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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
CURSO DE HISTÓRIA
LUCIANO ACIOLLI RODRIGUES DOS SANTOS
O SANTO, O DEMÔNIO E A BESTA FERA:
MODERNIDADE E IMAGINÁRIO APOCALÍPTICO NO SERTÃO DO SERIDÓ.
MEMÓRIA E ESCATOLOGIA EM CRUZETA/RN (1950-1970)
NATAL/RN
2014
LUCIANO ACIOLLI RODRIGUES DOS SANTOS
O SANTO, O DEMÔNIO E A BESTA FERA:
MODERNIDADE E IMAGINÁRIO APOCALÍPTICO NO SERTÃO DO SERIDÓ.
MEMÓRIA E ESCATOLOGIA EM CRUZETA/RN (1950-1970)
Monografia apresentada ao Curso de História
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
sob a orientação da professora Dr. Lyvia
Vasconcelos Baptista, para avaliação da disciplina
Pesquisa Histórica II.
NATAL/RN
2014
SANTOS, Luciano Aciolli Rodrigues dos.
O Santo, o Demônio e a Besta Fera: modernidade e
imaginário apocalíptico no sertão do Seridó. Memória e
escatologia em Cruzeta-RN (1950-1970) – Natal, 2014.
161 f.
Monografia (Graduação em História). – Universidade
Federal do Rio Grande do Norte.
Bibliografia f...
LUCIANO ACIOLLI RODRIGUES DOS SANTOS
O SANTO, O DEMÔNIO E A BESTA FERA:
MODERNIDADE E IMAGINÁRIO APOCALÍPTICO NO SERTÃO DO SERIDÓ.
MEMÓRIA E ESCATOLOGIA EM CRUZETA/RN (1950-1970)
Monografia apresentada ao Curso de
História da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, para avaliação da disciplina Pesquisa
Histórica II.
Aprovado em: 10/06/2014.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________
Profa. Dra. Lyvia Vasconcelos Baptista
(Orientadora – DH/CCHILA/UFRN)
____________________________________________________
Prof. Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior
DH/CCHILA/UFRN
____________________________________________________
Prof. Raimundo Nonato Araújo da Rocha
DH/CCHILA/UFRN
AGRADECIMENTOS
Construir o conhecimento é aprender que o outro também faz parte deste edifício. É
compreender que fazemos parte de uma teia de relações onde os fios do saber estão
constantemente interligados. Não construímos o modo de ver o mundo sozinho. No exímio
desta arte existirá sempre a parcela que recebemos do outro.
Este trabalho é fruto de um projeto iniciado em 2009 quando ainda era estudante do curso
de Licenciatura em História do Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES-UFRN). De lá
para cá jazeram cinco anos. Todo este tempo foi suficiente para que pudesse amadurecer na
configuração deste intento que só pode tomar corpo em 2011 quando já me encontrava egresso
no curso de Bacharelado em História do Campus Central da UFRN. Neste percurso de quase
três anos não foram poucos os que contribuíram para a realização deste trabalho. Consciente,
portanto, do quanto foram decisivas as contribuições e as presenças de algumas pessoas no
decorrer desta empreitada, não resta senão, por reconhecimento e justiça agradecer-lhes.
A minha mãe, inicialmente, pelo apoio incondicional e pela compreensão e ternura com a
qual tem se voltado para mim sempre sem jamais ter duvidado de minhas capacidades. A meu
pai Antônio e meus irmãos Neto e Ana Amélia pelo apoio dispendido durante toda minha
caminhada acadêmica. Aos amigos Raí, Mirella e especialmente a João Paulo por ter
contribuído com nossas longas conversas “científicas”. Ao geógrafo Alexsander Pereira por ter
gentilmente me presenciado com a bela cartografia que ilustra estas páginas.
Agradeço especialmente ao professor Francisco Santiago Junior que primeiro aceitou o
desafio de me orientar na execução desta monografia e a professora Lyvia Vasconcelos que com
muita gentileza aceitou dar continuidade aos trabalhos de orientação. A vocês meus maiores
agradencimentos pelas preciosas considerações que tanto contribuiram para que fosse
estabelecido um melhor norte ao meu estudo. Aos professores do CERES que cultivaram em
mim o prazer pela pesquisa histórica. Ao professor Luiz Carvalho de Assunção pelas suas
discussões proveitosas sobre “Cultura Popular”. Com igual apreço, agradeço ao professor
Raimundo Nonato por ter dedicado uma parte de seu precioso tempo à examinar as modestas
páginas deste trabalho.
Sou particularmente grato a minha tia Alexandrina Campus pelas informações e conversas
inestimáveis sem as quais muito pouco teria dito sobre a história e a memória do meu “lugar” e
aos meus narradores que com suas experiências de vida enriqueceram de cores, sonhos,
sentimentos e fantasias este estudo.
E por fim, a gratidão maior a Deus, pela graça da co-autoria desta obra.
RESUMO
O avanço da civilização moderno-urbana ocidental capitalista sobre os sertões seridoenses
trouxe consigo novos símbolos de cultura até então desconhecidos por seus habitantes que
tiveram que ser apreendidos para tornarem-se compreendidos. Neste processo de apropriação
simbólica o imaginário apocalíptico popular, exerceu uma função capital ao fornecer imagens e
sentidos que puderam ser aliciados para traduzir este “outro” desconhecido. Em meio a isso, a
“memória ativa” desempenhou um papel fundamental tecendo as conexões entre a tradição e a
própria experiência do vivido. Utilizando-se deste mecanismo, atuaram os poetas populares e os
romeiros do Padre Cícero ao se apropriarem das “novidades da história” a partir deste
patrimônio simbólico, colocando-as à maneira de profecia na voz do “Santo Padrinho”. Este
processo traduzido na experiência do “choque cultural”, não implicaria no fim ou no
enfraquecimento do imaginário religioso tradicional construído em volta das crenças no fim do
mundo, mas sim, numa transformação operada no interior dos seus processos de produção. Esta
monografia destina-se primeiramente a contribuir com os estudos históricos sobre cultura
popular na historiografia brasileira. Como meta primordial, este trabalho consiste em fornecer
um estudo acerca do imaginário apocalíptico popular no sertão do Seridó norte-rio-grandense
por meio da investigação de como este fora agenciado por uma coletividade de sujeitos para
compreender o avanço da modernidade e as transformações sociais fomentadas pelo processo
de modernização na região e no município de Cruzeta em particular, entre as décadas de 1950 e
70. Buscando propor uma visão da história a partir da versão da “cultura popular”, nossa
pesquisa se baseia sobre memórias e vivências que remetem às experiências vividas por
“indivíduos comuns” através da aplicação da metodologia da história oral.
.
Palavras-chave: Imaginário Apocalíptico; Modernidade; Fim do Mundo.
ABSTRACT
The advancement of modern urban-capitalist civilization on the western hinterlands of Seridó, a
region in the backlans of Rio Grande do Norte, Brazil, brought new symbols of culture that are
unknown to its inhabitants and because of that, they had to be seized to become understood. In
this symbolic appropriation process, the popular apocalyptic imagery exerted a capital role in
supplying images and meanings that might be enticed to translate this "other" unknown.
Through it, the "active memory" played a key role weaving connections between tradition and
the experience of living. Utilizing this mechanism, the popular poets and pilgrims acted Padre
Cicero to appropriate the "news story" from this symbolic heritage, placing them in the manner
of prophecy in the "Holy Godfather" voice. This process known as the experience of "culture
shock" does not imply the end or the weakening of traditional religious imagery built around
the beliefs of the end of the world, but rather a transformation in the interior of its production
processes. This monograph is intended primarily to contribute to historical studies of popular
culture in Brazilian historiography. The primary goal of this research is to provide a study of the
popular apocalyptic imagery in the backçands of Serido, in Rio Grande do Norte, Brazil,
through research like this out touted by a collectivity of individuals to understand the advance
of modernity and promoted social change the process of modernization in the region and the
municipality of Cruzeta particularly between the 1950s and 70s. We seek to offer a view of
history from the version of "popular culture", our research is based on memories and
experiences that recall the experiences of "ordinary individuals" through the application of the
methodology of oral history.
Key-words: Apocalyptic imagery; modernity; End of the World.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 9
OS “INCÓGNITOS” DO SUBTERRÂNEO DA HISTÓRIA LOCAL 16
CAPÍTULO 1. PROFETAS E APOCALÍPTICOS NOS SERTÕES DO “NOR(DES)TE”: O
SERIDÓ NA SENDA DOS MEDOS ESCATOLÓGICOS
1.1. A “TERRA SEM MALES” DOS “PROFETAS” INDÍGENAS: O “PROFETISMO” TUPI-
GUARANI 25
1.2. MISSIONISMO E PROFECIA: JESUÍTAS, CAPUCHINHOS E “ALDEIAS TAPUIAS” NOS
SERTÕES NORDESTINOS 27
1.3. A MENSAGEM “APOCALÍPTICA” DOS CAPUCHINHOS E AS “SANTAS MISSÕES
POPULARES” 30
1.4. BEATISMO NOS SERTÕES DO NOR(DES)TE: O APOCALIPSISMO POPULAR
SERTANEJO 38
CAPÍTULO 2. “ATÉ MIL E TANTOS A DOIS MIL NÃO CHEGARÁ”: O SERIDÓ NO
DESCAMBAR DAS ERAS
2.1. O TERRENO “MOVEDIÇO” DO IMAGINÁRIO APOCALÍPTICO POPULAR SERTANEJO
44
2.2. OS SINAIS DO FIM DAS ERAS 52
2.3. A ESTRUTUTA IMAGINÁRIA DOS MEDOS ESCATOLÓGICOS 66
2.4. O IMAGINÁRIO APOCALÍPTICO POPULAR NA ESTEIRA DA “CULTURA DE MASSA”
72
CAPÍTULO 3. “O MUNDO EM DESMANTELO”: MODERNIZAÇÃO E ESCATOLOGIA EM
CRUZETA (RN)
3.1. NA SENDA DO PROGRESSO 91
3.2. O MULTIFÁRIO DA BESTA FERA 102
3.3. “BOM TEMPO NINGUÉM MAIS VER”: A “AURA” PROFÉTICA DAS SANTAS MISSÕES
DE FREI DAMIÃO E DO MOVIMENTO DOS ROMEIROS DO PADRE CÍCERO 1277
5. CONCLUSÃO 1377
6. FONTES E BIBLIOGRAFIA 1411
ANEXOS – ÁLBUM DE DOCUMENTOS 1522
9
INTRODUÇÃO
“Vivi no sertão típico, agora desaparecido. A luz
elétrica não aparecera. O gramofone era um
deslumbramento. O velho João de Holanda, de Caiana,
perto de Augusto Severo, ajoelhou-se no meio da estrada e
confessou, aos berros, todos os pecados quando avistou,
ao Sol-se-pôr, o primeiro automóvel”.
Câmara Cascudo. Vaqueiros e Cantadores.
“O Desconhecido faz surpresas ao espírito do homem”.
Victo Hugo. Os trabalhadores do Mar.
As últimas décadas do século XX foram marcadas por diversas especulações apocalípticas
acerca de um fim iminente para a humanidade, que atravessaram o segundo milênio da Era
Cristã e subsistem nos dias atuais.
Expressas nas imagens e representações veiculadas principalmente pela mídia televisiva,
cinematográfica e eletrônica que evocam ou disseminam o caos, o medo, o cataclismo cósmico,
bélico ou natural que sobrevirá contra a humanidade num lapso de um porvir mais próximo, a
crença no apocalipse revela um estado de desconforto e angústia do homem diante do seu
tempo alimentando a perspectiva de que se as coisas vão mal, tudo, portanto, caminha para um
colapso ainda maior e definitivo. Ela contribui para a compreensão de como os diversos
sujeitos, sociedades e grupos sociais do passado fizeram a leitura do mundo em que viveram e
de suas existências, moldando e direcionando seus valores, atitudes e crenças ao expressar de
múltiplas maneiras os sentimentos, medos e aflições diante das incertezas do mundo.
Que a crença na escatologia1 humana ainda permanece incutida no imaginário do homem
contemporâneo é algo que não se duvida. Lembremos, pois, de quantas vezes não se vaticinou
para o ano de 2012 à luz do maianismo (profecia Maia) o dia último da humanidade inspirando
o cataclísmico 2012 de Roland Emmerich (2009).2 E o que dizer, então, da renúncia recente de
Bento XVI ao pontificado de S. Pedro que repercutiu como sinal apocalíptico na mente de
muitos cristãos fazendo vim à tona profecias seculares.3
Não há dúvidas de que vivemos em tempos apocalípticos, ou melhor, em momentos de
1 Utilizamos o termo escatologia no sentido atribuído pela doutrina judaico-cristã para designar “o corpo de
crenças relativas ao destino final do homem e do universo” (LE GOFF, 1994, p.323) e para referir-se a “qualquer
discussão ou apresentação do fim dos tempos, tanto mítica como teológica”. (RUSSELL, 2007, p.6). 2 Cf. PETRY, André. O Fim do Mundo em 2012. Veja, São Paulo, 04 nov. 2012. p.90-99.
3 Cf. RINCON, Maria Luciana. Renúncia do Papa Bento XVI desperta rumores sobre o apocalipse. Suposta
profecia do século 12 prevê que o próximo pontífice a assumir o posto será o último da igreja católica. 15 fev.
2013. Disponível em: <http://www.megacurioso.com.br/>. Acesso em: 05 mai. 2014. Ver também Profecia de
São Malaquias: sucessor de Bento XVI já tem nome e será o último. Brasil de Fato, 11 mar. 2013. Disponível
em: <http://www.brasildefato.com.br/node/12259>. Acesso em: 05 mai. 2014.
10
efusiva circulação e propulsão deste imaginário pelo mundo. A televisão anuncia diariamente
tempestades solares que ameaçam atingir a terra. O jornalista comunica os efeitos sinistros do
aquecimento global. A revista divulga vaticínios de cientista ou profeta tal. O cinema exibe em
movimento o caos de uma catástrofe cósmica. Cidades inteiras, civilizações, monumentos e
construções, tudo será tragado pela tsunami avassaladora. Do espaço astral, a ameaça surge em
forma de meteoros colossais. Trincheiras abissais se abrem no solo sobre o estampido de
tremores titânicos e de sua superfície o magma abrolha como uma avalanche de fogo.
Presunção científica ou imaginação criativa? Absorvido pela cultura de massa, o apocalipse do
novo milênio trás um traço bastante específico: o de apoiar-se mais na ciência que na religião, o
que não significa pensar que a sua versão tradicional tenha sido abduzida dos lares cristãos na
atualidade. Pelo contrário, J. B. Russell (2007) fala de um retorno contemporâneo aos
fundamentos da apocalíptica embora este seja mais vivido com veemência no seio das
comunidades evangélicas das quais as Testemunhas de Jeová e as igrejas pentecostais são os
exemplos mais expressivos.
De qualquer forma, no início do século XXI assistimos a uma poderosa assimilação pelos
veículos de comunicação de massas das crenças apocalípticas, o que nos leva a admitir a
pujante inspiração que o livro bíblico homônimo ainda provoca em muitas mentes mesmo
depois de quase dois mil anos. Reelaborado constantemente pela indústria do entretenimento
para atender a demanda de seus diferentes públicos e fornecendo uma abundante e rica
produção de imagens e alegorias para os mais diversos fins, o Apocalipse cristão seculariza-se
ao converter-se em produto das massas. Nos dias atuais e mesmo recuando às últimas décadas
do século XX, é inegável que tenha deixado de ser exclusividade dos guetos cristãos para
ganhar a “cultura popular” no sentido mercadológico do termo.
Mas, que lugar ocupa neste quadro escatológico toda visão beatífica de anjos alados a
tocar trombetas ao redor do trono divino e abrasar vingativos os campos e cidades enquanto
diabos acossam em algazarra os “amancebados” virados em bestas que antes habitava férvido o
imaginário apocalíptico do sertanejo nordestino? Quanto a este imaginário não podemos negar
que tem se volvido cada vez mais no mundo moderno numa “fantasia de velhos”.
A verdade é que cada época e sociedade experimentam uma maneira própria de viver e
conceber o apocalipse - e por que não dizer as suas angústias diante do seu tempo -, na qual a
tendência homogeneizante do “apocalipse científico” na sociedade atual globalizada é um
exemplo bastante presente no imaginário do homem contemporâneo.
O Apocalipse é um livro sempre atualizado por seus leitores. Cada leitor em sua época
tenderá a interpretá-lo de modo diferente determinado pelas suas experiências pessoais e
11
coletivas e decodificado pela bagagem cultural que transporta.
Estas circunstâncias nos apontam para a existência de uma propínqua relação entre
“identidade apocalíptica” e “tempos de crise”, já que é deste enlace que as sociedades buscam
encontrar suas respostas para as agudas tensões em curso, sendo, por isso, “produto de
momentos de crise em que há a necessidade de dar resposta a uma situação limite”.4 É no
interior desta problemática geral que o estudo do imaginário apocalíptico nos serve como
paradigma cognoscível para entendermos a crise contemporânea que está na base da
compreensão desta pesquisa, principalmente no que tange ao “rompimento” e a “fragmentação”
da cosmovisão de uma “cultura camponesa” herdeira do que chamamos do apocalipsismo
judaico-cristão, isto é, do sistema de conceitos e símbolos mobilizado pelos judeus do pós-
exílio e pelos cristãos primitivos por meio dos quais estes codificaram a sua identidade e
coferiram expressão à sua interpretação da realidade adotando “a perspectiva da escatologia
apocalíptica como estratégia de esperança e sobrevivência”.5
Alterado, (re)significado e (re)inventado pela Cristandade Ocidental ao longo dos
séculos, este sistema simbólico seria catalisado pelo chamado “catolicismo popular” do
Nordeste brasileiro medrado às margens do amplo processo de cristianização do Ocidente,
culminando no que a tradição historiográfica e mais comumente sociológica convencionou
chamar de “milenarismo” ou “messianismo rústico” e que o sociólogo Duglas Teixeira
Monteiro (1974) denominou de a “Grande Tradição judaico-cristã”. São as reminiscências deste
patrimônio simbólico entendido na acepção do texto como a apropriação dos vestígios
(elementos, símbolos, sentidos, posturas e significados) do que uma vez pertenceu ao sistema
de crenças da tradição escatológica judaico-cristã alterado e/ou transformado no decurso dos
tempos que nos interessa mais de perto neste trabalho. Nesta categoria incluímos, por exemplo,
as estruturas mentais, a visão de mundo, a produção iconográfica e o imaginário, este último de
maior importância para a compreensão deste estudo.
O interesse pelo tema do imaginário apocalíptico partiu inicialmente de uma curiosidade
de adulto sobre a fantasia de menino. Quando despertei para a tenra infância na passagem dos
anos 1980 para os anos 90 a cultura irresistível do “fim do mundo” já havia ganhado amplos
domínios em minha imaginação de menino. É desta época que me recordo ter ouvido na calçada
de casa e pela boca dos vizinhos as primeiras alusões às misteriosas “profecias de Pe. Cícero e
Frei Damião” que finalizavam quase sempre numa aterradora resolução: “do ano 2000 o mundo
não passa”.
4 MACHADO, Jonas, 2009, p.11.
5 Idem, op. cit., p.83.
12
Por durante muito tempo convivi com a ideia de que haveria no futuro próximo um fim
último para a humanidade e minha fértil imaginação de menino pintava com cores vibrantes (e
sombrias) as cenas que precederiam o Juízo Final e desfaria o mundo em rastros de poeira e pó.
Naquele tempo minha mãe já me dizia: “o mundo não se acaba, não. Quem se acaba são as
pessoas que nele vivem”. Era uma visão revolucionária nas vias de um imaginário milenar.
Destina-se primeiramente esta monografia a contribuir com os estudos históricos sobre
cultura popular na historiografia brasileira. Como meta primordial, o trabalho consiste em
fornecer um estudo acerca do imaginário apocalíptico popular no sertão do Seridó norte-rio-
grandense por meio da investigação de como este fora agenciado por uma coletividade de
sujeitos, para compreender o avanço da modernidade e as transformações sociais fomentadas
pelo processo de modernização na região e no município de Cruzeta, em particular, entre as
décadas de 1950 e 70.
Os silêncios historiográficos que pairaram em torno de muitas experiências vividas pelos
homens ao longo de sua história suscitaram em diferentes pesquisadores o desejo de arrojar-se
em direção a outros espaços e realidades pouco visitados ou explorados pelos estudiosos do
passado.
A historiografia do século XX, sobretudo aquela que surgiu a partir de sua terceira década
com a Escola dos Annales e as novas formulações marxistas, foi testemunha de uma autêntica
diversidade de temáticas e de problemas que tornaram possíveis ao historiador pensar de forma
inovadora seus objetos, práticas e domínios e junto a estes o tratamento diferencial com as
fontes, provocando uma “revolução” na forma de tratar a escrita da história. As mudanças
ocorridas também se fizeram sentir nos eventos históricos que deixaram de ser apenas
acontecimento de curta duração abrindo espaço para a abordagem de outras temporalidades (a
média e longa duração, por exemplo).
Com os Annales, a história passou a privilegiar novos objetos e novos atores sociais,
deixando de lado a preocupação com os feitos heróicos de políticos e homens eminentes e
começa a dedicar-se ao estudo das massas e dos sujeitos anônimos da sociedade, de todas as
expressões humanas, das mentalidades, do comportamento humano e suas formas de agir,
pensar e dominar. Tal me parece ter sido este o itinerário percorrido pela história do imaginário
no século passado que, insurgindo do campo das mentalidades, especialmente com a terceira
geração dos Annales, soube bem erigir-se sobre domínios e bases particulares.
A clivagem operada no interior da história das mentalidades que permitiu a emergência
dos estudos do imaginário e estendeu a dimensão do real para o mundo das “representações” e
dos “símbolos”, tornou possível a sua depreensão como parte da realidade presente tanto quanto
13
se entende por “vida concreta”, importando, agora, desvelar as relações que as produções do
imaginário mantêm com as estruturas sociais nas quais este circula e as interconexões
empreendidas entre ambos.6 A história do imaginário passou a preocupar-se também com a
análise das representações criadas pelos sujeitos históricos, como meio de interpretar as
realidades sociais vivenciadas pelos diversos grupos “populares”. Ao tratar do imaginário
social, Gilbert Durant (2001) o concebe como parte inerente do mundo real e do cotidiano das
pessoas, não os tratando como partes independentes e separáveis.
Das últimas décadas do século XX aos dias atuais, principalmente com a insurgência da
chamada Nova História Cultural nos anos 80 e o espaço que esta alargou à propalada “história
vinda de baixo”, o campo do imaginário passou a ser um terreno fértil para aqueles
historiadores que desejavam investigar a articulação entre as imagens verbais, visuais e mentais
cunhadas por um determinado grupo ou sociedade e a própria vida que nela flui, revelando os
modos como as coletividades humanas as utilizavam para imaginar e conceber a própria
existência e o mundo em sua volta.
Em vista disto, a história contemporânea do imaginário coletivo seguiu o veio de duas
tendências teóricas: uma que enfatiza os processos de permanência e privilegia o estudo das
sociedades ou dos níveis sociais ainda tradicionais com maior enfoque para o espaço rural, e a
outra que expande sua análise para as novas sociedades nascidas da urbanização industrial e
para o desenvolvimento da mídia, irrompendo, deste modo, com os grilhões que a mantinha
presa à limitação primeira.7 Buscando atender uma necessidade de ordem teórico-metodológica,
nossa pesquisa se desenvolveu na interface crítica destas duas tendências.
