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Maria da Conceição Vieira
A pedagogia da luz na “recriação” do cego de nascença Jo 9,1-12
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Teologia PUC-Rio, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Teologia Bíblica.
Orientador: Prof. Dr. Isidoro Mazzarolo
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2008
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Maria da Conceição Vieira
A pedagogia da luz na “recriação” do cego de nascença Jo 9,1-12
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo programa de Pós-Graduação em Teologia do Departamento de Teologia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Prof. Isidoro Mazzarolo Orientador
Departamento de Teologia – PUC-Rio
Prof a. Teresa Maria Pompéia Cavalcanti Departamento de Teologia – PUC-Rio
Prof. Carlos Frederico Schlaepfer Instituto Paulo VI
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa do Centro de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio de
Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 2008
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da Universidade, da autora e do orientador.
Maria da Conceição Vieira
Graduou-se em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro, em 1999.
Ficha Catalográfica
CDD: 200
Vieira, Maria da Conceição
A pedagogia da luz na “recriação” do cego
de nascença Jo 9,1-12 / Maria da Conceição Vieira; orientador: Isidoro Mazzarolo. – 2008.
132f.; 30 cm Dissertação (Mestrado em Teologia) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
Inclui bibliografia.
1. Teologia – Teses. 2. Bíblia. 3. Teologia Bíblica. 4. Exegese do Novo Testamento. 5. Evangelhos. 6. Luz. 7.Vida. 8.Água. 9.Recriação. 10.Ver. 11.Transformação. 12. Testemunho. 13. Cegueira. I. Mazzarolo, Isidoro. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Teologia. III. Título.
Dedico carinhosamente aos meus queridos pais: Pedro Braga Vieira e
Terezinha de Jesus Vieira, por terem me introduzido no amor às Sagradas
Escrituras.
Sinceros agradecimentos
Na luz do Mistério insondável de Deus, Pai e Mãe de ternura, eu me inclino
reverente, numa eterna ação de graças, pela sua presença constante e iluminadora
no percurso destes anos de estudo.
< À minha família religiosa (Irmãs de Santa Catarina, V. M.) nas pessoas de Irmã
Vera Lóss e Irmã Maria Aparecida Nogueira.
< Aos meus pais, irmãos (as) e familiares, em especial, Rosa Helena Vieira,
presença inspiradora e iluminadora na minha vida.
< Aos amigos e amigas, que Deus tão carinhosamente colocou em meu caminho.
< Ao querido Cleber Vieira de Moraes, presença amiga e saudosa (in memoriam).
< À querida Thaisa Aparecida Vieira, por seu carinho e amizade.
< Ao Prof. Dr. Isidoro Mazzarolo, orientador desta dissertação, pela competência
e atenção dedicadas.
< À Profª. Drª. Maria de Lourdes Corrêa Lima e aos demais professores (as) da
PUC-Rio, pela seriedade acadêmica, acolhimento e amizade demonstrados.
< Ao Diretor do Departamento de Teologia, Prof. Dr. Paulo César Costa pelo
acolhimento e amizade.
<Ao Coordenador da Pós-graduação do Departamento de Teologia, Prof. Dr.
Abimar Oliveira de Moraes, pelo acolhimento e incentivo.
< Aos meus amigos (as) e professores (as) do Instituto de Teologia Santo Antônio
ITASA, em especial, Dom Walmor Oliveira de Azevedo e João Justino de
Medeiros Silva.
< Às funcionárias da Secretaria do Departamento de Teologia, pela gentileza e
prontidão no atendimento.
< À administração da PUC-Rio, ao Departamento de Teologia e ao CNPq, pelos
recursos financeiros - sem os quais esta dissertação não seria possível.
< Aos colegas dos cursos de Mestrado e Doutorado, cuja amizade e carinho
suavizaram a caminhada.
<Ao Prof. Jean Paul Bacoly Bianquinch, por sua sabedoria e amizade.
< Ao amigo Frei Clarêncio Neotti, pela presteza e atenção na correção do
português.
< Ao Prof. Auto Lyra Teixeira, por sua sabedoria, simplicidade e amizade.
Resumo
Vieira, Maria da Conceição; Mazzarolo, Isidoro. A pedagogia da luz na “recriação” do cego de nascença, Jo 9,1-12. Rio de Janeiro 2008. 132p. Dissertação de Mestrado - Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
A pesquisa sobre a perícope da tradição Joanina Jo 9,1-12 está centrada na
afirmação de Jesus sobre a luz, que é ele mesmo. Esse relato nos oferece um dos
quadros mais belos e completos do significado da obra de Jesus, mediante a
acentuação da dimensão da fé, e seus inevitáveis confrontos com o mundo
incrédulo. Através de uma análise teológica do rico simbolismo presente no texto,
chega-se à percepção de que a obra salvífica do Filho de Deus se expressa em sua
atuação recriadora, cuja ação faz daquele que fora cego, um homem novo e o
coloca no caminho em direção à vida, que é o próprio Jesus. É neste sentido que o
estudo pretende mostrar o entrelaçamento dos termos luz-vida, como um fio
condutor da perícope, pois o “purificado” pela água da vida, o batizado, o crente,
enfim, aquele que aceita o Enviado, começa a enxergar, é iluminado, faz a
passagem das trevas para a luz. Envolvido pelas trevas, o cego de nascimento,
estava em situação de limitação, dependência e necessidade da verdade. Ele ainda
não sabia o que é a verdadeira condição humana, o que significa fazer a
experiência do encontro com a vida, ou melhor, estar de pé, em posição de
igualdade com os outros homens. Após a ação recriadora e obediente à Palavra
transformante de Jesus que o faz ver, o homem nasce para uma nova existência e
passa a testemunhar corajosa e destemidamente, aquele que lhe dera a luz da vida.
Palavras-chave
Luz; vida; água; recriação; ver; transformação; testemunho; “cegueira”.
Résumé
Vieira, Maria da Conceição; Mazzarolo, Isidoro. La pédagogie de la lumière dans la “récréation” d’aveugle de nassancie, Jo 9,1-12. Rio de Janeiro 2008. 132p. Dissertação de Mestrado - Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
La recherche sur la péricope de la tradition de l’Évangile de Jean 9,1-12 est
centrée sur l’affirmation de Jésus sur la lumière, qui est lui-même. Ce récit nous
offre une des scènes plus belles et complètes de la signification de l’oeuvre de
Jésus, en comparaison à la mise en relief de la dimension de la foi, et ses
inévitables confrontations avec le monde incrédule. A travers d’une analyse
théologique du riche symbolisme présent dans le texte, nous pouvons percevoir
que l’oeuvre salvatrice du fils de Dieu s’exprime dans sa réalisation récréatrice,
dont l’action fait devenir celui qui avait été aveugle, un homme nouveau et le met
sur le chemin vers de la vie, qui est le propre Jésus. C’est dans ce sens que l’étude
veut montrer l’entrelacement des termes lumière-vie, comme um fil conduteur de
la péricope, car le purifié, par l’eau de la vie, le batisé, le croyant, enfin, celui qui
accepte l’envoyé, commence à voir, est illuminé, franchit des ténèbres pour la
lumière. Pris par les ténèbres, l’aveugle de naissance était dans une situation de
limitation, de dépendance et de nécessité de la vérité. Il ne savait pas ancore ce qui
est la véritable condition humaine, ce qui signifie faire l’expérience de la recontre
avec la vie, ou mieux, être debout en position d’égalité avec les autres hommes.
Après l’action récréatrice et obéissante à la Parole transformante de Jésus, qui lui
fait voir l’homme naît pour une nouvelle existance et passe à témoigner
courageusement et intrépidement celui qui lui avait donné la lumière de la vie.
Mots-clef
Lumière; vie; eau; récréation; voir; transformation; témoignage, “cécité”.
Sumário
1. Introdução 11
1.1. Justificativa 11
1.2. Metodologia e roteiro 15
1.3. Estado atual da pesquisa 16
1.4. Contribuição da pesquisa 26
1.5. Hipótese 27
2. O Evangelho de João 28
2.1. Contexto histórico 28
2.2. O ambiente cultural e religioso 32
2.3. Autor, fontes, data e lugar da redação 36
2.4. Estrutura do livro 43
2.5. A cegueira no ambiente religioso-sócio-cultural da Palestina 46
3. Análise do texto 49
3.1. Tradução e Crítica textual 49
3.2. Jo 9,1-12 - sua situação no livro dos sinais 53
3.3. Crítica literária 57
3.4. Crítica das formas 60
a) Gênero literário 60
b) Delimitação e estrutura do texto 64
c) Crítica da tradição 67
4. A pedagogia da luz como fonte de vida na cura do cego 71
4.1. O enviado do Pai 71
4.2. Jesus o mestre no caminho 76
4.3. O diálogo com os discípulos 81
4.4. Por que é preciso trabalhar durante o dia? 87
4.5. Jesus fonte de luz e vida 89
4.6. A salvação e o mundo 94
4.7. Iniciativa e atuação recriadora de Jesus 100
4.8. Lavar-se para ver 105
4.9. Obediência e a transformação 113
4.10. A nova identidade do cego 116
4.11. O testemunho do homem curado 119
Conclusão 125
Referências bibliográficas 126
Lista de siglas e abreviações
Cf Conforme
d.C Depois de Cristo
f1 Família 1: 1, 118, 131 e 209
f13 Família 13: 13, 69, 124, 174, 230, 346,
543, 788, 826, 828, 983,e 1689
LXX Septuaginta
p Página
pp Páginas
1Qs 1ª gruta de Qumran
Ribla Revista Internacional Bíblica Latino
Americana
ss Seguintes
syhmg Leitura à margem da versão siríaca
heracleana
v Versículo
vv Versículos
vgmss Manuscritos da Vulgata
1 Introdução
1.1. Justificativa
A pesquisa foi motivada por uma busca de aprofundar o sentido do verbo
ver, sobre o qual, o quarto Evangelho é emoldurado, dinamizado. Pois o desejo de
ver a Deus está presente, nas formas mais variadas, em todas as religiões, em
todas as culturas, em todas as pessoas. Os gregos que representam o mundo pagão
aproximam-se de Filipe e lhe dizem: “Queremos ver Jesus” (Jo 12,21). Ao relatar
o desejo pagão, expresso neste texto, o evangelista está dizendo: Vossa aspiração
de conhecer a Deus, e mesmo de vê-lo, é perfeitamente legítima. Somente Cristo,
no entanto, pode preenchê-la, pois, na terra, ele é o único revelador autêntico dos
mistérios divinos. O desejo de ver a Deus e sua realização são colocados por santo
Irineu e se tornaram clássicos.1 Na expressão “Nós vimos a sua glória” (Jo 1,14)
percebe-se uma teologia da visão que estrutura e dinamiza o prólogo do primeiro
ao último versículo e que será explicitada ao longo de todo o Evangelho. Ao
contemplar o Filho unigênito que assumiu a nossa carne, ao ouvir as Palavras que
ele disse e ao ver as ações que ele praticou, os interlecutores experienciam a
gratuidade, a fidelidade e o amor de Deus para conosco.Ver Jesus está no centro
da teologia e da espiritualidade Joanina. O caráter epifânico do Evangelho de João
permite ao leitor fazer, com os olhos da fé, a experiência feita, com os olhos
carnais, pela testemunha ocular.2
Do começo ao fim, nas palavras, nos sinais, nos símbolos escolhidos pelo
evangelista, o quarto Evangelho proclama: “Nós vimos a sua glória”, a glória do
1 Cf. LIÃO, Irineu de. Contra os hereges, IV, 20,5-7, pp. 1449-1450. “A claridade de Deus vivifica. Recebem, portanto, a vida os que vêem a Deus. Por esse motivo, o ilimitado, o incompreensível e invisível apresenta-se ao ser humano compreensível e tangível, a fim de vivificar aqueles que o tocam e o vêem... A existência da vida provém da participação em Deus. Participar da vida de Deus é vê-lo e gozar de sua benignidade. Por conseguinte, os seres humanos verão a Deus para viverem, feitos imortais pela visão e elevados até Deus... A glória de Deus é o ser humano vivo, e a vida do ser humano é a visão de Deus.” 2 Cf. BUSSCHE, Henri Van den. Jean: Commentaire de l’Évangile Spirituel, p. 21.
12
Verbo que “se fez carne e ergueu sua tenda no meio de nossas tendas”.3 O tema
das tendas remete ao tempo do livro do Êxodo 36. As tendas eram formas de
abrigo, em trânsito. Para manifestar sua presença no meio do povo a caminho,
Iahweh ordena que lhe façam uma tenda na qual ele irá habitar (Ex 36,8ss).
Quando ele vem habitar essa tenda, ela se enche da glória do Senhor.4 Depois da
destruição do Templo de Jerusalém (70 d.C.), o tema da tenda se fortalece. Assim
a festa das tendas5 evoca a presença de Deus com o povo, de acampamento em
acampamento, pois ela é a habitação móvel.6 Jesus Cristo veio armar sua tenda no
meio de nós e é a plenitude de vida (Jo 10,10) que eleva o humano à condição
divina para a sua glória. Sua amizade não exige que se renuncie aos desejos de
plenitude vital, porque ele ama a felicidade também nesta terra. Diz o Senhor que
ele tudo criou “para que de tudo desfrutemos” e cuidemos da vida7 (1Tm 6,17).
Todo ser humano, grande ou pequeno, rico ou pobre, forte ou fraco, foi criado
para ser iluminado pela luz do Verbo e para ser vivificado com a plenitude de vida
que Deus, criador e Pai, oferece por Jesus, o “Verbo que se fez carne”.8 Esta
expressão tem um sentido próprio para o evangelista. Significa que o próprio
Deus, aquele que se revela, assume a natureza humana não como um simples
invólucro, mas como algo real e concreto a fim de resgatar o ser humano na sua
totalidade. Quando o Verbo eterno aceitou ser solidário com o gênero humano,
fazendo parte do mundo sensível, através do nascimento, do crescimento e da
morte, isto representou sem dúvida a ação amorosa mais fundamental da iniciativa
divina que, mediante um amor totalmente gratuito, se doa do alto para transformar
todas as indigências.9
3 Cf. BARREIRO, Álvaro. Vimos a sua Glória, p. 26. 4 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Nem Aqui, nem em Jerusalém, p. 54. “O verbo grego skênoô pode ser traduzido por habitar, mas o seu sentido literário mais próprio é armar tenda, pois ele veio mostrar que a vida nesta vida não é senão um trânsito. Quando alguém tem consciência de que se instala por pouco tempo, arma a barraca e não constrói casa. É uma expressão intencional do evangelista para enfatizar a finalidade da missão do Filho como aquele que recoloca as coisas no seu eixo original.” 5 Cf. McKENZIE, John L. “tenda” Dicionário Bíblico, p. 921. “No Novo Testamento a festa é mencionada somente uma vez. É a festa à qual Jesus foi às ocultas depois que ele recusou ir publicamente Jo 7. Os rios de água (Jo 7,37) podem ser uma alusão ao rito da libação da festa. O título ‘luz do mundo’ que Jesus deu a Si mesmo (Jo 8,12) deve ter sido expresso durante a iluminação da festa das Tendas.” 6 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Nem Aqui, nem em Jerusalém, p. 54. 7 Cf. BROWN, Colin & COENEN, Lothar. “vida” Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, pp. 2650-2651. 8 Cf. BARREIRO, Álvaro. Vimos a sua Glória, pp. 62-63. 9 Cf. SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João, pp. 125-129.
13
Obviamente que, a partir destes primeiros pressupostos, vinha-me o
questionamento: Se o ser humano foi criado para ser iluminado pela luz do Verbo
que é fonte de vida para todos, por que a ausência da vida transparece em tantos
rostos? Perpassava-me também outra inevitável indagação: Como ajudar o ser
humano na conquista de sua verdadeira dignidade de filho de Deus? As Palavras
pronunciadas por Deus a seu Filho: “Tu és o meu Filho eu hoje te gerei”, ou
ainda: “Eu serei para ele um Pai e ele será para mim um Filho” (Hb 1,5), são
verdadeiras para todos os filhos adotivos de Deus. A consciência da origem, da
dignidade e do destino do ser humano deve, portanto, iluminar todas as situações
da vida e alimentar as mais elevadas aspirações, inclusive a de se deixar iluminar
por Jesus, a luz do mundo.10
Assim, contempla-se a irradiação da graça e da verdade do Verbo
encarnado. O Verbo que existia no princípio voltado para Deus (Jo 1,1-2), o Filho
unigênito, que existiu, por toda a eternidade, voltado para o seio do Pai, deu a
conhecer o Deus que ninguém viu jamais. Vendo Jesus com os olhos da fé, os
cristãos vêem também o Pai agindo nas obras do Filho (Jo 5,19; Jo 9,6). O ver
leva a crer no amor com que o Pai amou antes da criação do mundo (Jo 17,24).
Pois o Filho participa ativamente na obra do Pai no momento da criação, desta
forma, quando ele assume a natureza humana (Fl 2,6), ocupa-se das coisas do Pai,
que são também as coisas dele, desde o princípio. Deste modo, os sinais de Jesus,
em sua missão, foram sinais recriadores: a cura do paralítico (Jo 5,1ss); a cura do
cego de nascença (Jo 9,1ss); a reanimação da vida de Lázaro (Jo 11,1ss). No
momento da transformação de uma situação existente, Jesus atua não apenas
como a força do alto que liberta de situações caóticas, mas realiza as maravilhas
de Deus que fez todas as coisas perfeitas. No início da criação, depois de cada
obra, Deus via que tudo era bom (Gn 1,10-25). O escritor do Gênesis acrescenta
na criação do ser humano que, depois de tê-lo feito, tudo era muito bom (Gn
1,31). Jesus, na interpretação do evangelista, estava com o Pai em todas as etapas
da criação, sendo com ele, co-criador.11
No entanto, o texto sobre o qual detêm-se a atenção sobre a temática do ver
é o episódio do cego de nascença no qual se manifesta o modo de ser do Deus da
10 Cf. BARREIRO, Álvaro. Vimos a sua Glória, p. 52. 11 Cf. MESTERS, Carlos. Paraíso Terrestre - Saudade ou Esperança, pp. 34-36.
14
vida, através da ação recriadora12 de Jesus, luz e vida para a humanidade Jo 9,1-
12, ou mais exatamente, nas duas primeiras sub-unidades do relato como tal, que
tratará do milagre com a reação dos circunstantes, ou seja, o diálogo com os
vizinhos, por estar aí colocada a afirmação de Jesus: “Eu sou a luz do mundo”.
Numa associação com o primeiro dia da obra criadora do universo o autor do
Evangelho coloca o Lo,goj (Logos) como luz do mundo: Haja luz e a luz se fez
(Gn 1,3). Num primeiro momento, pareceu-nos ser possível abordar a perícope
sob o ângulo da disputa pelo poder entre “judeus” dirigentes do tempo e a
comunidade Joanina. Porém, nossa abordagem é uma tentativa de verificar a
pedagogia da luz-Jesus na sua atuação recriadora do cego de nascença, em íntima
relação com o ver. Esta é a finalidade primeira na qual a nossa pesquisa se
assenta, e por isso mesmo se concentra na primeira parte do relato. Ao falar do
Lo,goj (Logos) como a luz, o evangelista está indicando que ele simboliza a vida e
a felicidade perfeitas. Como a luz é discernimento, essa Palavra vem para ser
apresentação do Pai, a vida verdadeira. O calor da luz é vida, a vida é
conhecimento. E este se torna critério da verdade.13
A luz se encontra sempre em oposição à treva. É provável que esta seja uma
situação representativa do caos inicial. Mas o Lo,goj (Logos) é luz, ele refaz o
primeiro dia da criação, libertando a luz do pecado, a verdade da mentira, a vida
da morte, na recriação do cego de nascença.14
Deste modo, da busca inicial, firmou-se a possibilidade de verificar o
conceito luz ligado ao conceito vida, expresso na Palavra de Jesus, na mesma
grande unidade Jo 9,1-10,21 “Eu vim para que tenham vida e a tenham em
abundância” (Jo 10,10). Pois desde o momento em que o cego de nascença aceitou
a luz da vida, através da ação recriadora de Jesus, teve início uma nova vida, um
longo processo de libertação, juntamente com o despertar, para o que significa a
verdadeira condição humana, o objetivo para o qual Deus o criou, ou seja, ter a
vida e liberdade. Jesus é o modelo de Homem em quem resplandece, em grau
máximo, esta qualidade de vida, e é capaz de comunicá-la. Missão de Jesus e dos
seus é mostrar esta possibilidade, mais do que com Palavras, com a realidade na
qual vivem e com gestos que realizem a libertação das situações opressoras, às
12 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Nem Aqui, nem em Jerusalém, p. 51. 13 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Nem Aqui, nem em Jerusalém, p. 50. 14 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Nem Aqui, nem em Jerusalém, p. 52.
15
quais impedem o ser humano de caminhar na conquista de sua verdadeira
identidade. 15
1.2. Metodologia e roteiro
A perícope do cego de nascença Jo 9,1-12 será analisada pelo Método
Histórico-Crítico, que apesar das deficiências e limitações apontadas pelos
estudiosos, dentre elas o perigo de se fixar, reduzir tudo ao aspecto histórico, tem
sido recomendado, como também, contribuído para uma compreensão mais exata
da Sagrada Escritura. Todavia, quando necessário, não se deixará de lançar mão
de outros métodos e abordagens, por exemplo, o método da análise narrativa,
enquanto for uma ajuda, para o acesso e compreensão do texto, tal como ele
chegou até nós.16
A pesquisa17 se desenvolverá do seguinte modo: na introdução será
apresentada a justificativa; a metodologia e roteiro; uma visão geral sobre o estado
atual das pesquisas, a fim de se saber o que dizem os estudiosos, a respeito do
significado da luz relacionado ao conceito vida, na perícope Jo 9,1-12. Este
percurso pelos escritos tem por finalidade elencar e confrontar as idéias teológicas
relacionadas ao simbolismo da luz, do barro e da água. Os especialistas, de um
modo geral, relacionam o simbolismo ao gesto criacional de Deus e ao batismo
cristão. Percorrendo este caminho, é que se pretende fazer uma abordagem a partir
da temática escolhida: “A pedagogia da luz na “recriação” do cego de nascença”;
contribuição da pesquisa e hipótese. Apresenta-se em seguida, de um modo breve
e sintético, alguns tópicos considerados mais importantes, relacionados ao escrito
de João, a fim de se obter um primeiro contato com o Evangelho no seu todo.
Num terceiro momento, deter-se-á na análise do texto, e por fim à exegese. Por ser
o coração da tese, este último capítulo ocupará um tempo maior na pesquisa.
Deste modo pretende-se chegar à demonstração de que a vista dada ao cego se
realiza através da ação recriadora de Jesus e da adesão à sua Palavra. O gesto
criador e salvador de Deus, na pessoa do Filho, impulsionou o cego a dar passos
15 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. Vocabulário Teológico do Evangelho de João, p. 294. 16 PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. A Interpretação da Bíblia na Igreja, pp. 43-46. 17 Inicia-se a pesquisa pelo levantamento dos estudos produzidos e publicados sobre a perícope, nos últimos 50 anos.
16
na direção da vida. Ou seja, o cego de nascença, aderiu, acolheu a luz-Jesus e
nasceu para uma nova existência.
1.3. O estado atual da pesquisa
Em Jo 9,1-12 temos o episódio do cego de nascença, visto por muitos
autores18 como um personagem simbólico representando a cegueira da
humanidade em confronto com Jesus, a “luz do mundo”. Alguns estudiosos têm
encontrado neste milagre, uma relação estreita com o gesto criacional de Deus e
com o batismo, por causa do simbolismo da luz, do barro, e da água presentes no
texto, freqüentemente citados pelos Padres da Igreja no início do cristianismo.19
Há também exegetas que relacionam o capítulo 9º de João com Jo 10,1-21,
estabelecendo assim, uma ligação entre os termos “luz e vida”. Estas opiniões são
afirmadas, questionadas, ou às vezes, nem citadas, pelos autores.
A fim de nos colocarmos no caminho a ser percorrido neste estudo, é
preciso conhecer, ao menos as mais importantes linhas interpretativas de algumas
concepções em causa e dentro de seu principal simbolismo, como os sentidos
atribuídos aos termos: “o;tan evn tw/| fw/j eivmi tou/ ko,smou” (enquanto estiver no
mundo sou a luz do mundo). Procurar-se-á também, verificar o conceito de luz
entrelaçado ao conceito vida, apontado por alguns autores e a sua relação com o
modo de ser de Jesus na recriação do tuflo,n evk geheth/j (cego de nascença).
Rudolf Bultmann em 195920 dizia: “a cura do cego de nascença, tem suas
características próprias. Afasta-se do tipo sinótico estilisticamente, em especial,
pelos pormenores da discussão após o milagre. Os discípulos, ausentes desde o
capítulo 6º, reaparecem em cena com a pergunta pela causa da cegueira, que
pressupõe uma típica concepção judaica. A questão serve para provocar uma
reação de Jesus, através da qual Jesus se torna o mestre” . O autor faz uma
discussão em torno do sentido do milagre, que segundo ele está em manifestar ao
mundo “as obras do Pai”. É Jesus, a luz do mundo, ao qual o Pai deu o poder de
18 Cf. BUSSCHE, Henri van den. Commentaire de l’Évangile Spirituel, p. 5-6; LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo São João, pp. 226-227 e BROWN, Raymond E. Introdução ao Novo Testamento, p. 513. 19 Cf. LAGRANGE, M. J. P. l’Évangile selon Saint Jean, p. 4 20 Cf. BULTMANN, R. Das Evangelium des Johannes, pp. 250-253. Segundo este autor a “ação reveladora de Jesus está relacionada à não observação do repouso sabático”.
17
fazê-las, que dá vista ao cego. E esta história deve ser entendida, à luz deste
símbolo. O gesto revelador de Jesus em (Jo 9,6) está intimamente ligado à não
observação do repouso sabático, mas ao mesmo tempo, não significa nenhum
obstáculo para a atividade-ensinamento de Jesus, conforme é anunciado em (Jo
9,14). O enviado é o próprio Jesus. O autor faz uma breve menção ao simbolismo
da água, sem explicitar a referência ao batismo e não cita o simbolismo do barro,
relacionado ao ato criador de Deus.
Para Henri van den Bussche,21 no seu comentário em 1967, o relato da cura
do cego de nascença está muito bem colocado nesta secção em que o evangelista
destaca os temas da vida e luz, capítulos 5º a 12 de João. “O cego é mais que um
simples testemunho. Ele é um símbolo. A aparição deste personagem resume uma
parte importante da história da redenção e da dominação e a personifica. O relato
é uma introdução direta à alegoria do pastor e tem uma dupla significação: o cego
recebe visão e compreensão”. Faz alusão à cegueira, tudo como em Is 32,3 que
retoma Is 6,9-10, onde Israel é cego. Este relato quer marcar o contraste entre a
evidência do milagre e a maldade dos fariseus, diante da evidência da cura do
cego. O dia citado nas duas passagens (Jo 8,56 e Jo 9,4) é o tempo da atividade de
Jesus, tempo da revelação da luz para o mundo judaico, que tem sua finalidade no
momento presente. Henri van den Bussche22 diverge de Bultmann no modo de
abordar as obras, quando enfatiza o aspecto da associação de Jesus aos seus
discípulos: “Jesus responde por um plural ao plural de Nicodemos (Jo 3,2). Não,
somente Jesus pode cumprir as obras do Pai e seu tempo é limitado à
durabilidade de um dia”. A repetição das alusões ao símbolo da luz do mundo (Jo
8,12) integra o milagre no conjunto das festas solenes. Quanto ao simbolismo do
barro ligado à criação, Bussche tem o mesmo parecer que Bultmann, não se
posiciona, apenas acrescenta que Jesus o utiliza não porque era necessário, mas
para provocar um incidente com os fariseus. A água da piscina de Siloé não pode
curar, senão porque ela recebe sua força curativa do “Enviado”, Jesus. Deste
modo o autor concorda com Bultmann no que se refere ao termo “Enviado”.
Ambos não fazem referência ao simbolismo do batismo.23
21 Cf. BUSSCHE, Henri van den. Commentaire de l’Évangile Spirituel, p. 5. 22 Cf. BUSSCHE, Henri van den. Commentarie de l’Évangile Spirituel, p. 10. 23 Cf. BUSSCHE, Henri van den. Na mesma obra citada acima, pp. 6-8 diz: “a ironia, colocada, sobretudo no final do capítulo deve ser atribuída ao caráter literário de João”.
18
Contrapondo-se a Bultmann, 1959 e Bussche 1967, Thierry Maertens24
também em 1967, escreveu um artigo apoiando-se em Antoine Chavasse.25 Este
autor restringe a sua pesquisa apenas na preparação para a Páscoa. O seu estudo o
levou a descobrir que desde o ano 384 o capítulo 9º era uma das leituras
importantes nas proximidades da Páscoa. Segundo Thierry Maertens a leitura do
capítulo 9º de João foi de algum modo “monopolizada pela pastoral catecumenal
do século IV e explorada mais diretamente em função da preparação para o
batismo”. Estabelece, portanto, uma íntima relação ao simbolismo batismal.
Em sintonia com Bussche, Charles A. Dodd26 em 1968, na sua obra, se
refere ao quinto episódio, como sendo compreendido, sobretudo entre Jo 9.1-
10.21. O autor relembra que os “capítulos 7º-8º de João apresentam Jesus
‘manifestado ao mundo’ como vida e luz, mas rejeitado”. Esta colocação com sua
referência clara aos termos do Prólogo ocupa adequadamente a posição central no
Livro dos Sinais. Nos três episódios antecedentes predomina o aspecto da vida.
No capítulo 9º de João sobressai o aspecto da luz. “A luz brilha nas trevas, e as
trevas, longe de as ‘vencerem’, são derrotadas e dispersadas”. No Antigo
Testamento ambos os termos: luz e vida são usados com freqüência para expressar
aquela felicidade última ou salvação que é um dom de Deus aos homens. Neste
sentido, e só neste sentido, pode-se dizer que Deus é luz para o seu povo.
Segundo Dodd, a ênfase dada ao tema da luz - segundo o estilo de João -
está ligada aos discursos sobre a vida, pelo reaparecimento do símbolo da água
verdadeira que é o Filho, o Enviado do Pai. Pois como os “homens ingressam na
vida verdadeira através do nascimento pela água, recebem também a verdadeira
luz lavando-se na água”.27 Assim, no que diz respeito ao termo Enviado, Dodd
segue a mesma linha de pensamento de Bultmann e Bussche.
Para Dodd o tema da luz tem maior efeito no julgamento estabelecido no
final do capítulo 9º de João, cuja sentença judicial pronunciada por Jesus conduz
sem interrupção ao discurso do Pastor e do rebanho.
24 Cf. MAERTENS, Thierry. História e Função das três perícopes do Cego de Nascença, da Samaritana e de Lázaro, in: Concilium, Os pontos Cardeais da Iniciação Cristã, pp. 55-59. 25 Cf. citação no autor acima. 26 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, pp. 459-469 27 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, p. 463.
19
No entanto, este discurso não pode ser compreendido, sem referência ao
Antigo Testamento. A comparação do povo de Deus com um rebanho é parte de
um simbolismo não só bem estabelecido, mas também natural.28 Na comparação
do profeta, pastores são as autoridades, e rebanho é o povo, que pertence
exclusivamente a Deus. A função do bom Pastor é cuidar do rebanho em todos os
sentidos, principalmente defendê-lo diante dos lobos. O que acontece porém? As
autoridades políticas, ao invés de cuidarem do povo, o usam em proveito próprio.
Em vez de defenderem o rebanho, o entregam aos inimigos. Na visão do profeta, a
ruína da nação é culpa exclusiva das autoridades que a governam.29 Entretanto,
em João, o quadro do bom Pastor vai além do círculo de Ezequiel. De modo
especial, o Pastor, não só cuida do rebanho, mas também dá a vida por suas
ovelhas. Pois, o projeto de Deus a respeito do ser humano se completa com a
morte de Jesus, sinal do seu dom de amor até o fim Jo 19,30. Assim o “tema da
luz se desloca para o conceito-gêmeo de vida”.30
Raymond Edward Brown,31 no seu comentário em 1971, assinala a mudança
de tempo para o banquete da Dedicação, três meses depois de Tabernáculos em Jo
10,22. Ele se contrapõe aos autores citados acima, quando diz que a “história do
cego de nascença começa em Jo 9,1 e termina em Jo 9,41”. Não faz nenhuma
alusão ao tema do bom Pastor. “O milagre foi moldado por João em uma
ferramenta ideal para o serviço apologético cristão e para uma instrução ideal para
aqueles prestes a se batizarem”. Refere-se à unção e à água, na tentativa de
confirmar a alusão ao batismo, mas estas observações não garantem o simbolismo
batismal que, para este autor, fica em suspense. Aliás, para a maioria dos autores,
o simbolismo do batismo é confirmado, no aparecimento da cena do cego de
nascimento, na arte da catacumba antiga, como ilustração do batismo cristão,
relacionado à unção com o barro, e ao ato de se lavar na piscina. Mas em quase
todos eles paira a incerteza, se esta era realmente a intenção do evangelista.
28 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, pp. 464-465. No capítulo 34 de Ezequiel a “comparação com o povo de Deus se torna a base de um longo e elaborado apólogo. O profeta começa denunciando os chefes corruptos de Israel como falsos pastores do rebanho de Deus. Em vez de nutrir o rebanho, eles o pilham; em vez de protegê-lo, deixam que vague desnorteado, com o resultado que o rebanho é disperso e devorado pelos animais selvagens”. 29 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, p. 464. 30 Cf. (Jo 10,28) o quadro do bom Pastor é enriquecido com traços que vão além do círculo de Ezequiel. “Em particular, o pastor dá a vida por suas ovelhas. Jesus morre na cruz para salvar a humanidade, ao passo que em Ezequiel, o Pastor cuida das ovelhas (Ez 34,1-31)”. 31 Cf. BROWN, Raymond E. The Gospel According to John, pp. 362-382.
20
Segundo Brown, a primeira lição a tirar do texto é a atuação e o poder da luz
sobre as trevas. Menciona brevemente o simbolismo do barro, relacionado com o
ato criador de Deus.32 Este mesmo autor,33 em 1975, acentua o fato da cegueira de
nascimento relacionado ao tema da luz na festa dos Tabernáculos. Lembra que
Isaías havia predito que o Messias seria a luz das nações e abriria os olhos aos
cegos (Is 42,7-8). Concorda com Bussche, em 1967, no que se refere à ironia de
João, “presente no contraste entre o que fora cego e a quem Jesus fez enxergar, e
os fariseus que enxergavam e ficaram cegos por causa de Jesus”. “O cego era
ignorante, mas aprende muito: os fariseus sabem tudo e não se lhes pode ensinar
coisa alguma”. A recusa de Jesus em relacionar a cegueira com o pecado descarta
a possibilidade de uma alusão ao batismo, neste ponto o autor se coloca em
contradição com ele mesmo, no que havia dito no seu escrito anterior. Todavia,
mais adiante vai colocar que a ênfase de João na significação simbólica da piscina
sugeriu a Tertuliano e a santo Agostinho uma alusão batismal. Nas primitivas
representações das catacumbas, a cura do cego é um símbolo do batismo. “A
piscina cujo nome significa ‘enviado’ está no lugar de Cristo que é um enviado do
Pai”. A cura propriamente dita se opera ao lavar-se na piscina de Siloé.
M. E. Boismard em 1977, expressa no seu comentário, que não obstante os
sinais realizados por Jesus, a luz do mundo, os chefes religiosos de Israel
recusam-se a crer nele. Sua incredulidade se opõe à atitude positiva e obediente do
antigo cego de nascença. Juntamente com o antigo paralítico, eles constituem o
pequeno resto de Israel, que vai crer em Jesus.34 Maggioni Bruno,35 no ano de
1978, concorda com R. E. Brown: ambos os autores afirmam que a primeira lição
a tirar da perícope é esta: a luz vence as trevas e suscita um julgamento. O
segundo sentido é apologético, cuja discussão gira em torno do repouso sabático e
enfim pode-se relacionar o episódio, com a dimensão batismal. Boismard vai
dizer, como outros autores já citados,36 que o relato também está ligado à perícope
do bom Pastor. A fim de confirmar a conexão, basta observar que em sua
conclusão (Jo 10,21) aparece claramente uma referência ao milagre do cego.
Francisco de la Calle, em 1978, destaca o sentido do relato em Jo 9,5 se referindo
32 Cf. BROWN, Raymond E. The Gospel According to John, p. 375. 33 Cf. BROWN, Raymond E. Evangelho de João e as Epístolas, pp. 476-478. 34 Cf. BOISMARD, M. E. Le Nouveau Testament, pp. 323-325. 35 Cf. MAGGIONI, Bruno in FABRIS, Rinaldo. Os Evangelhos II, pp. 124-126. 36 Cf. BUSSCHE, Henri van den e DODD, Charles A. Em suas respectivas obras citadas acima.
21
à luz,37 que ilumina com sua Palavra reveladora, age, agora, segundo o próprio
evangelista, com um milagre simbólico: o cego de nascimento. Em íntima união
com isto, o evangelista fará também, Jesus falar da “sua missão de porta e de
Pastor”. Luz que cega e luz que abre os olhos e conduz até à intimidade com
Deus.
Segundo Rudolf Schnackenburg,38 no seu comentário em 1980, o capítulo 9º
de João expressa em primeiro lugar, uma intenção teológica: “Jesus é a luz do
mundo, que veio para iluminar os homens prisioneiros das trevas”. É uma
chamada escatológica a crer nele e a superar a cegueira na qual as autoridades do
tempo haviam-se instalado. Estabelece o critério divisório entre os que o acolhem
e por isso vêem e os que permanecem cegos por sua incredulidade e dureza de
coração. Quer desmascarar a atitude e os métodos do judaísmo, robustecer a fé e
alertar os leitores em sua confissão cristã.
No que se refere à alusão ao simbolismo do batismo afirmada pela exegese
patrística, pela Igreja antiga, e a exegese moderna que volta a defendê-la de uma
forma renovada, o autor coloca alguns argumentos tirados do próprio texto, mas
em seguida os contesta. Citam-se apenas os que estão mais relacionados ao nosso
tema: “permanência no pecado expressa no simbolismo das trevas e a luz recebida
no batismo, mas o versículo 3 rejeita qualquer relação de pecado com o cego de
nascença. Unção pelo barro, mas o verbo ungir poderia ser apenas uma expressão
médica.
Segundo o autor, os Padres da Igreja só descobriram um ponto de relação,
adequado com a idéia do batismo, de acordo com a índole de sua exegese
teológica. A referência a representações por meio de pinturas, do episódio do cego
de nascença nas catacumbas não convence, senão que houve uma alusão ao
batismo em época posterior. A leitura do texto de João capítulo 9º, na catequese
catecumenal, se tratava somente de uma aplicação litúrgica e pastoral, nada afirma
sobre o sentido originário de João 9,1-12. O simbolismo é inegável, porém, difícil
de determinar com segurança. Não existe, no texto, nenhum ponto firme, onde se
37 Cf. DE LA CALLE, Francisco. Teologia dos Evangelhos de Jesus, p. 92. “A festa dos Tabernáculos era a festa da luz. Pela tarde, o Templo se iluminava festivamente. Era o momento em que, como escrevia Zacarias: ‘será um dia único, não haverá dia nem noite e ao entardecer haverá luz’. (Zc 14,7). A atuação de Jesus que o quarto Evangelho nos apresenta está em paralelo com a festividade: Jesus é luz”. 38 Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. El Evangelio Según Juan II, pp. 280-284.
22
possa ancorar a intenção do evangelista de um simbolismo batismal, no capítulo
9º de João.
Comentando o capítulo 9,1-12 de João, Alviero Niccaci,39 em 1981, diz que
“em ‘sou a luz do mundo’ se encontra o tema central e o sentido do milagre que
Jesus está para realizar (Jo 9,1-7)”. À narrativa da “iluminação” abrangendo o
físico e o espiritual se desenvolve um grande processo contra o curado, que na
verdade é um confronto polêmico entre o discípulo e os opositores de Jesus. Em
conformidade com Bussche,40 Alviero Niccaci diz que por trás do cego está sendo
expulso o próprio Jesus. A afirmação “sou a luz do mundo” reassume (Jo 8,12). O
servo de Iahweh é destinado a ser a “luz das nações”. Em relação ao simbolismo
do batismo, não tem uma posição segura. Esta colocação é expressa no termo
“talvez” e o autor prossegue dizendo que a tradição cristã viu neste episódio, não
sem fundamento, o símbolo do homem novo, através do batismo. Concorda com
Bussche, quando afirma que o capítulo 9º está inserido no contexto dos capítulos
Jo 7º-10, festa dos Tabernáculos ou das luzes, tem continuidade com Jo 10,1-21
onde o cego é o primeiro do rebanho para o qual o bom Pastor dá a vida. Portanto,
na perspectiva deste autor, os termos vida e luz, estão intimamente entrelaçados e
se opõem ao modo de ser dos dirigentes do tempo, representantes das trevas, do
abandono e da morte do rebanho.41
Em 1982, Juan Mateus,42 afirma também que a luz é Jesus, sendo que o
resultado de sua ação e da aceitação por parte do cego, tem como efeito a visão.
