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 365 KIERKEGAARD, CLIMACUS E O ESTILO DO PENSADOR SUBJETIVO NO POST-SCRIPTUM Leonardo Araújo Oliveira BRESUMO: Buscamos, com a presente comunicação, abordar a figura do pensador subjetivo, desenvolvida por Climacus no Post-scriptum . A partir dessa abordagem, trataremos da questão do estilo, tal como exposta nessa obra. Paralelamente, manteremos uma relação entre o conteúdo dessa exposição com o destaque em propostas estilísticas presentes na escrita do próprio Kierkegaard. 1135BPalavras-chave: Estilo. Climacus. Kierkegaard. Pensador subjetivo. Post-scriptum. 1136B  ABSTRACT: The aim of this presentation is to discuss the image of the subjective thinker, developped by Climacus in his Post-scriptum. By this topic, we’ll deal with the question of the style, as exposed in that work. In parallel, we’ll maintain a relation between the content of this exposition and the stylistic proposals that figures on Kierkegaard’s writing style.  1137BKey-words: Style. Climacus. Kierkegaard. Subjective thinker. Post -scriptum. 1138BINTRODUÇÃO 1139BCaracterísticas fortemente presentes na filosofia contemporânea, como o descrédito ao predomínio da razão, o caráter particular dos temas abordados, a emergência da multiplicidade de interpretações, o enfraquecimento da linha divisória entre filosofia e literatura, convergem para um ponto em comum: não seria mais possível, tal como pretendia Hegel, realizar a filosofia como um sistema. Pensando na recusa ao modo sistêmico de composição e exposição filosófica, Søren Kierkegaard (1813-1855) figura como um precursor e anunciador da abertura em que se regem os modos contemporâneos de se fazer filosofia. 1140BNo presente texto, trataremos da questão do estilo, a partir do conflito entre dois tipos de se fazer filosofia, presente no interior do Post-Scriptum conclusivo não

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KIERKEGAARD, CLIMACUS E O ESTILO DO PENSADOR SUBJETIVO NOPOST-SCRIPTUM

Leonardo Araújo Oliveira

BRESUMO: Buscamos, com a presente comunicação, abordar a figura do pensadorsubjetivo, desenvolvida por Climacus no Post-scriptum . A partir dessa abordagem,trataremos da questão do estilo, tal como exposta nessa obra. Paralelamente,manteremos uma relação entre o conteúdo dessa exposição com o destaque empropostas estilísticas presentes na escrita do próprio Kierkegaard.

1135BPalavras-chave: Estilo. Climacus. Kierkegaard. Pensador subjetivo. Post-scriptum.

1136B ABSTRACT: The aim of this presentation is to discuss the image of the subjectivethinker, developped by Climacus in his Post-scriptum. By this topic, we’ll deal withthe question of the style, as exposed in that work. In parallel, we’ll maintain arelation between the content of this exposition and the stylistic proposals that figureson Kierkegaard’s writing style. 

1137BKey-words: Style. Climacus. Kierkegaard. Subjective thinker. Post-scriptum. 

1138BINTRODUÇÃO

1139BCaracterísticas fortemente presentes na filosofia contemporânea, como o

descrédito ao predomínio da razão, o caráter particular dos temas abordados, a

emergência da multiplicidade de interpretações, o enfraquecimento da linha divisória

entre filosofia e literatura, convergem para um ponto em comum: não seria mais

possível, tal como pretendia Hegel, realizar a filosofia como um sistema. Pensando

na recusa ao modo sistêmico de composição e exposição filosófica, Søren 

Kierkegaard (1813-1855) figura como um precursor e anunciador da abertura em

que se regem os modos contemporâneos de se fazer filosofia.

