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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Claudia Mastromauro Cerveira Quintas
A importância do ethos dos sujeitos em processos
criminais: o convencimento do juízo e a sentença criminal.
Mestrado em Língua Portuguesa
SÃO PAULO
2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Claudia Mastromauro Cerveira Quintas
A importância do ethos dos sujeitos em processos
criminais: o convencimento do juízo e a sentença criminal.
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Língua Portuguesa, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Antonio Ferreira.
SÃO PAULO
2013
Dedico este trabalho ao meu marido
Eduardo Cerveira Quintas, eterno e
incondicional incentivador dos meus
sonhos.
Agradecimentos
A Deus, por iluminar e abençoar minha trajetória e por me dar forças em
todos os momentos desta minha caminhada.
Ao meu marido e a minha pequena Cyndy, por compreenderem minha
ausência e minha total dedicação ao solitário processo da escrita.
As amigas: Maria Cristina Máximo Almeida pela preciosa ajuda na
elaboração deste trabalho e Hilani Mercadante que com toda a sua habilidade
e proficiência me ajudou, uma vez mais, em meu desempenho com a língua
inglesa.
Aos professores do programa de Pós Graduados em Língua Portuguesa
da PUC/SP que muito contribuíram para este aprimoramento profissional.
Aos componentes da banca, professor Dr. Luiz Antonio Ferreira e as
professoras Dras. Dieli Vesaro Palma e Ana Lúcia Magalhães.
E, especialmente, ao meu orientador, professor Dr. Luiz Antonio
Ferreira, pela sua incansável disposição em me ajudar com este trabalho e
pela paciência com essa “italiana” de pouca paciência.
RESUMO
Este trabalho objetiva verificar quais são as estratégias retóricas utilizadas nos
discursos jurídicos e como se dá, ao longo dos processos criminais, a
constituição do ethos dos sujeitos manifestados nesses discursos. Na amostra
escolhida, o pai e a madrasta de uma criança assassinada são os principais
suspeitos e a sentença culminou com a condenação dos réus. Para bem situar
o processo de constituição da dissertação, parte-se de considerações
históricas e teóricas a respeito da Retórica Clássica e da Nova Retórica, com
base nos estudos de Aristóteles, Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca,
Michael Meyer, Olivier Reboul e Lineide do Lago Salvador Mosca. Também
foram usados os estudos de Luiz Antonio Ferreira, no que tange aos princípios
da análise retórica. A Constituição Federal da República Federativa do Brasil,
no que diz respeito às leis magnas, serviu de base para as considerações de
natureza jurídica propriamente dita. A análise resulta da associação de
estratégias retóricas de persuasão e da especificidade da construção do ethos
dos sujeitos envolvidos em um Plenário do Júri, a fim de apontar como os
discursos elaborados nessas esferas foram menos ou mais persuasivos e
convincentes. O recorte selecionado evidencia a presença de muitas
estratégias retóricas persuasivas, bem como a forma como, no plano
discursivo, a construção dos ethos dos sujeitos é retoricamente delineada.
Observa-se, como produto analítico, a predominância do gênero epidítico e dos
raciocínios apodíticos, que partem das premissas prováveis ou verdadeiras e,
nesse sentido, também aproximam o orador e o auditório. Os sujeitos
envolvidos nos discursos analisados valem-se do movimentar das paixões
para persuadir o auditório em busca da adesão. Há, ainda, nos discursos
analisados, ocorrência de figuras retóricas de presença e de escolha, como
hipérbole e ironia, que aproximam orador e auditório. A constituição da verdade
jurídica, como demonstra a análise, parte de premissas verossímeis e associa
as provas extrínsecas às intrínsecas para a condução do auditório. O contexto
retórico, envolto num universo de valores sociais, é fator preponderante para a
constituição argumentativa e exerce forte poder persuasivo. Se as leis são
vitais para a promulgação de uma sentença, o encaminhamento retórico de
todas as partes envolvidas, criado durante as sessões de julgamento, é fator
exponencial para o resultado obtido. Parece ser impossível desvencilhar a
condução lógica do raciocínio sem a associação potente com os elementos
passionais no processo de constituição retórica do ato de julgar, condenar ou
absolver.
Palavras-chave: retórica; análise retórica, ethos, discurso jurídico, processos
criminais.
ABSTRACT
This paper aims to verify which rhetoric strategies are used in legal discourses
and how the characters' ethos is constituted in those discourses made along
criminal cases. In the case analyzed, the father and the stepmother of a
murdered child are the main suspects, and the sentences ended with the
defendants’ conviction. In order to put in context the constitution process of the
dissertation, historical and theoretical considerations about Classical Rhetoric
and New Rhetoric were made, based on the studies of Aristotle, Chaim
Perelman and Lucie Olbrechts-Tyteca, Michael Meyer, Olivier Reboul and
Lineide do Lago Salvador Mosca. The studies of Luiz Antonio Ferreira were
also used, referring to the principles of rhetoric analysis.The Constituição
Federal da República Federativa do Brasil, in regard to magna laws, served as
basis for the considerations of legal nature. The analysis is a result of the
association of persuasion rhetoric techniques and the specificity of the
construction of the ethos of the characters involved in a jury plenary, in order to
point out how the discourses made in those scenarios were more or less
persuasive and convincing. The selected piece shows the presence of several
persuasive rhetoric strategies, as well as the way how the construction of the
ethos of the characters is made in a discourse context. It can be seen the
predominance of the epideictic genre and apodictic thinking, which start from
probable or true premises and so, also bring speaker and audience close
together. The characters involved in the analyzed discourses use passion
movements to persuade the audience in order to obtain its adherence. Some
rhetoric figures of presence and choice, like hyperbole and irony, are noticed in
those discourses, what brings the speaker closer to the audience. The legal
truth constitution, as shown in the analysis, starts from truthful premises and
associates extrinsic and intrinsic evidence to conduct the audience. The rethoric
context, surrounded by a universe of social values, is a major factor for the
argumentative constitution and wields persuasive power. If the laws are vital for
the promulgation of a sentence, the rhetoric path of all parts involved, done
during the trial sessions, is key to the results obtained. It seems impossible to
dissociate the logic conducting of the thinking without the potent association
with the passion elements in the rhetoric constitution process of the act of
judging, convicting or acquitting.
Key words: rhetoric, rhetoric analysis, ethos, legal discourses, criminal cases.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................................13
Capítulo I – Conceito teóricos.................................................................................17
1. A retórica...................................................................................................................17
1.1 As origens da retórica............................................................17
1.2. Ethos, pathos e logos..........................................................................................20
1.3. Os gêneros retóricos...........................................................................................23
1.4. As formas de persuasão....................................................................................23
1.5. O sistema retórico................................................................................................24
1.5.1. Inventio.............................................................................................24
1.5.2. Dispositio.........................................................................................25
1.5.3. Elocutio.............................................................................................25
1.5.4. Ação....................................................................................................26
1.6. Os lugares retóricos............................................................................................26
1.7. A nova retórica e a argumentação................................................................27
1.8. As técnicas argumentativas.............................................................................28
1.8.1. As figuras..........................................................................................28
1.8.2. Os tipos de argumentos retóricos.........................................29
1.8.3. As paixões aristotélicas e o Tribunal do Júri....................31
Capítulo II – O universo jurídico............................................................................36
2. O Direito.....................................................................................................................36
2.1. O processo criminal............................................................................37
2.2. O Plenário do Júri.................................................................................38
2.3. O Direito como linguagem...............................................................39
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri.........41
3. A história do corpus..............................................................................................41
3.1. A possibilidade de análise do corpus..........................................45
3.2. O corpus...................................................................................................45
3.3. Análise da denúncia............................................................................47
3.4. Análise do depoimento do acusado (A1)...................................54
3.5. Análise do depoimento da acusada (A2)...................................61
3.6. Análise da sentença.............................................................................70
3.7. Conclusão da análise..........................................................................72
Considerações finais....................................................................................................80
Bibliografia......................................................................................................................82
Anexos....................................................................................................................... ........84
Anexo I................................................................................................................84
Anexo II..............................................................................................................87
Anexo III ...........................................................................................................92
Anexo IV..........................................................................................................101
Introdução
13
Introdução
Após quinze anos de atuação como advogada, surgiu a necessidade de
aprofundar os estudos a respeito da linguagem, haja vista a obrigatoriedade
que tem o profissional do Direito de persuadir seu auditório.
Como os conceitos de persuasão sob a ótica do advogado nos eram
familiares, então, seria mais desafiador estudar as técnicas persuasivas
advindas do representante do Ministério Público, que, sem provas materiais,
consegue persuadir o juízo, a fim de condenar o acusado.
Os motivos que levam um indivíduo a praticar um crime mexem com o
imaginário das pessoas, sejam elas profissionais da Psiquiatria/Psicologia, da
Imprensa ou da Justiça, seja da população em geral. Alguns processos
judiciais, ou autos do processo - como são chamados na esfera jurídica - que
são os instrumentos utilizados pelo poder judiciário para pôr fim aos conflitos
gerados pela ocorrência de um delito por meio da aplicação das leis
disponíveis, são propagados nos meios de comunicação de massa tamanha a
consternação causada na população. Muitos desses processos constituem
corpus para diferentes tipos de pesquisa nas mais diversas áreas do
conhecimento.
O tema proposto para esta pesquisa envolve o estudo das estratégias
retóricas de persuasão e a constituição do ethos manifestado nos discursos
produzidos ao longo dos processos criminais, cujas sentenças culminaram com
a condenação do réu. Sabemos que nos processos judiciais, é possível, por
meio da análise retórica, verificar se o intento do promotor de justiça ou do
advogado de defesa foi obtido por meio de argumentação eficaz.
O Direito é compreendido, sobretudo, por sua disposição para o
estabelecimento de acordos e, nesse sentido, enovela-se indissociavelmente
com a argumentação, que, por sua vez, leva à persuasão, que assume um
papel de real importância no contexto jurídico. No embate travado
judicialmente, ambas as partes de um processo judicial têm suas convicções e,
por meio dos discursos proferidos, tentarão persuadir o júri de que é a sua
“verdade” que deverá prevalecer. Foi a partir dessa concepção de criação do
Introdução
14
verossímil por meio do argumento, que decidimos aprofundar nossos estudos
sobre a antiga e a nova retórica.
No plano linguístico, em seu texto Interação verbal, Bakhtin (2009)
aborda a relação entre linguagem e sociedade, bem como questiona em que
medida a linguagem determina a atividade mental e em que medida a ideologia
determina a linguagem. Ressalta que a palavra é um signo ideológico por
excelência, reflete a realidade social e destaca a sua natureza ideológica como
signo linguístico para frisar seu caráter social, dialógico e interativo. Assim,
podemos afirmar que o homem se vale da língua para manifestar suas
opiniões, seus ideais e suas crenças.
Segundo Bittar (2010:13):
A linguagem funciona como canal de conexão a paixões, sentimentos, ideias, padrões, arquétipos, circunscrevendo a forma pela qual se determina, pelo simbólico, o mundo, na mesma medida em que somos pela realidade humana determinados. As linguagens determinam e constituem a condição humana, e esta questão não pode ser pensada sem que se possa evocar a ideia de que o homem é ser de ação e fala.
A linguagem, pois, exerce verdadeira sedução na relação entre os
interlocutores e, em especial, entre os que a utilizam como instrumento
profissional de convencimento. A palavra expressa por meio da linguagem
será, então, o principal e, em muitos casos, o maior meio de expressão da
convicção utilizado pelos profissionais do Direito.
Entretanto, temos o conhecimento de que o uso da linguagem não é tão
simples. Muitas vezes, nos deparamos com a difícil tarefa de expor nossa
convicção em face às divergências de opiniões, e é justamente nesse plano
que se ressalta o universo da doxa, plano pelo qual o juízo de um auditório
será considerado. A doxa era utilizada pelos sofistas na Grécia Antiga como
ferramenta de formação de opiniões, que, por sua vez, se valeria da influência
das emoções.
No âmbito jurídico, mais especificamente no Plenário do Júri, os
operadores do Direito fazem uso das paixões utilizadas como estratégias
retóricas para persuadir os jurados a respeito da transgressão cometida pelo
réu, a fim de condená-lo.
Introdução
15
Se os delitos praticados por qualquer indivíduo violam as leis de uma
nação, a eloquência dos envolvidos na esfera jurídica traduz a necessidade de
persuasão sobre o outro. Desse modo, é cristalina a concepção de que o
conteúdo dos discursos que chegaram à condenação de uma pessoa se dá no
âmbito jurídico, sim, mas, sobretudo, no âmbito retórico.
Para a retórica, a palavra mostra-se como elemento utilizado no discurso
com o propósito de convencer ou de persuadir.
Por essa razão, o debate em torno do convencimento do juízo em
processos criminais para a prolação da sentença condenatória nesta pesquisa
é fundamentado no domínio da retórica, pois o estudo do convencimento do
outro por meio da palavra está intimamente ligado às estratégias retóricas
utilizadas, e, assim, os sujeitos envolvidos nos processos criminais podem
orientar o juízo na interpretação dos fatos narrados.
Escolhemos como corpus, para tanto, o processo criminal denominado
Ação Penal de Competência do Júri, que tramitou perante a 2a Vara do Júri do
Foro Regional de Santana, São Paulo, Capital, contra A.A.N. e A.C.T.P.J.,
acusados de matarem a criança I.O.N. A partir de agora, usaremos as
seguintes siglas para nomear os acusados e a vítima:
A.A.N. A1
A.C.T.P.J. A2
I.O.N. V
Fonte: o autor.
A escolha do corpus se deu em virtude de encontrarmos um processo
em que a autoria não foi firmada por meio da confirmação pelos acusados, mas
por meio do trabalho discursivo do Promotor de Justiça – daqui para frente
também chamado de PJ – que usou as provas processuais contidas nos autos
para incriminar os réus.
Escolhido o corpus, o passo seguinte foi decidir quais as partes do
processo seriam objeto de estudo. Como o interesse maior desta pesquisa é
observar como o juízo (corpo de jurados) foi convencido, entendemos que seria
necessário analisar as técnicas argumentativas utilizadas pelo PJ em sua peça
acusatória, bem como os discursos proferidos ao longo do processo criminal.
Introdução
16
Nosso objetivo, então, centra-se na identificação de técnicas utilizadas
pelo Ministério Público, chamado também de MP, na pessoa do Promotor de
Justiça, para ressaltar as estratégias retóricas e a constituição do ethos dos
sujeitos envolvidos em processos criminais, cujas sentenças foram prolatadas
com a condenação do réu.
Para alcançar nosso objetivo, a presente pesquisa, busca responder
quais os meios persuasivos utilizados pelo Ministério Público a fim de atingir
seus propósitos e qual o papel da construção da imagem dos sujeitos, ethos,
no desenrolar do processo criminal.
Trata-se de um tema relevante para os estudos de argumentação, pois o
convencimento do outro por meio da palavra está intimamente ligado às
estratégias retóricas, sobretudo no que diz respeito à formação e à atuação dos
sujeitos envolvidos nos processos criminais.
Para a efetivação dos objetivos e a organização do trabalho,
estruturamo-lo em três capítulos. O primeiro capítulo, “Conceitos teóricos”,
versará sobre os conceitos teóricos ligados à retórica e por nós utilizados no
decorrer da análise. O segundo capítulo, “O universo jurídico”, tratará de
noções de Direito, aspectos do Tribunal do Júri e do Direito como linguagem. O
terceiro capítulo, intitulado “O convencimento e a persuasão no Plenário do
Júri”, apresentará o corpus a ser analisado, bem como a análise propriamente
dita. Por fim, nas considerações finais do nosso trabalho, será feita uma
retomada da pesquisa, com o objetivo de refazer o caminho percorrido desde o
primeiro capítulo até a conclusão analítica.
Capítulo I – Conceitos teóricos
17
Capítulo I – Conceitos teóricos
1. A RETÓRICA
Apresentaremos aqui um panorama dos conceitos teóricos por nós
utilizados neste trabalho. Neste percurso, a retórica será delineada com o fim
de nos mostrar seus aspectos persuasivos. Segundo Reboul (2004: XIV) “a
retórica é a arte de persuadir pelo discurso”, entretanto, ela possui suas
limitações e não pode ser aplicada a todo e qualquer discurso
A retórica não é aplicável a todos os discursos, mas somente àqueles que visam persuadir, o que de qualquer modo representa um belo leque de possibilidades! Enumeremos as principais: pleito advocatício, alocução política, sermão, folheto, cartaz de publicidade, panfleto, fábula, petição, ensaio, tratado de filosofia, de teologia ou de ciências humanas. Acrescente-se a isso o drama e o romance, desde
que “de tese”, e o poema satírico ou laudatório. (REBOUL, 2004:XIV)
Teceremos, então, um breve panorama sobre as origens da retórica, sua
função e dos sistemas por ela utilizados.
1.1 As origens da retórica
No capítulo I do livro A retórica (2007), Meyer questionou em que
medida o termo “retórica” é sinônimo de coisas incertas ou duvidosas. Para
tanto, discorreu sobre o seu surgimento e a acompanhou, no plano histórico,
até os dias de hoje.
Segundo Meyer (2007), a retórica nasceu na Sicília, por volta de 465
a.C., após a queda de Trasíbulo, tirano que subtraiu muitas terras de
proprietários na antiga Siracusa. Os proprietários espoliados precisavam
reclamar seus bens, entretanto, a figura do advogado ainda não existia.
Dessa forma, o sofista Córax, discípulo de Empédocles, publicou em
conjunto com Tísias um manual de exemplos práticos, O Córax, que ensinava
as pessoas despojadas de seus bens a recorrerem à justiça. Nele, a
capacidade argumentativa do orador se sobrepunha à verdade.
Capítulo I – Conceitos teóricos
18
Os sofistas, que para Meyer (2007) foram os primeiros advogados a
existirem, eram mestres na arte da persuasão e viajavam de cidade em cidade
a fim de atrair estudantes. Criaram “a arte retórica”, que, segundo Reboul
(2004:9), “era a arte do discurso persuasivo, objeto de um ensino sistemático
global que se fundava numa visão de mundo”. Ainda conforme o autor, para os
sofistas, esta arte tinha a finalidade de “dominar através da palavra” (2004:10).
No Córax, apareceu a primeira definição de retórica: “criadora de
persuasão. (...) não argumenta a partir do verdadeiro, mas a partir do
verossímil (eikos). Surge então a retórica judiciária” (REBOUL, 2004:2).
Protágoras, um sofista muito preocupado com a gramática e com a
coerência, além do estilo, voltou-se para a persuasão, sem, entretanto, se
preocupar com a verdade. Os sofistas, então, criaram a arte do discurso
persuasivo, mas não necessariamente verdadeiro. Esse modo de ver e praticar
a retórica tornou-a conhecida como a arte da enganação.
Com Górgias, também discípulo de Empédocles, surgiu uma nova fonte:
a retórica literária. Górgias percebeu que os gregos identificavam a literatura
como uma poesia épica e trágica, e achavam que a palavra vinha sempre
acompanhada de beleza e, para tanto, deveria ser rebuscada. Em função
dessa concepção, foi considerado um dos fundadores do discurso epidítico, ou
seja, o discurso de elogio público. Criou, para esse fim uma prosa eloquente,
erudita e ritmada. A arte então ganhou estilo.
Foi Isócrates, no século IV, quem, segundo Reboul (2004), tentou trazer
credibilidade ao discurso persuasivo, propondo que ele fosse mais plausível e
mais moral. Pregou ainda que para tanto se necessitava de objetivos
específicos em primeiro lugar, para, somente depois de esclarecidos tais
objetivos, estudar os meios para atingi-los. Segundo Reboul, este orador era o
responsável pela moralização da arte retórica e afirmava que ela só seria
aceitável se estivesse a serviço de uma causa honesta e nobre” (REBOUL,
2004:9-10).
Tal prática foi prontamente repudiada por Platão, que considerava ser a
retórica um falso saber. Surgia, assim, a ideia do raciocínio falacioso e
enganador (MEYER, 2007).
Capítulo I – Conceitos teóricos
19
Platão foi sempre infatigável em opor a retórica – falso saber, ou sofística - à filosofia, que se recusa a sujeitar-se às aparências de verdade para dizer tudo e também seu contrário, o que é condenável, mesmo que rentável. (2007:19)
Preocupado com a reputação da retórica e com o seu mau uso, Platão a
identificou como a habilidade de manipulação da verdade. Para tanto, criticava
seus conceitos nos moldes dos sofistas e afirmava existir uma dicotomia entre
retórica e dialética. Segundo o autor, a dialética se constituía de falas breves e
concisas realizadas por indivíduos que procuravam a verdade; já a retórica, era
um discurso cheio de digressões, diferentemente da dialética, e que tinha por
objetivo apenas agradar o público (delectare).
Este capítulo tem como destaque a retórica que surgiu na Grécia Antiga.
É evidente que todas as teorias apresentadas pelos estudiosos citados foram
importantes. No entanto, foi Aristóteles quem melhor sintetizou a Arte Retórica.
Aristóteles (384-322 a.C.) nasceu quinze anos após a morte de
Sócrates. Foi aluno de Platão desde seus dezessete anos, mas, como não
podia suceder ao mestre, depois de vinte anos, criou sua própria escola: O
Liceu.
Foi preceptor de Alexandre, o Grande, que conquistou para a Grécia
todo o Oriente (desde o Egito até a Índia), e esse feito é considerado por
muitos como consequência dos ensinamentos de Aristóteles.
Para o filósofo, a retórica tinha uma utilidade, diferentemente do
pensamento de Górgias, que a definia como poder. Segundo Aristóteles, era
por meio da retórica que as pessoas expressavam suas opiniões, pela
utilização de argumentos necessários à persuasão. Com essa argumentação, a
retórica passou a ter uma visão mais sólida e se mostrou como a arte do bem
falar.
E essa nova argumentação dá uma idéia mais profunda e sólida da retórica. Para começar, já não a apresenta como poder de dominar, mas como poder de defender-se, o que logo de cara a torna legítima. Não se reduz ao poder de persuadir; no essencial é a arte de achar os meios de persuasão que cada caso comporta (REBOUL, 2004:23).
Para o ataque, a defesa ou para legitimar o dizer são necessários três
componentes básicos um orador, um auditório e uma mídia que é a linguagem
escrita ou falada.
Capítulo I – Conceitos teóricos
20
Segundo Meyer (2007), o orador, o auditório e a linguagem são
igualmente importantes, entretanto, se não houvesse uma pergunta, não
haveria um debate, uma discussão, logo não haveria a necessidade da
existência da retórica. “(...) a retórica é a negociação da diferença entre os
indivíduos sobre uma questão dada” (MEYER, 2007:25).
Esse conceito é muito adequado para o tratamento das questões
jurídicas: sempre há uma questão, que envolve pelo menos dois lados
antagônicos, com diferenças de opinião muito amplas. Nesse sentido, a
negociação se faz necessária para estabelecimento da justiça.
1.2 Ethos, pathos e logos
A palavra ethos é de origem grega e era definida como “a morada do
homem”, ou seja, valores éticos que cada um possuía. O ethos para os gregos
era a imagem de si, o comportamento, as atitudes, as escolhas tomadas, o
caráter e até mesmo a personalidade de cada um.
Para Aristóteles (2007), o ethos liga-se ao caráter que o orador
demonstra ter. O auditório deve sentir a sensatez, a honestidade, a sinceridade
e a autoridade advindas do orador para aderir ao discurso. Segundo o autor, na
composição do ethos estão presentes:
a) a phronésis – prudência;
b) a arethé – honestidade e sinceridade;
c) a eúnoia – solidariedade.
Esse conceito é recuperado por Meyer (2007:34), “é a imagem que o
orador passa de si mesmo, e que o torna exemplar aos olhos do auditório que
então se dispõe a ouvi-lo e a segui-lo”.
Enfim, as virtudes morais que o orador passar ao seu auditório irão lhe
conferir autoridade, pois suscitará a confiança que ele mesmo sentirá frente ao
seu auditório. É no ethos que iremos encontrar os argumentos e as respostas
que o orador necessita para se dirigir ao outro.