“Jesus é a luz que vem ao mundo, para dar vista aos cegos como salvação
definitiva, anunciada pelos profetas, como símbolo da libertação da tirania (Is
29,18ss)”. As trevas se desvanecem diante da revelação de Deus.43
Para Josef Blank,44 em 1984, o que torna importante este texto, como relato
de sinal, é o tema da luz do mundo formulado em Jo 9,5. Jesus está presente como
“a luz do mundo”. A este símbolo corresponde a dupla reação humana da cegueira
39 Cf. NICCACI, Alviero & BATTAGLIA, Oscar. Comentário ao Evangelho de João, pp. 158-160. 40 Cf. BUSSCHE, Henri van den. Commentaire de l’Évangile Spirituel, p. 5. 41 Para Niccaci a cura é conseqüência do banho na piscina e não da aplicação do barro nos olhos. “Também Naamã o Sírio foi curado de uma lepra após ter-se banhado nas águas do Rio Jordão” (2Rs 5,1-14). 42 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, pp. 407-415. 43 Cf. (Is 60,1) “Põe-te em pé, resplandece, Jerusalém, porque a tua luz é chegada, a glória de Iahweh raia sobre ti. Com efeito, as trevas cobrem a terra, a escuridão envolve as nações, mas sobre ti levanta-se Iahweh e a sua glória aparece sobre ti. As nações caminharão na tua luz”. 44 Cf. BLANK, Josef. O Evangelho Segundo João, pp. 192-218.
23
e da visão, como respectivamente, expressão da descrença e da fé, da condenação
e da salvação. Assim o milagre da cura está a serviço da revelação e da salvação.
Este autor não se pronuncia a respeito do simbolismo batismal e ação recriadora
de Deus em relação à luz, ao barro e à água.
Xavier Léon-Dufour,45 em 1988, segue a linha de reflexão no que se refere
à oposição, entre os que aceitam a luz e os que a rejeitam, enfatizando que o
acontecimento narrado possui uma forte dimensão simbólica: “no miraculado
aparece a figura do crente iluminado pela fé”. O simbolismo da iluminação recebe
todo seu relevo do fato de se tratar de um cego de nascença. Situação sem paralelo
na tradição sinótica. Simbolismo que funciona no sentido oposto: “os fariseus que,
em presença do que fora cego negam o ‘sinal’, tornam-se cegos”. Léon-Dufour
enfatiza o consenso de autores, em relação ao anacronismo referente à
controvérsia sobre o sábado: a sentença da exclusão da sinagoga (Jo 9,22)46 não
pode ser justificada na época de Jesus de Nazaré e relaciona este fato com o
simbolismo do batismo. “A maior parte dos estudiosos brigam pela ‘intenção do
autor’, como se esta pudesse ser conhecida com certeza”. Se o texto comporta
qualquer alusão ao sacramento, isto deve ser levado em conta. Também este autor,
conforme Bussche, Dodd e Boismard, aponta para a unidade literária de Jo 9,1-
10,21 intitulando-a: “luz nova e pastagens abundantes”.47
Bento Silva Santos,48 no ano de 1994, interpreta o texto como sendo o
clímax da polêmica dos “judeus” contra Jesus. Entra em sintonia com outros
autores, quando diz que “o milagre é uma ocasião para revelar quem é Jesus”:
“Ele é a luz. Naquele homem cego, se manifesta a vontade salvífica de Deus. As
reações dos circunstantes, assumem o caráter de um processo”. José Cárdenas
45 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João II, pp. 226-224. 46 “Se a controvérsia sobre o sábado ancora o episódio dentro do tempo do ministério de Jesus, um anacronismo notável o situa no tempo do evangelista.” Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João II, p. 228. Contudo, KONINGS, Johan não obstante concorde com a idéia do anacronismo vai dizer também em sua obra: Evangelho segundo João - Amor e Fidelidade em 2005, que nada obriga a situar a excomunhão da sinagoga, só depois do sínodo de Jâmnia. Segundo este autor o “conflito com o judaísmo, pode ter surgido simultaneamente com a comunidade cristã”. 47 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João II, p. 246. “O discurso de Jesus não retoma a imagem da luz, mas passa à do Pastor e suas ovelhas. Muitos estudiosos vêem nesta sucessão, o reflexo de fontes e de unidades literárias sem nexo. Contudo, no fim da longa evolução, as duas imagens se encontram reunidas nas Parábolas de Henoc (89,28,41), onde o povo é comparado a um rebanho de ovelhas, que ficaram cegas e que recuperam a visão, quando o Senhor vem cuidar delas. Este testemunho literário confirma a hipótese de que Jo 9,1-10,21 constitui uma grande unidade”. 48 Cf. SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João, p. 315.
24
Pallares,49 neste mesmo ano de 1994, faz uma abordagem do texto sob o aspecto
do drama que envolve todos os personagens: “Cena após cena, se vê que Jesus
coloca os homens diante do desafio de compreender a revelação e de responder a
ela com fé”. O drama gera um longo processo, com o intuito de excluir o cego,
mas na verdade é um processo contra a luz que é Jesus. Percebe-se uma oposição
clarividente, entre o cego, que a cada passo se aproxima mais da luz, até chegar à
iluminação completa e os fariseus, que se afundam nas trevas. Para José
Bortolini50 a luz do mundo é Jesus em conflito com as trevas - as lideranças
político-religiosas - e revela ainda a dura situação em que vivia a comunidade do
discípulo, para o qual os temas-gêmeo vida e luz dominam os capítulos Jo 2,1-12
e cuja associação de Jo 9 a Jo 10,1-21 é evidente.
Isidoro Mazzarolo,51 em 2004, acentua que a finalidade do relato é “chegar
ao outro lado da cegueira, que é a dimensão espiritual”. Jesus aproveita para
ensinar a partir de um fato. “Este é o encontro com o cego”. Os “judeus” negam
ver a luz, a verdade e a libertação. Para este autor, no barro está a grande
“manifestação de Deus, pois o ser humano e toda a criação são obra do Criador”.
O gesto da unção com o barro simboliza a recriação do cego de nascimento.
Johan Konings,52 em 2005, tem a mesma linha de pensamento de outros
autores: “a narrativa da cura é muito breve e serve apenas para encaminhar
mediante um ‘trabalho’ a polêmica do repouso sabático”. Todavia, apesar das
colocações contrárias Johan Konings parece seguir a idéia do simbolismo
batismal. Segundo este autor, a cena é uma “evocação clara do batismo e crisma:
o batismo no nome de Cristo e a vida cristã eram chamados, na Igreja dos
primeiros tempos, de fôstismós, ‘iluminação’.” O batismo também é nova criação.
Com o barro o Cristo-Ungido ungiu os olhos do cego (Jo 9, 6.11).
Observações conclusivas
Conforme as constatações decorrentes deste estudo, ou seja, no exercício de
ouvir as vozes interpretativas de cada autor, confrontando-os ao mesmo tempo,
deve-se ressaltar algumas considerações que mais se evidenciaram: no percurso 49 Cf. PALLARES, José Cárdenas. Jesus a luz que ilumina e põe em Evidência, in: Ribla, A Tradição do Discípulo Amado, pp. 37-43. 50 Cf. BORTOLINI, José. Como ler o Evangelho de João, p. 469. 51 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Nem aqui, nem em Jerusalém, pp. 122-128. 52 Cf. KONINGS, Johan. Evangelho segundo João - Amor e Fidelidade, p. 192.
25
de uma leitura atenta, percebe-se um consenso entre os autores em torno do
simbolismo da expressão: “o;tan evn tw/| ko,smw w+, fw/j eivmi tou/ ko,smou”. O
episódio do cego de nascença é elaborado em torno desta Palavra de Jesus
dirigida ao cego, aos seus discípulos e também a nós nos dias atuais.
Nesta Palavra se revela o tema central, o sentido simbólico do relato, no
qual é emoldurado, desenvolvido um longo processo, em que cena após cena se
vê que Jesus coloca as pessoas diante de um desafio de compreender a revelação
e de responder a ela com fé. Estabelece-se a partir daí dois grupos: os que vêem e
aderem à luz que é Jesus, o ex-cego; e os que, à proximidade da luz, não crêem,
por isso, não vêem e se tornam cegos, “os judeus”. Assim o simbolismo da luz
funciona no sentido oposto.
Quanto à referência ao simbolismo criacional-batismal presente no texto,
constata-se uma tendência à não aceitação dos autores pela metade do século, “a
maior parte deles brigam pela intenção do autor do Evangelho”.53 Tendência esta,
que nos dias atuais, volta a ser defendida, com a argumentação de que é difícil
saber qual era realmente a intenção do evangelista e se o texto aponta para o
simbolismo, fundamentado e defendido pelos Padres da Igreja, não há como não
aceitá-lo.
Não obstante Johan Konings54 indique a possibilidade de um conflito com
os dirigentes do tempo, paralelo à época dos inícios da comunidade cristã, os
autores em geral concordam no que se refere ao anacronismo da expulsão
Sinagogal.
Finalmente, no que se refere à questão relevante para esta dissertação, ou
seja, os conceitos gêmeos “luz-vida”, presentes também no prólogo, defendidos
por Dodd e que encontra seu ponto de apoio em estudiosos, como por exemplo:
Bussche, Dodd, Dufour e outros, quando apontam para a unidade literária de Jo
9,1-10,21, é bem possível articular o escrito, que doravante se desenvolverá
entrelaçando os dois conceitos. Certamente, esta articulação nos levará, a
vislumbrar por trás do texto, este fio condutor, a respeito da perícope Jo 9, 1-12.
53 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do evangelho Segundo João II, p. 245. 54 Cf. KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João - Amor e Fidelidade, p. 193.
26
1.4. Contribuição da pesquisa
Ao modo de um ensaio, sem a pretensão de ser completo, o presente estudo
quer contribuir através da análise-exegética-teológica da perícope Jo 9,1-12 da
tradição Joanina, em alguns aspectos da vivência cristã e atuação pastoral.
O ensinamento de Jesus aponta para o despertar da consciência de que se é
cego pelo caminho. Anda-se tateando na busca de ver Jesus. A fim de evitar cair
na tentação da cegueira espiritual, é urgente percorrer o itinerário da fé,
aprofundando sempre mais o conhecimento da pessoa e missão de Jesus. É preciso
se deixar envolver pelo olhar55 amoroso do salvador que, por pura gratuidade,
vem a nós. Aceitar ser modelado, recriado em sua ternura, a fim de que na escuta
obediente de sua Palavra, se faça a experiência do verdadeiro encontro com o
libertador e Mestre.56 É necessário também reconhecer os sinais da presença
amorosa de Jesus, onde a vida está ausente, de modo especial, no rosto dos pobres
e excluídos. Neste sentido a contribuição é valiosa, pois vem ao encontro dos
fortes e recentes apelos da Assembléia dos Bispos da América Latina em
Aparecida, no ano de 2007.57 Vivendo o compromisso do batismo, os cristãos são
convidados a perseverar na adesão a Jesus, e ao mesmo tempo sair ao encontro
dos que estão fora da comunidade, a fim de incluí-los no grupo dos seguidores de
Jesus.
O cristão como continuador da missão de Jesus, que lhe foi conferida no
batismo, deverá incorporar em sua nova identidade como filho amado, o modo de
ser do Deus de Jesus, ou seja, o Deus da vida. Assim, impulsionado pela graça da
vida nova que o Cristo veio trazer, caminhará na conquista de sua dignidade
humana, como também, ajudará os irmãos de caminhada na fé a fazer o mesmo. Conseqüência imediata da transformação realizada pela cura das cegueiras será o
assumir corajosamente a missão de testemunhas da luz, diante dos dirigentes e
autoridades dos dias atuais, mesmo sofrendo perseguições.58
55 Cf. BARREIRO, Álvaro. Vimos a sua Glória, p. 37. 56 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. “criação” Vocabulário Teológico do Evangelho de João, p. 48. 57 Cf. DOCUMENTO DE APARECIDA. Conselho Episcopal Latino Americano, p. 166. 58 Cf. DOCUMENTO DE APARECIDA. Conselho Episcopal Latino Americano, pp. 165-167.
27
1.5. Hipótese
O prólogo de João afirma que em Jesus estava a “vida, e a vida era a luz
dos homens”. Por isso, tudo o que Jesus realiza é para que o Pai seja glorificado, é
expressão da vida que vem de Deus e se manifesta nele. “Eu vim para que tenham
vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).59 Contudo, a manifestação da vida,
“luz do mundo”, provocou a reação dos que mantêm um sistema de morte, de
trevas (Jo 9,40). A luz, ou o ver, manifestação da vida, impulsionou o cego a dar
passos na adesão a Jesus, não como um simples carpinteiro de Nazaré, mas como
o Messias profeta, luz, criador e salvador do mundo. O ver lhe devolveu a vida, a
dignidade humana.60 Portanto, pretende-se verificar, a partir de uma abordagem
histórico-crítica os conceitos gêmeos vida-luz, através da ação recriadora-
libertadora e pedagogia da inclusão, firmada no modo de ser de Jesus, na
recriação-transformação do cego de nascença, ou, dizendo de uma outra maneira:
o cego nasce para uma vida nova.
59 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, pp. 448-459. 60 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, p. 114.
2 O Evangelho de João
2.1. Contexto histórico
O Evangelho de João foi-se desenvolvendo pouco a pouco. Ao longo dos
anos sofreu uma influência de sucessivas redações.61 Assim, também as situações
históricas ou culturais, subjacentes ao escrito, sugerem a distinção de vários
períodos. A revelação é dinâmica e acompanha o ser humano na história. A
relação com os “judeus”,62 por exemplo, se apresenta em diversos estágios. Em
certos episódios, como no encontro com Nicodemos (Jo 3,1-21), a relação parece
relativamente cordial, embora se observe que termina em um impasse (Jo 3,10).
Mais do que isso a seqüência de troca de palavras no registro do “nós/vós”, isto é,
do pronome coletivo que ultrapassa o mero confronto entre dois homens, Jesus e
Nicodemos, atesta a prática de um verdadeiro diálogo judeu-cristão, exigente, por
certo, mas considerado absolutamente possível. Esta situação é concebível apenas
em um determinado estágio de desenvolvimento da comunidade Joanina, visto
que em outras passagens do quarto Evangelho, evocam uma situação
absolutamente diferente, provocando uma ruptura total entre os dois grupos. Nas
passagens Jo 9,22; Jo 12,42; Jo 16,12 o Evangelho faz alusão a uma “excomunhão
sinagogal”, que teria privado o grupo Joanino dos privilégios geralmente
concedidos às comunidades judaicas no mundo romano. O período é de
perseguição, sofrimento e perturbações generalizadas contra os cristãos.63
Colocando o Evangelho à época de outros escritos Joaninos, situa-se o
conjunto de escritos, no final do primeiro século do cristianismo. O período
61 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Nem aqui, nem em Jerusalém, pp. 14-15. 62 Cf. KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João - Amor e Fidelidade p. 43. “Com muita freqüência, este termo aparece no Evangelho de João com a finalidade de indicar os opositores de Jesus e de seus discípulos e de modo especial, os líderes e as autoridades do tempo. Jesus e seus discípulos eram ‘judeus’. Por isso, não significa de maneira alguma todos os ‘judeus’. Tendo em vista esta observação, neste escrito usa-se o termo entre aspas”. 63 Cf. BOISMARD, M. L. Le Nouveau Testament, pp. 37-45.
29
histórico que se inicia no ano de 54, com Nero; mais precisamente em 64, com o
primeiro incêndio de Roma, acrescido do martírio de Pedro e Paulo.64
Os testemunhos dos mártires provocavam grande repercussão, pois, em
Roma os julgamentos eram públicos. A multidão assistia quando os cristãos eram
interrogados, julgados e condenados à morte. Os cristãos aproveitavam a
oportunidade para falar abertamente, e o testemunho deles impressionava tanto,
que alguns se convertiam, vendo a coragem deles e a sua confiança no Evangelho.
Colocavam sua fé em Cristo ressuscitado, Deus vivo e verdadeiro. Os pagãos
perceberam que a moral decorrente do Evangelho era mais elevada que a moral
ensinada pela filosofia. O cristianismo valorizava a pessoa humana: o pobre, o
escravo, a mulher. Os cristãos tinham respeito uns para com os outros. Entre eles
havia compreensão e perdão, caridade e misericórdia, partilha dos bens e ajuda
fraterna. Por isso, eram capazes de testemunhar sua fé com a vida. Eles diziam
que “o sangue dos mártires era semente de novos cristãos”.65 Por isso o
cristianismo foi avançando. A perseguição se prolongará até ao ano 313, quando
um jovem imperador romano resolveu conceder liberdade aos cristãos.66
Os seguidores de Jesus sofrem uma dupla perseguição: interna, por parte
dos irmãos “judeus” e externa vinda do império romano. Entre os anos 80 e 85,
tem-se a ruptura com o judaísmo, na reunião de Jâmnia, onde os “judeus”
expulsam os cristãos da Sinagoga. Nesta época, as tensões com o judaísmo
conservador aumentam e a perseguição do império chega à Ásia Menor. Nos anos
91 a 117 aparecem Domiciano e Trajano, imperadores romanos que darão
continuidade ao período de perseguição aos cristãos, estimulados pelos “judeus”.67
Os apóstolos diziam que Jesus havia ressuscitado. Tais pregações foram
confirmadas com milagres.68 Pode-se afirmar com justeza, que o quarto
Evangelho desenvolve um discurso em dois níveis: o do tempo de Jesus e o do
64 Cf. STAMBAUGH, John E. & BALCH, David L. O Novo Testamento em seu Ambiente Social, p. 53. 65 Cf. Citando Tertuliano CECHINATO, Luiz. Os Vinte Séculos de Caminhada da Igreja, p. 46. 66 Cf. CECHINATO, Luiz. Os Vinte Séculos da Caminhada da Igreja, p.75. “Havemos por bem anular por completo as restrições contidas em decretos anteriores acerca dos cristãos. Restrições odiosas e indignas de nossa clemência , e de dar total liberdade aos que quiserem praticar a religião cristã”. 67 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. O Apocalipse, p. 13. 68 Cf. WEISER, A. O que é Milagre na Bíblia, pp. 72-78. “Os milagres segundo a concepção Joanina, são sinais realizados sempre em conexão com a fé. Revelam Jesus e libertam o ser humano para que ele possa viver de novo”.
30
tempo da comunidade do evangelista. Isso aparece, por exemplo, nos textos em
que se descreve a polêmica entre Jesus e os “judeus”.
Dá para entrever aí a polêmica entre a Igreja e a Sinagoga dos anos 90. João
lê conscientemente a história de Jesus à luz do “depois”, ou seja, numa
perspectiva que é contemporânea do leitor. Os sinais de Jesus prefiguram os sinais
que o ressuscitado continua realizando na comunidade.69 O número dos fiéis foi
aumentando. Isto desagradou o chefe dos “judeus”. Eles se revoltaram e partiram
para a violência.Violência contra Jesus (Jo 8,59) e contra os cristãos.70
Havia na Igreja primitiva uma viva preocupação, em fundamentar a própria
fé em fatos históricos autênticos. Nesta preocupação ela fora educada pelos
próprios apóstolos, zelosos da integridade da doutrina. Neste sentido, quando se
tratou de definir o Cânon, a autoria apostólica dos Evangelhos era de fundamental
importância para a aceitação de sua canonicidade. Os apóstolos eram as
testemunhas oculares do fato histórico.71
Crer sem ver (Jo 20,28) não significava acreditar em qualquer um, mas era
aceitar o ensinamento só de quem fora expectador privilegiado e testemunha
autorizada por Deus (Jo 15,27). Das páginas do Evangelho, sobressai
continuamente esta característica de testemunha ocular e autêntica. O nós,72 usado
em Jo 1,14 e Jo 9,4; é o nós apostólico de quem conhece, creu e sente a
necessidade de anunciar para que outros creiam (Jo 20,31).73
Talvez por este motivo, João se refere, de modo discreto e anônimo, à sua
presença junto a Jesus desde o início (Jo 1,37-40) e nos momentos mais
importantes da paixão-ressurreição de Cristo.74
Dentro do contexto histórico, chama a atenção o modo como o expectador
dos fatos lembra detalhes e nota atitudes que outros não relatam, e sobre aqueles,
ele se julga autorizado a elaborar a sua reflexão. O Evangelho não é, segundo
69 Cf. MAGGIONI, Bruno in FABRIS, Rinaldo. Os Evangelhos II, p. 253. 70 Os chefes dos “judeus” queriam matar os Apóstolos. Mas um fariseu muito culto chamado Gamaliel disse ao Sinédrio: “Deixem esses homens em paz. Se o ensinamento deles vem dos homens, vai acabar-se em nada. E se vem de Deus, vocês não conseguirão acabá-lo nunca” cf. (At 5,34-41). Aí Pedro e João foram açoitados e postos em liberdade. “Os dois se consideravam felizes por estarem sofrendo pelo nome de Jesus” (At 5,41). 71 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Nem Aqui, nem em Jerusalém, p. 21. 72 Cf. BROWN, Raymond E. A Comunidade do Discípulo Amado, p. 33. 73 Cf. BARREIRO, Álvaro. Vimos a sua Glória, pp. 20-23. 74 Cf. 13,23; 18,15-16; 19,26; 20,2-10.
31
alguns estudiosos,75 simplesmente espiritual ou doutrinal. Em suas páginas
percebe-se também a historicidade dos fatos.
Numa nova leitura dos Evangelhos, feita a partir da forma teológica e não
pelo ângulo da estrutura, é preciso ver a autonomia de cada autor e a dinâmica da
evolução da linguagem e do conteúdo, frente aos diferentes contextos sócio-
históricos. Nesta nova leitura acentua-se a relação entre eles, um complementando
o outro. João está em relação com Lucas, porém, a sua teologia está muito além
daquela de Lucas.76 Em relação ao contexto histórico, João apresenta indicações
cronológicas, que se prolongam por mais tempo, por exemplo, a duração da vida
pública de Jesus, à qual os outros parecem limitar ao espaço de um ano e poucos
meses. O Evangelho de João, que costuma sincronizar a vida de Jesus com as
festas judaicas, lembra explicitamente três festas pascais sucessivas.77 Desse modo
o ministério de Jesus, teria durado de dois a três anos.
Junto às festas pascais, João anota também outras festas que incluem longos
períodos da atividade de Cristo na Judéia, apenas mencionada pelos outros três
Evangelhos, mais interessados na atividade da Galiléia. Sabe-se assim, que Jesus
veio à Judéia e a Jerusalém para a festa dos Tabernáculos (Jo 7,2-14) e da
dedicação do Templo (Jo 10,2).
Os dados históricos levam o evangelista em seguida a lembrar, que o
primeiro milagre de Jesus foi realizado em Caná da Galiléia (Jo 2,11) e que
aconteceu três dias depois do seu encontro com Cristo (Jo 2,1). João lembra
também que o dia da condenação e da crucifixão de Jesus foi o 14º de Nisan -
março-abril, - vigília do sábado, que era então mais solene, devido à coincidência
com a Páscoa.78
Nota-se, facilmente, nos detalhes de algumas narrações, que se está diante
de lembranças vivas do apóstolo. Mais de sessenta anos depois - certas cenas
permanecem presentes na memória de João. Por exemplo, o encontro do discípulo
com Jesus, além do Jordão (Jo 1,35-51). João lembra a hora do encontro. Está-se,
portanto, diante de um fiel cronista, em sintonia com o seu divino mestre. Porém
75 Cf. BATTAGLIA, Oscar. Introdução aos Evangelhos, p. 209. “João, o último de todos, vendo que o aspecto material de Jesus fora ilustrado por outros Evangelhos, inspirado pelo Espírito Santo e ajudado pela oração dos seus, compôs um Evangelho espiritual”. Assim se exprimia Clemente de Alexandria, um dos mais antigos escritores cristãos, que viveu entre 150 e 215 d.C. 76 Cf. MAZZAROLO Isidoro. Lucas em João, pp. 31-32. 77 Cf. Jo 2,13.23; 6,4; 21,1. 78 Cf. BATTAGLIA, Oscar. Introdução aos Evangelhos, pp. 220-222.
32
alguns estudiosos,79 por exemplo, dizem que após determinar a unidade do
conjunto da obra a partir da linguagem, imagem e símbolos, é inútil a tentativa de
considerar o Evangelho como narração de caráter puramente histórico. Em geral,
se se permanece somente no aspecto histórico, tropeça-se basicamente com
dificuldades insuperáveis: analisando-se o texto como se fosse apenas uma
biografia de Jesus, aparecem por um lado, “saltos” na topografia e incoerência na
sucessão dos fatos e, por outro, omissão de dados, falta de lógica narrativa ou
pormenores inverossímeis. A coerência em João não se buscará, portanto, nos
fatos históricos, - sendo que esta constatação não relativiza a importância dos
dados históricos - mas sim na unidade temática, em relação com o seu plano
teológico.80 As linhas mestras da teologia de João são duas: o tema da criação e o
da Páscoa-aliança. Há no Evangelho, uma série cronológica que faz coincidir o
início da obra de Jesus com o sexto dia, o dia da criação do ser humano, marcando
assim o sentido e o resultado de sua obra: terminar esta criação, que terminará
com sua morte na cruz (Jo 19,30): “Está terminado”. O final do Evangelho
completa o tema da criação em virtude de situar-se em o primeiro dia Jo 20,1
indicando, deste modo, o princípio e a novidade da criação terminada. Este dia, é
ao mesmo tempo “o oitavo dia” apontando sua plenitude e caráter definitivo. Os
temas da luz e vida são centrais no Evangelho e estão na linha da criação.81
2.2. O ambiente cultural e religioso
No que se refere ao ambiente cultural e religioso, João possui um método
próprio de falar.82 Seus conceitos e suas figuras, sua concepção da redenção - que
o separa, mas também o relaciona com os Sinóticos não se fundamentam, no seu
modo de ser individual, mas em seu ambiente. Pois, o autor do quarto Evangelho
79 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. Vocabulário Teológico do Evangelho de São João, pp. 7-12. 80 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, p. 7. 81 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, pp. 7-8. 82 Cf. CULMANN, O. Le Milieu Johannique, pp. 49-61. “O mundo religioso a partir do qual João transmite a sua mensagem, e para o qual fala, deve ser procurado lá onde estão presentes os dois traços fundamentais de seu pensamento - o dualismo e a figura redentora divina. Este princípio é natural, mas nem sempre seguido. Seguindo-o, reconhece-se de que os dois traços mencionados se encontram nessa associação somente com a gnose, e isso significa que João se confronta com uma concepção gnóstica da redenção e agora expressa sua mensagem em linguagem e concepções gnósticas. Porém é óbvio que, neste procedimento, a gnose é decisivamente modificada”.
33
não introduz sua concepção com explicações. Ao contrário, a pressupõe como
conhecida.83
Seu vocabulário familiariza o leitor com a linguagem da obra, e é ao mesmo
tempo herança do ambiente e cultura em que nasceu.84 Em determinada
proporção, era linguagem “técnica”, criada pela comunidade, com a finalidade de
expressar sua vivência cristã. O leitor daquela época aproximava-se do livro já de
posse de sua linguagem.85
Sempre mais se concorda em aceitar que o Evangelho de João é fruto de
uma longa elaboração, escrito num ambiente cultural e eclesial multifacetado. É
uma releitura da vida de Jesus escrita para o leitor contemporâneo, enfrentando a
dupla perseguição do império romano e dos “judeus”,86 que depois da guerra dos
anos 70 se fecharam em sua própria ortodoxia, exaltavam a “Torah”, como
manifestação última e definitiva da vontade de Deus. A “Torah” era chamada
vida, luz, sabedoria de Deus vinda ao meio dos homens. A eles, João opõe
drasticamente que Jesus de Nazaré é a verdadeira e última manifestação de
Deus.87
Com o objetivo de defender a cultura judaica na qual o mundo das idéias do
evangelista se move, Juan Mateus88 apela para a linguagem, que além de citações
explícitas do Antigo Testamento,89 está cheia de alusões a ele e a tradições
judaicas testemunhadas por documentos do tempo. O autor cita como exemplo, o
termo Lo,goj, (Logos) considerado como patrimônio comum da cultura helenística
e que no entanto recebe, neste Evangelho, a carga semântica já presente no Lo,goj
(Logos) da LXX. Sem deixar de reconhecer a diversidade de ideologias religiosas
e linguagens teológicas que reinavam na época, diz claramente, que elas foram
perdidas pela visão unilateral dominante do judaísmo farisaico.90
83 Cf.VIELHAUER, Fhilipp. Literatura Cristã Primitiva, pp. 439-477. 84 Cf. SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João, p. 39. 85 Cf. MATEOS, Juan & BARRETO, Juan. Vocabulário Teológico do Evangelho de João, pp. 6-7. 86 Cf. BROWN, Raymond E. A Comunidade do Discípulo Amado, p. 265. 87 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, pp. 109-123. 88 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, pp. 14-17. 89 Cf. KONINGS, Johan. O Evangelho Segundo João - Amor e fidelidade, pp. 23-24. “A referência ao Antigo Testamento nem sempre é direta, mas mediada pela leitura e pela homilia praticadas na comunidade judaica, na qual a comunidade Joanina tem suas raízes”. 90 “É preciso reconhecer que o quarto Evangelho não cita senão raras passagens do Antigo Testamento, mas as referências a temas vétero-testamentários são numerosas, em particular ao livro do êxodo”. Sobretudo DODD Charles A. sublinhou uma aproximação com o judaísmo rabínico em sua importante obra: A Interpretação do Quarto Evangelho. pp. 26-38.
34
Mas, quando se debruça nos estudos realizados nos últimos 50 anos, acerca
do mundo religioso e cultural do quarto Evangelho, nota-se uma contínua
mudança de acento. As opiniões se alternam: ora tem-se identificado o mundo no
qual foi escrito o Evangelho com o helenismo, ora com a gnose, ora com o
judaísmo. Sem dúvida, a influência da língua e do espírito gregos, à qual o
judaísmo se abriu na diáspora, influenciou a fé e a vida dos “judeus”. A vida e o
culto das comunidades judaicas atraíam a atenção do ambiente não judaico. A
reunião na Sinagoga, com a leitura da Escritura, com suas orações e salmos e
também com suas freqüentes pregações, afigurava-se a certos elementos não-
judeus, como reunião dos filósofos, em que se discutiam as questões mais
importantes da vida. Por isso, de vez em quando, havia em torno às Sinagogas,
grupos de pessoas simpatizantes à fé dos “judeus”. A fé judaica se distinguia por
sua venerável tradição e por sua origem misteriosa na história do povo de Israel.
Porém, pela necessidade da circuncisão, muitos se viam impedidos de se
converterem e de se tornarem prosélitos.91
Contudo, não só na diáspora, mas também na própria Palestina, há razões
suficientes para se constatar a marca da cultura helênica no judaísmo. Um
exemplo é a arquitetura do Templo, fortemente influenciada pelo helenismo, é um
tipo de símbolo exterior que revela uma impregnação muito mais profunda do que
a que se admitia, do judaísmo palestinense no tempo de Jesus, pelas idéias do
helenismo. Primeiramente, é possível descobrir no Evangelho de João, a
existência de grupos sectários, dentro do próprio judaísmo. As pesquisas sobre a
religião samaritana contribuíram para esclarecer o interesse pelos contatos entre o
sincretismo e o judaísmo heterodoxo.92 A descoberta dos textos de Qumran
confirma também a existência de grupos contrários ao judaísmo oficial da época.
A tendência sincretista da diáspora grega está presente na Palestina. Não obstante
a um grupo de “judeus” se fecharem em sua convicção de fé, a comunidade
Joanina manifesta que a fidelidade às tradições judaicas não excluía a abertura às
influências estrangeiras.93
91 Cf. LOHSE, Eduard. Contexto e Ambiente do Novo Testamento, pp. 49-134. 92 Cf. CULMANN, O. Le Milieu Johannique, pp. 50-78. 93 Cf. BROWN, Raymond E. A Comunidade do Discípulo Amado, pp. 68 -72
35
A terminologia dualista luz/trevas, verdade/mentira, vida/morte tem sua
origem no mito da redenção. Bultmann94 mostrou na sua publicação que atrás do
esquema fundamental da cristologia Joanina “Jesus é enviado por Deus, encontra-
se na unidade do Pai e, como tal, traz a revelação, se encontra o mito da redenção,
que se manifesta de modo mais claro nos textos mandeus”. É o mito da descida e
da subida de um revelador redentor, de sua ligação com os seus e de sua oposição
ao mundo. Estava comprovado que o mito da redenção era de origem pré-cristã”.
Constitui o elo de ligação, entre os escritos, até então considerados independentes
entre si - sapienciais, mandeus e maniqueus, herméticos, gnóstico-cristãos,
filônicos e judaicos - e foram situados na proximidade de espaço e tempo, também
do judaísmo palestinense e do cristianismo primitivo.95
A peculiaridade do Evangelho de João está, sem dúvida, em que o seu
escrito sugere diversas possibilidades de ambientação ao mesmo tempo. O erro é
privilegiar, enfatizar apenas uma com exclusão das outras. Dois motivos estão na
base do empenho de adaptação à sua época: primeiro porque o mundo espiritual
do tempo de João é um mundo96 caracterizado pelo surgimento de diversas
correntes religiosas, onde o Evangelho tomou forma. Em segundo lugar é
provável que o próprio João tenha tido a intenção de se dirigir a diversos
interlecutores. João tem o mérito de possuir uma abertura abrangente a muitas
culturas. Sua linguagem é compreensível a todos os que buscam a verdade, tanto
para os judeus, como para os gregos. Esta é uma das razões do fascínio pelo seu
Evangelho. Símbolos e vocábulos são abertos a múltiplas ressonâncias, não no
sentido de uma confusão, cada um se referindo ao seu ambiente e interpretado
conforme os seus próprios conceitos. Pelo contrário: cada um se sente envolvido
em sua mensagem, convidado a sair de sua própria idolatria, para abrir-se a Cristo.
João elabora a sua mensagem, utilizando termos e conceitos do ambiente pagão.
94 Citado por VIELHAUER, Philipp, História da Literatura Cristã, pp. 273-278. 95 Cf. CULMANN, O. Le Milieu Johannique, pp. 49-61. 96 Cf. COTHENET, E. Os Escritos de São João e a Epístola aos Hebreus, p. 67. “O quesito do cenário religioso do quarto Evangelho assumiu maior importância a partir do fim do século XIX, sob a influência da Escola de História Comparada das Religiões - Religionsgeschichtliche Schule. A questão foi por vezes reduzida à interrogação acerca do enraizamento helenístico ou judaico. Na verdade, o problema é muito mais complexo: a gnose, colocada à frente por inúmeros críticos, especialmente alemães, depende em grande parte de correntes iranianas. O Judaísmo, tradicionalmente dividido em judaísmo palestinense e Judaísmo helenista, manifesta-se cada vez mais diferente, antes da ruína do Templo, no ano 70 de nossa era. A penetração do helenismo na Palestina era muito mais efetiva do que se podia pensar, e o judaísmo alexandrino - do qual Fílon é o melhor representante - mantinha contato estreito com o judaísmo tradicional. Finalmente, ao lado da oposição entre fariseus e saduceus na Palestina, existiam numerosos grupos marginais: a publicação de textos de Qumran contribuiu de modo decisivo, para que pudéssemos entrever sua vitalidade”.
36
Entretanto, “é também a obra que contém a mais concisa e categórica afirmação
de que somente o Cristo é o caminho, a verdade e a vida”.97
Pelo fim do século I, a Síria e Ásia Menor são marcadas por um ambiente de
fermentação espiritual.98 Em face deste fenômeno, João assume duas atitudes
necessárias para o diálogo. Uma atitude de aceitação: é sensível aos problemas
espirituais que agitam os homens de seu tempo. João é também um contestador.
Sua modernidade não diminui em nada o dado da fé, antes o impulsiona a assumir
atitudes de crítica radical, em confronto com o mesmo mundo que, no entanto, ele
compreende. João confronta os espíritos gnósticos com dificuldade de aceitação
da “encarnação do Verbo”. A esses, João opõe a realidade da encarnação em todo
o seu paroxismo, o Logos se fez carne. Relata uma história real, a de Jesus de
Nazaré. 99
2.3. Autor, fontes, data e lugar da redação.
A questão da autoria do quarto Evangelho continua sendo de grande
interesse dos pesquisadores.100 É a questão mais antiga, erroneamente chamada de
autenticidade, ou seja, a pergunta se o autor é João, o filho de Zebedeu foi
considerada nos últimos dois séculos como sendo a “questão Joanina”, mas
remonta ao século II. Salvo exceções, os comentários e introduções ao quarto
Evangelho não deixam de visitá-la, mesmo que de modo breve e não
consensual.101
O Evangelho de João foi acolhido no cânon sob condição de que seria a obra
do filho de Zebedeu, portanto, de um apóstolo. O próprio livro não revela essa
pretensão em nenhuma linha nem nas entrelinhas.102 Tradicionalmente, a
97 Cf. CULMANN, O. Christologie du Nouveau Testament, pp. 62-68. 98 Cf. MAGGIONI, Bruno in FABRIS, Rinaldo, Os Evangelhos II, p. 264. 99 Cf. MAGGIONI, Bruno in FABRIS, Rinaldo, Os Evangelhos II, pp. 251-273. 100 Cf. SCHACKENBURG, Rudolf, El Evangelio Según San Juan I, pp. 104-103 e BROWN, Raymond E. A Comunidade do Discípulo Amado, pp. 31-31. 101 Cf. por exemplo os comentários de LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João I, pp. 18-19 e KONINGS Johan. Evangelho segundo João - Amor e Fidelidade, pp. 29-23. Konings chama a atenção para a necessária distinção entre autor e escriba, bem como para a importância do patronato ilustre no processo de aceitação canônica de uma obra cristã primitiva. 102 Cf. NICCACI, Alviero & BATTAGLIA, Oscar. Comentário ao Evangelho de João, p. 15. Estes autores discordam desta posição e dizem que o Evangelho de João é o “único que menciona, embora veladamente, seu autor”. Declara-se testemunha ocular dos fatos, por conseguinte garante suas afirmações (Jo 9,35; Jo 21,24). Sabemos igualmente que ele era o “discípulo que Jesus amava” (Jo 21,20-24), portanto, um dos “apóstolos mais achegados de Jesus”.
37
fidelidade do quarto Evangelho à memória de Jesus foi definida principalmente
com relação a sua pretensa autoria apostólica escrito por João, Filho de Zebedeu,
que teria sido também o autor das três Epístolas e do Apocalipse. Não por outro
motivo este Evangelho ficou sendo conhecido bem cedo na tradição cristã como o
Evangelho segundo João, embora não traga qualquer evidência interna que
confirme tal identificação e, por outro lado, não haja notícias de que essa
atribuição tenha ocorrido antes do final do século II. Irineu a defende com
veemência no século II, pois já era contestada pelos eclesiásticos. Diziam que a
tese da autoria “apostólica” era dúbia e de data recente. Mesmo assim a tese se
impôs e não foi mais contestada desde os meados do século III até o século XVIII
para o XIX.
A importância da questão da autoria advém das luzes que lança sobre a
história da recepção do quarto Evangelho. Ela, a história, pode ser arrolada como
testemunha no processo de “autorização” pelo qual o texto passou para ser
acolhido no cânon apostólico.103 E esse processo, por sua vez, ajuda a esclarecer o
perfil daquele que pode ter sido o contexto eclesial de origem da literatura
Joanina, particularmente, quando se unem as evidências internas que apontam ou
esclarecem tais relações.
Schawartz104 seguido por Wellhausen J. E. nos anos de 1903/1904 colocam
a hipótese segundo a qual João teria sido martirizado muito cedo, relacionada ao
texto de Mc 10,39,105 interpretando o martírio como uma profecia ex eventu.
Contra esta afirmação está o fato de que os Atos dos Apóstolos, nos quais João
ocupa um posto considerável, ao mesmo tempo, que narram explicitamente a
morte de Tiago, nada dizem da de João. Os textos: At 13,13 e Jo 21,20-23 dizem
que João deveria morrer bastante tarde. Parece que os dados mais seguros que
possuímos são decididamente pela tradição segundo a qual João viveu uma longa
vida.106
Quando nos séculos XVIII-XIX a pesquisa começou a explorar os
Evangelhos criticamente como fonte para a reconstrução da vida de Jesus, a
diferença entre o Evangelho de João e os Sinóticos levantou a pergunta sobre qual
103 Cf. VIELHAUER, Fhilipp. História da Literatura Cristã Primitiva, pp. 471-473. 104 Citado por BALLARINI, Teodorico. Introdução à Bíblia, p. 304. 105 Cf. (Mc 10,39) “Do cálice que eu beber, vós bebereis, e com o batismo que eu for batizado, sereis batizados”. 106 Cf. VIELHAUER, Philipp. História da Literatura Cristã Primitiva, pp. 441-444.