1140BNo presente texto, trataremos da questão do estilo, a partir do conflito entre

dois tipos de se fazer filosofia, presente no interior do Post-Scriptum conclusivo não

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científico às Migalhas Filosóficas , de Kierkegaard (assinado pelo pseudônimo Johanes

Climacus em 1846), entre o pensador subjetivo e o pensador objetivo. Damos ênfase

temático-bibliográfica ao terceiro capítulo da segunda parte da obra, intitulado “a

subjetividade real, a subjetividade ética; o pensador subjetivo”, especialmente a

quarta seção, intitulada "O pensador subjetivo; sua tarefa, sua forma, isto é, seu

estilo”. Com isso, buscamos levar em consideração não apenas o correspondente ao

 “conteúdo” expresso no Post-Scriptum , mas demonstrar, também, como alguns

temas do texto, sobretudo por sua inflexão existencial, se relacionam com sua forma

de expressão filosófica, através do uso da comunicação indireta, ou seja, também

destacamos como o conteúdo da filosofia de Kierkegaard é reduplicado no estilo.

1141BO PENSADOR SUBJETIVO

1142BEm sua autobiografia intelectual, o Ponto de vista explicativo de minha obra

como escritor , Kierkegaard expõe o papel do Post-Scriptum  na batalha, enfrentadapor Johanes Climacus, contra a pretensão totalizante dos sistemas filosóficos:

1143B Aqui se situa o Post-Scriptum definitivo , o ‘ponto crítico’ de toda aobra que põe o ‘problema’ e que, por outro lado, graças a umaesgrima indirecta e a uma dialética socrática, fere de morte ‘oSistema’, pelas costas, numa luta contra o Sistema e a especulação(KIERKEGAARD, 1986, p. 85).

1144BEmbora o embate teórico com a tradição filosófica, sobretudo com a filosofia

moderna, possa posicionar Kierkegaard em sua própria formulação do conflito entre

Indivíduo e multidão79F

223, o século em que viveu gerou nomes como Marx e Nietzsche,

que, em favor de uma nova relação entre teoria e existência, também fizeram

esforços, ainda que de maneiras distintas, com vistas em enfrentar aquilo que o

mestre da ironia denomina de fantasmagoria do pensamento puro. Porém, segundo

Sartre, a partir de Kierkegaard surgem conseqüências filosóficas especificas:

223 Reforçando que a categoria de “Indivíduo”, Kierkegaard opõe à noção de “multidão”, concebendoessa última como uma abstração que dilui os indivíduos existentes.

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1145BSem dúvida, uma das preocupações constantes do século XIXconsiste em distinguir o ser do conhecimento que dele se tem; ditode outro modo: em rejeitar o idealismo. O que Marx reprova emHegel não é tanto seu ponto de partida quanto a redução do ser ao

saber. Mas para Kierkegaard  – e para nós, que hoje consideramos oescândalo kierkegaardiano – se trata de uma certa região ontológicaem que o ser pretende [...] escapar ao saber e alcançar a si mesmo(SARTRE, 2005, p.16).

1146B A linha que liga ser e pensamento se inicia com a proposição de Parmênides

que diz “pensar é ser” e se estende, pela história da filosofia, à identificação

hegeliana entre realidade e racionalidade. Para Hannah Arendt,

1147Bapós a morte de Hegel, ficou evidente que seu sistema representavaa palavra final de toda a filosofia ocidental, pelo menos na medidaem que, desde Parmênides e apesar de suas várias mudanças eaparentes contradições internas, ela nunca tinha ousado questionar aunidade entre pensamento e Ser: to gar auto esti noein te kai einai .Os que vieram depois de Hegel ou seguiram suas pegadas ou serebelaram contra ele, e aquilo contra o que se rebelaram e com quese desapontaram foi a própria filosofia, a identidade postulada entrepensamento e Ser (ARENDT, 2008, p.193).

1148BKierkegaard questiona a adequação entre ser e pensamento, e a noção de

verdade que dela deriva, a partir da existência. A existência não é precedida pelo

pensamento ou por uma essência, ela se compõe   no constante movimento do

tornar-se, e, ao contrário de ser definida segundo a pré-eminência do pensamento,

pré-existe a ele (CF. KIERKEGAARD, 2010, p.94), fazendo-o pensar, e a pensar,

inclusive, o impensado, a saber, o paradoxo, que é descrito por Climacus, nas

Migalhas filosóficas , como a grande paixão do pensamento (Cf. KIERKEGAARD, 2011,

p.59).