Capítulo I – Conceitos teóricos
21
Ethos é, portanto, segundo a retórica antiga, a personalidade que o
orador se confere. Em outras palavras, é a personalidade que o
indivíduo demonstra através da sua fala, da sua maneira de
expressão. Isso implica, em princípio, a criação de uma imagem
agradável (eunoia), simples e sincera (aretê) de si. O orador não diz
claramente que é honesto simples e agradável, mas deixa
transparecer através do enunciado, por meio do exercício da
palavra (MAGALHÃES, 2001:39)
Do ponto de vista de Eggs (2008), Aristóteles estava muito além dos
retóricos de sua época, que entendiam que o ethos não contribuía para a
persuasão, diferentemente do entendimento do filósofo, que creditava ao
orador um semblante confiável se este mostrasse ser possuidor de um caráter
honesto.
Para o autor, na Retórica de Aristóteles:
[há] dois campos semânticos opostos ligados ao termo ethos: um, de sentido moral (...), engloba atitudes e virtudes como honestidade, benevolência ou equidade; outro, de sentido neutro ou “objetivo” da héxis, reúne termos como hábitos, modos e costumes ou caráter. (EGGS, 2008:30)
Eggs (2008) afirma ainda que o orador deve mostrar um ethos
apropriado à sua idade e à sua situação social, e ainda adaptar seu discurso
aos habitus de seu auditório.
Também de origem grega, a palavra pathos carrega em seu bojo um
sentimento muito forte, o da paixão. Segundo o Dicionário Aurélio online: s.m.
(pal. gr.), “tipo de uma experiência humana, ou sua representação em arte, que
evoca dó, compaixão ou uma simpatia compassiva no espectador ou leitor”.
Para Meyer (2007:39) pathos é “o conjunto de valores implícitos das
respostas fora de questão, que alimentam as indagações que um indivíduo
considera como pertinentes” e é construído pelas respostas às questões do
auditório sobre suas paixões, emoções ou opiniões. Questiona o autor o que é
paixão para a retórica e responde a essa questão ao explicar que, sempre que
estamos apaixonados, passamos da pergunta à resposta, ou seja, achamos o
ser amado perfeito, maravilhoso, não distinguimos mais as verdadeiras
qualidades do outro; assim, “a paixão transfere a problemática para o plano da
Capítulo I – Conceitos teóricos
22
resposta”, pois a pergunta é tratada como resposta, e observa que isso é uma
ilusão (2007:37).
O autor enumera então como pode o auditório se comportar diante das
respostas emitidas pelo orador. O auditório pode (2007:39):
1. aderir; 2. recusar essas respostas; 3. completá-las; 4. modificá-las; 5. permanecer silencioso, o que pode ir na
direção de: 6. aprovação; 7. reprovação; 8. mas pode significar desinteresse pela
questão tratada.
O logos, diz respeito à argumentação propriamente dita a princípio, era
um termo usado pelos gregos para definir a palavra escrita ou a falada,
entretanto, alguns filósofos começaram a usá-la como conceito filosófico que
determinava a razão.
Segundo Meyer (2007:40), “o logos deve poder expressar as perguntas
e as resposta preservando sua diferença”.
Aristóteles (2007), em sua obra sobre a retórica, distingue as três formas
de argumentação (provas):
a) a que se baseia no caráter pessoal do orador, que é o ethos;
b) a que se baseia no estado emocional do auditório – pathos;
c) a que se baseia nos argumentos propriamente ditos – logos.
A análise empreendida por Eggs (2008:41) almeja que
(...) o logos convence em si por si mesmo, independentemente da situação de comunicação concreta, enquanto o ethos e o pathos estão sempre ligados à problemática específica de uma situação e, sobretudo, aos indivíduos concretos nela implicados.
Para o autor, há um desdobramento das três provas, pois, segundo
Aristóteles o ethos é a mais importante das provas porque se refere às razões
que inspiram confiança, tais como: o hábito de vida, o caráter e as virtudes
apresentadas por cada indivíduo, e somente por meio dele o auditório se
convencerá. O logos convence por si só, pois é dotado de inferências,
Capítulo I – Conceitos teóricos
23
raciocínios e argumentação. Já o pathos dependerá da situação,
principalmente do envolvimento do indivíduo. Eggs (2008:41) propõe blocos de
convicção sobre as três provas do discurso:
Logos
Inferencial
Raciocínio
Argumentação
Ethos
Habitus – virtude - caráter
Pathos
Paixão, afeto
Fonte: Eggs (2008:41)
1.3 Os gêneros retóricos
Aristóteles (2007) classifica a retórica em três gêneros distintos, com
base na concepção de que existem três tipos de auditório: o juiz, a assembleia
e o público:
1) Gênero epidítico: o auditório desempenha um papel decisivo, porque
aclama ou censura o discurso do orador. Julga se é belo; baseia-se no
tempo presente.
2) Gênero judiciário: determina se a ação é justa ou não; baseia-se em
atitudes passadas, porque necessita esclarecer o que realmente
aconteceu, e tem por objetivo a ética.
3) Gênero deliberativo: decide em função do útil ou do prejudicial por meio
da persuasão ou dissuasão. Julga, aconselha ou desaconselha;
portanto, baseia-se no futuro.
1.4 As formas de persuasão
Para Aristóteles (2007), a retórica é baseada em provas que têm um fim
persuasivo. Afirma também que, entre as provas, existem as que dependem e
as que não dependem da arte retórica. As que dependem são as provas
produzidas pelo orador, ou seja: a) ethos – caráter; b) pathos – emoção criada
no auditório; e c) logos – discurso. As que não dependem são divididas em: 1)
provas extrínsecas: aquelas apresentadas antes da Inventio (invenção), como:
confissões, leis, contratos etc.; e 2) provas intrínsecas: aquelas criadas pelo
Capítulo I – Conceitos teóricos
24
orador e que dependem somente dele no que tange ao estilo e à competência
para elaborar o discurso.
Aristóteles divide ainda a persuasão em dois meios de provas: a) as não
artísticas, que são as evidências concretas – as provas documentais e
testemunhais; e b) as artísticas, que são as inventadas pelo orador e que se
dividem em:
1) Lógicas (logos): baseiam-se na razão e utilizam-se do discurso em si.
2) Patéticas (pathos): baseiam-se nas emoções do auditório eutilizam-
se das paixões que existem.
3) Éticas (ethos): baseiam-se na imagem do orador, ou seja, no caráter
apresentado por ele.
1.5 O sistema retórico
Aristóteles (2007) divide a retórica em quatro partes, que representam as
quatro fases pelas quais o discurso se compõe:
1.5.1 Inventio (heuresis): busca pelos meios de persuasão
É a fase da invenção, pois é nela que o orador irá procurar as pistas
para sua argumentação e a investigação para adequar seu discurso ao gênero
correto. Antes de proferir um discurso, o orador deve se perguntar sobre o que
irá versar; para tanto, precisa descobrir a qual gênero pertence o discurso.
Reboul (2004:47) retoma a concepção de gêneros de Aristóteles e os
divide em
a) Judiciário: que dispõe de leis e se dirige a um auditório especializado; b) Deliberativo: prefere argumentar pelo exemplo e c) Epidítico: recorre a amplificação, pois os fatos são conhecidos pelo público, e cumpre ao orador dar-lhes valor, mostrando sua
importância e sua nobreza.
Após a descoberta do gênero do discurso, a tarefa do orador é encontrar
os argumentos que são os instrumentos de persuasão – ethos, pathos e logos.
Capítulo I – Conceitos teóricos
25
O ethos é o caráter que o orador deve assumir para inspirar confiança
no auditório, preenche as condições mínimas de credibilidade, mostra-se:
sensato (capaz de dar conselhos razoáveis e pertinentes), sincero (não
dissimular o que pensa ou o que sabe) e simpático (disposto a ajudar seu
auditório) (REBOUL apud ARISTÓTELES, 2004:48).
O pathos é o conjunto de emoções, paixões e sentimentos que o orador
deve suscitar no auditório por meio de seu discurso.
O logos diz respeito à argumentação propriamente dita.
1. 5.2 Dispositio (táxis): organização interna do discurso, seu plano.
Divide-se em:
1) Exórdio: é a introdução;
2) Narração (diegesis): exposição dos fatos referentes à causa, é a
narração propriamente dita;
3) Confirmação (pistis): é o conjunto de provas apresentadas;
4) Digressão (epílogos): tem como função distrair o auditório, mas
também indigná-lo; é o encerramento.
1.5.3 Elocutio (lexis): estilo.
É a redação do discurso, o estilo. Os latinos distinguiam três tipos de
estilo: o nobre (grave), para comover (movere); o simples (tênue), para informar
e explicar (docere); e o ameno (médium) para agradar (delectare). Acerca da
elocutio, Reboul (2004:62) propõe o seguinte quadro:
Estilo Objetivo Prova Momento do discurso
Nobre = grave Comover = movere Pathos Peroração (paixão), digressão
Simples = tênue Explicar = docere Logos Narração, confirmação,
recapitulação
Ameno = médium Agradar = delectare Ethos Exórdio, digressão
Fonte: Reboul (2004:62).
Capítulo I – Conceitos teóricos
26
1.5.4 Ação (hypocrisis): proferição efetiva do discurso
É a proferição do discurso, a interpretação do autor; é o discurso em
fase de apresentação.
1.6 Os lugares retóricos (topoi)
Os lugares retóricos são as provas, os argumentos e têm por objetivo a
persuasão. Ferreira (2010:69) define os lugares retóricos como
grandes armazéns de argumentos, utilizados para estabelecer
acordos com o auditório. O objetivo é indicar premissas de ordem
ampla e geral, usadas para assegurar adesão a determinados valores
e, assim, re-hierarquizar as crenças do auditório.
A fim de obter a adesão de seu auditório, o orador busca argumentos
(raciocínios) que estabeleçam o acordo entre os interlocutores.
Reboul (2004:51) classifica os lugares como
1- Argumento pronto que o defensor pode colocar em determinado
momento de seu discurso.
2- Em sentido mais técnico, o lugar é um tipo de argumento. 3- uma questão típica que possibilita encontrar argumentos e contra-
argumentos.
Em nossa pesquisa usaremos a definição de Perelman; Olbrechts-Tyteca
(1996) no que tange aos lugares retóricos, a saber:
I- O lugar da qualidade: com o intuito de engrandecer seu objeto de
discurso, o orador o enaltece e coloca-o como raro, único.
II- O lugar da quantidade: o orador diz que seu objeto é o melhor por
motivos quantitativos, ou seja, por haver em maior número.
III- O lugar da ordem: o orador usa seu objeto de discurso e utiliza a
máxima da anterioridade, ou seja, o seu é o melhor, por ser o
anterior.
IV- O lugar advém do valor da pessoa: aqui, o que se enaltece é a
pessoa e o seu caráter, ou algum mérito por atos praticados.
Capítulo I – Conceitos teóricos
27
V- O lugar da essência: o orador irá enaltecer uma determinada
classe a qual a pessoa pertença para, dessa forma, enaltecê-la.
VI- O lugar do existente: o orador enaltece o que já existe, para
mostrar sua superioridade.
1.7 A nova retórica e a argumentação
Inspirado em Perelman-Tyteca, a argumentação para Reboul (2004) tem
cinco características essenciais:
1) Dirige-se a um auditório: que poderá ser universal ou particular:
universal – está acima de qualquer ponto de vista;
particular– definido pela competência, pelas crenças e pelas
emoções.
2) Expressa-se em língua natural.
3) Suas premissas são verossímeis: tudo aquilo em que a confiança é
presumida.
4) A progressão depende do orador.
5) Suas conclusões são sempre contestáveis.
O conceito de que a retórica oferece caminhos para um entendimento
maior dos discursos proferidos é aprofundado por Meyer (2007) ao afirmar que
a concepção de que o pano de fundo da análise retórica é a negociação entre
os homens no exercício de sua representação social acerca de um problema e,
assim, aspectos psicológicos, sociais e culturais do auditório e do orador são
atribuídos à capacidade persuasiva.
Entretanto, para que isso aconteça, deve-se levar em consideração o
problema retórico, ou seja, deve existir um objeto de discussão, pois, se ele
não existir, não haverá o porquê de se argumentar e, pela lógica, não haverá a
adesão, uma vez que não existe uma questão a ser resolvida.
Capítulo I – Conceitos teóricos
28
O discurso retórico então, nasce desse contexto para tentar solver um problema retórico é, basicamente, composto por três elementos que se associam: uma questão que clama por uma discussão para ser solucionada; (...) um auditório e por fim, um conjunto de limitações e restrições, pessoas em posições antagônicas, eventos, leis, interesses, emoções; hábitos que atuam tanto sobre a audiência quanto sobre o orador e dão especificidade à situação.(FERREIRA, 2010:31)
Definida a questão retórica, o orador deve então estudar quais
argumentos deverá usar para obter a adesão. E ainda, segundo Meyer (2007),
é por meio da retórica – tida como o poder de persuadir pela emoção – que a
adesão será obtida.
O auditório tem necessidade de sentir a importância de sua opinião para
aquela determinada questão retórica, a fim de aderir ao discurso elaborado
pelo orador, que será permeado por teses coerentes que não caiam em
contradição; é aí que aparece a verossimilhança. O orador se mostrará
competente para defender seus ideais e levará o auditório a acreditar que a
decisão tomada foi a melhor e mais verossímil possível.
1.8 As técnicas argumentativas
1.8.1 As figuras
Para Reboul (2004), figura é um recurso de estilo que permite ao orador
se expressar de modo livre e codificado. Livre porque não precisa utilizar-se
dela para manifestar-se, e codificado porque deve obedecer a determinada
estrutura.
Segundo o autor, “a figura seria, portanto, uma fruição a mais, uma
licença estilística para facilitar a aceitação do argumento” (2004:114).
Perelman e Olbrechts-Tyteca, em seu livro Tratado da Argumentação: A
nova retórica (2005), afirmam que as três grandes figuras retóricas que visam a
despertar no auditório o sentimento de presença, reforça a comunhão e, por
conseguinte, obtém a adesão do auditório, são:
a) As figuras de presença: reforçam o sentimento de presença do objeto
do discurso para o auditório. São exemplos de figuras de presença a
Capítulo I – Conceitos teóricos
29
repetição – como o próprio nome diz, é a repetição de uma palavra; a
anáfora – repetição de uma mesma palavra no início da frase
seguinte; a personificação ou prosopopeia – ação de conferir a
objetos ou animais emoções ou sentimentos inerentes ao Homem; a
anadiplose – repetição de uma mesma palavra ou expressão no final
de uma frase e no começo da frase seguinte; a sinonímia – repetição
de palavras iguais ou semelhantes; e a onomatopeia –reprodução de
um som.
b) As figuras de comunhão: o orador pretende conseguir a adesão do
auditório por meio de um acordo (comunhão) e traz à baila as
tradições culturais ou os fatos notórios, por exemplo. Exemplificam as
figuras de comunhão: a alusão ou citação – uso de um fato, uma
referência ou uma citação que devem ser conhecidos pelo auditório;
a enálage – uso de um tempo verbal por outro; as máximas ou os
provérbios – manifestações populares; e a pressuposição– uma
suposição antecipada.
c) As figuras de escolha: seleção de dados convenientes ao orador que
irá usá-los a seu favor. São exemplos de figuras de escolha: a
metáfora – uso de uma palavra ou termo em substituição de outro; o
epíteto – uma expressão que, associada ao substantivo, qualifica
uma pessoa ou uma coisa; a hipérbole – o exagero ou a demasia
propositada; a ironia – consiste em dizer o contrário daquilo que se
pensa; a antropomorfização– ato de conferir a objetos ou animais
características ou hábitos do Homem; a perífrase– ato de exprimir em
poucas palavras aquilo que se diria em uma ou em poucas; a
antonomásia–a substituição de um nome por outro ou por uma
expressão que facilmente o identifique; e a própria pergunta retórica.
1.8.2 Os tipos de argumentos retóricos
A escolha do gênero discursivo a ser adotado na retórica é facultada ao
auditório, ou seja, o orador adotará o gênero judiciário, epidítico ou deliberativo
conforme o seu público, pois é em função dele que a argumentação será
construída.
Capítulo I – Conceitos teóricos
30
Portanto, para se construir um discurso, precisamos ter um
conhecimento prévio de nosso auditório e, a partir daí, usar as técnicas
argumentativas para cada caso.
Segundo a nova retórica, os argumentos utilizados seguem três grandes
classes:
a) Os argumentos quase lógicos: têm a estrutura baseada nos
argumentos da lógica formal e a força persuasiva na semelhança
com os argumentos formais. Eles buscam eficácia persuasiva nos
princípios lógicos à semelhança e sua estrutura formal lhe confere
uma aparência de lógica irrefutável.
Os argumentos quase lógicos são aqueles cuja estrutura lógica lembra os argumentos da lógica formal, mas não possuem o mesmo rigor, ou seja, não têm valor conclusivo, já que é impossível extirpar da linguagem comum toda a ambiguidade e nem podemos remover do argumento a possibilidade de múltiplas interpretações. Assim, a cada argumento lógico, de validade reconhecida e incontestável, corresponderá um argumento quase lógico, de estrutura semelhante, cuja força persuasiva consistirá justamente na sua proximidade com aquele. (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005:221)
b) Os argumentos baseados na estrutura do real: baseiam-se na
realidade para estabelecer conexões com o objeto do discurso e visa
à adesão do auditório. Não se apoiam na lógica, mas na experiência
e nos fatos. Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005:301) os dividem em:
b.1) ligações de sucessão: relacionam a causa e a consequência e
pressupõem um vínculo causal entre os acontecimentos e estabelece
um juízo de valor por ser provável não verdadeiro e se subdividem
em :
argumento pragmático: faz a análise do objeto por meio das
suas consequências favoráveis ou desfavoráveis;
argumento de desperdício: começada determinada análise,
deve-se continuar na mesma direção;
argumento de direção: estabelece relação causal entre os fins
e os meios;
argumento de superação: exalta a finalidade.
Capítulo I – Conceitos teóricos
31
b.2) ligações de coexistência: unem duas realidades desiguais e
torna-as fundamentais; subdividem-se em:
argumento de autoridade: valida as intenções por meio do
ethos da pessoa;
argumento da hierarquia dupla: proporciona a comparação
entre os objetos do discurso, e dá, normalmente, a ideia de
proporcionalidade entre eles.
c) Os argumentos que fundamentam a estrutura do real: apresentam o
raciocínio por analogia e utilizam-se da semelhança de relações
entre dois pares.
(...) são aqueles que generalizam aquilo que é aceite a propósito de um caso particular (ser, acontecimento, relação) ou transpõem para um outro domínio o que é admitido num domínio determinado. (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005:297)
1.8.3. As paixões aristotélicas e o Tribunal do Júri
As paixões para Aristóteles refletem as representações que fazemos dos
outros e considera o que elas são para nós. Sabemos que a adesão do público
envolve não somente a razão, mas os aspectos emotivos do poder da palavra.
Aristóteles define a paixão (pathos) como aquilo que move o homem
para a ação (práxis). Na lista das paixões por ele desenvolvida, aparecem
sensações que podem provocar dor ou prazer e estão ligadas diretamente ao
agir humano, que, por sua vez, está relacionado à moralidade, à virtude (areté)
ou ao vício (kakia).
As paixões classificadas por Aristóteles no livro As retóricas das paixões
(2000) são: cólera, calma, amor, ódio, temor, confiança, vergonha, impudência,
favor, compaixão, inveja e emulação.
a) Da cólera
A cólera é o desejo de desprezar e vingar-se de determinada pessoa,
sentimento este acompanhado da tristeza. O colérico se irrita sempre com um
indivíduo em particular. Em toda cólera há certo prazer, que vem da esperança
de vingar-se. O colérico passa o tempo vingando-se em pensamento,
Capítulo I – Conceitos teóricos
32
imaginando o prazer da vingança como num sonho; despreza como forma de
desconsideração; usa do desdém, da difamação e do ultraje. A cólera é
proveniente do desgosto.
b) Da calma
Estar calmo é o contrário de estar encolerizado, e a cólera se contrapõe
à calma. Portanto a calma é a inibição e o apaziguamento da cólera.
Somos calmos diante dos que reconhecem seus erros e se arrependem,
dos que se humilham diante de nós e dos que parecem ser inferiores, dos que
se comportam seriamente com quem é sério, dos que fizeram favores, dos
humildes, dos não insolentes. As pessoas são calmas no riso, na festa, num
dia feliz, na ausência da dor, com pessoas dignas de respeito e benfeitoras,
com quem não age contra sua vontade ou com os arrependidos. Somos
calmos com quem é justo.
c) Do amor e do ódio
Amar é querer para alguém o que se julga bom. Quando acontece o que
queremos, ficamos satisfeitos; se acontece algo contrário, angustiamo-nos por
essas não fazerem as nossas vontades.
Amamos os que têm os mesmos desejos que nós, os que nos fizeram
algum favor, os que cremos que nos amam, os dispostos a fazer benefícios, os
sensatos, os que louvam as qualidades que possuímos, os limpos de
aparência, os que não censuram nossos erros, os que não guardam rancor. O
ódio é o rancor, ao contrário do amor; suas causas são ultraje, calúnia; surge
sem nenhuma ligação pessoal e se diferencia da cólera, pois o ódio quer fazer
o mal, não sente compaixão, quer que o outro desapareça.
d) Do temor e da confiança
Temor: desgosto, preocupação com um mal eminente, danoso ou
penoso. Não tememos o que está distante, como a morte. São temíveis coisas
Capítulo I – Conceitos teóricos
33
que podem causar danos e desgostoso temível parece estar próximo.
Tememos aqueles que cometeram uma injustiça e os nossos rivais; os que
atacam os mais fracos são temíveis. Não tememos aqueles que não têm poder
nem quem julgamos que não causaria algum mal.
A confiança é o contrário do temível. São confiantes os que tiveram
resultados felizes, os que escaparam de situações perigosas. Sentimos
confiança quando não tememos nossos semelhantes.
e) Da vergonha e da impudência
Sentimos vergonha diante das faltas que parecem vergonhosas, seja
conosco seja com quem nos preocupamos. Também sentimos vergonha de
tirar proveito de pessoas indefesas, da cobiça e da avareza. E não só de atos,
mas também de sinais vergonhosos; quando devemos ser vistos pelo público,
somos mais sujeitos às vergonhas. Mas existem pessoas que não se
envergonham: os impudentes; a impudência é contrária à vergonha, porque
nos expomos e agimos por precipitação.
f) Do favor
É o serviço pelo qual se concede ao que tem necessidade. Só é visto
como favor se for algo de grande importância. Ninguém reconhece ter
necessidade de coisas sem valor.
g) Da compaixão
A compaixão é um certo pesar por um mal que se mostra destrutivo ou
penoso e atinge quem não o merece. É evidentemente necessário que aquele
que sente compaixão esteja em tal situação que creia poder sofrer algum mal,
seja ele próprio, seja um dos seus parentes. Os que sentem grande temor não
têm compaixão. As seguintes coisas são dignas de compaixão: os males
graves e/ou dolorosos, mortes, ultrajes corporais, maus tratos, velhice,
doenças, fome e outros. Temos compaixão de pessoas semelhantes a nós pelo
fato de poder acontecer o mesmo conosco.
Capítulo I – Conceitos teóricos
34
h) Da inveja e da emulação
As pessoas sentem inveja por causa dos interesses pessoais de cada
um. Invejamos os que estão próximos, pelo tempo, pelo lugar, pela idade, pela
fama e pelo nascimento; não invejamos mortos nem quem consideramos
inferiores ou muito superiores, ou quem está em condições análogas.
A emulação é o desejo de obter as mesmas virtudes que o outro.
Diferentemente de quem sente inveja, as pessoas que agem pela emulação se
sentem dignas de bens que não possuem. Geralmente se emulam a coragem,
a amizade, as virtudes, a sabedoria e a autoridade.
Por meio das provas técnicas e artísticas, o discurso judiciário se tece. A
elas são acrescidas as habilidades do orador de movimentar as paixões e,
desse modo, obter uma sentença favorável aos seus interesses.
Em Plenário, as emoções – paixões, para Aristóteles – são de
relevância. Quando pensamos nos crimes julgados pelo Plenário do Júri (os
crimes dolosos contra a vida), somos tomados pela compaixão ou pela cólera,
que são paixões descritas por Aristóteles.