Para fins de análise deste estudo, compreendemos o imaginário conforme conceito
definido por Hilário Franco Júnior como
um conjunto de imagens visuais e verbais gerado por uma sociedade (ou uma
parcela desta) na sua relação consigo mesma, com outros grupos humanos e
com o universo em geral [...] resultante do entrecruzamento de um ritmo
histórico muito lento (mentalidade), com outro bem mais ágil (cultura) [...]que
exerce função catártica e construtora de identidade coletiva ao aflorar e
historicizar sentimentos profundos do substrato psicológico de longuíssima
duração.8
Com base neste conceito mais amplo, entendemos por imaginário apocalíptico popular o
conjunto de imagens e símbolos verbais, visuais e mentais produzidos e mobilizados pelos
sujeitos para codificar suas crenças, sentimentos, cosmovisões acerca das revelações dos
6 BARROS, José D’Assunção, 2008.
7 PATLAGEAN, Evelyne, 1993, p.308.
8 FRANCO JUNIOR, Hilário, 1998, p.16;71.
14
últimos acontecimentos do mundo, conferindo expressão e tradução a sua interpretação da
realidade e do tempo, mas que não possui relações de dependência com a doutrina
institucionalizada pela Igreja docente, embora ambos bebam na fonte da mesma crença.
Outro importante conceito que procuramos discutir neste trabalho é o de modernidade
com base em dois enfoques teóricos: um que aparece no discurso da elite associado à ideia de
progresso, evolução e desenvolvimento material, técnológico e científico e o outro encontrado
no discurso e na produção imagética das classes “iletradas” associado ao estranho, ao
desconhecido, à “coisa” diabólica. Adotado pelo discurso historiográfico, ele se aproxima do
discurso da elite diferentemente daqueles para quem a noção de “modernidade” não existia.
Para discutirmos esta relação tomaremos como base teórica o conceito de modernidade
formulado por Jacques Le Goff (1994) que a define como um conjunto amplo de modificações
constatadas nas estruturas sociais do Ocidente provocada a partir de um processo longo de
racionalização da vida, que tanto atinge as esferas da economia, como da política e da cultura. É
este processo nascido especialmente do espírito capitalista e racional em pleno
desenvolvimento no país e no mundo ocidental que penetra às bases tradicionais do modus
vivendi de povoados, vilas e comunidades rurais do sertão seridoense gerando um “choque de
identidade”, entendido aqui como a experiência em que um grupo social não reconhece como
parte de seu sistema simbólico elementos ou condutas que antes não faziam parte de seu
sistema cultural de crenças, saberes e valores, condicionando-o a uma reação adaptativa.
A pesquisa permite ainda uma investigação problematizada de duas abordagens
extremadas até hoje não superadas: a que defende uma imutável resistência do sertanejo diante
do avanço da modernidade e aquela que sustenta sua passividade resoluta diante do mesmo
processo, procurando, com isso, rastrear as flexibilidades e as condutas hesitantes que se
deixam escapar. Ademais, o trabalho oferece uma alternativa de como romper com a antiga
dicotomia de valores arquitetada ao redor dos espaços litoral – “progressista e civilizado” - e
sertão – “arcaico e inculto” – ou entre as categorias “desenvolvimento” e “atraso” que
costumam vir atrelados aos estudos do apocalipsismo no Nordeste brasileiro e que serviram de
alicerce para a construção de velhos preconceitos. Neste ponto, é importante esclarecer ainda
que não se trata de penetrar no universo já muito estudado e abordado dos “messianismos
rústicos brasileiros” tal como aparecem nas pesquisas sociológicas e com menor intensidade na
historiografia brasileira, embora admitamos que pertençam ao mesmo sistema simbólico
sertanejo. Trata-se de adentrar em um universo menos explorado pelos pesquisadores e, por isso
mesmo menos conhecido: o do imaginário das crenças apocalípticas populares que se formaram
15
em torno do problema da “modernidade” nas sociedades de “tradição conservadora” em
processo de “modernização”.
Diante disso, não podemos negligenciar no tocante aos sertões seridoenses, a fundamental
importância que exerceram na constituição deste imaginário as profecias populares que
circundaram as figuras “proféticas” do padre Cícero Romão Baptista e de Frei Damião de
Bozzano, transmitidas oralmente pela grande massa de seus devotos e “afilhados” espalhados
pelas comunidades sertanejas locais. Reverenciados como modelos de virtude cristã e estimados
pela sensibilidade e atenção que dedicavam aos mais pobres e marginalizados, entre as massas
de sertanejos católicos eles se tornam nos “padrinhos Ciço e frei Damião”, os “conselheiros” do
povo humilde do sertão. A aura de santidade que os debitavam fariam deles taumaturgos,
profetas e mediadores diretos entre Deus e os homens capazes de obter favores e graças divinas,
de predizer o futuro, de realizar milagres e prodígios sobre-humanos e guiar as almas com seus
“avisos” e “conselhos”.
No escopo do nosso trabalho não trataremos de abordar precisamente a influência “direta”
tecida pelo contato físico das populações sertanejas com estes “santos homens”, alvo de muitos
objetos contemplados por outras pesquisas. Mas cuidaremos de enfatizar as suas “presenças"
não menos reais expressas nas profecias populares atribuídas aos “padrinhos” que chegaram até
nós através da tradição oral de grupo e que atestam a “santidade” destes homens entre os
sertanejos seridoenses. Aquela segunda posição seria praticamente impossível dentro do recorte
temporal estabelecido por nossa pesquisa, porque não compreende o período de vida
correpondente ao do “Santo do Juazeiro” falecido no longínquo ano de 1934, embora tenhamos
na segunda metade do século XX uma maior projeção do missionário capuchinho frei Damião
de Bozzano junto às populações sertanejas do Nordeste. Isso não significa dizer que a
influência do taumaturgo do Juazeiro tenha se arrefecido com sua morte. Pelo contrário, muitos
estudos vieram confirmar que à morte do “santo padrinho” correspondeu a um período de
ascensão das crenças populares em derredor de sua figura, já que entre as massas de sertanejos
rurais supersistiu a convicção de que o “Padinho Ciço” continuava “vivo” e “operante” no meio
do povo, pelo menos no imaginário de seus devotos.9
9 Cf. a este respeito estudo já clássico realizado por VALENTE, Valdemar. Misticismo e região: aspectos do
Sebastianismo nordestino. Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisa Sociais: Recife/PE, 1963. p.107-117. Ver
também BRAGA, Antônio Mendes da Costa. Padre Cícero: sociologia de um Padre, antropologia de um Santo.
Bauru/SP: Edusc, 2008. p.308-332 e BARBOSA, Francisco S. de Alencar. O juaseiro celeste: tempo e paisagem
na devoção ao Padre Cícero. São Paulo: Attar, 2007. Sobre o “santo de Juazeiro” escreveria Cascudo cinco anos
depois de sua morte: “hoje, o Padre Cícero é o centro de formação duma gesta, soma de episódios fantásticos, de
milagres tradicionais, de intervenções fulminantes, outrora pertencentes a outros personagens impressionadores da
multidão”. (CASCUDO, Câmara, 1939/2000, p.131). 9 ARRUDA, Gilmar, 2000.
16
Ao tratarmos de um objeto de natureza impalpável como definimos o imaginário, surge-
nos logo a dificuldade em estabelecermos limites temporais bem definidos. A solução para isso
está na necessidade do “esgarçamento” da temporalidade e da historicidade para abordarmos a
nossa temática. A periodização das representações sociais do imaginário como também as suas
mudanças significativas nos quadros mentais, visuais e textuais – não acompanham a
temporalidade sugerida por outros campos da historiografica como o da economia ou da
política.10
Numa relação dialética entre o problema da modernidade e do imaginário apocalíptico
popular sertanejo, situa-se o espaço temporal compreendido entre o momento em que os
“símbolos do mundo moderno” começam a penetrar os espaços dos sertões seridoenses na
segunda década do século XX e um outro momento em que este imaginário passa a ser
retratado a partir da intromissão de novas influências11
advindas dos “meios de comunicação de
massa” (o rádio, a televisão e a imprensa) entre as décadas de 1950 e 70, interferindo na via
tradicional por onde este anteriormente pulsava (a tradição oral e o folheto de cordel, para citar
os mais importantes). Tendo em vista que a maior disponibilidade de fontes pertence ao
segundo período deste recorte e é de melhor confiabilidade, optamos por enfatizar em nossa
pesquisa este momento de transição. Mas, antes de adentrarmos nesta história, façamos uma
breve paragem para conhecermos os atores de nossa trama.
OS “INCÓGNITOS” DO SUBTERRÂNEO DA HISTÓRIA LOCAL
Palmilhar as veredas da história local e regional no Brasil Contemporâneo continua sendo
um exercício árduo e desafiador para qualquer historiador da cultura, principalmente quando
seu trabalho de investigação aprecia um objeto pouco retratado pela tradição historiográfica.
Este desafio torna-se ainda mais acentuado à medida que seu lócus de pesquisa desloca-se dos
centros de produção e reprodução da cultura para as localidades mais distantes destes onde a
tradição de se organizar arquivos, centros de documentações ou bibliotecas é ainda inexistente
ou pouco consolidada. Esta circunstância desanimadora, mas, mais ainda desafiante, acaba
10 Idem.
11 Por influências entendemos como um desenvolvimento na forma de como o homem enxerga seu universo que
implica numa “mudança intrínseca e inconsciente de sua cultura e de sua própria maneira de encarar sua existência
no mundo, que é motivada por uma plena identificação de semelhanças entre sua forma de pensar e agir com a
ideologia que lhe é apresentada com uma variada gama de soluções na doutrina “alienígena” para fazer frente aos
seus próprios problemas”. Estas por serem, muitas vezes, resultados de diversas ações implementadas ao longo de
vários anos, tornam-se geralmente imperceptíveis àqueles que as sofrem ou praticam. (JORGE BERGO, Miriam
Reis, 2008, p. 65).
17
revelando em muitos aspectos o(s) motivo(s) que têm levado muitos historiadores da
contemporaneidade a buscarem na análise de depoimentos de homens e mulheres simples cujas
experiências de vida não puderam ser guardadas em outro registro que não a memória, um
recurso para deixar vir à tona outras vozes, existências, cosmovisões e pontos de vista não
acessíveis por meio de fontes arquivísticas processuais. Daí porque a emergência de se
recuperar as experiências de sujeitos sociais ditos “anônimos” tem impelido a realização dos
chamados trabalhos de “história oral” no Brasil e no mundo.
“Ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a história oral
ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas
minoritárias e dominadas, se opõe à “memória oficial”12
, esta convertida geralmente em objeto
de primazia da chamada “historiografia tradicional ou positivista” centrada na abordagem dos
fatos, datas e personagens considerados “notáveis”, para o período em estudo. Em vista disso
[...] é pela oportunidade de recuperar testemunhos relegados pela História que
o registro de reminiscências orais se destaca, pois permite a documentação de
pontos de vista diferentes ou opostos sobre o mesmo fato, os quais omitidos ou
desprezados pelo discurso do poder, estariam condenados ao esquecimento”.13
Neste sentido a história oral “possibilita a participação de agentes históricos antes
desconsiderados, pois geralmente em diferentes espaços sociais só mereciam serem lembrados
os que se destacavam e impunham sua habilidade no campo político e social” ficando o restante
da sociedade destinado a exercer um papel secundário no drama da história.14
Ao eleger a
entrevista como recurso essencial para a sua fabricação, a história oral exige algumas
observações a respeito de sua metodologia.
Antes de tudo importa dizer que a história oral utiliza como matéria-prima os relatos orais
(depoimentos), e, por conseguinte, as memórias coletadas através do recurso das entrevistas que
são produzidas a partir de uma metodologia própria. A respeito de sua aplicação no Brasil,
estudos demonstram que esta tem sido aplicada desde o início dos anos 1970, embora se
constate que em outras partes do mundo sua utilização tenha alcançado um vasto
desenvolvimento no período do Segundo Pós-guerra. De modo geral,
[...] os defensores da história oral apóiam-se na crença de que o recurso aos
depoimentos poderia “resgatar” do esquecimento as experiências históricas das
classes populares, dos “deserdados”, única forma de se fazer a “história” de
grupos sociais iletrados ou não contemplados na documentação tradicional.15
Visto desta maneira, a história oral emerge desde a metade do século XX como uma
12 POLLAK, Michael, 1989, p.4.
13 FREITAS, Sônia Maria de, 2006, p. 48.
14 MOTA JUCÁ, Gisafran Nazareno, 2003, p.27.
15ARRUDA, op. cit., p.38.
18
forma de oferecer oportunidades para que os próprios sujeitos históricos antes invisíveis e
ausentes nos processos de produção do historiador tomem parte efetiva na própria fabricação de
sua história a partir daquilo que hoje ela oferece de mais precioso e singular – a subjetividade
dos diversos atores sociais – uma vez que através desta podemos contar “menos sobre eventos
que sobre significados”.16
Diante disso, é possível marcar duas fases importantes no processo de produção da
história oral no Brasil e no Mundo: a primeira verificada entre os anos 1960 e 1980, perpassada
por duras críticas quanto a objetividade e, portanto, a legitimidade de sua fabricação (para os
críticos deste período, os relatos puros e simples não podiam se constituir na própria história,
tendo em vista que a memória é passível de subjetividade e porquanto incapaz de oferecer um
relato objetivo e fidedigno sobre os fatos) e a segunda, que começou a se estabelecer nos anos
1990 e vem se consolidando nos dias atuais pautada na discussão de que o problema não deve
se incidir mais sobre a possibilidade dos depoimentos oferecerem informações “verídicas” ou
não sobre os fatos estudados, mas no valor residente nas interpretações que elas fazem abrolhar.
Arrimado neste discurso, é necessário deixarmos claro que não pretendemos aqui chegar a
uma “verdade” absoluta ou global dos fatos analisados. Apenas buscamos recuperar outras
memórias acerca do problema da “modernidade” e sua “captura” pelo imaginário apocalíptico
popular a partir de outros ângulos ou pontos de vista, contrapondo-nos ao modelo de história
convencional que ainda perpassa a produção da história local fundamentada “em noções
extremamente restritas do que (e de quem) importa na história, e de como (e por quem) é gerada
a mudança histórica”.17
Basta um breve relancear entre as páginas do livro “Noções de
Geografia e história do município de Cruzeta”, publicado pela professora Terezinha de Jesus
Medeiros Góes em 1971, para se perceber o lugar em que ocupam na tradição historiográfica
local aqueles personagens cujos “feitos prosaicos” não mereceram ser inscritos nos livros de
história. São estes indivíduos quase sempre homens e mulheres do “povo”, roceiros,
pescadores, operários, agricultores, artistas populares, donas de casa, artesãos, benzedeiras,
curadores. Numa única passagem em que a autora tece uma alusão a estes sujeitos assim os
referenciaria em sua obra:
De igual importância nos princípios do nosso povoado foi a colaboração dos
homens humildes, incógnitos, que em centenas aqui alojados, sob os ardores
de um sol causticante, com seus rostos banhados de suor, construíram os
alicerces desta cidade que os homens mais esclarecidos do passado
edificaram, a qual os homens do presente amoldam às exigências atuais, para
16 PORTELLI, 1997 apud. ARRUDA, Gilmar, 2000, p.39.
17 THOMSON, Alistair, et. al., 2006, p.75.
19
os do futuro aperfeiçoarem-na. [Grifos nossos].18
Ocupando um papel de coadjuvantes da história, suas vivências em solo cruzetense
estariam perpassadas de silêncios.
A respeito de sua narrativa histórica, a obra enfatiza o caráter a-histórico de seus
personagens ao abduzir suas ações das circunstâncias históricas em que foram produzidas e
revesti-las de um poder personalístico e atemporal. São narrativas quase sempre biográficas de
“homens públicos” que procuram exercer na memória social a função de sua natureza exemplar
revelando uma visão de sujeito histórico ancorado na memória dos feitos dos “grandes vultos”
do passado e numa visão histórica orientada pela concepção da história como magistra vitae
(mestra da vida), ao reconstituir as experiências passadas a partir de narrativas impregnadas de
sentidos moralizantes vinculadas a modelos de comportamentos exemplares “eternizados” no
tempo.
Esta visão de história alicerçada na trama histórica de seus “personagens notáveis” possui
uma função social bastante definida ao passo que ela serve para criar em torno do passado uma
identidade comum engendrando entre os sujeitos sociais que a compartilha os vínculos de
pertencimento ao espaço onde vivem, mas que nem sempre contribui para o exercício do pensar
este espaço como produção histórica, nem os sujeitos que o vivificaram como agentes sociais
que operaram no tempo. Quando muito, ela também não está isenta de tornar-se um eficiente
vetor de ideologia política que opera consciente e/ou inconscientemente em função dos grupos
sociais dominantes ao eleger como seus sujeitos históricos indivíduos provenientes dos estratos
sociais mais privilegiados e, portanto, os únicos merecedores da condição de “fazedores de
história”. O resultado disso é a concepção de uma história ou “memória oficial” (aqui entendida
no sentido daquela ensinada e (re)produzida no âmbito das instituições públicas locais) que se
impõe como única e verdadeira, não abrindo possibilidades para incluir outras versões
existentes (a dos anônimos, a dos “excluídos”, por exemplo), na medida que se assenta na visão
predominante de apenas um segmento da sociedade ou de determinados indivíduos que tomam
para si a alcunha de “autênticos repositórios” da memória social.
Buscando propor uma visão da história e dos fatos locais a partir da versão da “cultura
popular”, nossa pesquisa se baseia sobre memórias e vivências que remetem às experiências
vividas por “indivíduos comuns”, mas não menos importantes que aqueles que se destacaram e
impuseram suas habilidades no campo político e social, já que cada sujeito participa de
maneiras diferentes de sua cultura e contribui significativamente para a construção da história
18 GOES, Terezinha de Jesus Medeiros, 1971. p.55.
20
do espaço que vivifica seguindo a “lógica” do grupo social que partilha. Isso não significa dizer
que tivemos que deixar de lado as vozes destoantes que geralmente dão lugar à ambigüidade, à
polissemia e a flutuação de sentidos e significados, para jogar unicamente com uma tradição ou
ponto de vista. Nosso interesse aqui também foi confrontar memórias e tradições, ângulos de
vistas diferentes e divergentes, embora sem perder o foco na “historicidade popular”.
Assim, diante da complexidade que assume o nosso objeto, foi mister que lançássemos à
mão um recurso metodológico que nos ajudasse a pensar o tratamento sistemático de nossas
fontes. Composta por um corpus documental diversificado, nossa pesquisa percorreu um
itinerário que foi desde uma humilde oração de oratório doméstico utilizada por um devoto do
Padre Cícero e Frei Damião, transitando pelos versos proféticos de um cordel do fim do mundo
a uma cena escatológica de uma xilogravura sertaneja. Nesta trajetória, percorremos ainda
enunciados de jornais, gravuras, e velhas fotografias de álbuns de família. Visitamos memórias,
sondamos antigas crônicas, “santinhos” e canções. Desvelamos sonhos, lembranças, abusões.
Revisitamos uma “marchinha” de carnaval. O imaginário apocalíptico popular revela uma
infinidade secreta de “lugares” por onde podemos perambular em busca de seus rastros. Neste
ponto, queremos ainda esclarecer que não foi nossa pretensão que o confronto entre os diversos
tipos de fontes nos levasse a uma “verdade” sobre os fatos narrados. Apenas buscamos
encontrar outras memórias, pontos de vista e tradições.
Em relação à emergência de um tratamento especial das fontes optamos por percorrer dois
procedimentos metodológicos. O primeiro, mais convencional, se processou a partir do
cruzamento e combinação de fontes através de uma abordagem comparativa onde procedemos
cruzando fontes orais com iconográficas (a fotografia e a xilogravura) e textuais (o cordel e a
crônica jornalística), buscando discernir suas inter-relações e conexões e procurando enxergar
as distorções, consensos e conflitos nas dimensões factuais, temporais e espaciais dos
acontecimentos. Por meio deste procedimento, tornou-se possível deduzir a dimensão espacial,
social e cultural do nosso objeto, uma vez que este nos permite fazer a intersecção de fontes
derivadas de lugares distintos e divisar as distâncias e/ou as aproximações que as mantêm
conectadas a um contexto local, regional e mais além deste.
Por fim, aplicamos a metodologia da história oral por meio da gravação de entrevista
temática e da coleta de testemunho buscando estabelecer uma colônia de narradores. Nosso
itinerário geralmente seguia um traçado predefinido: inicialmente procurávamos realizar uma
visita preliminar a cada colaborador e a partir de uma conversa informal, que durava alguns
minutos, buscávamos sondar em suas memórias a presença de reminiscências que
contemplavam fatos e acontecimentos da vida individual e coletiva que, de algum modo,
21
estavam relacionados com a temática da pesquisa. Após este primeiro contato e o aceite do
entrevistado, era agendado um segundo encontro para a gravação do depoimento e elaborado
um roteiro de entrevista a partir da sondagem previamente realizada para servir de guia na
captação dos testemunhos.
Em cada roteiro de entrevista, buscou-se enfatizar a associação entre os acontecimentos
da vida pública e da vida privada por meio das narrativas individuais secundadas pela memória
de grupo privilegiando os aspectos das tradições populares construídas acerca das crenças no
fim do mundo incidentes sobre estes fatos e transmitidos entre as gerações pelos membros da
família. Nosso objetivo, com isso, era que o depoente pudesse narrar suas experiências menos
como testemunhas oculares dos acontecimentos que como parte de uma cadeia de transmissão
de seus significados, possibilitando a compreensão do seu processo de construção ou de
(re)produção pela inserção daquele na memória coletiva.
Foram entrevistados no total 18 moradores do município de Cruzeta (RN) com faixa
etária variante entre 82 e 47 anos de idade, com o propósito de identificar os processos de
ruptura e continuidade do imaginário apocalíptico popular numa escala local em subserviência
do contexto regional.19
No que tange à ideologia religiosa, todos os entrevistados demonstraram
freqüentar periodicamente a “igreja do padre” e compartilhar da cosmologia católica como a
crença no poder dos santos e em sua capacidade de operar milagres, na existência de um mundo
extraterreno habitado por entes incorpóreos e na eficácia simbólica da promessa. Mesmo entre
aqueles que se observou possuir um nível de escolaridade mais elevado, esta constatação se fez
presente.
A escolha do município de Cruzeta como lócus preferencial da pesquisa, deu-se em
decorrência deste espaço ter se constituído no lugar de experiência da infância do autor e por ter
sido ali travados seus primeiros contatos com as crenças apocalípticas populares, seja no seio
familiar ou na vivência de grupo. É por este motivo que, em grande medida, este estudo,
mantém com seu autor uma relação muito próxima de afinidade. A propósito da localização
geográfica, a cidade de Cruzeta está engastada no estado do Rio Grande do Norte, na porção
mais central do Seridó potiguar, a 231 km de Natal, capital do Estado, figurando dentre os 23
municípios que compõe a região seridoense.20
Com uma área territorial de 295km² e uma
19 No processo de tratamento com as fontes orais, optou-se pela transcrição e transcriação dos trechos das
entrevistas considerados mais importantes para a documentação e embasamento da pesquisa acompanhado de
algumas informações referentes a traços biográficos do depoente. Porém, a concessão dos depoimentos orais
carece ainda das assinaturas dos entrevistados para fim de publicação. 20
No total, a cartografia regional, historicamente construída, da região do Seridó norte-rio-grandense é formada
por 23 municípios: Acari, Cerro Corá, Carnaúba dos Dantas, Caicó, Cruzeta, Currais Novos, Equador, Florânia,
Ipueira, Jardim de Piranhas, Jardim do Seridó, Jucurutu, Lagoa Nova, Ouro Branco, Parelhas, São Fernando, São
22
população de 7.967 habitantes, segundo o último censo realizado em 2010 pelo IBGE (Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística), o município de Cruzeta, assim como toda região do
Seridó, encontra-se situado em pleno semi-árido nordestino, integrando o espaço que se
convencionou chamar de “sertão do Nordeste brasileiro”.21
(Ver imagem 01 em anexo). Ao
habitante nativo ou radicado do lugar, costuma-se denominar-se cruzetense.