1149BUma proposição de cunho ontológico acerca do conhecimento é a de que ele

possui uma realidade, mas disso não se permite inferir que pensamento e ser se

unificam em uma relação de identidade. No plano existencial, o ser do saber  – 

enquanto abstração especulativa da objetividade  –  e o ser da existência  –  como

experiência vivida da subjetividade  –  são estruturas distintas e heterogêneas entre

si. O conhecimento objetivo, o saber sistemático, a produção científica, se aplicados

à existência, resultam apenas em falsos saberes (Cf. KIERKEGAARD, 2010, p.342-343). Nesse nível argumentativo, Kierkegaard/Climacus estabelece, no Post-scriptum ,

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a diferenciação entre pensador objetivo e pensador subjetivo, e o subsequente

desenvolvimento do problema da comunicação e da estilística, cunhado na categoria

da comunicação indireta. Essa problemática se concentra, em maior grau, na

segunda parte da obra, no interior do terceiro capítulo da segunda seção, onde

destacamos o quarto parágrafo, intitulado O pensador subjetivo; sua tarefa, sua

forma, isto é, seu estilo .

1150BSe o exercício do pensamento puro é o que define a qualidade de um

pensador, o pensador subjetivo é desqualificado, bem como todos os problemas

existenciais, que não encontram um ambiente próprio nas filosofias de sistema; o

pensador subjetivo é um dialético existencial (Cf. KIERKEGAARD, 2010, p.345). O

pensamento próprio à existência não é concebível sem paixão, pensar sem paixão

seria possível somente com a anulação da existência no processo do pensamento.

 Assim, o pensador subjetivo argumenta com base em uma dialética da interioridade

existencial apaixonada. Se a existência é paradoxal, se o sentimento que impera na

tentativa de alcance e construção de si mesmo é o de uma imensa contradição, o

pensador subjetivo não escapa de seus problemas com abstração, objetividade,

cientificidade, pois assume como sua a tarefa de compreender-se na existência e deimpedir sua diluição na dialética da história universal. Nesse sentido, Climacus afirma

que a tarefa mais elevada para o homem é a de chegar a ser subjetivo (Cf.

KIERKEGAARD, 2010, p.166).

1151BO pensador subjetivo se apropria da verdade com paixão, estando

acompanhado pelo paradoxo como parte integrante da existência. Evitando que o

domínio do pensamento se infeste de quantificação, o pensador subjetivo retira a

verdade do âmbito científico e a torna um problema existencial. Assim, Kierkegaard,como o pensador subjetivo que descreve, advoga que o único conhecimento

essencial é aquele cuja relação com a existência é essencial (Cf. KIERKEGAARD,

2010, p.199). Nota-se aqui a defesa de uma relação intrínseca entre pensamento e

existência, que pode ser inteiramente compreendida apenas se for diferenciada do

postulado que busca estabelecer uma relação, nas mesmas condições, entre

pensamento e ser:

1152BQue o conhecimento essencial se relaciona essencialmente com aexistência, não obstante, não significa aquela identidade abstrata

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entre pensamento e ser mencionada acima, nem tampouco que oconhecimento se relacione objetivamente com algo que exista comseu objeto. O que significa é que o conhecimento se relaciona comaquele que conhece, o qual é essencialmente um existente, e que,

por tanto, todo conhecimento essencial se relaciona com a existênciae com o existir (KIERKEGAARD, 2010, p.199).

1153B Verdade e ser; verdade e existência: essas relações devem permanecer

inconfundivelmente distintas uma da outra, na medida em que é precisamente a

existência que desconstrói a ligação entre sujeito e objeto, a identidade entre

pensamento e ser e o conceito de verdade que dela deriva. São, portanto,

perspectivas opostas, pois a tese que identifica pensamento e ser, como anuncia

Climacus, “expressa que o pensamento tenha abandonado a existência

completamente, que tenha emigrado e encontrado um sexto continente em que é

totalmente auto-suficiente, acomodado sob a absoluta identidade entre pensar e ser”

(KIERKEGAARD, 2010, p.327).