38
deles teria o maior valor como fonte.107 João e Mateus foram considerados
testemunhas oculares autênticos. Mas a fascinação irradiada por João lhe garantiu
uma preponderância sobre Mateus e sobre a superioridade numérica dos Sinóticos,
tornando incompreensível a paixão com que se defendeu a autoria do filho de
Zebedeu quando esta era contestada. Todo este esforço ofereceu uma alternativa
positiva à “questão da autenticidade” e encaminhou uma pesquisa histórica
também do quarto Evangelho, resultando num trabalho supérfluo por deixar-se
arrastar pelos defensores da tradição. A vitória da teoria das duas fontes,
sobretudo o reconhecimento da prioridade de Marcos, possibilitou uma pesquisa
histórica do Evangelho de João. Quem hoje acha que deva prevalecer a autoria do
filho de Zebedeu, faz isso sem a paixão de outrora e na forma essencialmente
discreta de que João teria preservado na memória algumas lembranças mais
confiáveis do que os Sinóticos, para que, no entanto, não se precisa recorrer ao
filho de Zebedeu. Para isso basta um método histórico claro.
Segundo Ballarini, no século XIX a negação da autenticidade Joanina se vai
estendendo: recorda-se Strauss, que reduz o Evangelho a uma coleção de mitos, e
a escola de Tubinga que o reduz a um escrito com a intenção de compor
divergências e tendências da Igreja primitiva.108 Desde o século passado a posição
negativa torna-se moda: não faltam é verdade autores como F. B. Westcott, Th.
Zahn, W. Lutgert e mais recentemente F. Buchesel, W. Michaelis, E. Stauffer, H.
Strathmann e H. P. Vnunn, que defendem substancialmente a tese tradicional, mas
para a grande maioria o filho de Zebedeu não é o autor do quarto Evangelho,
assim: A. Von Harnack e nos nossos dias R. Bultmann, C. A. Dodd , C. C.
Barrett. Estes autores estão de acordo na tese geral a fim de que se chegue a um
consenso posterior, contudo, sustentam as mais diversas posições: João teria sido
martirizado com o irmão Tiago, teria sido um judeu alexandrino, H. Bernard e
Barrett consideram autor do Evangelho um discípulo do apóstolo.109
Irineu de Lion afirmava ser João o apóstolo, filho de Zebedeu. Papias, bispo
de Hierápolis, na Frígia, teria afirmado: “João o teólogo, e Tiago, foram mortos
pelos Judeus”. No martirológio de Cartago encontra-se o seguinte testemunho:
“memória de João Batista e do Tiago apóstolo, que Herodes mandou matar”. Uma
107 Cf. VIELHAUER, Philipp. História da Literatura Cristã Primitiva, p. 43. 108 Cf. BALLARINI, Teodorico. Introdução à Bíblia, pp. 202-203. 109 “Um personagem que muitos autores o consideram como autor do quarto Evangelho é João o presbítero de quem parece falar Papias”. Cf. BALLARINI, Teodorico. Introdução à Bíblia, p. 304.
39
confusão estaria, pois, na base do martirológio entre João o ancião de Éfeso, que
na época já estava morto, e João o apóstolo.110 Concluindo: a luta contra a posição
tradicional da autenticidade do autor do Evangelho de João, estagnou num ponto
sem solução.
Se a revolução nos estudos Joaninos começou com o questionamento de
sua autoria pelo apóstolo João, seu rumo definitivo foi marcado pela constatação
cada vez mais inequívoca de marcas redacionais, testemunhas de uma composição
em diversas etapas. Esta descoberta rompeu definitivamente com o consenso
anterior sobre um autor único, apóstolo ou não, a compor sua obra de uma só
vez.111 Pela primeira vez considerou-se a possibilidade de que este Evangelho
poderia ser produto do trabalho de vários redatores, ligados entre si através de elos
que a pesquisa se ocupou em cogitar minuciosamente.
Entre as várias evidências que demonstram o caráter compósito da redação,
convém mencionar as aporias, fissuras ou emendas redacionais pouco elaboradas,
que deixam entrever a junção de textos independentes para formar um só, ou
ainda textos inacabados. Há relatos sem final (Jo 3,2); fragmentos aparentemente
autônomos (Jo 3,31-36 e Jo 12,44-50); interrupções e acréscimos (Jo 3,22-30) em
relação a (Jo 3,1-21 e Jo 3,31-36), às vezes com o objetivo aparente de explicitar o
conteúdo da passagem anterior (Jo 10,1-21) em relação a Jo 9,1-41 e Jo 10,19-21,
inconsistências narrativas (Jo 3,2) menciona os muitos sinais produzidos por
Jesus, enquanto apenas um sinal fora mencionado até então; inconstância do
marco cronológico). Outras evidências são as glosas (Jo 4,1; Jo 11,2; Jo 17,3) e a
repetição de temas (Jo 13,31; Jo 14,3;Jo 16,11-33).112
A marca redacional mais evidente é o acréscimo do capítulo 21, logo após a
conclusão original, em Jo 20,30-31. Além de introduzir um relato completamente
original redigido no estilo marcano (com tríplice afirmação do mesmo tema), dá
ao Evangelho uma nova introdução, mais ampla do que a primeira, na qual faz
questão de ressaltar o protagonismo do discípulo amado na composição do livro,
detalhe completamente estranho aos capítulos Jo 1-20.113
110 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Nem Aqui, nem em Jerusalém, p. 23. 111 Cf. BRODIE Thomas L. The Quest for the origin of John’s Gospel: a Source-oriented Approach, pp. 10-12. Este autor defendeu recentemente a tese da redação única. 112 Cf. TUÑI, José-Oriol. Escritos Joaninos e Cartas Católicas, pp. 22-26. Uma exposição sucinta das marcas redacionais no conjunto do quarto Evangelho encontra-se nesta obra. 113 Cf. TUÑI, José-O riol. Escritos Joaninos e Cartas Católicas, p. 25.
40
Desde o século XIX, a busca das fontes tomou lugar considerável nas
pesquisas. Quanto aos Sinóticos, chegou-se à hipótese - muitas vezes estabelecida
como certeza - de que eles teriam haurido num mesmo reservatório comum, ou
seja, nas Palavras do Senhor a Quelle, fonte dos Logia. Mas o quarto Evangelho é
muito mais difícil: João fez um percurso, na maioria das vezes, solitário. O autor
tem uma forte personalidade literária e teológica que é impossível equipará-lo aos
outros evangelistas. Nenhum escrito da Igreja primitiva pode ser-lhe comparado.
Se o Evangelho utilizou-se de fontes, deve-se reconstituí-las a partir de sua
obra.114 As dificuldades não encontram uma solução adequada. É difícil expor,
sem simplificações indevidas, uma questão que foi discutida em todos os sentidos,
sem, no entanto, levar a um consenso crítico.
Apresenta-se aqui, por causa da influência115 que exerceu o seu comentário,
a hipótese de Bultmann.116 Este autor discerne no quarto Evangelho três fontes
principais:
1 - Discursos de revelação - de origem gnóstica, mas aplicados a Jesus, tem seu
início no prólogo, em estilo poético e se encontram espalhados em todo o escrito.
Observam-se de modo particular as numerosas declarações em (e,gw eivmi). Esta
fonte desenvolveu sua própria pregação. Mas, na maioria das vezes, através de um
artifício literário, texto e pregação são colocados nos lábios de Jesus.
2 - Os relatos dos milagres - partes narrativas dos capítulos Jo 1º-12 teriam sido
de uma “coleção de sinais” - Semeiaquelle - que teria o seu término na conclusão
Jo 20,30-31. É desta fonte que o evangelista terá tirado a maior parte de seus
elementos narrativos.
3 - Constitui a terceira fonte o relato da paixão de Cristo e as aparições do
ressuscitado. Apesar de sua aproximação com os Sinóticos, Bultmann sustenta
sua originalidade.117
114 Cf. CULMANN, O. Le Milieu Johannique, pp.17-20. 115 Cf. MOINVILLE, Odete, Escritos e Ambiente do Novo Testamento, pp. 244 -249. O debate sobre as fontes, por parte dos estudiosos ainda está longe de terminar. A maioria reconhece hoje que mesmo que tenha existido a “fonte dos sinais” não se pode precisar sua extensão e o conteúdo sem cair no indemonstrável. Esta autora dá preferência ao modelo proposto por Brown, por ser o mais simples e explicar os principais elementos do problema. 116 Cf. BULTMANN, R. The Gospel of John, pp. 234 –256. 117 Citado por COTHENET, E. O Evangelho de João e a Epístola aos Hebreus, pp. 44-48. “Convém analisar de perto suas posições. Após afastar alguns retoques atribuídos ao ‘redator eclesiástico’ por exemplo, a menção da água Jo 3,5, os textos sobre a escatologia tradicional em Jo 5,28 ou sobre os sacramentos, como em Jo 6,52-58; Jo 19,34b-35. Bultmann distingue três fontes no quarto Evangelho.”
41
Entre os ensaios recentes destaca-se também o de Fortna que reconstitui o
texto grego do Evangelho dos “Sinais”. Este autor toma por base as perícopes que
se referem explicitamente aos shmei/a (sinais). A estas ele acrescenta narrativas
correlatas. Em seguida, conclui que a compilação dos sete sinais era precedida de
introdução geral e acompanhada do relato da paixão. Para obter um plano lógico
não hesita em fazer as mais extravagantes transposições. As hipóteses
apresentadas por estes dois autores nos levam a perceber que ainda se está longe
de chegar a um consenso comum, em relação às fontes, utilizadas pelo
evangelista.118
M. E. Boismard e A. Lamouile propõem a tese de uma provável escola
Joanina,119 posição que eles mesmos abandonam a posteriori. Para estes autores, o
Evangelho é fruto de diferentes estágios redacionais: o primeiro núcleo redacional
teria sido escrito na Samaria ou num meio de estilo samaritano, na Palestina,
constituindo-se numa fonte utilizada por Marcos e Lucas, que eles chamam de
Documento C. A segunda etapa corresponde à retomada deste material redacional
(Documento C) por um segundo redator, igualmente na Palestina, que acrescenta e
amplia a redação anterior (Jo II-A); a terceira etapa corresponde a uma influência
de outro ambiente. O mesmo redator de Jo II-A teria levado esta primeira redação,
da Palestina para um ambiente da Ásia Menor (Éfeso?), o que faz com que a
redação apresente material referente aos conflitos entre “judeus” e cristãos,
sofrimentos semelhantes aos experienciados por Paulo. Essa redação seria a de Jo
II-B, que junta material dos Sinóticos e acrescenta os discursos. E um terceiro
redator, numa quarta fase, faz retoques gerais, inverte a ordem de alguns textos
(por exemplo, o capítulo 5° com o 6º) e se esforça para atenuar os traços anti-
semíticos do segundo redator.120
A pesquisa sobre a data da composição do Evangelho também não atingiu
um consenso comum, mas um melhor resultado nos últimos 150 anos.121 Não
obstante ainda haja divergências entre os autores, deve-se levar em conta, a fim de
118 Cf. COTHENET, E. O Evangelho de João e a Epístola aos Hebreus, p. 45. 119 Citado por MAZZAROLO, Isidoro. Nem Aqui, nem em Jerusalém, p.18. “Os autores afirmam que se trata de um trabalho redigido dentro de uma escola, mas no momento que eles desenvolvem esta tese, afirmam que os redatores são distintos e não necessariamente tenham as características da escola. Mais recentemente, M. E. Boismard esforçou-se para demonstrar que a morte do Apóstolo João ocorrida nos anos 44-46, faria com que seu Evangelho tivesse pintura de outro redator, muito distinto, sendo, na opinião dele, o próprio Lucas”. 120 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Nem Aqui, nem em Jerusalém, p.19. 121 Cf. CARSON, D. A. Introdução ao Novo Testamento, pp. 190-201.
42
situar a data em que o Evangelho foi escrito, a importância da descoberta do
papiro mais antigo do Novo Testamento: é o de Ryland com a sigla P52, pois foi
escrito pelo ano 130, logo após decênios da composição do Evangelho de João, do
qual contém algumas poucas palavras do capítulo de Jo 18,31-33.37-38. A
descoberta deste papiro arrasou teorias acerca da origem e redação final deste
Evangelho que não poucos críticos diziam terminado só depois da segunda metade
do século II, por exemplo pelo ano 170. Atualmente, quase não há mais críticos
que localizem o Evangelho após o fim do primeiro século. Em conseqüência da
publicação do P52, mesmo Bultmann122 está convencido que o Evangelho de João
deve ter sido conhecido no Egito pelo ano 100.
Outras publicações vieram enriquecer os recursos adotados pelos
pesquisadores. Trata-se de dois papiros, ambos códices, que surgem no final do
século II: P66 Bodmer II abrange a maior parte de Jo 1º-14 e partes dos outros
capítulos. Tem o formato de um livro e supera em extensão o de Ryland,
atingindo dois terços de todo o Evangelho; P75 contém a maior parte de Lucas,
seguida de Jo 1º-11 e partes dos capítulos Jo 12-15. Do início do século III
procede P45, que contém partes de todos os quatro Evangelhos mais Atos, embora
devido à condição mutilada do manuscrito, nenhum livro esteja completo.123
A hipótese que aproxima a composição ao ano 100 tem por base tanto a
ligação do quarto Evangelho com o início da produção evangélica, quanto ao seu
fundo histórico e a sua situação no âmbito da história cristão-primitiva.124
O Evangelho teria sido escrito na área do mediterrâneo oriental, a saber, na
Síria ou na Ásia Menor. Contudo, também no que diz respeito ao lugar da
composição os estudiosos divergem. Boismard atribui as duas etapas essenciais,
João II-A e João II-B, uma na Palestina, outra em Éfeso.125
Segundo Ballarini referindo-se a Irineu, João teria ditado seu Evangelho em
Éfeso. Em contraste com este testemunho, uma nota de Éfren ao Diatessaron de
Taciano, parece atestar que o Evangelho foi escrito em Antioquia. Nada, porém,
pode afirmar-se com absoluta certeza.
122 Citado por KIPPER, Balduíno. Um Novo Papiro do Evangelho de São João: Papyrus Bodmer II - c. 200 d. Cr... in: Revista de Cultura Bíblica, pp.114-118. Ver também MAZZAROLO, Isidoro. Nem Aqui, nem em Jerusalém, p. 20. 123 Cf. KIPPER, Balduíno. Um Novo Papiro do Evangelho de São João: Papyrus Bodmer II - c. 200 d. Cr... in: Revista de Cultura Bíblica, p. 116. 124 Cf. SCHREINER, J. Forma e Exigências do Novo testamento, pp. 361-366 125 Cf. COTHENET, E. O Evangelho de João e as Epístolas aos Hebreus, pp. 361-365.
43
2.4.
Estrutura do livro
No que diz respeito à estrutura do Evangelho de João, os autores apresentam
diversas modalidades. Cada um possui a sua verdade relativa: porém nem todos
levam à mesma compreensão do texto. Os antigos comentadores, realçavam as
indicações de tempo e lugar. Através deste método, colocava-se em evidência um
traço característico de João: é o único que permite avaliar a verdadeira duração do
ministério de Jesus.126
De um modo mais preciso Mollat, em 1976,127 mostrou a importância das
festas que dão ritmo ao desenvolvimento do Evangelho. Por este sistema pode-se
colocar um plano na base de “setenário de festas”, quando não de semanas. A
partir daí é bem provável, que João tenha usado o simbolismo do número sete,
com a intenção de dizer que na vida e no ministério de Jesus realizavam-se a
perfeição e a plenitude messiânicas. Neste sentido, uma intenção simbólica viria
ao encontro de suas preferências.128
Menciona-se o modelo de estrutura adotado por Raymond Eward Brown129
em 1966. Este autor critica as divisões de autores anteriores, porque segundo ele,
são substancialmente artificiais.
Porém, em grande parte, aceita, a divisão de Henri van den Bussche.130 Ele
procura no próprio Evangelho de João critérios de divisão interna objetivos e
126 Cf. BLANK, Josef. El Evangelio Según Juan, pp. 38-45. 127 Cf. MOLLAT, D. l’Évangile de Saint Jean, pp. 36. 128 Cf. MAZZAROLO, Isidoro, Nem Aqui, nem em Jerusalém, pp. 36. 129 Cf. BROWN, Raymond E. The Gospel according to John, pp. 390-394. 130 Cf. BUSSCHE, H. van den, La Structure de Jean I-XII, in: VV. AA., l’Évangile de Jean, pp. 108-109. Prólogo do Evangelho inteiro: Jo1,1-18. Introdução à primeira parte: do Batista a Jesus: Jo 1,19-51 A vida pública: revelação inaugural da glória Jo 2,11;4,54; 12,28: capítulos 2-12.
1) Seção dos sinais (de Caná a Cana): capítulos 2-4. a) Sinal de Caná Jo 2,1-12 e sinal do Templo Jo 2,13-22. b) Intermezzo: a fé como resposta à revelação Jo 2,23-2. c) Diversos tipos de pessoas diante da fé (Nicodemos, a samaritana, um pagão):
capítulos Jo 3,1-4,54. 2) Seção das obras: capítulos 5-10.
a) Duas cenas de revelação: cura do paralítico, com discurso - capítulo 5 e multiplicação dos pães, com discurso - capítulo 6.
N. B.: cada cena começa com “depois disso”. b) Reação da incredulidade do povo “judeu” capítulos 7-10. N. B.: Também esta parte começa com “depois disso”. c) Inclusão semítica sobre o tema das obras Jo 10,32-39. d) Inclusão semítica sobre tudo o que precede Jo 10,40-42.
3) A subida a Jerusalém: capítulos 11-12.
44
capazes de explicar a fluência do escrito. Baseando-se nestes critérios, ele
distingue:
O prólogo (Jo 1,1-18): servindo de abertura ao Evangelho.
O livro dos sinais (Jo 1,19-12,50): a história de Jesus que se revela a Si
mesmo e o Pai para o povo, mediante sinais, e é recusado. Entre o fim do capítulo
12 e o início do capítulo 13 existe claramente um hiato (Jo 12,34-43). Este é um
sumário que resume o ministério público e a reação do povo. Jo 12,44-50 são as
últimas Palavras de Jesus dirigidas ao povo em geral. Jo 13,1-13 se constitui em
um enfático novo início. Acresce ainda que até o capítulo 12 Jesus se dirige ao
povo e a partir do capítulo 13 se dirige aos seus.
O livro da glorificação (Jo 13,1-20,31): no livro precedente, o termo mais
marcante era sinal. Nesta segunda parte do Evangelho, ao invés, ele está ausente.
Em compensação vão aparecer com freqüência as expressões “volta ao Pai” e
“glorificação”. Por isso, Brown chama esta parte de glorificação.
Por fim, o epílogo: (Jo 21,1-25).131
Um dos esquemas que mais contribuíram para perceber o dinamismo
interno do Evangelho foi a proposta feita por Dodd 1968,132 que realça a
importância estrutural de Jo 13,1-2: “Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que
chegara sua hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que
estavam no mundo, amou-os até o fim”. Depois do capítulo 12, que vale como
conclusão (Jo 12,13-50), o capítulo 13, pela sua grandiosidade, apresenta
semelhança com o prólogo. A divisão em duas grandes partes se impõe: o Livro
dos Sinais e o Livro da Paixão. Observa-se como o relato de diversos sinais tem
seu ápice num longo discurso: a unidade da ação e da Palavra caracteriza assim
esta primeira parte. Por outro lado, o título “Livro da Paixão” não é feliz; convém
dizer Livro da Hora segundo Jo 13,1 ou Livro da Glória.
Portanto, para Charles H. Dodd, o Evangelho de João se divide com
naturalidade no fim do capítulo 12. Esta divisão corresponde à que encontramos
em todos os Evangelhos antes do relato da Paixão. Mas em João ela se destaca por
sua visibilidade. A unidade do Evangelho não é, porém, apenas uma unidade de
estrutura; é também uma unidade temática. Os grandes temas da luz e da vida do
testemunho, do Juízo, da glória, e assim por diante, atravessam o livro.
131 Cf. MAGGIONI, Bruno in: FABRIS, Rinaldo. Os Evangelhos II, pp. 256-259. 132 Cf. DODD, Charles. A. A Interpretação do Quarto Evangelho, pp. 385-387.
45
A transição da primeira parte, em Jo 13,1, é teologicamente carregada.
Marcando a passagem deste mundo para o Pai, constitui o ponto central
semelhante a uma dobradiça que une, mediante o tema da “hora”, a primeira parte
do Evangelho à segunda.133
Fundamentada nestas informações, pode-se distinguir as grandes partes
seguintes:
Prólogo: (Jo 1,1-18).
I Parte: O Livro dos Sinais (Jo 1,19-12).
O anúncio da vida: (Jo 1,19-6).
Defesa da vida e crescentes ameaças de morte: (Jo 7-12).
II Parte: O Livro da Hora (Jo 13-20).
O testemunho de Jesus, última ceia e discurso de despedida: (Jo 13-17).
A hora da glorificação na cruz: (Jo 18-19).
O dia do Senhor: (Jo 20).
Epílogo: (Jo 21) - diretrizes do Ressuscitado à sua Igreja.
Pode-se afirmar que os autores estão de acordo em dividir o Evangelho em
duas partes. Deste modo três textos se tornam imediatamente importantes para
definir a estrutura: o prólogo (Jo 1,1-18), a transição entre a primeira e a segunda
parte (Jo 12,37-50) e a conclusão (Jo 20,30-31). A estrutura possui um fio
condutor. O Evangelho é conduzido de modo a deixar aparecer a progressiva auto-
revelação e daí a progressiva manifestação da fé e da incredulidade. Por isso o
quarto Evangelho tem um caráter dinâmico e dramático. Cada episódio contém
uma revelação de Jesus que obriga a tomar uma posição: ou a fé ou a
incredulidade.134
133 Cf. KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João - Amor e Fidelidade, pp. 16-21. “A unidade e progressividade na narrativa produz um clímax dramático, que aproxima o quarto Evangelho do gênero literário dramatúrgico (teatro) contendo duas grandes partes, emolduradas pelo prólogo e epílogo”. 134 Cf. MAGGIONI, Bruno in: FABRIS, Rinaldo. Os Evangelhos II, p. 259.
46
Estrutura do capítulo 9°:135
I - O sinal: (Jo 9,1-7).
II - A reação dos vizinhos: (Jo 9,8-12).
III - Primeira inquisição das autoridades: (Jo 9,13-17).
IV - Segunda inquisição das autoridades: (Jo 9,18-23).
V - Terceira inquisição das autoridades: (Jo 9,24-34).
VI - Visão do cego: (Jo 9,35-38).
VII - Os cegos que não querem ver: (Jo 9,39-41).
2.5. A cegueira no ambiente religioso-sócio-cultural da Palestina
O cego de nascença no Evangelho de João, não tem nome. Na concepção
dos antigos o nome significa a essência da pessoa: aquele que não tem nome, não
existe, ou seja, não tem a vida (Eclo 6,10).136 Um homem sem nome é um homem
insignificante.137 O nome tem o significado maior, do que um simples rótulo que
distingue uma pessoa da outra. Tem uma misteriosa identidade com o seu
portador; pode ser considerado um substituto da pessoa.
É comumente significativo, não apenas distingue a pessoa, mas revela algo
do caráter daquele a quem pertence. Chamar pelo nome era ter fama e reputação.
Ao contrário, quando o nome de alguém é destruído este fato era sinal de
desonra.138 Mas no quarto Evangelho, o homem no qual Jesus fixou o olhar não
tem nome, é apresentado como tuflo.n evk geneth/j, (cego de nascença) pelo
evangelista e prosai,thj (mendigo) pelos vizinhos.139
Também Bartimeu é apresentado como: tuflo.n kai. prosai,thj (cego e
mendigo). Provavelmente, ele é a figura simbólica da cegueira, na qual estavam
envolvidos os fariseus, mas também os discípulos.140 No aspecto social ele é o
135 Cf. KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João - Amor e fidelidade, pp. 197-203. 136 Cf. VAUX, Roland de. Les Institutions de L’ancien Testament, p. 224. 137 Cf. BORN, A. Van Den. Dicionário Enciclopédico da Bíblia, pp. 1046-1048. 138 Cf. McKENZIE, L. John. Dicionário Bíblico, pp. 658-660. 139 Cf. Mc 8,26: “Estava sentado à beira do caminho, mendigando, o cego Bartimeu, filho de Timeu”. 140 Cf.Mc 8,22-26: “A cura do cego em dois tempos é um símbolo do que acontece com os que O seguem pelo caminho. Como progressiva foi a cura de Betsaida, assim, também foi a fé dos discípulos. Eles acompanham Jesus e vêem tudo o que ele faz, mas ainda não percebem que Jesus é o Messias.”
47
representante de todos os excluídos da sociedade, que sobrevivem com as
esmolas dos que passam pelo caminho.141
A cegueira era bastante comum no Oriente Médio. Muitas crianças já
nasciam cegas (Jo 9,1). Esta doença fazia aumentar o número de mendigos.142
Estando sem condições para trabalhar, restava-lhes pedir esmolas. Tal era a
condição do cego de nascença.143
A cegueira na sociedade de Israel era considerada um castigo divino, porque
impedia o estudo da Lei - “Torah”. Ao ver um cego, a bênção pronunciada era:
“Bendito seja o juiz verdadeiro!”, dando a entender que a cegueira era um
julgamento justo de Deus contra os pecados de seus pais, que se revelavam nos
filhos. Era proibida a entrada de um cego na comunidade de Qumran. Ser cego
implicava ser incapaz e ter um defeito cúltico, pois os cegos não podiam atuar
como sacerdotes (Lv 21,18).144
A incapacidade na qual se encontravam os cegos é confirmada no Antigo
Testamento: “Ficarás tateando ao meio-dia, como o cego que tateia na
escuridão...” (Dt 28,29); “Como cegos que andam a apalpar um muro, sim, como
os que não tem olhos, anda-se às apalpadelas, tropeça-se ao meio-dia como se
fosse no crepúsculo...” (Is 59,10); “Erra-se como cegos pelas ruas...”
Fazendo parte dos mais fracos e necessitados entre o povo, os cegos
estavam sob a proteção da Legislação Mosaica, que continha artigos muito
humanitários a favor deles: Não amaldiçoarás o mudo e não porás obstáculo
diante de um cego; mas temerás o teu Deus. “Eu sou Iahweh” (Lv 19,14).
Uma das maldições que o povo deveria proferir no monte Ebal, era:
“Maldito seja aquele que extravia um cego no caminho! E todo o povo dirá:
Amém!” (Dt 27,18). Os piedosos e justos ajudavam os cegos. Assim, defendendo
a vida que até então levara, Jó lembra aos seus amigos que cuidara dos pobres
desvalidos e servira de olhos aos cegos (Jó 29,15).145
No Novo Testamento, a cegueira também é empregada metaforicamente.
Jesus chama os fariseus de “guias cegos” que conduzem outros cegos (Mt 15,14) e
141 Cf. Mc 8,22; Mc 10,46; Jo 9,1. 142 Cf. Mt 9,27; Mt 12,22; Mt 20,30; Mt 21,14. 143 Cf. McKENZIE, John L. “Cegueira”, Dicionário Bíblico, pp. 158-159. 144 Cf. COENEN, Lothar & BROWN, Colin. “Cegueira”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p. 136. 145 Cf. COENEN, Lothar & BROWN, Colin. “Vida”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p. 396.
48
(Lc 6,39). Paulo menciona que os “judeus”, formados na lei, consideravam-se
guia dos cegos, em relação aos pagãos que não conheciam a lei. Achavam que
somente eles poderiam trazer luz e oferecer a verdade aos cegos pagãos (Rm
2,18.19). Jesus não mostrou simpatia pela cegueira dos fariseus. Pelo contrário
condenou-os, pois a cegueira os impedia de acolher os sinais de salvação
realizados por Jesus, luz do mundo. Por isso, permanecem em sua cegueira (Jo
9,41).
Nos Sinóticos Jesus declara abertamente a chegada do Reino, com o
cumprimento da profecia de Isaías e responde aos discípulos de João: “Ide contar
a João o que estais vendo: os cegos recuperam a vista, os coxos andam, os
leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são
evangelizados” (Mt 11,4-5).146
Jesus curou a cegueira em três ocasiões: em Betsaida (Mt 9,27ss; Mc
18,22ss), em Jericó (Mt 20,30ss; Mc 10,46ss; Lc 18,35ss) e o cego de nascença de
Jerusalém (Jo 9,1ss). Jesus menciona a cura da cegueira como um dos sinais de
sua missão messiânica (Mc11,5; Lc 7,22).
Estando entre os mais carentes da sociedade, o cego de nascença sobrevivia
da bondade das esmolas, de todos os que entravam e saíam do Templo. Não tinha
outra escolha e nenhuma perspectiva de sair de tal situação. Por ser cego de
nascença, ele não sabia o que era a luz, ter a vida. O olhar atencioso de Jesus (Jo
9,1), seguido da transformação realizada pela cura e do encontro com Jesus, no
entanto, acabaria por tirá-lo da condição de cego e mendigo, devolvendo-lhe a
identidade, a dignidade da vida (Jo 9,9).147
A partir da tentativa de uma aproximação do quarto Evangelho como um
todo, em que se procurou dar passos no esclarecimento e compreensão de algumas
questões relevantes, efetua-se de modo aberto, sem a pretensão de ser completa a
análise de Jo 9,1-12. O estudo da perícope permitirá situá-la no “livro dos sinais”,
bem como, visualizar as nuances literárias, com uma proposta de delimitação e
estrutura formal do texto.
146 Cf. HOUTART, François. Religião e Modo de Produção Capitalista, pp. 184-192. 147 Cf. Jo 9,9: “Ele, porém dizia: ‘Sou eu’ ”.
3 Análise do texto
Depois de ter feito este caminho com o objetivo de esclarecer algumas
questões na globalidade do Evangelho, situando a “cegueira” no ambiente
religioso-sócio-cultural da Palestina, passa-se a uma possível reconstituição do
texto original através da crítica textual. Em seguida procurar-se-á situar a perícope
em estudo Jo 9,1-12 no interior do “livro dos sinais”. Examinar-se-á também as
características lingüístico-sintáticas, bem como, procurar-se-á delimitar, efetuar e
justificar sua segmentação, seguida de uma análise do tipo de texto a que pertence
a perícope em questão, ou seja, o gênero literário de Jo 9,1-12. Finalmente far-se-á
a crítica da tradição.
3.1. Tradução e crítica textual 148
1 Kai. para,gwn ei=den a;nqrwpon
tuflo.n evk geneth/jÅa
1 E passando viu um homem cego de
nascença.
aDepois de tuflo.n evk geneth/j (cego de nascença) encontra-se no
manuscrito D, a inclusão kaqhmenon (sentado). Esta inclusão do copista, foi
intencional a fim de explicitar o modo como os cegos se colocavam sentados em
diversos lugares. Por razões de segurança os cegos ficam sentados.
2 kai. hvrw,thsan auvto.n oi` maqhtai
auvtou/ le,gontej\b rabbi,( ti,j h[marten( ou-
h' oi gonei/j auvtou/( i[na tuflo.j gennhqh/|È
2 E perguntaram-lhe os discípulos dele
dizendo: “Rabi”, quem pecou, ele ou os
pais dele para que nascesse cego?
148 Seguimos o aparato crítico de Nestle-Aland.
50
bO manuscrito D apresenta a omissão das palavras auvtou/ levgontej (dele
dizendo). A omissão poderia pressupor que eram os discípulos dele e não de
outros. Contudo torna-se irrelevante.
3 avpekri,qh VIhsou/j\ ou;te ou-toj h[marten
ou;te oi gonei/j auvtou/( avllV i[na
fanerwqh/| ta. e;rga tou/ qeou/ evn auvtw/|
3 Respondeu Jesus: “nem ele pecou, nem
os pais dele, mas a fim de que se
manifestassem, nele as obras de Deus.
4 h`ma/jc dei/ evrga,zesqai ta. e;rga
tou/ pe,myanto,j med e[wje h`me,ra evsti,n\
e;rcetai nu.x o[te ouvdei.j du,natai
evrga,zesqaiÅ
4 A nós é necessário realizar as obras
daquele que me enviou enquanto é dia,
vem a noite quando ninguém pode
trabalhar.
cDepois de hvma/j, (nós), os códices149 o substituem por eme, (eu).......
Pode-se considerar o termo “nós” referindo-se ao intuito de inclusão dos
discípulos na missão de Jesus, como leitura mais difícil... pois logo adiante o
relato retoma a linguagem, na primeira pessoa do singular. Poder-se-ia afirmar
que copistas, por influência da linguagem, alterada no texto, tivessem sido
induzidos a propor a substituição. Há um número um pouco maior de testemunhas
a seu favor, encontra-se representada em todos os tipos de textos, mas tem uma
menor quantidade do tipo de textos Alexandrino, o mais importante.
Contrapondo-se aos quatro testemunhos que se colocam a favor do texto
original.
Em relação aos critérios de evidência interna, a maioria deles é de difícil
aplicação. É possível, que a intenção de Jesus tenha sido a de incluir os discípulos
como continuadores de sua missão. Considerando-se esta questão, como também,
a avaliação dos critérios de evidência externa e interna, somos da opinião, de que
o texto sem a substituição tem maior probalidade de aproximação do texto
original. dSubstituição simples do pronome me, para o pronome hvma/j, testemunhada
pelos manuscritos:150 Esta leitura conta com um número relativamente baixo de
149 a
1 A C QΨ f1.13 33 M lat sy ac2 bomss
150 P66.75 a* L W pc pbo bo
51
manuscritos, em relação à quantidade de testemunhos.151 É provável que esses
códices buscassem harmonizar com o primeiro pronome hvma/j.
5 o[tan evn tw/| ko,smw| w=( fw/j eivmi
tou/ ko,smouÅ
5 Enquanto estou no mundo, sou a luz
do mundo”.
6 tau/ta eivpw.n e;ptusen camai. kai.
evpoi,hseng phlo.n evk tou/ ptu,smatoj
kai. evpe,crisenauvtou/ to.n phlo.n evpi.
tou.j ovfqalmou.j
6 Isto dizendo, cuspiu e fez barro com a
saliva, e ungiu-o com o barro sobre os
olhos.
7 kai. ei=pen auvtw/|\ u[page ni,yai eivj th.n
kolumbh,qran tou/ Eilwa,m (o; evrmhneu,etai
avpestalme,noj). A,ph/lqen ou=n kai.
evni.yato kai. h-lqen ble,pwn
7 e disse-lhe: “Vá, lava-te na piscina de
Siloé “que quer dizer ‘Enviado’”. Foi
pois, lavou-se e voltou vendo.
8 Oi ou=n gei,tonej kai. oi` qewrou/ntej
auvto.n to. pro,teron o[ti prosai,thj
h=ne e;legon\ ouvc ou-to,j
evstin o` kaqh,menoj kai. prosaitw/nÈ
8 Então os vizinhos dele e os que o
tinham visto antes, porque era cego e
mendigo, diziam: não é este o que
ficava sentado e pedindo?
eSubstituição - primeira lição prosai,thj h=n (mendigo era), para tuflo.j h=.
(cego era) testemunhada pelos manuscritos:152 Segunda lição tuflo.j h=n kai.
prosai,tej (cego era e mendigo) testemunhada pelos manuscritos: 69 pc it.
É provável que esta leitura, de modo especial a segunda lição, queira
enfatizar a conseqüência da cegueira, expressada pela ênfase dada na conjunção
kai. (e). O texto original tem o mesmo sentido, ao dizer “mendigo era”. Todavia,
no nosso modo de ver, a segunda lição parece estar mais voltada para a exclusão
social em que viviam os cegos. É o que se passa com o cego de nascença, sendo
cego era também mendigo. No relato ele não tem nome. É citado pelos vizinhos,
151Cf. CÁSSIO, Murilo Dias da Silva. Metodologia da Exegese Bíblica, pp. 45-46. A lição com mais probalidade de ser original é a que apresenta uma múltipla atestação de testemunhas. 152 C3 Γ Λ f13 700.892. 1241.1424 M
52
como aquele que estava sentado pedindo e após o confronto com os chefes da
sinagoga, foi expulso da mesma.
É a primeira vez em que aparece no texto que o cego era mendigo. Portanto,
o nosso parecer é que a segunda leitura dá mais ênfase ao estado de exclusão, na
qual vivia o cego de nascença. Faz-se opção pela segunda lição
9 a;lloi e;legon o[tif ou-to,j evstin( a;lloi
g e;legon\ ouvci,( avlla. o[moioj auvtw/|
evstinÅ evkei/noj e;legen o[ti evgw, eivmiÅ
9 Alguns diziam: é esse; outros diziam:
“não, mas é semelhante a ele”. Ele
respondia: “sou eu”.
fOmissão do termo o[ti (que) ou dois pontos, atestada pelos seguintes
manuscritos:153
Observa-se que provavelmente o uso deste termo faz parte da linguagem
coloquial de João. Aparece quatro vezes no texto. Uma para reforçar a linguagem,
significando explicação, igual à do v. 8. Todas as outras vezes com proposta de
omissão pelas leituras das variantes, com o significado de: dois pontos: Levando
em consideração a fórmula convencional, nós traduzimos o termo por dois pontos
e optamos pela vigésima sétima edição. gSubstituição de e;legon ouvci, avlla., (diziam não mas), por de. o[ti, (e
outros):154 primeira lição, com os seguintes testemunhos:155 segunda lição: de.
e;legon, (e diziam), testemunhada pelos manuscritos:156 terceira lição: de., (e),
atestada por:157 Os seguintes manuscritos são a favor da edição do texto
original:158 Pode-se avaliar, pelo critério da lição mais breve, levando em
consideração a importância dos testemunhos que apóiam a décima sétima edição
que este texto tem mais probabilidade de ser o original.
Por isso, não obstante o número de manuscritos, a favor da inclusão, ser
maior, escolhe-se a leitura do texto original. Parece-nos, no entanto, que a variante
não é de grande relevância para a compreensão do texto.
153 P66
a w q 1844 l 2211 pc it 154 Ver nota acima -135. 155 A Ψ f13 M f l syh ac2 M f. 156 070 f1 565 pc aur vg. 157 a q pc vgmss syhmg. 158 P66.75 B CW pc b (r1) syp L 33. 892.
53
11avpekri,qh evkei/noj\ o a;nqrwpoj o`
lego,menoj VIhsou/j phlo.n evpoi,hsen
kai. evpe,crise,n mou tou.j ovfqalmou.j kai.
ei=pe,n moi o[ti u[page eivj to.nh Silwa.m
kai. ni,yai\ avpelqw.n ou=n kai.
niya,menoj avne,bleyaÅ
11 Respondeu ele: “Um homem
chamado Jesus fez barro, ungiu-me os
olhos” e disse-me: “Vai à Siloé e lava-
te”. Indo, pois, tendo-me lavado, vejo.
hSubstituição159 simples do artigo to,n, vai à Siloé... para th.n kolumbh,qran
tou/. Atestada pelos seguintes manuscritos:160 testemunhos a favor do texto da
décima sétima edição:161
O confronto entre os testemunhos apresentados pela variante e os que
favorecem o texto original, a partir dos critérios de evidência externa e interna,
nos ajuda a fazer a escolha pelo texto original.
12 kai. t ei=pan auvtw/|\ pou/ evstin evkei/nojÈ le,gei\ ouvk oi=daÅ
12 E perguntaram-lhe: “onde está ele”?
Disse-lhes: “não sei”.
3.2. Jo 9,1-12 - sua situação no livro dos sinais
Em João, se/mei,on (sinal) é toda ação realizada por Jesus que, sendo visível,
leva os espectadores, por si só ao conhecimento de uma realidade superior.162
Segundo Dodd163 toda a linguagem de João está penetrada por um conjunto de
simbolismos próprios do mundo judaico-helenístico no qual ele escreveu. O
símbolo não se opõe ao “real”. Pelo contrário só é simbólico aquilo que apresenta
uma realidade com a qual quem o olha entra em comunhão.
159 Cf. UWE , Wegner. Exegese do Novo Testamento, p. 58. “A substituição, pode, às vezes consistir de pequenas variações ou alterações no gênero, caso, tempo ou modo verbal de um vocábulo”. 160 A Ψ f13 33 M lat (sy) asms. 161 P66.75
a B D L Q 070 f1 565. 1241 al it. 162 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO Juan. O Evangelho de São João, p. 258. 163 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Evangelho de João, p. 325.
54
Não é o caso de desenvolver aqui uma teoria do símbolo,164 tendo como
pressuposto que as propostas dos especialistas são as mais variadas possíveis,
dependendo da área em que atuam - a filosofia, a história das religiões ou a
análise psicológica -165 mas é bom lembrar alguns pontos fundamentais referentes
ao simbolismo bíblico, sobretudo a título de introdução, neste item, no qual tratar-
se-á da situação da perícope no Livro dos Sinais.