O trabalho de campo buscou priorizar os cruzetenses naturalizados ou arraigados no lugar.
Dos dezoitos depoentes contatados pela pesquisa, quinze residiam no perímetro urbano e os
demais na zona rural da cidade durante a atividade de coleta de entrevistas realizada entre os
anos de 2009 e 2014, com exceção apenas de uma informante que à época encontrava-se
residindo no vizinho município de Caicó (RN).22
Apesar disso, constatou-se que foi uma
ocorrência freqüente entre eles o fato de terem vivido a infância e/ou adolescência no campo e
terem aí mantido seus primeiros contatos com as crenças apocalípticas do sertão em algum
período do interregno entre os anos 1930 e 1960. É, portanto, a este recorte temporal que
remetem as memórias coletadas por esta pesquisa, embora tenhamos que admitir que elas não
estejam apenas circunscritas a este espaço ou tempo. Entretanto, uma importante ressalva cabe
ser feita aqui. Em termos de categoria cultural, observamos que quanto mais próximo estava o
sujeito dos níveis de instrução mais elevados, menos ainda contemplava este imaginário, de tal
modo que se fazia mais presente na realidade de vida partilhada por camponeses, sitiantes e
trabalhadores rurais, grupos de indivíduos que arredados dos processos educacionais do período
mantinham vínculos estreitos com o campo.
Isto não significa dizer que abrangendo o imaginário à categoria de “popular”, este se
aplique a uma definição rígida perante a fronteira do seu oposto – o “erudito” – como é comum
aparecer nos estudos clássicos que tratam da cultura popular, nem a uma divisão imóvel de
grupos ou classes sociais bem estabelecidos. Mas abre possibilidades para que diferentes
Vicente, São João do Sabugi, São José do Seridó, Santana do Seridó, Serra Negra do Norte, Timbaúba dos Batistas
e Tenente Laurentino Cruz. (MORAIS, Ione Rodrigues Diniz, 2005, p.26). 21
Geograficamente, o Sertão nordestino é uma área de transição entre as sub-regiões do agreste (seco) e meio-
norte (úmido) e compreende a parte mais interior de praticamente todos os estados do Nordeste brasileiro. É
caracterizado por um clima tropical semi-árido (quente e seco) com pouco volume pluviométrico, solo pedregoso e
vegetação escassa e de pequeno porte onde se encontra a Caatinga. A cultura desta região está intimamente ligada
ao clima e à história de sua colonização. Foi a primeira região interiorana do Brasil a ser colonizada. Fonte:
http://www.infoescola.com. Acesso em 30 mai. 2014. 22
A informante referida trata-se da Sra. Alexandrina de Oliveira Campos, natural de Cruzeta e professora
aposentada de 73 anos que residiu na localidade até 1981, ano em que fixou residência no município de Caicó/RN.
Quanto a esta depoente percebeu-se uma particularidade com relação a outros entrevistados que permaneceram
atrelados à tradição do mundo rural, já que o acesso à formação ilustrada acadêmica e sua trajetória profissional
conduzida no interior do funcionalismo público local e dos movimentos de vanguarda como a Juventude Agrária
Católica (JAC) nos anos 1960, a levou à tomada de outra posição política que conformaram sua visão de mundo e
ideologia ainda em sua juventude. Mesmo com isto, notou-se com relação à entrevistada que não houve um
rompimento total com a cosmologia do catolicismo popular, uma vez que esta também compartilha de muitos
traços e elementos simbólicos deste universo cultural.
23
sujeitos partilhem tanto das experiências de um “campo” como do outro, deslizando por seus
domínios e fronteiras.23
Enfim, considerando a estrutura básica do trabalho, optamos por dividir este estudo em
três capítulos “interdependentes”, perfazendo uma escala que vai desde uma abordagem do
geral para o regional e deste para um enfoque mais particular do local, estabelecendo um
encadeamento que tanto uma dimensão como a outra podem aparecer imbricadas.
No primeiro capítulo intitulado Profetas e apocalípticos nos sertões do Nor(des)te,
buscamos analisar como se deu a formação do imaginário apocalíptico popular sertanejo no
espaço que hoje denominamos de Nordeste brasileiro, procurando demonstrar as influências das
diversas culturas que contribuíram na configuração deste horizonte cultural e a região do Seridó
norte-rio-grandense como parte deste processo mais amplo. Nesta contextura, destacamos as
pesquisas realizadas pela antropóloga Cristina Pompa que parte da hipótese de que os conjuntos
simbólicos de caráter apocalíptico e penitencial da religiosidade popular sertaneja nordestina
foram o resultado de uma dinâmica histórica complexa processada no “encontro” entre as
culturas indígenas e a cultura ocidental no interior do Nordeste árido. Ainda nesta tessitura,
procuramos analisar as contribuições das práticas missioneiras para a constituição do
imaginário apocalíptico sertanejo com destaque para as atuações jesuíticas e capuchinhas e para
a importância das figuras dos beatos e conselheiros na conformação de um feitio mais popular
da apocalíptica24
camponesa. Os principais autores que nos auxiliaram nesta etapa do trabalho
foram, além de Cristina Pompa, Roger Chartier, Vicente Dobroruka e Carlo Ginzburg com a
noção de seu conceito de “circularidade cultural”.
O segundo capítulo que tem por título “Até mil e tantos a dois mil não chegará”: o
Seridó no descambar das eras”, encontra-se subdividido em quatro tópicos. No primeiro
tópico, buscou-se investigar a dimensão regional que perpassa a teia do imaginário apocalíptico
popular do sertão nordestino e seus possíveis rebatimentos no território seridoense via interface
das relações inter-espaciais e culturais mantidas por suas populações no interior deste espaço.
Partindo da análise deste contexto, adentramos com o segundo tópico no objetivo
propriamente de nossa pesquisa ao refletir como o processo de modernização regional
deflagrado em escala nacional e implementado pelas elites no âmbito local implicou numa
23 É importante considerar como lembra Chartier (1995) que a categoria “cultura popular” é antes de tudo
“erudita”, pois trata-se de um conceito cunhado por outros indivíduos, dentre estes os scholar, para delimitar,
caracterizar e nomear práticas que nunca são denominadas desta forma por seus próprios atores, o que justifica o
fato destas nem sempre serem produzidas dentro de um domínio consciente dos sujeitos frente a este “outro” da
diferenciação. 24
Empregamos o termo apocaliptica conforme a concepção de Ressell (2007) para designar uma crença ou um
conjunto de crenças e condutas relativas às revelações das últimas coisas que deverão ocorrer no fim dos tempos.
24
(re)orientação do imaginário apocalíptico popular a partir do contato de suas populações com os
novos símbolos do progresso e da modernidade. Para tanto, contribuíram as formações
ideológicas constitutivas da apocalíptica sertaneja que atribuíam as “novidades da história” um
sentido escatológico. Estas formulações mentais estavam fundamentadas numa estrutura
imaginária que tinham nos medos escatológicos uma forma de manutenção de suas estruturas e
referências tradicionais, eixo temático que nos propusemos a analisar na terceira parte do
capítulo.
No quarto tópico, pretendeu-se mostrar como os “símbolos de modernidade”, ao
penetrarem as plagas seridoenses, sobretudo o espaço da cidade, não foram apropriados de uma
forma hegemônica por todos os sujeitos, significando de modos diferentes de acordo com a
“tradição” a qual se filiava seu “intérprete”. Tomando como exemplo particular o caso do
município de Cruzeta, buscou-se também demonstrar nesta fase do trabalho, como ao contrário
do que se costumava pensar nos “estudos folclóricos” ou de “cultura popular”, a propalada
“cultura de massas” não significou num conseqüente aniquilamento das formas “populares” de
cultura representadas aqui pelas expressões do imaginário apocalíptico popular, mas numa
conseqüente (re)apropriação desta a partir de “usos tradicionais” ou até mesmo numa
convivência com aquela. Nesta etapa do trabalho, foram importantes as contribuições dadas por
teóricos da cultura como Stuart Hall, Marilena Chauí e Bronislaw Baczko.
Por último, chegamos ao terceiro capítulo, em que se pretendeu analisar, com base nas
fontes orais coletadas, como os símbolos de modernidade impelidos pelo avanço da civilização
capitalista moderno-urbana ocidental com destaque para o automóvel e o avião, foram
apropriados por muitos cruzetenses a partir de um viés escatológico-apocalíptico impressos no
simbolismo da “besta escatológica”. Neste ponto, se destacou a importância das profecias
apocalípticas amparadas nos movimentos religiosos populares dos quais as Santas Missões de
Frei Damião de Bozzano e o movimento dos romeiros do Padre Cícero do Juazeiro foram os
mais importantes na construção deste processo. Propondo entender este mecanismo como parte
da experiência do “choque cultural” vivenciada pelas populações sertanejas locais frente ao
processo de modernização regional, procuramos mostrar que o “choque”, ou na melhor hipótese
o “encontro” com o elemento moderno, não implicou no fim do imaginário religioso tradicional
construído em torno das crenças no fim do mundo, mas, sim, numa transformação operada no
interior dos seus processos de produção e significação. Para a elaboração deste capítulo,
contamos com as valiosas colaborações de autores como Denis Castilho (geógrafo), Roger
Chartier, Clifford Geertz e Eni Orlandi.
25
CAPÍTULO 1. PROFETAS E APOCALÍPTICOS NOS SERTÕES DO “NOR(DES)TE”:
O SERIDÓ NA SENDA DOS MEDOS ESCATOLÓGICOS
1.1. DA “TERRA SEM MALES” DOS “PROFETAS” INDÍGENAS A CENA DO JUÍZO
FINAL: O “PROFETISMO” TUPI-GUARANI
De acordo com a antropóloga Cristina Pompa (2001), foi o sociólogo francês Roger
Bastide o primeiro a estabelecer uma correlação histórica entre raízes mitológicas indígenas e
pregação missionária no sertão ao refletir que no Nordeste seco o elemento cristão substitui aí o
elemento indígena para dar espaço a “um cristianismo de penitência e de apocalipse”.25
Antes mesmo dos missionários e visionários cristãos aportarem na Terra de Santa Cruz e
as conseqüências da conquista se fazerem sentir, os tupi-guarani, na espera de seu próprio
“milênio”, já anunciavam pela boca de seus profetas errantes, os caraíbas26
, aqueles sobre
quem os jesuítas chamavam de “feiticeiros”, um país “sem mal nem desventura”, “estimulando
os índios à purificação e preparação para a grande viagem que os levariam à “Terra Sem
Males”.27
Para Ronaldo Vainfas (1995) e Jaqueline Hermann (2000), a chegada do europeu
colonizador, a efetiva colonização portuguesa na América e o início da ação catequética dos
jesuítas no Brasil ao longo de toda segunda metade do século XVI, trouxeram para os indígenas
da nossa costa um período de intensas perseguições, privações e mesmo exterminação de
contingentes populacionais expressivos, mas também ensejaram mudanças expressivas e
profundas no conteúdo das pregações proféticas dos caraíbas, sobretudo, da crença na Terra
Sem Mal, núcleo da mitologia tupi-guarani.
Fugindo das perseguições brancas, do cativeiro, das doenças, do trabalho escravo nos
engenhos do litoral, da catequese jesuítica e orientando-se pela busca da Terra sem Mal, os
índios da costa brasílica acabariam por reordenar o sentido profético de suas crenças,
25 BASTIDE, Roger, 1973, p. 100-101.
26 Espécie de pajés ou xamãs indígenas (guias espirituais), de grau superior, possuidores de poderes mágicos, “cuja
maior virtude era a de se comunicarem com os espíritos por intermédio dos maracás (encarnação mística dos pajés)
e de transmitir esse dom a qualquer integrante do grupo por meio da defumação com a “erva santa”, como
chamaram os portugueses – na verdade o petim ou tabaco. (...) Reencarnação dos heróis da mitologia tupi, esses
líderes teriam um papel fundamental no enfrentamento dos colonizadores, nas invasões de engenhos e
principalmente no deslocamento para o interior na busca da Terra sem Mal, já que o litoral se tornara lugar de
perseguição, doença, cativeiro e morte”. HERMANN, 2000, p. 78. Para saber mais sobre o tema ver Ronaldo
Vainfas, A heresia dos índios. Catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial, São Paulo, Companhia das Letras, 1995. 27
CHAUÍ, Marilena, 2002, p.500. De acordo com Hermann op. cit. a “Terra sem Males” dos caraíbas era um
região imaginária da mitologia tupi-guarani, “que exprimia a expectativa do encontro de um lugar de extrema
abundância, felicidade e eterna juventude, morada dos ancestrais e dos espíritos corajosos, onde todos viveriam a
redenção das provações e se tornariam homens-deuses”.
26
adaptando-as às imposições da história, “tendo mesmo de inverter o sentido das migrações
rituais que faziam periodicamente, em movimento que tanto era de fuga como de readaptação
da mitologia ao novo tempo de dominação colonial”.28
Expelidos cada vez mais para o interior da colônia, os tupi-guarani levariam consigo para
regiões mais afastadas dos primeiros núcleos coloniais seus mitos e crenças tradicionais já
bastante modificados e matizados pelo contato com os ocidentais, forjando um compósito
híbrido que contribuiu para a reelaboração de seu próprio universo mítico, notadamente para a
mudança do teor de suas pregações proféticas influenciando até mesmo na concepção da
própria idéia da Terra sem Mal ao incorporar à sua mitologia sentidos que se aproximavam ao
do paraíso terreal cristão.29
Este universo já modificado da cultura nativa iria se imiscuir e
dissolver-se no interior da colônia absorvidos pela sociedade sertaneja em formação ao serem
levados pelos primeiros colonos, missionários e posseiros dos “sertões” – índios, negros,
mestiços e brancos, dentre os quais figuravam cristãos-novos degredados ou fugitivos do reino
– alimentando os sonhos da “Terra da Promissão” de seus primeiros desbravadores.
No efetivo deste processo concorreu o importante encontro entre catolicismo ibérico e
cosmologia indígena processado nos primeiros séculos da conquista, principalmente aquele
ocorrido nos domínios dos aldeamentos jesuíticos onde os gentios recebiam ensinamentos sobre
a criação do mundo e o Juízo Final e “tomavam contato com as orações cristãs e os
sacramentos”, além de aprenderem a diferença entre o paraíso e o inferno.30
Em meio a este
amálgama de crenças, Hermann31
esclarece que muitas das imbricações e hibridismos forjados
no trópico entre elementos da cultura e religiosidade européia e gentílica foram “produzidos nos
próprios aldeamentos da Companhia de Jesus, a partir do esforço dos jesuítas para traduzirem
para o gentio os princípios e ensinamentos católicos”, mas que também remetem à
complexidade dos dilemas e impasses da colonização européia na América.
Neste sentido, a autora supracitada explica que as pregações dos primeiros jesuítas e suas
traduções do catolicismo para a língua geral autóctone teriam transformado, no limite, o sonho
milenarista do Paraíso tupi, alimentado desde tempos imemoriais, em cena do Juízo Final, além
de ter adulterado e maculado a religiosidade indígena “pela inserção de princípios católicos que
tinham por fim extirpar a falsa religião gentílica”.32
Foi combinando visão escatológica e visão
pragmática da catequese que os jesuítas procuraram fazer das aldeias missionárias indígenas,
28 HERMANN, Jacqueline, 2000, p.79.
29 Idem, ibidem.
30 Idem, ibidem, p. 88.
31 Idem, ibidem, p. 90.
32 HERMANN op. cit., p.93.
27
inclusive aquelas que iam sendo fundadas nos sertões da colônia entre os séculos XVII e XVIII
(as aldeias dos “tapuias33
”), um espaço preciso para a realização de sua utopia cristã e projeto
humanístico. Crentes na certeza da iminência do fim do mundo e articulando pensamento
jesuítico aos anseios escatológicos de um sonho milenário, estes missionários esperavam
refundar, no Novo Mundo, a Igreja de Cristo, livre de corrupções e pecados e construir o Reino
de Deus na terra já na véspera do fim dos tempos, quando tivessem trazido para a Santa religião
a grande massa dos gentios.34
Mas as raízes históricas daquilo que Pompa35
chamou de “cultura do fim do mundo” não
devem ser encontradas apenas nos jesuítas e na sua modalidade de pregação missionária nos
sertões. Junto a estes, também passaram a atuar outras ordens missionárias imbuídas da tradição
profético-salvífica do Ocidente, dentre as quais merece destaque a ordem dos padres
capuchinhos que, prosseguindo com as missões inauguradas pelos jesuítas, também
desempenharam um importante papel junto à população “cabocla” até o século XIX.
1.2. MISSIONISMO E PROFECIA: JESUÍTAS, CAPUCHINHOS E “ALDEIAS TAPUIAS”
NOS SERTÕES NORDESTINOS
A ação missionária no Brasil teve início em meados do século XVI com a vinda dos
primeiros jesuítas despachados pela coroa portuguesa para dar execução aos pontos do
Regimento do governador Tomé de Souza (1548) “que tinha a conversão à santa fé católica
como razão principal da colonização do Brasil”.36
A partir disso, deram início as práticas de
catequese junto aos indígenas da faixa litorânea (os tupi-guarani) implantando as primeiras
aldeias missionárias.
Analisando as experiências missionárias jesuíticas nas aldeias, Cristina Pompa (2001)
demonstra que diversas vezes estas tiveram de ser reajustadas em decorrência de seus
resultados. De acordo com a autora, a necessidade dos missionários em utilizar os códigos
religiosos indígenas como forma de tradução dos códigos de devoção católicos contribuiu para
a formação de uma “cultura híbrida” nas aldeias que está na base da formação do “catolicismo
33 Conforme Pompa (2002), o termo “tapuia” mais que um etnônimo significava uma categoria colonial utilizada
para pensar o mundo tapuia em oposição ao mundo tupi empregado pelo colonizador português para designar o
“feroz habitante do espaço desconhecido do sertão, reino da barbárie e da selvageria” presente em toda literatura
dos séculos XVI e XVII. Segundo ainda a autora, as aldeias dos tapuias correspondiam às missões situadas entre os
cariris do sertão da Bahia e do Baixo São Francisco como constam nas comunicações jesuíticas. 34
POMPA, 2002, p.1-14. 35
Idem, 2004, p.83. 36
POMPA, 2001, p.299.
28
tapuia” nos sertões. Este catolicismo de feição mais popular, nascido de uma experiência
cultural “mestiça” nas aldeias, seria o mesmo que forneceria as bases para a construção da
“cultura do fim do mundo” e de uma “religiosidade penitencial-apocalíptica” no sertão
nordestino.
Associadas às duas principais práticas de evangelização utilizadas pelos missionários nas
regiões sertanejas, estes compósitos culturais teriam suas raízes na modalidade das pregações
jesuíticas e capuchinhas37
(ainda que também não se possa desprezar a contribuição de
franciscanos, carmelitas, oratorianos e mercedários sobre os quais pouco ainda se sabe)
empregadas nos aldeamentos tapuias e nas “missões volantes” alicerçadas na visão apocalíptica
dos castigos de Deus para os pecados da humanidade.38
Para isso contribuiria o trabalho de
“tradução do outro” e a busca por uma “alteridade compreensível” que se dava em todos os
aspectos da vida cotidiana e, de modo particular, nas práticas de devoção popular nas aldeias.39
Embora as primeiras missões catequizadoras nos sertões nordestinos tenham acontecido
ainda no século XVI com os descimentos ou as expedições rumo ao sertão40
, as primeiras
aldeias missionárias nestas regiões só foram fundadas no século XVII após a expulsão
holandesa do Nordeste, coincidindo com o período de maior recrudescimento da chamada
“Guerra dos Bárbaros”.41
De acordo com Pompa42
, a fundação dos “aldeamentos tapuias” se deu em decorrência da
mudança nos objetivos das entradas que, após um período de interrupção ocasionado pela
ocupação flamenga na região, passaram a não mais visar o descimento, “mas a cristianização e
a assistência ao gentio”.
Concomitante ao movimento de penetração colonial nos sertões nordestinos, as
expedições missioneiras tomaram duas frentes de entradas. Partindo da Bahia pelo São
Francisco, “foi aberto, no século XVII, o caminho para o sertão do Piauí (o caminho das
37 Tanto Pompa (2001) quanto Arraes (2012) esclarecem que a escassez de fontes referentes à atuação de outras
ordens missionárias nos sertões nordestinos (franciscanos, mercedários, oratorianos e carmelitas) não permitem
que estudos mais aprofundados sobre elas sejam realizados, voltando quase todas as pesquisas de vulto para a
análise das missões jesuíticas e capuchinhas nestas regiões sobre as quais a documentação é mais abundante. 38
POMPA, op. cit. 39
Idem, 2001, p.89. 40
No contexto da colonização, “sertões” era um termo utilizado pelos colonizadores portugueses para designar as
“terras sem fé, lei ou rei”, significando as “áreas extensas afastadas do litoral, de natureza ainda indomada,
habitadas por índios ‘selvagens’ e animais bravios, sobre as quais as autoridades portuguesas, leigas ou religiosas,
detinham pouca informação e controle insuficiente”. (AMADO, 1995, p.48). Daí porque nos documentos jesuíticos
o termo “tapuia” era utilizado para fazer alusão aos “índios selvagens” habitantes destas regiões ignotas. 41
ARRAES, D. E. Araújo, 2012. “Guerra dos Bárbaros” ou “Confederação Cariri” são expressões utilizadas pela
historiografia para referir-se aos conflitos, rebeliões e confrontos envolvendo os colonizadores portugueses e várias
etnias indígenas tapuias que tiveram espaço no processo de conquista dos “sertões” das capitanias do Nor(des)te
do Brasil entre 1683 e 1697. Alguns historiadores preferem tratar estes fatos como um movimento de resistência
dos indígena contra o ataque e a invasão dos homens brancos aos territórios nativos. 42
POMPA, 2001, p.323.
29
boiadas) e, através deste último, para o Maranhão e a Serra de Ibiapaba, no Ceará”43
. Do
Pernambuco, partiram de Recife atravessando Olinda e Goiana e se espraiando pela Paraíba e
Rio Grande alcançaram os sertões longínquos do Açu, do Apodi e do Seridó, onde fundaram
alguns aglomerados indígenas “para a cristianização dos índios das nações Janduí, Icó e Paiacú”
no início do século XVIII.
