o seu pensamento possui outro tipo de reflexão, a saber, ada interioridade, da posse, em virtude da qual pertence ao sujeitopensante e a nenhum outro. Enquanto o pensador objetivoestabelece tudo em termos de resultado, e estimula toda ahumanidade a trapacear, mediante a transcrição e repetição de
resultados e de fatos, o pensamento subjetivo põe tudo em devir eomite o resultado, em parte, precisamente porque lhe pertence,posto que possui o caminho que conduz a ele; e em parte porque,enquanto existente, se encontra permanentemente em devir(KIERKEGAARD, 2010, p.82).
1156B Ao invés de compreender o concreto de maneira abstrata, o pensador
subjetivo busca compreender o abstrato de maneira concreta (Cf. KIERKEGAARD,
2010, p.347). Quando Kierkegaard fala em “omissão do resultado” pelo pensador
subjetivo, não está revelando uma falta de probidade intelectual. Aqui, mais uma vez
surge a oposição a Hegel, particularmente à tese que postula a identificação entre
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interioridade e exterioridade. Para o pensador dinamarquês, tal tese não apenas
desqualifica a interioridade, mas, no bojo da identificação entre pensamento e ser,
omite o devir da existência e do pensamento, isto é, a dificuldade. A “omissão do
resultado” compõe a própria complicação da verdade, que transcende o âmbito
daquilo que se pode contabilizar e conceber como produto acabado.
1157BPor isso o pensamento objetivo não comporta enigmas, que competem
apenas ao pensador subjetivo. Essa distinção se desdobra no problema do estilo,
uma vez que a comunicação do pensador subjetivo “enquanto sua forma, deve ser
essencialmente conforme a sua própria existência” (KIERKEGAARD, 2010, p.89), e o
devir e a multiplicidade da existência devem refletir no estilo, pois quem “o tem de
verdade, nunca o tem acabado, mas cada vez que inicia, ‘agita as águas da
linguagem’ e consegue que a expressão mais cotidiana surja para ele com a
originalidade de um recém nascido” (KIERKEGAARD, 2010, p.94-95).
1158BEstar atento à dialética da comunicação é uma tarefa para o pensador
subjetivo (Cf. KIERKEGAARD, 2010, p.82). Essa tarefa, que é esforço de um
pensador que também é Indivíduo, caracteriza o seu movimento de constante
tornar-se a si mesmo, libertando-se, no interior do devir e da afirmação de si comopensador existencial; e assim como o pensador subjetivo se liberta a si mesmo, “o
enigma, na comunicação, reside precisamente em libertar o outro, daí que não se
deva comunicar diretamente” (KIERKEGAARD, 2010, p.83).
1159B A reflexão sobre o problema da comunicação, resultada na proposta de uma
comunicação indireta, pode ser compreendida como uma necessidade, entrevista,
forjada e realizada por Kierkegaard, de encontrar um estilo próprio para tratar de
questões existenciais, que atuasse em consonância com a própria dinâmica inerenteà existência, e que permitisse, ao mesmo tempo, teorizar a comunicação, se
preocupando com a subjetividade do receptor, tratando-se do ato de comunicar a
verdade da interioridade. A proposta kierkegaardiana evidencia os limites do discurso
sedimentado na linguagem científico-especulativa, que não poderia comunicar a
verdade subjetiva, pois não engendra pathos , não se relaciona com a existência
enquanto devir.