A importância dos sinais nos escritos Joaninos reside em que eles são
“símbolo”, ou seja, uma forma representativa - imagem, sinal, gesto,
acontecimento - cujo valor ultrapassa àquele que deriva de sua existência
puramente fenomenal. João é herdeiro da grande tradição bíblica. Assim no seu
modo de transmitir a mensagem de Jesus, a água viva, o pão, exprimem
diretamente realidades de salvação. João faz sobressair dos milagres de Jesus não
tanto o seu poder de taumaturgo, por certo reconhecido por seus contemporâneos
e pelo evangelista, mas algum aspecto da salvação oferecida ao homem como um
todo e daí, algum aspecto de Jesus. Deste modo a visão restituída a um cego de
nascença simboliza que Jesus é a luz.166 O texto inteiro do quarto Evangelho pode
ser considerado de uma maneira simbólica.167
Segundo Dodd168 entre toda a literatura neotestamentária, é o “corpus
Johanneum”169 que mais se serve do simbolismo. Esta dimensão é tão importante
que “nenhum conhecimento do Evangelho de João é possível sem uma apreciação
do papel desempenhado pelo simbolismo”.
Em 1968 Dodd170 consagrou um pequeno capítulo de sua obra “A
Interpretação do Quarto Evangelho” ao simbolismo usado por João, onde ele diz
164 “A expressão se/meion é comum no Antigo Testamento - significa algo extraordinário, um milagre. É aplicado aos atos simbólicos realizados pelos profetas. No símbolo era dada também a coisa simbolizada. É fácil a transição disto para o tratamento simbólico dos atos de Jesus no quarto Evangelho. É provável que Jesus tenha feito atos simbólicos. É certamente do estilo Joanino tratar seus atos como tais. Comentando onde as árvores do Paraíso são descritas como ‘de aspecto agradável para comer’. O autor diz - observa Fílon - não só de ‘aspecto agradável,’ que é o símbolo dos contemplativos, mas também ‘bom para comer’ que é um se/meion útil e prático. O uso de Fílon não é precisamente o do quarto Evangelho, que é em alguns casos mais próximos do uso profético; mas ele dá claramente ao se/meion o sentido de ‘símbolo’, e isto está bem próximo ao sentido de um ato significativo ou simbólico, que eu considero como sendo o do quarto Evangelho” Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, pp. 181-183. 165 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. “Símbolo”, Vocabulário de Teologia Bíblica, pp. 24-26. 166 Cf. HUNTER, A. M. Saint Jean Témoin du Jésus de l’Histoire, pp. 87-104. 167 Cf. SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João, pp. 357-364. 168 Cf. DODD, Charles A. A interpretação do Quarto Evangelho, p. 359. 169 As três cartas de João, o Evangelho segundo João e o Apocalipse. 170 Citado por LÉON-DUFOUR, Xavier.O Evangelho e a História de Jesus, pp. 123-128
55
que o “símbolo é absorvido dentro da realidade por ele significada”. Os símbolos
provêm da vida diária, mas sua significação deriva das ricas associações que eles
adquiriram no Antigo Testamento e na literatura apocalíptica. Há uma relação
integral entre o símbolo e a realidade por ele apresentada independentemente de
onde o símbolo ocorre: nos discursos, na alegoria, ou no fato histórico. Os
próprios acontecimentos, os sinais Joaninos são atos simbólicos. Todo o
Evangelho de João, narração e discursos, estão “demarcados por uma intrincada
rede de simbolismos” e descreve um mundo no qual fenômenos, coisas e
acontecimentos, formam uma imagem viva e dinâmica do eterno... um mundo no
qual o Verbo se fez carne.171
A perícope do cego de nascença Jo 9,1-12 é o quinto sinal realizado por
Jesus. Tem uma história de tradição independente, anterior a João. No entanto,
dificilmente pode-se descobrir nela um relato de cura original e pré-Joânico,
porque a narração está tão fortemente marcada de linguagem e mentalidade
Joânicas, que em sua redação atual deve-se tomá-la como narração Joânica. As
diversas afirmações e reflexões mostram que esta narração foi elaborada por
completo dentro da teologia Joânica dos sinais. É verdade que podemos ver na
cura de cegos nos sinóticos Mc 8,22-26 e 10, 46,52 certos paralelos objetivos, mas
a forma e a finalidade do relato são totalmente diferentes172 comenta
independentemente o motivo apresentado. A diferença, segundo Bultmann,173 está
sobretudo na discussão anexa, bem como no fato de que Jesus toma a iniciativa do
milagre, o que é comum nas narrações Joânicas de milagres.
O texto está inserido num conjunto maior dos capítulos 7° ao 12 de João,
onde Jesus se revela publicamente. Até agora Jesus ensina somente por ocasião
dos sinais, mas aqui ele o faz em Jerusalém, por ocasião da festa dos
Tabernáculos. A revelação ainda não é plena. Esta se dará com a sua morte. Em
toda esta parte aparece ainda mais que na anterior a revelação de Jesus interativa e
progressiva. É uma revelação que tem por finalidade estabelecer a crise entre os
homens, tal como já havia anunciado anteriormente Jo 5,22, emoldurado por dois
núcleos de discursos e dois sinais, os últimos que realiza: cura do cego e
ressurreição de Lázaro. Tudo vai tragicamente se esclarecendo e tornando ainda
171 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, pp. 190-194. 172 Cf. BLANK, Josef. O Evangelho Segundo João, pp. 192-194. 173 Cf. BULTMANN, R. The Gospel of John, pp. 234-238.
56
maior o grupo dos que não aceitam a luz.174 Estes capítulos relatam o longo
confronto que opõe Jesus ao mundo e mais especificamente ao judaísmo hostil,
cuja rejeição da revelação de Jesus é evidente. Tomando Jesus à parte, por causa
de uma cura em dia de sábado, os “judeus” o acusam de violar o sábado. A
resposta de Jesus agrava a controvérsia, pois doravante os “judeus” tramam acabar
com ele, porque blasfema, fazendo-se igual a Deus, Jo 5,1-18. Num longo
confronto jurídico, o assim chamado “processo judeu” no quarto Evangelho. Jesus
vai demonstrar que em sua qualidade de enviado, sua pretensão não é
blasfematória e apela para as testemunhas em seu favor.175
O episódio inscreve-se no prolongamento da festa das Tendas, como o
sugere a conjunção kai., no início do relato. Portanto, o capítulo 9° de João,
constitui uma unidade independente firmada pela mudança de lugar: “Ao sair do
Templo”.
No entanto, o relato só é datado em Jo 9,14: Era sábado, após a delimitação
das sub-unidades adotadas nesta dissertação: Jo 9,1-7 a cura do cego de nascença
e Jo 9,8-12, conforme a estrutura apresentada por Blank e Léon-Dufour,176
abrangendo somente a discussão com os conhecidos e vizinhos do cego de
nascença, no que se refere à constatação do sinal, que o leva a testemunhar Jesus.
Aqui a delimitação inferior é marcada pela mudança de cenário: “Levaram-no à
presença dos fariseus”. A delimitação do texto será mais detalhada no item 2.3 -
letra b. A partir de Jo 9,12, o cego é questionado pelos dirigentes da Sinagoga a
respeito da cura realizada por Jesus. O texto dá continuidade ao confronto com os
fariseus, iniciado no capítulo 5°, indo até ao extremo, no capítulo 8°, onde Jesus
foi praticamente expulso do Templo, ameaçado de morte. A agressão agora se
dirige ao cego que também acabará sendo expulso da Sinagoga, mas quem está
por trás da cena é Jesus, por ter realizado a cura em dia de sábado.177
Há um duplo movimento, que tem suas extremidades nos versículos 1 e 41,
do capítulo 9°, sublinhado por elementos significativos. A toda pergunta feita ao
cego corresponde uma confissão em favor de Jesus: um homem chamado Jesus Jo 174 Cf. DE LA CALLE, Francisco. Teologia dos Evangelhos de Jesus, pp. 79-91. 175 Ver Jo 7,11-52; Jo 8,12-59; Jo 10,22-42. 176 Cf. BLANK, Josef. O Evangelho Segundo João, pp. 193-199 e DUFOUR-LÉON, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João I, p. 229. “A delimitação da perícope de Jo 9,1-12 feita pelos dois autores consta de duas partes: a primeira trata do diálogo com os discípulos e a cura do cego (Jo 9,1-7). A segunda se refere à primeira discussão com os vizinhos e conhecidos do cego e conseqüentemente a confirmação da cura por estes” (Jo 9,8-12). 177 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João I, pp. 235-238.
57
9,11, um profeta Jo 9,17, um enviado de Deus 33.178 Não obstante a unidade do
capítulo 9°, confirmada por muitos autores, o texto não se encontra solto, como se
pudesse ser inscrito em qualquer outro lugar do quarto Evangelho. A frase central
que liga nosso capítulo com o anterior é: “Eu sou a luz do mundo”.179
O tema do “livro dos sinais” é Cristo que se manifesta ao mundo como vida
e luz, sendo, porém, rejeitado. Os dois sinais, vida e luz, são os principais, os
outros derivam destes.180 A última secção Jo 9,35-41 constitui como que o pano
de fundo do capítulo 10º que se interliga com o capítulo 9°. Rejeitado pelos que
não aceitam a luz - os fariseus, o ex-cego é acolhido pelo Filho do Homem. Ele é
a primeira ovelha do rebanho que o bom Pastor conduz às pastagens
abundantes, ou seja, recebe de Jesus a vida.181
3.3. Crítica literária
No que diz respeito à sua disposição literária, o capítulo 9º se conta entre os
melhores, literalmente falando, e mais densos de todo o Evangelho de João.182
Trata-se da “cura do cego de nascença”, no entanto, alguns autores adotam o
título: “Jesus cura a cegueira dos homens”. Esta é uma indicação de que a cura do
cego de nascença é simbólica. O cego, como acontece com muitos personagens no
Evangelho de João, é um personagem simbólico, representando a cegueira da
humanidade, constituindo-se assim, uma característica do autor.183
O Evangelho se distingue pela acentuada utilização do simbolismo, da
ironia, das expressões de vários sentidos, do motivo da incompreensão etc., que
tendem a gerar uma série de “mal-entendidos” como, por exemplo, no caso de
178 Cf. FABRIS, Rinaldo in MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos II, pp. 378-382. 179 Cf. Jo 9,5 paralelo a Jo 8,12. 180 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. O Evangelho e a História de Jesus, pp. 124-127. “A vida e a luz foram trazidas pelo Verbo. Em seguida florescem muitas espécies de simbolismos parciais: o cordeiro, o vento, a água, a fonte, o pão, o pastor, o caminho... Longe de ser um revestimento platônico, o simbolismo é um aspecto normal e necessário da história do Verbo de Deus encarnado”. 181 Cf. DODD, Charles. A. A Interpretação do Quarto Evangelho, pp. 449-459. 182 Cf. BLANK, Josef. Evangelho Segundo João. p. 193. 183 Cf. MATEUS Juan & BARRETO Juan. O Evangelho de São João, p. 17. Um recurso comum no Evangelho são os personagens representativos. Muitas das que aparecem não atuam apenas como figuras históricas, mas investidas de determinada representação. Caso especial é o de “discípulo que Jesus amava” figura anônima que representava o discípulo ou a comunidade, enquanto amigos de Jesus.
58
Nicodemos (Jo 3,4).184 Esses traços decorrem da perspectiva redacional do
Evangelho. O Evangelho de João é antes de tudo, o “Evangelho da comunidade”,
porque ela pode reconhecer nele tanto a sua própria história como a história de
Jesus, ou seja, o escrito é costurado por dois fios que se entrelaçam formando o
tecido belíssimo do conjunto: vida de Jesus e vida da comunidade. De fato o
Evangelho que João coloca em cena é o Cristo glorificado na e pela
comunidade.185
Há no texto expressões típicas de João como “evgw, eivmi”. Esta expressão é
uma referência clara ao livro do Êxodo, onde Deus se revela a Moisés: “Eu sou o
que sou” como o Deus dos antepassados, aquele Deus que prometeu formar um
povo, agora vai cumprir a promessa. Deus quer ser invocado sempre com este
nome e manifesta a sua identidade dentro de um processo de libertação. No
episódio do cego de nascença esta expressão tem o sentido de revelar a identidade
de Jesus e antecipa simbolicamente a salvação que só ele pode oferecer.186 Ao
curar o cego de nascença Jesus o recria, devolvendo-lhe a dignidade da vida. O
verbo avpekri,qw187 aparece muitas vezes, não só nesta perícope, mas também nos
Sinóticos - caracteriza o início do diálogo de Jesus com seus interlecutores - no
texto em questão aparece no diálogo com os discípulos e no confronto do cego
com os vizinhos: respondeu ele (Jo 9,11), ou seja, observa-se uma mudança do
estilo narrativo para o discursivo. O verbo e[ptusw é um hápax Joânico.
No que se refere aos tempos e formas verbais, João ignora o uso do
particípio futuro, do infinitivo futuro, do optativo, formas que caracterizavam a
literatura grega na época. Ao contrário, ele emprega de modo adequado os
tempos: para a narração, faz alternar o aoristo e o presente histórico 164 vezes no
Evangelho. Na perícope (Jo 9,1-12), este dado é evidente, o aoristo aparece 24
vezes e o presente histórico 25, forma usada para narrar um acontecimento. Neste
ponto, o Evangelho se assemelha ao de Marcos, enquanto que Lucas, mais
literário evita o presente histórico.
A partícula kai. também pode ter o sentido aditivo, como se constata em Jo
1,10.11. A conjunção ou-n é encontrada 200 vezes e caracteriza o estilo de João: ao
lado dos empregos corretos exprimindo a conseqüência do que se diz. João 184 Cf. BENTO, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João, p. 368. 185 Cf. MOINVILLE, Odete. Escritos e Ambiente do Novo Testamento, pp. 199-201. 186 Cf. MOINVILLE, Odete. Escritos e Ambiente do Novo Testamento, p. 169. 187 Cf. UWE, Wegner. Exegese do Novo Testamento, p. 54.
59
emprega constantemente ou-n como um narrador popular pontua seu escrito de
então... então...
O substantivo e[rgon aparece duas vezes na perícope e é também vocabulário
próprio do quarto Evangelho, 6 vezes em Mt, 2 vezes em Lc, 24 vezes em Jo.
Todo o texto é marcado por substantivos que se repetem ao longo do relato...
personagens: Jesus 2 vezes e o cego 2 vezes, estes são os principais. Aqui entra
um fator de coesão do texto, o uso da proforma188 com a função de unir uma frase
à precedente mediante um pronome “auvtou/ ou auvtw/ ”, remetendo a uma pessoa
anteriormente citada. Estes pronomes aparecem várias vezes na perícope do cego
de nascença. Os personagens também são: os discípulos, os pais, os vizinhos e
outros substantivos denominados: mundo 2 vezes - 9 vezes em Mt, 3 vezes em Lc,
3 vezes em Mc, 78 vezes em Jo; luz 2 vezes - 7 vezes em Mt, 1 vez em Lc, 7
vezes em Mc, 23 vezes em João. Os substantivos dia-noite se inserem na categoria
de pares opostos que também é uma característica da linguagem de João. Terra;
piscina; Siloé; barro. Este último é encontrado somente na perícope Jo 9,1-12,
portanto em João 2 vezes. O termo saliva é encontrado apenas uma vez em todo o
Evangelho de João (hapax joânico); olhos 2 vezes; homem 2 vezes; mendigo 1
vez e Rabi que significa mestre.
Uma série de expressões de João corresponde aos escritos de Qumran. Na
lista colocada por Schnackenburg189 citam-se alguns exemplos: praticar a verdade;
testemunhar a verdade; andar nas trevas; a luz da vida. De fato, há paralelos entre
o quarto Evangelho e o pensamento dos essênios que moravam numa colônia no
local chamado Qumran na região do mar Morto. Mas, segundo Brown190 não
existe prova convincente de que o autor Joanino conhecesse esta literatura. Tal
semelhança com estes escritos se explica pela conversão de “judeus”, seguidores
de João Batista para a comunidade Joanina que tinham o mesmo tipo de idéias que
conhecemos através destes escritos. Quando surgiu a alta cristologia,191 Jesus teria
sido interpretado, à luz destas idéias, como a luz celeste que desceu do alto, seus
seguidores, como os filhos da luz.
188 Cf. WILHELM, Egger. Metodologia do Novo Testamento, p. 7. 189 Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. Das Johannes Evangelium , p. 91. 190 Cf. BROWN, Raymond E. A Comunidade do Discípulo Amado, p. 108. Segundo o autor a alta cristologia advém da idéia da preexistência de Jesus na comunidade Joanina. 191 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, p. 295.
60
Observa-se um número suficientemente importante de termos arameus no
corpo do Evangelho, seguido freqüentemente de interpretação grega: Rabbi - 8,
rabbouni -1, Messias - 2, Siloé em Jo 9,7 com sua interpretação cristológica,
Betsaida, Gábbatha, Gólgotha. O vocabulário manifesta uma inserção do quarto
Evangelho na tradição Palestinense.
Mas o Evangelho de João foi escrito desde o princípio em grego, ainda
quando sua linguagem acuse um colorido semítico. Segundo Schnackenburg,192 a
idéia de Bonsirven é possível de ser aceita: João, filho de Zebedeu, meditando
sobre as palavras de Jesus - daí os aramaísmos no vocabulário - teria composto o
Evangelho num grego simples, ou também se poderia pensar, que um discípulo
seu, bem familiarizado com o judaísmo, que em sua juventude houvesse falado o
arameu e tivesse também conhecimento do hebreu e mais tarde se tornado um
judeu da diáspora, deu ao Evangelho o revestimento lingüístico. Porém,
conservando o vocabulário de seu mestre.
3.4. Crítica das formas
a - Gênero literário
A perícope do cego de nascença (Jo 9,1-12) como nós a conhecemos
apresenta-se na forma narrativa - cura de um cego na piscina de Siloé e de
diálogos: teológico entre Jesus e seus discípulos e sob a forma jurídica. As duas
partes são intimamente ligadas e formam uma unidade Joanina simples de
narração e discurso.193 Coloca-se, ao lado da cura do paralítico de Betsaida (Jo
5,1-47) e da ressurreição de Lázaro (Jo 11,1-44) como uma das três histórias de
milagres que, com suas amplificações, formam a maior parte ou quase a totalidade
de um capítulo do Evangelho de João. As longas narrativas com diálogos
constituem imponentes peças de arte, literárias e teológicas, cuja clareza reflete o
brilho do estilo do quarto evangelista.194
A perícope (Jo 9,1-12) é o relato de um milagre que envolve um lugar, fora
do Templo; uma circunstância, Jesus viu o cego; um tempo, era sábado conforme
nos é informado mais tarde na narrativa (Jo 9,14). Os personagens: Jesus e os 192 Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. El Evangelio Según Juan I, p. 132. 193 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, p. 462. 194 Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. El Evangelio Según Juan I, p. 308.
61
discípulos, Jesus e o cego, os vizinhos entre eles, os vizinhos e o cego. Todos
desempenham seus papéis respectivos, com interação entre eles, elementos
próprios de uma narrativa.
É possível distinguir, seguindo a crítica das formas o núcleo de uma
primitiva história de milagre dentro da complexa estrutura criada por João. A
história do milagre é claramente e convenientemente colocada no início do
capítulo (Jo 9,1-7) seguida da reação dos que constatam a cura. O relato do
milagre segue os três passos básicos, apresentados para o gênero literário de
milagres: 1) a apresentação do problema, o encontro de Jesus com o enfermo com
uma breve descrição da doença e de sua durabilidade; 2) o ato da cura, em geral
envolvendo uma palavra ou gesto de Jesus; 3) a demonstração da cura, com a
reação dos circunstantes. Observa-se em Jo 9,1-12, nesta última característica, um
modo diferente do que ocorre na maioria dos milagres, ou seja, o louvor e a
admiração.195 Na narração deste sinal, a reação das pessoas tem o objetivo de
afirmar a cura e de testemunhar em favor de Jesus.
Esse modelo completo de gênero literário está presente nos sete primeiros
versículos do capítulo 9° de João: 1) Jesus vê um homem, cego de nascença (Jo
9,1; 2) a iniciativa parte de Jesus que emprega gestos, cospe na terra, aplica barro
aos olhos do cego, (Jo 9,6) e uma ordem: “Vai lavar-te na piscina de Siloé”
(Jo,9,7), para curá-lo e 3) após obedecer, o cego passa a enxergar (Jo 9,7), segue-
se a reação dos vizinhos.196
Quando se detém com um olhar mais aprofundado sobre a perícope
constata-se que é possível isolar o núcleo primitivo do relato sem nenhum dano da
forma propriamente dita do milagre (Jo 9,1-7). Percebe-se que os detalhes da
forma de um milagre, não estão igualmente distribuídos ao longo dos vv. Jo 9,1-7,
mas se concentram apenas nos vv. Jo 9,1.6-7. Uma outra observação que se
relaciona bem com essa percepção da crítica da forma é que os vv. Jo 9,2-5
contêm um diálogo que não é típico de história de um milagre, mas sim
claramente marcado pelo vocabulário teológico de João. Aos discípulos que
conveniente e repentinamente reaparecem em cena, questionando sobre de quem é
a culpa do homem ter nascido assim e que emitem concepções errôneas, Jesus
responde mudando o foco da história da causa da cegueira para o seu objetivo
195 Cf. CHARPENTIER, Étienne. Dos Evangelhos ao Evangelho, p. 64. 196 Cf. WEGNER, Uwe. Metodologia do Novo Testamento, pp. 165-171.
62
último no plano de Deus: “para que nele sejam manifestadas as obras de
Deus.”Após ter colocado o tema típico Joanino da revelação de Deus agindo nele,
Jesus aponta para a urgência de realizar as obras “enquanto é dia” enquanto durar
a sua missão no mundo, isto é, antes que a noite de sua paixão e morte ponha um
fim ao seu ministério (Jo 9,4). Tudo vai conduzindo para a grandiosa e verdadeira
natureza de Jesus, ecoando Jo 8,12: “enquanto estou no mundo sou a luz do
mundo” (Jo 9,5). Com grande habilidade o evangelista então utiliza uma oração
conectiva “Isto dizendo” para voltar à história básica da cura. Deste modo, a
linguagem, o estilo e o conteúdo teológico de Jo 9,2-5, tudo é perfeitamente
Joanino e pode ser tirado de Jo 9,1-7 sem prejudicar qualquer parte essencial da
história do milagre.
Por isso, é bem provável que os versículos Jo 9,1.6-7 representem o núcleo
primitivo da cura do cego de nascença.197 Pode ser que o diálogo teológico com os
discípulos queira representar uma conversa inicial com o cego, ou que a conclusão
original da história do milagre contivesse uma reação das pessoas carentes de luz
ou substituídas pelas dúvidas e perguntas dos vizinhos do cego em Jo 9,8-12. No
entanto, pode-se ter uma razoável certeza de que em Jo 9,1.6-7 “está o coração da
mais antiga versão disponível dessa história de milagre.” A cura do cego de
nascença, não é uma criação do evangelista. É certo que todo o capítulo 9°
constitui uma peça tão grande e complicada de arte literária e teológica que se
deve supor a existência de vários estágios de redação e tradição entre a primitiva
história do milagre apresentada em Jo 9,1.6-7 e o importante tratado de teologia
Joanina que é o capítulo 9°.198
A história original tem semelhanças com outras curas que circulavam na
tradição oral, por exemplo: Mc 8,22-26 e Mc 10,46-52, mas a dispersão entre os
motivos por diferentes histórias de diferentes correntes da tradição oral supõe que
Jo 9,1.6-7 não se baseia em nenhuma delas. Admite-se a possibilidade de ser uma
história independente escrita antes da composição do Evangelho.
Tudo o que segue não relata a história do milagre em si, mas do debate cada
vez mais animado sobre a realidade do milagre e a alegação de, ao curar, Jesus
violar o sábado. Este é provavelmente um acréscimo à história do milagre.
Funciona como um trampolim, para o desenvolvimento na controvérsia sobre
197 Cf. HUNTER, A. M. Saint Jean Témoin du Jésus de l’Histoire, p. 94. 198 Cf. HUNTER, A. M. Saint Jean Témoin du Jésus de l´Históire, pp. 90-98.
63
quem é Jesus, aquele que cura, mas viola o sábado. Este assunto está impregnado
da teologia Joanina e faz parte da penosa separação entre a Igreja de João e a
Sinagoga Judaica.
O texto pode ser dividido em 4 momentos:
1. Introdução - (Jo 9,1);
2. O diálogo teológico de Jesus com os discípulos - (Jo 9,2-5);
3. Os gestos de Jesus, o mandato de ir se lavar e a cura - (Jo 9,6-7);
4. O diálogo dos vizinhos entre si e com o cego - (Jo 9,8-12).
Encontra-se, em (Jo 5,1-18) a narrativa sobre a cura de um paralítico. Esta
perícope tem, basicamente, a mesma forma da que relata a cura do cego de
nascença, apresentando os seguintes elementos:
1. Introdução - (Jo 5,5-6 cf. Jo 9,1).
2. Reação dos enfermos - (Jo 5,11 cf. Jo 9,25).
3. Eles não conhecem Jesus - (Jo 5,12 cf. Jo 9,11).
4. Jesus os reencontra em seguida - (Jo 5,14 cf. Jo 9,35).
5. Os dois miraculados denunciam inconscientemente Jesus aos Fariseus -
(Jo 5,15 cf. Jo 9,11).
6. Interrogatório sobre a cura em dia de sábado - (Jo 5,9 cf. Jo 9,14).199
As duas perícopes (Jo 5,1-18 e Jo 9,1-12), colocadas em paralelo,
evidenciam uma forma semelhante: durabilidade e gravidade da doença, iniciativa
de Jesus, cura, denúncia, com algumas diferenças: no caso do paralítico Jesus vê,
é sensível à ausência da vida, estabelece um diálogo e usa da palavra para realizar
a cura (Jo 5,7-8). Na cura do cego de nascença, Jesus de igual modo aproxima-se
do sofrimento do ser humano, onde não há a luz da vida, porém a cura se realiza
por gestos, acompanhados da Palavra expressa na ordem de ir se lavar. Com
gestos e Palavras Jesus liberta o homem de sua cegueira, capacitando-o,
recriando-o, elevando-o à dignidade humana, durante o longo percurso até à
piscina e no interrogatório. É interessante notar que os dois milagres se realizam
fora do Templo.200
Aquele que voltou vendo testemunha corajosa e coerentemente a favor
daquele do qual recebera a cura, até chegar a uma verdadeira confissão de fé, no
199 Cf. MEIER, John P. Um Judeu Marginal Repensando o Jesus Histórico, pp. 225-229. 200 Cf. BUSSCHE, Henri Van Den. Jean - Commentaire de l’Évangile Spirituel, p. 321.
64
reencontro com Jesus (Jo 9,38). Isso mostra que fatos da fonte oral foram
passados para o escrito Joanino, dentro de um modelo ou forma de redação,
constituindo deste modo o gênero literário “relato de um milagre”.201
A perícope de Jo 9,1-12 mostra que a partir do encontro com Jesus,
encontra-se a vida. Percebe-se, portanto, um entrelaçamento progressivo entre a
luminosidade-dinamicidade, chegada da luz-vida com a presença de Jesus e o
colocar-se a caminho, o ver, o testemunho e a fé expressa através do ato de
adoração no reencontro com o recriador-doador da luz que é a vida.202
b - Delimitação e estrutura do texto
Tradicionalmente, a delimitação desta narrativa é indicada pela citação Jo
9,1-41. Entretanto, com base em observações sobre a continuidade e
descontinuidade da narrativa em relação ao seu entorno literário, proporemos a
seguinte delimitação.
A delimitação desta unidade maior constitui um desafio.203 Enquanto uma
série de motivos atesta o fato de que Jo 9,1 inaugura um novo assunto em relação
à passagem anterior, não há idêntica clareza quanto ao término.
O início da perícope é apontado de forma bastante clara pela mudança de
ambiente, iniciada em Jo 8,59: Jesus fugia de uma agressão no Templo de
Jerusalém e, ao passar, (Jo 9,1) encontra o cego, já não se está mais no Templo,
mas na porta, ou no caminho onde o cego ficava sentado pedindo esmolas (Jo
9,8). Observa-se aqui uma precisa relação e ao mesmo tempo ruptura com o texto
anterior expressa na conjunção coordenativa kai. e o verbo paragon. Estes
elementos indicam a mudança de lugar e cenário. Quer dizer, saindo do interior do 201 Cf. SCHNAKENBURG, Rudolf. El Evangelio Según Juan I, p. 236. O capítulo 9° de João expressa em primeiro lugar uma intenção teológica: Jesus é a luz do mundo que veio para libertar os homens prisioneiros das trevas. Desloca-se assim a atenção para os versículos Jo 9,2-5 como o centro de toda a perícope. Esta colocação vem de encontro com outro autor: Méier diz ser impossível um único exemplo de cura de alguém especificamente dado como cego de nascença. Além do mais um cego de nascença proporciona um conveniente símbolo de uma humanidade nascida em um mundo de escuridão espiritual. “Levando em conta estas tendências teológicas, é quase impossível ter como certo a historicidade do detalhe do homem ser cego de nascença”. 202 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. “Criação”, Vocabulário Teológico do Evangelho de São João, pp. 48-49. 203 Cf. KONINGS, Johan. Evangelho segundo João - Amor e Fidelidade pp. 22-24. O “marco zero” de um texto com tantas marcas redacionais como a cura do cego de nascença (cf. crítica literária, item 2.3) não pode ser confundido simplesmente com sua forma mais primitiva. Nesta dissertação, propomos que seja considerado o texto em sua formulação mais completa com suas sub-unidades cf. alguns autores já citados, porém com uma diferença: considera-se o texto Jo 10,1-18 uma inclusão e Jo 10,19-21 como fazendo parte da grande unidade que é o capítulo 9° de João.
65
Templo, onde se havia estabelecido o confronto com os “judeus”, colocado no
último v. do capítulo 8° e passando pela porta, arredores do Templo, o olhar de
Jesus se volta para um cego de nascença. A ruptura é clara também quanto ao
assunto: a discussão da perícope anterior, sobre a filiação divina de Jesus,
desaparece completamente. Desaparecem também os “judeus” que haviam nele
crido (Jo 8,31).
Aparece o cego (Jo 9,1), e os discípulos (Jo 9,2-5) no diálogo teológico com
Jesus. Esta parte da perícope, conforme sugere Méier,204 pode ser isolada do
milagre em si, mas parece que do modo como ela foi inserida no contexto da cura
está indicando o sentido simbólico. Observa-se aqui que a coerência deriva do
tema central do texto “Jesus a luz do mundo”, em relação à cegueira e às obras do
Pai realizadas por Jesus. A conjunção aditiva coordenativa kai. no início do v. 2 é
também um fator de coesão entre as partes. Nota-se também, mais adiante, a
presença dos vizinhos (Jo 9,8), os fariseus (Jo 9,13), os pais daquele que passou a
ver (Jo 9,18). O diálogo de controvérsia do capítulo anterior dá lugar a uma
narrativa dramática. Porém o mais importante fator de coesão do texto é a
referência contínua ao ex-cego. Trata-se de um personagem inédito em todo o
Evangelho e central em todo o episódio.
Tais indícios nos levam ao esclarecimento de onde começa a perícope. Por
outro lado, nos levam a suspeitar da delimitação final, normalmente colocada em
Jo 9,41. Embora não haja nenhuma notícia de mudanças de natureza topográfica
ou de ordem cronológica, nem a inclusão de novos personagens,205 parece haver
uma mudança de gênero literário desenvolvido até aqui. Desaparecem os traços
literários de Jo 9,1-41 passa-se a falar da autoridade de Jesus e de sua liderança
em relação aos discípulos através da alegoria do bom Pastor.
Entretanto na seqüência encontra-se o fragmento narrativo de Jo 10,19-21.
A primeira evidência é a menção a abrir os olhos cegos (Jo 10,21). Um assunto
que havia sido abandonado por 18 versículos simplesmente volta à tona. A
decisão redacional de interromper o episódio do cego de nascença para a inclusão
de Jo 10,1-18 pode estar vinculada tanto ao objetivo de explicitar o tema da
204 Cf. MEIER, John P. Um Judeu Marginal: Repensando o Jesus Histórico, p. 226. 205 Cf. DODD, Charles A. Interpretação do Quarto Evangelho, p. 456. Alguns autores, como já foi citado acima, dizem que a primeira ovelha do rebanho é o cego de nascença a quem Jesus devolve a dignidade da vida - portanto ele seria um personagem implícito nesta perícope.
66
perícope interrompida, como a de justificar mais plenamente a violenta reação dos
“judeus” em Jo 10,20.
O discurso de Jo 10,1-18 parece ser, portanto, um acréscimo posterior,
possivelmente destinado a explicitar a discussão sobre a autoridade religiosa
implícito na cura do cego de nascença. Este acréscimo revela uma intuição que
não deixa de reforçar a mensagem implícita da perícope.206 Quanto a Jo 10,22,
indica mudanças de ordem topográfica: da rua para o Templo, litúrgica: festa da
dedicação do Templo, e de gênero literário: diálogo de controvérsia.
Contando com a inclusão posterior do capítulo Jo 10,1-18, comumente
colocada por autores207 como fazendo parte do episódio do cego de nascença, a
grande unidade se divide em dois grandes blocos de sub-unidades, compondo
assim, a sua estrutura:208
I- a narrativa do cego propriamente dita (Jo 9,1-41).
1 - o sinal como se apresenta - o diálogo teológico com os discípulos, e a
cura do cego (Jo 9,1-7);
2 - a reação dos vizinhos (Jo 9,8-12);
3 - primeiro confronto com as autoridades (Jo 9,13-17);
4 - segundo confronto com as autoridades (Jo 9,18-23);
5 - o terceiro confronto com as autoridades (Jo 9,24-34);
6 - o reencontro de Jesus com o cego e a profissão de fé (Jo 9,35-38);
7 - os cegos que não querem ver e recusam a luz, as autoridades (Jo 9,39-41);
II- um epílogo, contendo um monólogo de Jesus, “cenas do pastoreio” (Jo
10,1-21).
1 - o tema da divisão em torno de Jesus (Jo 10,1-18);
2 - retomada do início (Jo 10,19-21 cf. Jo 9,1-7).209
206 Cf. KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João - Amor e fidelidade, p. 222. 207 Citamos como exemplo DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, pp. 449-459; LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho de João II, pp. 223-267 e KONINGS, Johan. Evangelho segundo João - Amor e Fidelidade, pp. 292-210. 208 Cf. KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João - Amor e Fidelidade, pp. 192-196. 209 Cf. KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João - Amor e Fidelidade, pp. 192-208.
67
A perícope que me proponho trabalhar encontra-se no começo do capítulo,
já bem demarcada acima, no seu início Jo 9,1, com sua delimitação final bem
expressa pela mudança de cenário e da entrada de novos personagens na narrativa
Jo 9,13. Abrange duas sub-unidades, mas também parece estar relacionada com o
todo, pelo fato de fazer parte da mesma grande unidade.
c - Crítica da tradição
O Antigo Testamento narra várias curas de cegos. Nos casos de cegueira
temporária podia realizar-se uma cura miraculosa. Assim aconteceu com os
habitantes de Sodoma, quando tentaram abusar dos dois anjos que se hospedavam
com Ló: feridos temporariamente de cegueira não conseguiram encontrar a entrada
da casa (Gn 19,11). Em (2Rs 6,18-22), encontra-se o relato da tentativa do rei de
Aram de capturar o profeta Eliseu. O profeta então orou ao Senhor e os soldados
Sírios foram feridos de cegueira parcial e conduzidos a Samaria, capital de Israel.
Lá, também a pedido de Eliseu, eles voltaram a ver.
Em se tratando da cura da cegueira permanente, encontra-se em Tobias,210 o
relato da cura de Tobit, pai de Tobias. O gesto do sopro e o fel do peixe foram
empregados para curar os olhos deste homem. Observa-se, no entanto, que para o
povo do Antigo Testamento não havia muita esperança para quem era cego, sendo
que a cura para a cegueira era um dos milagres esperados para os últimos dias. O
profeta Isaías proclamou que “Naquele dia, os surdos ouvirão o que se lê, e os
olhos dos cegos, livres da escuridão das trevas, tornarão a ver” (Is 29,18), e “Eis
que o vosso Deus vem para vingar-vos, trazendo a recompensa divina. Ele vem
para salvar-vos. Então se abrirão os olhos dos cegos, e os ouvidos dos surdos se
desobstruirão” (Is 35,4-5).211
No oráculo de (Is 42,18-25), Iahweh se manifesta desejando curar também os
cegos espirituais. O povo é prisioneiro da escuridão, na qual não consegue
enxergar as maravilhas realizadas por Deus e conseqüentemente se afasta de seus
caminhos. Israel é apresentado como sofrendo de cegueira, não podendo, com isso,
ver o sentido da história - o desígnio de Deus com o exílio era o de fazer seu povo
210 Cf. Tobias 6,5.9;11,12ss. 211 Cf. SCHOKEL, Alonso L. & SICRE DIAZ, J. L. Profetas I, p. 254.
68
“voltar-se com fé e confiança para o futuro anunciado por Deus: agindo assim, o
povo recobrará sua vista”.212
O cumprimento das promessas de cura da cegueira no Antigo Testamento,
tanto física quanto espiritual, aparece no ministério de Jesus de Nazaré. Na
resposta dada aos enviados de João Batista, indagando sobre sua pessoa e obras,
Jesus coloca-se como o cumpridor das promessas vétero-testamentárias: “Ide
contar a João o que estais vendo e ouvindo: os cegos recuperam a vista, os coxos
andam, os leprosos são purificados e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os
pobres são evangelizados” (Mt 11,4-5). Todavia, é preciso distinguir entre os
Sinóticos e o Evangelho de João no que se refere à palavra fé, ausente neste
Evangelho. Em contrapartida o verbo “crer” é mencionado em torno de cem vezes
mais ou menos. A verdadeira fé para João é alguma coisa dinâmica e ativa.
Constata-se esta dinamicidade na cura do enfermo de Betsaida (Jo 5,1-18) e na
cura do cego de nascença (Jo 9,1-12). Para João, Jesus não é um fazedor de
milagres e sim realiza sinais. Estes têm o objetivo de uma adesão a Jesus e enfatiza
o aspecto teológico simbólico, de uma verdade espiritual. Jesus prefere a fé sem os
“sinais” mas admite a utilidade das “obras” para aqueles dos quais a fé é mais
fraca.213
Contrapondo-se com a regra de Qumran214 e a tradição judaica, no (Novo
Testamento), Jesus acolhia cegos em sua comunhão, dando-lhes deste modo,
participação ativa no Reino de Deus. Para um homem que o convidara a uma
refeição, Jesus recomendou-lhe que convidasse os pobres e os cegos: “...quando
deres uma festa, chama pobres, estropiados, coxos, cegos; feliz serás, então, porque
eles não têm com que te retribuir. Serás, porém, recompensado na ressurreição dos
justos” (Lc 14,13-14).
Constata-se que curas de cegos já é assunto predileto na tradição sobre Jesus
de Nazaré.215 Ele teria curado muitos cegos.216 Tais curas eram sinais messiânicos
(Mt 11,4.5) reportando a Is 29,18; Is 35,5 e também uma crítica à cegueira do
judaísmo em relação à aceitação da pessoa de Jesus Jo 9,39-41; Mt 12,22-28; Mt
15,14.
212 Cf. SCHOKEL, Alonso L. & SICRE DIAZ, J. L. Profetas I, p. 298. 213 Cf. HUNTER, A. M. Saint Jean Témoin du Jésus de l`Histoire, pp. 87-98. 214 Cf. VIELHAUER, Philipp. História da Literatura Cristã Primitiva, p. 443. 215 Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. El Evangelio Según Jean II, p. 120. 216 Cf. Mt 9, 27-31; 12,22; 15,30; 21,14; - Mc 8,22,25; 10,46-52; - Lc 7,21.
69
Todo o ministério de Jesus, incluindo a cura dos cegos, apontava para o fato
de que o Messias havia chegado para Israel. Já no início de sua vida pública, lendo
o livro do profeta Isaías, na Sinagoga de Nazaré (Lc 4,16-19), Jesus mencionou
que recebera a unção do Espírito para o cumprimento de sua missão, sendo que a
“recuperação da vista aos cegos” integra o seu programa de vida (Lc 4,18). O fato
dos milagres “shmei,a” (sinais) em João serem menos numerosos, está relacionado
a uma escolha do evangelista que segundo o autor teria feito muitos outros sinais.
Estes foram escolhidos, para o fortalecimento de uma fé salutar, entre os leitores
(Jo 21,2).
A cura do cego de nascença (Jo 9,1-12) é um dos milagres realizados por
Jesus no “Livro dos Sinais” do Evangelho de João, dentre os sete mencionados
pelo autor, representando as obras de Cristo em sua totalidade, são “shmei,a”
(sinais) de sua obra acabada. Ela está, portanto, entrelaçada aos outros sinais.
Certamente ao entrar no debate histórico da construção da obra, pode-se
provavelmente argumentar que o capítulo 9° de João, que tem por si mesmo um
caráter distinto, existiu a princípio como unidade separada, provavelmente deve
ter sido tirado de uma história que incluía discursos e diálogos de controvérsia que
fazem parte dos capítulos 7°-8° de João.217
Não é casual que o tema geral da vida eterna218 comece com o nascimento
de Jesus (Jo 3,3-8) e termine com a vitória da vida sobre a morte e a
transformação da própria morte na glória, isto é, a exaltação do Filho de Deus
no sétimo sinal.219 Esta colocação faz eco no texto, que originalmente era a
conclusão de todo o Evangelho. “Jesus fez ainda, diante de seus discípulos,
muitos outros sinais, que não se acham escritos neste livro. Esses, porém, foram
escritos para crerdes que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo,
tenhais vida em seu nome” (Jo 20,30-31).