As primeiras aldeias jesuítas na região sertaneja foram fundadas nos três últimos decênios
do século XVII no baixo-médio São Francisco, próximas aos aldeamentos capuchinhos onde os
missionários inacianos procuraram desenvolver com os silvícolas tapuias as mesmas práticas de
catequese já aplicadas nas aldeias do litoral. Do mesmo modo também ocorreu com os
capuchinhos que, penetrando, o interior de Pernambuco e Paraíba, iniciaram sua obra de
catequese naquela região.44
As escavações realizadas por Pompa (2001) na documentação resultante destas
experiências missionárias delatam a presença de alguns elementos significativos da catequese
na construção do horizonte penitencial-apocalíptico do sertão. O primeiro elemento que a
autora destaca é a centralidade do castigo como meio de garantir o cumprimento das leis
nascido junto às aldeias e ao projeto de humanização missionária. Através dos castigos físicos
aplicados aos infratores, os padres buscavam transformar os “selvagens” em “homens”
intentando torná-los bons cristãos. Sua ausência entre os índios era vista como sinal de
selvageria.
Mas os elementos que a autora enfatiza como sendo de uma maior importância na
construção do penitencialismo e, por conseguinte do horizonte apocalíptico do sertão são
aqueles que Pompa encontrou na simbologia das pregações e liturgias da empreitada
catequética que os missionários filtraram de práticas que já existiam no universo simbólico
indígena e que também eram de competência xamanística: a confissão ou aquilo que os padres
entendiam como sendo uma confissão praticada pelos indígenas, a cura de doenças e o
exorcismo (o afastamento do “diabo”) e, sobretudo a dádiva da profecia e a capacidade de fazer
chover que eram as duas prerrogativas capitais dos “feiticeiros” indígenas ou xamãs.
A respeito do poder divino de “fazer chover”, Cristina Pompa (2001) relata que os
missionários acabaram por assumir diante dos indígenas sertanejos (cuja maior preocupação era
com a falta de chuva) um poder extraordinário, assumindo a posição intermediária entre Deus e
os índios e sendo considerados por estes como os únicos capazes de impetrar a salvação.
Investido da dádiva da profecia, os padres se transformaram para os gentios nos “profetas da
43 Idem, ibidem, p.323-324.
44 Idem, ibidem, p.305.
30
morte”, ameaçando com terríveis castigos àqueles que não se submetessem às suas exortações e
substituindo os xamãs (agora “traduzido” como o “agente do demônio” ou o “símio de Deus”)
no papel de “enfermeiros e curadores”, mas também de obreiros de doenças.
Todavia, o elemento que mais contribuiu para a construção do imaginário apocalíptico
sertanejo foi sem dúvidas o teor penitencial das pregações catequéticas dos missionários – em
especial aquele utilizado pelos frades capuchinhos nas “missões volantes” ou “populares” –, por
meio do qual estes procuravam enfatizar a punição e o castigo de Deus para os pecadores que
não se convertessem.
1.3. A MENSAGEM “APOCALÍPTICA” DOS CAPUCHINHOS E AS “SANTAS MISSÕES
POPULARES”
As “missões volantes” ou “itinerantes” dos capuchinhos pelos sertões do Nordeste,
também chamadas de “santas missões populares”, foram o ponto alto da presença missionária
nos povoados, vilas e cidades sertanejas e se estenderam ao longo do período imperial e início
da República.
Assim chamadas pelo seu caráter transitório, estas faziam alusão ao período de uma ou
duas semanas que estes missionários permaneciam em alguma comunidade para a realização de
seu apostolado que visava especialmente levar o conforto espiritual e material as populações
menos assistidas, despertar e alimentar a fé dos cristãos desviados frente ao avanço de outros
credos (do protestantismo, por exemplo) e convidar ao arrependimento e a conversão o pecador
inveterado.
Além destas finalidades mais estritas aos aspectos morais e espirituais, as missões
populares acabaram se configurando num verdadeiro “marco civilizatório”, uma vez que “ao se
colocar à frente do processo de avanço das boiadas e tropas sertão adentro”, esses missionários
também realizavam obras de utilidade púbica, construindo e reconstruindo capelas, asilos,
cemitérios, açudes, estradas e “envolvendo nesses gestos significativa parcela da população”, o
mutirão.45
Em suas andanças e apostolado pelos sertões, os frades capuchinhos também retomaram
dos jesuítas a sua tradição de rituais penitenciais e sermões apocalípticos46
, pregando o Fim do
Mundo e incentivando a autoflagelação, o jejum, a esmola e a mortificação do corpo e fazendo
das santas missões um instrumento de inculcação de uma forma determinada de representação
45 POMPA, 2004, p.87; SAMPAIO, Wilson Correia, 2011, p.112.
46 POMPA, 2004, p.87.
31
do mundo que caminhasse em consonância com a ideologia católica.47
Instituída sob os ditames do Concílio de Trento (1545-1563) como reação à Reforma
Protestante, as santas missões populares foi uma forma encontrada pela Igreja Católica de
aproximar as massas populares de seus trabalhos pastorais, podendo ser ajustada a realidade
local à medida que se fazia seguindo várias etapas e métodos.
Em sua estrutura básica, a santa missão durava de oito a dez dias. Na noite da
chegada, pregava-se o “sermão forte”, que devia “mostrar a gravidade do
pecado, a essência da ofensa a Deus e suas conseqüências no plano social, a
visão exata dos castigos eternos”, e em seguida havia confissões que se
prolongavam, durante a noite, enquanto o povo entoava benditos. [...] O ponto
alto da missão era a procissão de penitência, em que missionários e fiéis
perfaziam longos trajetos em meio à pregação (centradas nas idéias de castigo,
inferno e apocalipse) e muitas confissões (com base nas quais, como no tempo
dos jesuítas, era feita a avaliação da missão)”.48
A presença destes religiosos nos lugarejos era sempre recebida com forte fervor religioso
em que, além das pregações e das práticas oficiais litúrgicas conduzidas pelos frades (as missas,
as confissões e as homilias) também havia espaços para as formas de piedade popular que eles
traziam e estimulavam entre o povo (as devoções aos santos, o culto às almas do purgatório, os
sacrifícios, as romarias, as procissões, os oratórios caseiros e as esperanças de milagres),
criando uma atmosfera espiritual mística que propiciava a emergência de uma cultura
apocalíptica e messiânica.49
Diante deste quadro, dois foram, portanto, os motivos principais que concorreram para
um maior êxito da catequese “volante” dos capuchinhos entre as populações sertanejas do
século XVIII e XIX: a crescente “urbanização” pelas quais passavam as freguesias, vilas e
cidades neste período, muitas das quais tiveram seus núcleos urbanos nos aldeamentos
missionários de outrora ou nas fazendas de criar gado, permitindo juntar em seus redutos um
maior aglomerado de pessoas50
; e o método de pregação missionário utilizado por estes frades
para catequizar as massas populares que consistia na obtenção das grandes conversões coletivas
à semelhança daquele empregado por seus irmãos de hábito, os frades Menores Franciscanos,
nas cidades medievais muitos séculos antes.
A estes dois motivos cruciais ainda se junta a situação de extremo “abandono” as quais
viviam as populações arredias destes chãos sertanejos onde a presença eclesiástica se fazia
titubeante e mitigada fazendo com o que um número maior de fiéis conhecesse quando muito o
serviço temporário de um cura na ocasião em que este passava em desobriga pelos pequenos
47 SAMPAIO, W. C., 2011, p.109-110.
48 POMPA, op. cit., p.86.
49 HERCULANO, E. de Oliveira; SANTOS, Ivanildo G. dos, 2011, p.54.
50 ARRAES, 2012.
32
arraiais e fazendas, atendendo às necessidades espirituais de sua clientela e distribuindo os
sacramentos pelos sertões.
Este fator, aliado ao prestígio de santidade e de conduta ascética que os frades acabavam
auferindo destas populações, nos ajuda a entender o motivo pelo qual as missões itinerantes
foram recebidas com muito entusiasmo e veneração nos lugarejos mais afastadas dos centros
urbanos, onde a presença clerical e a assistência espiritual eram escassas e inconstantes. Neste
ponto, não podemos esquecer que o fim da experiência missionária nas aldeias do sertão
[...] legou um horizonte espiritual inédito, que os índios carregaram consigo ao
se misturar com o resto da população e ao construir junto com esta a “cultura
cabocla”, notadamente a partir do projeto de integração dos indígenas à
população rural estabelecido pelo Diretório Pombalino, em 1757.51
Este processo contribuiria para que a mensagem “apocalíptica” dos capuchinhos a quem
os nativos atribuíam o poder de cura, vidência e profecia desde os tempos das aldeias, fosse
recebida com credulidade e temor neste meio social.
Mas foram, de modo particular, as imagens evocadas nas mensagens apostólicas
capuchinhas, especialmente aquelas de cunho escatológico-apocalíptica utilizadas pelos frades
para incutir o temor nos fiéis e conseguir seus intentos, que as populações sertanejas puderam
“filtrá-las” e (re)modelá-las em seu imaginário tradicional. Utilizando um discurso simples,
claro e persuasivo, os “frades barbadinhos”, como também eram chamados os capuchinhos por
envergarem barbas longas, recorriam a diversos recursos que colaboravam com a depreensão de
seus conteúdos pelo auditório de nível mais frustre, coroando de certo êxito a sua pedagogia do
medo.
A preferência pelas vilas e pacatas cidades sertanejas, também se dava em decorrência de
uma mensagem a transmitir. Como zelosos da moral cristã e guias de almas, os capuchinhos
viam a vida nos “antros urbanos” um estímulo a mais para os vícios e pecados denunciando
com cólera dos púlpitos as “imoralidades” dos homens do sertão e ameaçando com o fogo do
inferno os “escandalosos”, o que acabava arrancando comoção e provocando alarme na
assistência numerosa.
O medo do castigo eterno era acrescido ainda mais com as descrições atemorizantes que
faziam, não poupando da lembrança a evocação de diabos pretos com espeto na mão, usando
chifres e cauda alongada a assar os condenados em seus caldeirões infernais, imagens que os
missionários de outros tempos já empregavam na catequese como “arma poderosíssima” de
evangelização.52
Só para os conversos e arrependidos estava garantido o refrigério do céu.
51 POMPA, 2004, p.84.
52 SOUTO MAIOR, Mário, 1975, p.17.
33
Um trecho trazido pela Missão Abreviada do Padre Manuel Jose Gonçalves Couto de
1868 – livro de meditações piedosas encontrado nas fazendas do Nordeste brasileiro do século
XIX e referência fundamental para a pregação capuchinha – deixa entrever o destino medonho
do pecador depois da morte:
Considera, peccador, que o Inferno é um logar [sic.] no centro da Terra; é uma
caverna profundíssima, cheia de escuridão, de tristeza e horror; é uma caverna
cheia de labaredas de fogo e de nuvens d’espesso fumo. Lá, são atormentados
os peccadores na companhia dos demonios; lá estão bramindo e uivando como
cães damnados, proferindo terríveis blasphemias contra Deus”.53
Além da danação no Inferno, a morte e o Juízo particular e o final eram outros temas de
predileção dos capuchinhos, como lembra Vittoriano Regni (1991) e estes eram sempre
utilizados nos “sermões fortes” para fazer ojeriza ao pecado e convencer o pecador sobre a
gravidade e a urgência da reparação de sua culpa. Diante do supremo juiz, nenhum pecado
passará impune e, além disso, fica o pecador na incerteza quando e em que hora chegará o seu
dia de prestar contas ao Altíssimo, pois a qualquer momento poderá soar a última trombeta ou o
cristão ser levado em débito perante a justiça divina e já não haverá mais tempo para o
arrependimento. Outro trecho citado na Missão Abreviada ilustra com propriedade como este
tema era empregado pelos capuchinhos nas missões.
Que confusão, e que horror será o teu, peccador, se quando compareceres em
juízo ainda estiveres em peccado mortal? Oh! Quão grande será o teu susto e
assombro quando os teus olhos se encontrarem com aquella divina face, em
que descarregaste tantas e tão grandes bofetadas, isto todas as vezes que
commetias as culpas?[...] O juiz que há de julgar-te é um Deos Omnipotente,
um Deos por ti offendido e maltratado, por ti desprezado, e até crucificado...
Oh! Quanto Elle estará irritado contra ti, peccador! Os seus divinos olhos
estarão lançando faíscas de fogo contra ti. As suas mãos estarão cheias de raios
contra ti. O seu semblante estará scintillando furor contra ti. Só a sua vista
irada é bastante para reduzir-te a cinzas.54
Diante desse quadro arrepiante, o Juízo Final era tomado como um acontecimento
terrível, babélico, desolador e humilhante para o cristão desobediente, o Dia da Ira do Senhor,
em que Este, por meio de redemoinhos de fogo, reduzirá o mundo à cinzas com todos os seus
viventes e conduzirá para o céu apenas os bons cristãos, enquanto os pecadores serão
precipitados no inferno (onde haverá choro e ranger de dentes) para sofrerem com os demônios
o castigo incessante. Também não faltavam neste cenário sinistro alusões a Besta-fera e ao
Anticristo (por vezes tratados como o falso profeta, o “Grande Ímpio”, o filho do Diabo com
quem se assemelhará na aparência) e os seus asseclas (os encarregados da besta), figuras que
muito em breve deverão aparecer para seduzir o cristão, cometer abominações e obrigar-lhe a
53 COUTO, M. J. Gonçalves, 1868, p.78.
54 Idem, ibidem, p.66-67.
34
prestar culto. A Missão Abreviada está impregnada destes personagens apocalípticos de onde os
capuchinhos retiravam boa parte da cerviz imaginária de suas pregações.55
O dia em que tudo isso acontecerá, certamente, não estaria longe e os frades anunciavam
com estampido os “sinais do Fim do Mundo” que já atestavam sua iminência no meio do povo:
a seca devastadora e reentrante, a miséria, a peste assoladora, a fome, a violência entre irmãos e
parentes, as falsas doutrinas e os desregramentos morais, muitas vezes interpretados como
conseqüências dos pecados humanos ou agentes da ira divina. Tudo era exposto num clima de
iminência do fim do mundo em que o cristão pecador era impelido a confessar suas faltas. Um
trecho da parênese sobre o Juízo Final e a Grande Tribulação de frei João Batista de Cingoli
demonstra como os capuchinhos se utilizavam da simbologia apocalíptica para obter seus
intentos:
Talvez não tarde muitos annos; se o Antichristo não anda no mundo, andão já
os seus precursores a preparar-lhe o caminho; os inimigos do Apocalipse
parece que estão quase desenvolvidos; tudo vai mostrando proximo esse dia.
Que fareis pois, peccadores? Em que vos fiaes, para andar no peccado? Ora,
basta de peccar. Cuidemos bem em nos salvar e cuidemos logo, que talvez, é
myster confessal-o, aqui estarão [sic] muitos que não [haverão] de chegar a
ouvir outro sermão do Juizo Final.56
A prática das longas confissões certamente exercia uma importante função na sermonária
capuchinha, pois através delas os missionários podiam tomar conhecimento das mazelas morais
e sociais que infringiam as comunidades e assim, denunciá-las nos púlpitos.
A aura de misticismo e apocalipse que geralmente envolvia as missões populares e
permeava as atividades religiosas da região acabava fomentando “ainda mais a geração de
crenças supersticiosas e escatológicas que encontravam apoio no fértil terreno formado pelas
crenças populares”.57
Este horizonte místico contribuía para que as revelações anunciadas pelos
missionários fossem recebidas pelo povo como virtude divina da capacidade dos frades de
prever e profetizar o futuro, operar milagres e desvelar pecados ocultos, atributos pelos quais
ficariam celebrizados nos sertões nordestinos.
No rol dos grandes profetas e taumaturgos do Nordeste, Cascudo (2002) menciona Frei
Vidal de Frascarolo ou frei Vital da Penha (1780-1820), “capuchinho bradador e fervoroso”,
que missionou entre as regiões do Pernambuco e do Ceará no início do século XIX, inclusive
com passagem pelo sertão do Rio Grande do Norte, a quem lhes fora atribuída, depois de sua
morte, diversas profecias, muitas das quais continuaram circulando de forma impressa ou na
memória popular por mais de cem anos.
55 CUNHA, Tatiane de Oliveira da, 2011.
56 COSTA E SILVA 1982 apud. COSTA, V. Marinho, 2008, p.29.
57 PAZ, Renata Marinho, 1998, p.42.
35
Outro capuchinho com fama de vidente e milagreiro que pregou por quase todo o
Nordeste brasileiro foi Frei Serafim de Catania (1811-1887), sobre quem Cascudo diz ter
deixado “profecia lida e copiada” na segunda metade do século XIX, algumas das quais de
circulação entre os seridoenses.58
O conteúdo destas profecias geralmente dizia respeito a previsões de eventos futuros ou
aos acontecimentos dos últimos tempos que certamente causava impacto na imaginação popular
e acabava amalgamando-se de diversas maneiras ao imaginário apocalíptico do sertanejo:
guerras sangrentas e de inquietações, catástrofes naturais (enchentes ou secas devastadoras),
aparição de sinais tenebrosos no céu (o escurecimento do sol e da lua, a passagem de cometas e
perturbações nas estrelas), condutas desafiantes dos sexos (a ascensão da mulher e a moda
“escandalosa”), revoluções sociais e políticas (o retorno de d. Sebastião59
e o reino do
Anticristo, da Besta-fera e do Papa do fim das eras), novidades aterradoras (a invenção do avião
e o transplante de vísceras humanas), prazo cronológico até a Era dos XX e, etc.
Todo este temário contado e recontado nas “profecias apocalípticas” que circulavam o
sertão adentro fazia parte de tradições proféticas mais antigas (algumas delas milenares) que o
colonizador europeu trouxe para o Brasil e os missionários, difundindo-as pelos quatro cantos,
cuidaram em resignificá-las a um novo contexto e aos novos tempos.
Talvez o rumor prodigioso e cabalístico que as profecias do Fim do Mundo granjearam no
tecido cultural do sertão esteja no fato de que, além do vulto enigmático e solene a quem eram
atribuídas (o beato ou o frade missionário com fama de “homens santos” que lembrava a figura
de um profeta bíblico), estas também encontrassem respaldo na mesma teia discursiva que
moldou o imaginário apocalíptico do sertanejo – a literatura popular “laica” na sua forma oral,
tradicional e Popular a exemplo do Lunário Perpétuo60
(livro em formato de almanaque de
quem o sertanejo se servia para fazer seus prognósticos sobre o tempo e orientar-se sobre os
mais variados aspectos da vida) e a literatura sagrada com seus “livros de oratório” (a Bíblia, a
Missão Abreviada, dentre outros).61
58 CASCUDO, Câmara, 2002, p.458.
59 Nome do lendário rei português morto na batalha de Alcácer-Quibir contra os árabes, em 1578, em torno do qual
surgiria o mito do sebastianismo (crença messiânica adaptada às condições lusas e à cultura nordestina brasileira
que consiste na espera escatológica do rei “Encoberto” ou “Desaparecido” que cessará no fim dos tempos). 60
De acordo com Cascudo (2000) que também mantinha um exemplar da obra em sua mesa de cabeceira, o
Lunário Perpétuo foi o livro mais lido nos sertões do Nordeste brasileiro durante dois séculos e era volume
indispensável na “Biblioteca do sertão”. Dele também se utilizavam os cantadores populares para fabricar seus
versos, “cantar teoria” e se informar sobre gramática, história e doutrina cristã, gozando entre os sertanejos a
mesma força que as “escrituras santas”. (MEDEIROS FILHO; FARIA, 2001). 61
ARAÚJO, Douglas, 2006.
36
No final do século XIX, com a intensificação da chamada “romanização”62
do catolicismo
brasileiro nos sertões nordestinos, as “santas missões” capuchinhas passaram a ser alvo de
censuras por parte do clero mais ortodoxo da Igreja que via em muitas de suas práticas
devocionais uma “fonte de fanatismo e ignorância” que se devia antes argüir que incentivar.
Estas práticas que, até meados do século XIX compunha essencialmente o edifício do
catolicismo popular63
de influência colonial lusitana e af,ro-ameríndia (as procissões de
penitência, a autoflagelação, a devoção aos santos, o culto aos mortos, os sacrifícios corporais e
dentro deste conjunto, as crenças “supersticiosas” e escatológicas sobre o Fim do Mundo), eram
aquilo que a Igreja romana pretendia, em parte, combater ou pelo menos corrigir os excessos
com sua política de reformulação eclesiológica “mais atentas às diretrizes tridentinas do
catolicismo europeu do século XIX”.64
Com isso, não pretendemos dizer que as missões populares deixaram de ser incentivadas
ou que ao se utilizarem dos sermões com temas apocalípticos, os capuchinhos acabaram
abandonando o território da ortodoxia. Ora, a ênfase dada aos temas do Juízo particular e Final
em suas prédicas fazia parte de uma estratégia de pregação missionária que operava em
consonância com esta própria ortodoxia, uma vez que estes missionários buscavam explorar
nestas temáticas uma forma de “melhor articular as dimensões individual e coletiva da
escatologia cristã” e assim difundir na assistência um “pesado sentimento de culpabilidade” que
era “vertido em terror, vergonha, dor e, sobretudo, na certeza da punição”, tão necessária à
conversão pessoal e, portanto, a salvação de cada alma.65
Mas, ao aludir a passagens e figuras
relacionadas aos últimos tempos e associá-los a outros personagens e acontecimentos da
história, os capuchinhos acabavam, sem perceber, adentrando no território do passível de
repreensão.66
Desde a Antiguidade tardia com Santo Agostinho (c. 354-430 d.C) e Ticônio (c. 330-390
62 Com base no estudo realizado por João Everton da Cruz (2010, p.19) entendemos por “romanização” do
catolicismo brasileiro, “o movimento de reestruturação interna da hierarquia eclesiástica com a finalidade de
reforçar seu poder espiritual, reafirmando os cânones de fé e moral, uma vez que perdeu seu poder secular devido à
separação entre Igreja e Estado. O objetivo é de modelar o catolicismo brasileiro conforme o esquema “romano”,
implicando num rigor doutrinal, moral e hierárquico. Esse catolicismo teve como principais divulgadores os
religiosos missionários” e pode ser datado a partir de 1858. Entretanto, é importante observar como fez Renata
Marinho Paz (1998, p.24) que a romanização não tratou apenas de “um processo de transformações religiosas
correspondentes ao interesse do clero em assegurar sua ascendência sobre os leigos”, mas viabilizou-se “em boa
medida a partir das mudanças estruturais provocadas pela instauração do capitalismo agrário no Brasil no final do
século XIX”. Sobre esta questão ver OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Religião e dominação de classes: gênese,
estrutura e função do catolicismo romanizado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1985. 63
Estamos utilizando o conceito de catolicismo popular conforme defendido por Maués, 1987 apud. Paz, 1998,
p.37 como um “conjunto de crenças e práticas socialmente reconhecidas como católicas de que partilham,
sobretudo os não especialistas do sagrado, quer pertençam às classes subalternas ou às classes dominantes”. 64
BRAGA, Antônio Mendes da Costa, 2008, p.54. 65
COSTA, V. Marinho, 2008, 30. 66
Idem.