Cientes da complexidade entre paixão e razão – que, até mesmo para a
retórica, segundo Reboul (2004:XVII) “razão e sentimentos são inseparáveis”–,
é que podemos afirmar que não basta apenas que os atuantes do Tribunal do
Júri sejam dotados de conhecimentos jurídicos, mas também de paixão. É por
meio da emoção, leia-se, movimentar das paixões, que tanto o PJ como o
advogado de defesa tentarão persuadir o corpo de jurados, que por não
possuírem os conhecimentos técnicos utilizados na esfera jurídica, serão
movidos pelo sentimento da cólera.
(...) é que as paixões constituem um teclado no qual o bom orador toca para convencer. Um crime horrível deverá suscitar indignação, ao passo que o delito menor, absolutamente perdoável, deverá ser julgado com compaixão. (ARISTÓTELES, 2000:XLI)
Para Perelman; Olbrechts-Tyteca (2005:52), “excitar as paixões,
emocionar seus ouvintes, de modo que se determine uma adesão
suficientemente intensa”, faz parte do efeito almejado pelo orador em seu
Capítulo I – Conceitos teóricos
35
auditório, uma vez que a adesão é peça primordial do acordo estabelecido
entre ambos.
Persuadir: mover pelo coração, pela exploração do lado emocional, coordenar o discurso por meio de apelos às paixões do outro. Convencer: mover pela razão, pela exposição de provas lógicas, coordenar o discurso por meio de apelos ligados ao campo da racionalidade. (FERREIRA, 2010:15)
A persuasão se valerá das faculdades humanas ligadas aos sentimentos
para convencer e respeitará três ordens de finalidade, como já foi dito, segundo
Reboul (2004): docere (instruir, ensinar) é o lado argumentativo do discurso;
delectare (agradar) é o lado agradável; e movere (comover) é aquilo que abala,
que impressiona o auditório.
A fim de colaborar com a análise do nosso corpus, apresentaremos no
capítulo II alguns conhecimentos básicos sobre o direito, as peças processuais
utilizadas no Plenário do Júri e o Direito como linguagem.
Capítulo II – O universo jurídico
36
Capítulo II – O Universo jurídico
2. O DIREITO
O Homem vive em sociedade e, dessa forma, tem o dever de assegurar
tanto sua subsistência quanto a de sua família. Para que esse convívio
aconteça de forma pacífica entre os indivíduos de uma sociedade, criou-se um
conjunto de princípios e regras que viabilizam a convivência em sociedade e
que visam à ordem, à segurança e à justiça para todos os envolvidos. Assim
surgiram as leis que regulam a vida em sociedade até os dias de hoje.
O primeiro livro, ou código, que apresentava regras normativas foi criado
na Mesopotâmia, aproximadamente em 1.700 a.C.; era o Código de Hamurabi
que determinava as leis e as punições. Nele, não se toleravam erros ou falhas
praticados pelos indivíduos daquela sociedade, tampouco eram admitidas
desculpas ou explicações. As punições ocorriam de acordo com a posição que
a pessoa criminosa ocupava na hierarquia social.
Com a evolução da sociedade, o senso de justiça se aperfeiçoou para
que existisse a igualdade entre os homens, independentemente da posição
ocupada por eles.
Ocorre que cada indivíduo tem um anseio diferente e, por muitas vezes,
esse anseio vai de encontro aos anseios da sociedade. Resta estabelecido o
conflito entre o particular e o público, ou seja, em determinadas circunstâncias,
o homem não consegue seguir as regras previamente determinadas pela
sociedade e comete infrações a estas regras, que, por conseguinte, o levarão a
um julgamento por parte do Estado, que poderá imputar-lhe as penas devidas
por violar as normas vigentes.
O conjunto de regras existentes na sociedade que disciplina diversas
dimensões da vida humana é denominado Direito, que se subdivide em várias
áreas, como Direito Civil, Direito de Família, Direito Penal etc. Entretanto, para
a nossa pesquisa, interessa-nos somente o Direito Penal, que é o ramo do
Direito Público que se dedica às normas emanadas pelo Poder Legislativo para
reprimir os delitos cometidos por um indivíduo, ou seja, no crime de furto, o
delito é representado pela ofensa ao bem jurídico “patrimônio”; no homicídio, a
ofensa é a lesão ao valor jurídico “vida humana”.
Capítulo II – O universo jurídico
37
Cabe ao Poder Judiciário interpretar e aplicar as leis emanadas do
Legislativo, bem como fazer com que os indivíduos as cumpram.
Quando um indivíduo infringe as leis penais, um processo criminal é
instaurado, pois ele é o instrumento legítimo que tem a finalidade de solucionar
a controvérsia, ou seja, o conflito entre as partes. A Constituição Federal
Brasileira afirma que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem
o devido processo legal” (art. 5º, LIV). No direito penal, o processo é
denominado processo criminal. Por meio desse instrumento, podemos verificar
se a ação ou a omissão descritas na lei penal são proibidas.
2.1 – O PROCESSO CRIMINAL
O processo criminal se compõe de quatro fases: o Boletim de
Ocorrência, que traz a noticia criminis; o Inquérito Policial; o Processo Crime; e,
finalmente, a Execução Criminal.
Boletim de Ocorrência: é o documento elaborado pela autoridade policial
com base nos testemunhos das partes envolvidas que darão sua versão
do fato ocorrido, colhidos pelos policiais; é um breve relato da
ocorrência, e traz ainda em seu bojo as qualificações do suposto
contraventor, da vítima e das testemunhas.
Inquérito Policial: é um procedimento policial administrativo usado na
investigação de determinado crime, composto também de provas de
autoria e materialidade do crime. Nessa fase, testemunhas são ouvidas
e exames periciais são realizados. Averiguados os fatos passíveis de
punição, é feita a denúncia pelo promotor de justiça, peça acusatória
que dará início à ação penal. Consiste na exposição por escrito dos
fatos que, em tese, constituem o ilícito penal e deve conter: o autor da
infração, a indicação de provas em que se fundamenta a pretensão
punitiva e os artigos infringidos pelo indiciado, que agora passará a ser
acusado.
Processo Crime: as testemunhas de defesa e de acusação serão
arroladas pela promotoria e pela defesa, a fim de serem esclarecidos os
fatos narrados. As testemunhas que já prestaram depoimento nas duas
outras fases do processo podem ser inqueridas novamente pelo juízo,
Capítulo II – O universo jurídico
38
para esclarecer pontos obscuros ou confirmar a veracidade do
depoimento prestado na fase do Inquérito Policial. Novas provas
também serão apresentadas por ambas as partes.
Execução Criminal: se o réu for julgado culpado, a pena será aplicada
nessa fase do processo.
2.2 – O PLENÁRIO DO JÚRI
Prosseguiremos agora com um panorama sobre o Plenário do Júri, pois
os discursos a serem estudados por nós neste trabalho passaram por ele.
Os crimes dolosos contra a vida, na sua forma tentada ou consumada,
são levados a julgamento pelo Plenário do Júri. Lá, os acusados de homicídio,
infanticídios, incentivo ao suicídio e aborto serão julgados. Os sujeitos
envolvidos são: o juiz de direito, o promotor de justiça, o advogado, o réu, os
jurados e os espectadores.
A função do juiz de direito é o de levar a efeito o sorteio dos jurados que
são reduzidos a um número de sete entre vinte e um convocados, e apresentar
ao final do debate entre o MP e a defesa os quesitos que servirão de sustento
à sentença que será lavrada pelo magistrado. Cabe também a ele a condução
do plenário.
Ao corpo de jurados que compõem o conselho de sentença caberá a
incumbência de julgar o acusado.
A acusação cabe ao Promotor de Justiça, que é o representante do
Ministério Público, mas também cabe a ele a função de pedir a absolvição do
acusado caso haja evidências de que não foi o acusado quem praticou o crime.
A defesa é feita pelo advogado que pode ser constituído pelo réu ou
nomeado pelo Estado, caso o acusado não tenha condições de arcar com os
honorários advocatícios.
Após a escolha do corpo de jurados, os trabalhos são abertos pelo juiz
de direito que fará a leitura de excertos dos autos. Logo após, procederá ao
interrogatório do acusado acerca do delito supostamente praticado e em
seguida o depoimento das testemunhas arroladas por ambas as partes que
ficarão incomunicáveis assim como os jurados a partir do início dos trabalhos.
Se percebidas divergências entre os depoimentos das testemunhas, procede-
Capítulo II – O universo jurídico
39
se à acareação, ou seja, no próprio Plenário os depoimentos serão
confrontados.
Ouvido acusado e testemunhas dar-se-á início aos debates. O MP fará a
leitura do libelo crime acusatório que é o pedido de condenação do réu com os
dispositivos legais infringidos.
Em seguida, a defesa expõe sua argumentação em prol do réu que
poderá ser questionada pelo promotor em réplica. A defesa poderá ainda se
manifestar em tréplica se julgar necessário.
Findo os debates, o juiz fará a apresentação dos quesitos aos jurados
que os responderão por meio dos votos em uma sala secreta.
A sentença será então prolatada pelo juiz de direito conforme a votação
dos jurados acerca dos quesitos apresentados e deverá ser fundamentada nos
termos da lei.
2.3 – O DIREITO COMO LINGUAGEM
Estabelecido o confronto entre o indivíduo que transgrediu a lei e o
Estado, surge à necessidade de se discutir a violação atribuída ao acusado.
Inegável desta forma, a utilidade da linguagem, pois todas as relações
humanas são por ela mediadas e é por meio de diversos sistemas linguísticos
que o homem consegue interagir.
Entretanto, para que a linguagem se concretize necessário se faz que o
mesmo sistema de signos linguísticos seja compartilhado pelos integrantes da
comunicação.
Jakobson (1991) descreve o processo constitutivo da interação
comunicacional como
O REMETENTE envia uma MENSAGEM ao DESTINATÁRIO. Para
ser eficaz, a mensagem requer um CONTEXTO a que se refere (ou
“referente”, em outra nomenclatura algo ambígua), apreensível pelo
destinatário, e que seja verbal ou suscetível de verbalização; um
CÓDIGO total ou parcialmente comum ao remetente e ao destinatário
(ou, em outras palavras, ao codificador e ao decodificador da
mensagem); e, finalmente, um CONTACTO, um canal físico e uma
conexão psicológica entre o remetente e o destinatário, que os
capacite a ambos a entrarem e permanecerem em comunicação.
(1991:38)
Capítulo II – O universo jurídico
40
Assim, a linguagem é uma importante ferramenta utilizada pelo orador
que permite a externalização de ideias e pensamentos e ainda permite que o
auditório a compreenda, interprete-a e se posicione face ao discurso a ele
apresentado. Desta forma, no Plenário do Júri, orador e auditório compartilham
o mesmo código, o mesmo sistema de signos linguísticos. Trubilhano (2013:18)
corrobora com essa ideia: “Por essa razão, orador e auditório devem partilhar
de um mesmo sistema de signos linguísticos, ou seja, de uma mesma língua,
capaz de permitir-lhes a transmissão e recepção da informação.”
Entretanto, por muitas vezes, o homem se vale da linguagem de maneira
argumentativa, com a finalidade de persuadir o outro, é o que ocorre no Júri.
Valendo-se desse pano de fundo, temos o direito como sistema de
comunicação, pois o discurso jurídico elaborado pela defesa e pela acusação
com o fim específico de persuadir o corpo de jurados deverá fazer uso da
linguagem.
Carvalho (2013:162) afirma “ser temerário tratar do jurídico sem atinar a
seu meio exclusivo de manifestação: a linguagem.”
Resta clara a noção de direito como linguagem, pois permite a
comunicação e a interação entre orador e auditório.
Com base na concepção retórica e na breve explanação sobre o
universo jurídico expostas neste trabalho, apresentaremos, no próximo
capítulo, o corpus que deu origem a esta dissertação e sua análise.
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
41
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no
Plenário do Júri
3. A história do corpus
Por Considerar o questionamento feito em relação às estratégias
retóricas utilizadas pelo Promotor de Justiça para a persuasão, escolhemos,
dessa maneira, um caso de muita repercussão na época em que ocorreu e que
gera comoção, leia-se aqui paixão – para usar o termo aristotélico –, até hoje,
passados alguns anos.
O caso escolhido foi o do assassinato de uma criança, ocorrido em
Março de 2008, na cidade de São Paulo, que, segundo o PJ, foi cometido pelo
pai e pela madrasta que defenestraram a menor desfalecida a uma altura de
aproximadamente 20 metros.
Após investigações, laudos periciais e depoimentos de testemunhas,
verificou-se que os acusados eram as únicas pessoas que estariam no local do
crime (provas extrínsecas).
A promotoria, a quem cabe apresentar a acusação, imputou a culpa aos
acusados e ofereceu a denúncia nesse sentido. Fato é que não se tinha a
certeza de que o pai houvesse matado sua filha com a ajuda de sua atual
esposa, mas pressupunha-se a culpabilidade (oportunidade para o uso de
provas intrínsecas).
Apesar de ter sido julgado com relativa rapidez (dois anos), dada a
demora existente e notória em nossos tribunais, que levam até 21 (vinte e um
anos) para concluir um processo, como foi o caso que ficou conhecido como “O
Massacre do Carandiru”, os autos do processo apresentavam, até o colhimento
do corpus, 6.800 páginas. Por esse motivo, fomos levados a eleger elementos
essenciais para a análise, ou seja, entendemos que a denúncia deveria ser
utilizada em sua íntegra e que os depoimentos dos acusados e a sentença
deveriam ser recortados nos pontos que evidenciavam a utilização das
estratégias retóricas pelos envolvidos. Movidos pela vontade de produzir uma
discussão relevante, chegamos à conclusão de que deveríamos fazer um
recorte do corpus.
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
42
Foi assim que chegamos aos objetos de análise: a denúncia levada a
efeito pelo promotor de justiça, parte dos depoimentos dos acusados, bem
como da sentença em primeira instância, que já é um corpus demasiadamente
extenso. Salientamos que os depoimentos, por serem longos, também foram
recortados.
Cabe-nos aqui apresentar um resumo sobre o crime em si e vislumbrar a
compreensão do objeto analisado em seu todo, para que o leitor, na fase da
análise por nós efetuada, consiga se situar sobre os fatos ocorridos.
A vítima nasceu em São Paulo, fruto do relacionamento de um jovem
casal de namorados. A mãe da vítima ficou grávida aos dezessete anos e a
notícia de sua gravidez não foi bem aceita pelo genitor e por sua família, uma
vez que o rapaz tentava ingressar na faculdade de Direito e um filho poderia
atrapalhar sua vida acadêmica.
O casal nunca morou sob o mesmo teto, mas manteve o relacionamento
amoroso até a criança completar onze meses de vida. Depreende-se dos autos
que a mãe da menina começou a suspeitar da uma traição por parte do rapaz,
que havia ingressado na faculdade. Depois da confirmação dessa traição,
decidiu por romper o relacionamento.
Fizeram então um acordo: a menina permaneceria sob a guarda da mãe
e, a cada quinze dias iria para a casa do pai e ficaria sob a responsabilidade
dele.
Conforme consta dos autos, o acusado traiu sua antiga namorada com a
futura madrasta da menina, que cursava a faculdade de Direito juntamente com
ele, com quem, após alguns meses de relacionamento, foi morar na casa dos
pais do acusado. Entretanto, a madrasta tinha muito ciúme do antigo
relacionamento do companheiro e, em determinado momento, chegou a
comparecer na casa da ex-companheira do réu para pedir esclarecimentos. Em
depoimento, a mãe da vítima conta que “Ela ficou bem nervosa, ela gritou, ela
alterou a voz, eu pedi para ela não gritar que ela estava na porta da minha
casa”. Tal comportamento foi confirmado por A2 na data em que a menina fora
arremessada pela janela do apartamento, em depoimento na Delegacia
responsável pelo recebimento da notícia do crime: “Confessa que já teve
muitos desentendimentos com esta (genitora da vítima) no decorrer da relação
com o pai da menina, visto que tinha ciúmes desta com seu marido”.
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
43
Entre 2005 e 2007, nasceram dois filhos, frutos do relacionamento do pai
e da madrasta da menina, e os desentendimentos só pioraram, uma vez que as
três crianças começaram a frequentar a mesma escola e a proximidade afetiva
entre todos os envolvidos se estreitou.
Mesmo com vários desentendimentos entre o pai, a madrasta e a mãe
da vítima, o genitor continuou exercendo seu direito de visita à filha
quinzenalmente.
Consta ainda que o rapaz era conhecido por ser dado a brigas e por ter
um histórico violento e agressivo. Em seu depoimento, a genitora da vítima
conta que, em determinado dia: “Ele ficou muito nervoso, ele disse que iria sair
para resolver, aí ele saiu, aí ele disse que voltou armado, que queria matar a
minha mãe”.
No ano de 2006, o pai e a madrasta alugaram um apartamento e se
mudaram. As brigas eram constantes, e o subsíndico do condomínio noticiou
em depoimento, na fase do Inquérito Policial, que, “pelo fato de ser sub-síndico
por muitas vezes se dirigiu até o acusado para conversar a respeito de
algumas regras que infringiam no condomínio, tais como excesso de barulho,
provocado por discussão entre ambos” (sic).
A madrasta era conhecida por todos os vizinhos por ser muito explosiva
e por desferir palavras de baixo calão durante as brigas com o marido. Em
outro depoimento também colhido na fase de Inquérito, um vizinho, que morava
no apartamento ao lado do casal, relatou “que o casal residia no mesmo andar
do depoente no apartamento ao lado (...) que no período que o casal residiu
naquele condomínio pode perceber que eles discutiam muito, no apartamento e
inclusive por telefone, discussões essas que pode ouvir e saber dizer que, a
madrasta sentia ciúmes da ex-mulher do marido; que numa dessas discussões
do casal pode ouvir A2 dizer que ele teria „ferrado‟ ela, que tinha dois filhos
dele e estava mal casada, que infelizmente havia lanços que não seriam
desvinculados”(sic).
Em Janeiro de 2008, o casal comprou um apartamento e novamente se
mudou, e não demorou para que os novos vizinhos presenciassem as brigas
frequentes.
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
44
Em 29 de março de 2008, por volta das 23h35, foram ouvidos pelos
vizinhos do edifício onde morava o casal gritos de uma criança dizendo: “papai,
papai... para... para”(sic),e, passados alguns minutos, ouviram um estrondo.
Com o forte barulho, vizinhos e empregados do edifício correram para a
fachada do condomínio de onde acreditavam ter ouvido o tal estrondo e se
depararam com o corpo inerte de uma menina caída no gramado.
O porteiro do edifício, em depoimento na fase do Inquérito, relatou que,
ao ouvir o barulho, saiu da guarita onde exercia sua função e se aproximou do
corpo da criança, e que, depois de uns dois minutos após a queda, ali
apareceu o pai da menina gritando “que haviam arrombado seu apartamento e
cortado a tela e jogado a sua filha pelo sexto andar” (sic). Relatou ainda que,
após alguns minutos da chegada do pai da menina, chegou ali também a
madrasta da vítima, que o porteiro julgara ser a mãe da vítima, trazendo uma
criança no colo, e, assim que encontrou o depoente, dirigiu-se a ele com
“xingamentos, dizendo: „seu incompetente...‟ e em seguida proferiu palavras de
baixo calão”.
O pai da vítima afirmou, em depoimentos prestados tanto na fase de
Inquérito como em Plenário do Júri, que o prédio onde morava fora assaltado e
a menina teria sido jogada por um dos bandidos pela janela de seu
apartamento. Afirmou, ainda, que os meliantes haviam cortado a tela de
proteção que lá existia. Ressaltou que deixara a mulher e seus dois filhos no
carro do casal e subira para seu apartamento, a fim de colocar a garota na
cama, visto que V dormia.
Após tê-la deixado na cama, desceu para a garagem do edifício para
carregar as duas outras crianças; ao retornar ao apartamento, viu, então, que a
tela de proteção havia sido cortada e, ao se aproximar da janela, vira a filha
caída no gramado da fachada do condomínio.
A menina foi resgatada por uma viatura do Corpo de Bombeiros ainda
com vida, mas, ao chegar ao hospital, falecera com “sinais claros de asfixia (...)
assim como sinais de asfixia no pulmão e coração.”, conforme laudo pericial
acostado aos autos.
É este o processo julgado pelo Tribunal do Júri do Estado de São Paulo
que servirá de corpus para nossa pesquisa.
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
45
3.1 A possibilidade da análise do corpus
Alguns processos judiciais correm em “segredo de justiça”, haja vista a
preocupação do Estado quanto à exposição de informações privadas das
partes litigantes. Esse direito encontra respaldo na Constituição Federal do
Brasil, em seu artigo 5º, XXXIII:
Todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;
Para o desenvolvimento desse trabalho utilizamos um processo que não
corria em segredo de justiça, conforme determinação da nossa Carta Magna,
bem como também encontramos amparo no artigo 20, do Código Civil
Brasileiro:
Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Saliente-se que, mesmo sem a determinação de segredo de justiça, por
cautela, preferimos não identificar os nomes dos acusados, do juiz de direito,
bem como do promotor de justiça, pois a nossa pretensão única e exclusiva é a
de estudar as estratégias retóricas como meio de persuasão utilizadas nos
processos jurídicos.
3.2 O corpus
O corpus utilizado em nossa pesquisa foi disposto como
anexos:
a) Anexo I: A denúncia
b) Anexo II: O depoimento do réu (A1)
c) Anexo III: O depoimento da ré (A2)
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
46
d) Anexo IV: A sentença
Os anexos trazem as peças processuais retiradas do processo
judicial e, como já dissemos anteriormente, foram recortados conforme o
interesse do nosso trabalho e poderão ser consultados a qualquer momento
para o levantamento da veracidade e pertinência do enquadramento da teoria
utilizada. As análises dos documentos anexados – discursos proferidos - foram
elaboradas de acordo com a disposição acima e sob a égide da Nova Retórica.
Nos valemos das estratégias retóricas presentes e também da
análise do ethos dos participantes nos discursos analisados com o objetivo de
observar quais os efeitos de sentido produzidos no auditório, ou seja, no corpo
de jurados.
Esclarecidos sobre os aspectos metodológicos utilizados e
sobre a história do corpus analisado, chegamos no momento da análise
propriamente dita.
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
47
3.3 Análise da denúncia
A denúncia, que é o instrumento expositivo dos fatos – os quais, em
tese, constituem o ilícito penal, como já mencionado –, é oferecida pelo
Ministério Público, na pessoa do promotor de justiça e, como o próprio nome
diz, serve para denunciar, no caso de nossa pesquisa, o fato ocorrido, o(s)
acusado(s)/réu(s) e os artigos infringidos.
Cabe à Promotoria defender a sociedade e seus interesses, bem como
atuar como fiscal da lei, e, caso ocorra o descumprimento das normas vigentes,
cabe ao promotor propor a ação cabível para investigar, apurar e punir os
crimes ocorridos. No caso do Plenário do Júri, é a denúncia que dará início ao
processo criminal.
Como já vimos, no capítulo que versa sobre o universo jurídico, o
objetivo da denúncia é trazer à tona qual a penalidade cabível ao fato ocorrido
para dirimir o dano causado à sociedade.
Certo é que o Estado visa, por meio da proteção de bens jurídicos
fundamentais, a pacificação e a viabilidade social. Dentre os bens jurídicos
protegidos pelo Estado, está a vida humana, e o Direito Penal tutela o direito à
vida, que é um dos direitos sociais.
Coube ao promotor de justiça, em nossa pesquisa, trazer à tona as
evidências do crime e preencher o lapso temporal entre o fato ocorrido.
Como quem só pode oferecer a denúncia é o promotor – a quem, a partir
de agora, também chamaremos de orador –, seu discurso é autorizado, ou
seja, sua fala se legitima pela fiança prévia da instituição Ministério Público.
Logo, o ethos é personificado na pessoa do promotor de justiça. Aqui, a paixão
aristotélica descrita como confiança é creditada ao orador pelo auditório, uma
vez que cabe à Promotoria defender seus interesses e restabelecer a paz
social com a punição dos acusados pelo crime cometido.
A denúncia, que é o discurso elaborado pelo promotor de justiça,
começa com uma saudação pelo orador ao seu auditório particular, uma vez
que é oferecida a denúncia ao Juiz de Direito, que a aceitará ou não, ficando a
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
48
instauração do processo penal a cargo deste: “Excelentíssimo Senhor Doutor
Juiz de Direito do II Tribunal do Júri da Capital”.