1154BEscapar do predomínio das teorias estatutárias, da quantificação do

pensamento, da limitação e adequação da verdade à objetividade, é se diferenciar do

pensador abstrato-objetivo. Na primeira parte do Post-scriptum , nas teses sobre

Lessing, essa diferenciação é apresentada:

1155BEnquanto o pensamento objetivo é indiferente ao sujeito que pensae à sua existência, o pensador subjetivo, enquanto existente, estáessencialmente interessado pelo seu próprio pensamento, existe nele.Portanto, o seu pensamento possui outro tipo de reflexão, a saber, ada interioridade, da posse, em virtude da qual pertence ao sujeitopensante e a nenhum outro. Enquanto o pensador objetivoestabelece tudo em termos de resultado, e estimula toda ahumanidade a trapacear, mediante a transcrição e repetição de

resultados e de fatos, o pensamento subjetivo põe tudo em devir eomite o resultado, em parte, precisamente porque lhe pertence,posto que possui o caminho que conduz a ele; e em parte porque,enquanto existente, se encontra permanentemente em devir(KIERKEGAARD, 2010, p.82).

1156B Ao invés de compreender o concreto de maneira abstrata, o pensador

subjetivo busca compreender o abstrato de maneira concreta (Cf. KIERKEGAARD,

2010, p.347). Quando Kierkegaard fala em “omissão do resultado” pelo pensador

subjetivo, não está revelando uma falta de probidade intelectual. Aqui, mais uma vez

surge a oposição a Hegel, particularmente à tese que postula a identificação entre

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interioridade e exterioridade. Para o pensador dinamarquês, tal tese não apenas

desqualifica a interioridade, mas, no bojo da identificação entre pensamento e ser,

omite o devir da existência e do pensamento, isto é, a dificuldade. A “omissão do

resultado” compõe a própria complicação da verdade, que transcende o âmbito

daquilo que se pode contabilizar e conceber como produto acabado.

1157BPor isso o pensamento objetivo não comporta enigmas, que competem

apenas ao pensador subjetivo. Essa distinção se desdobra no problema do estilo,

uma vez que a comunicação do pensador subjetivo “enquanto sua forma, deve ser

essencialmente conforme a sua própria existência” (KIERKEGAARD, 2010, p.89), e o

devir e a multiplicidade da existência devem refletir no estilo, pois quem “o tem de

verdade, nunca o tem acabado, mas cada vez que inicia, ‘agita as águas da

linguagem’ e consegue que a expressão mais cotidiana surja para ele com a

originalidade de um recém nascido” (KIERKEGAARD, 2010, p.94-95).

1158BEstar atento à dialética da comunicação é uma tarefa para o pensador

subjetivo (Cf. KIERKEGAARD, 2010, p.82). Essa tarefa, que é esforço de um

pensador que também é Indivíduo, caracteriza o seu movimento de constante

tornar-se a si mesmo, libertando-se, no interior do devir e da afirmação de si comopensador existencial; e assim como o pensador subjetivo se liberta a si mesmo, “o

enigma, na comunicação, reside precisamente em libertar o outro, daí que não se

deva comunicar diretamente” (KIERKEGAARD, 2010, p.83). 

1159B A reflexão sobre o problema da comunicação, resultada na proposta de uma

comunicação indireta, pode ser compreendida como uma necessidade, entrevista,

forjada e realizada por Kierkegaard, de encontrar um estilo próprio para tratar de

questões existenciais, que atuasse em consonância com a própria dinâmica inerenteà existência, e que permitisse, ao mesmo tempo, teorizar a comunicação, se

preocupando com a subjetividade do receptor, tratando-se do ato de comunicar a

verdade da interioridade. A proposta kierkegaardiana evidencia os limites do discurso

sedimentado na linguagem científico-especulativa, que não poderia comunicar a

verdade subjetiva, pois não engendra pathos , não se relaciona com a existência

enquanto devir.