37
d.C), os defensores de uma Igreja ortodoxa vieram trabalhando no sentido de dar ao Apocalipse
interpretações mais espiritualizadas, buscando refrear, em muitos aspectos, aquelas explicações
que levavam em conta a sua literalidade.67
Do esforço desta disputa exegética, surgiram no
cerne da doutrina cristã ocidental duas tradições opostas de compreensão do Apocalipse: uma
de vertente mais espiritual e eclesiológica adotada pela Igreja como doutrina oficial (a
escatologia individual que o “catolicismo universalista” tridentino do século XIX retomaria em
seu projeto de reforma religiosa no Brasil) e a outra, mais literal e concreta de posição mais
heterodoxa (a escatologia coletiva preocupada em desvelar no simbolismo do livro os
elementos que identificassem eventos, personagens e acontecimentos objetivos revelados na
história).68
Era, no entanto, na esteira de uma utilização ortodoxa e heterodoxa do imaginário
baseado na expectativa dos últimos dias, entre os limites do que se podia ou não crer, que os
capuchinhos muitas vezes faziam pender a sua parenética. Ao fazer pender a balança de suas
pregações em favor da escatologia coletiva, os missionários geravam ocasiões de descontrole da
religiosidade e da sociabilidade em sua assistência que traziam à tona alternativas de vivência
religiosa consideradas pela Igreja docente como “deletérias” à salutar devoção dos fiéis, motivo
pelo qual os poderes eclesiásticos passaram a exigir dos frades a imposição de freios em seus
sermões apocalípticos.69
Diante disso não fica difícil imaginar que o revestimento arrebatador que faziam das
santas missões populares um terreno sagrado para o mundo transcendental dos fiéis – a aura
mística das mensagens proféticas e penitencial-apocalípticas dos capuchinhos – foi o que mais
se esvaziou ou perdeu tom com a romanização do catolicismo popular nos sertões do Nordeste,
embora ainda encontremos em pleno século XX, um missionário capuchinho da envergadura de
Frei Damião de Bozzano (1898-1997) pregando pelos tabuleiros sertanejos rudimentos da
Missão Abreviada. No espaço circunscrito ao município de Cruzeta (RN), ele estaria por
algumas vezes no decurso do século XX.
Mas o que uma vez havia sido semeado na imaginação dos fiéis encontrou nas novidades
da história novos sentidos para se propagar. No ocaso do século XIX, quando as missões
capuchinhas começaram a declinar e as novas forças ideológicas e produtivas estreavam o
drama da “modernidade” no mundo rural, a teia que mantinha aceso o imaginário apocalíptico
67 Geralmente, se costuma dividir em duas vertentes gerais ou tradições teológicas as leituras que os Pais da Igreja
fizeram do Apocalipse: uma de cunho mais literal devedora a Jerônimo (c. 345-420 d.C) que não colocava dúvida
quanto a objetividade dos eventos profetizados para o futuro; a outra de natureza mais “espiritualizada” que
considerava o livro da Revelação não profetizador de pessoas e eventos históricos específicos originada da tradição
ticoniana-agostiniana. Durante sete séculos esta última tradição dominou as interpretações latinas do Apocalipse
tornando-se a doutrina oficial da Igreja no que tange a este assunto. (MCGINN, Bernard, 1997). 68
DOBRORUKA, Vicente, 1997, p.65-66. 69
COSTA, op. cit., 2008, p.34-3.
38
sertanejo já estava bastante estabelecida na região como confirmam os diversos “movimentos”
ou manifestações das religiosidades populares ocorridos no Nordeste.70
Contudo, este processo histórico de construção cultural que denominamos de “imaginário
apocalíptico popular sertanejo” estaria incompleto se não considerássemos neste estudo a
contribuição do “profetismo marginal”71
dos beatos, aqueles sujeitos que, tendo se originado
nos setores mais humildes da população, seguiram as pegadas dos missionários dos sertões, se
apropriaram de muitos aspectos de seus discursos e os traduziram para a linguagem popular.
1.4. BEATISMO NOS SERTÕES DO NOR(DES)TE: O APOCALIPSISMO POPULAR
SERTANEJO
Os mais de dois séculos de atividade missionária nos sertões do Nordeste que alcançaram
seu apogeu com as missões itinerantes capuchinhas no século XIX foi tempo suficiente para
que o cimento da ideologia católica se consolidasse na região e marcasse com seus caracteres
simbólicos as expressões culturais, os processos formativos e o imaginário social de suas
gentes. À margem desta ação eclesiástica canônica, peregrinaram os beatos72
, que, seguindo os
passos dos missionários, ergueram um catolicismo de feitio mais popular cuja marca
emblemática foi o beatismo.
Inspirado no modelo da atividade missionária, o beatismo se materializava em ações
coletivas como a construção (ou reconstrução) de igrejas, cemitérios, barragens e capelas “em
trabalho de mutirão” que geralmente envolvia uma “parcela significativa das populações dos
lugarejos onde atuavam”, sem que para isso fosse necessária a presença mediadora de um
agente eclesiástico (o cura, o missionário ou o capelão) como ocorria nas “obras civilizatórias”
do catolicismo missioneiro.73
Além destes atos de caráter mais coletivo, o beatismo envolvia as ações voluntárias dos
70 Como exemplos, podemos citar os casos do Rodeador (1818-1820) e Pedra Bonita em Pernambuco (1836),
Canudos na Bahia (1896-1897) e Juazeiro no Ceará (1889-1934). 71
Esta expressão foi utilizada por Sampaio (2011) para fazer alusão ao movimento dos beatos nos sertões
nordestinos. 72
De acordo com MONTENEGRO 1973 apud. POMPA, 2004, p.79, o beato é “[...] um sujeito celibatário, que fez
votos de castidade (real ou aparentemente), que não tem profissão porque deixou de trabalhar e que vive da
caridade (Xavier de Oliveira). [...] passa o dia a rezar nas igrejas, a visitar os enfermos, a enterrar os mortos, a
ensinar orações aos crédulos, tudo de acordo com os preceitos do catecismo (M. Diniz). [...] Há beatos que pedem
esmola, que são sustentados por outrem e que vivem por conta própria, do trabalho nos sítios (F. Bartolomeu). [...]
Veste à maneira de um frade: uma batina de algodão tinta de preto, uma cruz às costas, um cordão do São
Francisco amarrado na cintura, uma dezena de rosários, uma centena de bentinhos (R. de Souza Carvalho)”.
Geralmente “marginais, solitários, pobres, freqüentemente errantes”, os beatos “vivem uma experiência absoluta
do sagrado. Sua especialização nas Escrituras e suas pregações ao “povo crédulo” suprem a crônica falta de padres
de que padece a devoção sertaneja”. 73
SAMPAIO, Wilson Correia, 2011, p.129.
39
beatos, penitentes e peregrinos, “homens do povo oriundo das camadas sociais desassistidas,
ou, quando muito, da pequena propriedade rural ou do pequeno comércio”74
, que se dedicavam
a execução de atividades paralitúrgicas nos vilarejos onde assistiam rezando, benzendo,
pregando e curando, além de desempenharem funções como a de realização de cultos e o zelo
de capelas e santuários, embora não tivessem autorização eclesiástica para distribuir
sacramentos.75
Não obstante sua função social expressa nas obras de trabalho comunitário, o beatismo
não se caracterizava apenas na execução de ações localizadas. Um de seus aspectos mais
dinâmicos estava no seu caráter ambulante que às vezes podia assumir a aparência de uma
verdadeira “cruzada missionária”, em que bandos de beatos e penitentes saiam em peregrinação
pelos sertões adentro pregando, mortificando-se com autoflagelação, jejuando e esmolando
enquanto percorriam os itinerários que ligavam vilas e povoados outrora palmilhado pelos
missionários. Este movimento que recebe o nome de “profetismo marginal” por atuar, em regra,
às margens do catolicismo oficial, é de fundamental importância para a compreensão do nosso
objeto porque nos ajuda a entender como se deu a recepção do universo simbólico do
Apocalipse por parte das populações mais humildes e arredadas dos processos eruditos de
formação, contribuindo para a conformação de um imaginário apocalíptico de gradação mais
popular na cultua bíblica do campesinato nordestino. Mas, antes de adentrarmos nesta questão
teceremos algumas considerações acerca de seus principais agentes construtores: os
missionários e os beatos.
Embora compartilhassem de uma mesma base ideológica de concepção de mundo (a
tradição católica herdeira especialmente do patrimônio simbólico judaico-cristão do Ocidente),
missionários e beatos se diferenciavam pelas formas específicas de apropriação deste universo
cultural que os levavam a atuar em barricadas diferentes como arautos da ideologia Católica.
Daí ter-se de um lado o missionário atuando no interior das diretrizes ortodoxas da Igreja com
sua formação erudita e intelectual reproduzindo o conhecimento institucionalizado e
especializado nas Escrituras Bíblicas e na doutrina católica e, do outro os beatos que embora
tivessem algum acesso aos textos sagrados e gozassem de alguma experiência escolar76
, eram,
em sua grande maioria, analfabetos educados no conhecimento empírico das tradições
domésticas e da cultura oral de grupo fazendo com que compartilhassem do universo simbólico
74 Idem, p. 98.
75 PAZ, Renata Marinho, 1998, p.22.
76 SAMPAIO (2011, p.99) alude o exemplo de Antônio Conselheiro que antes de entregar-se a vida errante de
beato “teve razoável formação escolar, aprendendo, na escola do professor Manuel Antônio Nobre, aritmética,
geografia, francês e latim”, embora também fosse educado num meio permeado pela literatura oral e popular que
circulava nos sertões nordestinos em sua época.
40
do catolicismo popular mais próximo da sua práxis cotidiana.
É importante pensar como Renata Marinho Paz (1998), que, embora os missionários e os
beatos atuassem em trincheiras diferentes do catolicismo, estas não eram opostas ou estanques,
mas se moviam em regime de complementaridade operando como sistemas simbólicos
intercambiáveis ainda que não omitissem campos de tensões entre si. Foi percebendo este frete
de possibilidades de atuações que os capuchinhos assumiram preferência pelas missões dos
sertões colocando-se como mediadores culturais entre uma Igreja institucionalizada e o
universo simbólico das tradições de homens e mulheres comuns de quem também partilhavam
certas concepções de mundo e costumes religiosos. Por outro lado, esses homens comuns
personificados na pessoa do beato viam na figura do missionário, em suas mensagens, atitudes e
“costumes austeros” uma forma de enunciar e reafirmar suas identidades ainda que esta se
fizesse numa interação entre “veneração” e “medo”77
, mesclando fragmentos de seus discursos
ao seu patrimônio religioso comum que não se dava unicamente por meio de um dispositivo de
imposição ou aculturação, mas se fazia num processo de aglutinação, deformação e
reelaboração contínuos numa relação de circularidade.78
Diante disso, Roger Chartier (1995) traz uma importante contribuição ao refletir que:
É [...] inútil querer identificar a cultura popular a partir da distribuição
supostamente específica de certos objetos ou modelos culturais. O que
importa, de fato, tanto quanto sua repartição, sempre mais complexa do que
parece, é sua apropriação pelos grupos ou indivíduos. [...] Em toda sociedade,
as formas de apropriação dos textos, dos códigos, dos modelos compartilhados
são tão ou mais geradores de distinção que as práticas próprias de cada grupo
social. O “popular” não está contido em conjuntos de elementos que bastaria
identificar, repertoriar e descrever. Ele qualifica, antes de mais nada, um tipo
de relação, um modo de utilizar objetos ou normas que circulam na sociedade,
mas que são recebidos, compreendidos e manipulados de diversas maneiras.79
Esta exposta percepção de sentido comporta ainda considerar para cada época “como se
elaboram as relações complexas entre formas impostas, mais ou menos constrangedoras e
imperativas, e identidades afirmadas, mais ou menos desenvolvidas e reprimidas”, perfilhando
que a eficácia “com a qual os modelos culturais impõem sentido não anula o espaço próprio da
sua recepção, que pode ser resistente, matreira ou rebelde”, mas nunca real, total e
universalmente aceito.80
Assim, se tomarmos este processo como peculiar a todos os níveis
77 CUNHA, 2011, p.18.
78 Entendemos aqui por “circularidade” o conceito desenvolvido por Carlo Ginzburg especialmente em sua obra O
queijo e os vermes (1987), para referir-se a um relacionamento circular entre culturas caracterizado por influências
recíprocas, que vai tanto de cima para baixo, isto é, da cultura dominante para a dominada, como de baixo para
cima, isto é, da cultura dominada para a dominante. 79
CHARTIER, Roger, 1995, p.6. 80
Idem, ibidem, p.3-4.
41
simbólicos, concluímos que na dimensão do imaginário esta realidade não se constituía uma
exceção. E era neste espaço entre a “norma e o vivido, entre a injunção e a prática, entre o
sentido visado e o sentido produzido, um espaço onde podem insinuar-se reformulações e
deturpações”, o espaço da apropriação81
que o imaginário apocalíptico de homens e mulheres
humildes do sertão encontrava uma brecha para se imprimir e afirmar-se.
Entre os séculos XVII e XIX, o movimento dos beatos nos sertões nordestinos revelou
como tradições reprimidas ou suprimidas pelos mecanismos de dominação simbólica da
ideologia católica puderam ser reelaboradas e reinscritas de maneira sorrateira. e em alguns
casos, insurgentes num plano ideológico diferente (o do catolicismo popular sertanejo) através
das formas de apropriação “populares” do imaginário mobilizado pelas mensagens profético-
apocalípticas dos missionários nas Santas Missões.
Adotando em sua vida errante de peregrino um discurso profético e penitencial que
mesclava expressões da religiosidade popular e traços da tradição missioneira com ressonância
de idéias milenaristas, messiânicas e sebastianistas, os beatos perambulavam pelos sertões
condenando o pecado, exortando a penitência como caminho da salvação, pregando o juízo
final e o fim do mundo, anunciando o paraíso terrestre e a vinda do Anticristo e, por vezes
arregimentando por onde passavam muitos seguidores e prosélitos que não se eximiam em
abandonar sua “antiga vida” para seguir seu conselheiro em busca da “cidade santa” prometida.
O caso emblemático de Canudos revelado na experiência de Belo Monte na Bahia, a
“Jerusalém de taipa” do beato Antônio Conselheiro e seus asseclas, sobre onde se dizia que as
águas se convertiam em leite e os barrancos em cuscuz, permite compreender como mitos
escatológicos compartilhados por indígenas no passado permaneceram vivos na memória de
seus descendentes que vieram viver e lutar na “Vila Santa” de Belo Monte.82
Esta experiência,
que é fruto de um intenso e variado intercâmbio cultural, denuncia, por trás das sinuosidades da
história, como elementos da tradição cristão-católica foram (re)apropriados para enunciar em
outros contextos e com outras idiossincrasias tradições “autóctones” nunca abandonadas
completamente pelo universo simbólico de grupos humanos subjugados historicamente. Mas
foram, porém, nas diferentes modalidades de usos e apropriações que missionários e beatos
fizeram do ideário apocalíptico, que se permite perceber mais claramente o espaço de atuação
da cultura popular enunciado no profetismo marginal dos beatos.
Primeiramente, é importante lembrar que o uso do imaginário escatológico pelos
missionários (as descrições do inferno, do céu, do juízo particular e final), sobretudo pelos
81 Idem, ibidem, p.4.
82 VASCONCELOS, Pedro Lima, 2005, p.281.
42
capuchinhos, tinha uma finalidade pastoral e pedagógica bem definida, pois, através da
evocação de suas imagens, buscava-se infundir no fiel “o pavor e o medo salutares” para a
partir daí obter as conversões desejadas e a salvação das almas. Para isto, os missionários
empregavam um conjunto de técnicas, métodos e estratégias bem instituídas apreendidas
durante o estudo no seminário que iam desde a mensagem transmitida por sua imagem pessoal
ao trabalho de “encenação” nos púlpitos. Por outro lado, embora também não deixassem de
utilizá-lo com este propósito (converter e salvar almas) e que para isto adotassem dos
missionários o tom objetivo, enfático e persuasivo de seu discurso, os beatos atribuíam ao
universo manifestado no Apocalipse o peso de quase um dogma de fé, articulando suas imagens
com os dados da realidade histórica que eles liam do cotidiano sertanejo dando a elas uma
conotação mais pragmática que as aproximava da realidade de vida dos seus interlocutores.
O rumo que assumiu o elemento escatológico na perspectiva dos beatos é um indício de
que a apropriação do imaginário apocalíptico por parte dos agentes não especializados do
catolicismo incorria muitas vezes em interpretações heterodoxas do Apocalipse, isto é, aquém
dos padrões aceitos como normas instituídas pela Igreja docente. Mesmo que esta constatação
seja verdade com relação aos beatos, seria um engano afirmar que as apropriações deste
imaginário se inscreviam apenas neste território exclusivo.
Embora fosse feita numa aguda percepção de iminência apocalíptica que trazia para a
concretude do cotidiano sertanejo o drama do acontecimento final, o forte apelo da mensagem
soteriológica dos conselheiros (a exortação da penitência e da conversão como garantia da
salvação para a alma e o pecado como fiança do castigo eterno) confirma também sua irrupção
no outro lado da moeda. Em vista disso, o fato de termos os beatos atuando em conformidade
com as promessas “literais” do Apocalipse não implicava numa necessária contradição com a
sua utilização ortodoxa. Como bem colocou Dobroruka83
[...] nunca será excessivo lembrar que o desfecho do evento escatológico,
qualquer que seja a tradição a que se filie o exegeta, é ao fim e ao cabo
individual. O fim do mundo, literal ou simbólico, moderado ou terrível, pelo
fogo ou pela água, terá como efeito último a salvação de um determinado
número de almas, que poderá ser grande ou pequeno, conforme o caso.
É claro que isto não implicava, em nosso caso, numa assimilação reflexiva da sofisticada
distinção intelectual de interpretação do Apocalipse introduzida na tradição católica pela
patrística (a visão literal e quiliástica de tendência heterodoxa e a outra mais espiritual e
eclesiológica adotada pela Igreja docente). A formação pouco letrada dos beatos (a maioria
deles eram analfabetos ou semi-analfabetos) impedia que estes tivessem o acesso direto ao
83 DOBRORUKA, Vicente, 1997, p.67.
43
último livro do Novo Testamento. O ponto que queremos chegar com isso é que para os beatos
e a grande massa de sertanejos que não detinham estes conhecimentos sistematizados pela
Igreja, tanto a salvação do homem como a do mundo eram aspectos de um mesmo discurso que
não se excluíam mutuamente, mas se davam em dimensões intercambiáveis e coesas amparadas
pelo universo de suas capacidades imaginativas. Assim, o imaginário apocalíptico popular
sertanejo seria aquele que circula livremente entre a fronteira da ortodoxia com a heterodoxia;
entre o campo do permitido e do coibido; entre uma escatologia de fundo mais brando e
individual e outra de desenho mais catastrófico e universal, sem que para isso houvesse
demarcações conscientes de territórios por parte de seus produtores ou agentes.
Não devemos esquecer ainda que nestes entremeios muitas referências tradicionais foram
introduzidas, conferindo, a este imaginário, características próprias que puderam ser ampliadas,
compartilhadas e enriquecidas numa teia maior de relações a partir das trocas simbólicas
perpetradas entre as diferentes populações participantes da mobilidade interna da região,
principalmente aquelas motivadas pelo discurso religioso da salvação (as romarias, as
peregrinações e as migrações à “terra da promissão” dos Conselheiros exemplificadas nos casos
emblemáticos de Canudos e do Calderão do beato José Lourenço). Estas trocas simbólicas
processadas no território do sagrado concorreram para uma maior versatilidade plástica do
imaginário apocalíptico popular na medida em que puderam somar a este uma gama de
crendices, fantasias, imagens e símbolos de motivos escatológicos que iam sendo gerados,
mobilizados e amalgamados no interior destas experiências e assimilados numa extensão
ascendente.
É certo que, para isso, contribuiu a atuação dos diversos meios de transmissão da cultura
(os tradicionais – a oralidade, a literatura popular laica e os “livros de oratório” e os novos que
foram surgindo – o folheto de cordel, a xilogravura, o rádio e etc.) e os diferentes atores sociais
não necessariamente atuantes no universo do sagrado (os poetas de cordel, os cantadores de
viola, os escultores, artesãos e xilógrafos), que com seus sonhos, artes, mensagens, mitos e
esperanças tornaram mais complexa a rede de crenças do imaginário apocalíptico popular do
sertão.84
E foi este repertório emanado de um imbricado processo de referências tradicionais,
pessoais e coletivas movido numa escala grandiosa, que pôde ser utilizado pelos sertanejos
seridoenses e de modo particular, pelos cruzetenses, para dar a ler os “sinais da modernidade”
que começaram a insinuar-se na região, sobretudo no âmbito da cidade.
84 LOPES, Régis, 1994.
44
CAPÍTULO 2. “ATÉ MIL E TANTOS A DOIS MIL NÃO CHEGARÁ”: O SERIDÓ NO
DESCAMBAR DAS ERAS
2.1. O TERRENO “MOVEDIÇO” DO IMAGINÁRIO APOCALÍPTICO POPULAR
SERTANEJO
Ao deslocar o olhar para as regiões dos sertões nordestinos foi com um apocalipsismo
popular com dose de “fanatismo” e “messianismo rústico” que diversos estudiosos do
catolicismo rural brasileiro se depararam nas sociedades tradicionais em vias de
transformação.85
De acordo com Pompa, foi só a partir do final da década de 1950 e início dos
anos 1960, quando a antropologia e a sociologia submetiam os movimentos religiosos étnicos e
populares a uma revisão comparativa no plano internacional, que deu início no Brasil “a leitura
em termos sócio-antropológicos dos fenômenos definidos até então como “fanatismo” ou, na
melhor das hipóteses, como “misticismo”, delineando-se, desse modo, a tradição de estudos do
chamado “messianismo rústico brasileiro”.86
Existe mesmo uma corrente historiográfica já consolidada no Brasil que trata desta
temática, mas com enfoques direcionados para a análise e compreensão das manifestações de
massas do catolicismo popular expressas nos “movimentos sociorreligiosos” do nordeste
brasileiro onde se analisam seus principais elementos característicos: a religiosidade penitencial
e apocalíptica promulgada por uma “cultura do fim do mundo”, difundida por predicadores e
praticadas de forma autônoma, às vezes convivendo e às vezes conflitando com a igreja Oficial
e seus ministros”.87
Mas grande parte destes trabalhos dá ênfase ao enfoque estruturalista ou
determinista em detrimento de uma perspectiva que valorize as experiências individuais e de
grupo como fundamento para se entender o processo histórico.88
Segundo Pompa (2004), a crise nas explicações estruturalistas que começaram a ganhar
cada vez mais espaço no mundo científico a partir da década de 1970 levou a elaboração de
reflexões teóricas e metodológicas que buscaram desenvolver uma nova abordagem dos fatos
históricos a partir da visão que seus próprios sujeitos tinham de si mesmos. No esforço de
interpretar os aspectos simbólicos do catolicismo popular como parte do sistema de crenças e de
85 POMPA, 1998.
86 Idem, ibidem, p. 01.
87 POMPA, 2004, p.71. Embora venha crescendo nas últimas décadas o interesse dos historiadores pelas
manifestações religiosas populares, estas sempre se constituíram mais num campo relevante de estudo dos
antropólogos e sociólogos no Brasil. 88
Idem, ibidem.
45
valores camponeses, a autora cita a obra “Os movimentos ´messiânicos´ brasileiros: uma
leitura” de Alba Zaluar (1979) e “Os errantes do novo século”, de Duglas Teixeira Monteiro
(1974), como marcos teórico deste novo enfoque. Embora não se trate de analisar propriamente
as manifestações das religiosidades populares na categoria de “movimento messiânico” é,
portanto, a mesma linha teórica adotada por estes autores que filiamos nossa pesquisa.