A seguir, começa então o promotor sua argumentação:
Noticiam os inclusos autos de inquérito policial que no dia 29 de março de 2008 (sábado), por volta das 23 horas e 49 minutos, na ________, nº ___, apto __, ______, Comarca da Capital, os indiciados A1 e A2, qualificados as fls. 585 e 604, respectivamente, agindo com unidade de propósito, valendo-se de meio cruel, utilizando-se de recurso que impossibilitou a defesa da ofendida e objetivando garantir a ocultação de delitos anteriormente cometidos, causaram em V, mediante ação de agente contundente e asfixia mecânica, os ferimentos descritos no laudo de exame de corpo de delito de fls. 630/652, os quais foram causa eficiente de sua morte.
A fase da inventio é uma das mais importantes do sistema retórico, haja
vista ser nesta oportunidade que o orador irá procurar as pistas para sua
argumentação e, assim, adequar seu discurso ao gênero correto, além de
selecionar as provas a serem apresentadas.
O orador dá pistas sensíveis dos momentos criativos da inventio.
Apresenta nesse momento os fatos ocorridos e, faz do uso dos termos “agindo
com unidade de propósito”, “valendo-se de meio cruel” e “utilizando-se de
recurso que impossibilitou a defesa da ofendida”, adequou o seu discurso ao
gênero judiciário, que é o gênero descrito por Reboul (2007) como aquele
endereçado ao juiz, que nos remete ao tempo passado, e que tem por objetivo
acusar, no caso em tela A1 e A2.
Escolhido o gênero retórico e selecionadas as provas, parte, então, o
orador para a dispositio, que é a organização do texto:
A dispositio (taxis) ou disposição é a etapa em que são organizados e distribuídos os argumentos de maneira racional e plausível no texto, em busca de uma solução para um problema em tela. No inventio, o orador junta as provas e na dispositio coloca-as no texto em ordem lógica ou psicológica de modo que constituam uma unidade que atinja o objetivo de persuadir. (FERREIRA, 2010:110)
O orador começa a expor os fatos (diegesis): “Noticiam os inclusos autos
de inquérito policial que no dia 29 de março de 2008 (sábado), por volta das 23
horas e 49 minutos” e os confirma (pistis), e, ao fazer uso da prova pericial
apresentada “os ferimentos descritos no laudo de exame de corpo de delito de
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
49
fls. 630/652, os quais foram causa eficiente de sua morte”, demonstra seu
ethos acusador.
Entretanto, podemos perceber que a técnica persuasiva utilizada pelo
promotor na denúncia não nos leva aos acusados, mas evidencia, sim, o que
foi determinante para a causa mortis. Faz-se uso, portanto, das ligações de
sucessão, que Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) classificam como
argumentos baseados na estrutura do real. As ligações de sucessão
relacionam uma causa ou sua consequência ao objeto do discurso, e
estabelecem conexões. No caso apresentado em nossa pesquisa, a causa da
morte da menina é o elo que propicia o ato de acusar os réus, para assim
reforçar a sua argumentação.
No curso do parágrafo anterior, tornou-se evidente o uso do raciocínio
apodítico que se vale de premissas verdadeiras para produzir um uma
sensação de verdade pelo orador, uma vez que se apoia no “laudo de exame
de corpo de delito de fls. 630/652.”
As premissas verdadeiras e certas conduzem a uma conclusão também verdadeira e certa, pois deriva da evidência (...) As hipóteses são afastadas e cria-se condição para o encontro com uma verdade julgada necessária. (FERREIRA, 2010:81)
O orador continua seu discurso com a afirmação:
Apurou-se que V era fruto de um relacionamento amoroso havido entre o denunciado A1 e a mãe biológica da criança, estando o casal
separado à época dos fatos, razão pela qual a menina passava aquele final de semana em companhia do pai e da madrasta, a indiciada A2. Há notícias de que o relacionamento entre os denunciados era caracterizado por freqüentes e acirradas discussões, motivadas principalmente por forte ciúme nutrido pela madrasta em relação à mãe biológica da criança. V, nos finais de semana que passava com o casal, a tudo presenciava. Na manhã do dia mencionado, os indiciados, em companhia de seus dois filhos e de V, dirigiram-se para o vizinho município de Guarulhos
ocupando um veículo da marca X, tipo XY GL, placas XYZ.
Propõe, com isso, um vínculo causal entre a morte da criança e a vida
pregressa dos envolvidos e vale-se do argumento pragmático, que faz a
análise do objeto pelas suas consequências favoráveis ou desfavoráveis, por
meio das ligações de sucessão (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA,
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
50
2005:301): relacionamento entre os pais biológicos, o nascimento da criança, a
separação dos pais biológicos, o relacionamento entre pai e madrasta, e o
ciúme desta em relação à mãe biológica da menina.
Prossegue com sua argumentação e usa, dentre as paixões
classificadas por Aristóteles, a compaixão como meio de conseguir a adesão
de seu auditório:
No final da noite, após retornarem para o edifício da Rua ____, ocorreu forte discussão entre o casal, ocasião em que V foi agredida
com um instrumento contundente, fato que lhe ocasionou um pequeno ferimento na testa, provocando sangramento. Na seqüência, a denunciada A2 apertou o pescoço da vítima com as mãos, praticando uma esganadura que ocasionou asfixia mecânica, cujos ferimentos estão descritos no laudo já mencionado. O denunciado A1, a quem incumbia o dever legal de agir para socorrer a própria
filha, omitiu-se. Com a criança desfalecida, porém ainda com vida, os indiciados resolveram defenestrá-la. Para tanto, a tela de proteção da janela do quarto dos irmãos da ofendida foi cortada, após o que o indiciado A1 subiu nas camas ali existentes, introduziu V pela abertura da rede e a
soltou, precipitando sua queda de uma altura de aproximadamente vinte metros.
Nota-se muito claramente que, com o uso do termo “forte discussão”, o
orador quer causar um sentimento de temor em seu auditório por um mal
eminente. E complementa o orador: “agredida com um instrumento
contundente, fato que lhe ocasionou um pequeno ferimento na testa,
provocando sangramento” e ainda “a denunciada apertou o pescoço da vítima
com as mãos, praticando uma esganadura que ocasionou asfixia mecânica”, e
mais uma vez se vale da compaixão como técnica persuasiva, uma vez que o
auditório sentirá certo pesar pelo mal que atinge uma criança que não merece
tamanha agressividade, por ser indefesa. Percebemos aqui a escolha do
discurso nobre, que tem por objetivo a comoção (movere), que está
intimamente ligada ao pathos.
O meio utilizado foi cruel, uma vez que a vítima, além de sofrer asfixia mecânica e já apresentando ferimentos pelo corpo, foi defenestrada ainda com vida, padecendo de sofrimento intenso. Além de ter sido surpreendida quando da esganadura contra si aplicada, a ofendida teve, ainda, a sua defesa impossibilitada ao ser lançada inconsciente pela janela.
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
51
Os denunciados objetivaram garantir a ocultação dos delitos anteriormente praticados contra V, a qual já havia sofrido uma esganadura e apresentava ferimentos. Finalmente, os denunciados simularam que um ladrão havia invadido o apartamento da família e lançado a vítima pela abertura feita na tela da janela. Enquanto o indiciado A1 descia pelo elevador, sua esposa A2 permanecia no imóvel alterando o local do crime, como já havia
feito pouco antes da ofendida ser jogada, apagando marcas de sangue, mudando objetos de lugar e lavando peça de roupa. Ao mesmo tempo, o pai da criança, já no térreo do edifício, no momento em que V estava caída no gramado, ainda com vida e necessitando
de urgente socorro, preocupava-se em mostrar a todos que havia um invasor no prédio, fato que motivou a imediata chegada de mais de trinta policiais militares, os quais, após minuciosa varredura no local e imóveis vizinhos, nada encontraram. Algum tempo depois da queda, a denunciada A2 apareceu na parte térrea do edifício e passou a ofender o porteiro com palavras de baixo calão, sugerindo falta de segurança no condomínio.
Nessa parte do discurso, o orador tem a intenção de distrair o auditório e
busca indigná-lo, com o intuito de reforçar a adesão; para isso, escolhe alguns
termos e palavras: “o meio utilizado foi cruel”, “além de sofrer asfixia
mecânica”, “foi defenestrada”, “além de ter sido surpreendida quando da
esganadura”, “teve, ainda, a sua defesa impossibilitada ao ser lançada pela
janela”, “o pai da criança, já no térreo do edifício, no momento em que V estava
caída no gramado, ainda com vida e necessitando de urgente socorro”.
Presente também é o lugar retórico da quantidade. O orador tenta criar
um argumento que comova seu auditório. Números são sempre persuasivos;
impressionamo-nos com a quantidade e, no discurso do orador, a quantidade
de policiais que chegaram ao local do crime comove e confirma que A1 estava
preocupado com o invasor do prédio, não com a vítima:
V estava caída no gramado, ainda com vida e necessitando de
urgente socorro, preocupava-se em mostrar a todos que havia um invasor no prédio, fato que motivou a imediata chegada de mais de trinta policiais militares (...)
As figuras são um recurso de estilo e, segundo Reboul (2004:118),
“facilitam a atenção e a lembrança”, bem como são utilizadas para se obter o
efeito persuasivo no discurso. Todavia, nem sempre são notadas ou
percebidas, mas são sabiamente utilizadas pelo orador em virtude de seus
objetivos. A repetição de algumas palavras e termos na denúncia são formas
de o orador suscitar a emoção (mover) do auditório/juiz. Podemos notar tais
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
52
repetições: “meio cruel” ,“o meio utilizado foi cruel”, “impossibilitou a defesa da
ofendida”, “defesa impossibilitada”, “agente contundente”, “instrumento
contundente”, “asfixia mecânica”, “ferimentos”, “ferimento na testa”, “ferimentos
provenientes da queda”, “ferimentos pelo corpo”, “apresentava ferimentos”,
“discussões”, “discussão”, “criança”, “sangramento”, “marcas de sangue”,
“esganadura”, “defenestrá-la”, “defenestrada”, “tela de proteção da janela”,
“abertura da rede”, “abertura feita na tela da janela”, “ao ser lançada
inconsciente”, “lançado a vítima”.
A seleção de dados convenientes, usados em favor do promotor/orador
na denúncia/discurso, foi à técnica persuasiva denominada figura de escolha,
que é uma figura retórica com a função de persuadir. O uso da palavra
“madrasta” foi uma artimanha utilizada pela promotoria para designar a
companheira do pai da menina. É notória a figura das mulheres apresentadas
como más, invejosas e cruéis que tomam o lugar da mãe e maltratam os
enteados nos contos de fada. Para corroborar com a assertiva, o orador diz
que “o relacionamento entre os denunciados era caracterizado por freqüentes e
acirradas discussões, motivadas principalmente por forte ciúme nutrido pela
madrasta em relação à mãe biológica da criança” (sic).
Notória também é a concepção de que um pai deve zelar pelo bem-estar
de seus filhos. Quando o orador fala que “O denunciado A1, a quem incumbia o
dever legal de agir para socorrer a própria filha, omitiu-se” e que “o pai da
criança, já no térreo do edifício, no momento em que V estava caída no
gramado, ainda com vida e necessitava de urgente socorro, preocupava-se em
mostrar a todos que havia um invasor no prédio (...)”, faz uso de mais uma
estratégia retórica, o qual, nas palavras de Reboul apud Perelman-Tyteca
(2004:114) “(...) não é apenas o que facilita o argumento, mas constitui o
próprio argumento (...) ressalta o caráter chocante desse fato, incompatível
(argumento) com os valores da humanidade.”
Referendado nesta última concepção, temos que o orador faz uso da
ironia, também, para provar seu argumento: “os denunciados inovaram
artificiosamente o estado do lugar e dos objetos (...)”ou “prestando auxílio
moral”. E, por fim, faz uso da hipérbole em “criança de cinco anos de idade”,
pois, todos sabemos que aos cinco anos de idade somos ainda crianças.
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
53
Ao final, observamos uma vez mais o ethos acusador do orador, e seu
discurso dominante por ser investido do poder a ele creditado pelo Ministério
Público: “denuncio a Vossa Excelência”, “requeiro”, “sejam os denunciados
citados”, “para serem processados” e “intimando-se”.
Nossa pesquisa visa, além de identificar quais as estratégias retóricas
utilizadas nos discursos emanados pelo promotor de justiça, a reconhecer
como se dá o ethos dos sujeitos produzido ao longo do processo criminal.
Na denúncia, podemos observar que o promotor faz uso do discurso
institucional, uma vez que é ele o representante do Ministério Público, mas
também suas escolhas levadas a efeito por meio das palavras e dos termos
aqui analisados mostram sua posição ideológica. O poder da função social do
orador é manifesta. Amossy (2008:120) considera:
[...] na realidade, o poder das palavras deriva da adequação da função social do locutor e seu discurso: o discurso não pode ter autoridade se não for pronunciado por pessoa legítima em pronunciá-lo em uma situação legítima.
Além disso, o ethos do orador se mostra por meio do desejo, e porque
não falar no dever que o representante da Promotoria tem de reparar o dano
causado à sociedade e imputara aos acusados as penas cabíveis.
Ao mesmo tempo, os argumentos por ele apresentados - logos–
mostram-se convincentes e demonstram que o auditório - pathos– é capaz de
reagir ao logos. Neste percurso, Mosca (2004:17) estabelece que
Partindo-se do princípio de que a argumentatividade está presente em toda e qualquer atividade discursiva, tem-se também como básico o fato de que argumentar significa considerar o outro como capaz de reagir e interagir diante das propostas e teses que lhe são apresentadas.
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
54
3.4 Análise do depoimento do acusado (A1)
O depoimento do acusado serve como meio de prova tanto da acusação
quanto da defesa. É por meio do depoimento que o juiz confirmará todos os
dados pessoais do acusado/réu e fará questionamentos: como é a vida pessoal
do réu, se já foi acusado anteriormente, se é verdadeira a acusação a ele
imposta etc. É também a oportunidade na qual o acusado/réu terá de fazer sua
autodefesa, pois poderá apresentar sua versão dos fatos, e, sobretudo, é o
momento em que poderá formar a convicção do jurado – adesão do auditório.
Após confirmação de identidade do acusado/réu, a ele é lida a denúncia
(já analisada anteriormente) e, em seguida, o juiz pede que A1 conte a sua
versão dos fatos. O réu – que daqui por diante passa a ser denominado orador
–, por meio de seu depoimento/discurso, começa a construção de seu ethos
para o auditório.
O orador faz uso do argumento quase lógico de incompatibilidade, ou
seja, ele tenta demonstrar o caráter de bom pai e que age conforme os
indivíduos em uma sociedade, o que o impossibilitaria de praticar o ato
criminoso ao qual é acusado.
Vejamos como o orador utiliza-se do argumento quase lógico de
incompatibilidade para a construção de seu ethos:
(...), então tinha que carregar os três e mais as coisas do porta-malas, as compras, fralda..., coisas de criança: mala, fralda, leite e as coisas que tínhamos comprado no supermercado. Eu subi para o apartamento, a A2 ficou no carro com o C e o P (filhos do casal), e eu subi com a V, eu cheguei na porta do apartamento, abri a porta, entrei no apartamento, fechei a porta – e a V no colo – entrei no apartamento, acendi a luz do corredor, coloquei a V na cama, que ela estava dormindo, puxei o edredom em cima dela, puxei o sapatinho dela, coloquei no chão, cobri a V, acendi o abajur dela porque ela não gostava de ficar no escuro, e em seguida fui para o quarto dos meninos, dos meus dois filhos. Eu entrei, tirei os brinquedos que estavam em cima da cama, normalmente fica, deixei a cama arrumada para a gente colocar eles quando subisse, saí do apartamento, abri a porta, fechei a porta e desci.
O orador menciona uma rotina presente no cotidiano dos pais que têm
filhos, uma regra quase que habitual: vão ao mercado comprar leite, fraldas e
tudo o que é necessário para o provimento da família; quando chegam em
casa, precisam carregar as compras e as crianças, que geralmente dormem
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
55
quando estão no carro em movimento. Podemos verificar ainda que o orador se
utiliza da paixão aristotélica denominada “confiança” quando tenta demonstrar
seu caráter de bom pai, o que o excluiria de ter praticado o crime, e, ao
descrever com detalhes tudo o que aconteceu anteriormente ao crime, mostra-
se um verdadeiro orador, um artista, no sentido de buscar todos os argumentos
mais eficazes (REBOUL, 2004:XVI).
(...) coloquei a V na cama, que ela estava dormindo, puxei o edredom em cima dela, puxei o sapatinho dela, coloquei no chão, cobri a V, acendi o abajur dela porque ela não gostava de ficar no escuro, e em seguida fui para o quarto dos meninos, dos meus dois filhos. Eu entrei, tirei os brinquedos que estavam em cima da cama, normalmente fica, deixei a cama arrumada (...)
Ainda no intuito de conseguir a adesão do auditório, em vários
momentos de seu discurso, o orador tenta passar do papel de réu para o papel
de vítima e provoca nesse auditório a paixão denominada por Aristóteles como
“compaixão”:
Nessa hora eu entrei em choque, até comecei a gritar dentro do apartamento, acordei o P e o C, e quando eu vi toda aquela cena eu já falei para a minha esposa: “liga para o meu pai, para o seu pai”, e enquanto ela foi ligando eu apertei o botão do elevador e quando o elevador veio nós descemos junto com as crianças. (...) a médica permitiu que eu entrasse no local, ela estava com a blusinha meio aberta, sem a camisetinha, eu olhava ela na maca, não acreditava que ela tinha falecido, nós passamos um dia tão bom, brincamos o dia todo, brincamos na piscina, andamos de moto, se divertimos, foi toda aquela situação, passamos um ótimo dia na piscina e ela ensinando meu filho a mergulhar e tudo, e agora eu vejo ela ali falecida, aquilo tudo... Eu perdi completamente a noção do que estava acontecendo ali.
E, para conseguir firmar definitivamente a adesão do auditório, o orador
se vale da paixão descrita por Aristóteles, como compaixão (2003):
(...) eu fui socorrer a V. Quando eu cheguei lá, a V estava daquele jeito no chão, com o coraçãozinho batendo acelerado, a primeira coisa que eu fiz foi escutar o coraçãozinho dela, para ver se estava batendo, eu tentei falar com ela, eu falei pra ela: “filha, calma, calma”, eu comecei a gritar pedindo socorro, pedindo resgate (...) (...) “eu gostaria de pegar a V para resgatar”, e ele falou “não mexe”, eu falei: “eu não sei, eu tenho que levar ela para o hospital, ela não pode ficar desse jeito” (...)
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
56
Para que uma imagem negativa seja desconstruída, repetidos atos
positivos podem levar a uma nova construção da imagem do sujeito, e, por
meio da escolha lexical, o orador tenta persuadir o auditório no intuito de
demonstrar um ethos bom e sensível, diferentemente do ethos apresentado
pelo MP na denúncia: “coloquei a V na cama”, “puxei o sapatinho dela”, “acendi
o abajur”, “deixei a cama arrumada”, “entrei em choque”, “comecei a gritar”, “fui
socorrer”, “escutar o coraçãozinho”, “filha calma, calma”, “desesperado gritando
socorro”, “chamando a ambulância”, “eu gostaria de pegar a V para resgatar”,
“tenho que levar ela para o hospital”, “ela não pode ficar desse jeito”.
Faz uso, mais uma vez, por meio da escolha lexical, de outra técnica
argumentativa, que é a utilização das figuras, que são recursos de estilo e
sempre são notadas em virtude dos objetivos do orador: movere (emoção
suscitada), docere (conhecimento transmitido) e delectare (prazer oferecido)
(FERREIRA, 2010).
Aquilo ali para mim foi o pior dia da minha vida, não sei nem como..., descrever esse dia. Ali eu perdi tudo o que mais..., tudo de mais valioso na minha vida estava ali.
Quando o orador diz: “foi pior dia da minha vida”, “eu perdi tudo o que
mais... tudo de mais valioso na minha vida estava ali”, ele se vale da figura de
presença “repetição”. Em todo o momento o orador busca mostrar que o bem
mais precioso que ele possuía em sua vida era a filha e tenta persuadir o
auditório para que ele – auditório – não esqueça que a filha era o bem mais
valioso que ele tinha, e assim não seria concebível a ideia de ele dispor desse
bem. Tenta o orador despertar o sentimento de presença. Segundo Ferreira
(2010:23) “Figuras de presença: despertam o sentimento de presença do
objeto do discurso na mente do auditório.”
Podemos perceber que o orador se vale do jogo de palavras, por meio
da repetição lexical, para refutar o ethos a ele impingido na denúncia no intuito
de trocar de papel e passar de acusado para vítima. Repete que brigou pela
vida da menina e utiliza-se, ainda, de outra figura de presença, denominada
“sinonímia”: “discussão” e “lutei”. Com a inversão de papéis, ele tenta persuadir
o auditório por meio da emoção, no sentido de que ele, sim, era vítima, ou seja,
ele é bom.
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
57
eu olhando a V, eu passei o dia todo com ela, eu olho ela daquele jeito, eu perdi completamente tudo ali, estava indo embora a minha vida ali. Antes de a V nascer eu briguei por ela, para ela nascer, foi uma briga grande que eu tive com a avó materna dela, que ela queria que a mãe de minha filha tirasse a V e houve uma briga muito grande, uma discussão entre nós, e a mãe de minha filha também
não aceitava essa imposição da própria mãe e ela acabou até escondendo a gravidez até aproximadamente quatro meses de idade. Então começou a passar um monte de coisas na minha cabeça, eu falava: “o que está acontecendo aqui, meu Deus”, e houve todo aquele negócio, eu falei: “é a minha princesinha que estava ali, ela é tudo na minha vida”, e eu comecei a falar com meu pai: “pai, eu perdi tudo que eu tinha de mais valioso”, eu lutei por ela desde o começo, desde que a mãe de minha filha ficou grávida. (grifo nosso)
É chegado o momento em que o MP começa a se valer das estratégias
retóricas que visam à adesão do auditório, e a primeira estratégia utilizada pelo
promotor de justiça foi o argumento “lugar da quantidade”, pois “Números são
sempre persuasivos”(FERREIRA, 2010:71).
MP: Tem relatos do senhor e de sua esposa e nos interrogatórios do que continha exatamente no seu apartamento. O que havia nesse apartamento da família, na residência da família, no Edifício L? D: O senhor relata qual apartamento? Nós tínhamos dois no L. MP: Eu disse no apartamento onde o senhor e sua família residiam, o senhor chegou a residir no apartamento ? D: Não. MP: Havia televisão lá de dez mil reais lá, é verdade isso?
D: Doutor, eu não estava com minha esposa no depoimento dela, não posso precisar o que ela falou. MP: Quanto valia a televisão que havia no apartamento de vocês?
D: Não sei. (...) MP: Fls. 1.774 e 1.775, (lido em parte o interrogatório). Na página seguinte há uma pergunta minha, ela falou em relógios e objetos. O Dr. M., perguntou de correntes, se tinha mais coisas além disso; resposta da corré: “tinham várias correntes, o A1 gosta de correntes
de ouro”. (grifo nosso)
Ao mesmo tempo em que o MP utiliza-se do lugar da quantidade, tenta
conseguir a adesão do auditório ao mostrar o ethos do réu/acusado e, para
tanto, vale-se do argumento pragmático, que é baseado na estrutura do real,
ou seja, como ele poderia ser um bom pai se pagava à vítima um valor de
pensão alimentícia tão ínfimo, que mal dava para a sua sobrevivência, além de
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
58
não arcar com o valor integral, tendo de ser ajudado pelo avô paterno da
vítima? Preferia o pai comprar uma televisão de dez mil reais a contribuir com a
subsistência da filha ou ainda ter dois carros na garagem, como mencionado
um pouco mais adiante no discurso da promotoria. Propõe o MP um vínculo
causal entre ser um bom pai e dar condições de sobrevivência ao filho e
inspira, dessa forma, a credibilidade de seu discurso. O argumento pragmático
inspira credibilidade porque é bastante verossímil (FERREIRA, 2010).