217 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, pp. 60-61. 218 Cf. KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João - Amor e Fidelidade, pp. 56-57. “João evita falar em ‘reino de Deus’. Substitui praticamente este conceito por ‘vida eterna’: a vida que vivemos na opção de fé assumida diante da Palavra e da prática de Jesus é o exercício da vontade de Deus, desde já - ou seja, aquilo que o ‘reinado de Deus’, profundamente, significa”. 219 Há alguns autores que entram em contradição no que se refere ao “sétimo sinal” - por exemplo: DODD, Charles A. diz ser a “morte de Jesus na cruz” - outros o atribuem à ressurreição de Lázaro, quando contam, separadamente o episódio da multiplicação dos pães e a passagem sobre o mar. Esta constatação alerta para o simbolismo, característica de João presente também no número sete. Como já se disse o Evangelho todo é simbólico.
70
O percurso feito no terceiro capítulo possibilitou uma melhor compreensão
e acesso ao texto tal como ele chegou até nós. Ao mesmo tempo nos permitirá um
ensaio exegético, sustentado por uma análise em que se esforça, tanto quanto
possível, para a aproximação um pouco mais exata do texto, como ele se
apresenta, em sua forma atual. A exegese é o próximo passo a ser dado.
4 A pedagogia da luz como fonte de vida na cura do ce go .
Através de uma modesta exegese do texto, se procurará demonstrar, que
Jesus, ao dar a vista ao cego de nascença, de igual modo, também o ajuda na
conquista de sua dignidade humana, dando-lhe a vida. Pois, a partir da ação
recriadora, Jesus o integra na comunidade Joanina, depois de ser excluído da
Sinagoga. Percebe-se que a atuação de Jesus é ancorada no envio do Filho pelo
Pai,220 cujo projeto salvífico, consiste em que o ser humano tenha vida e
liberdade.
4.1. O enviado do Pai
Avposte,llw, no sentido fundamental de enviar é, na literatura grega e na
linguagem falada tanto do tempo clássico, como do helenismo, abundantemente
empregado para falar do envio de pessoas, e de coisas. No Novo Testamento o
termo começa a se tornar um termo teológico, com o sentido de enviar para o
serviço do Reino, principalmente, atribui-se o termo a Jesus, como o enviado do
Pai.221 A autoridade de Jesus é fundada em Deus.222
Constata-se, no entanto, que o quarto Evangelho não menciona os
apóstolos.223 O termo aparece uma única vez (Jo 13,16), com o sentido comum
(não técnico) de enviado. A figura mais destacada no Evangelho é a do discípulo,
sobretudo na expressão “o discípulo amado”. O autor faz um contraste contínuo,
no contexto histórico posterior ao ano 70, entre o discípulo amado, como tipo da
220 Cf. LAGRANGE, J. M. Évangile selon Marc, p. 388. “A palavra Pai, com a qual Jesus sempre se dirigia a Deus ou para falar a respeito de Deus, conforme reportam muitas passagens do Novo Testamento, de modo especial nos Evangelhos, é sempre path,r com exceção feita em Mc 14,36, Rm 8,15 e Gl 4,6, onde a expressão é um composto de duas palavras com o mesmo sentido, uma aramaica e outra grega: abba o. path,r. João o utiliza nove vezes. Sempre apresenta Jesus em diálogo com o Pai. Esta realidade, por si mesma denota o sentido de intimidade entre Jesus e Deus, a quem ele chamava de Pai, independentemente de os Evangelhos não reportarem à palavra aramaica abba”. 221 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. Vocabulário Teológico do Evangelho de São João, p. 191. Jo 3,17.34; 5,26.38; 6,29.57; 7,29; 8,42; 9,7; 10,36; 11,42; 17,3.8.18.21.23.25; 20,21. 222 Cf. BROWN, Raymond E. Introdução ao Novo Testamento, p. 173. 223 Cf. BROWN, Raymond E. A Comunidade do Discípulo Amado, p. 11.
72
Igreja do quarto Evangelho, e Pedro, como tipo das Igrejas apostólicas. O
discípulo amado certamente foi uma pessoa real e histórica, discípulo de Jesus,
testemunha de sua vida, morte e ressurreição.224 Provavelmente é o autor do
quarto Evangelho, embora seja possível que sua obra tenha sido continuada e
completada pela comunidade. O discípulo amado não é o apóstolo João, irmão de
Tiago, filho de Zebedeu. A identidade do discípulo amado é ser discípulo. A sua
honra ou título é ser discípulo e não apóstolo. O discípulo amado, como autor do
Evangelho conservou cuidadosamente seu nome no anonimato,225 para fazer
ressaltar ainda mais sua condição de discípulo. Assim como a mãe de Jesus nunca
é mencionada pelo nome, para fazer ressaltar sua dignidade de mulher e de
discípula de Jesus (Jo 2,1-11). Posteriormente a tradição eclesial identificou o
discípulo amado com o apóstolo João, para dar ao Evangelho uma autoria
apostólica e assim resgatá-lo das mãos dos hereges gnósticos que tinham se
apropriado dele. Mas o Evangelho mesmo nunca identifica o discípulo amado
nem explícita nem implicitamente com João, o apóstolo.226
Deus no Antigo Testamento se revela como o criador do ser humano que lhe
dá gratuitamente a vida e o faz à sua mlc como também ao modo de um artesão
que modela um vaso de barro (Gn 2,7). Em (Gn 1,4b-7) trata-se muito mais da
criação através de um trabalho do que mediante a Palavra. A vida é, de certo
modo, uma dádiva continuamente renovada. Observa-se, no entanto, num
primeiro ato criador o aparecimento da luz.227 A primeira obra criadora de Deus
consiste em expulsar as trevas, o caos e o mal, introduzindo a luz de sua própria
glória. Ao longo da história de Israel Deus se apresenta como um pedagogo, toma
a iniciativa, é criador e salvador ao mesmo tempo, conduz e ensina através do
deserto, que o desígnio criador-salvífico consiste em ter liberdade e vida. Vem ao
encontro do ser humano e se manifesta de um modo especial, onde a vida está
ausente, prometendo-lhe um salvador.228
224 Cf. LAGRANGE, J. M. Évangile selon Marc, p. 388. 225 Cf. Jo 1,35-42 aqui aparecem dois discípulos que ouvem João Batista e seguem a Jesus: um é André e o outro permanece no anonimato. 226 Cf. BROWN, Raymond R. A Comunidade do Discípulo Amado, pp. 31-34. 227 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Lucas em João, p. 47. “Conforme nos relata o livro do Gênesis, o primeiro dia foi a criação da Luz, que se distingue dos luzeiros Gn 1,18, obra do quarto dia. Em Jo 1,4, na Luz estava a Vida dos Homens. No versículo seguinte Jo 1,5, ele acrescenta que a luz brilha nas trevas, mas esta não as acolhem”. 228 Cf. McKENZIE, John L. Dicionário Bíblico, pp. 195-198.
73
Jesus, no prólogo do Evangelho de João, é o enviado, a revelação do Pai,
ungido pelo Espírito, mas revestido de bondade, amor e compaixão. Aqui se dá o
início das obras. Não há um texto que as antecede. “Há, sim, um pré-texto que
seria a comunidade Joanina necessitada de entender melhor o Messias como a
manifestação concreta do Pai. João faz uma caminhada retroativa até o a[rch,,
situando este início junto do Pai”.229 O cumprimento da promessa feita aos pais se
dá, deste modo, no Novo Testamento onde a pregação de João consiste na
mensagem de que Deus amou o mundo de tal maneira que enviou o seu Filho
“unigênito”, não para julgá-lo, e sim para salvá-lo (Jo 3,16). O envio do Filho é o
ato de amor de Deus. O amor de Deus por nós se manifestou nisto: Deus enviou o
seu Filho unigênito ao mundo para que vivêssemos por meio dele. O amor de
Deus aparece no envio.230
Assim, no seu infinito amor pelo ser humano, Deus se revela na história do
povo de Israel. Após ter falado muitas vezes e de muitos modos pelos profetas,
Deus “ultimamente nestes dias, falou-nos pelo Filho” (Hb 1,1-2). “De fato, Deus
enviou o seu Filho, o Verbo eterno que ilumina todos os homens, para que
habitasse entre os homens e lhes mostrasse o modo de ser de Deus (Jo 1,1-18)”.
Jesus Cristo, portanto, Verbo feito carne, enviado como “homem aos homens”,
aquele que veio morar entre nós, fala do que ouviu do Pai (Jo 3,34) e consuma a
obra salvífica que o Pai lhe confiou em toda a sua atividade terrena, manifestada
por meio de Palavras, gestos e ações libertadoras. Esta é a razão por que Ele, ao
qual quem vê, vê também o Pai (Jo 14,9), por sua presença atuante em favor da
vida e manifestação de Si mesmo, e especialmente por sua morte e ressurreição
dentre os mortos, finalmente enviado o Espírito da verdade, aperfeiçoa e completa
a revelação e a confirma com o testemunho divino e com a certeza de que Deus
está conosco para libertar-nos das trevas do pecado e da morte e para ressuscitar-
nos para a vida eterna.231
Observa-se no início do Evangelho, que o prólogo orienta os leitores de um
modo bem próprio. Primeiro, suas palavras iniciais: “No princípio era a Palavra”
situa a história de Jesus na eternidade, antes de a Palavra se fazer carne. Antes da
criação, a Palavra já estava com Deus. O narrador explica que a Palavra era
229 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Lucas em João, p. 127. 230 Cf. BULTMANN, R. Teologia do Novo Testamento, pp. 434-440. 231 Cf. DEI VERBUM. Constituição Dogmática, pp. 122-123.
74
Deus.232 Todas as coisas foram feitas pela Palavra e a Palavra era vida e luz.
Portanto, logo no início os leitores já sabem o segredo mais profundo da
identidade de Jesus e não devem surpreender-se - como acontece com os
personagens da narrativa (Jo 9,1-12) - quando Jesus afirma que revela o que ouviu
e viu na presença de Deus.233 Nem ficarão escandalizados quando ele disser que
ele é a vida e a luz do mundo. Segundo, o prólogo identifica João Batista como
testemunha de Jesus (Jo 1,6-8.15). Além de preparar para o testemunho, estes
versículos preanunciam um tema que se repetirá através do Evangelho: o
testemunho de Jesus deve levar à fé de que Jesus provém de Deus. Enquanto o
mundo condena a si próprio ao não aceitar este testemunho, os que crerem serão
iluminados por Jesus, a luz do mundo.234
Em Jo 9,1-12 encontra-se o episódio do cego de nascença, onde Jesus se
manifesta como luz do mundo. O relato do milagre está intimamente ligado ao
belíssimo relato do proêmio a todo Evangelho que também apresenta Jesus como
luz do mundo, o prólogo (Jo 1,1-18): “O Lo,goj235 se fez carne e nós vimos a sua
glória” (Jo 1,14). A intenção de (Jo 1,19-51), que trata adequadamente o tema do
testemunho, poderia corresponder aos primeiros versículos de Marcos, que
enunciam o tema do cumprimento da profecia. E assim aconteceu de fato. O
Lo,goj é a Palavra de Deus, pela qual os céus foram formados, que veio a Israel
pelos profetas, foi rejeitada pelo povo em geral, mas encontrou aceitação entre
um pequeno resto fiel, ao qual, pelo Filho, ele deu a condição de filhos de Deus,
ou seja, a dignidade humana, a Vida. A Palavra não somente se realizou, mas foi
cumprida num sentido mais profundo. A própria Palavra que procede da boca de
232 Cf. MATERA, Frank J. Cristologia Narrativa do Novo Testamento, p. 323. “O prólogo identifica claramente a Palavra como Deus - porém não chama a Palavra de ov Qeo.j, preservando assim a distinção entre Deus, que é o Pai, e a Palavra que é o Filho”. 233 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João, p. 238. “Aqui se torna evidente um dos temas essenciais de João, o da origem de Jesus no confronto com os fariseus, o espantoso para o miraculado, não é mais o milagre, mas o fato de que as autoridades não saibam de onde vem Jesus. A comunidade Joanina, no entanto, sabe que Jesus é de origem divina”. Jo 7,27; 8,14; 9,29; 19,9. 234 Cf. MATERA, Frank J. Cristologia Narrativa do Novo Testamento, pp. 222-223. 235 Cf. BOISMARD, M. E. Le Nouveau Testament, p. 75. “O prólogo de origem Sapiencial nos coloca na trilha de um hino judaico-helenístico. Pode-se encontrar paralelismos desse Lo,goj no Antigo Testamento em correspondência com o ‘dabar’ judaico e a tradição filosófica helenística, personificada pelo autor da Sabedoria e por Filon”.
75
Deus e não retorna a ela vazia,236 encontrou uma morada concreta no Filho, o
enviado do Pai e trabalhou criando como no começo.237
O modo de ser de Jesus nos Evangelhos está em continuidade com o Deus
dos pais. “Eu e o Pai somos um”. No quarto Evangelho, o envio do Filho pelo Pai
retorna como um estribilho a cada um dos discursos Jo 3,17; Jo 10,36; Jo 17,18.
Da mesma forma, o único desejo de Jesus é fazer a vontade d’Aquele que o
enviou (Jo 4,34; Jo 6,38), realizar as suas obras (Jo 9,4), dizer o que dele ouviu
(Jo 8,26). Há entre eles uma tal unidade (Jo 6,57; Jo 8,16.29), que a atitude de
vida adotada por Jesus é uma tomada de posição para com o próprio Deus (Jo
5,23; Jo 12,44; Jo 15,21-24). Quanto à Paixão, consumação de sua obra, Jesus vê
nela a sua volta para Aquele que o enviou (Jo 7,33). A fé que ele exige dos
homens é uma fé na sua missão (Jo 11,42). Isto implica ao mesmo tempo a fé no
Filho como enviado (Jo 6,29) e a fé no Pai que O envia (Jo 5,24).238 Porém, os
novos tempos ultrapassam o que até então era considerado conteúdo da Palavra:
“graça (hesed) e verdade (‘emet)”. A “ Torah” não trouxe a graça e a verdade no
pleno sentido, mas Cristo sim. Ela não é mais que sombra da verdadeira Palavra.
A Palavra é também a sabedoria divina. O Evangelho escatológico declarava que
o que tinha de vir já veio: “As coisas antigas passaram: eis que novas coisas
surgiram”(Ap 21,1).
O prólogo está baseado na concepção filosófica de duas ordens de seres,
distintas não por sucessão de tempo, mas pela maior ou menor medida de
realidade que possuem. Existe, portanto, a ordem da realidade, pura, transcendente
e eterna que é o próprio pensamento de Deus e existe a ordem empírica que é real,
só enquanto exprime a ordem eterna.239 O mundo em vários níveis - a criação
inferior, a raça humana, a humanidade espiritualmente iluminada - demonstra uma
crescente penetração da ordem inferior pela superior, um crescente domínio da luz
sobre as trevas.240 João adota a linguagem filosófica para apresentar a idéia do
Lo,goj como o ingresso apropriado para os interlecutores do tempo, a fim de os
levar ao objetivo central do Evangelho, e através da qual ele poderia conduzi-los à
atualidade histórica de sua narração, enraizada na tradição judaica. A descida do
236 Cf. KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João - Amor e Fidelidade, p. 20. 237 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Nem Aqui, nem em Jerusalém, p. 36. 238 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Vocabulário de Teologia Bíblica, pp. 598-602. 239 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, p. 386. 240 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, pp. 383-388.
76
Lo,goj à esfera inferior, trouxe vida e luz para aqueles que o acolheram. Ambos os
conceitos aparecem como que um fio condutor de todo o Evangelho de João,
sobretudo no chamado Livro dos Sinais (Jo 2-12), e tendo na conclusão do
Evangelho uma ênfase especial “... e para que, crendo, tenhais a vida em seu
nome” (Jo 20,31). O símbolo da luz entrelaçado ao conceito de vida aparece
também em (Jo 8,12) e na perícope a ser analisada nesta dissertação (Jo 9,5).241
Aqui gestos e palavras se juntam na ação recriadora do pedagogo Jesus, o enviado
do Pai, em favor do cego de nascença e nos reporta ao modo de ser de Deus, no
Antigo e Novo Testamentos: “Eu vim para que tenham vida, e a tenham em
abundância” (Jo 10,10).
4.2.
Jesus, o mestre no caminho
Como o enviado do Pai, o Filho de Deus no mundo é o caminho. Sua
doutrina é a que ele recebeu do Pai. Esta é a universidade na qual ele estudou.242
Caminhando, indo e vindo, sempre na busca do encontro com os mais pobres,
privados da dignidade da vida é o seu modo de ser nos Evangelhos Lc 13,22; Lc
17,11; Jo 9,35. No quarto Evangelho a perspectiva do pobre assume
características diferentes da tradição sinótica. O pobre não é só o ecomicamente
pobre, mas também o enfermo, o desprezado, o humilhado, o marginalizado, o
excluído. Estes, aos quais Jesus se dirige são também colocados nos Evangelhos
Sinóticos, porém o pobre no quarto Evangelho não tem o peso social e teológico
que têm os outros textos no Novo Testamento como, por exemplo, em Mt 25. O
termo aparece quatro vezes 243 e a frase importante está em (Jo 12,8): “Pois
sempre tendes pobres convosco, mas a mim nem sempre tendes”. A frase é
tomada da tradição (Mt 26,11; Mc 14,7).244 Quase sempre ela é mal interpretada,
no sentido de que sempre haverá pobres e que, enfim, é mais importante ocupar-se
com Jesus do que com os pobres.245 Em primeiro lugar observa-se que aqui não se
afirma que sempre haverá pobres. Todos os verbos (no texto grego) estão no 241 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, p. 385. 242 Cf. OPORTO, Santiago Guijarro & GARCIA Miguel Salvador. Comentário ao Novo Testamento, p. 288. 243 Cf. Jo 12,5; Jo 12,6; Jo 12,8; Jo 13,39. 244 Cf. OPORTO, Santiago Guijarro & GARCIA, Miguel Salvador. Comentário ao Novo Testamento, p. 289. 245 Cf. KONINGS, Johan. O Evangelho Segundo João - Amor e Fidelidade, pp. 149-161.
77
presente. O sentido é: vocês estão o tempo todo (habitualmente) com os pobres.
Além disso, no texto não se opõe Jesus aos pobres. Esta afirmação iria contra toda
a tradição evangélica (Mt 25), mas o contraste é entre a permanência habitual dos
discípulos junto aos pobres e o kairo,j, momento único e irrepetível da presença
de Jesus entre eles: não tendes a mim como de costume.246 O quarto Evangelho
usa peculiarmente para enfermidade o termo grego avsqe,vneia e para o enfermo
avsqe,vvneij, que expressa fraqueza, tanto social quanto corporal. Em Jo 5,1-9 Jesus
sobe a Jerusalém para uma festa dos “judeus” e se dirige diretamente à piscina de
Betsaida, em cujos pórticos “estavam deitados pelo chão numerosos doentes,
cegos, coxos e paralíticos”. Logo se fixa no que era o mais pobre entre todos, pois
há 38 anos era doente e não tinha quem o ajudasse. Jesus começa sua viagem a
Jerusalém com uma opção pelos pobres.
No texto em análise do capítulo 9° de João, Jesus também cura o cego de
nascença, que é mendigo (Jo 9,8) e considerado um pecador (Jo 9,2.34). Por causa
de sua cura e seu testemunho será injuriado e humilhado (Jo 9,28) e depois
expulso da Sinagoga. Sabe-se que a história deste cego representa a história da
comunidade do discípulo amado. A situação do cego pobre e excluído é também a
situação de uma comunidade pobre e excluída. Em (Jo 6,2) também se diz: “uma
grande multidão o seguia, porque tinha visto os sinais que ele realizava nos
doentes...” O povo seguia Jesus por causa do seu compromisso com os pobres.
Também a comunidade é crível pelos sinais que realiza entre os enfermos, os
pobres, os desprezados.247 Assim, o olhar de Jesus se dirige ao pobre, ou seja, ao
cego de nascença. E é a partir do olhar de Jesus, que este homem vai gradativa e
inteligentemente chegando ao verdadeiro conhecimento do Filho de Deus, torna-
se discípulo248 no caminho e por três vezes confessa humildemente sua ignorância
(Jo 9,12.25.36). Justamente, após Jesus apresentar o que o Pai lhe mandou, e o seu
246 Cf. RICHARD, Pablo. Chaves para uma Re-leitura histórica e libertadora in: RIBLA, A Tradição do Discípulo Amado, p. 8. “Na Tradição bíblica os enfermos eram sempre marginalizados, fracos, carentes, considerados pecadores, normalmente pobres e mendigos. No quarto Evangelho a perspectiva do pobre é diferente da tradição sinótica, mas nem por isso menos real e profunda”. 247Cf. RICHARD, Pablo. Chaves para uma Re-Leitura histórica e Libertadora in: RIBLA, A Tradição do Discípulo Amado, pp. 7-9. 248 Cf. BARREIRO, Álvaro. Vimos a sua Glória, pp. 77-82. “Comentando a vocação dos primeiros discípulos em Jo 1,35-52 - o autor vai dizer que o seguimento de Jesus no Evangelho de João é emoldurado e dinamizado pelo olhar: Jesus voltou-se para trás e, ao ver que o seguiam, perguntou-lhes: ‘Que estais procurando?’ Eles responderam: ‘Rabbi,’ nome que traduzido significa Mestre onde moras”?
78
mandamento significa vida definitiva, estabelece-se um conflito com as
autoridades. Na clandestinidade, marcada pelo fim do episódio anterior, ao sair do
Templo, - centro do ensino oficial que com a Lei mantém o povo submetido a
ponto de morrer - e caminhando, ele vê a ausência de “vida” no cego de nascença,
sentado à porta. Provavelmente o cego estava sentado à porta do Templo, pois, os
cegos, costumavam ficar sentados pedindo esmolas, à semelhança do cego de
Jericó, que estava sentado à beira do caminho.249 Os próprios vizinhos que o
conheciam não o chamam pelo nome, mas por “aquele que estava sentado
pedindo”.250
O homem a quem Jesus dirige seu olhar não tem nome,251 o que demonstra a
exclusão em que vivia, pois o nome está relacionado com a essência da pessoa.252
Era cego e mendigo, estava sentado à porta do Templo, provavelmente pedindo
esmolas... Passando Jesus viu o cego e foi ao encontro de sua debilidade. Jesus
tomou a iniciativa, confirmando no seu modo de ser nos Evangelhos, a
continuidade com o modo de ser de Deus no Antigo Testamento, em cujas ações
se expressa a preferência pelos pobres e perseguidos, constituindo o centro das
Escrituras.253 Este fio condutor, ou seja, o amor preferencial pelos pobres perpassa
os escritos bíblicos do início ao fim, e é ao mesmo tempo indicador da presença
constante de Deus, junto aos necessitados de vida e liberdade. O livro do Êxodo
mostra, no episódio da sarça ardente, a Palavra sendo dirigida a Moisés: “Eu vi a
miséria do meu povo que está no Egito” Ex 3,7.254 Deste modo é também a partir
do olhar de Deus para o povo oprimido, sob o domínio dos Egípcios, que Moisés
é enviado para liderar a caminhada deste mesmo povo pelo deserto, a fim de
conduzi-lo à terra da libertação. O olhar do enviado do Pai para o cego de
nascença através do Filho, foi a fonte iluminadora, donde brotou uma nova vida,
a luz da vida,255 o começo da transformação. Assim como Deus ensinou o povo
através da travessia pelo deserto, em busca da libertação, também o cego de
249 Cf. Mc 10,46 - O cego estava sentado à beira do caminho mendigando. 250 Cf. CÁSSIO, Murilo dias da Silva. Metodologia de Exegese Bíblica, pp. 259. Trata-se do contexto cultural e visa fazer uma ponte entre dois universos: o do autor e o do leitor. O redator fornece esclarecimentos a respeito de costumes. Mc 7,2b-4. 251 Cf. BORN, A. “nome” Dicionário Enciclopédico da Bíblia, pp. 1046-1050. 252 Cf. VAUX, Roland de. Les Institutions de L’ancien Testament, pp. 74-78. 253 Cf. TRACY, David. Êxodo: Reflexão Teológica in: Conciliun, Êxodo: Paradigma Sempre Atual, pp 130-131. 254 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João I, p. 311. 255 Cf. McKENZIE, John L. Dicionário Bíblico, pp. 960-963.
79
nascença, do qual nos fala o Evangelho, percorreu um longo caminho, no processo
de libertação da cegueira,256 no qual se tornou um aprendiz do Mestre.257 Jesus
pediu a colaboração humana. O ver não foi passivo: após a aplicação do barro em
seus olhos, ele foi258 à piscina de Siloé, o Enviado, a fim de se lavar, conforme o
mandato de Jesus e voltou vendo.
O próprio Jesus confirma a validade do apelativo Mestre que lhe dão os
discípulos (Jo 13,13): ser mestre é próprio, portanto, da missão de Messias (Jo
18,17). A autoridade do ensinamento de Jesus é claramente baseada em sua
intimidade com o Pai. Esta autoridade, vinda da unidade do Filho com o Pai,
confere-lhe um modo de ensinar que causa estranheza nos dirigentes, pois, não
estudou nas escolas que eles controlam (Jo 7,15). De fato, Jesus propõe o que o
Pai lhe ensinou (Jo 8,28).259 A doutrina de Jesus entra assim em conflito com os
que exercem o magistério no tempo, para o qual reclamam origem divina (Jo
9,29): “A nós, consta que a Moisés Deus esteve falando”. Jesus propõe então a
condição indispensável para ser capaz de julgar se sua doutrina procede ou não de
Deus. Sua doutrina consiste em querer realizar o seu desígnio (Jo 7,17),
promovendo no homem a plenitude de vida (Jo 1,4; Jo 10,10). O ensinamento260
de Jesus coloca-se, portanto, na linha do desígnio criador conforme Jo 4,34. Quem
estiver em sintonia com ele, compreenderá que sua doutrina é de Deus.261
256 Cf. TRACY, David. Êxodo: Reflexão Teológica in: Conciliun, Êxodo: Paradigma sempre Atual, pp.135 “Na vida de Israel nenhum acontecimento de opressão/libertação pôde ser idêntico à experiência do Egito. Mas o recurso a ela (ao êxodo) foi acumulando sua riqueza simbólica e interpelante, como se o êxodo fosse incorporando todos os processos de libertação”. 257 Cf. BROWN, Raymond E. O Evangelho de João e as Epístolas, p. 476. 258 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. O Evangelho Segundo João I, pp. 307-315. “Em João a Palavra de Jesus é vida, movimento. Tal como acontecera com o oficial de justiça, a confirmação do milagre: ‘teu filho vive’, no qual tudo se passa longe de Jesus, no caminho. Aqui também, num primeiro momento, a obediência à Palavra, o ir em busca da libertação da cegueira, parece se realizar ‘in absentia’ de Jesus. Mas, ao se colocar no caminho, o cego vai ao encontro da fonte iluminadora capaz de dar-lhe a vida. O ‘Enviado’ do Pai, cujo único desejo é que se tenha vida em plenitude”. 259 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan Vocabulário Teológico do Evangelho de São João, p. 189. 260 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, p. 228. “Os gregos concebem o processo do conhecimento como análogo ao da visão. Isto é, exteriorizam o objeto do conhecimento para chegar à verdade, ou seja, contemplar a realidade última. Para os Hebreus o conhecimento consiste na experiência do objeto em sua relação com o sujeito. A aprendizagem implica uma percepção imediata de alguma coisa afetando a pessoa e pode ser uma doença, perda dos filhos, tranqüilidade interior”. 261 Cf. MATEOS, Juan & BARRETO, Juan. Vocabulário Teológico do Evangelho de São João, pp. 187-190.
80
Abrir os olhos aos cegos era uma das missões do Messias esperado.262 Os
Sinóticos narram várias curas de cegos: do cego de Betsaida (Mc 8,22-26), de
Bartimeu (Mc 10,46-52; Lc 18,35-46) e de um cego mudo em Galiléia (Mt 12,22-
23). Porém, só o Evangelho de João registra a cura de um cego de nascença. Jesus
ia caminhando, ou passando, quando viu um cego de nascença. O verbo passar é
usado em várias passagens do Antigo Testamento para narrar a manifestação de
Deus: Deus passou diante de Moisés e manifestou-lhe sua glória, sua bondade e
misericórdia (Ex 3,18-23). Também se manifestou a Elias, no monte Horeb,
passando diante dele como uma brisa leve (1Rs 19,9-18).
Jesus, a luz verdadeira que ilumina todo homem (Jo 1,9), a luz do mundo
(Jo 9,5), que dá a luz da vida aos que o seguem (Jo 8,12), ao sair do Templo e ver
um cego de nascença, pousa sobre ele o seu olhar cheio de compaixão. Tudo
começou com o olhar de Jesus. Foi Jesus quem viu o cego e não o cego quem
acudiu a ele. E o olhou tão detidamente que chamou a atenção dos discípulos
sobre ele.263
Um dos modos de João mostrar a pedagogia de Jesus é a partir do encontro
com o cego. Assim devem-se imaginar os fatos, Jesus saiu do Templo e viu264
provavelmente em um dos pórticos, onde costumava mendigar todo tipo de
pessoas miseráveis (At 3,2), um cego de nascença. A narrativa coloca em
destaque, o fato de que era tuflo.n evk geneth/j,265 (cego de nascença), a fim de
realçar a grandeza do milagre. Mas quer ser ao mesmo tempo um ponto de partida
para a pergunta sobre Jesus, que perpassa a perícope, cuja ação reveladora se
manifesta à luz pública e à consciência de todos, por intermédio deste ato. Ou
seja, ao passar pelo caminho ele cura um cego de nascença.266 É bem possível, sob
o ângulo da relação R`abbi,, (título dado pelos discípulos), com Moisés,
apresentadas pelo evangelista neste texto, que Jesus, ao se colocar a caminho,
262 Cf. Is 29,18ss; 35,5.10; 42,6-7; 49,6.9; 60,1; 61,1-2; Lc 4,18-19. 263 Cf. CRISÓSTOMO, João. Homilias sobre el Evangelio de San Juan, pp. 272-273. 264 Cf. BARREIRO, Álvaro. Vimos a sua Glória, pp. 69-71 “Ao passar pelos caminhos Jo 1,36, Jesus volta o seu olhar para os que estão necessitados de ‘luz e vida’ - O Verbo que existia eternamente voltado para Deus, por meio de quem foi criado tudo quanto existe Jo 1,1-2 - o Verbo que, chegada a plenitude dos tempos, ‘se fez carne e ergueu a sua tenda no meio de nossas tendas’ Jo 1,14; o Verbo que nos deu a conhecer ‘o Deus que ninguém viu jamais’ - viu antes de ser visto e olhado pelo cego, justamente porque era cego, necessitado da luz física e espiritual, veio ao seu encontro, passou pelos caminhos da terra”. 265 Cf. BROWN, Raymond E. The Gospel According to John, p. 371. “De nascença - esta é uma expressão grega, atestada na tradução da LXX e nos escritores pagãos - a expressão semita parece ser ‘do ventre da mãe’. 266 Cf. BLANK, Josef. O Evangelho Segundo João, pp. 192-194.
81
conforme o próprio autor nos apresenta kai. para,gwn (e caminhando) tenha tido a
intenção de dar continuidade ao ensinamento267 ministrado no Templo através do
sinal prestes a se realizar. O ensinamento deriva da sua atuação, porque ele,
enquanto está no mundo é a luz do mundo. Mas para Jesus o ensinamento com o
qual se chega ao conhecimento de Deus e que é união com Deus, não é metafísica
nem visão sensível e supra-sensível do absoluto nem tampouco êxtase místico ou
entusiasmo. É, ao contrário, condicionado por uma relação histórica do Lo,goj. É
aqui que a verdade, a realidade absoluta enquanto revelada, deve ser encontrada.
Então o conhecimento toma a forma de fé, que é tanto uma aceitação do fato de
que Jesus Cristo é a revelação do Deus eterno, quanto uma adesão pessoal a ele.
Não como uma etapa preliminar para o conhecimento, mas é o próprio
conhecimento de Deus que é comunhão com ele e constitui a vida eterna. É um
caminho para ver a Deus.268 O desejo e a pressa de ensinar pelo caminho269 se
confirma pela presença dos discípulos, fora de cena, desde o capítulo 6° de
João.270 Jesus está acompanhado dos discípulos. O autor não nos informa quais
são eles, e quantos são. Não importa. Os discípulos representam aqui o leitor, que
deve aprender a lição.271
4.3. O diálogo com os discípulos
O mestre, no Antigo Testamento, é em primeiro lugar concebido como um
revelador. O discípulo é um ouvinte e a aceitação da doutrina é aceitação de
Iahweh, aquele que se revela a Si mesmo como Senhor e salvador de Israel. O
ensinamento é dirigido ao homem todo e é ensinamento de vida. O v. 2 kai.
hvrw,thsan auvto.n oi` maqhtai. auvtou/ le,gontej\ rabbi,( ti,j h[marten( ou-toj h' oi
267 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João, p. 237. “A ironia Joanina brinca com o emprego freqüente do verbo oi=da, ‘saber.’ Através deste termo faz-se sentir uma tensão entre a sinagoga e a Igreja, a primeira inabalável em suas certezas, como enfatiza a repetição do ‘nós’ Jo 9,24.29, e a segunda opondo-lhe um saber mais radical e que não pode ser superado Jo 9,31. Aqui aparece pela última vez a menção deste saber”. 268 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, p. 268. 269 Cf. McKENZIE John L. “Caminho” Dicionário Bíblico, p. 135. “Caminho maneira de vida e de conduta, especificamente designa o modo de ser de vida do cristão ou alguns de seus aspectos. O cristianismo é simplesmente indicado como o ‘caminho’ (At 9,2;19,9.23; 22,4;24,14.22). Provavelmente estas passagens refletem uma indicação particular local e aponta para a concepção cristã da fé, não como um simples ensinamento ou um código de princípios morais, mas como a vontade de Deus, que opera na história, mediante Jesus Cristo, guia da vida humana. O cristianismo é mais que uma fé, é uma maneira de viver”. 270 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier, Leitura do Evangelho Segundo João, p. 228. 271 Cf. KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João - Amor e Fidelidade, pp. 196-197.
82
gonei/j auvtou/( i[na tuflo.j gennhqh pertence à camada redacional272 de João II-A e
se aproxima da característica do conceito de ensino na cultura grega, ou seja, na
forma de diálogo. Na cultura grega, se utilizava o diálogo, sobretudo, como
veículo de uma apresentação mais ou menos elaborada de aspectos doutrinais,
cujo objetivo principal era aprofundar um assunto. Basta ter presente os diálogos
de Platão, ou da literatura hermética, ou de Luciano de Samosata e Cícero para
entender o papel e o sentido do gênero literário de diálogo: meio de ensinamento,
de apresentação e aprofundamento de um ou vários pontos doutrinais que, desta
maneira, são objetos de um tratamento mais lento e com possibilidades de
iluminar a realidade questionada do objeto.273 Na perícope em questão, trata-se de
um diálogo teológico, cuja função de ensinar está dirigida em primeiro lugar à
comunidade Joanina da qual os discípulos, mas também o cego são os
representantes. Os discípulos perguntam ao mestre, equivale a (Jo 4,31)... Rvabbi,,
meu mestre. Este termo é usado para designar os mestres da Lei, aplicado a Jesus
tanto pelos seus discípulos,274 quanto por Nicodemos (Jo 3,2). Nos Evangelhos, de
um modo geral, a forma mais atribuída a Jesus é dida,skaloj, que equivale a
ensinar, isto é, mestre. Muda-se para Rvabbouni,, meu Senhor e meu mestre na
forma aramaica, depois da ressurreição (Jo 20,16). Em João Rvabbi, foi o ponto
inicial antes de um conhecimento mais profundo de Jesus (Jo 1,38).275 Rvabbouni, é
o de chegada, meu Senhor e meu mestre, o grau mais elevado, depois que o seu
ensino alcançou o ápice, com a doação de sua vida na cruz, prefigurada e
antecipada na ceia de despedida, dos discípulos com o mestre (Jo 13,13), onde
Jesus ensina a servir os menores e a lavar os pés uns dos outros.
A diferença dos termos, destacada acima em João, indica que Jesus é mestre
de modo novo, se coloca no caminho com, e entre os pobres, os que têm
necessidade de Deus, e os liberta de suas enfermidades e opressões. Sua marca
fundamental é o serviço e o amor fraterno. Supera em muito a doutrina dos
272 Cf. BOISMARD, M. E. & LAMOUILLE, A. l’Évangile de Jean III - Synopse des Quatre Évangiles en Français, p. 249. 273 Cf. TUÑI, Joseph Oriol & XAVIER, Alegre. Escritos Joánicos y Cartas Apostólicas, pp. 44-45. 274 Cf. Jo 1,38; Jo 4,31; Jo 6,25; Jo 9,12; Jo 11,18. 275 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. “Mestre” Vocabulário Teológico do Evangelho de João, p. 88.
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rabinos de sua época.276 Nos Evangelhos é provável que não haja dúvida em
asseverarmos, que onde Jesus é chamado Senhor, normalmente a palavra
representa Rabi.277
Na pergunta dos discípulos: “...quem pecou, ele ou os pais dele, para que
nascesse cego” está implícito, um conceito errôneo, da que assim ficou sendo
chamada teologia da retribuição. Uma mentalidade que corresponde à do tempo
de Jesus, e da qual os discípulos participam. Conforme a concepção corrente no
judaísmo, a desgraça ou doença era efeito do pecado,278 que Deus castigava em
proporção exata com a gravidade da culpa.279 Um modo de pensar que se
concretizou especialmente dentro da tradição sapiencial do Antigo Testamento.
Boas e más obras trazem em si conseqüências e comportam efeitos bem precisos.
Pode-se deduzir delas a boa ou a má conduta de uma pessoa. O livro de Jó analisa
toda esta problemática entranhada nesta mentalidade com a tentativa de explicar o
sofrimento do justo. Este livro mostra o problema tomado da experiência de um
homem notoriamente piedoso, correto, justo, temente a Deus, longe de todo mal.
São esses os atributos com que o personagem Jó é introduzido no escrito (Jó 1,1).
Não obstante ser um homem justo, Jó sofre uma desgraça inaudita. Diante de tal
experiência, vê-se totalmente frustrado este modo de pensar. Certamente não
existe uma solução teórica para esta problemática que pergunta por uma ligação
íntima entre bondade moral e bem estar, maldade moral e desgraça, ou doença.280
Admitia-se também a idéia de uma correção por amor, isto é, que Deus, pelo
sofrimento, quer educar e purificar, mas isto era um caso especial. Como regra
geral se considerava que não há nenhuma correção sem culpa e que padecer supõe
276 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. “Mestre” Vocabulário Teológico do Evangelho de João, pp. 187-190. 277 Cf. COENEN, Lothar & BROWN, Colin. “Mestre”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p. 1918. “ ‘Rabi’ era, nos tempos do Novo Testamento, um título de respeito que o homem comum dava aos escribas, e o estudante ao seu mestre. Paulatinamente, veio a ser um termo técnico para um homem que recebera uma ordenação - isto é, que recebera autoridade para agir como juiz em questões religiosas. Recebia-se mediante a imposição das mãos. O emprego do termo ‘ordenação’ não deve ser entendido no sentido de ele ser, de qualquer maneira, um ministro no sentido cristão. A “Torah” era exclusivamente uma autoridade na Lei, conforme a Sinagoga veio a entendê-la. Esta ordenação era praticada somente na Palestina, e cessou no século IV d.C. Daí em diante, o título de ‘Rabi’ tem sido conferido mediante a opinião de três rabinos de que a respectiva pessoa tem conhecimento adequado para expor a lei”. 278 Cf. COENEN, Lothar & BROWN, Colin. “Pecado” Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, pp. 1602-1608. “Na literatura de João, o conceito de avmarti,a se encaixa no contexto do evento de Cristo, que mantém a harmonia entre a terra e o céu. Jesus entra no mundo - ko,smoj Jo 1,1-14 e carrega sobre Si, como o Cordeiro de Deus Jo 1,29, o pecado do mundo”. 279 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, p. 407. 280 Cf. BLANK, Josef. O Evangelho Segundo João, p. 194.
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o pecado.281 Mas nenhum castigo que procedesse de Deus podia impedir ao
homem o estudo da Lei. Cegueira, portanto, não podia ser castigo de amor, mas só
podia ser maldição.
Também não estava de todo excluída, para os rabinos, a idéia de que uma
criança pudesse pecar ainda no útero materno.282 Os “judeus” mais à frente vão
expressar a mesma mentalidade de que o cego nasceu em pecado (Jo 9,34); (Sl
51). Todavia a doutrina vétero-testamentária também mostrava a responsabilidade
dos próprios atos, sem que as conseqüências fossem colocadas sobre as gerações
posteriores. Cada um é responsável, e exclusivamente ele, por seus atos (Dt
24,16); (Jr 31,29); (Ez 18,2).