1160BSe verdade é subjetividade, trabalho da interioridade, pathos  da existência, acomunicação da verdade não pode ser realizada de maneira objetiva, na medida em

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que “objetivamente, se acentua o que   se diz’; subjetivamente, como   se diz”

(KIERKEGAARD, 2010, p.204, grifos nossos). É perceptível que apenas o pensador

subjetivo procura sua própria diferença, isto é, é o pensador subjetivo quem se

diferencia do objetivo, retirando o peso do suposto objeto a ser comunicado e

acentuando o próprio processo de comunicação, pois é ele quem está atento a forma

de sua expressão, devido à particularidade do conteúdo de seu discurso e da

coerência a que pretende seguir. Contudo, esse processo de reduplicação da verdade

subjetiva na verdade do estilo não se realiza apenas com o fito de se manter uma

coerência entre teoria e prática, entre forma e conteúdo; ele anuncia também o

próprio poder da verdade tomada em uma perspectiva existencial, mostrando como

ela não é somente algo a ser efetivado, mas que é o próprio efetivar-se, isto é, como

a verdade reside no próprio discurso – ela é enunciada ao mesmo tempo em que se

enuncia.

1161BTendo em vista o incessante processo de atentar-se ao estilo, Climacus afirma

que o pensador subjetivo não é um cientista, um erudito, mas um artista (Cf.

KIERKEGAARD, 2010, p.346); e que

1162BO fato de que o conhecimento não possa ser declarado diretamente,por ser essencial nele a apropriação, é o que faz com que seja umsegredo para todo aquele que não é por si mesmo duplamentereflexivo. Mas, que essa seja a forma essencial da verdade, faz comque não possa ser enunciada de outra maneira. Por isso, quempretende comunicá-la diretamente é um estúpido, e se alguémtratara de exigi-lo, também o é. Frente a uma comunicação artística eenganosa como esta, a habitual estupidez humana gritaria: “Isso éegoísmo!”. Se uma estupidez semelhante triunfasse e a comunicaçãofosse direta, o triunfo da estupidez seria tal que o comunicantechegaria a ser igualmente estúpido (KIERKEGAARD, 2010, p.88).

1163BConceber o pensador subjetivo como um artista reforça a tese de que a

preocupação com o estilo é um elemento central em seu pensamento, não somente

no que diz respeito à escrita, mas também ao cultivo da existência como algo belo, à

criação de si mesmo como singularidade estética, desde que não reduzamos essa

expressão ao âmbito dos estádios 80F

224, assistimos o delineamento de uma estilística da

224 Isto é, não é porque mencionamos a possibilidade de uma estética da existência em Kierkegaardque essa hipótese possa ser refutada por uma crítica ao estádio estético, assim como a éticaexistencial (segunda ética) não se identifica com o estádio ético.  

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existência, pois, como afirma Climacus: “existir é uma arte” (KIERKEGAARD, 2010,

p.346).

1164BESTILO E COMUNICAÇÃO INDIRETA

1165BGilles Deleuze, em Diferença e Repetição , ao abordar a questão do estilo na

história da filosofia, ressalta a presença de Kierkegaard, ao lado de Nietzsche, como

um dos grandes renovadores do modo de expressão filosófica, em consonância com

a crítica do que seria um falso movimento hegeliano, em proveito de uma introdução

do movimento no texto filosófico, capaz de afetar o espírito de tal modo que não sepermita encerrá-lo na mediação:

1166BKierkegaard e Nietzsche estão entre os que trazem à Filosofia novosmeios de expressão. [...] inventar vibrações, rotações, giros,gravitações, danças ou saltos que atinjam diretamente o espírito.Esta é uma ideia de homem de teatro, uma ideia de encenador  – avançado para seu tempo. É neste sentido que alguma coisa decompletamente novo começa com Kierkegaard e Nietzsche. [...] Elesinventam, na Filosofia, um incrível equivalente do teatro, fundando,

desta maneira, este teatro do futuro e, ao mesmo tempo, uma novafilosofia (DELEUZE, 2009, p.28-29).