MP: Quanto o senhor pagava de pensão para a V mesmo? D: Senhor? MP: Quanto o senhor pagava de pensão para a V? D: R$ 300,00 MP: O senhor pagava ou o seu pai pagava? D: Eu pagava. MP: Como era dividido? Existe informação de que “eram R$ 315,00, o pai do senhor pagava R$ 180,00 num convênio médico e o senhor complementava, entregando à A.O. R$ 135,00”, palavras dela que estão no processo. (...) MP: Quantos carros o senhor tinha naquele apartamento? D: Eu estava com dois carros no apartamento. MP: O senhor que comprou? D: Não, os carros não são meus. MP: O apartamento também não era do senhor? D: Era meu. MP: Estava em seu nome? D: Não.
A partir desse ponto começa então o MP a construir o ethos do acusado.
Notório que um pai responsável trabalha pela sobrevivência de seu filho e arca
com a mantença sozinho, sem necessitar de ajuda de terceiros.
MP: Tem informações no processo que esse quarto da V foi montado por sua mãe para ela, não pelo senhor. D: Foi tudo ao gosto dela, as coisas que tem no quarto até hoje, foi montado segundo ela escolheu. MP: O senhor não respondeu, o quarto foi montado pelo senhor ou por sua mãe, avó de V? D: Por nós todos juntos, nós, como família, sempre estivemos juntos e ela foi escolher a cor dos vidros do armário dela que foi lilás, o lustre que era rosa, foi tudo escolhido por ela, o baú que ela queria da
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
59
Hello Kitty, foi tudo do jeito que ela queria, foi montado exatamente do jeito que ela queria.
O MP tenta conseguir a adesão do auditório ao mostrar que o acusado
possui um caráter mentiroso. É mais uma construção do ethos de A1 pelo
promotor de justiça. A escolha lexical: “todas as pessoas chegaram com essa
mesma história” se contrapõe ao ethos bom e sensível, demonstrado por A1 no
início de seu depoimento:
MP: Tem dois depoimentos no início do processo, no início do inquérito policial, foram lidos os depoimentos das duas pessoas que depuseram no processo e foi dessa forma que a ocorrência foi transmitida para o Copom, todas as testemunhas chegaram com essa mesma história, fls. 12 e fls. 16. Depoimento da testemunha A. L.: “A1 apareceu lá embaixo, próximo as crianças, perguntou da sacada ao A1 o que havia acontecido e ele respondeu que havia um ladrão lá em cima, que arrombou a porta do apartamento, rasgou a tela de proteção e jogou a sua filha lá em baixo”. Depoimento de W: “A1 apareceu dizendo que haviam arrombado seu apartamento, cortado a tela e jogado a sua filha do sexto andar”. Temos a informação que chegou ao Copom e, não existe um
policial que chegou lá dizendo isso, existem trinta e sete policiais dizendo a mesma coisa, essa mesma informação que foi passada por ele, o réu, a essas pessoas. J: Qual a pergunta então, doutor? MP: Ele disse que não falou em arrombamento, todos eles inventaram isso?
J: O senhor tem conhecimento de que essas informações foram passadas por várias testemunhas? D: Em momento algum eu falei em arrombamento. (...) (grifo nosso)
Essa mesma escolha lexical é também a estratégia retórica lugar da
quantidade, já apresentada anteriormente pelo MP, quando faz uso das
seguintes escolhas lexicais “todas as testemunhas chegaram com essa mesma
história” e “existem trinta e sete policiais dizendo a mesma coisa” para
demonstrar o caráter mentiroso do réu/acusado.
E, por fim, utiliza-se da ironia para provar seu argumento de que o réu é
inescrupuloso, mentiroso e sagaz. Enfim, não era, o réu/acusado, um bom pai,
como pretende demonstrar no início de seu depoimento e que poderia, sim, ter
cometido o crime sem o menor pudor.
MP: E já vou finalizar, Excelência, o réu, ele apareceu hoje com óculos. Ele teve algum problema nesses dois anos, problemas de visão? D: Eu sempre usei óculos, não sei se o senhor...
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
60
MP: Eu nunca vi. D: É que o senhor não acompanha a minha vida. J: O senhor tem problemas nos olhos? D: Eu tenho sim. J: Miopia, estrabismo? D: De enxergar de longe, eu não consigo muito, e os meus olhos andam muito irritados. MP: A ponto de não saírem lágrimas quando o senhor chora? J: Doutor, indeferida a pergunta.
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
61
3.5 Análise do depoimento da acusada (A2)
Como já vimos na análise do depoimento do acusado (A1) empreendida
anteriormente, o depoimento da acusada serve como meio de prova de ambas
as partes e conterá dados pessoais e questionamentos quanto à vida diária da
ré e quanto à acusação a ela imputada, além de servir como meio de
autodefesa.
Da mesma forma que na análise anterior, após lida a denúncia, o juiz
pede que a acusada/ré relate o que aconteceu na data do crime.
A oradora começa seu depoimento/discurso com a utilização da paixão
denominada por Aristóteles como “amor”, quando faz a escolha lexical “ela me
pediu com um jeitinho todo meigo e carinhoso”, e com isso busca a adesão do
auditório pela emoção, por não ser crível uma pessoa cometer um homicídio de
uma criança tão meiga.
A guarda era da mãe dela; na quarta-feira nós estivemos com a V, na quarta-feira minha cunhada, C, pegou a V na escola porque nós íamos num aniversário de um amigo e quando fomos leva-la de volta para a casa dela, eu e meu marido, no caminho a V me pediu, ela pediu com um jeitinho todo meigo e carinhoso, ela falou: “tia A2, eu quero fazer um pedido”, eu falei: “pode falar”, e ela me pediu assim: “deixa o P ir na minha casa amanhã?”, eu olhei para ela e falei: “Claro que a tia deixa”. Aí deixamos ela lá, conversamos com a “C” na porta da casa dela.
A ré também tenta persuadir o auditório por meio da demonstração do
amor e do carinho que ambas, ré e vítima, nutriam uma pela outra, o que a
coloca na posição de inocente. Presente também o argumento quase lógico de
incompatibilidade: como ela, ré, poderia matar V, a quem amava e era
correspondida?
Não, eu coloquei eles para tomar banho, nós duas tomávamos banhos juntas e todas as vezes, quando embaçava o vidro, ela fazia o coração dela e o meu coração, ela falava que era o amor que ela sentia por mim (depoente se emociona). Eu entrei no banho de roupa e tudo porque eu estava dando banho no P e nela, eu fiz um coração enorme, do tamanho do boxe, aí ela falou que não valia, que o meu coração era muito grande, por isso que eu fiz daquele tamanho...
Em seu discurso, a oradora também se vale de outra paixão aristotélica,
a “calma”, ao tentar construir seu ethos como uma pessoa equilibrada, madura
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
62
e, sobretudo, calma, diferentemente do que foi demonstrado pelo MP na
denúncia. Menciona, inclusive, a felicidade que ela tinha em ficar com a vítima.
(...) Eu fiz isso, era uma coisa normal em casa, levei meu filho para a escola que tinha passeio, o P foi, aí meu estava saindo, eu esperei o ônibus sair por volta das duas da tarde e o celular tocou, era a C, eu atendi o telefone, ela falou: “A1, você está muito ocupada?”, eu falei: “não, o que aconteceu?” aí ela disse assim: “é que a V (diminutivo do nome) não quer ficar com a minha mãe, ela quer ficar aí com você”, eu até fiquei feliz e falei pra ela: “então daqui a dez minutinhos eu estou lá para pegar ela” (...)
A oradora se mostra, assim como o réu, uma verdadeira oradora, uma
artista, no sentido de descobrir argumentos mais eficazes (REBOUL, 2004) ao
descrever detalhadamente tudo o que aconteceu anteriormente ao crime.
Descreve a maneira como a vítima foi retirada do carro, por meio da escolha
lexical: “colocou a cabeça dela no ombro, a perninha dela para baixo”;
descreve que o elevador social possuía sensores que acendiam luzes e
poderiam acordar seu filho; descreve que a chave do apartamento estava no
bolso de A1, que achou estranho a luz da cozinha estar acesa. Enfim, relata
detalhes que uma boa oradora sabe que farão a diferença e, dessa forma,
poderá conseguir a adesão do auditório por meio de outra paixão, a
“confiança”, pois, ao descrever cada detalhe, ela demonstra estar segura do
que aconteceu e dissocia por completo a sua imagem da de uma pessoa
insegura.
Entramos na garagem, o A1 pegou ela no colo normal, e sem machucado nenhum, colocou a cabeça dela no ombro, a perninha dela para baixo...Excelência, eu quero deixar bem claro que no carro não tinha fralda nenhuma, a mala deles estava atrás, no porta-malas, fralda que estava no balde foi achada de molho foi do sábado de manhã, se não me engano, ou da sexta-feira à noite, que eu tinha dado mamadeira para o meu filho e ele tinha sujado a fralda, não tinha fralda no carro... Nisso ele foi para o elevador social e eu fui para o lado do elevador de serviço, que o elevador social tem sensores, já acende a luz, então eu fiquei assim, (depoente gesticula) segurando a mão em cia do C, aí nisso nós subimos no elevador, normal, sem briga, sem nada. Subimos, chegamos no apartamento, o A1 tirou a chave do bolso, ele estava com o P no colo e eu com o C, vi ele tirando a chave do bolso, ele abriu a porta de casa, ali eu notei que a luz da cozinha estava acesa, achei estranho porque sempre que nós entramos em casa a gente acende a luz do hall, que é uma entrada dentro do apartamento. Mas eu não falei nada, tirei meu tamanco, deixei na cozinha para não fazer barulho, parei no meio da sala em direção ao quarto, deixei a bolsa no meio da mesa de jantar, saí, aí nisso o A1 foi na frente entrando no corredor, acho que ele notou que as luzes estavam diferentes de como ele tinha deixado.
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
63
Por meio da utilização do recurso de estilo “repetição”, que facilita a
atenção e a lembrança (REBOUL, 2004), a oradora tenta distrair o auditório
com o intuito de reforçar a adesão e faz uso repetidamente da escolha lexical:
“fralda nenhuma”, “fralda que estava no balde”, “ele tinha sujado a fralda”, “não
tinha fralda no carro”.
Vale-se de outra paixão aristotélica – também no anseio de conseguir a
adesão do auditório –: o temor, que é a preocupação com um mal eminente,
danoso ou penoso (ARISTÓTELES, 2003). A oradora tenta demonstrar por
meio de suas atitudes (gritar, entrar em desespero, xingar etc.) o temor por
algo de mal que poderia ter ocorrido com a criança, e, assim, inverter-se os
papéis, passa de acusada a vítima.
(...) e falou: “A2, a V está lá embaixo”, ele falou para mim, aí eu falei “não, é mentira”, e já comecei a gritar, eu não me lembro se eu falei palavrão, mas eu me lembro que eu gritei desesperadamente eu fui conferir, fui lá, eu não coloquei a cabeça no buraco, eu só fiz assim (depoente gesticula como se encostasse à cabeça em algo) e eu pude ver ela, ela estava jogada lá embaixo (...) (...) eu estava desesperada, gritando, eu gritei com o porteiro, realmente eu gritei com ele, não lembro do que eu xinguei ele, mas realmente eu falei vários palavrões para ele, isso eu confirmo, eu perguntei onde ele estava (...) (...) eu vi o porteiro saindo do fundo, não foi nessa hora que eu xinguei ele, nessa hora eu perguntei onde ele estava, ele estava todo suado, transpirando muito e eu comecei a xingar ele, muito, muito, muito, aí eu peguei, liguei para a C, eu não conseguia falar com ela, eu gritava no telefone (...)
Podemos perceber que a utilização da repetição é uma estratégia
constante no depoimento/discurso da ré/oradora, para se mostrar preocupada
com a vítima e prender a atenção do auditório. Em outro trecho se dá a
repetição com a escolha lexical: “desesperada”, “gritar” e “chorar”, senão
vejamos:
(...) eu fiquei desesperada, comecei a gritar e chorar na cozinha (...)
Para corroborar com a assertiva acima, de que a oradora se vale da
estratégia da figura de presença repetição, temos a utilização das escolhas
lexicais: “pegou” (sete vezes); “papel filme” (três vezes); “tesoura” (dez vezes);
“cortar carne” (quatro vezes); “tesoura que corta frango” (duas vezes); e “faca”
(duas vezes):
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
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aí o investigador pegou, foi na pia, pegou o papel-filme, que gruda, pegou a tesoura e falou assim, ele pegou a tesoura que eu tinha usado no sábado de tarde para cortar carne, que eu cortava carne com a tesoura, pegou a tesoura com o papel filme e falou assim: “mocinha, o que é isso?” Ele pegou a tesoura com o papel filme e olhou assim para mim, falou o que era. Expliquei para ele que era a tesoura que eu usava, que era de frango, mas eu usava para cortar carne. Aí ele pegou a tesoura, me mostrou, expliquei para ele que era de cortar carne, aí nisso ele não me mostrou a faca, que eu não usei essa faca no sábado, só a tesoura, que é uma tesoura que corta frango.
O juiz de Direito retoma o foco central, pede que a A2 relate seu
relacionamento com A1, direciona o discurso para a construção do ethos da
acusada, a fim de esclarecer os fatos relacionados ao objeto judicial, e
pergunta se o relacionamento entre A1 e A2 era bom, se havia discussões,
brigas.
J: Gostaria que a senhora relatasse um pouquinho agora a respeito do relacionamento da senhora com o senhor A1. Há quanto tempo vocês estão juntos, o relacionamento era bom, tinha muitas discussões, brigas? D: Nós estamos juntos há sete anos e, antes de ter o meu filho P, eu discutia bastante com ele, antes do nascimento do meu primeiro filho, há cinco anos atrás. J: O que é bastante? D: Eu discutia muito com ele, eu brigava muito com ele, gritava bastante, isso foi no edifício da P. C., se não me engano. (...) J: Como eram as brigas, discussão verbal? D: Só discussão verbal, não é da maneira que as pessoas estão falando, parece que eu e ele “se pegava” todos os dias, isso não, ele nunca partiu para cima de mim e eu nunca parti para cima dele. J: Brigava bastante, eu quero que a senhora me explique o que era brigar bastante. D: Não eram todos os dias, eu brigava com ele, eu xingava ele, eram essas coisas. J: Eram motivos específicos ou não, qual era o motivo dessas brigas? Eu brigava por tudo, acho. (...) J: Quero que a senhora relate um pouco do relacionamento especificamente da senhora com a V, se era muito bom, se dava bem com ela, se ela gostava da senhora ou não. Quero saber do relacionamento da senhora com a V.
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
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D: Era muito bom, eu tinha ela como se fosse a minha filha, eu cuidava dela, eu fazia tudo por ela.
Pela primeira vez o ethos do juiz de Direito ecoa e mostra-se
compassivo e comedido. Ele faz uso de sua autoridade para despertar no
auditório como o ethos da ré/oradora se compõe e, para isso, faz algumas
escolhas lexicais: “Gostaria que a senhora relatasse um pouquinho”, “eu quero
que a senhora me explique como era brigar bastante”, “quero que a senhora
relate um pouco do relacionamento”.
É interessante perceber que a escolha lexical da oradora para responder
ao questionamento do juiz de Direito demonstra o seu ethos como uma pessoa
bastante agressiva: “discutia bastante com ele”, “eu discutia muito com ele”, “eu
brigava muito com ele”, “gritava bastante”, “eu brigava com ele”, “eu xingava
ele”, “eu brigava por tudo”.
O MP, por sua vez, tenta construir o ethos da ré como uma pessoa
articulada e mentirosa, e faz uso da paixão “ironia” em três momentos de seu
discurso, para conseguir a adesão do auditório por meio das escolhas lexicais:
“esqueceu”, “tinha tudo fresco na cabeça” e “operação aritmética”.
MP: A senhora esqueceu? Porque no depoimento prestado na delegacia da polícia, a senhora afirma claramente que ficaram dez minutos na garagem. D: O senhor falou o tempo que ficou o barulho lá embaixo, eu não sei o tempo que as pessoas ficaram falando. MP: Não, estou perguntando o tempo que a senhora junto com as duas crianças e o corréu A1 permaneceram lá aguardando que o barulho cessasse, o que a senhora declarou dez minutos. D: Se eu declarei isso, é que na época eu lembrava, hoje eu não lembro direito as coisas, os fatos, não me recordo. MP: A questão também do porteiro, que apareceu correndo, todo molhado de suor, só apareceu em juízo quando a senhora foi interrogada, nos dois depoimentos anteriores, um dos quais na presença de seu advogado, a senhora tinha tudo fresco na cabeça, que havia acabado de acontecer, a senhora nem mencionou isso. Por quê? D: Isso o senhor está falando perante o juiz, que eu falei? MP: A senhora veio com essa história do porteiro correndo dos fundos, todo molhado de suor, em juízo, no final de maio de 2008. A senhora foi ouvida duas vezes anteriores, no dia trinta de abril e no dia dezoito, no dia trinta de março e no dia dezoito de abril, em nenhum momento a senhora mencionou isso, tinha tudo fresco na cabeça. Essa é a pergunta: por que a senhora não mencionou isso, mesmo acompanhada de seus advogados?
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
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D: Doutor, pelo fato, o senhor pode até notar, eu fico nervosa e acabo querendo falar muita coisa e acabo esquecendo muita coisa também de falar. (...) MP: Operação aritmética, ou as brigas cessaram em 2005 ou as brigas cessaram em 2008.
Com o intuito de demonstrar que a ré, além de articulada e mentirosa,
também era invejosa, tenta construir o seu ethos por meio de outra paixão, a
“inveja”. O ciúme é que a crença de que todos tentam arrebatar o que nos
pertence. (ARISTÓTELES, 2003).
MP: Fl. 23, no dia trinta de março, acompanhada de seu advogado doutor R, a senhora declarou o seguinte: “já tive muito desentendimento com a C. no decorrer da relação, visto que inicialmente tinha ciúmes dela com seu marido, sendo que esses desentendimentos terminaram há pouco tempo atrás”.
Para confirmar o ethos da oradora como uma pessoa agressiva e
desequilibrada, o MP faz a seguinte escolha lexical: “quebrávamos o pau todos
os dias”, “esmurrou uma vidraça”, “pessoa nervosa”, “tomar calmante”.
MP: Fl. 1449, a senhora disse: “na rua P. C., a gente brigava bastante”. Tem outros depoimentos da senhora, em que a senhora também menciona que aquele apartamento novo parecia ter algo diferente e as brigas pararam quando o casal se mudou. A frase usada é exatamente essa: “no antigo apartamento quebrávamos o pau todos os dias”. MP: A frase é: “no apartamento da rua P. C., quebrávamos o pau todos os dias”. Esta frase que a senhora diz, que o casal morou nesse edifício até um mês antes do crime.
MP: No dia 20 de janeiro há um registro de uma briga que a senhora teve com o acusado A1, que a senhora esmurrou uma vidraça, que teria se cortado toda. A pergunta é: essa é uma briga normal? MP: A senhora é uma pessoa nervosa? MP: Por que as fls. 1453 a senhora relata um diálogo com seu pai para contar a ida ao médico, ele teria dito: “meu, você precisa tomar calmante”? D: Meu pai teria falado isso? MP: Consta isso. D: É que eu chorava muito, foi logo depois que o C nasceu, meu pai e minha mãe falaram que eu tinha que ir ao médico, eu fui numa médica em Santana, porque toda vez que o menino chorava eu
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
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chorava junto, eu tinha casa e filhos para cuidar, tinha a minha casa para arrumar, eu não sabia o que fazia, ele só chorava o tempo todo e grudava na minha perna e eu chorava do outro lado.
Interessante perceber que, além de se deixar levar pelo MP na
construção de seu próprio ethos, a oradora ainda faz escolhas lexicais que a
demonstra como uma pessoa imatura: “eu chorava muito”, “o menino chorava e
eu chorava junto”, “eu não sabia o que fazia, ele só chorava o tempo todo e eu
chorava do outro lado”.
Percebemos ainda a estratégia da ironia sendo usada mais uma vez
pelo MP quando pergunta “se essa era uma briga normal”.
E, por meio da utilização do recurso de estilo “repetição” – estratégia
contumazmente utilizada pela oradora como já vimos anteriormente e aqui pelo
promotor de justiça –, o PJ constrói o ethos da ré como uma pessoa insensível
e com frieza emocional, uma vez que tinha outras preocupações enquanto a
criança estava caída no chão e necessitava de socorro urgente.
MP: Eu vou ler o que consta às fls. 1480, o depoimento dela em juízo, a respeito do momento em que a senhora, já lá embaixo, ao lado do seu marido, a V ainda no chão, viva; segundo ele, o coração dela batia acelerado...
D: Batia. MP: A senhora relatou o que houve quando da chegada dos primeiros policiais os seguintes detalhes entre a senhora e o seu marido, eu vou perguntar para a senhora responder se está correto. O juiz faz uma pergunta e a senhora responde: “então, Excelência, foi assim: o policial pediu para alguém subir com ele, para ver se faltava alguma coisa no apartamento, tinha que ir porque tinha que estar na presença de testemunhas”. V estava lá no chão? D: Estava. MP: Necessitando de urgente socorro?
D: Estava. MP: Seu marido falou para a senhora: “vai você, amor”. V continuava lá, caída?
D: Sim. MP: Esperando socorro? D: (Depoente balança a cabeça afirmativamente). MP: Então a gente falou: “é ladrão, alguém entrou lá dentro” (...) V continuava caída lá, necessitando de urgente socorro?
J: A senhora confirma? D: Eu não me lembro de ter falado isso daí, o que eu lembro é que o policial desceu, falou para evacuar o prédio, eu não lembro se eu falei desse jeito, mas ele falou: “sobe lá você”, ele estava nervoso,
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
68
desesperado, e eu falei para ele: “não vou subir”, aí ele disse “vai lá, sim” , aí meu subi. MP: Esse é o depoimento, a senhora falou isso para o Juiz no dia 28 de maio de 2008. Continuando: “... é ladrão, alguém entrou lá dentro”. V continuava caída lá? J: A senhora se recorda dessa frase dita em juízo, quando a senhora foi ouvida? D: Eu não recordo. J: Durante essa conversa que era para alguém subir, a V estava caída ainda? D: Sim, o A1 que falou para „mim‟ subir. MP: O policial falou: “a porta esta arrombada” e a senhora falou: “não está arrombada”. V continuava caída... DEF: Excelência, ele vai continuar repetindo que a V continuava caída... (grifo nosso)
Notemos aqui a preocupação por parte do advogado de defesa com a
estratégia da repetição utilizada pelo MP.
J: Durante esse tempo em que vocês foram até o apartamento a pedido policial e voltaram, a V continuava caída e precisava de socorro ainda?
D: Estava o A1 e a C do lado do corpinho dela e o pessoal no gramado. J: Esses diálogos doutor, qual o propósito? Eu também não estou entendendo. MP: Eu estou lendo o depoimento dela, se eu puder continuar eu chego na pergunta. Eu estava perguntando se a V estava lá caída, a pergunta é objetiva. A senhora disse: “não tinha o miolo na chave, só o buraquinho de pôr a chave, não tínhamos terminado de reformar o negócio da porta”. V continuava caída? J: Durante esse diálogo que a senhora teve, esse diálogo sobre a porta, a fechadura, esse tempo todo, a menina não tinha sido socorrida?
D: Nessa hora que eu falei que não tinha o negocinho da chave, eu acho que a V tinha sido socorrida, o policial desceu e falou, olhando nos meus olhos, eu comecei a chorar mais ainda, eu pensei que ela tinha levado um tiro. J: A V, nesse último diálogo, tinha sido socorrida? D: Se não me engano, parece que sim, foi a hora que eles desceu, ele pediu para evacuar o prédio nessa hora. MP: A última frase que ele teria dito para a senhora: “sobe lá e veja se está faltando alguma coisa”, que hora foi? D: Ele não falou no tom que o senhor está falando, ele falou nervoso, ele falou: “sobe lá você e veja se está faltando alguma coisa”, e eu falei que não ia coisa nenhuma, que eu estava preocupada com a V. MP: E a V nesse momento, estava onde?
J: Nesse diálogo, ela continuava lá? D: Continuava
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
69
J: E no diálogo sobre o miolo da chave, ela tinha sido socorrida?
D: Se não me falha a memória, eu acredito que estava lá ainda o corpinho dela, hoje eu não me recordo. MP: Lá onde, na grama?