As primeiras interpretações destas manifestações populares se colocavam numa posição
ambígua entre a “estranheza piedosa” diante do incompreensível “fanatismo das massas
populares sertanejas” e o esforço de sua definição “científica”, fornecendo elementos para a
formulação de uma teoria do Brasil correlacionada à construção política da nação fundamentada
na dicotomia litoral/sertão ou moderno/arcaico, que justificava e auferia à realidade de um
Brasil que em parte vivia imerso na barbárie e outro que vivia na civilização.89
De acordo ainda com Pompa (2004), foi Euclides da Cunha em sua obra Os Sertões
(1902) quem inaugura uma tradição histórico-literária que interpreta o sertanejo no seu
“fanatismo”, abrindo um leque de uma extensa produção intelectual que irá voltar-se para a
interpretação dos fenômenos religiosos do Nordeste que associa as características biológicas
das populações sertanejas à sua predisposição psicológica ao misticismo. Estas explicações
excluíam a natureza simbólica do fenômeno religioso de seu campo de análise interpretando a
dimensão religiosa do mundo do sertão “como se esta fosse inscrita na alma e na carne do
sertanejo”.90
Mas esta não foi certamente a única leitura que se perpetrou acerca desta realidade
histórica do território sertanejo nordestino.
Já Luís Viana, em estudo contemporâneo as mudanças que começam a processar-se no
mundo rural sertanejo, defendendo a “tese do choque cultural”, atribuía ao contato com a
“civilização do litoral” mais progressista e vulnerável às novidades e inovações materiais, a
razão da resistência e reação “contra-aculturativa” do homem do sertão, quando aquela rompe
com o “isolamento do interior” e ameaça desorganizar a “cultura rústica” existente,
introduzindo maneiras de agir e de pensar confusas aos olhos dos sertanejos”.91
É evidente que
esta abordagem assume hoje um caráter relativizante, como demonstram os diversos estudos
que se debruçaram posteriormente sobre a questão e provocaram novas interpretações.
Uma importante postura teórica a este respeito nos valida a socióloga Maria Isaura Pereira
de Queiroz (1973), ao apontar os motivos que atestam a inconsistência da tese do isolamento
89 Idem, ibidem.
90 Idem, Ibidem, p.75. Nesta categoria de análise Pompa (2004) menciona dentre outros trabalhos a obra “O outro
Nordeste” de Djacir Menezes (1937) e “Misticismo e região: aspectos do sebastianismo nordestino” de Waldemar
Valente (1963). 91
VIANA 1927 apud. VALENTE, Valdemar, 1963, p.20.
46
das populações do interior do país que geralmente se observa como primeiro dado quando se
toma como análise um grupo rural tradicional. Para a autora, a causa de uma possível “inércia”
da mobilidade espacial destas populações que as mantinham afastada dos grandes centros
urbanos como defendiam os estudos anteriores92
, não se atribui às questões geográficas ou
fenotípicas determinantes, mas sim culturais, visto que esta se constituía desde tempos coloniais
numa prática determinada pelas maneiras como os grupos rurais sertanejos estabeleciam
relações com o espaço de vivência e faina, levando-os a estabelecer tradicionalmente relações
cotidianas dentro das dimensões do “bairro rural” em que se projetaram, uma vez que estavam
presos a uma “organização de vizinhança”.93
Em outro ponto, a socióloga ainda destaca as
atividades econômicas e as práticas devocionais como motivos que justificam a ilusão da
abordagem isolamentista, uma vez que era comum existir entre os sitiantes locais a constante
circulação destes grupos dentro de sua região e até para além desta, possibilitando, deste modo,
o contato com outras realidades socioeconômicas diferentes.
O episódio dos empreendimentos das Obras Contras as Secas em território seridoense na
primeira metade do século XX (a construção de açudes, barragens e estradas de rodagens),
revela uma intensa mobilidade entre os sertanejos das mais diversas localidades que migraram
para a região em busca dos “serviços do governo” e por lá permaneceram ao contraírem
matrimônio e constituírem família, fomentando o surgimento de comunidades e povoados que
mais tarde se tornariam prósperas vilas e cidades. Estes sertanejos, mais conhecidos por
cassacos94
, ao se deslocarem para outras plagas, levavam consigo suas crenças, costumes e
tradições apreendidos no calor da família e os transmitiam a sua prole numerosa à maneira
tradicional, engrossando, enriquecendo e alargando a teia do imaginário do sertão. As ações
federais contra a estiagem regional também contribuíram para o intercâmbio cultural entre os
sertanejos das mais diversas regiões do Nordeste, uma vez que estas promoviam ocasiões para a
vivência de muitas trocas simbólicas geradas pelos contatos interpessoais entre moradores
locais e operários vindos de outras partes da região à procura de algum posto nas obras de
construção do governo.
O município de Cruzeta (RN), fundado povoado em 1920, é um exemplo deste processo
92 Aqui também citamos a obra “Misticismo e Região...” de Waldemar Valante (1963) e “Brasil, terra de
contraste” de Roger Bastide (1957). 93
De acordo com Pereira de Queiroz (1973, p.52-53), um “bairro rural” pode ser definido como “um grupo de
vizinhança aberto, acolhendo todas as famílias que ali venham se estabelecer. Nenhum preconceito étnico ou outro
impede a integração, que depende principalmente da participação às festas religiosas e de trabalho coletivo. [...] O
bairro é sempre uma reunião de famílias. [...] é algumas vezes formado de famílias que não têm laço de parentesco
entre si, que ali se fixaram ao acaso de suas peregrinações”. 94
De acordo com Lamartine de Faria (1978, p.24), denominava-se cassaco o “trabalhador nômade com certa
especialidade funcional que vive no ciganismo das construções públicas”. Cf. FARIA, Oswaldo Lamartine de. Os
açudes dos sertões do Seridó. Natal: Fundação José Augusto, 1978.
47
histórico que se desenvolveu nas imediações do Açude Público que leva o seu nome, concluído
pela Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), em 1929. Para lá, convergiram
centenas de sertanejos à procura de um serviço nas obras de construção do reservatório público
no período entre 1920 e 29 a custo de alguns vinténs. Muitos destes trabalhadores acabaram
permanecendo no lugar constituindo o núcleo de suas primeiras famílias. Nos assentos de
casamentos encontrados na Paróquia de Nossa Senhora Daguia em Acari (RN), para o período
imediatamente posterior (até o ano de 1944, Cruzeta era freguesia pertencente ao município do
Acari), notam-se a ocorrência de matrimônios celebrados na Capela de Nossa Senhora dos
Remédios, em Cruzeta, envolvendo nubentes residentes no local e outros procedentes de
regiões da Paraíba (especialmente vindos do brejo e do sertão paraibano) e em menor número
do Estado do Ceará.
Mas recentemente, Lemuel Rodrigues da Silva (2009) procurou demonstrar como o
discurso religioso da salvação com destaque para o elemento escatológico motivou, em
diferentes contextos, muitas vagas de migrações e contatos interculturais entre os sertanejos do
Nordeste, situando o imaginário e o universo simbólico do sertão como fatores de mobilidade e
integração regional indo além das explicações baseadas nas lógicas socioeconômicas
estruturais.
As reflexões levantadas acima nos ajuda a pensar o espaço analisado dentro de uma
dinâmica mais ampla que extrapola os domínios “reais” do “território regional”, buscando
entender as relações de espaço/tempo que seus sujeitos mantiveram com outras estâncias
espaciais.
As constantes romarias realizadas por sertanejos seridoenses ao Juazeiro do padrinho
Cíço durante o apogeu da chamada “questão religiosa” (1889-1934), revelam o contato destas
populações com as crenças apocalípticas populares da região do Cariri no Ceará, que rondaram
os “pretensos milagres” ocorridos nos longínquos anos de 1889-1891 e logo transformaram o
ignoto povoado de Joaseiro na “cidade santa” e na “terra da Salvação” escolhida por Deus “para
ser o centro de onde converteria os pecadores e salvaria a humanidade”.95
O Juazeiro do Norte,
torna-se, então, o ponto de convergência e difusão de um imaginário apocalíptico que começa a
circular sob diferentes maneiras pelos sertões nordestinos a partir do fenômeno místico ocorrido
em volta da pessoa do Padre Cícero e da famosa beata Maria de Araújo (o milagre da
consubstanciação das óstias em sangue operado na boca da beata ao recebê-las das mãos de
95 CAVA, Ralph Della, 1976, p.59. De acordo com Régis Lopes (2000, p13) foi a partir dos “pretensos milagres”
ocorridos no povoado do Juaseiro que começou a circular no lugarejo a idéia de que o fenômeno era um sinal dos
últimos tempos.
48
Cícero e interpretado por aquela como prenúncio escatológico do fim dos tempos). Dentro de
poucos anos, a notícia destes prodígios ganharam rapidamente as plagas áridas dos Estados
vizinhos, conquistando a simpatia e a curiosidade especialmente das camadas sociais mais
pobres que não demoraram a converter o ermo povoado cearense em centro de romaria
sertaneja. Santina de Neco, natural do município de Cruzeta (RN), dona de casa aposentada de
82 anos, guarda ainda na memória a peregrinação que fizera o pai ao Juazeiro do Norte no
remoto ano de 1935, no intento de pagar promessa na terra santa do Padrinho Ciço.
Meu pai teve de ir [ao Juazeiro] a cavalo. Foi em 35. Meu pai foi num
jumentinho mais um irmão de Sebastião Aurélio chamado Pelado. Foram os
dois. Mas passaram um mês. Ele disse que chegaram lá numa serra e as onças
urrando. Tão longe era. Mas eles de todo jeito chegaram. Tirava a sela do
jumento pra dormir debaixo do pé de pau. [...] de tudo levaram, mas passava
sede. Foi ele e este outro amigo dele pagar promessa no Juazeiro. Me lembro
muito.96
Propagado de boca em boca pelas hordas de romeiros que chegavam diariamente em
visita ao Juazeiro, “a crença no advento do milênio [...] encontrava especial ressonância entre as
massas [...] analfabetas”.97
Ao deixarem o arraial, estes sertanejos arrastavam consigo a nova
crença disseminada no lugarejo: “estamos prestes ao Dia do juízo Final”. Teria sido esta a
sentença apregoada pelo Padre Cícero vaticinando o iminente advento do apocalipse que se
grassava e granjeava sentido na imaginação popular sertaneja.98
Mas esta crença, já bastante
difundida nas três primeiras décadas do século XX pelos sertões do Nordeste, não teria
significado para nossa pesquisa se ela não tivesse tomado proporção ascendente no momento
em que as populações sertanejas, sobretudo as massas de trabalhadores rurais, passaram a
experimentar novas mudanças culturais e tecnológicas99
alentadas pela penetração do “espírito
capitalista” e dos “símbolos da sociedade moderna” que começam a invadir o mundo rural,
levadas pelos “novos ventos” do progresso e da modernidade.
A crença popular no advento final da humanidade, reiterada pela “voz” que ecoava do
Juazeiro e o imaginário apocalíptico que se construiu em volta dela, encontrava, nesta nova
conjuntura um solo fértil para se propagar. E mesmo porque no “tempo do Padrinho Ciço” era
possível vislumbrar a coexistência de um emaranhado de crenças apocalípticas continuamente
96 Depoimento concedido pela Sra. Santina Marta do Nascimento, 82 anos, no dia 23 de outubro de 2009.
97 CAVA op. cit., p.59.
98 Idem.
99 Utilizamos o conceito de “cultura” não como uma realidade a parte das outras esferas societárias da vida de uma
comunidade ou grupo, mas como instância simbólica que perpassa e significa todas as suas dimensões humanas
(econômica, social, política e etc.). Por “tecnologia” ou “tecnológico” compreendemos o arsenal de conhecimentos
teórico-práticos materializados numa técnica (arte) colocados à disposição dos grupos ou sociedades com os quais
estes se utilizam para solucionar seus problemas ou suprir necessidades, podendo interferir na cultura,
modificando-a.
49
readaptadas das velhas profecias que os séculos missionários despejaram pelos sertões.
Nos grotões semi-áridos do Seridó, não foi a imagem do “Bom Jesus Conselheiro”100
envergando cajado e burel grosseiro, bradando sermões proféticos para o arraial extasiado ou
arrastando procissões de seguidores sertão adentro que se fixou na memória de seus habitantes.
No entanto, a sua voz cavernosa e gutural ainda pode ser lida silenciosamente em diversas
profecias que a tradição sertaneja regional atribuiu posteriormente ao “profeta do Juazeiro”, se
aceitarmos como expressão básica do pensamento conselheirista, um manuscrito já bastante
conhecido e estudado, encontrado por Euclides da Cunha quase completamente destruído nas
ruínas de Belo Monte. Este texto intitulado “Profecia”, serviu de fundo básico para a construção
euclidiana de uma veia milenarista e sebastianista da pregação de Antônio Conselheiro
subsidiando-lhe, inclusive, na transformação do líder religioso considerado beato e santo para
os sertanejos, em líder fanático, subversivo e louco.101
Mas esta é apenas uma versão herdada
da tradição literária euclidiana, sobretudo após a publicação de Os Sertões que permaneceu
preponderante nos olhares sobre a questão durante muitas décadas.
Estudos mais recentes como aqueles proporcionados por Alexandre Otten (1990) e Pedro
Lima Vasconcelos (2005) revelam outra circunstância mais impessoal e menos óbvia que talvez,
num primeiro relancear conferido por Euclides da Cunha ao manuscrito, tenha lhe escapado de
vista. Ou ainda, como se tornou oportuno raciocinar, que a interpretação euclidiana do
documento tenha sido mais fruto da visão de sua posição de “homem civilizado”, “evoluído”,
“racional” frente ao que chamou de “barbárie” e “loucura” das “massas de sertanejos fanáticos”
que ele julgou ter encontrado durante o período em que acompanhou, do palco dos
acontecimentos, a repressão final ao arraial de Canudos.
Seja como for, ao contrário do que imaginava Euclides, encantado com o suposto reino
milenar profetizado pelo líder religioso no manuscrito, faz todo sentido pensar como Otten e
Vasconcelos que a “Profecia” não representa um “elemento estruturante da mensagem religiosa
do Conselheiro”, mas sim, um produto “da incidência das idéias apocalípticas que percorriam
os sertões e que se associavam com elementos de outras proveniências na cosmovisão religiosa
sertaneja” compartilhada pelo Conselheiro de Belo Monte.102
[...] Em 1896, ver-se-ão rebanhos mil correrem da praia para o sertão; então o
sertão virará praia, e a praia virará sertão. Em 1897, haverá muito pasto e
pouco rasto e um só pastor e um só rebanho. Em 1898 haverá muitos chapéus
e poucas cabeças... Há de chover uma grande chuva de estrelas e aí será o fim
100 Uma das muitas alocuções utilizadas pelos sertanejos para designar o beato cearense Antônio Mendes Maciel, o
Antônio Conselheiro. 101
VASCONCELLOS, 2005. 102
Idem, ibidem, p.275.
50
do mundo. Em 1900 se apagarão as luzes. [...] e das ondas do mar sairá D.
Sebastião com todo seu exército [e dirá] Adeus mundo! Até mil e tantos a dois
mil não chegarás!103
Foram, portanto, fragmentos desta “Profecia” apocalíptica, retida pela pena do escrivão
belomontense, que puderam ser lidos nas retentivas de cruzetenses depois de mais de um século
agora associados ao Padre do Juazeiro. Esta circunstância demonstra o fato de como o
“episódio” juazeirense contemporâneo ao de Canudos fincou raízes mais profundas no
imaginário sertanejo seridoense ao ponto de nuclear, em volta do sacerdote cratense antigas
tradições e lendas prodigiosas que antes se atribuíam aos beatos condutores de multidões e aos
missionários pregadores dos púlpitos, fazendo gerar, ao redor da pessoa do Padre Cícero uma
“áurea de santidade” que o levou a assumir, enquanto vida, “as funções de profeta e anunciador
de coisas futuras” para a grande massa de seus romeiros e afilhados sertanejos.104
Mais que
isso, a constatação apresentada acima deixa transparecer a existência de um substrato móvel de
dimensões mais amplas que chamamos de cultura sertaneja por onde era levada a pulsar a
complexa rede de constituição do imaginário apocalíptico do sertão, abrindo espaço para a
insinuação de outros significados, para a atuação da polissemia no sentido operado por Orlandi
do “deslocamento, da ruptura de processos de significação”105
, pois, como bem refletiu Braga106
[...] uma cultura não pode, portanto, ser encarada como algo absolutamente
homogêneo, monolítico e inalterável a partir do momento em que ela se
manifesta através dos seus agentes. Os valores dos indivíduos, seus ethos, suas
visões de mundo, como parte de uma cultura, existindo numa cultura, a partir
de uma cultura, também são dinâmicos.
Diante disso, é possível inferir que os longos séculos do processo histórico do sertão
nordestino em que pesou a sua dinâmica interna particular, contribuíram para o forjamento de
uma cultura camponesa que, mesmo nunca sendo monolítica, compartilhava arquétipos,
sentimentos, modos de viver, sentir e ver o mundo semelhantes, que não se materializavam em
produtos prontos ou acabados, mas estavam sempre se fazendo, num trabalho contínuo e num
103 CUNHA, Euclides da, 1954, p.150-151.
104 CASCUDO, 2000, p.130. De acordo com Braga (2008, p.30-31), Cícero Romão Baptista, ou simplesmente
Padim Ciço (Padre Cícero) para a massa de sertanejos rurais do Nordeste, nasceu na cidade de Crato, interior do
Ceará, em 24 de março de 1844, filho de Joaquim Romão Batista (um pequeno comerciante de tecidos e ferragens)
e Joaquina Vicência Romana (dona de casa). Recém-ordenado padre chegou ao povoado do Juazeiro em 1871
como neófito se estabelecendo ali no ano seguinte como capelão. O rumo a que tomou os eventos dos “pretensos
milagres” ocorridos no povoado entre os anos de 1889 e 91 no qual figuraria entre os seus principais protagonistas,
traria para Cícero uma série de complicações com a hierarquia católica resultando na suspensão de suas ordens em
1897. Sem a concessão de oficiar os sacramentos, Padre Cícero assume, entre os milhares de sertanejos (afilhados)
que vinham ao Juazeiro anualmente, as prerrogativas de conselheiro, taumaturgo e profeta. (LIMA, 2000, p.84). Já
bastante idoso e sem poder andar, faleceu aos 20 de julho de 1934, vítima de uma paralisia intestinal, para o pranto
e a consternação das dezenas de milhares de sertanejos que acompanharam o cortejo fúnebre pelas ruas do
Juazeiro. 105
ORLANDI, Eni Puccinelli, 2012, p.42. 106
BRAGA, Antônio M. da Costa, 2008, p.67.
51
movimento constante do simbólico e da história.
Esta “coletividade-memória por excelência”, para fazer uso da expressão do Pierre Nora
(1993), ingressaria em seu processo de rompimento e fragmentação mais sensíveis com a
chamada mundialização e massificação da cultura ocidental que Stuart Hall (2003) situaria,
entre os anos 1880 e 1920, quando verificou uma profunda transformação na cultura das classes
populares caracterizada por intensas mudanças estruturais. É neste interstício de tempo que ele
observa um acelerado desenvolvimento do capitalismo agrário para o industrial e uma maior
intervenção deste processo na cultura popular que ainda não havia sido incorporada à lógica do
capital, mas começava a se difundir e configurar. No Brasil, este processo seria mais visível
entre os anos 1940 e 1950, com a adoção de uma política industrializante nacional que
projetaria o país de modelo econômico agro-exportador para o industrial, balizando, como
observa Ortiz (1999), um período de incipiência de uma sociedade de consumo. É também
neste interregno de tempo, sobretudo após 1930, que o sertão nordestino se converteria
paulatinamente numa zona de penetração dos produtos manufaturados e agrícolas do Sueste
brasileiro em plena expansão industrial, provocando uma relativa estagnação econômica de suas
áreas e uma maior dependência político-econômica e cultural em relação com os grandes
centros econômicos do país.107
Em vista disso, Hall desperta a nossa visão para entender a cultura popular e no interior
dela a produção do imaginário apocalíptico popular, não apenas no plano das mudanças
qualitativas, mas também das profundas rupturas. É neste sentido que ele aponta o pós-guerra
não somente como um período de uma mudança nas relações culturais entre as classes, mas de
um “novo relacionamento entre o povo e a concentração e expansão dos novos aparatos
culturais”108
enfatizando a necessidade de se estudar a cultura popular no século XX a partir do
interior destas classes, considerando, com isso, a sua incorporação à dominação do
imperialismo e da indústria cultural num processo desencadeado na longa duração.
Se tomarmos as periodizações de Hall e Ortiz como uma referência para o nosso estudo,
poderemos assinalar dois direcionamentos importantes dentro dos recortes históricos
assinalados. O primeiro, que perpassa a questão das políticas nacionalistas de integração
nacional e o outro, que nos interessa mais de perto: o problema da recepção dos “símbolos de
modernidade” nas comunidades de tradição conservadora em processo de “modernização”. É,
portanto, no interior da urdidura destes processos históricos que situamos o problema da
modernidade e dos sentidos por ela produzidos para quem o imaginário apocalíptico pupular
107 HOEFLE, Scott William, 1997, p.193.
108 HALLL, Stuart, 2003, p.236.
52
funcionava como sistema de leitura de mundo, tomando como via de análise o caso do Seridó
norte-rio-grandense e do município de Cruzeta (RN) em particular.
2.2. OS SINAIS DO FIM DAS ERAS
O imaginário apocalíptico popular sertanejo herdeiro de mais de três séculos de
missionismo e beatismo nos sertões nordestinos, repositório de velhas profecias milenaristas e
messiânicas coloridas pelas contribuições culturais de negros e especialmente de índios e judeus
(cristãos-novos), são aspectos do universo da religiosidade popular sertaneja cujas crenças
eivadas de reminiscências folclóricas chegaram à segunda metade do século XX. Fruto de um
longuíssimo processo de cruzamento e reelaboração contínuos de níveis culturais diversos, sua
insurgência no século XX se entrelaça com o próprio acontecer da história, revelando uma
relação dialética entre o horizonte mítico e a consciência histórica de seus sujeitos.
Como na tradição judaico-cristã, na escatologia apocalíptica popular sertaneja a história
possui um sentido escatológico negativo. Ela apenas cumpre no nível da existência humana um
destino traçado no plano da Providência. É um tempo unidirecional que caminha para o
término. Nele, homem e mundo estão destinados ao fim.
Muito embora se trate de uma realidade distante no tempo e no espaço e com processos
de formação históricos diferenciados, o sertão do Nordeste brasileiro reteve, ao longo dos
séculos, muitos elementos de suas raízes europeias medievais ou do Cristianismo pré-
reformista.109
Esta circunstância esteve particularmente expressa na cosmovisão do sertanejo
nordestino e do seridoense em particular ao se aproximar da visão de mundo do homem do
medievo especialmente em matéria escatológica.
Para o sertanejo seridoense situado na tradição rural, os acontecimentos históricos, isto é,
as “novidades”, representam as transgressões às “normas”. São, portanto, sinais da vontade
divina, gerados em decorrência das faltas e pecados humanos. Eles marcam a inserção do tempo
vivido na providência divina. A história é aí concebida numa concepção meta-histórica: porque
os primeiros homens (Adão e Eva) pecaram no paraíso, Deus veio ao mundo e se encarnou num
seio de uma virgem para salvar a humanidade caída e sua obra de redenção final fora
109 Numa pesquisa de campo realizada por Scott William Hoefle durante os anos de 1977 a 1981 e 1994 em três
municípios sertanejos de Pernambuco e Baía, o antropólogo constatou que “a cosmologia católica do sertão ainda
retém os três elementos típicos do cristianismo pré-reformista que ligam este mundo ao outro e a esfera humana à
esfera natural: (1) a crença em almas perdidas que vagueiam por este mundo, ameaçando os vivos; (2) o culto
acentuado dos santos, no qual se pede o auxílio divino para o bom andamento das coisas naturais e sociais deste
mundo; (3) a crença em espíritos do mato com traços humanos que protegem os animais selvagens contra o
homem”. (HOEFLE, 1997, p.196).