1160BSe verdade é subjetividade, trabalho da interioridade, pathos da existência, acomunicação da verdade não pode ser realizada de maneira objetiva, na medida em
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que “objetivamente, se acentua o que se diz’; subjetivamente, como se diz”
(KIERKEGAARD, 2010, p.204, grifos nossos). É perceptível que apenas o pensador
subjetivo procura sua própria diferença, isto é, é o pensador subjetivo quem se
diferencia do objetivo, retirando o peso do suposto objeto a ser comunicado e
acentuando o próprio processo de comunicação, pois é ele quem está atento a forma
de sua expressão, devido à particularidade do conteúdo de seu discurso e da
coerência a que pretende seguir. Contudo, esse processo de reduplicação da verdade
subjetiva na verdade do estilo não se realiza apenas com o fito de se manter uma
coerência entre teoria e prática, entre forma e conteúdo; ele anuncia também o
próprio poder da verdade tomada em uma perspectiva existencial, mostrando como
ela não é somente algo a ser efetivado, mas que é o próprio efetivar-se, isto é, como
a verdade reside no próprio discurso – ela é enunciada ao mesmo tempo em que se
enuncia.
1161BTendo em vista o incessante processo de atentar-se ao estilo, Climacus afirma
que o pensador subjetivo não é um cientista, um erudito, mas um artista (Cf.
KIERKEGAARD, 2010, p.346); e que
1162BO fato de que o conhecimento não possa ser declarado diretamente,por ser essencial nele a apropriação, é o que faz com que seja umsegredo para todo aquele que não é por si mesmo duplamentereflexivo. Mas, que essa seja a forma essencial da verdade, faz comque não possa ser enunciada de outra maneira. Por isso, quempretende comunicá-la diretamente é um estúpido, e se alguémtratara de exigi-lo, também o é. Frente a uma comunicação artística eenganosa como esta, a habitual estupidez humana gritaria: “Isso éegoísmo!”. Se uma estupidez semelhante triunfasse e a comunicaçãofosse direta, o triunfo da estupidez seria tal que o comunicantechegaria a ser igualmente estúpido (KIERKEGAARD, 2010, p.88).
1163BConceber o pensador subjetivo como um artista reforça a tese de que a
preocupação com o estilo é um elemento central em seu pensamento, não somente
no que diz respeito à escrita, mas também ao cultivo da existência como algo belo, à
criação de si mesmo como singularidade estética, desde que não reduzamos essa
expressão ao âmbito dos estádios 80F
224, assistimos o delineamento de uma estilística da
224 Isto é, não é porque mencionamos a possibilidade de uma estética da existência em Kierkegaardque essa hipótese possa ser refutada por uma crítica ao estádio estético, assim como a éticaexistencial (segunda ética) não se identifica com o estádio ético.
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existência, pois, como afirma Climacus: “existir é uma arte” (KIERKEGAARD, 2010,
p.346).
1164BESTILO E COMUNICAÇÃO INDIRETA
1165BGilles Deleuze, em Diferença e Repetição , ao abordar a questão do estilo na
história da filosofia, ressalta a presença de Kierkegaard, ao lado de Nietzsche, como
um dos grandes renovadores do modo de expressão filosófica, em consonância com
a crítica do que seria um falso movimento hegeliano, em proveito de uma introdução
do movimento no texto filosófico, capaz de afetar o espírito de tal modo que não sepermita encerrá-lo na mediação:
1166BKierkegaard e Nietzsche estão entre os que trazem à Filosofia novosmeios de expressão. [...] inventar vibrações, rotações, giros,gravitações, danças ou saltos que atinjam diretamente o espírito.Esta é uma ideia de homem de teatro, uma ideia de encenador – avançado para seu tempo. É neste sentido que alguma coisa decompletamente novo começa com Kierkegaard e Nietzsche. [...] Elesinventam, na Filosofia, um incrível equivalente do teatro, fundando,
desta maneira, este teatro do futuro e, ao mesmo tempo, uma novafilosofia (DELEUZE, 2009, p.28-29).
1167BO autor de Temor e tremor instalou e permaneceu com um tom poético em
grande parte de seus escritos, fez uso de pseudônimos e personagens, que
comportam a tonalidade de falas de personagens retiradas do teatro, discursos que
partem de lugares específicos, que ainda que, enquanto máscaras literárias, atuam
em consonância com um método pedagógico, uma vez que, como apontado no
Ponto de vista explicativo , o efeito estético da comunicação indireta se insere em
uma proposta ética, religiosa e filosófica, como tática imprescindível para tarefa de
tornar o homem atento (Cf. KIERKEGAARD, 1986, p.45).