D: Na grama, se não me falha a memória. (grifo nosso)
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
70
3.6 Análise da sentença
A sentença judicial é o instrumento pelo qual o Juiz de Direito encerra o
processo ao dar um veredito sobre os fatos narrados no decorrer do processo
e, conforme o seu entendimento, imputa a pena cabível se entender que o
acusado praticou de fato o delito, no caso da esfera criminal.
Como já vimos, quando se trata de crimes contra a vida, o julgamento do
réu/acusado será no Plenário do Júri. Nesse caso, o veredito será dado
conjuntamente pelo magistrado e pelos jurados – que representam a
sociedade.
A sentença é o discurso elaborado pelo Juiz de Direito após a decisão
do corpo de jurados, que já terão respondido previamente aos quesitos
formulados que embasaram as possibilidades de punição do acusado. Ela
começa com “Vistos”, palavra que dará início ao relatório, que, por sua vez, é a
parte inaugural da sentença, na qual o juiz expõe, de forma resumida, os fatos
que levaram à acusação do réu com a identificação dos acusados, o local do
crime, a denúncia do promotor de justiça, os fatos relevantes e, por fim, a
decisão dos jurados.
VISTOS 1. A1 e A2, qualificados nos autos, foram denunciados pelo Ministério Público porque no dia 29 de março de 2.008, por volta de 23:49 horas, na rua S. L., nº 00, apartamento 00, Vl. M.I, nesta Capital, agindo em concurso e com identidade de propósitos, teriam praticado crime de homicídio triplamente qualificado pelo meio cruel (asfixia mecânica e sofrimento intenso), utilização de recurso que impossibilitou a defesa da ofendida (surpresa na esganadura e lançamento inconsciente pela janela) e com o objetivo de ocultar crime anteriormente cometido (esganadura e ferimentos praticados anteriormente contra a mesma vítima) contra a menina V. Aponta a denúncia também que os acusados, após a prática do crime de homicídio referido acima, teriam incorrido também no delito de fraude processual, ao alterarem o local do crime com o objetivo de inovarem artificiosamente o estado do lugar e dos objetos ali existentes, com a finalidade de induzir a erro o juiz e os peritos e, com isso, produzir efeito em processo penal que viria a ser iniciado. 2. Após o regular processamento do feito em Juízo, os réus acabaram sendo pronunciados, nos termos da denúncia, remetendo-se a causa assim a julgamento ao Tribunal do Júri, cuja decisão foi mantida em grau de recurso. 3. Por esta razão, os réus foram então submetidos a julgamento perante este Egrégio 2º Tribunal do Júri da Capital do Fórum Regional de Santana, após cinco dias de trabalhos, acabando este Conselho Popular, de acordo com o termo de votação anexo, reconhecendo que os acusados praticaram, em concurso, um crime
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
71
de homicídio contra V, pessoa menor de 14 anos, triplamente qualificado pelo meio cruel, pela utilização de recurso que dificultou a defesa da vítima e para garantir a ocultação de delito anterior, ficando assim afastada a tese única sustentada pela Defesa dos réus em Plenário de negativa de autoria. Além disso, reconheceu ainda o Conselho de Sentença que os réus também praticaram, naquela mesma ocasião, o crime conexo de fraude processual qualificado.
O orador – juiz de Direito – começa então a expor os motivos da
absolvição ou da condenação. É a segunda parte da sentença, e é nesse
momento que podemos perceber se a argumentação da acusação, no caso do
MP, atingiu seu objetivo.
FUNDAMENTAÇÃO. 4. Em razão dessa decisão, passo a decidir sobre a pena a ser imposta a cada um dos acusados em relação a este crime de homicídio pelo qual foram considerados culpados pelo Conselho de Sentença. Uma vez que as condições judiciais do art. 59 do Código Penal não se mostram favoráveis em relação a ambos os acusados, suas penas-base devem ser fixadas um pouco acima do mínimo legal. Isto porque a culpabilidade, a personalidade dos agentes, as circunstâncias e as conseqüências que cercaram a prática do crime, no presente caso concreto, excederam a previsibilidade do tipo legal, exigindo assim a exasperação de suas reprimendas nesta primeira fase de fixação da pena, como forma de reprovação social à altura que o crime e os autores do fato merecem.
Observamos o ethos acusador do Juiz de Direito, que se vale de sua
autoridade, ou seja, que se vale do poder a ele atribuído pelo Estado e decide
a pena cabível que deve recair sobre os acusados: “passo a decidir sobre a
pena”, “suas penas devem ser fixadas” e “exasperação de suas reprimendas
nesta primeira fase de fixação da pena”.
Em seguida, percebemos que as estratégias retóricas e as
argumentações da acusação foram acolhidas. O auditório aderiu ao discurso
elaborado pelo PJ, senão vejamos:
Com efeito, as circunstâncias específicas que envolveram a prática do crime ora em exame demonstram a presença de uma frieza emocional e uma insensibilidade acentuada por parte dos réus, os quais após terem passado um dia relativamente tranqüilo ao lado da vítima, passeando com ela pela cidade e visitando parentes, teriam, ao final do dia, investido de forma covarde contra a mesma, como se não possuíssem qualquer vínculo afetivo ou emocional com ela, o que choca o sentimento e a sensibilidade do homem médio, ainda mais porque o conjunto probatório trazido aos autos deixou bem
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
72
caracterizado que esse desequilíbrio emocional demonstrado pelos réus constituiu a mola propulsora para a prática do homicídio.
O corpo de jurados/auditório aceitou/aderiu à acusação do MP de que
foram realmente os acusados quem praticaram o crime.
Tal qual vimos na denúncia, o discurso elaborado na sentença é o
discurso autorizado, uma vez que o juiz de Direito tem o respaldo institucional
para fazê-lo, assim como o MP, muito embora também se valeu este último das
técnicas discursivas para conseguir a adesão do seu auditório.
(...) o emprego de técnicas discursivas visando a provocar ou incrementar a adesão dos espíritos às teses apresentadas ao seu assentimento, a argumentação caracteriza-se como ato de persuasão (MOSCA apud PERELMAN: 2004:146)
3.7. Conclusão da análise
O julgamento de um acusado tem por finalidade reparar um dano
causado à sociedade, entretanto, muitos são os fatos controversos que
compõem um processo judicial, e cabe ao Poder Judiciário dirimir esses pontos
incontroversos e dar um veredito final, o que o faz na pessoa do juiz de Direito.
Todavia, cabe ao Ministério Público analisar e diligenciar para que a
sociedade seja ressarcida por todo o dano a ela causado. A parte contrária,
porém, também deseja que a sua verdade prevaleça, instaurando-se, assim, o
embate, que é justamente o interesse da retórica.
(...) a retórica é a negociação da diferença entre os indivíduos sobre uma questão dada e reside no mundo da opinião dos seres, do modo que resulta dos interesses harmonizados, da negociação das distâncias com base em um problema, uma questão. (MEYER: 2007:25)
Dessa maneira, faz-se necessária a exposição desse embate a um juiz
e, no caso do Plenário do Júri, aos jurados, que desempenham o papel de
julgadores, assim como o próprio juiz, que julgará qual tese apresentada pelas
partes se aproxima da verdade, qual tese é a verossímil, quando não há a
confissão por parte dos acusados e tampouco testemunhas que presenciaram
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
73
o crime, como foi o caso do nosso objeto de análise. A única prova de que o
fato ocorreu era o próprio delito, ou seja, a morte da vítima.
O PJ, a todo o momento, afirmava que o pai e a madrasta eram os
autores do crime, os culpados pela morte da vítima. Por sua vez, os
réus/acusados, a todo o momento, afirmavam não terem praticado o delito.
Para a Promotoria, dadas as circunstâncias do fato e as provas periciais
apresentadas antes da denúncia, não havia outra possibilidade de os acusados
não terem causado o ferimento na vítima, ainda no automóvel da família, e
muito menos de não estarem presentes no momento em que a menor foi,
segundo o discurso do próprio promotor de justiça, defenestrada. E, por meio
do raciocínio lógico, o promotor de justiça concluiu que ambos feriram e
mataram a menina.
Por meio da denúncia analisada neste trabalho, percebemos o
posionamento do MP quanto à culpa dos réus/acusados e, sobretudo, de que
forma a argumentação se daria e quais as estratégias retóricas utilizadas para
a adesão do auditório.
os indiciados A1 e A2, qualificados as fls. 585 e 604, respectivamente, agindo com unidade de propósito, valendo-se de meio cruel, utilizando-se de recurso que impossibilitou a defesa da ofendida e objetivando garantir a ocultação de delitos anteriormente cometidos, causaram em V, mediante ação de agente contundente e asfixia mecânica, os ferimentos descritos no laudo de exame de corpo de delito de fls. 630/652, os quais foram causa eficiente de sua morte.
Foi por meio do depoimento do acusado que pudemos perceber quais
eram as estratégias retóricas a serem seguidas, uma vez que a defesa negava
a autoria do crime. Para esta, verossímil era o acusado ser um bom pai e que,
também, pelo uso do raciocínio lógico, jamais poderia ferir e matar a própria
filha.
(...) coloquei a V na cama, que ela estava dormindo, puxei o edredom em cima dela, puxei o sapatinho dela, coloquei no chão, cobri a V, acendi o abajur dela porque ela não gostava de ficar no escuro, e em seguida fui para o quarto dos meninos, dos meus dois filhos. Eu entrei, tirei os brinquedos que estavam em cima da cama, normalmente fica, deixei a cama arrumada para a gente colocar eles
quando subisse (...)
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
74
Para a Promotoria, era evidente que o réu/acusado mentia, na tentativa
de se mostrar inocente; alegava ser um bom pai, entretanto, preferia ostentar
grandiosidade a pagar pensão alimentícia que garantisse o sustento da filha.
MP: Fls. 1.774 e 1.775, (lido em parte o interrogatório). Na página seguinte há uma pergunta minha, ela falou em relógios e objetos. O Dr. M., perguntou de correntes, se tinha mais coisas além disso; resposta da corré: “tinham várias correntes, o A1 gosta de correntes de ouro”.
MP: Quanto o senhor pagava de pensão para a V mesmo?
Constrói o PJ o ethos do acusado como uma pessoa irresponsável, que
não arca com suas obrigações e que necessita da ajuda dos pais para manter
sua filha, além de ostentar a grandiosidade de que ele tanto gostava. Articula
questionamentos irrefutáveis para garantir a adesão do auditório/jurados.
MP: Quanto o senhor pagava de pensão para a V?O senhor pagava ou o seu pai pagava? D: Eu pagava. MP: Como era dividido? Existe informação de que “eram R$ 315,00, o pai do senhor pagava R$ 180,00 num convênio médico e o senhor complementava, entregando à A.O. R$ 135,00”, palavras dela que estão no processo. MP: Tem informações no processo que esse quarto da V foi montado por sua mãe para ela, não pelo senhor. MP: Quantos carros o senhor tinha naquele apartamento? O senhor que comprou? MP: O apartamento também não era do senhor? MP: Estava em seu nome?
Claro também era para o PJ que o acusado agia com frieza, e, por meio
da ironia, tenta garantir a adesão do auditório.
MP: E já vou finalizar, Excelência, o réu, ele apareceu hoje com óculos. Ele teve algum problema nesses dois anos, problemas de visão? D: Eu sempre usei óculos, não sei se o senhor... MP: Eu nunca vi. D: É que o senhor não acompanha a minha vida. J: O senhor tem problemas nos olhos? D: Eu tenho sim.
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
75
J: Miopia, estrabismo? D: De enxergar de longe, eu não consigo muito, e os meus olhos andam muito irritados. MP: A ponto de não saírem lágrimas quando o senhor chora?
A mesma estratégia retórica foi utilizada no depoimento da acusada, que
também negava a autoria do crime, uma vez que amava a enteada e o
verossímil seria cuidar e prestar todo o auxílio à menor tão frágil e tão doce.
(...) na quarta-feira minha cunhada, C, pegou a V na escola porque nós íamos num aniversário de um amigo e quando fomos leva-la de volta para a casa dela, eu e meu marido, no caminho a V me pediu, ela pediu com um jeitinho todo meigo e carinhoso, ela falou: “tia A2, eu quero fazer um pedido”, eu falei: “pode falar”, e ela me pediu assim: “deixa o P ir na minha casa amanhã?”, eu olhei para ela e falei: “Claro que a tia deixa.” (...) (...) eu coloquei eles para tomar banho, nós duas tomávamos banhos juntas e todas as vezes, quando embaçava o vidro, ela fazia o coração dela e o meu coração, ela falava que era o amor que ela sentia por mim (depoente se emociona). Eu entrei no banho de roupa e tudo porque eu estava dando banho no P e nela, eu fiz um coração enorme, do tamanho do boxe, aí ela falou que não valia, que o meu coração era muito grande, por isso que eu fiz daquele tamanho (...)
Entretanto, uma vez mais a Promotoria rebate o argumento da defesa e,
novamente, por meio de estratégia retórica, vale-se da figura de escolha
“ironia” e começa a construir o ethos da acusada também como mentirosa.
MP: A senhora esqueceu? (...) a senhora tinha tudo fresco na cabeça, que havia acabado de acontecer, a senhora nem mencionou isso. Por quê? (...) A senhora foi ouvida duas vezes anteriores, no dia trinta de abril e no dia dezoito, no dia trinta de março e no dia dezoito de abril, em nenhum momento a senhora mencionou isso, tinha tudo fresco na cabeça. Essa é a pergunta: por que a senhora não mencionou isso, mesmo acompanhada de seus advogados?
Tenta também o PJ mostrar mais um ethos da acusada, o de uma
melhor ciumenta e que sentia ciúmes da mãe da vítima.
MP: Fl. 23, no dia trinta de março, acompanhada de seu advogado doutor R, a senhora declarou o seguinte: “já tive muito desentendimento com a A.C. no decorrer da relação, visto que inicialmente tinha ciúmes dela com seu marido, sendo que esses desentendimentos terminaram há pouco tempo atrás”.
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
76
Para garantir a adesão do auditório, tenta mostrar outro ethos da
acusada, o de uma pessoa desequilibrada e agressiva, e por isso é verossímil
que ela ferisse a vítima, uma vez que ela própria se feria para garantir a
atenção do companheiro.
MP: Fl. 1449, a senhora disse: “na rua P. C., a gente brigava bastante”. Tem outros depoimentos da senhora, em que a senhora também menciona que aquele apartamento novo parecia ter algo diferente e as brigas pararam quando o casal se mudou. A frase usada é exatamente essa: “no antigo apartamento quebrávamos o pau todos os dias”. MP: No dia 20 de janeiro há um registro de uma briga que a senhora teve com o acusado A1, que a senhora esmurrou uma vidraça, que teria se cortado toda. MP: A senhora é uma pessoa nervosa? MP: Por que as fls. 1453 a senhora relata um diálogo com seu pai para contar a ida ao médico, ele teria dito: “meu, você precisa tomar calmante”?
Por fim, o PJ se vale das figuras retóricas de repetição para tornar
presente na memória do seu auditório o ethos da acusada, diferente do ethos
que ela própria tentou construir no início de seu depoimento, quando afirmava
que se importava com a vítima e zelava pelo seu bem-estar.
(...) a V ainda no chão, viva; segundo ele, o coração dela batia acelerado... (...) V estava lá no chão? MP: Necessitando de urgente socorro? MP: Seu marido falou para a senhora: “vai você, amor”. V continuava lá, caída? MP: Esperando socorro? (...) V continuava caída lá, necessitando de urgente socorro? (...) V continuava caída lá? (...) a V estava caída ainda? MP: O policial falou: “a porta esta arrombada” e a senhora falou: “não está arrombada”. V continuava caída... (...) Eu estava perguntando se a V estava lá caída, a pergunta é objetiva. A senhora disse: “não tinha o miolo na chave, só o buraquinho de pôr a chave, não tínhamos terminado de reformar o negócio da porta”. V continuava caída? MP: E a V nesse momento, estava onde? MP: Lá onde, na grama?
Notamos, então, que a confissão dos acusados, que seria a única forma
de se confirmar a autoria do crime, estava excluída. As atitudes que ambos os
acusados tomaram no momento do crime era somente uma alegação da
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
77
Promotoria. Assim, restava a ambas as partes a construção do ethos dos
acusados: Ao PJ, cabia a construção de um ethos capaz da prática do crime; e
aos acusados, um ethos incapaz de tamanha maldade.
Para que isso se dê de forma favorável, caberá ao ethos um discurso
eficaz, ou seja, o logos. Segundo Amossy, Maingueneau acerta quando diz que
o ethos dos sujeitos é mostrado, e não dito explicitamente.
O que o orador pretende ser, ele o dá a entender e mostra: não diz que é simples ou honesto, mostra-o por sua maneira de se exprimir. O ethos está, dessa maneira, vinculado ao exercício da palavra, ao papel que corresponde a seu discurso, e não ao indivíduo “real”, (apreendido) independentemente de seu desempenho oratório. (AMOSSY apud MAINGUENEAU: 2008:31)
Assim, para a construção do ethos dos acusados, a vida pregressa do
casal vem à tona. Ambas as partes trazem à baila o comportamento dos
envolvidos e fazem isso nos argumentos embasados na estrutura do real. Para
conseguir a adesão do auditório, fazem conexões com o histórico familiar do
casal. “Os argumentos baseados na estrutura do real valem-se da realidade
para estabelecer as conexões que o orador pretende estabelecer com seu
auditório” (FERREIRA, 2010:162).
O MP começa a traçar esse ethos dos acusados já na denúncia. Por
meio de provas testemunhais, mostra que o relacionamento do casal era
“caracterizado por frequentes e acirradas discussões” e que havia “forte ciúme
nutrido pela madrasta em relação à mãe biológica da criança”.
Há notícias de que o relacionamento entre os denunciados era caracterizado por freqüentes e acirradas discussões, motivadas principalmente por forte ciúme nutrido pela madrasta em relação à mãe biológica da criança. V, nos finais de semana que passava com o casal, a tudo presenciava.
No excerto supracitado, pudemos perceber a escolha do PJ na seleção
dos dados para sua argumentação. A escolha lexical nos mostra a seleção
desses dados: “frequentes e acirradas discussões”.
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
78
O fato de selecionar certos elementos e de apresenta-los ao auditório já implica a importância e a pertinência deles no debate. Isso porque semelhante escolha confere a esses elementos uma presença, que é um fator essencial na argumentação”. (PERELMAN e OLBRRECHTS-TYTECA, 2005:132)
A presença que o PJ tentou marcar na mente do seu auditório foi o ethos
dos acusados, desde a denúncia até o depoimento. A manobra da Promotoria
era explicitar a rotina do casal, que era permeada por brigas e discussões, e
desdobrar as atitudes de cada acusado para se chegar ao verossímil, ao
homicídio e à cumplicidade no crime praticado por ambos. Juntando-se tudo –
a vida familiar conturbada e o ethos dos réus –, chegamos ao raciocínio lógico:
a culpa do casal na morte da vítima.
Além da construção do ethos dos acusados, valeu-se o Ministério
Público do movimentar das paixões aristotélicas. Provocou a compaixão pela
maldade praticada contra uma criança para garantir a adesão do auditório, que
se comoveria com a situação. “As paixões refletem, no fundo, as
representações que fazemos dos outros, considerando-se o que eles são para
nós, realmente ou no domínio de nossa imaginação.” (ARISTÓTELES:
2003:XLI)
E ainda se valeu, em muitos momentos do seu discurso, da figura de
escolha “ironia”. Foi por meio dessa estratégica retórica que a Promotoria
ensejou deixar marcada a repulsa e mover pela paixão, como forma de
indignação, ao ethos dos acusados pelo auditório.
Os acusados, por sua vez, também se valeram das paixões aristotélicas,
com o intuito de promover um ethos bom aos olhos do auditório.
Para refutar ao ethos que o PJ tentava impingir contra si, o acusado
tenta mover o auditório pela compaixão.
Aquilo ali para mim foi o pior dia da minha vida, não sei nem como..., descrever esse dia. Ali eu perdi tudo o que mais..., tudo de mais valioso na minha vida estava ali e quando a médica falou “olha sua filha acabou de falecer”, eu falei: “não estou acreditado no que a senhora está falando”, eu perdi o chão, não sabia o que estava
acontecendo.
Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri
79
E a acusada procura construir um ethos de uma pessoa calma e
amorosa, que seria incapaz de praticar tamanha crueldade contra uma criança,
conforme pretende provar:
Eu fiz isso, era uma coisa normal em casa, levei meu filho para a escola que tinha passeio, o P foi, aí meu estava saindo, eu esperei o ônibus sair por volta das duas da tarde e o celular tocou, era a C, eu atendi o telefone, ela falou: “A1, você está muito ocupada?”, eu falei: “não, o que aconteceu?” aí ela disse assim: “é que a V(diminutivo do nome) não quer com a minha mãe, ela quer ficar aí com você”, eu até fiquei feliz e falei pra ela: “então daqui a dez minutinhos eu estou lá para pegar ela” (...)
Ao auditório, cabe a função de avaliar quem tem a razão e, mesmo com
tantas divergências e contradições, julgar se os acusados são culpados ou
inocentes. E o faz: decide que o casal é, sim, culpado pelos ferimentos e pela
morte da vítima. Por meio da sentença, pudemos verificar que os
jurados/auditório aderiram ao discurso que se mostrou mais eficiente, o
discurso do PJ.
Por esta razão, os réus foram então submetidos a julgamento perante este Egrégio 2º Tribunal do Júri da Capital do Fórum Regional de Santana, após cinco dias de trabalhos, acabando este Conselho Popular, de acordo com o termo de votação anexo, reconhecendo que os acusados praticaram, em concurso, um crime de homicídio contra a vítima V, pessoa menor de 14 anos, triplamente qualificado pelo meio cruel, pela utilização de recurso que dificultou a defesa da vítima e para garantir a ocultação de delito anterior, ficando assim afastada a tese única sustentada pela Defesa dos réus em Plenário de negativa de autoria.
E assim a decisão é tomada:
Isto posto, por força de deliberação proferida pelo Conselho de Sentença que JULGOU PROCEDENTE a acusação formulada na pronúncia contra os réus A1 e A2, ambos qualificados nos autos, condeno-os às seguintes penas:
Esta foi a analise de parte do corpus que nos ajudou a dirimir as
questões a respeito das estratégias retóricas utilizadas nos discursos jurídicos
e como se dá a construção do ethos dos sujeitos manifestados ao longo dos
processos criminais.
Considerações finais
80
Considerações finais
No decorrer da nossa pesquisa, construímos, pela análise retórica, o
ethos dos envolvidos no processo criminal em que a autoria não foi confirmada
e pudemos perceber como cada parte expõe a sua versão sobre os fatos
ocorridos e tenta, dessa maneira, persuadir o auditório para aderir ao discurso
proferido. A análise propunha-se também a identificar quais eram as técnicas
utilizadas pelo Ministério Público, na pessoa do Promotor de Justiça, para
ressaltar as estratégias retóricas e a constituição do ethos dos sujeitos
envolvidos em processos criminais, cujas sentenças foram prolatadas com a
condenação do réu. Para o estudo adequado dos discursos escolhidos
presentes neste trabalho, procuramos responder às questões relacionadas aos
meios persuasivos utilizados pelo Ministério Público a fim de atingir seus
propósitos e qual foi o papel da construção da imagem dos sujeitos, ethos, no
desenrolar do processo criminal, neste caso, no Plenário do Júri. Levamos em
consideração os seguintes aspectos: as considerações históricas e teóricas a
respeito da Retórica Clássica e da Nova Retórica, os princípios da análise
retórica e a Constituição Federal da República Federativa do Brasil, no que diz
respeito às leis magnas. Nosso estudo teve por base um corpus inicial
composto de 6.800 páginas distribuídas em 34 volumes.
Quanto ao referencial teórico, nosso ponto de partida foi a Nova
Retórica, para ressaltar o ethos, o pathos e o logos, os gêneros retóricos, as
formas de persuasão, o sistema retórico, as técnicas de argumentação e as
paixões aristotélicas. Concluídos esses estudos, passamos então a analisar o
universo jurídico com a análise sobre o Direito, o processo criminal, o Plenário
do Júri e ainda a ciência do Direito vista sob a perspectiva da linguagem. O
resultado dessa pesquisa levou-nos a compreender que os discursos
elaborados foram persuasivos e convincentes graças à associação de
estratégias retóricas de persuasão e à especificidade da construção do ethos
dos sujeitos envolvidos em um processo criminal.