53
transportada para um tempo futuro. Ela se completará no derradeiro dia quando de sua segunda
vinda. Sinais “estranhos” no céu e na terra marcarão a proximidade deste tempo, como nas
retentivas de um velho morador cruzetense que dizia que “no final das eras apareceriam muitas
coisas que ainda não se conhecia”110
, ou, ainda, na confabulação de uma antiga devota do Padre
Cícero, que, ao revisitar as palavras do “padrinho”, contava que “no fim dos tempos vai
aparecer coisas que a gente vai ficar admirado”.111
No imaginário apocalíptico do sertão, mito e
fato contemporâneo se mesclam num mesmo caldeamento simbólico.
É esta relação iterativa que o imaginário apocalíptico popular tece com a história,
traduzindo e reordenando os fatos históricos dentro de seu próprio conjunto de significação, que
faz com que este se aproprie do “real” para (re)significá-lo a partir de sua bagagem simbólica.
Ele atua, (re)orienta-se e (re)atualiza-se no presente vivido interferindo na própria experiência
dos sujeitos, na medida que também a reveste de um valor religioso conferindo maior
significado a história.
No cordel o Fim do Mundo de João Martins de Athayde (1880-1959), datado de 1948, a
história da humanidade é contada a partir deste sentido meta-histórico. Nela, o fluxo do tempo
assume uma concepção escatológica e organiza-se em seus dois momentos cruciais: a criação e
o fim do mundo intercalados por um processo de sequüência degradante. A narrativa, exposta
por Athayde, nos permite identificar pelo menos a existência de quatro tempos: o tempo da
criação, compreendido entre a concepção do mundo visível e dos primeiros seres humanos
(Adão e Eva) até a queda do homem no paraíso e a entrada do mal no mundo; o da redenção,
que perpassa todo o plano salvífico de Deus para a humanidade, se iniciando com o apostolado
dos antigos profetas e prossegue da primeira vinda do Cristo a sua promessa de salvação final; o
tempo do fim, desvelado pelos “sinais” que já anunciam sua irrupção no momento presente (de
angústias e degeneração morais maiores), culminando na segunda vinda do Cristo e na
destruição do mundo físico e o tempo da eternidade (o não-tempo) que será aquele em que
Deus restituirá aos bem-aventurados o paraíso (o céu) perdido no princípio e lançará no fogo
eterno (o inferno) os maus e os pecadores para todo o sempre, restabelecendo o universo em sua
eterna dualidade. O trecho do cordel apresentado abaixo evoca a idealização dos três primeiros
tempos que nos serve como modelo para entender a visão da história presente no imaginário do
sertanejo tradicional.
[...]
110 Informação retirada do depoimento concedido por Seu Marcelino Martins de Lima, conhecido como Marcelino
de Zé Limão, agricultor de 67 anos, morador no Sítio Pau Lagoa (município de Cruzeta/RN) em 26/11/2009. 111
Informação retirada do depoimento concedido pela Sra. Ambrosina Maria, 75 anos, moradora no Sítio Fechado,
município de Cruzeta, no dia 20 de Agosto de 2012.
54
Quando Deus formou o mundo
com toda sua grandeza,
fez em primeiro lugar
esta imensa redondeza
no segundo o firmamento
tudo se fez num momento,
por obra da natureza.
[...]
Depois de tudo formado
no reino da criação,
Deus ficou por um momento
em grande meditação
depois voltou-lhe a coragem
Ele fez a sua imagem,
o primeiro homem – Adão.
Dias depois criou Eva
a companheira de Adão,
o paraíso terrestre
a ele fez doação
conforme a verdade pura,
da presente geração.
A terra foi aumentando
com tudo quanto existia,
os seres multiplicavam-se
a humanidade crescia
e com ele a maldição
o horror da corrução,
a sede a fome e a orgia.
Deus vendo os grandes horrores
assolando a humanidade,
criou no seu coração
grande contrariedade
nasceu-lhe um ódio profundo
jurou acabar o mundo
por meio de tempestade.
Espalhou os seus profetas
pregando a lei da verdade,
distribuindo o saber
dissipando a crueldade
todo esforço era perdido
pois o povo corrompido
esquecia a divindade.
Foi quando veio o dilúvio
por ordem do criador,
inundando o mundo inteiro
causando grande pavor
na terra erma sombria
por toda parte se ouvia.
Gritos de angústia e de dor.
[...]
Quando veio Jesus Cristo
55
o filho de Deus amado,
que sofreu por nossa causa
depois foi crucificado,
com seus gestos divinais
pregando entre os mortais,
p’ra nos salvar do pecado.
Porém a humanidade
sempre foi desconhecida,
esqueceu os mandamentos
da divindade querida
só quer viver e luxar
e neste mundo gosar,
todas ilusões da vida.
Nós estamos muito próximo
como diziam as profecias,
o futuro cataclismo
não durará muitos dias
ele vem aí muito perto
e nós teremos de certo,
a chegada do Messias.
[...]
(Os últimos dias da humanidade ou o Fim do Mundo, João Martins de Athayde, 1948, p.3-6).
Como no cordel de Athayde, o papel das profecias apocalípticas possui no imaginário
sertanejo uma função reacionária, já que elas orientam seus intérpretes para uma imersão na
realidade da vida situando-os no tempo da providência, no tempo do fim, encarados por estes
sujeitos como revelação da vontade divina. “O tempo vivido é então representado como crise,
levada ao extremo pela profecia apocalíptica: é um tempo que termina, é o fim do mundo. O
espaço da vida cotidiana é também negativizado, tanto como espaço social quanto em sentido
cósmico: guerras, carestias e pestilências marcam o “fim das eras”.112
Apreendidas pela profecia apocalíptica, as novidades da história possuem um significado
escatológico. Elas anunciam a iminente vinda do Cristo. Assinalam os últimos acontecimentos
das eras. É por esta lógica simbólica que a “modernidade” foi lida pelos sertanejos rurais
tradicionais no momento em que seus sinais irradiadores começaram a penetrar a região. A
resistência ao novo e um apego ao tradicional vivido pelo sertanejo seridoense demonstra a
“situação” deste sujeito em meio a este sistema de leitura de mundo, único disponível ao
sitiante tradicional, pois como bem expressou Nunez de Azevedo113
[...] todo ser que se encontra na tradição é um ser situado, tem uma situação no
interior desta, seja ele o intérprete ou a coisa a qual se busca interpretar. [...] A
tradição não nega a possibilidade de mudança na História, mas a condiciona
como um desenvolver-se, um desabrochar no interior de si mesma, implicando
112 POMPA, Cristina, 2004, p.77.
113 AZEVEDO, André Nunes de, 2003, p.16-17.
56
que o novo constitui-se sempre nos seus quadros, não obstante vir a obter uma
nova situação no interior desta.
A partir disso, podemos deduzir que a primeira leitura que o sertanejo rural seridoense fez
da “modernidade” foi apocalíptica. Esta hipótese nos serve como ponto de partida para entender
a “linguagem apocalíptica” como chave de decifração do “elemento moderno”. Paralela a esta
questão situa-se outro problema que, embora não seja o foco desta pesquisa, convêm explicitá-
lo para melhor elucidar o contexto histórico em que esta se desenha: o projeto de
“modernização” dos chamados “sertões” brasileiros levado a cabo pela política nacionalista de
“integração” e “industrialização” nacional.114
O processo que pôs fim ao sistema político monárquico e levou à instauração da
República no Brasil desencadeou nas elites nacionais (políticos, autoridades, intelectuais e
homens de ciência) o desejo ou o esforço de “atualizar” os territórios da nação com os países
europeus ou com os Estados Unidos. “Uma das questões que passou a ser objeto de
preocupação dos novos detentores do poder foi o problema da integridade do território
nacional”, que trouxe para o centro da pauta de discussões a problemática dos “sertões”.115
Em seu aclamado trabalho Cidades e Sertões (2000), o historiador Gilmar Arruda chamou
a atenção para uma tendência brasileira em tratar negativamente os espaços não urbanizados
aparecendo em diversas situações como “incivilizado”, “atrasado” e habitado por pessoas
inferiores às escalas sociais instituídas e questiona os motivos que em outro momento, levaram
os discursos a buscar “recuperar”, resgatar e modernizar os territórios considerados “sertões”.
Em vista disso, o autor explica que a polaridade existente entre um Brasil urbano e rústico
reflete um olhar eurocêntrico projetado sobre o país nas relações de centro-periferia mundial
partilhado pela elite nacional que coloca a ideia de um “país-sertão” sobre dois eixos
antagônicos: os espaços urbanos legitimados pelo sentido de modernidade e progresso que
representam e o restante da nação que precisa ser modernizada e racionalizada a partir da lógica
urbano-industrial desenvolvimentista. Neste sentido, se para as nações mais modernas o Brasil
era sinônimo de rústico, para a sociedade brasileira os espaços não urbanizados eram mais
rústicos ainda. Assim, o símbolo de civilização passou a ser a vida urbanizada e os
“incivilizados” aqueles espaços que não se enquadravam nesta categoria, termos de comparação
que surgiram ou se intensificaram em meio ao processo de urbanização do país levado a cabo
114 De acordo com o entendimento do geógrafo Milton Santos apud. Dantas (1996, p.10), a industrialização “não
pode ser entendida somente como expansão das atividades industriais em espaços determinados, mas como um
processo complexo que integra o mercado nacional na perspectiva de articulação territorial, o que incide na
expansão do consumo, no aumento da terceirização e, em conseqüência, numa acelerada urbanização”. 115
ARRUDA, Gilmar, 2000, p.19.
57
pelo desenvolvimento capitalista que se seguiu nas três primeiras décadas do século XX e se
consolidou nos decênios seguintes.
Acontece que dentro deste contexto, nenhum espaço do país era mais urbanizado que
aqueles espraiados pela faixa litorânea. Era de lá que a “moderna civilização” começava a ser
forjada e pensada em termos de políticas públicas, mas era também deste espaço que se passou
a formular as primeiras medidas governamentais para “resgatar esse sertão” em direção à
modernidade. É a partir daí que a idéia de “civilizar o sertão” passou a significar a imposição de
novas concepções de tempo, trabalho e vivência aos seus moradores a partir da lógica racional
capitalista. Alcançar o ingresso do Brasil na modernidade denotava garantir o êxito da empresa
civilizadora, o que na prática correspondia também ao intento de buscar “homogeneizar” e
“moldar” o território sertanejo aos novos ideários. Com esta persecução, a “integração” dos
sertões à “civilização moderna” seria efetivada por meio dos símbolos representativos da
modernidade: as linhas telegráficas, as ferrovias, as estradas, a urbanização que surgiam como
uma “fórmula” desejada pelos novos detentores do poder de sobrepor-se aos marcos e
movimentos de épocas pregressas e remover os resquícios das cidades e paisagens “coloniais”,
modificando a face visível do espaço. Assim,
A modernização do Brasil, sua adequação aos novos tempos, deveria ocorrer
com o desenvolvimento do “progresso”, estancado até então pela monarquia.
Para o pensamento liberal republicano, o “progresso [era] o crescimento
econômico enquanto expansão da sociedade capitalista em curso” [...] [e devia
ser] visto como o “novo” na sociedade brasileira [...] O objetivo final seria
incorporar o Brasil ao âmbito das nações “civilizadas” do mundo.116
Neste ponto é importante elucidar que o processo de modernização dos sertões brasileiros
não ocorreu de forma análoga ou coetânea entre si. Pelo contrário, longe de simular apenas um
amplo movimento singular ser-nos-ia mais adequado falar de “processos de modernizações” no
plural, já que, na realidade, tratam-se de fenômenos diferenciados que floresceram em períodos
mais ou menos sincrônicos, cada qual com sua margem de intensidade e amplitude gerados por
conjunturas sociopolíticas e econômicas diversas, conhecendo estações de ascensão e
decadência ao longo do século XX. Todavia, apesar das multifacetadas diferenças, é possível
estabelecer similaridades contextuais entre o processo histórico vivenciado pelos sertões
paulistas e nordestinos, por exemplo, como bem demonstra Arruda em seu citado trabalho.
Diferentemente dos sertões paulistas que vivenciaram um processo modernizador mais
intenso desde a segunda metade do século XIX, estudos tentaram demonstrar que em algumas
regiões do país, especialmente no Nordeste brasileiro, este processo ocorreu de forma mais
116 Idem, op. cit., p.101-102.
58
demorada, em outros espaços nunca chegou a se completar ou que num determinado momento
da história teria saído malogrado. Este último parece ter sido o caso do Seridó potiguar.
Douglas Araújo (2006), ao analisar a empresa modernizadora nesta região, chega mesmo a
reconhecer que as tentativas de modernização do campo no Seridó fracassaram entre os anos 60
e 70 e com ele o “orvalho moderno” que bafejava sobre as cidades “apesar da presença de
alguns símbolos modernos”.117
Ainda que neste sentido seja possível identificar processos históricos distintos para as
diversas regiões do país, Arruda reconhece que o “processo modernizador” no Brasil não “se
limitava ao espaço das grandes cidades”, mas “caminhava no sentido de abranger todo o espaço
do território nacional”.118
Para Florestan Fernandes119
, a “modernização” dos espaços nacionais
“irradiou-se da cidade para o campo, através da expansão de uma economia de mercado
moderna” e seguiu o processo de transformação das cidades no momento em que estas
passaram a impor ao campo “seus interesses econômicos, juntamente com os seus ritmos
histórico-sociais e o seu estilo de vida”.120
Com relação ao Seridó Potiguar, Ione Rodrigues Diniz Morais121
testifica que “os
rebatimentos deste processo deflagrado em escala nacional” na primeira metade do século XX
só iria se fazer sentir, embora timidamente, entre as décadas de 1940 e 1970 associado à
dinâmica interna quando “os investmentos em educação, saúde, saneamento básico, moradia,
comunicações, transportes e eletrificação revelavam o tom das inovações na práxis política da
elite comprometida com o discurso da modernização e, por conseguinte, da infra-estruturação
urbana regional”. Assim, à medida que esta “civilização moderna” avançava do litoral em
direção aos longínquos e “isolados” grotões sertanejos, alcançando-os por meio de seus sinais
irradiadores dos quais o automóvel, o avião, as estradas, o rádio e a moda aparecem como
exemplos emblemáticos um tanto estranhos e perturbadores àquele meio, acendia nos seus
habitantes o ensejo de ser decifrada, compreendida, subjetivada, isto é, transformada em signos
de representações significados pelo universo cultural do homem sertanejo. Não é a toa que
desse imaginário “de levar a civilização” aos sertões brasileiros, somente a população letrada
partilhou e incorporou o seu sentido como revelou Arruda.
Nos diversos espaços sertanejos, a “experiência do moderno” pode ser percebida de modo
diferenciada conforme impelimos o nosso foco em direção às populações menos instruídas e
117 ARAÚJO, Douglas, 2006, p. 277-305.
118 Idem, Ibidem, p.193.
119 FERNANDES, Florestan, 1979, p.106.
120 Idem, p.112.
121 MORAIS, Ione R. Diniz, 2006, p.81-82.
59
abastadas. No município de Cruzeta (RN), por exemplo, uma destas possibilidades de
interpretação foi àquela feita a partir do viés escatológico-apocalíptico por uma população
roceira professante do credo católico. Esta constatação nos remete para a constituição de um
processo de significação que perpassa a relação de sentidos produzida em torno do “artefato
moderno” e as referências simbólicas mobilizadas pela memória coletiva deste grupo. Neste
trabalho, nos interessa, mais de perto, o imaginário apocalíptico popular trazido à tona pela
memória social que se construiu em torno dos símbolos do mundo moderno e de como este
ideário foi agenciado para compreender o avanço da modernidade e da modernização no Seridó
e no município de Cruzeta (RN), em particular entre os anos de 1950 e 70.
Ao ser tomado pelo discurso analítico, o conceito convencional de modernidade aplicado
sobre o espaço geográfico abordado, quando não é colocado como engaste entre duas posturas
teóricas contrastantes (a que defende uma atitude de resistência incondicional frente a uma
visível passividade do “sertanejo tradicional” diante das “seduções” do mundo moderno) pelo
menos aparece como campo de conflito. É o que verificamos quando tomamos sua visão de
alteridade ao nos distanciarmos de seus agentes da elite e aproximamo-nos dos sujeitos alijados
das novas forças ideológicas e produtivas que começam a penetrar o mundo rural em
transformação. Abstraída por estes, a “modernidade” surge como agente causador de
perturbações sociais e psíquicas. Subversiva aos valores morais e éticos tradicionais estava
associada a “coisa” estranha, desconhecida, ignorada, sinal apocalíptico ou prenúncio do fim do
mundo. Raciocinada como engenho diabólico, obedecia à forma audaciosa e ultrajante ao poder
disciplinador divino. Ao ser pensada e apropriada pela elite político-econômica regional, sua
noção passa a estar associada aos anseios de progresso, evolução, desenvolvimento
socioeconômico e cultural, modernização, ao “tempo da redenção”.
Em vista disso, é mais procedente pensar que, ao atingir as plagas seridoenses, o processo
de “modernização” do campo e lê-se também aqui do interior do país ou a “marcha” do
progresso e da modernidade antes dele, não foi sentido ou lido senão como “sintomas” ou antes
como “sinais”. É muito provável que as noções de modernidade ou modernização propagadas
pela elite letrada regional entre as décadas de 1950 e 70 tenham sido assimiladas só muito
recentemente pelo contingente populacional arredado dos processos educacionais do período.
Se a noção de modernidade aparece obscurecida ou mesmo indeterminada neste recorte
temporal, como então falar de experiência moderna entre estas populações para quem a acepção
de “modernidade” nem mesmo existia? Todavia, é mais a leitura de mundo que os sujeitos
anônimos fizeram dos “sintomas” e “sinais” da modernidade e menos a das elites regionais que
nos interessa conhecer mais de perto neste trabalho.
60
Se tomarmos como base o contexto histórico abordado, poder-se-ia descortinar uma
região cuja elite político-econômica local buscava afirmar-se nos valores de civilidade e
progresso representados pela vida racional na cidade e no campo; pelo desenvolvimento do
comércio, do transporte e da indústria; da educação técnica e da saúde em termos de políticas
públicas. Estes temas, bastante rotativos nos discursos de políticos e intelectuais seridoenses,
apareciam como o caminho mais curto para se chegar à “modernidade”, aqui entendida em
oposição a um sentimento de ruptura com o passado de atraso, de dificuldades e de estigmas
provocados pelas adversidades da natureza e da sociedade que vinham “castigando” as
populações locais desde épocas pregressas.
A busca pelo progresso do sertão seridoense presente nos discursos de seus intelectuais e
políticos representa o desejo das elites político-econômicas locais em sintonizar o território
regional com as tendências externas processadas em outras partes do país e assim superar o seu
passado de atraso. Seguindo a tendência geral, este esforço foi empreendido num momento em
que os espaços territoriais sertanejos passaram a ser vistos como um fator de impedimento para
a modernidade da região e da nação. A problemática das secas no semi-árido nordestino era um
destes fatores que mais suscitavam preocupações nos meios políticos, já que suas mazelas
acabavam por afetar as estruturas socioeconômicas de todos os níveis sociais pondo em perigo
o controle social e ameaçando o poder político-econômico dos grandes proprietários rurais. Esta
intenção foi bem expressa no discurso regionalista que defendia a modernização do aparelho
agrícola como motor de superação e desenvolvimento regional que tomava a cotonicultura
como a “panacéia não só de todos os males do semi-árido, mas também dos Estados do norte e
até da Nação [onde] o algodão seria o deus ex machina que teria a virtude de integrar o ignoto e
longínquo sertão à nacionalidade”.122
Em vista disso é que os esforços da elite política regional
seriam somados com a intenção de fazer com que alguns empreendimentos modernizantes nos
setores da educação, dos transportes, do crédito, da infra-estrutura urbana etc., fossem
implementados nesta direção.
Em fevereiro de 1909, quando o estadista norte-rio-grandende Eloy de Souza em
coferência proferida no Palácio do Governo, chama atenção da assistência para a existência de
uma “terra viril e nobre” em que todos deviam conhecer e onde ele acreditava encontrar “nossas
energias latentes”, “uma coragem ignorada” e “a alegria dos sãos”, ele se referia a um “Seridó”
com “qualidades nativas” que encontrou numa das suas viajens ao interior do Estado no distante
ano de 1904 e que em seu prognóstico logo em breve padecerá estremecido “sob o peso de
extensas filas de carros, fragorosamente arrastados pela força das locomotivas em marcha, a paz
122 MACÊDO, Muirakytan K. de, 2005, p.185-186.
61
dos seus campos (...) quebrada, a serenidade das tuas montanhas interrompida, maculada a
beleza das tuas várzeas, insegura a tranquilidade de teus rebanhos” em função do benfazejo
progresso.123
É certo que os trilhos da locomotiva não avançaram. Mas entre o vaticínio de Eloy de
Souza predicado em 1909 e a obra Vaqueiros e Cantadores publicada em 1939 onde Cascudo
decreta o desaparecimento de um “sertão típico”, jazeu um período de três décadas. É deste
interregno de tempo que chegaram até nós as memórias dos “fords besta fera” que encenam a
passagem dos primeiros automóveis pela região do Seridó, alguns deles levados ao sertão
seridoense pela Inspetoria de Obras contra as Secas (IOCS), transformada em Inspetoria
Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), em 1919, e mudada em Departamento Nacional de
Obras Contra as Secas (DENOCS), pelo Decreto-Lei n. 8.846, de 28 de dezembro de 1945.
Em Vaqueiros e Cantadores Cascudo situa as transformações provocadas pela penetração
da “vida modernizada” no sertão norte-rio-grandense a partir da segunda década do século XX,
quando as estradas de rodagem, o automóvel, o rádio, os jornais e a luz elétrica, começam a
modificar sensivelmente o modus vivendi das populações locais. Ao publicar aquela que seria
considerada por muitos estudiosos da cultura popular sua obra prima em 1939, ele o faz como
decreto de morte de um sertão que viveu e experimentou na sua infância e que agora está
fadado a desapacer por completo sob o peso desconsertante da modernidade. Era o mito de um
sertão “desolado” e “estacionado” no tempo vivendo um “eterno passado inarredável” na forma
de um “museu retrospectivo” que ele traz na mente. Antes de se constituir uma verdade
histórica, esta visão representa o desejo de continuidade de um “sertão típico” que para ele
“uniformiza-se” e “banaliza-se” como se houvesse por parte de todos os sertanejos –
verdadeiros culpados pelo desprezo aos valores tradicionais –, uma consciência deliberada da
experiência moderna. Mas, ao contrário do que pensava, por trás desta aparente passividade do
sertanejo relutava uma resistência exprimida no imaginário diante do “desconhecido” elemento
moderno.