Segundo Boismard283 o avpekri,qh VIhsou/j\ ou;te ou-toj h[marten ou;te oi
gonei/j auvtou avllV i[na fanerwqh/| ta. e;rga tou/ qeou/ evn auvtw/|, também se situa em
João II-A porque, juntamente com o v. anterior, ele supõe uma concepção do
milagre abandonada por João II-B, mas corrente no nível de João II-A: no milagre
se manifesta a ação de Deus que se exerce graças à ação de Jesus. Em sua
sabedoria de Mestre por excelência, com a intenção de transmitir um ensinamento,
relacionado com vida a partir das raízes judaicas do conceito de ensino - conforme
nota acima - que se expressará na ação da cura, juntando gestos e Palavras, a
resposta de Jesus não é teórica, ou seja, não é uma idéia. Ele desvia a direção da
pergunta feita pelos discípulos que compartilham desta mesma mentalidade. Sua
atenção está voltada para a falta de vida, relacionada com a cegueira, e põe o caso
do cego, em íntima relação com o plano da salvação: ele, o cego, representa um
ponto de encontro entre a ação divina e a miséria humana que começou com o
olhar de Jesus. O Filho de Deus vê na cegueira ocasião para que se manifeste
281 Cf. Ex 20,5: “Não te prostrarás diante desses deuses e não servirás, porque eu, Iahweh teu Deus, sou um Deus ciumento que puno a iniqüidade dos pais sobre os filhos até a terceira geração dos que me odeiam”; Ex 34,7b: “mas a ninguém deixa impune e castiga a falta de seus pais nos filhos e nos filhos de seus filhos”; Nm 14,18b; Dt 5,9; Jr 31,29: “nesses dias não se dirá: os pais comeram uvas verdes e os dentes de seus filhos se embotaram. Mas cada um morrerá por sua própria falta. Todo homem que tenha comido uvas verdes terá seus dentes embotados”; Ez 18,2: “Que vem a ser este provérbio que vós usais na terra de Israel: ‘Os pais comeram uvas verdes e os dentes do filhos ficaram embotados?’; Tu, Senhor, lembra-te de mim e olha para mim; não me castigues por meus pecados, meus erros e o de meus pais, cometidos em tua presença, desobedecendo a teus mandamentos”. 282 Cf. BLANK, Josef. O Evangelho Segundo João, pp.194-195. “A discussão se apoiava no relato de Esaú e Jacó Gn 25,19-26 - na afirmação de que os dois meninos se chocaram no ventre da mãe Gn 25,22. Pelo contrário, que os filhos deviam sofrer as conseqüências dos pecados dos pais é uma opinião muito difundida”. 283 Cf. BOISMARD, M. E. & LAMOUILLE, A. l’Évangile de Jean III - Synopse des Quatre Évangiles en Français, p. 249.
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neste homem a atividade de Deus e responde à pergunta dos discípulos dizendo
que nem o cego, nem os pais são culpáveis. A causa da cegueira também não deve
ser atribuída a Deus. Jesus não entra, porém, na discussão a respeito da causa da
cegueira. Não é a hora de elaborar teorias nem de buscar os culpados. É a hora de
libertar os cativos e dar a vista aos cegos. A hora que Jesus passa e vê o cego de
nascença é o kairo,j, o tempo propício, a ocasião para que se manifestem nele as
obras de Deus (Jo 9,3) para revelar-se como o enviado de Deus, como luz do
mundo, para que todo aquele que nele crer não permaneça nas trevas (Jo 1,9; Jo
8,12; Jo 12,35-43). O poder e a bondade de Deus vão manifestar-se na cura do
cego feita por Jesus, que trabalha na missão recebida do Pai sem perder tempo,
“enquanto é dia” (Jo 9,2-5).284 Jesus afirma que não é castigo e que Deus não é
indiferente perante o mal, mas quer que o homem saia da miséria em que se
encontra e o ajuda para isso. As obras de Deus são os milagres, enquanto
expressão da atividade salvífica que Deus exerce através de Cristo, o enviado do
Pai, luz e vida para a humanidade.285
O cego de nascimento não tem experiência nem esperança da luz, e isto sem
nenhuma culpa pessoal ou herdada. Mas a cegueira do homem tem também um
sentido simbólico, como aparece pelo significado da luz em Jo 9,5 e pela
aplicação que se fará do termo cegueira em Jo 9,40. A falta da luz deve-se à ação
das trevas (Jo 1,5). Este homem, portanto, representa os que desde sempre
viveram submetidos à opressão, sem idéia de que podiam sair dela, por não
conhecerem alternativa. Não sabia o que se quer era a luz. Mas, nele vai se
manifestar o que Deus faz com os que nasceram e continuam privados de sua
condição humana. Nem ele, nem seus pais tinham pecado. Outros são os culpados
de sua cegueira (Jo 9,41). Seus pais tinham transmitido a condição de carne (Jo
3,6): “da carne nasce carne”, cuja fragilidade tornou possível a opressão em que
vivem.286
O homem do relato é cego de nascença e sua cegueira não provém do
pecado. Ele não pode então, ser figura do pecado da humanidade. Seu estado
simboliza outra escuridão, a nativa, ou seja, está em situação de pecado, porque
ainda não conhecia plenamente a luz da vida. Esta é a situação em que todo
284 Cf. BARREIRO, Álvaro. Vimos a sua Glória, p. 123. 285 Cf. NICCACI, Alviero & BATTAGLIA, Oscar. Comentário ao Evangelho de São João, pp. 154-156. 286 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, pp. 407-409.
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homem se encontra antes de ser iluminado pela revelação do Filho. No Prólogo,
João definiu o Lo,goj como a luz que brilha na escuridão (Jo 1,5). Aqui,
apresentando o cego de nascença, ele parece remontar a esta origem, pois a
iluminação se faz ao longo da história e em cada membro da comunidade Joanina
à medida que se aceita a luz, e assim, nasce para uma nova existência.287 Ao
declarar: “É para que nele sejam manifestadas as obras288 de Deus”, Jesus de
modo algum, afirma que era preciso que esse homem fosse cego para que Deus
pudesse mostrar seu poder. Ele está se referindo à situação do cego que lá se
encontra, com o qual entra em sintonia e a quem vai dar a visão física e espiritual,
manifestando assim a obra de Deus no mundo.289
Aqui transparece os pares opostos, característica do quarto Evangelho: dia-
noite; luz-escuridão. Segundo John L. Mckenzie290 o dia não se refere ao dia do
juízo. É mais provável que a expressão deva ser uma referência à Encarnação.
Portanto, decorrente do envio do Filho que veio ao mundo a fim de cumprir o
desígnio salvífico do Pai. Dia é o tempo da luz. Este dia está em relação com a
luz do mundo, que Jesus aplica a ele mesmo.
Ao associar a Si os discípulos por um nós291 um pouco surpreendente,
contrapondo-se a comunidade dos doadores de luz da qual o Evangelho de Mateus
também faz referência292 à comunidade que cega, ou seja, os dirigentes do tempo,
Jesus determina que deve agir “enquanto é dia”, isto é, enquanto dura seu
itinerário terrestre, sua atividade missionária, até à noite, ou o momento de sua
287 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. “Luz”, Vocabulário Teológico do Evangelho de São João, pp. 217-220. “No canto do Servo, Isaías orienta para esta novidade: “Eu guiarei os cegos por um caminho que eles não conhecem e fá-los-ei andar por veredas que ignoram; mudarei diante deles as trevas em luz” Is 42,16. 288 “As obras de Jesus são ações em favor do homem e são as obras do Pai Jo 5,17.36; 10,14, pelas quais se realiza o seu desígnio: dar vida ao homem. As obras de Jesus são ‘excelentes’ Jo 10,32.33 adjetivo que as colocam na ordem da obra criadora, kaloj o mesmo dado a Jesus o modelo, o ‘Bom Pastor’. Pelas obras se chega à fé em que Jesus é o enviado do Pai”. 289 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João, pp. 230-232. 290 Cf. McKENZIE, John L. “Dia”, Dicionário Bíblico, p. 234. “Na forma popular de expressão, ‘dia’ significa geralmente o período de luz entre o alvorecer e o crepúsculo. Dia e noite se contrapõem como realidades distintas no relato da criação em Gn 1,4, onde a luz é separada das trevas, do caos e chamada dia.” 291 De acordo com os melhores manuscritos, a leitura ‘nós’ - conforme aborda-se na crítica textual é preferida à leitura ‘eu’. A comunidade Joanina é associada à ação de Jesus: os discípulos devem, eles também, ‘realizar as obras daquele que me enviou’, cf. Jo 3,11; 4,35-38; 11,7. Porém para alguns autores, como por exemplo: BUSCHE, Henri van den e SCHNACKENBURG, Rudolf o plural não está ligado à associação dos discípulos a Jesus. Segundo estes autores, só Jesus, pode realizar as obras do Pai que o enviou. 292 Cf. Mt 5,14 “Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte”.
87
morte. Noite é o mundo sem Jesus, por oposição à luz como espaço ou período em
que falta a luz-vida. A resposta de Jesus também faz eco à Palavra: “Meu Pai
trabalha ainda e eu também trabalho” (Jo 5,7) e assim é justificada
antecipadamente a transgressão do sábado (Jo 9,14). Deus intervém no mundo
através da luz que ilumina o Filho. Atraída pelo termo dia surge novamente a
proclamação eu sou a luz do mundo (Jo 8,12).
4.4. Por que é preciso trabalhar enquanto é dia?
Para responder a esta questão é importante ter presente que o evangelista
está num estágio um pouco mais profundo da ruptura radical com os “judeus”.293
Por isso, Jesus está também mais próximo da condenação e morte, por parte
daqueles que rejeitam a luz, como já foi insinuado em (Jo 8,59).
É preciso trabalhar porque Jesus, o enviado do Pai, luz da vida, tem
necessidade de realizar sinais de salvação, pelo mandato de Deus, como “obras
daquele que me enviou” enquanto durar o tempo da revelação, portanto “enquanto
é dia”, ou seja, o tempo do ministério terreno de Jesus que termina com a sua hora
(Jo 12,23.35).294
A referência a “aquele que me enviou” está bem presente no Evangelho.
Como por exemplo, em (Jo 8,16). Jesus, como o enviado do Pai, manifesta as
obras de Deus enquanto é dia, porque estas são as obras da luz, feitas às claras a
fim de que todos possam ver.295 A noite, quando ninguém mais pode atuar, é uma
referência à morte e com isto ao final da atividade terrena de Jesus. O tempo de
Jesus é limitado e está chegando ao fim. Ele deve aproveitar todo o tempo para
trabalhar mesmo que seja sábado. O final deste tempo que chega para Jesus é a
Paixão e morte. Para os discípulos supõe todo tipo de impedimentos para o
trabalho.296 A continuação “ninguém mais poderá atuar” amplia o horizonte. A
noite, que põe um limite à atividade de qualquer pessoa, pode chegar de diversas
formas: com a morte, o impedimento externo, o caminhar na história. Assim a
Palavra passa a ser um apelo a escutar e a se comprometer aqui e agora com a voz
293 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Nem Aqui, nem em Jerusalém, p.122. 294 Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. El Evangelio Según San Juan II, p. 304. 295 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Nem Aqui, nem em Jerusalém. p. 125. 296 Cf. BLANK, Josef. O Evangelho Segundo João, p. 196.
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de Deus que chama a trabalhar enquanto é dia.297 O substantivo dia está
intimamente relacionado com a expressão “meu dia” em que Abraão viu e se
alegrou (Gn 17,17). O júbilo havia invadido Abraão tanto no momento da
promessa que lhe foi feita como na hora do nascimento de seu filho em razão da
alegria que ele suscitava. Na sua fé,298 Abraão encontra-se plenamente alegre
porque contemplou antecipadamente não somente as promessas, mas a salvação
da qual Isaac era a figura.299 Este dia, portanto, é seguramente o dia do Messias,
ou o mesmo que dizer, o tempo da revelação do Messias a Israel que veio trazer a
libertação para o seu povo.300 Dia está em relação com a denominação, luz do
mundo, que o próprio Jesus aplica a Si mesmo (Jo 8,12; Jo 9,5). Por isso compara
o tempo de sua atividade com um período de doze horas (Jo 11,9), ao que segue a
noite, em que não se pode trabalhar (Jo 9,4) ou se tropeça (Jo 11,9).301
Jesus confia aos discípulos a continuidade de sua missão. Eles devem
associar-se à sua atividade. No cego vai se manifestar as obras de Deus por
intermédio de Jesus (Jo 17,36; Jo 3,21; Jo 4,34) mas também os seus deverão
realizá-las (Jo 14,12). Essa será a atividade do grupo cristão (Jo 20,21): “Como o
Pai me enviou, eu vos mando a vós”. Como aparece neste relato e pelo do inválido
(Jo 5,3), as obras que Deus realiza consistem em libertar o ser humano de sua
impotência. Tem o objetivo de capacitar os homens para a ação e o exercício da
autonomia, no que se refere às situações de opressão e injustiça. A noite é o
período das trevas as quais podem considerar de duas maneiras: em si mesmas,
como o princípio ativo da morte (Jo 1,5), ou por oposição à luz, como espaço ou
período em que falta a luz-vida (Jo 8,12) quando Deus se manifesta oferecendo a
salvação (Jo 7,33), e há outro em que a oportunidade passa, o da ausência da luz.
Jesus tem o seu dia (Jo 8,56), durante o qual manifesta a luz, que é a glória do Pai
(Jo 12,35; cf. 11,9); e logo ele se irá (Jo 7,33).302
Chegará a noite, quando se testemunhar a rejeição definitiva de Jesus. Noite
é o mundo sem Jesus, que é a sua luz. Por isso é urgente trabalhar enquanto é dia.
Pois, uma vez que os dirigentes do povo tiverem feito a última opção, condenando 297 Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. El Evangelio Según San Juan II, p. 305. 298 Cf. Hb 11,13: “Na fé, (os patriarcas) morreram todos, sem ter obtido a realização das promessas, mas depois de tê-las visto e saudado de longe”. 299 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João II, p. 215. 300 Cf. BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard. “Dia” Diccionário exegético Del Nuevo Testamento II, p. 260. 301 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. Vocabulário Teológico do Evangelho de João, p. 57. 302 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, p. 409.
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e rechaçando Jesus como rei (Jo 19,41) não se poderá fazer mais nada, a ruína é
inevitável (Jo 7,34; 8,31). Enquanto se tem tempo é preciso trabalhar e oferecer a
salvação, mesmo que seja sábado.303
Precisamente estas demonstrações da atividade salvífica de Jesus são o
ponto crítico, mostra-o a referência ao próprio Jesus. Enquanto Jesus estiver no
mundo ele é a luz do mundo. Esta afirmação liga o relato com o discurso sobre a
luz (Jo 8,12) e ao mesmo tempo revela o caráter simbólico de toda a narração. Se
assim se expressa o tempo historicamente limitado da presença da revelação, na
afirmação transparece também a importância extratemporal da revelação de Jesus.
Porque graças à fé e a pregação da Igreja, Jesus continua sendo para todos os
tempos e épocas “a luz do mundo”. O que acontece com este cego de nascença
exemplifica o que acontece em cada ser humano que chega ao conhecimento e à
fé em Jesus.304
4.5. Jesus fonte de luz e vida
No seu modo de ser, profundamente unido ao Pai e por meio de uma
pedagogia do relacionamento interpessoal com os seus, depois de esclarecer que a
cegueira é i,na que se manifeste no mundo o desígnio salvífico, ou o brilho das
obras de Deus, ou ainda, o brilho da vida, “Quem me segue não andará nas trevas,
mas terá a luz da vida” (Jo 8,12b). Jesus vai ainda mais se auto-apresentando
como fonte de luz e vida e conclui o diálogo teológico com os discípulos,
repetindo o seu dito anterior na presença dos dirigentes: o]tan evn tw|/ kosmw| w=, fw/j
eivmi tou/ ko,smou. Conforme Boismard305 este v. é uma glosa, inserida pelo redator
final do Evangelho, com o intuito de estabelecer uma ligação com os termos
enquanto é dia em Jo 9,4, apontando para uma ação continuada com a idéia mais
precisa de que Cristo é “a luz do mundo”. João III, o redator final do Evangelho
retoma o tema da luz neste relato, onde Jesus dá a luz ao cego de nascença, daí a
adição do v. 5 colocado como centro e sentido simbólico da perícope.
303 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, p. 410. 304 Cf. BLANK, Josef. O Evangelho Segundo João, p. 197. 305 Cf. BOISMARD M. E. & LAMOIULLE, A. l’Évangile de Jean. Synopse III des Quatre Évangiles en Français, p. 250.
90
Fw/j,306 no seu significado básico de luz, brilho, também abrange as
seguintes matizes, entre outros: luz solar, luz do dia, tocha, fogo, luz do fogo,
vista. Figuradamente, fw/j significa a luz da vida, isto é, a própria vida, que é
altamente estimada como coisa brilhante e como algo comparável com a salvação
ou a felicidade. Em grego a palavra fw/j em contraste com sko,toj ou nu,x, veio a
significar a esfera do bem ético, enquanto se diz que as más ações se praticam na
escuridão. Platão estabelece uma equivalência da idéia do bem com a luz do sol.
Esta comparação se constitui em profunda significância para a história das idéias.
Ao entrar na esfera da epistemologia, (conhecimento) fw/j se enriqueceu
grandemente em seu campo de significação. Um contexto tal como este pode
ressaltar suas qualidades iluminadoras, enquanto outro contexto pode ressaltar sua
função curadora, pois no mundo grego havia uma relação estreita entre a noção do
pecado e a imagem das trevas, e a noção de uma redenção e salvação do mal e a
imagem da luz. A luz possui poder que é essencial à vida verdadeira. Assim, estar
na luz, chega a significar simplesmente viver, enquanto estar no hades, é estar nas
trevas.
Segundo Dodd307 pelo símbolo da luz foi possível dar uma idéia da relação
do absoluto para com os fenômenos, de Deus para com o universo. A luz se
comunica por irradiações que são emanações, assim se supunha, de sua própria
substância. Deste modo Deus é a luz por cujas difusas radiações apreendemos o
mundo fenomenal. À medida que subimos na escala, somos iluminados por estas
radiações superiores que são as “idéias” que constituem o ko,smoj, até que afinal, o
místico contempla a própria Luz que é Deus, não por uma luz qualquer
emprestada por ela mesma.308
Nos escritos de Fílon e em outros semelhantes, a luz é comumente associada
com a vida enquanto descrição do real ou do divino.309 Deste modo a filosofia
recebe uma fresca aragem de sua fonte original no sentimento religioso popular e
306 Cf. COENEN, Lothar & BROWN, Colin. “Luz”- Dicionário Internacional do Novo Testamento, p. 1220. “A luz é a matéria de outro mundo que se derrama sobre aquele que está disposto a recebê-la, e importa na possessão dos poderes divinos”. 307Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, p. 275. “A luz que ilumina todo homem é a que se comunica por emanação do ‘Pai de tudo que é vida e luz’. A maior parte da humanidade, todavia, não está consciente da presença da luz, (eles não se elevam da contemplação dos fenômenos ao reconhecimento de seus arquétipos), mas aqueles que ‘recebem’ a luz, a minoria ‘iluminada’, tem aquele conhecimento de Deus que os faz filhos de Deus e participantes de sua vida”. 308 Cf. DODD, Charles A . A Interpretação do Quarto Evangelho, p. 276. 309 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, p. 274.
91
ao mesmo tempo responde à aspiração sempre mais intensa à segurança da
imortalidade, pois, em tais escritos zoh,310 significa a vitalidade física e alguma
coisa a mais. Se a fonte da luz, pela qual conhecemos, é também a fonte da vida,
então, à medida que se avança no conhecimento rumo à visão da Luz, também se
participa da vida.311
Encontram-se no Antigo Testamento312 referências freqüentes à luz e aos
seus efeitos. B. Jacob e A. Dillmann,313 respectivamente, descrevem a luz como
sendo o elemento mais sublime, é o primogênito da criação. A luz é o esplendor
da vida, não existe, portanto, luz anterior à vida. Ela é a própria vida enquanto se
impõe por sua evidência e pode ser conhecida. Tem a primazia sobre todas as
demais luzes. Os israelitas ressaltavam sobremaneira que a luz tinha sido criada, a
fim de desfazer qualquer tentativa de deificá-la. Existe apenas o Deus único,
Iahweh. Algumas passagens descrevem a luz como um tipo de atributo de Deus: a
luz é seu manto (Sl 104,20); sua proximidade e presença são indicadas pela luz (Is
60,19-20), a luz habita com Ele (Hb 3,4). Seu brilho era como a luz. Diz-se,
especificamente, que é o seu rosto a origem da luz que dEle procede. Para o
homem, a luz de Iahweh significa a salvação, idéia esta que se expressa com
clareza no salmo (Sl 27,1; Jó 22,28). “O Senhor é a minha luz e a minha salvação;
de quem terei medo?” A luz que provém de Deus estabelece os limites da vida de
cada homem e brilha sobre todos os homens (Jó 25,3; Sir 42,16). Cada homem, no
entanto, ainda deve voltar-se para a luz. O ser humano deve na realidade, olhar
para além dela, para a sua origem, conscientemente reconhecendo o poder
Criador.314
Esses textos apontam para o modo como a revelação divina ilumina toda a
existência humana. Também os textos de Qumran acentuam fortemente a idéia de
revelação: “Da fonte de seu conhecimento fez brotar a luz que ilumina...” (1Qs
310 Cf. McKENZE, John L. “Vida”, Dicionário Bíblico, p. 842. 311 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, pp. 269-275. 312 Cf. SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João, p. 391. A metáfora da luz designa a lei e a Palavra de Deus: “Eis como as Palavras da “Torah” iluminam o homem quando a ela se aplica. Aquele que a ela não se aplica é semelhante a um homem que está nas trevas e se dispõe a caminhar: ele topa contra uma pedra e nela tropeça. Por quê? Porque ele não tem em mãos ‘a lâmpada’. Qual é a lâmpada de Deus? É a “Torah”! O mandamento é uma lâmpada e a “Torah” uma luz”. 313 Citado por COENEN, Lothar & BROWN, Colin. “Luz”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p. 1220. 314 Cf McKENZIE, John L. “Luz”, Dicionário Bíblico, p. 944. “Luz e glória são no Antigo Testamento, elementos da teofania, a presença sensível de Deus”.
92
11,3-4).315 O Novo Testamento realça também esta idéia, apontando para o
conteúdo da revelação, Deus disse: “Do meio das trevas brilhe a luz!” Foi ele
mesmo quem reluziu em nossos corações, para fazer brilhar o conhecimento da
glória de Deus, que resplandece na face de Cristo.316 A missão de Jesus em João é
caracterizada como transmissão de luz e vida. No quarto Evangelho o vocábulo
fw/j, aparece 23 vezes e constitui-se no sentido cristológico da revelação.317 João
apresenta o Verbo como a luz que irrompe no meio da escuridão do ko,smoj .318 A
fonte de luz vem até a humanidade. O divino se aproxima do ser humano, arma a
sua tenda no meio de nós. Luz e vida se vinculam entre si e segundo Bultmann319
“Ele, Jesus a luz do mundo é o único que pode cumprir a alegação de que pode
dar à existência o correto entendimento de si mesmo... se se deixar iluminar por
esta fonte de luz e vida. A luz designa diretamente a natureza de Jesus. Ele não é
como a luz; ele é a luz”. Aqui vemos duas noções teológicas fundamentais em
João: vida indica, não a vida biológica, mas a vida em sentido qualitativo integral,
que corresponde à vida eterna. Esta vida em sentido absoluto, que no Evangelho, é
identificada com Jesus (Jo 11,25; Jo 14,6) era a luz dos homens. Zoh,, portanto, é
um dos termos-chave do Evangelho de João, o núcleo central da teologia e da
pregação soteriológica Joanina. O conceito de vida eterna corresponde, em João,
315 Citado por DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, p. 346. 316 Cf. SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João, p. 391. 317 Cf. COENEN, Lothar & BROWN, Colin. “Luz”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p. 1221. “A nuvem brilhante que Deus empregou na transfiguração do seu Filho Mt 17,5, aponta além de si mesma para Deus, cuja manifestação vem inevitavelmente acompanhada pela efulgência. O Filho também é cercado por radiância: ‘O seu rosto resplandecia como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz’ Mt 17,2. Aqui, a luz é uma manifestação da presença de Deus; nalgumas outras passagens, indica a manifestação do Cristo exaltado: At 9,3; 22,6; 9,11; 26,13, e, noutras ainda, a vinda de anjos mensageiros da parte do próprio Deus At 12,7; Mt 28,2-3”. 318 Cf. BLANCHARD, Yves-Marie. São João. p. 69. A comunidade Joanina não se mostra indiferente ao mundo que a cerca. É espantoso que a palavra ko,smoj, apareça mais de setenta vezes no quarto Evangelho com o sentido de humanidade, e não de universo propriamente dito. Além disso, este parceiro onipresente é considerado o próprio objeto da salvação, o principal destinatário do amor divino concretizado pelo envio do Filho único: “Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho único, para que todo aquele que crer nele não pereça, mas tenha a vida eterna Jo 3,16. Seria errado considerar a comunidade Joanina exclusivamente do ponto de vista de sua oposição ao mundo, como se a certeza de possuir a verdade a tivesse isolado de seu ambiente. Muito pelo contrário, sua provável inserção no mundo grego, em Éfeso? - torna-a particularmente sensível à universalidade do dom de Deus. Apesar da mediação de Israel - ‘a salvação vem dos judeus’ Jo 4,22 - Jesus merece ser confessado o ‘Salvador do mundo’ Jo 4,42. Nesse sentido, o ato de fé dos samaritanos preludia o conjunto da missão cristã, mesmo no meio Joanino. A própria salvação implica toda a humanidade. Jesus não pode ser proposto como ‘Salvador’ se não for em proveito do ‘mundo’. ‘Quanto a nós, vimos e testemunhamos que o Pai enviou seu Filho como salvador do mundo’ 1Jo 4,14”. 319 Citado por COENEN, Lothar & BROWN, Colin. “Luz”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p. 1225.
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ao de Reino de Deus ou dos céus. O termo ou expressão Reino de Deus é colocada
nos Sinóticos. Pode-se dizer que em João o conceito vida substitui de certo modo
o de Reino de Deus. No Evangelho o vocábulo vida aparece 21 vezes; 7 vezes em
1Jo, e a expressão vida eterna 15 vezes no Evangelho e 7 vezes em 1Jo.320 Este
termo, mesmo sem o adjetivo que o acompanha freqüentemente, não se refere à
vida natural. Para designar esta vida, cujo fim é a morte, João recorre ao
substantivo psychê. Significativo é o texto de Jo 12,25: “Quem ama a sua vida, a
perde; e quem odeia a sua vida neste mundo, guardá-la-á para a vida eterna.”Aqui
João opõe qualitativamente a vida neste mundo, que pode perder-se, à vida
verdadeira e permanente, da qual Jesus é depositário e dispensador (Jo 6,57; Jo
14,19). A mesma expressão grega é utilizada quando se fala da entrega da própria
existência corporal.321 Nos Evangelhos Sinóticos, vida e vida eterna designam
uma condição futura, um dom salvífico escatológico, que se espera do Reino de
Deus já consumado.322 Em João, porém, se verifica uma surpreendente deslocação
da perspectiva: a vida eterna já não aparece como algo futuro, que o cristão
aguarda como herança, mas torna-se presente neste mundo mesmo. Toda
escatologia futura é de certo modo antecipada. Ela irrompe na história atual, já se
realiza no presente, porque a vida que Jesus traz ultrapassa por sua natureza a
existência terrena do homem e se prolonga até a eternidade. Assim, a vinda de
Cristo como revelador do Pai constitui o acontecimento escatológico decisivo. Ela
introduz a “última hora” do mundo (Jo 2,18). Entre as condições para receber a
vida eterna, destaca-se a fé em Jesus como salvador universal dos homens. Quem
crê no filho tem a vida eterna (Jo 3,15.16.36), passou da morte à vida (Jo 5,4).
Esta fé é, ao mesmo tempo, fé no Pai que o enviou (Jo 6,40.47; 1Jo 5,13).323 Luz
designa a revelação pessoal e histórica do Deus que salva a humanidade através
do Verbo encarnado. Ora, a vida divina começa a manifestar-se e a revelar-se com
320 Cf. João 1,4; 3,15.16.36; 4,14.36; 5,24.26.29.39.40; 6,27.33.35.40.47.48.51.53.54.63.68; 8,12; 10,10.28; 12,25.50; 14,6; 17,2.3; 20,31. Portanto, no total de 36 vezes. Note-se que as expressões vida e vida eterna são equivalentes entre si, de sorte que, sem qualquer explicação, João substitui uma pela outra. 321 Cf. Jo 13,37-38 (Pedro quer dar a sua vida por Cristo); Jo 15,13; 1Jo 3,16b (dar a vida por seus amigos); Jo 10,15.17-18; 1Jo 3,16a (Jesus entrega a vida por seus amigos). 322 Cf. Mc 9,43.45; 10,17.30; Lc 10,25; Mt 25,34; Rm 6,20-23; 1Tm 1,15ss; 4,8; 6,11ss; 2Tm 1,1; Tt 1,1ss; 3,7. Nos Sinóticos, o estado de felicidade é apresentado sob diversas imagens: como banquete Mt 22,1-10; Mc 14,25, aquisição da vida Mt 10,39; 19,29; 25,46; Mc 9,43-58; Lc 9,24, tomada de posse de um grande tesouro Mt 19,21, bem-aventurança plena Mt 25,21.23, repouso Lc 23,42-43, habitação nos tabernáculos eternos Jo 16,9; Ap 7,9-17; Ap 21,3, participação no mundo de Deus Mt 5,21, convivência com Cristo Lc 23,43. 323 Cf. SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João, pp. 81-102.
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a encarnação do Lo,goj.324 É como o enviado do Pai, ensinando através do seu
modo de ser, por Palavras e gestos, como mestre no caminho, em relação,
interagindo com o ser humano que Jesus manifesta quem ele é: luz da vida. Para
João, é graças ao Lo,goj, fonte da vida, que a humanidade vê a luz. Ele a conduz à
plenitude da vida. A fé em Jesus é o modo de beber desta fonte de luz e vida.325
4.6. A salvação e o mundo
Jesus está presente como fonte de luz e vida no mundo. Ao símbolo da luz
corresponde a dupla reação humana da cegueira e da visão, como respectivamente
expressão da descrença e da fé, da condenação e da salvação. Deste modo o
milagre da cura em Jo 9,1-12 está a serviço da revelação e da salvação que Jesus
veio trazer para a humanidade.326
Johan Konings esclarece que um dos significados do vocábulo ko,smoj
apresenta a teoria cosmológica327 de João. O mundo é a morada e o cenário da
história humana. Assim, falando do homem, diz-se que a luz vem a este mundo
(Jo 1,9; Jo 16,21). Do Messias e do profeta afirma-se que deve vir a este mundo
(Jo 6,14; Jo 11,27). Acerca de Jesus afirma-se que veio a este mundo (Jo 3,19; Jo
18,37), que foi enviado ao mundo (Jo 3,17; Jo 17,18), que está ou estava no
mundo (Jo 1,10; Jo 9,5) que volta a deixar o mundo (Jo 13,1; Jo 16,28). O mundo
é, neste sentido, o lugar onde se desdobra a história da salvação e no qual Jesus se
apresenta como revelador do Pai.328
A vontade de Iahweh de salvar Israel está enraizada na relação de aliança do
próprio Iahweh com Israel e, portanto, nas suas promessas, na sua justiça e na sua
fidelidade. Está também ligada com as qualidades da pessoa que busca a salvação.
A segurança vem da integridade (Pr 28,18). Judá será salvo da invasão mediante o
arrependimento (Jr 4,14). O Justo pode esperar pela salvação (Sl 7,11). O objeto
324 Cf. Jo 1,4 paralelo a Jo 1,2. 325 Cf. SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João, pp. 390-393. 326 Cf. BLANK, Josef. O Evangelho Segundo João, p. 193. 327 Cf. KONINGS, Johan. “No Mundo, não no Mundo”. Meditação sobre João e a Cultura, in: Estudos Bíblicos p. 74. “ko,smoj traz também a conotação de ‘cosmético’ - bonito, brilhoso, harmonioso... Parece que João quer sugerir o falso brilho deste mundo. Este sentido de ambigüidade transparece claramente em 1Jo 2,16-17: Tudo o que há no mundo, a cobiça da carne (humanidade), cobiça dos olhos e a arrogância dos bens da vida, não vem do Pai, mas do mundo. Ora o ko,smoj com sua cobiça, passa, mas quem faz a vontade de Deus permanece para a vida eterna”. 328 Cf. SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João, p. 177.
95
favorito da salvação de Iahweh, porém, nos livros mais tardios do Antigo
Testamento são os pobres e indefesos.329 Esses podem invocar a Iahweh com uma
insistência que não é possível a mais ninguém, pois sua salvação é dispensada
mais solicitamente aos que são mais desesperançados.330
Mas a salvação futura assume bem cedo um caráter messiânico e é vista
como uma nova criação de Israel, um evento em que todos os temas de vitória e
libertação implícitos no termo atingem a sua plenitude. Salvação se aproxima da
idéia de libertação de todo o mal, quer coletivo quer pessoal, e da aquisição de
segurança completa.331
O termo salvar nos Evangelhos Sinóticos significa uma cura realizada por
Jesus.332 Esta cura é atribuída à fé da pessoa curada.333 Aqui e em outras
passagens, é muito provável que o termo salvar seja usado em sentido pleno para
sugerir que a cura é um sinal salvífico de Jesus, que confere uma salvação
infinitamente superior à saúde do corpo. A salvação entra na casa de Zaqueu,
identifica-se com a pessoa de Jesus (Lc 19,9). Jesus é o princípio e fonte de
salvação (Hb 2,10; 5,9). A salvação que Jesus confere é salvação do pecado. Ele
dá o arrependimento e o perdão dos pecados (At 5,31). Através do conhecimento
da salvação os cristãos se subtraem à corrupção do mundo (2Pd 2,20). Essa
salvação vem dos Judeus (Jo 4,22), que são os canais da revelação de Deus e de
seus atos salvíficos, mas destina-se a todos os homens.334
A partir do versículo “Deus amou tanto o mundo que entregou o seu único
Filho”, e que se tornou muito conhecido, a primeira impressão é de uma atitude
favorável de João em relação ao mundo.335 Por isso a comunidade Joanina não
pode ser concebida como uma espécie de seita no interior da Igreja. A auto-
revelação de Jesus se prolonga mediante a pregação e a atividade dos discípulos
no mundo (Jo 17,18). A tarefa de testemunhar a revelação salvífica deve produzir
frutos concretos: levar os homens à fé e à vida divina.336
329 Cf. Sl 12,26; 18,28; 76,10; 109,31; Jó 5,6; 22,29. 330 Cf. McKENZIE, John. “Salvação”, Dicionário Bíblico, p. 834. 331 Cf. OPORTO, Santiago Guijarro & GARCIA, Miguel Salvador. Comentário ao Novo Testamento, p. 288. 332 Cf. Mt 9,21; Mc 3,4; 5,23.28; 6,56; Lc 6,9; 8,36.50; 17,19. 333 Cf. Mt 9,22; Mc 5,34; 10,52; Lc 8,48; 17,19; 18,42. 334 Cf. McKENZIE, John L. “Salvação”, Dicionário Bíblico, p. 836. 335 Cf. Jo 1,29; 4,42; 6,36.51; 10,36; 12,47; 17,21. 336 Cf. SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João, pp. 177-180.
96
Entretanto, o termo mundo torna-se mais comum em João para significar
aqueles que rejeitam a luz, uma vez que os que a aceitam estão, na maior parte,
dentro da comunidade Joanina. Daí a insistência de Jesus: “Sou a luz do mundo”,
possivelmente com o intuito de libertar o cego das trevas em que se encontrava,
mas também, os discípulos e os fariseus. Aqui o mundo é a humanidade
necessitada da luz da salvação.337
No pensamento antigo ko,smoj era um conjunto de forças em conflito;
conforme o relato da criação (Gn 1,1-2). A representação bíblica das origens do
mundo não se situa mais no plano do mito, pelo contrário, ela dá início ao tempo.
É que entre Deus e o mundo vai um abismo, expresso pelo verbo criar (Gn 1,1).
Se o Gênesis evoca a atividade criadora de Deus, é somente para acentuar este
ponto fundamental da fé: dependência do mundo em relação ao Deus soberano,
que fala e as coisas são (Sl 33,6-9).338 O termo ko,smoj em grego é usado para
designar o mundo. Aparece no Antigo Testamento somente nos livros gregos mais
tardios, e seu uso demonstra a influência grega. Deus fez o mundo (Sb 9,9), ele é
o seu criador (2Mc 7,23). É usado também para indicar não o universo, mas a
terra: o homem é criado para governar o mundo (Sb 9,3). O mundo significa a
humanidade: Adão é o primeiro homem plasmado como pai do mundo (Sb
10,1).339
João usa muitas vezes a expressão “este mundo”.340 Neste sentido, o termo é
sempre negativo. Indica um tempo-espaço que é dominado pelo chefe deste
mundo e destinado à perdição. Segundo Brown, há uma identidade virtual em
João entre o mundo e os “judeus”. Muitas vezes Jesus tem uma atitude semelhante
para com ambos, isto é, se o príncipe deste mundo é Satanás, o pai dos “judeus” é
o diabo (Jo 8,44). Se o mundo odeia Jesus, os “judeus” procuram matá-lo.
337 Cf. BROWN, Raymond E. A Comunidade do Discípulo Amado, p. 65. “Assim ouvimos que a vinda de Jesus é um julgamento do mundo Jo 9,39; 12,31, que é habitado por filhos das trevas Jo 12,35-36; porque o mundo é imcompatível com Jesus Jo 16,20; 17,14.16; 18,36 e com seu Espírito Jo 14,17;16,8-11. Numa palavra, o mundo odeia Jesus e os que nele crêem 7,7; 15,18-19; 16,20. Jesus se recusa a orar pelo mundo Jo 16,20 e expulsa o príncipe satânico deste mundo Jo 12,31; 14,30. 338 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. “Mundo”, Vocabulário de Teologia Bíblica, p. 630. 339 Cf. McKENZIE, John L. Dicionário Bíblico, p. 635. 340 Cf. BROWN, Raymond E. A Comunidade do Discípulo Amado, p. 62. Referências benevolentes incluem Jo 2,23.33; 9,39; 11,9; 12,25; 13,1;16,11; 18,36.36. O fato de João deixar estas referências benevolentes ao lado de muitas outras hostis é outro exemplo do fato de que a comunidade não apaga o seu passado.
97
Contudo, mundo tem um conceito mais amplo. Inclui “judeu” e gentio sem
distinção.341
Mundo não são somente os “judeus”. Mundo é também Pilatos, o
governador romano que afirma não ser “judeu” (Jo 18,33-38). Mundo são também
os gregos que procuram Jesus, depois que os fariseus apontaram: “o mundo
inteiro se põe a segui-lo” (Jo 12,19-20). O mundo, concretamente, é qualquer
pessoa e qualquer setor da humanidade ao qual Jesus é enviado como revelador do
Pai, luz do mundo (Jo 12,46-47). Cada pessoa e cada setor da humanidade é
também capaz de se fechar em si mesmo e assim se identificar com este mundo,
que Jesus deixa (Jo 13,1) para voltar à glória que ele possui junto do Pai, e que é
mais antiga e valiosa que este mundo, a glória que possuía antes que houvesse
mundo (Jo 17,5; cf. Jo 17,24). Quem assim se fecha é como os “judeus” aos quais
declara: “Vós não sois deste mundo” (Jo 8,23). Assim na primeira Carta de João,
o mundo vizinho já não são os “judeus”, mas a sociedade helenista, e é possível
que em certos textos do Evangelho a atitude de rejeição (ódio) apontada no
ambiente imediato dos discípulos esteja evocando, de fato, a sociedade em geral,
compare 1Jo 3,13 com Jo 15,18 e Jo 16,4.342 Como se vê, o “mundo” é em certo
sentido, uma potência maléfica que se identifica - enquanto manifesta a recusa
deliberada do Enviado de Deus - com o próprio demônio (1Jo 4,4). Não é de
estranhar que o próprio demônio seja chamado por João “príncipe do mundo”
(Jo12,31; Jo16,11). Enquanto o demônio age no mundo, Jesus é aquele que vence
o mundo e vem trazer a salvação-libertação para todos os que aderem à sua
presença libertadora. Embora o mundo tenha preferido as trevas à luz, Jesus não
veio para julgá-lo e sim para salvar o mundo (Jo 3,16-19).
Na luz-vida que chega ao mundo estão presentes o projeto de Deus e sua
Palavra criadora, seu ideal para o homem e sua interpelação ao
mundo/humanidade. Contudo, contradizendo ao desejo de vida implantado nela, a
humanidade não reconheceu o projeto divino, nem fez caso de sua interpelação.