Dessa forma, pudemos perceber que a “Arte Retórica”, sob a égide da
“Nova Retórica”, revela-se não somente como a arte de argumentação muito
Considerações finais
81
potente no discurso jurídico, mas como estratégia de persuasão manifesta nos
discursos que se instauram sob forte influência de paixões. Pudemos perceber
ainda que nos discursos elaborados no Plenário do Júri, que têm o propósito de
estabelecer a verdade dos fatos, não se consegue eximir o ethos dos
envolvidos, fator importante no movere, que pretende comover o auditório,
corpo de jurados, e no docere, que conduz os passos argumentativos.
No caso em tela, coube ao promotor de justiça a tarefa de demonstrar o
verossímil, ou seja, demonstrar que o acusado era sim capaz de cometer o
delito, mesmo sem a confissão, e ao acusado coube a tarefa de se defender da
acusação e provar que a sua verdade era a verossímil. Ao júri coube à tarefa
mais difícil, ser convencido por uma das partes, submeter-se a um dos
discursos proferidos e julgar. Esses passos de condução do processo foram
produtos de intensa elaboração retórica e percepções sobre o uso adequado
da linguagem em situações polêmicas e problematológicas. Tanto MP, como os
acusados delas se valeram, com o intuito de convencer o seu auditório – juízo
– e, sobretudo, delas se utilizaram para a construção do ethos dos sujeitos
envolvidos no processo criminal em tela.
Percebemos, ainda, a importância da retórica no que tange ao embate, à
negociação das distâncias e à negociação sobre uma questão que
aparentemente não tem solução.
Assim, salientamos que os estudos retóricos possuem um horizonte
muito vasto de aplicabilidade em diversos campos de atuação. É por meio da
retórica que vislumbramos que, para ser um bom orador, necessitamos
reconhecer nosso auditório e despertar suas paixões, independentemente de
esse auditório ser um corpo de jurados, leitores de um jornal ou até mesmo
telespectadores de um programa matinal. Se o logos é tudo aquilo que está em
questão, todo o julgamento é uma resposta a uma questão, menos ou mais
clara, que se coloca fortemente e que não pode, de modo algum, escapar da
dimensão retórica dos valores. Estes, por sua vez, justificam aos olhos do
auditório as respostas possíveis e, quando possível, aceitas. A realidade é
construída e verossímil, tão verossímil que pode transformar-se em verdade ou
mentira. Depende da potencialidade retórica do orador de lidar com as provas
intrínsecas, verdadeiramente pertencentes a uma arte secular e ainda muito,
muito contemporânea.
Bibliografia
82
Bibliografia
ARISTÓTELES. Retórica das Paixões. São Paulo: Editora Martins Fontes,
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Anexos
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Anexo I
A denúncia
Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz de Direito do II Tribunal do Júri da Capital. IP nº 0274/2008. Noticiam os inclusos autos de inquérito policial que no dia 29 de março de 2008 (sábado), por volta das 23 horas e 49 minutos, na ________, nº ___, apto __, ______, Comarca da Capital, os indiciados A1 e A2, qualificados as fls. 585 e 604, respectivamente, agindo com unidade de propósito, valendo-se de meio cruel, utilizando-se de recurso que impossibilitou a defesa da ofendida e objetivando garantir a ocultação de delitos anteriormente cometidos, causaram emV, mediante ação de agente contundente e asfixia mecânica, os ferimentos descritos no laudo de exame de corpo de delito de fls. 630/652, os quais foram causa eficiente de sua morte. Consta, ainda, que alguns minutos antes e também logo após o cometimento do delito acima descrito, os denunciados inovaram artificiosamente o estado do lugar e dos objetos com a finalidade de induzir em erro juiz e perito produzindo, assim, efeito em processo penal não iniciado. Apurou-se que V era fruto de um relacionamento amoroso havido entre o denunciado A1 e a mãe biológica da criança, estando o casal separado à época dos fatos, razão pela qual a menina passava aquele final de semana em companhia do pai e da madrasta, a indiciada A2. Há notícias de que o relacionamento entre os denunciados era caracterizado por freqüentes e acirradas discussões, motivadas principalmente por forte ciúme nutrido pela madrasta em relação à mãe biológica da criança. V, nos finais de semana que passava com o casal, a tudo presenciava. Na manhã do dia mencionado, os indiciados, em companhia de seus dois filhos e de V, dirigiram-se para o vizinho município de Guarulhos ocupando um veículo da marca X, tipo XY GL, placas XYZ. No final da noite, após retornarem para o edifício da Rua ____, ocorreu forte discussão entre o casal, ocasião em que V foi agredida com um instrumento contundente, fato que lhe ocasionou um pequeno ferimento na testa, provocando sangramento. Na seqüência, a denunciada A2 apertou o pescoço da vítima com as mãos, praticando uma esganadura que ocasionou asfixia mecânica, cujos ferimentos estão descritos no laudo já mencionado. O denunciado A1, a quem incumbia o dever legal de agir para socorrer a própria filha, omitiu-se. Com a criança desfalecida, porém ainda com vida, os indiciados resolveram defenestrá-la. Para tanto, a tela de proteção da janela do quarto dos irmãos da ofendida foi cortada, após o que o indiciado A1 subiu nas camas ali existentes,
Anexos
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introduziu V pela abertura da rede e a soltou, precipitando sua queda de uma altura de aproximadamente vinte metros. A denunciada A2 concorreu decisivamente para a prática da conduta descrita no parágrafo acima, uma vez que a tudo presenciou, além de aderir e incentivar, prestando auxílio moral. Apesar do socorro prestado por uma unidade do Resgate, os ferimentos provenientes da queda, aliados àqueles decorrentes do processo de esganadura, causaram a morte de V, criança de cinco anos de idade. O meio utilizado foi cruel, uma vez que a vítima, além de sofrer asfixia mecânica e já apresentando ferimentos pelo corpo, foi defenestrada ainda com vida, padecendo de sofrimento intenso. Além de ter sido surpreendida quando da esganadura contra si aplicada, a ofendida teve, ainda, a sua defesa impossibilitada ao ser lançada inconsciente pela janela. Os denunciados objetivaram garantir a ocultação dos delitos anteriormente praticados contra V, a qual já havia sofrido uma esganadura e apresentava ferimentos. Finalmente, os denunciados simularam que um ladrão havia invadido o apartamento da família e lançado a vítima pela abertura feita na tela da janela. Enquanto o indiciado A2 descia pelo elevador, sua esposa A2 permanecia no imóvel alterando o local do crime, como já havia feito pouco antes da ofendida ser jogada, apagando marcas de sangue, mudando objetos de lugar e lavando peça de roupa. Ao mesmo tempo, o pai da criança, já no térreo do edifício, no momento em que V estava caída no gramado, ainda com vida e necessitando de urgente socorro, preocupava-se em mostrar a todos que havia um invasor no prédio, fato que motivou a imediata chegada de mais de trinta policiais militares, os quais, após minuciosa varredura no local e imóveis vizinhos, nada encontraram. Algum tempo depois da queda, a denunciada A2 apareceu na parte térrea do edifício e passou a ofender o porteiro com palavras de baixo calão, sugerindo falta de segurança no condomínio. Em vista do exposto, denuncio a Vossa Excelência A1 como incurso nas sanções do artigo 121, § 2º, incisos III, IV e V c.c. o § 4º, parte final e artigo 13, § 2º, alínea a (c/ relação à asfixia), e artigo 347, § único, todos c.c. o artigo 61, inciso II, alínea e, segundo figura e 29, do Código Penal eA2 como incursa nas sanções dos artigos 121, § 2º, incisos III, IV e V c.c. o § 4º, parte final e artigo 347, § único, ambos c.c. o artigo 29, do Código e requeiro, após o r. e a. desta, sejam os denunciados citados para interrogatório e, enfim, para serem processados até decisão de pronúncia, julgamento e condenação, nos termos do artigo 394 e seguintes do Código do Processo Penal, intimando-se as testemunhas do rol abaixo objetivando prestarem depoimentos em juízo, sob as cominações legais.
Anexos
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Anexo II
O depoimento do réu (A1)
Depois de cientificado da acusação, passou o réu a ser interrogado de acordo com o artigo 187 e seguintes do código de Processo Penal e, às perguntas do (a) Meritíssimo (a) Juiz (a) de Direito, respondeu conforme a transcrição da fita estenotipada que segue: J: Bom dia! D: Bom dia! J: O nome completo do senhor é A1, é isso? D: Sim. J: (Advirto quanto a seus direitos constitucionais, dentre os quais, o de permanecer em silêncio). D: Sim, senhor. J: (Lida a Denúncia). Eu queria que o senhor nos informasse se é verdadeira a acusação que é feita contra o senhor. D: É falsa, uma afirmação mentirosa, isso não existe. J: Eu gostaria que o senhor relatasse o que aconteceu. Hoje é o interrogatório do senhor, os jurados não estavam presentes na primeira fase do processo, então algumas perguntas podem parecer repetitivas, mas é assim que deve ser feito para que os jurados tenham conhecimentos dos fatos. Eu gostaria que o senhor nos relatasse o que ocorreu nesse dia, o que se passou nesse dia? (...) J: E a A2 e os outros filhos? D: Ficaram no carro, eu não tinha como subir todos de uma vez, estavam os três dormindo, então tinha que carregar os três e mais as coisas do porta-malas, as compras, fralda..., coisas de criança: mala, fralda, leite e as coisas que tínhamos comprado no supermercado. Eu subi para o apartamento, a A2 ficou no carro com o C e o P (filhos do casal), e eu subi com a V, eu cheguei na porta do apartamento, abri a porta, entrei no apartamento, fechei a porta – e a V no colo – entrei no apartamento, acendi a luz do corredor, coloquei a V na cama, que ela estava dormindo, puxei o edredom em cima dela, puxei o sapatinho dela, coloquei no chão, cobri a V, acendi o abajur dela porque ela não gostava de ficar no escuro, e em seguida fui para o quarto dos meninos, dos meus dois filhos. Eu entrei, tirei os brinquedos que estavam em cima da cama, normalmente fica, deixei a cama arrumada para a gente colocar eles quando subisse, saí do apartamento, abri a porta, fechei a porta e desci. (...)
Anexos
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J: (Interrompendo) o senhor saiu do apartamento e fechou a porta, foi isso que o senhor disse? D: Sim, fechei a porta, apertei o botão do elevador, entrei no elevador e desci. (...) D: (...) Nós subimos de novo, eu abri a porta, entrei, minha esposa entrou com o C, eu fechei a porta, aí a minha esposa já entro na cozinha, colocou o tamanco dela na cozinha, nós entramos no corredor e quando entramos no corredor a luz do quarto da V estava acesa, aí eu já perguntei: “será que a V caiu da cama?” A hora que eu fui olhar, assim, a V não estava no quarto, nem na cama e nem no quarto, e a minha esposa foi logo em seguida e olhou e eu falei: “será que a V foi para o quarto das crianças?”, porque sempre que ela acordava antes dos irmãos, ela ia para o quarto ficar com os irmãos. Quando eu olhei, a janela estava toda aberta e a tela, a tela já estava furada e nisso eu já fui correndo para a janela para ver o que tinha acontecido, eu estava com o P no colo ainda, para ver o que tinha acontecido e aí eu vi que a V estava lá embaixo. Nessa hora eu entrei em choque, até comecei a gritar dentro do apartamento, acordei o P e o C, e quando eu vi toda aquela cena eu já falei para a minha esposa: “liga para o meu pai, para o seu pai”, e enquanto ela foi ligando eu apertei o botão do elevador e quando o elevador veio nós descemos junto com as crianças. J: O senhor desceu na frente ou desceram todos juntos? D: Descemos juntos eu, a A2, o P e o C. Quando chegou lá embaixo a A2 ficou junto com as crianças bem junto do hall, na porta de vidro, ela ficou ali com as crianças e eu fui socorrer a V. Quando eu cheguei lá, a V estava daquele jeito no chão, com o coraçãozinho batendo acelerado, a primeira coisa que eu fiz foi escutar o coraçãozinho dela, para ver se estava batendo, eu tentei falar com ela, eu falei pra ela: “filha, calma, calma”, eu comecei a gritar pedindo socorro, pedindo resgate, não sei o quê. Nisso o porteiro veio correndo dos fundos, e eu falei par ele: “mas cadê você?”, “não eu fui ali”, “mas ali onde?”, e aí ele falou “não” e eu disse: “mas como você foi ali? Você saiu da portaria e deixou a portaria sozinha?” e eu desesperado ali, gritando socorro e tudo, chamando a ambulância e tudo, e ali tem policiais, tem a Corregedoria do lado do prédio, nisso o seu Lúcio saiu na sacada... J: (Interrompendo) Seu Lúcio é morador do prédio ali? D: É um morador do primeiro andar. Eu falei: “eu gostaria de pegar a V para resgatar”, e ele falou “não mexe”, eu falei: “eu não sei, eu tenho que levar ela para o hospital, ela não pode ficar desse jeito”. Nisso entraram os policiais correndo, perguntaram se tinha gente no prédio, eu falei: “entrou gente no prédio, entrou no apartamento”. Eu em momento algum eu não vi ninguém de roupa preta, ninguém armado, como foi citado, a porta também não foi arrombada, como foi falado isso tudo, eu não disse nada disso. (...) J: Pode seguir: D: Aquilo ali para mim foi o pior dia da minha vida, não sei nem como..., descrever esse dia. Ali eu perdi tudo o que mais..., tudo de mais valioso na
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minha vida estava ali e quando a médica falou “olha sua filha acabou de falecer”, eu falei: “não estou acreditado no que a senhora está falando”, eu perdi o chão, não sabia o que estava acontecendo. Nisso chegou meu pai, junto chegou a mãe da minha filha, a A.O., eu falei: “eu quero entrar para ver minha filha”, a médica permitiu que eu entrasse no local, ela estava com a blusinha meio aberta, sem a camisetinha, eu olhava ela na maca, não acreditava que ela tinha falecido, nós passamos um dia tão bom, brincamos o dia todo, brincamos na piscina, andamos de moto, se divertimos, foi toda aquela situação, passamos um ótimo dia na piscina e ela ensinando meu filho a mergulhar e tudo, e agora eu vejo ela ali falecida, aquilo tudo... Eu perdi completamente a noção do que estava acontecendo ali. Nisso entrou meu pai na sala, entro a A.O. junto com o irmão dela, não me lembro se foi o L ou o F, ninguém acreditava no que estava acontecendo, eu olhando a V, eu passei o dia todo com ela, eu olho ela daquele jeito, eu perdi completamente tudo ali, estava indo embora a minha vida ali. Antes de a V nascer eu briguei por ela, para ela nascer, foi uma briga grande que eu tive com a avó materna dela, que ela queria que a mãe de minha filha tirasse a V e houve uma briga muito grande, uma discussão entre nós, e a mãe de minha filha também não aceitava essa imposição da própria mãe e ela acabou até escondendo a gravidez até aproximadamente quatro meses de idade. Então começou a passar um monte de coisas na minha cabeça, eu falava: “o que está acontecendo aqui, meu Deus”, e houve todo aquele negócio, eu falei: “é a minha princesinha que estava ali, ela é tudo na minha vida”, e eu comecei a falar com meu pai: “pai, eu perdi tudo que eu tinha de mais valioso”, eu lutei por ela desde o começo, desde que a mãe de minha filha ficou grávida. Indagado ao(à) Senhor Representante do Ministério Público sobre eventuais esclarecimentos, o(a) mesmo(a) se manifestou nos seguintes termos: MP: Senhor A1, bom dia! D: Bom dia! (...) MP: Tem relatos do senhor e de sua esposa e nos interrogatórios do que continha exatamente no seu apartamento. O que havia nesse apartamento da família, na residência da família, no Edifício L? D: O senhor relata qual apartamento? Nós tínhamos dois no L. MP: Eu disse no apartamento onde o senhor e sua família residiam, o senhor chegou a residir no apartamento 63? D: Não. MP: Havia televisão lá de dez mil reais lá, é verdade isso? D: Doutor, eu não estava com minha esposa no depoimento dela, não posso precisar o que ela falou. MP: Quanto valia a televisão que havia no apartamento de vocês?
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D: Não sei. (...) MP: Fls. 1.774 e 1.775, (lido em parte o interrogatório). Na página seguinte há uma pergunta minha, ela falou em relógios e objetos. O Dr. M., perguntou de correntes, se tinha mais coisas além disso; resposta da corré: “tinham várias correntes, o A1 gosta de correntes de ouro”. (...) MP: Quanto o senhor pagava de pensão para a V mesmo? D: Senhor? MP: Quanto o senhor pagava de pensão para a V? D: R$ 300,00 MP: O senhor pagava ou o seu pai pagava? D: Eu pagava. MP: Como era dividido? Existe informação de que “eram R$ 315,00, o pai do senhor pagava R$ 180,00 num convênio médico e o senhor complementava, entregando à A.O. R$ 135,00”, palavras dela que estão no processo. J: Era dessa forma? D: Foi feita a pensão alimentícia por Vossa Excelência e algumas nós tratamos diretamente, foi acertado em relação à pensão alimentícia os valores, quem ia pagar o quê e quem ia pagar o convênio. Chegou um determinado momento que ela arrumou outro serviço e falou para mim que não precisava mais pagar o convênio porque me parece que a empresa dela pagava o convênio. (...) MP: Tem informações no processo que esse quarto da V foi montado por sua mãe para ela, não pelo senhor. D: Foi tudo ao gosto dela, as coisas que tem no quarto até hoje, foi montado segundo ela escolheu. MP: O senhor não respondeu, o quarto foi montado pelo senhor ou por sua mãe, avó de V? D: Por nós todos juntos, nós, como família, sempre estivemos juntos e ela foi escolher a cor dos vidros do armário dela que foi lilás, o lustre que era rosa, foi tudo escolhido por ela, o baú que ela queria da Hello Kitty, foi tudo do jeito que ela queria, foi montado exatamente do jeito que ela queria. (...) MP: Quantos carros o senhor tinha naquele apartamento? D: Eu estava com dois carros no apartamento.
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MP: O senhor que comprou? D: Não, os carros não são meus. MP: O apartamento também não era do senhor? D: Era meu. MP: Estava em seu nome? D: Não. (...) MP: Tem dois depoimentos no início do processo, no início do inquérito policial, foram lidos os depoimentos das duas pessoas que depuseram no processo e foi dessa forma que a ocorrência foi transmitida para o Copom, todas as testemunhas chegaram com essa mesma história, Fls. 12 e fls. 16. Depoimento da testemunha A. L.: “A1 apareceu lá embaixo, próximo às crianças, perguntou da sacada ao A1o que havia acontecido e ele respondeu que havia um ladrão lá em cima, que arrombou a porta do apartamento, rasgou a tela de proteção e jogou a sua filha lá em baixo”. Depoimento de W: “A1 apareceu dizendo que haviam arrombado seu apartamento, cortado a tela e jogado a sua filha do sexto andar”. Temos a informação que chegou ao Copom e, não existe um policial que chegou lá dizendo isso, existem trinta e sete policiais dizendo a mesma coisa, essa mesma informação que foi passada por ele, o réu, a essas pessoas. J: Qual a pergunta então, doutor? MP: Ele disse que não falou em arrombamento, todos eles inventaram isso? J: O senhor tem conhecimento de que essas informações foram passadas por várias testemunhas? D: Em momento algum eu falei em arrombamento. (...) MP: E já vou finalizar, Excelência, o réu, ele apareceu hoje com óculos. Ele teve algum problema nesses dois anos, problemas de visão? D: Eu sempre usei óculos, não sei se o senhor... MP: Eu nunca vi. D: É que o senhor não acompanha a minha vida. J: O senhor tem problemas nos olhos? D: Eu tenho sim. J: Miopia, estrabismo? D: De enxergar de longe, eu não consigo muito, e os meus olhos andam muito irritados. MP: A ponto de não saírem lágrimas quando o senhor chora? J: Doutor, indeferida a pergunta.
Anexos
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Anexo III
O depoimento da ré (A2)
Depois de cientificado da acusação, passou o réu a ser interrogado de acordo com o artigo 187 e seguintes do código de Processo Penal e, às perguntas do (a) Meritíssimo (a) Juiz (a) de Direito, respondeu conforme a transcrição da fita estenotipada que segue: J: Boa tarde! D: Boa tarde! J: O nome completo da senhora é A2? D: Isso. J: Qual a idade atual da senhora? D: Tenho 26 anos. J: (Advertida) D: Sim, senhor. J: (Lida a denúncia). Eu gostaria que a senhora informasse se é verdadeira essa acusação que está sendo feita contra a senhora. A senhora praticou esses atos? D: Não, Excelência, é totalmente falsa a acusação. J: Não é verdade isso? D: Não. J: Então eu gostaria que a senhora relatasse o que aconteceu nesse dia, sobre a permanência da senhora e do A1 nos lugares na data dos fatos e por que ela estava com vocês nessa data. D: A guarda era da mãe dela; na quarta-feira nós estivemos com a V, na quarta-feira minha cunhada, C, pegou a V na escola porque nós íamos num aniversário de um amigo e quando fomos leva-la de volta para a casa dela, eu e meu marido, no caminho a V me pediu, ela pediu com um jeitinho todo meigo e carinhoso, ela falou: “tia A2, eu quero fazer um pedido”, eu falei: “pode falar”, e ela me pediu assim: “deixa o P ir na minha casa amanhã?”, eu olhei para ela e falei: “Claro que a tia deixa”. Aí deixamos ela lá, conversamos com a “C” na porta da casa dela. J: (Interrompendo) “C” e a mãe dela? D: Sim é a mãe dela... na sexta-feira de manhã ela ligou e falou que a V não iria para a escola, ela ligou no celular e disse que a V não iria, na quinta-feira eu havia pego a malinha da V – porque todo final de semana que ela ia para nossa casa era com a mala dela – ela ligou sexta-feira de manhã e disse que a V (diminutivo do nome) não iria na escola e ela iria sair com a mãe dela, mas que seis e meia, sete horas, eu poderia pegá-la na casa dela. Eu fiz isso, era uma coisa normal em casa, levei meu filho para a escola que tinha passeio, o P
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foi, aí meu estava saindo, eu esperei o ônibus sair por volta das duas da tarde e o celular tocou, era a C, eu atendi o telefone, ela falou: “A1, você está muito ocupada?”, eu falei: “não, o que aconteceu?” aí ela disse assim: “é que a V(diminutivo do nome) não quer com a minha mãe, ela quer ficar aí com você”, eu até fiquei feliz e falei pra ela: “então daqui a dez minutinhos eu estou lá para pegar ela” (...) (...) J: Aconteceu algo nessa noite? D: Não, eu coloquei eles para tomar banho, nós duas tomávamos banhos juntas e todas as vezes, quando embaçava o vidro, ela fazia o coração dela e o meu coração, ela falava que era o amor que ela sentia por mim (depoente se emociona). Eu entrei no banho de roupa e tudo porque eu estava dando banho no P e nela, eu fiz um coração enorme, do tamanho do boxe, aí ela falou que não valia, que o meu coração era muito grande, por isso que eu fiz daquele tamanho... (...) J: Até chegar na garagem, houve algum incidente no veículo, briga entre vocês? D: Não. J: Agressão contra a menina? D: Não, não discutimos, nem nada, estava tudo normal, a gente como uma família normal, sem briga, sem nada. Entramos na garagem, o A1 pegou ela no colo normal, e sem machucado nenhum, colocou a cabeça dela no ombro, a perninha dela para baixo... Excelência, eu quero deixar bem claro que no carro não tinha fralda nenhuma, a mala deles estava atrás, no porta-malas, fralda que estava no balde foi achada de molho foi do sábado de manhã, se não me engano, ou da sexta-feira à noite, que eu tinha dado mamadeira para o meu filho e ele tinha sujado a fralda, não tinha fralda no carro... Nisso ele foi para o elevador social e eu fui para o lado do elevador de serviço, que o elevador social tem sensores, já acende a luz, então eu fiquei assim, (depoente gesticula) segurando a mão em cia do C, aí nisso nós subimos no elevador, normal, sem briga, sem nada. Subimos, chegamos no apartamento, o A1 tirou a chave do bolso, ele estava com o P no colo e eu com o C, vi ele tirando a chave do bolso, ele abriu a porta de casa, ali eu notei que a luz da cozinha estava acesa, achei estranho porque sempre que nós entramos em casa a gente acende a luz do hall, que é uma entrada dentro do apartamento. Mas eu não falei nada, tirei meu tamanco, deixei na cozinha para não fazer barulho, parei no meio da sala em direção ao quarto, deixei a bolsa no meio da mesa de jantar, saí, aí nisso o A1 foi na frente entrando no corredor, acho que ele notou que as luzes estavam diferentes de como ele tinha deixado. J: Mas ele falou alguma coisa para a senhora? D: Falou assim: “cadê a V?” (...)