1168BUma análise da comunicação pela via direta traz à luz a pretensão à verdade
objetiva, correspondente ao tipo de discurso científico, que pressupõe o conceito de
verdade ligado à adequação entre pensamento e ser. No discurso objetivo, o caráter
enigmático da subjetividade é diluído e obliterado, o que o torna impróprio para
expressar os problemas filosóficos existenciais. A prática da comunicação indireta,
por sua vez, reflete o projeto de incorporação da verdade na existência. Dessa
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maneira, a comunicação indireta é concebida por Kierkegaard como a mais
apropriada para expressar o tipo de filosofia que se propõe a fazer, da filosofia que
não se separa da existência e das dificuldades que lhe são inerentes, como o
movimento real (não-conceitual) e o devir.
1169BKierkegaard, como um pensador subjetivo, se move no interior da tensão de
se mostrar e se ocultar, por meio da ironia, do humor e, sobretudo, possuindo uma
aguda consciência do caráter imprescindível da comunicação indireta – assumindo,
nas últimas páginas do Post-scriptum , que a pseudonímia não se trata de um
procedimento acidental, mas de um recurso essencial em sua produção (Cf.
KIERKEGAARD, 2010, p.602).
1170BO estilo de Kierkegaard, que insere sua escrita nos mais diversos espaços,
como o filosófico, o religioso, o psicológico, o teológico e o literário, se inscreve na
via contrária à imagem do pensamento estatutário, expresso na forma do discurso
objetivo, direto e unidimensional. Contudo, não apenas sua forma de expressão
permite uma inserção do pensador dinamarquês em uma posição crítica em relação à
tradição filosófica, mas também sua reflexão acerca do próprio estilo, que se
encontra no cerne de sua filosofia, pois se envolve com o problema da comunicaçãode uma teoria que trate das questões existenciais, de uma filosofia que propõe um
questionamento e uma ampliação temática em torno do conceito de verdade.
1171B A verdade como apropriação do Indivíduo em sua interioridade, não pode ser
tratada, simplesmente, como conteúdo claro e distinto, que possa ser ensinado
meramente através de um procedimento de transferência 81F
225. Portanto, ao contrário
do pensador objetivo, o pensador subjetivo incorpora o conteúdo à forma de sua
expressão, em constante atenção, não somente ao que enuncia, mas à elaboraçãodo seu enunciado de acordo à verdade com a qual procura trabalhar.
1172B A comunicação direta é caracterizada por Kierkegaard como comunicação de
saber, tendo uma dupla direção: serviria aquele que sabe algo e que, a partir disso,
julgaria o que lhe é comunicado; e aquele que não sabe, e, portanto, apreenderia o
que lhe é comunicado. A proposta de uma comunicação indireta opera, assim, um
duplo desvio, concentrando-se, contudo, em se afastar da síntese em que se pode
225 Esse é o ponto de partida de Climacus em sua obra anterior ao Post-scriptum : “Em que medida sepode aprender/ser ensinada a verdade?” (KIERKEGAARD, 2008, p. 27).
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fixar tanto o endereço da comunicação dos que julgam saber (e por isso julgam o
saber) e daqueles esvaziados de conhecimento prontos a captarem saberes, a saber:
a transmissão do conhecimento. A comunicação indireta não visa transmitir, mas
convocar o leitor/interlocutor à interpretação. A comunicação kierkegaardiana
consiste em um exercício de linguagem da subjetividade, da interioridade. Ela se
expressa pelo que Kierkegaard denomina de dupla-reflexão; ou seja, em primeiro
lugar, a reflexão da interioridade, em que o pensador subjetivo procura comunicar
sua existência, com todo o enigma que lhe é inerente, e num segundo momento, a
reflexão da alteridade, que leva em consideração a interioridade do outro, do
interlocutor que receberá a mensagem indireta. No entanto, por conta da
singularidade da mensagem, da forma em que é comunicada, a recepção do leitor é
sempre uma interpretação, não podendo ser confundida, desse modo, com um
processo passivo por parte de quem recebe, mas sim como uma prática
propriamente ativa e existencial.