Ainda que lhe fosse conatural, a rechaçou e com isso, rechaçou a vida. Vivia em
regime de morte, dominada pela treva, e se negou a responder ao ideal de
plenitude humana a que estava destinada pela própria criação.
341 Cf. BROWN, Raymond E. A Comunidade do Discípulo Amado, p. 64. 342 Cf. KONINGS, Johan. “No Mundo, não no Mundo” Meditação sobre João e a Cultura, in: Estudos Bíblicos, p. 69.
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A frase “o mundo não a reconheceu”, referindo-se à luz e que descreve a
rejeição voluntária do projeto de Deus sobre o ser humano, anuncia o pecado do
mundo, que vai ser tirado pelo Cordeiro de Deus (Jo 1,29). A humanidade é
dominada pelo pecado, por aceitar um regime de opressão. Nega-se a se deixar
iluminar pela luz-vida, a deixar-se interpelar pela Palavra.343
No Novo Testamento ko,smoj é um termo cosmológico e teológico. O uso
teológico é mais comum, mas os dois significados às vezes se confundem. Deus é
o criador do ko,smoj (At 17,24). Este foi feito por meio da Palavra (Jo 1,10). O
ko,smoj pertence aos cristãos (1Cor 3,22). O mundo é a humanidade, o mundo do
qual os discípulos são a luz (Mt 5,14). O mundo como lugar da morada do homem
ou como humanidade, todavia, é conhecido mais freqüentemente em conexão com
o mundo em sentido teológico.344
O mundo em sentido teológico é o mundo como cenário do processo da
salvação. Ele não é somente o cenário, mas é um dos protagonistas do drama, pois
o mundo é a humanidade decaída, alienada de Deus e hostil a Deus e a Jesus
Cristo. Esta concepção é freqüentíssima nos escritos Paulinos e em João. O
mundo está em oposição a Deus. Foram os príncipes deste mundo que
crucificaram Cristo (1Cor 2,8), “príncipes do mundo” não no sentido de
governantes imperialistas, mas no sentido de governantes cujo poder está no
mundo e deriva do mundo.345
Em João o mundo é posto em maior evidência e a oposição entre Deus,
Cristo e o mundo é mais acentuada. O objetivo da salvação de Deus é o mundo e a
missão do Filho é para o mundo. Ele é a luz do mundo.346 O Verbo vem ao
mundo com uma missão. Deus amou tanto o mundo, que entregou o seu Filho
único, cuja missão não é condenar, mas salvar (Jo 3,16). Jesus dá a vida pelo
mundo (Jo 6,33).
343 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, p. 52. “Não existe zona neutra entre a luz e a treva. A humanidade está submersa neste mundo e tem que sair desta zona neutra, para passar à zona da luz. Como estar na treva significa carecer de vida, viver em regime de morte, a passagem para a luz-vida equivale a nascer de novo Jo 3,3: se alguém não nasce de novo não pode vislumbrar o Reino de Deus; a uma ressurreição Jo 5,25: os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e os que a escutarem terão a vida”. 344 Cf. McKENZIE, John L. “Mundo”, Dicionário Bíblico, p. 638. 345 Cf. KONINGS, Johan. “No Mundo, não do Mundo”. Meditação sobre João e a Cultura, in: Estudos Bíblicos, fasc. 61. pp. 67-78. 346 Cf. Jo 1,9; 3,19; 8,12; 9,5; 12,46.
99
Mas a humanidade pecadora à qual vem esta missão de salvação, não recebe
a missão nem o enviado. É neste aspecto que em João o “mundo” toma uma forma
de antideus, de uma realidade constante, que não é salva nem capaz de salvação.
O trágico está em que por nascença pertencemos a este mundo. Mas, Jesus resgata
a humanidade sofredora. Ele, em quem todas as coisas haviam sido criadas (Cl
1,16), foi estabelecido por sua ressurreição, chefe e cabeça da nova criação. Nesse
mundo novo a vida e a luz circulam agora em abundância: são dadas a todos que
têm fé.347
Os discípulos não são do mundo, como também Jesus não é do mundo (Jo
15,19). Por isso é que o mundo o odeia (Jo 15,18), tanto mais que ele é a sua luz
(Jo 9,5), que lhe traz a vida (Jo 6,33) que vem para salvá-lo. Os cristãos, como
Jesus, estão no mundo e em relação ao mundo têm a missão de ser luz. Esta
metáfora define, pois, a missão do Messias, por referência à missão libertadora do
servo de Deus segundo as duas passagens de Isaías (Is 42,6ss; Is 49,6ss). O servo
é a luz das nações. Cristo dá luz aos cegos (Jo 9,5) e liberdade aos cativos (Gl
5,1).348 Pois, o cativeiro é perda da liberdade e da luz.349
A história do cego de nascença deixa claro que todo ser humano necessita
do dom da visão, da luz, de Jesus (Jo 9,4-5.39.41). Se a percepção desta
necessidade é pressuposta pelo dom, então vemos que a revelação se apresenta
como um ataque a todos aqueles que não reconhecem esta necessidade da
salvação trazida por Cristo, luz da vida. Para ter acesso à vida plena e
indestrutível, o homem precisa compreender a si mesmo à luz da revelação.
Quando se encontra Jesus, ninguém pode permanecer na neutralidade, pois sua
vinda ao mundo é a intimação da luz, da exigência de conversão e do juízo divino.
Quem o acolhe como lugar onde se faz a experiência do amor de Deus pode
compreender que a Encarnação (Jo 1,14) constitui a ação mais fundamental da
iniciativa divina que assume a miséria humana e a salva mediante um amor
totalmente gratuito.350
347 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Vocabulário de Teologia Bíblica, p. 633. 348 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, p. 410. 349 Cf. SCHOKEL, L. Alonso & DIAZ, J. L. Sicre. Profetas I, p. 296. 350 Cf. BENTO, Santos Silva. Teologia do Evangelho de São João, pp. 368-380.
100
4.7. Iniciativa e atuação recriadora de Jesus
O cego é morto em vida, assim como o inválido, enfermo quase durante
toda a sua vida (Jo 5,5), o cego nunca conhecera a luz/vida. Nele vai se
demonstrar o que Deus faz com os que nasceram e continuam privados de sua
condição humana. Juan Mateus351 afirma que o dito de Jesus: “Enquanto estou no
mundo sou a luz do mundo”352 está em continuidade com Jo 8,12: “Eu sou a luz
do mundo”. Como naquela passagem, esta expressão define a missão de Jesus por
referência à missão libertadora do servo de Deus segundo Isaías, como luz das
nações que vem abrir os olhos dos cegos (Is 42,6; 49,6). Configura-se nestes
textos a libertação da opressão trazida por Jesus que é a vida.
Só o Deus que criou para a plenitude de vida, da verdade e do amor pode
satisfazer os desejos que ele semeou no coração da humanidade. Ele nos foi
revelado por Jesus Cristo, seu Filho único. Ele é a vida que Deus dá, a luz que a
tudo e todos ilumina. O Verbo que se fez carne é o lugar hermenêutico da
revelação de Deus. Ele revelou a origem e o destino do ser humano. Escreve santo
Hipólito de Roma: “Esse Verbo o Pai o enviou no fim dos tempos. Não o queria
mais pronunciado por um profeta nem subentendido através de uma pregação
obscura, mas ordenou que se manifestasse de forma visível para que, ao vê-lo, o
mundo fosse salvo”.353
Na ação da cura, realizada por Jesus, o barro alude ao ato criador do divino
que se debruça sobre o ser humano. Fazer barro com a saliva significa a criação
do homem novo, simbolismo do sexto dia composto da terra/carne e da
saliva/Espírito de Jesus. O barro modelado com o Espírito é o projeto de Deus
realizado que é liberdade e vida, cujo modelo é o próprio Jesus. No ano de 1982,
Michel Gourgues O. P.,354 escreve um artigo salientando a ação de Jesus na cura
do cego. Segundo este autor “a ação desencadeia uma série de reações que se
deslancham e tomam o aspecto de um processo”. Este processo consiste em duas
interpretações do milagre e em duas tomadas de posição, opostas ao olhar do autor
351 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, p. 315. 352 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, pp. 409. “Em Jo 8,12, a frase com artigo, a luz, definia Jesus e fundava o convite a segui-lo. Nesta passagem Jo 9,5 a frase sem o artigo, luz, descreve sua atividade iluminadora”. 353 Citado por BARREIRO, Álvaro. Vimos a sua Glória, p. 61. 354 Cf. GOURGES, Michel O. P. L’aveugle-né João 9 in: Nouvelle Revue Theologique, pp. 381-395.
101
do Evangelho. O processo se afirma progressivamente, designando assim dois
encaminhamentos em sentido inverso: o cego de nascença se engaja sempre mais
a favor de Jesus, enquanto que os fariseus se endurecem e se colocam cada vez
mais contra ele. Deste modo o cego encontra, primeiramente a vista física, para,
em seguida, aceitar a luz da fé, enquanto que os fariseus são declarados cegos.355
De acordo com Gn 1,26-31, Deus criou a humanidade no sexto dia. No
Evangelho de João, o primeiro sinal, também aconteceu no sexto dia.356 Portanto,
o sinal realizado em Caná da Galiléia por Jesus (Jo 2,1-11), mostra o surgimento
da nova humanidade, ou seja, o grupo daqueles que aderem a Jesus pela fé. Todos
os outros sinais que Jesus realizará no Evangelho de João acontecem dentro deste
sexto dia. Isto mostra que sua ação apresenta a nova criação que o Pai realiza por
meio de Jesus. De fato, Jesus continuará trabalhando sempre (Jo 5,17), refazendo
a criação.357 Deste modo, Jesus em sua atividade é coerente com o tema da criação
do ser humano, dando uma chave de interpretação de toda a sua atividade
subseqüente, que consistirá em realizar o desígnio salvador de Deus, terminando a
criação do homem. Assim como na primeira criação, o homem ficou terminado
com a infusão do sopro vital (Gn 2,7), assim também a obra de Jesus em cada
indivíduo é levada a termo com a infusão do Espírito (Jo 20,22). Jesus inaugura o
novo período da vida da humanidade, que se identifica com a era messiânica
(Jo1,17).358
Tau/ta eivpw.n, Jesus toma a iniciativa do milagre. Além de mostrar uma
característica da narração dos shmei,a, cuja iniciativa de Jesus é comum no
Evangelho de João, este encadeamento com o início no v. 1, ou seja,
provavelmente, na busca de articular o núcleo histórico da narrativa do milagre,
355 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, p. 410. 356 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. “Dia”. Vocabulário Teológico do Evangelho de São João. p. 57-58. “Ao terceiro dia - com esta expressão, o autor do quarto Evangelho, abre o episódio de Caná, completando assim, a sucessão dia a dia começada em Jo 1,29. João cria uma seqüência cronológica com o objetivo de datar o episódio de Caná. No primeiro dia: Jo 1, 19-28; segundo dia: Jo 1,29-34; terceiro dia: Jo 1,35-42; no quarto dia, Jesus sai para a Galiléia, chama Felipe e se verifica o encontro com Natanael Jo 1,43-51. “A datação seguinte é a que tem início o episódio de Cana: no terceiro dia, a partir do quarto Jo 1,43. Segundo o modo de falar daquele tempo, ‘no terceiro dia’ significa dois dias depois. O dia, em que ocorre o episódio de Caná é, portanto, na sucessão criada pelo evangelista, o sexto dia.” 357 Cf. BORTOLLINI, José. Como ler o Evangelho de João, pp.32-33. 358 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. “Criação”, Vocabulário Teológico do Evangelho de São João, pp. 43-50.
102
segundo alguns autores, Boismard359 e Meier,360 juntando gestos e Palavras na
ação recriadora do ser humano, Jesus mais uma vez, manifesta a sua íntima
relação com o modo de ser do Pai, no Antigo Testamento. Da Palavra, ou Verbo,
preexistente, João diz que a vida, que é a luz dos homens, está no Verbo. João
parece combinar e reunir os temas da criação e da salvação.361
A mesma Palavra ou Verbo que é um princípio criador da vida confere
igualmente a vida mediante a luz que ela traz, a luz da salvação. “Nele estava a
vida, e a vida era a luz dos homens” (Jo 1,4). A salvação nos é dada por pura
gratuidade. Deus, no Filho Jesus vem ao encontro dos pequenos e sofredores, se
debruça sobre a criatura, necessitada de sua presença libertadora. A graça,362 a
fonte de luz e vida se aproxima, toca com o barro aquele, que não por culpa sua,
nem de seus pais, mas pela atuação das trevas no ko,smoj, pois, nascer cego era não
conhecer a luz, a realidade e a verdade. E esta situação de dependência, penumbra
da vida, se estende desde o nascimento até a sua morte. Envolvido por esta
situação de trevas, o cego ainda não sabe o que é a verdadeira condição humana, o
objetivo para o qual Deus o criou, o que é fazer a experiência do encontro com a
vida, ou seja, estar de pé, em posição de igualdade com os outros homens. A
proximidade com o Deus da vida o impulsiona a caminhar ao encontro de sua
verdadeira identidade de filho de Deus muito amado.363
Pois bem, o autor não nos diz se os discípulos permanecem na cena. Mas é
provável que eles passem a ser os espectadores, enquanto que a atenção de Jesus,
neste momento, permanece fixa no que é bom, conforme o primeiro ato criador,
359 Cf. BOISMARD, M. E. & LAMOUILLE, A. l’Évangile de Jean. III - Synopse des Quatre Évangiles en Français, p. 145. 360 Cf. MEIER, John P. Um Judeu Marginal - Repensando o Jesus Histórico, pp. 45. 361 Cf. MOINGT, Joseph. Création et Salut, pp. 496-595. 362 Cf. CRISÓSTOMO, Juan. Homilias sobre El Evangelio de San Juan, p. 127. “Se a fonte de luz e vida que é Jesus, vem a este mundo e ilumina a todos, como é que nem todos são iluminados? É verdade que nem todos reconhecem o culto a Cristo. Então, como ele ilumina a todos os homens? Ilumina-o à medida que está com ele. Porém se alguém, por própria vontade, cerrando os olhos da mente, não quer receber os raios dessa luz, não é culpa da natureza da luz que este permaneça nas trevas, senão produto da maldade de quantos se privam desse dom. A graça tem sido derramada sobre todos: não se exclui nem o judeu nem o grego nem o bárbaro nem homem livre nem o escravo nem o ancião nem o jovem. A todos por igual, se admite gozar de seus benefícios. Quem não quer desfrutar deste presente, deve imputar-se a si mesmos sua cegueira. Estando aberto o caminho que conduz a tal honra e não fechado a ninguém, se esses, por sua livre vontade, ficam excluídos, se perdem somente por sua culpa”. 363 Cf. Citado por BLANK, Josef. O Evangelho Segundo João, pp. 192-193. “Também segundo Bultmann a narração Joânica dos sinais não se baseia na tradição dos sinóticos, mas ‘comenta independentemente o motivo apresentado’. A diferença, segundo Bultmann está, sobretudo na discussão anexa, bem como no fato de que Jesus toma a iniciativa do milagre, o que é comum nas narrações Joânicas de milagres”.
103
Pai de todas as criaturas. É sobre o que é bom, o mais precioso aos olhos de Deus,
entre todos os seres criados, ou seja, o ser humano,364 mas em estado de
fragilidade, limitado, necessitado do ser incomparável de Deus, luz e vida para a
humanidade que Jesus passa à ação. Põe-se a trabalhar na recriação do cego de
nascença e o recria, acrescentando aos gestos, Palavras. Palavra de vida.
Conferindo-lhe assim, por seu imenso amor, o acabamento perfeito do ser
humano, ou seja, a sua imagem e semelhança. Jesus apenas coloca diante dos
olhos o projeto de Deus sobre o homem. Depois de sentir a proximidade da luz da
vida, a decisão de obter a vista ficará em suas mãos. Jesus não lhe suprime a
liberdade, ele terá que ir, por sua própria iniciativa lavar-se na piscina.365
Embora em Gn 2,7 se diga que Deus o modelou do pó da terra,366 argila do
solo, em outras passagens do Antigo Testamento usa-se a palavra barro (Is
64,7).367 “Lembra-te de que me fizeste de barro”; “E, no entanto, Iahweh, tu és o
nosso Pai, nós somos a argila e tu és o nosso oleiro, todos nós somos obras das
tuas mãos” (Jó 9,6).
Recorde-se que o sexto dia do Messias é o sexto dia, no qual o homem foi
criado. No Evangelho de João o sexto dia começa com o casamento em Caná da
Galiléia. A partir deste primeiro sinal realizado Jo 2,1-12, surge a nova
humanidade, formada pelos que dão sua adesão a Jesus, pela fé.368
E;ptusen camai. kai. e.poi,sem phlo,n evk tou/ ptu,smatoj - o verbo poiew/ no
sentido concreto, é algo que exige a presença da mão, da ação materializada.
364 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Gênesis 1-11 - E assim tudo começou. pp. 62-63. 365 Cf. MATEOS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, pp. 104-114. 366 Cf. ULLMANN, Reinholdo Aloysio. Deus Criou as Coisas do Nada, in: Revista Teocomunicação, pp. 3-11. 367 Cf. LÉON-DUFOUR Xavier. Lectura Del Evangelio de Juan I, p. 324. “Em geral os estudiosos são unânimes em dizer que a ‘lama’ ou o ‘barro’ serve para encenar a ruptura do sábado que será denunciada pelos fariseus Jo 9,15 conforme Jo 9,24; o gesto, no entanto, mencionado quatro vezes ao longo do relato Jo 9,6.11.14.15, permanece espantoso, não apenas porque todos os outros milagres de Jesus são produzidos apenas mediante a Palavra, mas porque aplicar barro aos olhos de um cego consiste simbolicamente, em reforçar a enfermidade; é, como diz Lagrange, ‘cegueira sobre cegueira’. A explicação relativa à ruptura do sábado dificilmente pode esgotar o sentido do gesto. Desde o século II, Irineu propôs uma compreensão simbólica: aproximando-se do ato pelo qual Deus formou o homem segundo o Gênesis, o gesto de Jesus significaria o término da primeira criação, em vista do ser perfeito que é o homem que crê”. 368 Cf. BORTOLINI, José. Como Ler o Evangelho de João, pp. 12-15. Em João 2,11 - “Todos os outros ‘sinais’ acontecem dentro de um ‘sexto dia’ simbólico. Por quê? O objetivo do Evangelho de João é muito claro. De acordo com Gn,1, a criação aconteceu no espaço de uma semana. No sexto dia Deus criou a humanidade à sua imagem e semelhança Gn 1,26-27”.
104
Fazer significa envolver-se diretamente com a obra, com a transformação de algo,
usando a inteligência, a vontade e a tecnologia disponível.369
O simbolismo do barro nos remete ao primeiro relato da criação370 no qual o
ser humano é moldado por Deus do barro e nele sopra o espírito de vida (Gn 2,4b-
45). Jesus fez o barro com sua saliva. Pode-se imaginar que é bem possível que
Jesus tenha se debruçado sobre a terra e após amassar o barro com suas mãos, o
toma com ternura, a fim de ungir os olhos do cego. Há um elemento preexistente,
a terra, cuspiu na terra, e um elemento pessoal seu, a saliva. A saliva era
considerada como um elemento curativo dentro de muitas culturas, transmissora
de força ou energia vital para a pessoa. Aqui, a saliva faz as vezes da água
necessária para fazer o barro, resultado da mistura de ambos os elementos.
Percebe-se a intenção do evangelista: fazer barro com a saliva ressalta, aponta
para a recriação do cego de nascença, ou, o homem novo que se levantará após o
gesto recriador, simbolismo do sexto dia, composto da terra/carne e da
saliva/Espírito de Jesus.371
Em seguida como verdadeiro mestre, um sábio artesão, Jesus com o barro,
toca a ausência da vida: kai. evpe,crisen auvtou/ to,n pelo,n tou.j ovfqalmou.j. A
unção372com o barro está intimamente relacionada ao Messias, termo vindo do
hebraico, Ungido. Essa designação, se tornou no tempo apostólico,373 o nome
próprio de Jesus, e assumiu o conteúdo dos outros títulos por ele reinvindicados.
A messianidade de Jesus constitui objeto de explícitos atos de fé, por parte dos
discípulos (Jo 1,41; Jo 1,45.49) e também por Marta, no momento em que ele se
revela como a ressurreição e a vida (Jo 11,27). Depois da confissão de Pedro, a fé
mais autêntica, mas imperfeita, pois o título de Messias ainda corre o perigo de ser
entendido numa perspectiva de realeza temporal (Jo 6,15), Jesus assume uma
atitude de reserva no que se refere ao Messias. Salvo em (Jo 4,25) expresso na fé
369 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. O Evangelho de Marcos, p. 11. 370 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. “Messias”, Vocabulário de Teologia Bíblica, pp. 578-583. “Num sentido amplo, a unção divina significava a consagração dos reis com vistas a uma missão referente ao desígnio de Deus a respeito de seu povo. O Antigo Testamento às vezes fala da unção divina, onde há simplesmente uma missão a cumprir”. 371 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO Juan. “Espírito”, Vocabulário Teológico do Evangelho de São João, pp. 90-96. 372 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. “Messias”, Vocabulário de Teologia Bíblica, pp. 578-583. “Num sentido amplo - a unção divina significava a consagração dos reis com vistas a uma missão referente ao desígnio de Deus a respeito de seu povo. O Antigo Testamento às vezes fala da unção divina, onde há simplesmente uma missão a cumprir”. 373 Cf. Jo 12,1-11 - Unção em Betânia - texto tardio, posterior à redação final do Evangelho.
105
da samaritana, ele jamais se dá a Si próprio o título de Messias.374 Pois a sua
missão de cumprir o desígnio de Deus em relação ao povo como Messias
começará com a de Servo sofredor. O Filho do Homem entrará na sua glória pelo
sacrifício de sua vida. No livro de Isaías, a missão do Servo se descrevia como a
de um profeta perseguido.375 De fato, a única unção reivindicada por Jesus é a
unção profética do Espírito (Lc 4,16-22) paralelo a Is 1,45.49.
O barro modelado com o Espírito, ou seja, com a saliva, é o projeto de Deus
realizado. É a nova criação, cujo modelo é o próprio Jesus, a sua humanidade
cheia da glória amor de Deus: mas esta glória pertence à ordem da nova criação.
A glória temporal dos antigos ungidos de Iahweh era apenas uma longínqua
figura. Esta nova humanidade cheia de glória é o que Jesus põe diante dos olhos
daquele que nunca viu e não sabe o que é o ser humano iluminado, em sua
dignidade. Na ação recriadora, Jesus coloca perante os olhos do cego o homem
ungido pelo Espírito. Ao mesmo tempo, ele, como Ungido por excelência, realiza
a sua obra ungindo o homem. Ao ungir-lhe os olhos convida-o a ser homem
acabado, ungido e filho de Deus pela comunicação do Espírito.376
4.8. Lavar-se para ver
A imagem da água aparece freqüentemente no quarto Evangelho.
Inicialmente, ela está associada ao batismo e à purificação do crente. João Batista
proclama: Eu batizo com água, mas há um outro que batizará no Espírito Santo
(Jo 1,26.31.33). O rito batismal de João visa a purificação de todo o povo, que
fora prometida pelos profetas para os últimos tempos. É um batismo escatológico
cujos efeitos são a penitência e o perdão. Aqui se trata do rito de iniciação do
movimento batista. Este movimento religioso prepara a revelação de Jesus-
Messias.377
Como os grandes símbolos cósmicos, a água pode ter duplo valor. Além de
representar o elemento vital sem o qual o homem morre de sede, a água evoca
374 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. Vocabulário Teológico do Evangelho de São João, p. 48. 375 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. “Servo”, Vocabulário de Teologia Bíblica, pp. 578-583. 376 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. Evangelho de São João, p. 411. 377 Cf. SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João, p. 374.
106
também as forças da destruição, as águas caudalosas, as águas da morte.378
Pregando contra a apostasia de Israel, o profeta Jeremias (Jr 2,13) opõe Iahweh,
como fonte de água viva, às cisternas rotas, aos falsos deuses. O salmista expressa
sua sede do Deus vivo fazendo uso do simbolismo aquático: “Como a corça
suspira por águas correntes, assim minha alma suspira por ti, ó meu Deus!” (Sl
42,2-3; Sl 63,2). Aquele que pertence a Iahweh é semelhante ao rebanho que é
conduzido para águas tranqüilas (Sl 32,2) ou à árvore plantada junto d’água
corrente (Sl 1,3). No Tempo da salvação Israel será “como um jardim regado,
como uma fonte borbulhante cujas águas nunca faltam” (Is 58,11).
Segundo Dt 32,2 a água significa a palavra de Moisés. Ela se torna o
símbolo da “Torah”. Particularmente significativo é Eclo 24, onde o autor
identifica a sabedoria criadora com a Lei de Moisés (Eclo 24,23; Br 4,1) e
compara os benefícios desta com os rios paradisíacos (Eclo 24,25-27). A
Sabedoria se apresenta como um canal do qual procede a instrução e que regará as
gerações futuras (Eclo 24,33). Assim constata-se uma aproximação entre
Sabedoria, Lei e Espírito.379
Os textos de Qumran, publicados a partir de 1948, utilizam não poucas
vezes o símbolo da água. Hoje sabemos através da arqueologia que em Qumran
existiam banhos rituais, que no período mais antigo da comunidade serviam
provavelmente como ritos de purificação.380 Em sua vida litúrgica insistia-se
bastante na necessidade de viver em estado perfeito de pureza ritual. Todo
membro da comunidade devia banhar-se diariamente antes da refeição. Na regra
da comunidade falava-se de ritos de ablução em conexão com a conversão e a
recepção do Espírito. As purificações rituais seriam inválidas se não houvesse
disposições interiores sinceras.381
378 Cf. Ex 47,1-12; Ap 22,1-7; Jo 1,37ss. Vida. Ez 16,4-9; 36,24-27; Mt 13,11; 1Cor 6,11. Águas purificadoras. Gn 6-8; Jo 12,15; 40,23; Êx 26,19ss; Ap 12,15. Águas terrificantes. 379 Cf. Is 32,15 o profeta fala sobre o anúncio do dom do Espírito com o emprego de verbos concernentes à efusão ou à aspersão da água. Segundo Ez 36,25ss. a aspersão da água pura constitui o prelúdio ao dom do Espírito divino para a transformação dos corações: Ver também Ez 39,29; Jl 3,1; Zc12,10. 380 Cf. NEWTON M. The Concept of Purity at Qumran and in the Letters of Paul, pp. 10-52. Costuma-se distinguir dois períodos na história de Qumran: O primeiro período antecedente ao terremoto, de 31 até 4 a. C., após o qual Qumran foi abandonada. O segundo período vai do terremoto até a destruição de Qumran em 68-70 d. C. Do primeiro período temos os Hinos de Qumran que falam do batismo ou, mais precisamente, de ritos de purificação com a água. Sobre a relação desses banhos rituais com o ingresso na comunidade ou com a prática da purificação comum em todo o helenismo. 381 Cf. SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João, p. 375.
107
No Evangelho de João a água é mencionada no diálogo de Jesus com
Nicodemos (Jo 3,5) e justaposta ao Espírito no contexto do novo nascimento dos
filhos de Deus. Neste contexto Jesus explica ao seu interlocutor que, para entrar
no reino de Deus, é preciso renascer da água e do Espírito. Este nascimento pela
água é uma alusão clara ao batismo. Para a tradição cristã, a água batismal
representa o banho purificador (Ef 5,26), o meio para obter a salvação. João 4
apresenta os temas da água e do Espírito sob uma outra forma. A água do poço de
Jacó (Jo 4,4-6) dá lugar a considerações sobre a água viva (Jo 4,7-15), símbolo de
uma nova vida ou do Espírito, que Jesus, Messias e profeta pode dar (Jo 4,16-26).
O diálogo de Jesus com a Samaritana ocorre junto ao poço de Jacó em uma região
cheia de recordação patriarcal: Deus é o doador do poço no deserto, e a água deste
poço se apresenta como uma fonte borbulhante. Estes dois aspectos, dom e fonte,
estão subjacentes à temática Joanina. Jesus diz à Samaritana: “Se conhecessses o
dom de Deus” (Jo 4,10) e fala de fonte borbulhante (Jo 4,14). O evangelista
emprega o vocábulo fonte,382 para aludir ao milagre atribuído a Jacó.383
Levando em conta esta tradição, o evangelista se serve da linguagem
simbólica. A água do fundo do poço é uma água viva. A água prometida por Jesus
em Jo 4,13 é apresentada como dom futuro, ao passo que em Jo 4,10 ela é um
dom presente. Qual é este dom futuro da água? O contexto Joanino nos leva a ver
na água viva uma revelação feita aos pais. É precisamente o que sugerem os
dizeres à Samaritana no final do diálogo: “O Messias nos revelará todas as coisas”
(Jo 4,25). É de notar, porém, que os textos bíblicos utilizam a imagem da água
para designar o Espírito prometido por Deus. Segundo o simbolismo bíblico
tradicional (Ez 36,2.27; Jr 31,33), a água viva não é a revelação, mas o Espírito
Santo em sua função purificadora. É neste sentido que o próprio evangelista
interpreta a promessa de Jesus sobre os rios de água viva em (Jo 7,37): “Ele falava
do Espírito que deviam receber aqueles que tinham acreditado nele”. Esta
interpretação pode ser dada a (Jo 4,7-15)? Ambos os textos se colocam numa
perspectiva diversa. Seria certamente impossível pensar que o dom da água viva
(Jo 4,10) designasse o Espírito Santo. Para um melhor esclarecimento desta
382 Cf. Gn 24,11.20 - O termo poço é usado indistintamente como fonte em Gn 24,13.16.29.30.42.43.45, como aqui também em Jo 4,11ss; Jo 4,6.14. 383 Citado por SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João, p. 378. Segundo o Targum palestinense, cinco prodígios foram realizados por Jacó: “Quinto prodígio: quando o nosso pai Jacó levantou a pedra da boca do poço, a fonte transbordou e a (água) saiu na superfície e continuou a transbordar por vinte anos, todo o tempo em que habitou em Harã”.
108
passagem, convém distinguir dois tempos da revelação em sua leitura
simbólica.384 No primeiro tempo, antes da Páscoa, a água viva designa
propriamente a revelação dada por Jesus (Jo 4,26).
A revelação completa e definitiva de Deus não se encontra na “Torah”,
simbolizada pela água da Sabedoria e pelo poço de Jacó, mas é constituída pela
pessoa do Filho unigênito do Pai. No segundo tempo pascal, trata-se da água que
Jesus dará depois de sua glorificação. É o tempo onde sua revelação pré-pascal
será plenamente compreendida e atualizada pelo Espírito.385 Nesta segunda
perspectiva, aberta aos tempos do Espírito, o dom da água viva prometido por
Jesus se identifica com o Espírito Santo, anunciado diretamente em Jo 7,37-39.
Portanto, a água viva designa, em um primeiro momento, a Palavra da revelação
que Jesus dirige à Samaritana. Em um segundo momento, alargando o horizonte
para os tempos messiânicos que começa com sua Encarnação, ele deixa entrever
que sua Palavra de vida deve ser interiorizada para produzir seus frutos: eis a obra
do Espírito.386
Deus o criador-salvador e fonte da vida, no seu modo de ser, também toma
sob a sua proteção a vida. É descrito como o manancial de águas vivas, Aquele
que dá vida aos que o buscam e praticam a sua justiça. Mesmo depois do acesso
proibido, com seus próprios meios, à árvore da vida,387 não desiste do ser
humano.388Cumpre a promessa de vida e enquanto espera proporcionar-lhe pela
morte do seu Filho, propõe a seu povo os caminhos da vida. Pois a vida e a morte,
a felicidade e a desgraça dependem da opção histórica que o povo faz entre
Iahweh, o Deus da liberdade e da vida, e os ídolos, que produzem escravidão e
morte. O Deuteronômio termina com este apelo forte: “Escolha a vida... amando a
384 Cf. POTTERIE, I. de la. La verité dans Saint Jean. pp. 693-695. 385 Cf. FRANCK, E. Revelation Tought. The Paraclete in the Gospel of John, pp. 41-51. O que deixa entrever Jo 14,25-26 quando caracteriza os verbos (ensinar) e (recordar): “o Espírito Paráclito permitirá a interiorização da revelação pré-pascal de Jesus mediante um influxo constante e progressivo. Trata-se de uma lembrança criadora, por meio da qual o Espírito torna presente o mistério de Cristo em consonância com a totalidade da História da Salvação”. Para análise dos verbos ensinar e recordar cf. FRANCK, E., na mesma obra pp. 41-51. 386 Cf. SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João. pp. 373-376. 387 Cf. MESTERS, Carlos. Paraíso Terrestre - Saudade ou Esperança?, p. 48. 388 Cf. COENEN, Lothar & BROWN, Colin. “Vida”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, pp. 2646-2647. “A declaração mais impressionante da piedade vétero-testamentária encontra-se no salmo 63,3: “A tua graça é melhor do que a vida”, que demonstra cabalmente quanto o conceito de vida no Antigo Testamento é vinculado à Iahweh, o Criador da vida”.
109
Iahweh seu Deus... porque ele é a sua vida e o prolongamento de seus dias”.389
Jesus de Nazaré, que vem ao encontro do ser humano pelos caminhos da terra, é o
manancial de água viva que sacia a sede de todos os desejos e de todas as buscas,
é o caminho que se percorre para encontrar o que se busca, é a verdade a ser
acolhida, a fim de responder às perguntas mais essenciais e mais existenciais.
Quer se saiba, quer não, as sedes, as buscas, as perguntas são expressões do
desejo de encontrar o caminho que conduz à plenitude de verdade e de vida.390
Todas as luzes, as vozes, os gestos de todos os profetas, dos precursores e dos
seguidores de Jesus, o Messias, apontam para a vida e para a luz, para a verdade e
o caminho que o Verbo é e que o Verbo revelou. 391Assim, a idéia de Iahweh
como fonte de água da vida, é ecoada no Novo Testamento, sendo Jesus o
portador da água.392 Observa-se que Jesus não diz: eu sou a água, ao contrário vai
dizer: “Se alguém tem sede venha a mim e beba, aquele que crê em mim”
conforme a Palavra da Escritura: “de seu seio jorrarão rios de água viva.” Jesus se
revela como a água viva, que a sede profunda do ser humano deseja, a sede de
vida, a vida em plenitude. Uma vida que já não é marcada pela sede que deve ser
sempre saciada, mas uma sede, que a partir do seu interior a si mesma se sacia. O
grande símbolo do Espírito em João é a água,393 que mantém uma
correspondência, quase equivalência com a zoh,. A atuação recriadora se realiza
com gestos, entrelaçados às Palavras. É então que, após o gesto recriador, ele, a
fonte de água-vida-luz, pela Palavra, pede a colaboração humana. Deste modo,
Jesus põe o cego de nascença no caminho da vida que é ele mesmo, simbolizado
nas águas de Siloé que segundo o próprio autor, significa o “Enviado”. Kai. ei=pen
u]page eivj th.n kolumbh,qran tou/ Eilwa,m..
Jesus não pretende atribuir à água um poder mágico curativo. Talvez queira
pôr à prova a fé do cego, como fez Eliseu com Naamã (2Rs 5,10-13). É
importante a interpretação do nome de Siloé oferecida pelo evangelista (Jo 9,7). A
forma hebraica é um particípio ativo (que manda) aludindo ao canal que alimenta
o tanque. João ao invés interpreta o nome como se fosse um particípio passivo:
389 Cf. Pr 2,19; Sl 16,11; Dt 30,15; Jr 21,8. 390 Cf. BARREIRO, Álvaro. Vimos a sua Glória, pp. 70-71. 391 Cf. BARREIRO, Álvaro. Vimos a sua Glória, p. 71. 392 Cf. João 4,10; 7,37 e Ap 21,6. 393 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. Dicionário Teológico do Evangelho de São João, pp. 87-93.
110
enviado, aludindo ao Messias, o enviado do Pai. O significado é evidente: é o
Cristo que cura.394
Pois bem, com o envio do Filho, apareceu neste mundo da morte a vida 1Jo
1,2, ao mundo das trevas veio a luz (Jo 1,5; 3,19), e isso pelo fato de que o Filho
de Deus veio ao mundo. É Jesus, que cronologicamente apareceu depois de João
Batista e do qual vale, não obstante, que ele existia antes deste (Jo 1,15-30). Sim,
é ele que afirma a respeito de Si mesmo, que já existia antes de Abraão (Jo 8,58).
E afirma ainda que existia antes da fundação do mundo (Jo 17,5-24) e no qual a
comunidade crê como no vapv avrch/j (1Jo 2,13ss). Nele a Palavra que no princípio
estava com Deus se fez carne (Jo 1,1.14) e veio para sua propriedade, isto é, ao
mundo como aquele do qual ele foi feito (Jo 1,9-11). Até que ponto pode tais
afirmações, que falam de forma mitológica de Jesus, o preexistente Filho de Deus
que se tornou homem, realmente ser entendidas no sentido mitológico? É
significativo que o início da Primeira Epístola, cujo conteúdo quer dizer a mesma
coisa que o prólogo do Evangelho, fala da vida que estava no começo junto ao Pai
e que apareceu de modo audível, visível e palpável na realidade divina do além no
espaço do mundo terreno. Jesus é o Cristo.j o uio.j tou/ Qeou/ o` eivj to.n ko,smon
evrco,menoj - Cristo, o Filho de Deus, que veio ao mundo (Jo 11,17). Em tudo o que
ele é, diz e faz, ele não deve ser entendido como uma figura deste mundo, e sim
seu aparecimento neste mundo, deve ser compreendido como um ser-enviado. Ele
é aquele que o Pai santificou e enviou a este mundo (Jo 10,36).395
O caráter de sua vinda como o revelador da realidade divina no mundo é
enfatizado pelo fato de que à sua vinda corresponde a sua partida. Por sua vinda,
portanto, ele não se torna um fenômeno do mundo, uma figura da história
mundial. Ele está aqui como um hóspede. Vem a hora em que deverá, despedir-se
(Jo 13,1). Ele pode e irá partir de novo (Jo 8,14). Como aquele que é enviado ele
não veio por vontade própria. Não vim por minha própria iniciativa, mas o Pai me
enviou (Jo 8,42). Justamente isso os seus reconheceram e assim o confessa a fé
(Jo 11,27), enquanto os “judeus” não sabem de onde ele vem (Jo 8,14) ou têm
394 Cf. MAGGIONI, Bruno in RINALDO, Fabris. Os Evangelhos II, p. 381. 395 Cf. BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento, pp. 460-464. “Assim Deus é chamado de: o pe,myaj me path,r - o Pai que me enviou - esta expressão aparece 6 vezes em Jo 10,36; Jo 5,36; Jo 6,29; Jo 11,42; Jo 17,8; Jo,17-25 ou simplesmente o pe,myaj me - aquele que me enviou. E assim a comunidade confessa: nós vimos e testemunhamos que o Pai enviou o Filho como salvador do mundo 1Jo 4,14”.
111
uma noção falsa a respeito (Jo 7,28) e os falsos mestres confessam que Jesus
Cristo “veio na carne”.396
Para a cultura judaica a vida era concebida como um todo integrado, não
havendo as distinções, do pensamento grego, de corpo, alma, razão e nem entre a
vida física, a vida intelectual e a vida espiritual. É usada para designar os seres
humanos como seres vivos. Vida é aquilo que se move. É associada com a luz,
com a alegria, com a plenitude, com a ordem e com o ser ativo397 e se contrapõe
com as trevas, com a tristeza, com a vaidade, com o caos e com o silêncio, que são
características dos seres mortos e inanimados (Ecl 1,8; Sl 115,17). Pois bem,
aquele que veio, enviado pelo Pai, pode dizer: “vá” ou, dizendo de uma outra
maneira, é o próprio Jesus fonte de luz e vida que envia o cego à piscina. O verbo
nos remete também a uma outra passagem do Evangelho “Vinde e vede” (Jo
1,37). Trata-se do relato da vocação dos primeiros discípulos que está todo
emoldurado pelo ver e pelo olhar. O relato começa com o olhar contemplativo de
João Batista que convida os dois discípulos que estavam com ele a olhar Jesus que
passa Jo 1,35-36. Em seguida é descrito como os dois primeiros discípulos olham
Jesus e o seguem Jo 1,37, e como Jesus, voltando o seu rosto para eles, toma a
iniciativa do diálogo e os convida a segui-lo para ver onde e como ele vive. Os
dois discípulos aceitaram o convite, foram com Jesus, viram onde morava e
permaneceram com ele (Jo 1,38-39). Assim o Jesus dos Evangelhos não é
conhecido de uma maneira puramente intelectual e teórica. O conhecimento de
Jesus Cristo se adquire na convivência com ele, seguindo-o pelos caminhos que
ele percorre. O seguimento de Jesus não é para espectadores, mas para atores
dispostos a percorrer caminhos longos e desconhecidos. Da mesma forma a
comunidade de Jesus é uma comunidade de videntes (1Jo 1,1-3). Ela começa a
existir quando Jesus é visto, olhado e seguido; e quando Jesus olha e cativa os que
o viram e seguiram. Para tornar-se discípulo de Jesus, é necessário recordar e
deixar ecoar na memória do coração, o que foi visto, ouvido e sentido no encontro
pessoal com ele.398 Assim, obediente à Palavra do mestre, o cego se levanta,
coloca-se a caminho, pois a cura não acontece automaticamente. É bem provável,
que aqui tenha continuidade o processo da cura, pois a passagem das trevas para a
396 Cf. BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento, pp. 460-464. 397 Cf. Sl 27,1; Jó 33,35; Pr 3,16; Gn 1. 398 Cf. BARREIRO, Álvaro. Vimos a sua Glória, pp. 67-81.