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J: Estavam os dois na porta do quarto? D: Sim, e acabamos virado juntos, eu vi a janela aberta e acendi a luz e assim que eu acendi eu vi a gota de sangue próximo a cama de P, como se fosse na mesma direção, em cima do lençol, e o A1 foi para a janela, ele foi, colocou a cabeça para fora, eu vi que ele colocou a cabeça para fora e depois ele virou para mim, branco, e falou: “A2, a V está lá embaixo”, ele falou para mim, aí eu falei “não, é mentira”, e já comecei a gritar, eu não me lembro se eu falei palavrão, mas eu me lembro que eu gritei desesperadamente eu fui conferir, fui lá, eu não coloquei a cabeça no buraco, eu só fiz assim (depoente gesticula como se encostasse à cabeça em algo) e eu pude ver ela, ela estava jogada lá embaixo e ele falou: “liga para teu pai agora” e eu fui na sala, no telefone sem fio para ligar. (...) J: O A1 foi sozinho até a V? D: Foi sozinho, eu fiquei sem reação, eu não queria que o P e o C vissem, quando eu me dei conta o P estava lá, perto do corpinho da V, junto do A1, eu vi os porteiros no fundo, não sei de onde ele estava vindo, se era do corredor que tinha do lado, aí ele vinha vindo do corredor, aí nisso eu falei para o A1: “tem que ligar para a mãe da V agora”, eu estava desesperada, gritando, eu gritei com o porteiro, realmente eu gritei com ele , não lembro do que eu xinguei ele, mas realmente eu falei vários palavrões para ele, isso eu confirmo, eu perguntei onde ele estava... (...) eu vi o porteiro saindo do fundo, não foi nessa hora que eu xinguei ele, nessa hora eu perguntei onde ele estava, ele estava todo suado, transpirando muito e eu comecei a xingar ele, muito, muito, muito, aí eu peguei, liguei para a C, eu não conseguia falar com ela, eu gritava no telefone, ela falava: “calma, me explica o que está acontecendo”, e eu gritava: “jogaram a V da janela”, e ela falava: “de onde?”, porque ela entendeu outra coisa, ela pediu o endereço da casa, eu não lembrava o nome da rua, não lembrava o número, só gritava, e ela: “para um pouco, fala direito comigo, o que está acontecendo?”, aí eu falei com ela no telefone, eu expliquei para ela que tinha um posto policial na frente do prédio, para ela saber chegar, foi a única coisa que eu consegui falar. Nisso, eu tinha descido as escadas, estava esperando meu sogro e meu pai chegarem, eu fiquei na rua para ela ver onde era o nosso apartamento, nisso o A1 gritava e falava com o porteiro, não lembro o que, só lembro eu desci as escadas, fiquei na rua gritando desesperada, descalça. (...) J: Quando a senhora encontrou o A1 de novo? D: O A1 me ligou, não lembro qual horário, era de madrugada já, dando a notícia que ela tinha falecido, eu fiquei desesperada, comecei a gritar e chorar na cozinha, meu pai pegou o celular da minha mão, ele pegou o celular da minha mão e falou com o A1, aí nisso o C tinha dormido e o P estava acordado, estava brincando na sala, normal. (...)
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J: No momento que a senhora estava no apartamento ali, eles chegaram a perguntar para a senhora se estava faltando algum objeto? D: Perguntaram, eles me falaram se eu notei algum objeto faltando, eu vi o outro par do tamanco estava na lavanderia, ai o investigador pegou, foi na pia, pegou o papel-filme, que gruda, pegou a tesoura e falou assim, ele pegou a tesoura que eu tinha usado no sábado de tarde para cortar carne, que eu cortava carne com a tesoura, pegou a tesoura com o papel filme e falou assim: “mocinha, o que é isso?” Ele pegou a tesoura com o papel filme e olhou assim para mim, falou o que era. Expliquei para ele que era a tesoura que eu usava, que era de frango, mas eu usava para cortar carne. Aí ele pegou a tesoura, me mostrou, expliquei para ele que era de cortar carne, aí nisso ele não me mostrou a faca, que eu não usei essa faca no sábado, só a tesoura, que é uma tesoura que corta frango. J: A senhora já falou isso. (...) J: Gostaria que a senhora relatasse um pouquinho agora a respeito do relacionamento da senhora com o senhor A1. Há quanto tempo vocês estão juntos, o relacionamento era bom, tinha muitas discussões, brigas? D: Nós estamos juntos há sete anos e, antes de ter o meu filho P, eu discutia bastante com ele, antes do nascimento do meu primeiro filho, há cinco anos atrás. J: O que é bastante? D: Eu discutia muito com ele, eu brigava muito com ele, gritava bastante, isso foi no edifício da P. C., se não me engano. (...) J: Como eram as brigas, discussão verbal? D: Só discussão verbal, não é da maneira que as pessoas estão falando, parece que eu e ele “se pegava” todos os dias, isso não, ele nunca partiu para cima de mim e eu nunca parti para cima dele. J: Brigava bastante, eu quero que a senhora me explique o que era brigar bastante. D: Não eram todos os dias, eu brigava com ele, eu xingava ele, eram essas coisas. J: Eram motivos específicos ou não, qual era o motivo dessas brigas? Eu brigava por tudo, acho. (...) J: Quero que a senhora relate um pouco do relacionamento especificamente da senhora com a V, se era muito bom, se dava bem com ela, se ela gostava da senhora ou não. Quero saber do relacionamento da senhora com a V. D: Era muito bom, eu tinha ela como se fosse a minha filha, eu cuidava dela, eu fazia tudo por ela.
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Aos esclarecimentos requeridos pelo representante do Ministério Público, respondeu: MP: Boa tarde. D: Boa tarde, doutor. (...) MP: A senhora esqueceu? Porque no depoimento prestado na delegacia da polícia, a senhora afirma claramente que ficaram dez minutos na garagem. D: O senhor falou o tempo que ficou o barulho lá embaixo, eu não sei o tempo que as pessoas ficaram falando. MP: Não, estou perguntando o tempo que a senhora junto com as duas crianças e o corréu A1 permaneceram lá aguardando que o barulho cessasse, o que a senhora declarou dez minutos. D: Se eu declarei isso, é que na época eu lembrava, hoje eu não lembro direito as coisas, os fatos, não me recordo. MP: A questão também do porteiro, que apareceu correndo, todo molhado de suor, só apareceu em juízo quando a senhora foi interrogada, nos dois depoimentos anteriores, um dos quais na presença de seu advogado, a senhora tinha tudo fresco na cabeça, que havia acabado de acontecer, a senhora nem mencionou isso. Por quê? D: Isso o senhor está falando perante o juiz, que eu falei? MP: A senhora veio com essa história do porteiro correndo dos fundos, todo molhado de suor, em juízo, no final de maio de 2008. A senhora foi ouvida duas vezes anteriores, no dia trinta de abril e no dia dezoito, no dia trinta de março e no dia dezoito de abril, em nenhum momento a senhora mencionou isso, tinha tudo fresco na cabeça. Essa é a pergunta: por que a senhora não mencionou isso, mesmo acompanhada de seus advogados? D: Doutor, pelo fato, o senhor pode até notar, eu fico nervosa e acabo querendo falar muita coisa e acabo esquecendo muita coisa também de falar. (...) MP: Fl. 23, no dia trinta de março, acompanhada de seu advogado doutor R, a senhora declarou o seguinte: “já tive muito desentendimento com a A.C. no decorrer da relação, visto que inicialmente tinha ciúmes dela com seu marido, sendo que esses desentendimentos terminaram há pouco tempo atrás”. D: Desentendimento, que eu falo, é com relação a pegar a V e fazer essas coisas, a V, que até então ela começou a deixar eu pegar a V, ficar mais com a V, nos últimos dois anos antes de a V falecer. (...) MP: Fl. 1449, a senhora disse: “ na rua P. C., a gente brigava bastante”. Tem outros depoimentos da senhora, em que a senhora também menciona que
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aquele apartamento novo parecia ter algo diferente e as brigas pararam quando o casal se mudou. A frase usada é exatamente essa: “no antigo apartamento quebrávamos o pau todos os dias”. D: Mas depois eu falei que foi em relação antes do P ter nascido, no outro apartamento, a gente tinha discussão, lógico, mas não era como antes do P nascer. MP: Isso eu não entendi, se o casal morou nesse edifício até um mês antes do fato, ou seja, até fevereiro de 2008, e o P nasceu em fevereiro de 2005, como é que as brigas cessaram com o nascimento do P? D: Eu quis dizer que, quando eu fui para o apartamento novo, nós nem discutíamos em relação a nada, nem falar: “A1, você não fez aquilo ou aquilo outro”, eu quis dizer em relação a nada, antes do nascimento do P, nós brigávamos direto, eu brigava com o A1 direto e, depois que o meu filho nasceu, eu amadureci e não briguei mais com ele, foi isso que eu acabei de responder. MP: A frase é: “no apartamento da rua P. C., quebrávamos o pau todos os dias”. Esta frase que a senhora diz, que o casal morou nesse edifício até um mês antes do crime. J: Qual é a pergunta, doutor? Que ela já deu a explicação dela. MP: Eu não entendi como as brigas pararam com o nascimento do P? D: Eu acabei de explicar. J: Ela já explicou doutor. Especificamente o que o senhor quer saber? MP: Operação aritmética, ou as brigas cessaram em 2005 ou as brigas cessaram em 2008. J: Ela já respondeu, doutor. MP: “Depois do nascimento do P, as brigas eram normais” – a senhora declarou – “ocorreu uma briga...” (...) MP: Basta eu perguntar: foi isso mesmo, depois do P, as brigas eram normais? D: Briga de casal normal, foi o que eu falei, antes do P nascer, eu brigava direto com o meu marido, eu gritava muito, eu falava muito alto e gritava muito e, depois que meu filho nasceu, eu já passei a conversar e passei a não discutir da maneira que eu discutia. MP: No dia 20 de janeiro há um registro de uma briga que a senhora teve com o acusado A1, que a senhora esmurrou uma vidraça, que teria se cortado toda. A pergunta é: essa é uma briga normal? J: Houve caso de discussão de vocês em que a senhora quebrou a vidraça, alguma coisa ou não? D: Em momento algum eu esmurrei o vidro, só encostei. J: É verdade essa acusação?
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D: Foi, eu estava falando com o A1 e ele não estava me dando atenção, não lembro qual era o assunto, que ele estava fazendo uma lista de compra, aí eu fui lá e puxei a lista dele e falei: “dá para você falar comigo?”. Ele levantou, pegou outra folha e anotou e continuou marcando. E nesse dia a “V” não estava em casa, que ela tinha ido passar um ou dois dias com a mãe, que era época de férias dela, que ela estava conosco, só que queria passar com a mãe, que ela pediu para dormir na casa da mãe, que ela estava com saudade da mãe dela. E aí eu peguei, nisso eu discuti com o A1, peguei, ele não deu atenção ao que eu falei, apenas fui na lavanderia e fiz assim, tanto é que estão meus dois braços cortados. J: Fez o quê? D: Apenas apoiei no vidro, na lavanderia, eu fiz assim, que eu estava com raiva, estava nervosa, fiz assim, não foi com a intenção de quebrar o vidro, nem nada, tanto é que na hora que quebrou o vidro, eu fiquei assustada, tenho pavor de sangue, o A1 escutou o barulho, o C estava dormindo no quarto dele e o P assistindo desenho, o P não viu nada, ele escutou o barulho e veio, fui com o A1 com o braço todo cortado, aí eu falei para o A1, eu falei que eu rasguei o meu braço, que estava rasgado o meu braço. MP: A senhora é uma pessoa nervosa? D: Nervosa não, eu tenho um gênio forte. MP: Por que as fls. 1453 a senhora relata um diálogo com seu pai para contar a ida ao médico, ele teria dito: “meu, você precisa tomar calmante”? D: Meu pai teria falado isso? MP: Consta isso. D: É que eu chorava muito, foi logo depois que o C nasceu, meu pai e minha mãe falaram que eu tinha que ir ao médico, eu fui numa médica em Santana, porque toda vez que o menino chorava eu chorava junto, eu tinha casa e filhos para cuidar, tinha a minha casa para arrumar, eu não sabia o que fazia, ele só chorava o tempo todo e grudava na minha perna e eu chorava do outro lado. (...) MP: Eu vou ler o que consta às fls. 1480, o depoimento dela em juízo, a respeito do momento em que a senhora, já lá embaixo, ao lado do seu marido, a V ainda no chão, viva; segundo ele, o coração dela batia acelerado... D: Batia. MP: A senhora relatou o que houve quando da chegada dos primeiros policiais os seguintes detalhes entre a senhora e o seu marido, eu vou perguntar para a senhora responder se está correto. O juiz faz uma pergunta e a senhora responde: “então, Excelência, foi assim: o policial pediu para alguém subir com ele, para ver se faltava alguma coisa no apartamento, tinha que ir porque tinha que estar na presença de testemunhas”. V estava lá no chão? D: Estava. MP: Necessitando de urgente socorro?
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D: Estava. MP: Seu marido falou para a senhora: “vai você, amor”. V continuava lá, caída? D: Sim. MP: Esperando socorro? D: (Depoente balança a cabeça afirmativamente). MP: Então a gente falou: “é ladrão, alguém entrou lá dentro” (...) V continuava caída lá, necessitando de urgente socorro? J: A senhora confirma? D: Eu não me lembro de ter falado isso daí, o que eu lembro é que o policial desceu, falou para evacuar o prédio, eu não lembro se eu falei desse jeito, mas ele falou: “sobe lá você”, ele estava nervoso, desesperado, e eu falei para ele: “não vou subir”, aí ele disse “vai lá, sim”, aí meu subi. MP: Esse é o depoimento, a senhora falou isso para o Juiz no dia 28 de maio de 2008. Continuando: “... é ladrão, alguém entrou lá dentro”. V continuava caída lá? J: A senhora se recorda dessa frase dita em juízo, quando a senhora foi ouvida? D: Eu não recordo. J: Durante essa conversa que era para alguém subir, a V estava caída ainda? D: Sim, o A1 que falou para „mim‟ subir. MP: O policial falou: “a porta está arrombada” e a senhora falou: “não está arrombada”. V continuava caída... DEF: Excelência, ele vai continuar repetindo que a V continuava caída... J: Durante esse tempo em que vocês foram até o apartamento a pedido policial e voltaram, a V continuava caída e precisava de socorro ainda? D: Estava o A1 e a C do lado do corpinho dela e o pessoal no gramado. J: Esses diálogos doutor, qual o propósito? Eu também não estou entendendo. MP: Eu estou lendo o depoimento dela, se eu puder continuar eu chego na pergunta. Eu estava perguntando se a V estava lá caída, a pergunta é objetiva. A senhora disse: “não tinha o miolo na chave, só o buraquinho de pôr a chave, não tínhamos terminado de reformar o negócio da porta”. V continuava caída? J: Durante esse diálogo que a senhora teve, esse diálogo sobre a porta, a fechadura, esse tempo todo, a menina não tinha sido socorrida? D: Nessa hora que eu falei que não tinha o negocinho da chave, eu acho que a V tinha sido socorrida, o policial desceu e falou, olhando nos meus olhos, eu comecei a chorar mais ainda, eu pensei que ela tinha levado um tiro. J: A V, nesse último diálogo, tinha sido socorrida? D: Se não me engano, parece que sim, foi a hora que eles desceu, ele pediu para evacuar o prédio nessa hora.
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MP: A última frase que ele teria dito para a senhora: “sobe lá e veja se está faltando alguma coisa”, que hora foi? D: Ele não falou no tom que o senhor está falando, ele falou nervoso, ele falou: “sobe lá você e veja se está faltando alguma coisa”, e eu falei que não ia coisa nenhuma, que eu estava preocupada com a V. MP: E a V nesse momento, estava onde? J: Nesse diálogo, ela continuava lá? D: Continuava J: E no diálogo sobre o miolo da chave, ele tinha sido socorrida? D: Se não me falha a memória, eu acredito que estava lá ainda o corpinho dela, hoje eu não me recordo. MP: Lá onde, na grama? D: Na grama, se não me falha a memória.
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Anexo IV
A sentença
VISTOS 1. A1 e A2, qualificados nos autos, foram denunciados pelo Ministério Público porque no dia 29 de março de 2.008, por volta de 23:49 horas, na rua S.L, nº 00, apartamento 00, Vl. I m, nesta Capital, agindo em concurso e com identidade de propósitos, teriam praticado crime de homicídio triplamente qualificado pelo meio cruel (asfixia mecânica e sofrimento intenso), utilização de recurso que impossibilitou a defesa da ofendida (surpresa na esganadura e lançamento inconsciente pela janela) e com o objetivo de ocultar crime anteriormente cometido (esganadura e ferimentos praticados anteriormente contra a mesma vítima) contra a menina V. Aponta a denúncia também que os acusados, após a prática do crime de homicídio referido acima, teriam incorrido também no delito de fraude processual, ao alterarem o local do crime com o objetivo de inovarem artificiosamente o estado do lugar e dos objetos ali existentes, com a finalidade de induzir a erro o juiz e os peritos e, com isso, produzir efeito em processo penal que viria a ser iniciado. 2. Após o regular processamento do feito em Juízo, os réus acabaram sendo pronunciados, nos termos da denúncia, remetendo-se a causa assim a julgamento ao Tribunal do Júri, cuja decisão foi mantida em grau de recurso. 3. Por esta razão, os réus foram então submetidos a julgamento perante este Egrégio 2º Tribunal do Júri da Capital do Fórum Regional de Santana, após cinco dias de trabalhos, acabando este Conselho Popular, de acordo com o termo de votação anexo, reconhecendo que os acusados praticaram, em concurso, um crime de homicídio contra a vítima V, pessoa menor de 14 anos, triplamente qualificado pelo meio cruel, pela utilização de recurso que dificultou a defesa da vítima e para garantir a ocultação de delito anterior, ficando assim afastada a tese única sustentada pela Defesa dos réus em Plenário de negativa de autoria .Além disso, reconheceu ainda o Conselho de Sentença que os réus também praticaram, naquela mesma ocasião, o crime conexo de fraude processual qualificado. É a síntese do necessário. FUNDAMENTAÇÃO. 4. Em razão dessa decisão, passo a decidir sobre a pena a ser imposta a cada um dos acusados em relação a este crime de homicídio pelo qual foram considerados culpados pelo Conselho de Sentença. Uma vez que as condições judiciais do art. 59 do Código Penal não se mostram favoráveis em relação a ambos os acusados, suas penas-base devem ser fixadas um pouco acima do mínimo legal.
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Isto porque a culpabilidade, a personalidade dos agentes, as circunstâncias e as conseqüências que cercaram a prática do crime, no presente caso concreto, excederam a previsibilidade do tipo legal, exigindo assim a exasperação de suas reprimendas nesta primeira fase de fixação da pena, como forma de reprovação social à altura que o crime e os autores do fato merecem. Com efeito, as circunstâncias específicas que envolveram a prática do crime ora em exame demonstram a presença de uma frieza emocional e uma insensibilidade acentuada por parte dos réus, os quais após terem passado um dia relativamente tranqüilo ao lado da vítima, passeando com ela pela cidade e visitando parentes, teriam, ao final do dia, investido de forma covarde contra a mesma, como se não possuíssem qualquer vínculo afetivo ou emocional com ela, o que choca o sentimento e a sensibilidade do homem médio, ainda mais porque o conjunto probatório trazido aos autos deixou bem caracterizado que esse desequilíbrio emocional demonstrado pelos réus constituiu a mola propulsora para a prática do homicídio. (...) Assim sendo, frente a todas essas considerações, majoro a pena-base para cada um dos réus em relação ao crime de homicídio praticado por eles, qualificado pelo fato de ter sido cometido para garantir a ocultação de delito anterior (inciso V, do parágrafo segundo do art. 121 do Código Penal) no montante de 1/3 (um terço), o que resulta em 16 (dezesseis) anos de reclusão, para cada um deles. Como se trata de homicídio triplamente qualificado, as outras duas qualificadoras de utilização de meio cruel e de recurso que dificultou a defesa da vítima (incisos III e IV, do parágrafo segundo do art. 121 do Código Penal), são aqui utilizadas como circunstâncias agravantes de pena, uma vez que possuem previsão específica no art.61, inciso II, alíneas c e d do Código Penal. (...) Justifica-se a aplicação do aumento no montante aqui estabelecido de um quarto, um pouco acima do patamar mínimo, posto que tanto a qualificadora do meio cruel foi caracterizada na hipótese através de duas ações autônomas (asfixia e sofrimento intenso), como também em relação à qualificadora da utilização de recurso que impossibilitou a defesa da vítima (surpresa na esganadura e lançamento inconsciente na defenestração). (...) Quanto ao crime de fraude processual para o qual os réus também teriam concorrido, verifica-se que a reprimenda nesta primeira fase da fixação deve ser estabelecida um pouco acima do mínimo legal, já que as condições judiciais do art. 59 do Código Penal não lhe são favoráveis, como já discriminado acima, motivo pelo qual majoro em 1/3 (um terço) a pena-base prevista para este delito, o que resulta em 04 (quatro) meses de detenção e 12 (doze) dias-multa, sendo que o valor unitário de cada dia-multa deverá
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corresponder a 1/5 (um quinto) do valor do salário mínimo, uma vez que os réus demonstraram, durante o transcurso da presente ação penal, possuírem um padrão de vida compatível com o patamar aqui fixado. (...) DECISÃO. 9. Isto posto, por força de deliberação proferida pelo Conselho de Sentença que JULGOU PROCEDENTE a acusação formulada na pronúncia contra os réus A1 e A2, ambos qualificados nos autos, condeno-os às seguintes penas: a) co-réu A1: - pena de 31 (trinta e um) anos, 01 (um) mês e 10 (dez) dias de reclusão, pela prática do crime de homicídio contra pessoa menor de 14 anos, triplamente qualificado, agravado ainda pelo fato do delito ter sido praticado por ele contra descendente, tal como previsto no art. 121, parágrafo segundo, incisos III, IV e V c.c. o parágrafo quarto, parte final, art. 13, parágrafo segundo, alínea a (com relação à asfixia) e art.61, inciso II, alínea e, segunda figura e 29, todos do Código Penal, a ser cumprida inicialmente em regime prisional FECHADO, sem direito a “sursis”; - pena de 08 (oito) meses de detenção, pela prática do crime de fraude processual qualificada, tal como previsto no art. 347, parágrafo único do Código Penal, a ser cumprida inicialmente em regime prisional SEMI-ABERTO, sem direito a "sursis"e 24 (vinte e quatro) dias-multa, em seu valor unitário mínimo. b) co-ré A2: - pena de 26 (vinte e seis) anos e 08 (oito) meses de reclusão, pela prática do crime de homicídio contra pessoa menor de 14 anos, triplamente qualificado, tal como previsto no art. 121, parágrafo segundo, incisos III, IV e V c.c. o parágrafo quarto, parte final e art. 29, todos do Código Penal, a ser cumprida inicialmente em regime prisional FECHADO, sem direito a "sursis"; - pena de 08 (oito) meses de detenção, pela prática do crime de fraude processual qualificada, tal como previsto no art. 347, parágrafo único do Código Penal, a ser cumprida inicialmente em regime prisional SEMI-ABERTO, sem direito a “"sursis” e 24 (vinte e quatro) dias-multa, em seu valor unitário mínimo. 10. Após o trânsito em julgado, feitas as devidas anotações e comunicações, lancem-se os nomes dos réus no livro Rol dos Culpados, devendo ser recomendados, desde logo, nas prisões em que se encontram recolhidos, posto que lhes foi negado o direito de recorrerem em liberdade da presente decisão. 11. Esta sentença é lida em público, às portas abertas, na presença dos réus, dos Srs. Jurados e das partes, saindo os presentes intimados.
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