1167BO autor de Temor e tremor instalou e permaneceu com um tom poético em

grande parte de seus escritos, fez uso de pseudônimos e personagens, que

comportam a tonalidade de falas de personagens retiradas do teatro, discursos que

partem de lugares específicos, que ainda que, enquanto máscaras literárias, atuam

em consonância com um método pedagógico, uma vez que, como apontado no

Ponto de vista explicativo , o efeito estético da comunicação indireta se insere em

uma proposta ética, religiosa e filosófica, como tática imprescindível para tarefa de

tornar o homem atento (Cf. KIERKEGAARD, 1986, p.45).

1168BUma análise da comunicação pela via direta traz à luz a pretensão à verdade

objetiva, correspondente ao tipo de discurso científico, que pressupõe o conceito de

verdade ligado à adequação entre pensamento e ser. No discurso objetivo, o caráter

enigmático da subjetividade é diluído e obliterado, o que o torna impróprio para

expressar os problemas filosóficos existenciais. A prática da comunicação indireta,

por sua vez, reflete o projeto de incorporação da verdade na existência. Dessa

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maneira, a comunicação indireta é concebida por Kierkegaard como a mais

apropriada para expressar o tipo de filosofia que se propõe a fazer, da filosofia que

não se separa da existência e das dificuldades que lhe são inerentes, como o

movimento real (não-conceitual) e o devir.

1169BKierkegaard, como um pensador subjetivo, se move no interior da tensão de

se mostrar e se ocultar, por meio da ironia, do humor e, sobretudo, possuindo uma

aguda consciência do caráter imprescindível da comunicação indireta  – assumindo,

nas últimas páginas do Post-scriptum , que a pseudonímia não se trata de um

procedimento acidental, mas de um recurso essencial em sua produção (Cf.

KIERKEGAARD, 2010, p.602).

1170BO estilo de Kierkegaard, que insere sua escrita nos mais diversos espaços,

como o filosófico, o religioso, o psicológico, o teológico e o literário, se inscreve na

via contrária à imagem do pensamento estatutário, expresso na forma do discurso

objetivo, direto e unidimensional. Contudo, não apenas sua forma de expressão

permite uma inserção do pensador dinamarquês em uma posição crítica em relação à

tradição filosófica, mas também sua reflexão acerca do próprio estilo, que se

encontra no cerne de sua filosofia, pois se envolve com o problema da comunicaçãode uma teoria que trate das questões existenciais, de uma filosofia que propõe um

questionamento e uma ampliação temática em torno do conceito de verdade.

1171B A verdade como apropriação do Indivíduo em sua interioridade, não pode ser

tratada, simplesmente, como conteúdo claro e distinto, que possa ser ensinado

meramente através de um procedimento de transferência 81F

225. Portanto, ao contrário

do pensador objetivo, o pensador subjetivo incorpora o conteúdo à forma de sua

expressão, em constante atenção, não somente ao que enuncia, mas à elaboraçãodo seu enunciado de acordo à verdade com a qual procura trabalhar.

1172B A comunicação direta é caracterizada por Kierkegaard como comunicação de

saber, tendo uma dupla direção: serviria aquele que sabe algo e que, a partir disso,

 julgaria o que lhe é comunicado; e aquele que não sabe, e, portanto, apreenderia o

que lhe é comunicado. A proposta de uma comunicação indireta opera, assim, um

duplo desvio, concentrando-se, contudo, em se afastar da síntese em que se pode

225 Esse é o ponto de partida de Climacus em sua obra anterior ao Post-scriptum : “Em que medida sepode aprender/ser ensinada a verdade?” (KIERKEGAARD, 2008, p. 27). 