1173BNão sendo comunicação de saber, Kierkegaard configura a comunicação
indireta como comunicação de poder . Segundo Bruno Romano:
1174BNo interior do nexo liberdade-verdade-comunicação, a comunicaçãopode apresentar-se segundo duas possibilidades que se opõem: acomunicação objetiva-alienante , que é simples e objetivamentecomunicação de saber; a comunicação existencial-libertadora , que écomunicação de poder, de possibilidade. Segundo os termos deKierkegaard, a primeira é denominada comunicação direta, a segundacomunicação indireta (ROMANO apud ALMEIDA, 2009, p.128, grifosdo autor).
1175BO poder da comunicação indireta pode ser compreendido com maior
amplitude se a entendemos não como um objetivo da comunicação, mas como sua
configuração formal, enquanto possibilidade. Assim, o poder se expressa na
comunicação, como uma possibilidade genética de interpretações. A comunicação
indireta pode ser compreendida como uma expressão da potência criativa da
comunicação.
1176BCONSIDERAÇÕES FINAIS
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1177BKierkegaard não busca anular o conhecimento objetivo. Trata-se apenas de
evidenciar seus limites. Para o pensador dinamarquês, um sistema lógico é possível,
apenas não é possível um sistema da existência. A existência, apreendida de uma
perspectiva sistemática, seria possível apenas para Deus, isto é, para um não
existente. Desse ponto de vista, teríamos um elogio ou uma ofensa ao filósofo
sistemático? Não poderíamos ir tão longe, acatando uma dessas asserções. A ironia
kierkegaardiana parece nos indicar que o pensador sistemático possui pretensões
desmedidas. Bem, se a forma de pensamento para uma filosofia da existência não
pode ser sistemática, a reinvenção estilística é um procedimento necessário
1178BOra, se o sentido da verdade escapa à ciência, à objetividade, ao sistema, à
razão pura, como tratar da verdade? Como fazer filosofia? A comunicação indireta
parece ser o caminho. Somente com uma reinvenção lingüística que acople a ironia,
o humor, a comicidade, a pseudonímia, a plurissignificação; somente com
procedimentos comunicativos oblíquos, que se realizem de forma indireta, torna-se
possível uma filosofia que trate a verdade de uma perspectiva existencial. Ao mesmo
tempo, somente se a verdade comportar, também, um sentido vital, a filosofiapoderá enfrentar a tarefa de se emaranhar na existência.
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REFERÊNCIAS
1180B ALMEIDA, Jorge Miranda de. Ética e existência em Kierkegaard e Lévinas. Vitória da Conquista: UESB, 2009.
1181B ARENDT, Hannah. O que é filosofia da existência? In: ______. Compreender:formação, exílio e totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte:UFMG, 2008, p. 192-216.
1182BDELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
1183BKIERKEGAARD, Søren. Migalhas filosóficas ou um bocadinho de filosofia de JoãoClímacus. Petrópolis: Vozes, 2008.
1184B ______. Ponto de vista explicativo de minha obra como escritor. Lisboa:Edições 70, 1986.
1185B ______. Post Scriptum no científico y definitivo a “Migajas filosóficas” .Salamanca: Ediciones Sígueme, 2010.
1186BSARTRE, Jean-Paul. El universal singular. In: Kierkegaard vivo: Umareconsideración. Madrid: Ediciones Encuentro, 2005, p.11-38.
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