112
luz se dá desde a proximidade da vida, ou seja, no olhar cheio de ternura de Jesus
para com o cego, no fazer e ungir com o barro, mas também no caminho, onde o
cego deverá aceitar a luz e optar livremente por ela (Jo 3,19-21; Jo 1,12).
A opção livre do homem se manifestará indo à piscina de acordo com a
Palavra imperativa de Jesus, se seguir o caminho que ele aponta e for ao lugar que
ele diz, encontrará a luz. O que era carne nascerá do Espírito (Jo 3,6)399 e se
tornará um homem novo, discípulo no caminho.
De um modo geral a água é antes de tudo fonte e poder de vida: sem ela, a
terra não é mais que um deserto árido, cenário da fome e da sede, onde homens e
animais estão condenados à morte. Contudo, há também águas de morte: a
inundação devastadora que transtorna e traga os seres vivos.400
O autor do Eclesiástico descreve com palavras bem modestas uma das obras
mais célebres da engenharia em tempos bíblicos, encontrada e pesquisada por
arqueólogos desde 1880: “Ezequias fortificou a sua cidade e conduziu água para
dentro dela. Cavou com ferro um canal na rocha e construiu reservatórios de
água” (Eclo 48,17). As águas da piscina de Siloé são águas da fonte Guion e se
referem ao túnel que Ezequias mandou escavar, através da colina sul-oriental da
cidade de Davi para conduzir as águas da fonte Guion, salvadoras em tempo de
assédio e purificadoras em tempo de paz, para um lugar dentro das muralhas (2Rs
20,20). Por ter um leve declínio as águas correm mansa e permanentemente.
Dentro das muralhas foi construído um novo reservatório, a chamada Piscina de
Siloé. A cidade de Jerusalém dispõe de uma única fonte de água perene chamada
Guion. Ela fica no vale Cedron, a leste da colina em cima da qual começou a
fundação desta cidade a chamada colina sul-oriental. A palavra Guion em
hebraico significa a jorradora. Sendo uma fonte de pouco volume, ela não dá
origem a um grande rio, senão a um pequeno córrego. Porém, como diz o seu
nome, forte e confiável - suas águas correm mansas e são perenes, não morrem
nem nos piores tempos de seca.401
399 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, p. 408 “A dupla menção de ungir, Jo 9,6.11 e da piscina Jo 9,7, termo que será utilizado para designar a fonte batismal cristã, mostram que se lê a atividade de Jesus através dos ritos de iniciação de uma comunidade”. No entanto alguns autores, dentre eles R. Bultmann nega a realidade sacramental de textos Joaninos como por exemplo: Jo 6,51-58. Aqui é negado o simbolismo sacramental referente à Eucaristia. 400 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Vocabulário de Teologia Bíblica, pp.1068-1072. 401 Cf. OTTERMAN, Mônica. As Águas mansas de Siloé in: Estudos Bíblicos - Ternura Cuidado e Resistência, p. 62.
113
Através dos tempos esta fonte foi-se constituindo a querida fonte Guion do
povo de Israel. O próprio Iahweh compara sua Palavra às águas mansas do
Siloé.402 Siloé vem do hebraico xlv com o significado de enviar, mandar. Ligado
ao campo semântico da água, significa um canal que manda águas de um rio ou de
uma fonte para outros lugares, com a intenção de levá-las para mais perto de suas
casas ou de espalhá-las no meio de canteiros e roças. Daí a relação entre as forças
curadoras de Jesus, o Enviado do Pai, e as águas da piscina de Siloé, da qual se
diz explicitamente que seu nome significa o “Enviado” (Jo 9,7).
4.9. Obediência e a transformação
A cura da cegueira é uma obra de Deus, realizada pelo Filho, o enviado do
Pai. Assim, o Cristo-Ungido, após o toque recriador de sua presença, através do
gesto da unção com o barro, envia o cego às águas da piscina pela força de sua
Palavra. O cego de nascença aceita prontamente as Palavras de vida do Mestre.
Jesus deixa em suas mãos a decisão da cura, cuja realização se dará através da
obediência, confirmada nos termos: avph/lqen ou=n kai. evni,yato kai. h-lqen ble,twn.
Na LXX, avkou,w representa consistentemente o hebraico [mv. O significado é o da
percepção dos sentidos.403 A apreensão, porém, entra imediatamente em jogo tão
logo a pessoa recebe uma declaração, uma notícia ou uma mensagem. A
apreensão exige a aceitação, a escuta (Gn 4,14; Gn 4,23; Gn 23,11); a
compreensão (Gn 11,7; Gn 42,3) e a atenção à coisa ouvida (Is 1,2-10; Jr 2,4; Mq
1,2). Logo [mv adquiriu, o significado de obedecer.
Na revelação bíblica, ouvir tem significância muito maior do que no mundo
grego. Isto porque Deus, na sua Palavra, se encontra com o ser humano, e o ser
402 Cf. OTTERMAN, Mônica. As Águas mansas de Siloé in: Estudos Bíblicos - Ternura, Cuidado e Resistência, pp. 59-72. Neste caso, o ponto de comparação não é a força e riqueza imediatas que brota da vida da natureza pela fecundidade da água na mãe terra, mas pelo lamento de Jr 2,13: “eles abandonaram a mim, a fonte de águas vivas, e cavaram cisternas, cisternas rachadas que não seguram a água” A Palavra profética aproveita da situação, criada pela obra humana bem integrada ao seu ambiente. Oriundo da fonte Guion o canal tem uma inclinação tão insignificante que sua água corre devagar, mansa. Esta imagem de uma pequena corrente de água pacata, inofensiva e controlada adequadamente pela tecnologia humana, evoca o som de uma água que corre cantando e murmurando uma mensagem de paz e harmonia, de fartura e de beleza. Tudo isso torna-se símbolo de uma atitude pacífica, não violenta, cheia de confiança em Iahweh, atitude esta abandonada pela política. 403 Cf. 2Sm 15,10 - Por exemplo ‘ouvir uma trombeta’ “Absalão mandou emissários a todas as tribos de Israel para dizer-lhes: quando ouvirdes o som da trombeta, dizei uns aos outros: Absalão se fez rei em Hebron!”
114
humano, portanto tem o dever de ouvir a Palavra de Deus. Tal fato não exclui a
revelação de Deus na esfera do visível. O processo mental não deve ser separado
da percepção dos sentidos. A revelação profética pressupunha que o conteúdo do
conhecimento, da vontade de Deus expressa na Lei já era conhecido. Os profetas,
como portadores da revelação divina, advertiram o povo, as nações, e até os céus e
a terra, que deviam escutar a Palavra de Deus que vinha através deles.
No Novo Testamento o conteúdo desta mensagem é Jesus Cristo, o Messias
prometido conforme a Antiga Aliança. Aqueles que nele crêem recebem uma vida
nova, a plenitude da salvação, bem como uma nova revelação que ultrapassa
aquela do Antigo Testamento. Esta revelação que nele foi manifestada, não se
percebe somente através da audição como também através dos sentidos.404
Essencialmente é uma questão de ouvir e ver. Jesus, nos Sinóticos
pronunciou bem-aventurados os olhos e ouvidos daqueles que ficaram sendo
testemunhas da salvação almejada pelos piedosos de gerações anteriores (Mt
13,16-17; Lc 10,23-24). Aos discípulos que João Batista, já na prisão, enviou para
Jesus, este disse: “Ide e anunciai a João o que estais ouvindo e vendo” (Mt 11,4;
Lc 7,22). Lado a lado com as Palavras de vida do Mestre Jesus, aparecem seus
atos poderosos que no Evangelho de João são os sinais, cuja intenção é ensinar,
revelar o salvador enviado ao mundo. No monte da transfiguração, os discípulos
de Jesus viram a sua glória oculta, e ouviram a voz que lhes dizia: “a ele ouvi” (Jo
8,43; Jo 12,20).
O entendimento deve acompanhar o ouvir, a fim de que a semente da
Palavra, jogada no coração do ser humano frutifique (Mt 13,23; Mt 15,10). A
atitude contrária que não entende a Palavra ouvida e não quer aceitá-la, tem como
resultado final o endurecimento, ou seja, permanece nas trevas.405 Embora, porém,
semelhante ouvir e entender é dádiva de Deus, não se exclui de modo algum, a
atividade humana. Do mesmo modo, como entre Cristo e o Pai se estabeleceu um
relacionamento, com base na escuta mútua, pois ele, conforme diz Paulo:
“Humilhou-se e foi obediente até a morte, e morte de cruz!” Cristo, portanto, é o
modelo perfeito de obediência. Observa-se que o modo como o cego, já tocado
404 Cf. Jo 1,14 paralelo a 1Jo 1,1: “O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que contemplamos, e o que nossas mãos apalparam do Verbo da vida”. A Palavra era considerada fonte de vida. Aqui o nome de Palavra é dado ao Filho de Deus, com quem conviveram os apóstolos, e o complemento lembra o que é desejado em Jo 1,3; Jo 5,11-13; Jo 1,1.14. 405 Cf. Jo 8,43; Jo 12,20.
115
pela graça, ouviu a Palavra, o colocou em sintonia com o Mestre. A Palavra
libertadora e transformadora chega-lhe aos ouvidos, envolve todo o seu ser, o
coloca de pé, dando passos em direção à vida digna e abençoada a partir da luz.
Sai da inatividade, na qual vivia e passa a ser ativo o tempo todo, de tal modo que
a partir deste momento o cego de nascença mostra que ouviu o chamado, ainda
que entender por completo, supõe um longo e progressivo caminho, transparece
no seu modo de ser e de agir, a transformação que lhe ocorreu.
O itinerário se faz pela fé, ou melhor, a coragem de se por a caminho se faz
pela obediência “fidei”.406 Neste sentido, o chamado de Jesus para que se levante
da situação em que se encontra, mesmo antes de o ver,407 nos remete às palavras
do Mestre a Tomé: “Porque viste, creste. Felizes os que não viram e creram” (Jo
20,29). A fé do que fora cego cresce na adversidade, mas quem provoca esta fé e o
leva à maturação é o próprio Jesus. O cego pôde receber o presente da visão,
graças a sua abertura e a sua honestidade no esclarecimento da verdade, sobre ele
mesmo e sobre Jesus, conforme o autor nos informa mais adiante (Jo 9,13).408
O aoristo avph/lqen significa ir junto a , ou dirigir-se na direção de quem
chama. Indica um desejo de aproximação e segundo K. Stock409 à aceitação do
convocado, inicia um processo de conhecimento da identidade de Jesus, e ao
mesmo tempo, aquele que aceita o convite começa a ter um vínculo com o doador
de sua liberdade. É daí que advém a ação transformadora realizada por Jesus,
fonte de vida e luz para o cego de nascença. Aquele que foi visto voltou vendo,
pois, o olhar de Jesus, entrelaçado à sua ação, é provocador do dinamismo da
vida, coloca as pessoas em movimento para ir e vir. O ato de lavar-se não tem o
sentido da purificação, pois nem ele nem seus pais tinham pecado (Jo 9,3). Lavar-
406 Cf. McKENZIE, John L. “Obediência”, Dicionário Bíblico pp. 340-343 “A fé contém certo grau de obscuridade: ela concede total certeza e confiança, mas não permite a totalidade do conhecimento. O cristão caminha pela fé e não pela visão 2Cor 5,7. O cristão não vê a consumação da qual ele tem certeza. Para Paulo a fé também é obediência Rm 1,5; 16,26. O simples ato de fé se completa numa adesão cada vez maior a Jesus Cristo, até que alcance o ponto em que o crente viva com Cristo, crucificado com ele”. Gl 2,20. 407 Cf. BAUER, Johannes B. “Ver”, Dicionário Bíblico Teológico, pp. 450-453. “No Novo Testamento reina plena clareza quanto à impossibilidade de uma visão imediata de Deus nesta terra. Quando Filipe pede uma teofania, recebe a resposta: ‘Quem me vê, vê o Pai... não crês que estou no Pai e que o Pai está em mim?’ Jo 14,8-10. Somente na fé podemos ‘ver’ a Deus, isto é, chegar á união com ele. O Filho de Deus encarnado é a imagem perfeita do Pai e o caminho para ele. Foi na fé que os discípulos viram sua glória (Jo 1,14), sobretudo nos ‘sinais’ que ele operou Jo 2,11; 11,40”. 408 Cf. PALLARES, José Cárdenas. Jesus, a luz que ilumina e põe em evidência, in: RIBLA, O Discípulo Amado, pp. 36-43. 409 Citado por MAZZAROLO, Isidoro. Evangelho de Marcos, p. 114.
116
se410 indica, portanto, a aceitação da água do Enviado, o Espírito, o amor que se
manifesta. Sua resposta ao amor oferecido foi a da abertura e acolhimento da luz.
O resultado da ação de Jesus e da aceitação por parte do cego tem como efeito a
visão. A mudança ou transformação, que se torna evidente a todos, consiste na
capacidade de ver e conhecer o que seja o homem e o mundo. Foi alcançada pelo
contato com o barro de Jesus, aceito por ele, ou seja, pela percepção do projeto de
Deus sobre o homem e a sua adesão a ele. Equivale a um dom de sabedoria que
lhe possibilita distinguir os verdadeiros valores dos falsos (Jo 9,13). E é então, que
o cego vê a luz, através do encontro com o Mestre, na obediência à sua Palavra e
através de sua ação recriadora. Por meio deste ensinamento a partir da vida,
recebeu o dom da percepção vital do que é o homem. Ele agora sabe, em si
mesmo, o que significa sê-lo. Esta experiência de transformação o orientará daí
em diante, em sua atitude frente aos que não o aceitam, com o brilho da Luz em
seu rosto. Depois de ser visto e obedecer às Palavras do mestre, o que tinha
nascido cego tornou-se irreconhecível. Quem faz a experiência de se deixar olhar-
recriar por Jesus, está também disposto a crescer na vida de fé. Quem é visto e
olhado ouve suas Palavras e as pratica, torna-se um ser humano novo, um
iluminado, é literalmente dado à luz, adquire uma nova consciência de sua
identidade e de sua dignidade, e, conseqüentemente, muda seu modo de viver, de
pensar e de agir.411
4.10. A nova identidade do cego
A ação transformadora, realizada a partir do olhar, gestos e obediência à
Palavra é tão radical, que é ao mesmo tempo provocadora de espanto, de incerteza
e de perplexidade, frente às pessoas que o conheciam, ou seja, começa neste
momento um diálogo entre os vizinhos e o ex-cego.412 Diante da luz, isto é, a vida
brilhando em todo o seu esplendor e força no rosto daquele, cuja visão foi-lhe
410 Citado por BENTO, Silva Santos, Teologia do Evangelho de São João, p. 79. “A propósito convém notar que a tese de R. Bultmann, segundo a qual Jo 6,51-58 terá sido acrescentado por um redator eclesiástico e que não teria nenhuma referência ao sacramento da Eucaristia na redação primitiva, foi superada pela tendência exegética atual. Esta superação derruba a tese de que o Evangelho de João não apresenta características sacramentais”. 411 Cf. BARREIRO, Álvaro. Vimos a sua Glória, pp. 122-125. 412 Conforme se esclarece na “crítica da tradição” - no Antigo Testamento não se tem notícia de nenhum caso de cura de “cego de nascimento”.
117
dada, estabelece-se entre eles uma discussão a respeito de sua identidade. As
obras de Deus manifestadas, realizadas pelo Filho o Enviado, tinham também o
objetivo de introduzir a discussão, cuja lembrança evoca o ambiente dividido em
torno da obra de Jesus (Jo 7,10-13) e espelha a divisão reinante entre os “judeus”
e a comunidade Joanina, algumas décadas depois. Jesus afasta-se, e avança para o
primeiro plano as outras pessoas com suas reações.
Esclarece-se aos poucos que o modo da atuação da luz-Jesus quer
demonstrar como que por meio de um processo a realidade do milagre. Mas quer
também revelar as diversas posições ante Jesus, as diversas reações defronte à
verdade.413 Sem dúvida afirma-se com clareza e insistentemente a realidade do
milagre, pelo testemunho dos vizinhos, interrogação do cego, mas quer também
mostrar que os fariseus fecham os olhos para o que é evidente.414
Pela primeira vez, aparece na perícope a informação de que o cego era
também prosai,thj. Ser mendigo é ser excluído da sociedade. O cego não tem
nome. A “sociedade não dá nome e não trata as pessoas pobres, pecadores,
mendigos ou cegos pelo nome”.415 O cego era imóvel, impotente, dependente dos
outros. Jesus ao dar-lhe a vista, deu-lhe mobilidade e independência. O caso do
cego apresenta estreito paralelismo com o do inválido. Um estava atirado, o outro
assentado, ambos sem poder valer-se da característica própria da vida, o
movimento. São mortos que recebem a vida (Jo 5,21), oprimidos que recebem
liberdade. Pois também o paralítico é figura do povo paralisado, à espera de
alguém que o liberte. Jesus vai ao encontro do paralítico e o ordena que se levante
e ande, encontrando sua liberdade e decidindo seu próprio caminho.416 Para Jesus
413 Cf. McKENZIE, John L. “Verdade”, Dicionário Bíblico, pp. 956-957. “Bultmann pôs em evidência que a ‘verdade’ em João tem uma força particular e especificamente cristã. O termo é comum em João e é freqüentemente combinado com outros termos-chave Joaninos como luz e vida. A força deste sentido particular Joanino é evidente no diálogo de João 8. A verdade que Jesus apresenta é alguma coisa que pode ser conhecida, no sentido hebraico de conhecimento e que liberta 8,32. Quem é da verdade, escuta a sua voz. Verdade é a realidade de Deus divinamente revelada, manifestada nas Palavras e na pessoa de Jesus Cristo. Sem esta Verdade, o humano é ignorante e enganado”. 414 Cf. MAGGIONI, Bruno in RINALDO, Fabris. Os Evangelhos II, pp. 378-382. 415 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Lucas em João, p. 197 “A sociedade, em qualquer lugar, e em qualquer tempo, olha para os pobres, prostitutas, mendigos e cegos e trata-os sempre pelo nome coletivo. Ao olhar para um pobre não se pergunta pelo seu nome. Ainda que o cego seja o representante da cegueira da humanidade. João segue a mesma linha de Lc 7,38-40, respeita os paradigmas sociais e mostra como Jesus resgata as pessoas sem nome, sem identidade e sem distinção, mas ironiza as pessoas que têm nome e posição social que se outorgam o direito de desprezar os outros”. 416 Cf. NICCACI, Alviero & BATTAGLIA, Oscar. Comentário ao Evangelho de São João, p. 90-94.
118
e seu Pai, o importante é a vida e a liberdade. Elas estão acima até mesmo das leis
religiosas e da opinião de quaisquer autoridades. O autor Joanino situa o milagre
do paralítico no contexto do agir divino que conduz a criação ao seu supremo
acabamento. O dia a que se refere indiretamente o evangelista é, pois, o
verdadeiro sábado, aquele em que a obra de Deus culmina, por meio de seu
Filho.417
No entanto o inválido não tirara as conseqüências de sua experiência de vida
e liberdade: continuava na antiga sujeição (Jo 5,14). O cego, pelo contrário, não
necessita de que Jesus o avise. Essa experiência relativiza para ele toda a
autoridade e ensino dos mestres, os dirigentes do tempo. Origina daí o fato de
João anotar duas vezes que é maior de idade (Jo 9,21; Jo 9,23), ou, atingiu a
maturidade da fé. A experiência do Espírito (Jo 5,7): a água do Enviado terminou
nele a obra criadora.418
A dúvida sobre a identidade do cego aponta para a nova condição de
“homem-espírito” e reflete ao mesmo tempo, a novidade que o Espírito produz;
sendo o mesmo, é outro. É a diferença que se faz sentir, entre um homem sem
liberdade e o homem livre que mostra a sua independência com relação ao
julgamento dos dirigentes, em proclamar a sua verdadeira identidade.
A passagem das trevas para a luz se faz com o novo nascimento no Espírito.
O cego é o homem nascido no seio das trevas, ou a mentira, a qual, ocultou o
projeto de Deus para ele. Ao untar-lhe Jesus os olhos, com o seu barro (Jo 9,6), fá-
lo ver o brilho da luz-verdade: a vida contida no projeto divino faz-se luz para ele.
Ao aceitar livremente a água do Enviado (Jo 9,7), o Espírito o ilumina e ele
recupera a visão.
417 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João II , p.19-28 418 Cf. MATEOS, Juan & BARRETO, Juan. “Criação”, Vocabulário Teológico do Evangelho de São João, p. 166. “Os episódios do inválido Jo 5,1 e do ‘cego de nascença’ Jo 9,1 mostram a chamada de Jesus à liberdade. No primeiro caso, a figura do inválido representa a multidão destroçada pela opressão que os dirigentes exercem por meio da Lei. A submissão à lei os priva de movimento e vida. Jesus dá a força para andar por si mesmo e escolher o seu caminho; não lhe pede que o siga, mas simplesmente lhe dá a liberdade. Ao ver que o homem continua submetido à instituição que o oprimia, Jesus lhe avisa onde está o perigo para ele Jo 5,14. Esta libertação origina a polêmica. Em Jo 9,1 é diferente. O cego não é homem submetido voluntariamente à Lei, mas um oprimido que nunca conhecera a dignidade humana Jo 9,1: cego de nascimento - sua situação era de inatividade e dependência Jo 9,8. Também Jesus não o chama a seguí-lo; deixa-o enfrentar as conseqüências de sua nova condição; o homem mostra sua liberdade diante dos vizinhos e dirigentes rebatendo seus argumentos, até que é expulso Jo 9,34. Então o encontra Jesus Jo 9,35”.
119
A experiência de vida que lhe comunica o Espírito desvenda-lhe a verdade:
verdade sobre ele mesmo e sobre o Deus-amor que leva o ser humano à sua
plenitude, dando-lhe a vida, a dignidade humana, a identidade (Jo 9,9): e,go ei,mi 419 pelo novo nascimento. Deriva desta expressão nos lábios do cego, um auto-
reconhecimento do seu novo ser. O ex-cego atesta em seu corpo a luz da vida que
é Jesus. É uma declaração pública de sua verdadeira identidade. Esta verdade
adquirida na experiência do toque, unção, no ouvir e entrar em comunhão com a
Palavra do Mestre, no caminho, o tornará um aprendiz itinerante, o sustentará em
sua fidelidade à verdade - defendida a cada nova interpelação no que se segue.
Esta verdade o coloca dialogando com os que o conheciam. Ela é a sua sabedoria.
Com ela torna-se possível, opor-se aos dirigentes, que, ao condenar a ação de
Jesus continuam propondo a mentira de um Deus que antepõe o preceito legal à
integridade e plenitude do ser humano.420 A verdade421 de sua identidade
descoberta o tornou um homem novo, livre, incompatível com a instituição que
são as trevas. E o lançaram fora (Jo 9,34).
4.11. O testemunho do homem curado
O substantivo marturi,a significa fazer declarações como testemunha, sendo
que a sua forma mais antiga ficou sendo ma,rtu,j cujo sentido é a confirmação de
um fato, ou evento. Seu conteúdo pode ser mais exatamente definido como
lembrança reflexiva e interrogativa, “relembar”, isto é, chamar para a consciência
alguma coisa que alguém experimentou e que não pode ser negligenciada ou
esquecida, e que agora, neste sentido é trazida à atenção de outras pessoas, a fim
419 Cf. COTHENET, E. & DUSSAUT, L. & FORT, P. & PRIGENT, P. Os Escritos de João e a Epístola aos Hebreus, p. 284. “Os ‘eu sou’ seguidos de um atributo não são outra coisa que a revelação da realidade divina, que se manifestou sobre a terra em Jesus: ‘Eu sou o pão da vida’ Jo 6,35, ‘Eu sou a luz do mundo’ (Jo 9,5), ‘Eu sou a porta das ovelhas’ Jo 10,7, etc. Os bens representados por estas metáforas só podem ser encontrados em Jesus. O pão, a luz, o pastor e o rebanho, a vida são símbolos que expressavam, na pregação profética, a relação de Deus com o seu povo. Por conseguinte, os ‘Eu sou’ em sentido figurado podem ser uma adaptação da simbologia do Antigo Testamento. Finalmente, quanto aos ‘Eu sou’ em sentido absoluto de João, reconhecemos em Jo 8,28.5 e Jo 13.19 que Jesus reivindica a participação na eternidade de Deus. Nestes textos, Jesus aplica a si mesmo o nome divino inefável referindo-se quer à grande teofania de Ex 3,14, quer à fórmula habitual de revelação: ‘Eu sou Iahweh’. O E,go, o Jesus que fala como o revelador do Pai, é sim, o Eu do Lo,goj eterno que estava no princípio da criação, o Eu do próprio Deus”. 420 Cf. João 9,16; 9,24. 421 Cf. McKENZIE, John L. “Verdade”, Dicionário Bíblico, p. 956.
120
de transmitir a estas, por meio de declarações apropriadas, o conteúdo desta
experiência: aquilo que foi experimentado ficará sendo evidente mediante o
testemunho. O âmbito original da palavra do mundo grego é claramente a esfera
jurídica.422 Pessoas comparecem a fim de dar testemunho em um inquérito judicial
a respeito de eventos. São mencionadas nominalmente e apõem suas próprias
assinaturas abaixo do texto.
A idéia de um testemunho ou de uma testemunha que derivem de
convicções subjetivas que não possam ser averiguadas não é conhecida no Antigo
Testamento, nem tem qualquer lugar no judaísmo. A palavra adquiriu pela
primeira vez sua importância específica na teologia bíblica no Novo Testamento,
mais precisamente, em Atos e na literatura Joanina.
Das 76 ocorrências do verbo marture,w 43 se encontram em João. Do uso
frequente da palavra testemunha no Evangelho de João deriva que o conceito de
testemunha também tem maior relevância teológica para este escritor do que para
todos os demais.
João resume o conteúdo do evento de Cristo e do Evangelho no conceito de
Lo,goj. O testemunho em favor de Jesus é a Palavra (Jo 5,39), à qual se atribuía
autoridade divina. De fato, ela contém a mensagem do Pai (Jo 5,38), que Jesus
cumpre (Jo 8,55). Isto faz dela testemunha em favor dele. Contudo, para
demonstrar a origem divina de sua missão, Jesus aduz como único testemunho à
qualidade de suas obras, feitas em favor do homem (Jo 10,25).
As suas obras são testemunho decisivo e último, pois em virtude de
comunicarem a vida e libertarem o homem, são testemunho do próprio Pai (Jo
5,37). As obras, que são ao mesmo tempo suas e do Pai, são a voz simultânea de
duas testemunhas. Assim o testemunho é válido, conforme o que relata o
evangelista (Jo 5,31; Jo 8,18). Por isso, adota também o verbo marture,w e o
substantivo marturi,a, isto é, duas palavras que denotam ação, a fim de expressar o
evento da comunicação divina em todos os seus aspectos.423
422 Cf. COENEN, Lothar & BROWN, Colin. “Testemunha”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p. 1246. 423 Cf. COENEN, Lothar & BROWN, Colin. “Testemunha”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, pp. 2510-2514.
121
O Evangelho de João é emoldurado, dinamizado pelo testemunho, como que
um fio condutor do início ao fim do escrito,424 e que por sua vez, está
intimamente relacionado com a fé em Jesus, Messias e Filho de Deus. Isto já é o
suficiente para indicar que a partir da afirmação: “creste porque viste. Felizes os
que crêem sem ter visto” (Jo 20,29), pode-se reconstruir todo o processo do crer,
como o concebeu o evangelista: Jesus de Nazaré, o fato histórico - que, ao realizar
sinais, revela aos discípulos sua glória. A glória do Pai que é a vida dos seus; os
discípulos que viram creram e por isso testemunham; a comunidade posterior que
crê sem ter visto, confiando no testemunho dado pelos que viram. Aqui se pode
dar um passo adiante e deter na observação dos versículos425 que não afirmam
simples e genericamente uma conexão entre os sinais realizados por Jesus e o crer,
porém mais precisamente, entre os sinais escritos e o crer. Com isso, a intenção de
João fica transparente e, por conseguinte, também a ótica com que se deve encarar
a leitura do seu Evangelho. O escrito ocupa o lugar de testemunho dos discípulos,
diante do qual Tomé deveria ter crido sem pretender ver. A história de Jesus
ocupa o lugar do ver. Ao adentrar no texto o leitor, tornando-se como o discípulo,
contemporâneo de Jesus, entra em contato com uma história diante da qual alguns
viram, creram e testemunharam, os discípulos, e outros viram, mas não creram,
por isso não são testemunhas, “os judeus”. O leitor é convidado a tomar uma
posição.426
Em face destas prerrogativas, se considerarmos que a palavra ma,rtuj
designa a testemunha, e que martiri,a e martiri,on são decorrentes da primeira
raiz, da qual procede em português a expressão mártir, podemos então, entender
que a figura das testemunhas e o esquema de testemunhos na redação do
Evangelho de João foi uma imposição da condição histórica do martírio e luta que
a comunidade de João vivia.
424 Cf. Jo 1,7-8: “Este veio como testemunha, para dar testemunho da luz, a fim de que todos cressem por meio dele. Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz”. E na forma de uma tese: “Pois eu de fato vi, e tenho testificado que ele é o Filho de Deus - ‘Este é o discípulo que dá testemunho dessas coisas e foi quem as escreveu; e sabemos que o testemunho é verdadeiro’ Jo 21,24. Em relação ao termo ‘sabemos’ - a Bíblia de Jerusalém anota que aqui talvez fale um grupo de discípulos”. 425 Quem dá testemunho é aquele que escreveu Jo 21,24 e a mesma indicação se observa em Jo 21,25: “Há, porém, muitas outras coisas que Jesus fez e que, se fossem escritas uma por uma, creio que o mundo não poderia conter os livros que se escreveria”. 426 Cf. MAGGIONI, Bruno in FABRIS, Rinaldo. Os Evangelhos II, pp. 255-257.
122
Assim, o Evangelho resgata do anonimato, testemunhas pobres e ignoradas,
que não foram lembradas na tradição Sinótica, mas que tinham em sua piedade
comprometida e sofredora o perfil de muitos irmãos e irmãs da comunidade
Joanina.427
Johan Konings afirma que o homem que foi curado torna-se uma valente
testemunha da adesão a Jesus, para a comunidade Joanina. Enfrenta o confronto
com os dirigentes do tempo e a conseqüente exclusão da Sinagoga. Atesta
corajosamente para os que o interrogam a verdade do que se passou em seu ser. A
partir da luz que brilhou em sua vida, o cego fez a passagem das trevas para a luz,
nasceu de novo e está envolvido na causa que procura apresentar. Foi curado de
sua cegueira, de modo que tem um impulso interior e que transparece no exterior
através do brilho da visão que lhe foi dada, para pleitear a crediblidade de outras
pessoas. Não pode deixar de falar do que experimentou em seu próprio corpo com
o novo nascimento, pois ele não testifica com suas próprias forças, mas sim no
poder persuasivo do Espírito. Através da proximidade da luz no caminho que o
fez “ver” ele tem consciência desta verdade de que o Espírito está ativo em
desafiar o mundo com a veracidade daquilo que está dizendo, estampado no seu
rosto, na sua nova identidade, no seu novo modo de ser. O que se pode ler por trás
da sua coragem em defesa da verdade, é que ser tocado pelo testemunho de Jesus
por meio da ação recriadora que lhe devolveu a vida, o colocou no serviço de
testemunha. Foi impulsionado pelo dinamismo da vida a passar adiante e revela
que há um poder inerente na marturi,a, por meio do qual Deus não dá aos homens
meramente um conhecimento intelectual, mas também os coloca em ação. A
marturi,a permite que a pessoa compartilhe do caminho, mas também do
sofrimento e da perseguição de Cristo conforme vai acontecer mais adiante. O
cego foi expulso da Sinagoga (Jo 9,34).
Uma vez estabelecido o fato, prossegue a investigação sobre o “como” lhe
aconteceu e suas conseqüências. Em Jo 9,10 aparece pela primeira vez a partícula
interrogativa pw/j cuja ocorrência se verifica várias vezes no texto,428 e exprime a
incompreensão frente às obras de Jesus levando assim a uma repetição múltipla da 427 Cf. LOCKMAM, Paulo. O Evangelho de João e o Testemunho Criativo do Povo in: Estudos Bíblicos - Criatividade na Crise, pp. 42. “Neste sentido há no esquema das testemunhas um resgatar criativo da memória dos pobres e marginalizados, numa quase perfeita circulação hermenêutica, onde os pobres da Ásia Menor? (ou Éfeso?) se enxergam na figura dos pobres do Evangelho de João”. 428 Cf. Jo 9,15; Jo 9,16; Jo 9,19; Jo 9,21; Jo 9,26.
123
resposta, o que cria um efeito literário de insistência que condiz com o
acontecimento inaudito - como se abriram os teus olhos . Para dizer que ele vê, o
homem usa esta fórmula que substitui o simples “ver” 429 (Jo 9,7), através desta
expressão hvnew,|cqhsa,n sou oi ovfqalmoi, que se repete várias vezes em seguida (Jo
9,14; Jo 9,17; Jo 10,21; Jo 11,37). O motivo é que, a fórmula, sendo modelada
sobre Is 42,7, tem conotações messiânicas e indica, por isso, a cura física e ao
mesmo tempo a iluminação espiritual (Mt 9,30; Mt 20,33; At 26,18).
A;nqrwpoj - o termo adquire importância em todo o relato onde ocorre em
referência ora ao cego, ora a Jesus.430 Na boca do curado, que ainda não conhece
Jesus Jo 9,12, exprime o primeiro grau de compreensão de sua pessoa, mesmo que
na intenção do evangelista o termo possa ter um significado mais profundo. Pois,
a expressão “o Homem-aquele Homem” em Jo 9,35 remete ao “barro de Jesus”
sua própria imagem, com a qual ele unge os olhos do cego”(Jo 9,6; 9,11)
mostrando o que significa a plenitude humana. A expressão nos lábios de Jesus
significa sua própria humanidade que possui a plenitude do Espírito, o projeto
divino sobre o homem realizado nele, o modelo de homem, o vértice do ser
humano. É a realidade de Jesus vista de baixo, desde sua raiz humana, que se
ergue até a sua absoluta realização pela comunicação do Espírito. O seu
correlativo é o título o Filho de Deus, que significa a mesma realidade vista desde
cima, desde Deus, designando o que é totalmente semelhante a ele e possui a
condição divina. Ao aceitar ser modelado, iluminado com as águas do Espírito, o
homem que fora cego, aceita ser também divinizado em sua humanidade, chega à
sua dignidade de vida e chegará do mesmo modo, passando por estágios
intermediários, a um entendimento maior de quem é o homem que o curou,
expressa na resposta dada às autoridades da Sinagoga: é um profeta (Jo 9,17) e
um homem de Deus (Jo 9,33), até ao conhecimento perfeito de Jesus, “Filho do
Homem”431 expressa na confissão de fé (Jo 9,35-38). É impressionante a
429 Cf. SUQUÉ José Maria Casabó, La Teologia Moral en San Juan, pp. 95-100. Sem dúvida o “ver” somente, não basta. Os testemunhos oculares necessitam crer, antes de terem visto. “A verdadeira fé implica um ato interior que se realiza no coração dos que crêem; o fato de ‘ver’ e ‘ouvir’ deve ser seguido deste ato interior.” Em conjunto ver e crer dão a vida eterna. A má fé que desse modo nega a Jesus e se exclui da vida, está estupendamente dramatizada na cena da cura do cego de nascimento. “Os ‘judeus’ buscam todas as escapatórias possíveis para evitar a significação do fato de que estão vendo: o que era cego, agora vê, é Jesus quem lhe tinha dado a luz. Em contraste com eles, o ex-cego de nascimento é símbolo vivo do homem iluminado por Jesus”. 430 Cf. Jo 9,12 “Não sei” conforme Jo 9,16; Jo 9,24; Jo 9,30. 431 Cf. JEREMIAS, J. Teologia do Novo Testamento, pp. 412-418.
124
fidelidade à verdade atestada no testemunho do ex-cego. Sabe que o homem se
chama Jesus, que no contexto poderia aludir ao seu significado etimológico, Deus
salva, mas não o conhece, ouvk oi=da. O certo é que, seguindo suas instruções, após
o gesto recriador, obteve a vista.
O que evidencia a importância deste texto como relato de sinal é o tema da
“luz do mundo” formulado em (Jo 9,5). Jesus está presente como a luz do mundo,
o Mestre no caminho que dá a vida e a tudo ilumina. Ao símbolo da luz
corresponde a dupla reação humana da cegueira e da visão, como respectivamente
expressão da descrença e da fé, da condenação e da salvação que Jesus traz à
humanidade. Além disso, o próprio curado aparece como testemunha de Cristo e o
é em virtude de sua ação recriadora e da obediência à sua Palavra, juntando neste
ato a ação divina, com a colaboração humana que o faz levantar-se, colocar-se a
caminho na busca da maturidade cristã. O testemunho consiste em que ele não
pode fazer outra coisa, a não ser testemunhar a sua cura realizada pelo pedagogo
Jesus. Ao falar da cura, tem que falar também de seu salvador, o que veio trazer a
luz da vida e o fez “ver”. Por isso é lógico que a discussão sobre sua cura se torne
uma discussão sobre o próprio Jesus, embora ele não esteja presente. Se, se faz a
leitura num segundo nível de tempo, segundo assinala-se acima - o tempo de Jesus
e o tempo da comunidade Joanina - o relato trata de um confronto entre a
comunidade cristã e a comunidade judaica no tempo do evangelista e do seu
círculo.432 Mas é bem possível que nestas duas sub-unidades, se possa dizer que o
texto é costurado por um fio condutor: o conceito gêmeo luz-vida, onde o cego,
nasce para uma nova existência, a partir de sua adesão a Jesus.
432 Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. El Evangelio Según San Juan II p. 302. “a exposição reflete claramente as circunstâncias históricas do evangelista e de sua comunidade. Dois são os pontos principais que se destacam: 1 - o confronto acerca da messianidade de Jesus e 2 - o processo de exclusão da comunidade judaica”.
Conclusão
O testemunho é amostra final da atuação de Jesus e da adesão do cego de
nascença. Percebe-se, portanto, um fio condutor, no entrelaçamento dos termos
luz-vida, cuja evidência se faz sentir no desenrolar de todo o relato e que ao
mesmo tempo nos reporta ao final do Evangelho. João afirma que escreveu para
conduzir os crentes à fé em Jesus, o Cristo, e para que, crendo, tenham a vida em
seu nome Jo 20,31. Nesta perspectiva o testemunho é também sinal do dinamismo
pelo qual o homem foi tomado, desde o momento em que fora envolvido pelo
olhar do mestre Jesus. Iluminado pela presença da luz-vida para a humanidade, e
obediente à sua Palavra, o cego levanta-se, começa a ver, dá passos em direção à
vida, nasce para uma nova existência e faz a passagem das trevas para a luz.
Assim chegamos ao final do nosso intento, deixando para o leitor o desafio
de continuar o aprofundamento da reflexão, sobre a pedagogia da luz, que aponta
para o modo de ser de Jesus e que se torna essencial para a compreensão sobre a
nossa posição frente ao mistério. Todo estudioso de Jesus Cristo faz a experiência
que testemunhou São João da Cruz, o místico ardente: “Há muito que aprofundar
em Cristo, sendo ele qual abundante mina com muitas cavidades, cheias de ricos
veios, e por mais que se cave, nunca se chega ao termo, nem se acaba de esgotar;
ao contrário, se vai achando em cada cavidade novos veios de novas riquezas,
aqui e ali, conforme testemunha São Paulo, quando disse do mesmo Cristo: ‘Em
Cristo estão escondidos todos os tesouros de sabedoria e ciência’ Col 2,3”.433
Nosso objetivo foi o falar da pedagogia da luz na recriação do cego de nascença,
em cuja atuação se entrelaçam os termos luz e vida, tendo como resultado a
transformação que lhe ocorreu. De algum modo julgamos tê-lo alcançado. Pois se
pode afirmar, pela trilha que seguimos nesta dissertação, que em Jesus como luz
do mundo, o ser humano é recriado. Deus, em seu Filho Jesus, vem ao encontro
dos necessitados de sua luz, a fim de libertá-los e elevá-los à grandeza de sua
dignidade humana.
433 CRUZ, São João da. Subida do Monte Carmelo in: Obras Completas, p. 285.
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