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374 

fixar tanto o endereço da comunicação dos que julgam saber (e por isso julgam o

saber) e daqueles esvaziados de conhecimento prontos a captarem saberes, a saber:

a transmissão do conhecimento. A comunicação indireta não visa transmitir, mas

convocar o leitor/interlocutor à interpretação. A comunicação kierkegaardiana

consiste em um exercício de linguagem da subjetividade, da interioridade. Ela se

expressa pelo que Kierkegaard denomina de dupla-reflexão; ou seja, em primeiro

lugar, a reflexão da interioridade, em que o pensador subjetivo procura comunicar

sua existência, com todo o enigma que lhe é inerente, e num segundo momento, a

reflexão da alteridade, que leva em consideração a interioridade do outro, do

interlocutor que receberá a mensagem indireta. No entanto, por conta da

singularidade da mensagem, da forma em que é comunicada, a recepção do leitor é

sempre uma interpretação, não podendo ser confundida, desse modo, com um

processo passivo por parte de quem recebe, mas sim como uma prática

propriamente ativa e existencial.

1173BNão sendo comunicação de saber, Kierkegaard configura a comunicação

indireta como comunicação de poder . Segundo Bruno Romano:

1174BNo interior do nexo liberdade-verdade-comunicação, a comunicaçãopode apresentar-se segundo duas possibilidades que se opõem: acomunicação objetiva-alienante , que é simples e objetivamentecomunicação de saber; a comunicação existencial-libertadora , que écomunicação de poder, de possibilidade. Segundo os termos deKierkegaard, a primeira é denominada comunicação direta, a segundacomunicação indireta (ROMANO apud  ALMEIDA, 2009, p.128, grifosdo autor).

1175BO poder   da comunicação indireta pode ser compreendido com maior

amplitude se a entendemos não como um objetivo da comunicação, mas como sua

configuração formal, enquanto possibilidade. Assim, o poder se expressa na

comunicação, como uma possibilidade genética de interpretações. A comunicação

indireta pode ser compreendida como uma expressão da potência criativa da

comunicação.

1176BCONSIDERAÇÕES FINAIS

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375 

1177BKierkegaard não busca anular o conhecimento objetivo. Trata-se apenas de

evidenciar seus limites. Para o pensador dinamarquês, um sistema lógico é possível,

apenas não é possível um sistema da existência. A existência, apreendida de uma

perspectiva sistemática, seria possível apenas para Deus, isto é, para um não

existente. Desse ponto de vista, teríamos um elogio ou uma ofensa ao filósofo

sistemático? Não poderíamos ir tão longe, acatando uma dessas asserções. A ironia

kierkegaardiana parece nos indicar que o pensador sistemático possui pretensões

desmedidas. Bem, se a forma de pensamento para uma filosofia da existência não

pode ser sistemática, a reinvenção estilística é um procedimento necessário

1178BOra, se o sentido da verdade escapa à ciência, à objetividade, ao sistema, à

razão pura, como tratar da verdade? Como fazer filosofia? A comunicação indireta

parece ser o caminho. Somente com uma reinvenção lingüística que acople a ironia,

o humor, a comicidade, a pseudonímia, a plurissignificação; somente com

procedimentos comunicativos oblíquos, que se realizem de forma indireta, torna-se

possível uma filosofia que trate a verdade de uma perspectiva existencial. Ao mesmo

tempo, somente se a verdade comportar, também, um sentido vital, a filosofiapoderá enfrentar a tarefa de se emaranhar na existência.

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376 

REFERÊNCIAS

1180B ALMEIDA, Jorge Miranda de. Ética e existência em Kierkegaard e Lévinas. Vitória da Conquista: UESB, 2009.

1181B ARENDT, Hannah. O que é filosofia da existência? In: ______. Compreender:formação, exílio e totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte:UFMG, 2008, p. 192-216.

1182BDELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006.

1183BKIERKEGAARD, Søren. Migalhas filosóficas ou um bocadinho de filosofia de JoãoClímacus. Petrópolis: Vozes, 2008.

1184B ______. Ponto de vista explicativo de minha obra como escritor. Lisboa:Edições 70, 1986.

1185B ______. Post Scriptum no científico y definitivo a “Migajas filosóficas” .Salamanca: Ediciones Sígueme, 2010.

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