Quando a política de “modernização” do sertão começa a modificar a geografia física e
humana de sua paisagem a partir de elementos estranhos ao meio interferindo no modo de “vida
tradicional” de suas populações (lembremos das grandes rodovias de roldagens construídas a
partir da segunda década do século XX para a circulação de automóveis por onde se chega aos
mais longinquos ricões as novidades do “mundo civilizado”)124
, são os códigos de leitura desta
123 SOUZA, Eloy de, 1982, p.20-29.
124 De acordo com Macêdo ( 2005, p.209) foi ainda no governo de Jaquim Ferreira Chaves (1914-1920) que “a
estrada [de automóveis] do Seridó que ligava Caicó à Macaiba foi concluída, denotando uma maior integração
62
nova realidade que a população local ignora ou não domina, utilizando-se de suas referências
tradicionais para interpretar a realidade de seu mundo em transformação. O estranho e o
desconhecido causam temor. São as formas de como foram percebidos estes “símbolos de
modernidade”, até então desconhecidos e estranhos às referências tradicionais destas
populações, que acionam no imaginário popular um “sistema de leitura de mundo” já bastante
conhecido pelo sertanejo nordestino, interpelando-os como os “sinais apocalípticos” que
haveria de surgir nos últimos tempos.
Este decurso se torna ainda mais intenso nesta conjuntura porque o avanço da
modernidade coincinde com uma expansão das crenças apocalípticas populares pelas plagas do
Nordeste árido. Ainda Padrinho Cícero do Juazeiro deixou dito, pela boca de seus romeiros, os
sinais que antecederiam no mundo o dia do Juízo divino: “quando o galo cantar em Roma e se
ouvir em todo lugar” e se ver “muito pasto e pouco rastro”, a “roda grande entrar na roda
pequena”, “as estradas se cobrirem de luto” e a “besta-fera andar solta”. São estas referências
fundamentadas no “catolicismo rústico” que viajam o sertão adentro e penetram às vilas e
povoados mais recônditos, que chegaram até nós através da memória coletiva.
É questionável se este imaginário imbuído de uma simbologia metafórica e subliminar
tenha partido do Padre Cícero tal como fora apropriado pelo homem simples do sertão tendo em
vista ter sido ele um dos maiores impussionadores do progresso material da região como
demonstrou Della Cava (1976). É provavél que durante sua viajem a Roma, entre o período de
março a outubro de 1898, ele tenha se impressionado com uma Europa já em plena revolução
do progresso e da modernidade e lançado um olhar visionário sobre um Brasil do futuro que
ainda permanecia rural e “atrasado” se comparado com o Velho Mundo. Além disso, não é raro
encontrar enunciados e declarações que revelam de sua parte uma perceptível consciência de
que grandes transformações, tanto no plano moral e ideológico quanto no plano físico da
existência estavam sendo operadas nos centros mais dinâmicos do país e que em breve
alcançariam as regiões mais longínquas da nação em seus escritos e correspondências pessoais.
Em vista disso, é mais coerente pensar que muitas destas profecias atribuídas ao Santo do
Juazeiro não se trata do Padre Cícero falando por ele próprio, mas já o povo se fazendo falar
pelos lábios do Padrinho, uma vez que no imaginário popular sertanejo, a figura do santo
padrinho surge geralmente circundada em mistério numa configuração que se torna difícil
distinguir o homem do mito. No universo imaginário do sertanejo estas duas dimensões da
realidade se imbricam.
De modo geral, é mais provável admitir que muitas destas profecias conhecidas pelo
entre o Seridó e a capital, algo com dimensões inéditas até o século passado”.
63
sertanejo seridoense e conferidas ao santo profeta do juazeiro, sejam, na verdade, resquícios,
fragmentos e recriações de velhas tradições ou crenças apocalípticas que circularam pelo sertão
em épocas pretéritas e que chegaram ao século XX por meio da oralidade e da memória
coletiva. O tempo e as transformações da história cuidaram de lhes conferir novas
interpretações e significados, agregando a seu repertório simbólico outras imagens e
representações na medida em que estas abrolhavam das novas experiências que iam sendo
tecidas.
Esta disposição do imaginário entraria numa fase acentuada de transformação a partir de
meados do século XX, quando a intromissão de novas referências culturais disseminadas pela
expansão de outras vias de transmissão da cultura, passam a se estabelecer na região
coexistindo com os canais por onde tradicionalmente este imaginário pulsava. Um exemplo
disso foi a massificação do rádio e a expansão da imprensa, ocorrido entre os anos 50 e 70,
através dos quais se chegava ao conhecimento da população local as notícias sobre guerras,
invenções e conquistas científicas, discos-voadores e cometas, da “moda escandalosa” e do
temido “comunista”, personagem que no imaginário local foi associado ao Anticristo e ao
“Capa-verde”, lendária figura sobre quem Padim Ciço havia profetizado o aparecimento no fim
dos tempos.
A construção e a expansão das rodovias intermunicipais e a ampliação dos sistemas de
transporte que tornaram mais rápida e eficiente a comunicação e a integração das cidades
interioranas, com os centros mais dinâmicos da região e do país, também foram importantes
neste processo. No município de Cruzeta (RN), era especialmente por intermédio do ônibus da
Empresa “Artur Dias” que fazia diariamente a linha Cruzeta-Natal que chegavam diariamente à
cidade as novidades “do mundo mais civilizado” e os cruzetenses podiam “receber e ler todos
os dias, jornais, revistas e vários outros tipos de comunicação da Imprensa do Estado e do
País”.125
A televisão, “esse maravilhoso invento que nos permite, além de ouvir o som, ver a
imagem que também é transmitida pelo espaço”126
no dizer de Terezinha Goes, só apareceria na
cidade no primeiro qüinqüênio dos anos 60.127
Levados a atuar, sobretudo no espaço urbano, estas novidades da história acabariam por
engendrar novas representações sobre a cidade que puderam ser assimiladas pela população
local, especialmente pelos sitiantes cruzetenses, forjando, em seu imaginário, novos sentidos do
125 GOES, Terezinha de Jesus M., 1971, p.27.
126 Idem, p.26.
127 O primeiro aparelho de televisão que se tem notícia em Cruzeta, pertenceu ao ex-prefeito Sinval Azevedo
(1925-1992). Conta Alexandrina Campus em entrevista realizada no dia 22/08/2012, que o mesmo teria adquirido
o aparelho no município de Macaíba/RN quando por lá residiu alguns anos e levado à Cruzeta no início dos anos
1960 por ocasião de seu retorno a terra natal.
64
espaço citadino. Era na cidade ou na vila mais próxima que o sitiante tradicional128
travava
contato com as novidades do século e tomava notícia do que se passava por outras “bandas”
distantes. Era também na cidade que o velho camponês e sua família comerciavam o excedente
da colheita no dia da feira e participavam das celebrações ao santo padroeiro da freguesia e das
festas de fim de ano tecendo com o ambiente urbano seus vínculos de diferença e afinidade.
O fato de freqüentar a cidade dava ao morador rural o conhecimento da existência de um
modo de vida diferente do seu, o modo de vida citadino que em muitos aspectos era
considerado “estranho” ao seu gênero de vida tradicional. Embora estivesse subordinado à
cidade por um regime de complementaridade, pois trazia para ela os produtos que esta
consumia e com a renda de sua venda adquiria nela os produtos que não produzia, o sitiante
tecia com a cidade uma relação ambígua reconhecendo sua própria dependência a ela e de certo
modo lhe valorizando, ao mesmo tempo em que também a encarava de maneira negativa, como
centro de difusão de erros e vícios.129
Mesmo quando as dificuldades apertavam e o velho
sitiante e sua família eram obrigados a deixarem o campo e vir “tentar a vida” na cidade, muitas
de suas tradições, crenças e superstições apreendidas no universo dos currais e do roçado
continuavam a serem transmitidas no novo ambiente de vivência até irem se modificando aos
poucos ou sendo esquecidas. Ali eles encontravam novos sentidos, um novo criadouro para a
reformulação de seus imaginários tradicionais.
Com o fenômeno da expansão urbana na região do Seridó, a vida social mais dinâmica
que antes irradiava da “fazenda de criar” – espaço que até o final do século XIX havia sido por
excelência o lugar “de moradia e de trabalho do homem seridoense, que se dedicava à lida com
o gado e a semeadura da terra”130
– foi sendo canalizada para as cidades. Pouco a pouco as
cidades foram “cooptando todas as substâncias vitais, inovadoras, criadoras e transformadoras
para si [...] [ao irem se estabelecendo] “como território das trocas, das feiras, o mundo das
relações mercantis”.131
O impacto deste processo na vida social dos seridoenses foi tão
expressivo a ponto de ser considerado por Araújo132
como “a grande novidade que se
descortinou, no Sertão do Seridó potiguar, no decorrer da primeira metade do século XX”.
Para o autor citado acima, dois processos foram cruciais para o florescimento das cidades
seridoenses neste período: o êxodo rural, especialmente por parte de uma população sitiante
128 Adotamos o conceito utilizado por Müller apud. Queiroz (1973, p.49) como sendo “todo pequeno produtor que,
responsável pela lavoura, trabalha direta e pessoalmente a terra com a ajuda de sua família e, ocasionalmente, de
alguns empregados remunerados”. 129
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de, 1973, p.23. 130
MORAIS, Ione Rodrigues Diniz, 2006, p.80. 131
ARAÚJO, Douglas, 2006, p.248-249. 132
Idem, ibidem.
65
empobrecida que migrando para a cidade engrossava a fileira de sua população consumidora e
estimulava uma maior circulação de mercadorias, e o avanço da agricultura comercial do
algodão, que impulsionada pelo sucesso de sua comercialização no mercado internacional e
nacional, “fizeram arrastar para a urbe um espectro de inovações técnicas que ajudaram a
modificar, em muito, as feições do Seridó urbano [mas que] afetaram muito pouco a tradição
rural”.133
O clima de prosperidade econômica gerado por estes fatores acabaram atraindo para as
cidades seridoenses os símbolos modernos que foram aos poucos maquiando o seu aspecto rural
e dando a elas uma “vernizagem moderna”.134
No tocante a isso, Morais observa que entre as
décadas de 1940 e 70 “as relações campo-cidade estavam sendo paulatinamente alteradas e os
caminhos do desenvolvimento regional, cada vez mais, conduziam as trilhas da cidade”.135
No
espaço citadino, “os investimentos em educação, saúde, saneamento básico, moradia,
comunicações, transporte e eletrificação revelam o tom das inovações na práxis política da elite
comprometida com o discurso da modernização e, por conseguinte, da infra-estruturação urbana
regional”.136
Mas os signos de modernidade não ficaram apenas circunscritos aos empreendimentos
concretizados pelas reformas e políticas públicas de infra-estruturação urbanas. Aliado a um
projeto mais amplo de integração nacional e de formação de um mercado interno consumidor
para a expansiva industrialização do país, o mercado regional esteve reorientado para esta
ideação neste contexto. No panorama interno da região, a onda modernizadora e o avanço do
capitalismo provocado pelo progresso material e das novas tecnologias criaram a emergência de
uma sociedade de consumo que passou a ter na cidade seu espaço privilegiado. Lugar por
excelência das novidades, as cidades atraíram para seu centro gravitacional – os núcleos
urbanos – uma gama cada vez maior de objetos filhos dos novos tempos e da florescente
indústria cultural que foram sendo incorporados ao cotidiano das pessoas redefinindo em
muitos aspectos os costumes, tradições e comportamentos sociais na medida em que também
passavam a estar relacionados à idéia de progresso e adiantamento frente ao passado de atraso
que ainda parecia perdurar no campo.
De outra maneira, para o homem rural, alijado das novas forças ideológicas e produtivas e
atado às precárias condições de vida e trabalho no campo, as transformações em curso nas
cidades que lenta e gradativamente acabavam penetrando o universo dos currais se processavam
133 Idem, ibidem, p.249.
134 Idem, ibidem.
135 MORAIS, op. cit., p.82.
136 Idem, ibidem.
66
muito mais como mudança da percepção de um mundo que já não é mais ou que já não está
sendo, movida pelas incertezas e temores do que ainda estava por vir. Não por acaso o velho
sitiante as viveu muito mais como “sintoma” ou “sinal” de um mundo (o seu mundo da tradição
e do conhecido) que parecia peregrinar para o fim tendo como centro de tensão e conflito os
terrenos da percepção e do imaginário que colocava em confronto todo este universo das
novidades com suas referências e valores tradicionais. Aí o cotejo travado entre estes dois
mundos assumia a forma de uma guerra escatológica. Para o universo mental do homem
sertanejo tradicional, que concebia a história sob um prisma de um significado meta-histórico, a
“modernidade” se revelava como um apocalipse.
Engolfado no mundo da tradição rural e atrelado a este por laços sagrados de afeto que o
fazia enxergar nas novidades do século os acontecimentos “perturbadores” das profecias do fim
do mundo, o seridoense tradicional encontrava nos medos escatológicos uma maneira de
afirmar e reforçar suas identidades de grupo. No universo da tradição rural margeado pela
esfera do sobrenatural e do sagrado onde a religião ocupava uma posição nuclear e básica e
funcionava como um sistema simbólico por onde as experiências humanas eram interpretadas,
os medos escatológicos desempenharam um papel mantenedor de suas estruturas e referências
tradicionais. Mais que isso, eles faziam parte de uma estrutura imaginária que colocava a espera
de um fim escatológico para mais perto do cotidiano sertanejo ao conceber o medo do inferno e
a esperança do paraíso – fins últimos da humanidade – como vetores de orientação dos
comportamentos terrenos.
2.3. A ESTRUTUTA IMAGINÁRIA DOS MEDOS ESCATOLÓGICOS
Uma preocupação muito constante entre os sertanejos seridoenses era com o destino de
sua alma na pós-morte. Esta atitude era bem apregoada na crença muito difundida entre os
sertanejos da região de que logo quando deixasse o corpo do moribundo, a alma era
transportada para o além onde teria seus pecados “pesados” num primeiro julgamento e só em
seguida recebia como recompensa a beatitude do céu ou o perene castigo no inferno, caso não
precisasse passar no purgatório conforme a sentença julgada em juízo de seus atos. Ali a alma
devia permanecer até se completar as eras de onde sairia para ser julgada diante do tribunal do
soberano juiz no dia do Juízo Final. A expressão popular “diminuir o peso dos pecados”, ainda
utilizada por muitos cruzetenses para referir-se a uma situação penosa tolerada, confere a
presença deste imaginário entre os seridoenses num passado não muito distante. Esta crença na
existência de um pré-julgamento individual após a morte fora muito intensa entre os homens
67
medievais, sendo transmitida aos vastos sertões brasileiros pelos colonizadores lusitanos,
clérigos e missionários.
Num saltério francês do século XIII que evoca um episódio do Juízo Final, um anjo (o
arcanjo S. Miguel) é representado segurando uma balança de duas conchas (o prato dos pecados
e o das virtudes). Na sua direita, uma fileira de fiéis defuntos aguardam ansiosos a pesagem de
suas almas enquanto do lado esquerdo alguns diabinhos tentam trapacear a cena. Se o prato das
virtudes obtivesse maior peso a alma receberia como recompensa o paraíso (o céu). Caso
contrário, seria lançada no inferno para o perpétuo castigo. A condenação eterna muitas vezes
não pesava mais que uma pena. (Ver imagem 02 em anexo). Para além do mundo medieval este
mesmo tema (de longuíssima duração) continuou a ser representado no Ocidente
Contemporâneo.
Transmitida ao Novo mundo pelo colonizador europeu, ela persistiria ainda com alguma
força no imaginário religioso do homem rural nordestino como constata uma gravura
confeccionada por um xilógrafo paraibano da segunda metade do século XX que traz na
ilustração uma performance entre três personagens conhecidos: o Diabo, o arcanjo S. Miguel e
a Virgem Maria, esta última uma inovação. Na cena soteriológica, S. Miguel é representado ao
centro entregando a Nossa Senhora uma balança, enquanto do lado direito o Diabo que parece
enfurecido avança diante da trama. Nenhuma alma seria perdida pelas mãos intercessoras da
Onipotente Advogada.137
(Ver imagem 03 em anexo).
Esta crença na onipotência suplicante de Maria, muito difundida entre os sertanejos do
Nordeste, foi bastante expressa na simbologia dos rituais funerários católicos. Buscando a
salvação na pós-morte, o devoto da Virgem esperava que ela intercedesse por sua alma no dia
de Juízo e a livrasse das penas eternas do Inferno.138
O antigo costume difundido entre os
católicos seridoenses de sepultar os seus mortos especialmente do sexo feminino trajando-os
com o hábito da Santa (a mortalha, geralmente nas cores branco e azul do traje de Nossa
Senhora da Conceição) revela o desejo em vida do falecido de ser reconhecido pela Virgem no
137 Na tradição católica, transmitida ao Novo Mundo pelo colonizador europeu, é recorrente entre os fiéis a crença
de que Nossa Senhora está incessantemente intercedendo pelos pecadores junto a Jesus Cristo (o justo juiz),
assumindo o papel de advogada das almas que a evocam em juízo. Na religiosidade popular do Nordeste, ela se
torna na grande intercessora dos oprimidos e desvalidos da terra que diante das adversidades da vida (a seca, a
miséria, a injustiça e a violência) se volta para estes com clemência. 138
Na Missão Abreviada, suplica o fiel na presença da Virgem: “Rogai, rogai ó Maria, em quanto [sic] me não
virdes salvo no paraízo [sic]”. (COUTO, M. J. Gonçalves, 1868, p. 669. No “Lembrai-vos”, oração mariana
atribuída a São Bernardo (1090-1153) e muito rezada ainda hoje pelos católicos, o devoto se dirige a Maria com
estas palavras: lembrai-vos, ó piíssima Virgem Maria, que nunca se ouviu dizer que algum daqueles que têm
recorrido à vossa proteção, implorado a vossa assistência, e reclamado o vosso socorro, fosse por Vós
desamparado [...]. Na “Salve Rainha”, prece muito apreciada entre os católicos seridoenses, Nossa Senhora é
evocada como “advogada nossa” e “Mãe de misericórdia” capaz de abrir para o pecador arrependido o oceano
infinito das indulgências divinas.
68
mundo do além, e, assim, ser conduzido para alguma das muitas moradas do céu ao encontro
das almas dos parentes mortos, depois de, quem sabe, passar pelo fogo do Purgatório. Temia-se,
com isso, que ao ser confundido com outra alma, o espírito do fiel defunto viesse a se perder –
virar “alma penada” ou cair na danação. Esta observância nas práticas do “bem morrer” foi
bastante empregada durante o período de colonização dos sertões seridoenses se estendendo ao
longo do Império e de forma mais mitigada pelo século XX.139
Para além do imaginário das práticas funerárias, a crença na onipotência suplicante da
“Mãe de Deus” foi particularmente expressa numa tradição imemorável da Sagrada Família
desdenhada pelos Evangelhos canônicos cujos fragmentos sinópticos Cascudo encontrou
gravado na “fé sertaneja” de sua avô materna nos albores do século XX.140
De acordo com a referida crença transmitida entre os nordestinos rurais pela oralidade,
antes de elevar-se ao céu, Nosso Senhor apanhou um punhado de areia e, dirigindo-se aos seus
discípulos disse-lhes, que até mil e tanto o mundo não passava, e lançou-o ao vento. Nossa
Senhora, por sua vez, apiedada com a brevidade do prazo concedido, encheu a sagrada
mãozinha de areia e atirando-a ao ar, suplicou: - E mais estes anos, meu Filho!141
Resquício de
uma antiguíssima tradição oral escatológica que circulou no sertão nordestino durante séculos,
esta crença que conferia a Virgem Maria um papel singular no plano divino de redenção da
humanidade, era bastante conhecida dos católicos cruzetenses entre as décadas de 1950 e 70,
especialmente no círculo daqueles de procedência rural (ver imagem 04 em anexo). Pedro
Pereira, 53 anos, morador do município de Cruzeta (RN), contou que em sua infância ouvira
muitas vezes a mesma estória narrada pela boca dos pais quando ainda residia no sítio Riacho
da Barra (zona rural da cidade) nos anos 1960 e 70.
Eles falavam neste sentido: “meu filho, dois mil ninguém vai interar, por que o
ano vai se acabar em dois mil. Dois mil anos não vai completar”. [...] Isso em
1970, 69, 70. E eles acrescentavam: mas Nossa Senhora quando Jesus disse
que dois mil não completava jogou um punhado de areia e disse desse jeito:
“mais esses”. Ela jogou mais um punhado de areia dizendo “mais esses
anos”.142
Transmitida entre os círculos das relações intergeracionais, na cidade, o emigrante do
campo conservaria com a mesma força esta crença no ensejo das expectativas para o segundo
milênio.
A respeito da crença na pesagem dos pecados ou da alma, Cascudo (1951/2002) registra a
139 Ver MACEDO, Helder Alexandre M. de, et. al., 2004.
140 CASCUDO, Câmara, 2002, p.407.
141 A referida crença foi adaptada de Cascudo (2002, p.407) de acordo com as narrativas encontradas entre os
depoentes da pesquisa procurando conservar as expressões originais. 142
Depoimento concedido pelo Sr. Pedro Pereira da Silva, 53 anos, no dia 03 de Novembro de 2009.
69
passagem e atesta a continuidade da tradição na memória coletiva dos grupos rurais tradicionais
do Nordeste árido.
[...] o espírito, apenas desprendido da matéria, comparece perante o arcanjo
São Miguel, e, tomando ele a sua balança, coloca em uma concha as obras
boas e na outra as obras más, e profere o seu julgamento em face da
superioridade do peso de uma sobre as outras. Quando absolutamente não se
nota o concurso de obras más, o espírito vai imediatamente para o céu; quando
são elas insignificantes, vai purificar-se no Purgatório; e quando não tem em
seu favor uma só obra boa sequer, vai irremessivelmente para o inferno, de
onde só sairá quando se der o julgamento final, no dia de Juízo, seguindo-se
então a Ressurreição da Carne.143
A referência ao Purgatório como um lugar físico extraterreno para onde a alma do fiel
morto é conduzida no pós-morte para ser purificada de suas imperfeições é outra
“reminiscência medieval” conservada ainda hoje no imaginário religioso do seridoense, embora
neste fim de século, ele tenha tornado uma realidade volvida à condição humana terrena de
sofrimento para as mentes mais céticas. Mesmo hoje nas paróquias seridoenses não é rara a
existência de confrarias e/ou congregações leigas que se dedicam, além de outras tarefas, a
rezar pelas almas do Purgatório. Nas Igrejas da região, é possível encontrar em algum local
reservado, seja incrustado ou pendurado nas paredes, seja em pequenas caixas confeccionadas
de madeira ou zinco (este mais incomum), um depósito com as inscrições: “Esmolas para as
almas”, embora que, nas duas últimas décadas, estas estejam mais vazias. Muitos são, porém
ainda os que acreditam que “alimentadas” pelas orações ou fortalecidas pelas ofertas dos fiéis,
estas almas encurtariam seu tempo no Purgatório, proporcionando-lhe conforto e refrigério
salvífico no além, apressando, assim, seu sufrágio para os céus.
Suscitando uma sensibilidade agente até o segundo quadrante do século XX, a ideia da
pesagem dos pecados no pós-morte sistematizada no processo soteriológico (Julgamento
Inferno/ Julgamento Paraíso/ Julgamento Purgatório Paraíso) ainda encetava receio entre
os católicos seridoenses mais fervorosos e provocava arrepios naqueles cruzetenses mais
crédulos. Ela fazia parte de uma estrutura mental imaginária que circulava na região em torno
das crenças “populares” no Apocalipse no interior das quais o Juízo Final e a ameaça sempre
constante do inferno eram comentos muito temidos.
Um caso interessante narrado por uma moradora do município de Cruzeta (RN) atesta
como a ideia do Inferno, como lugar de suplício e danação, ainda exercia uma forte impressão
na mentalidade de seus habitantes no limiar da década de 1960, prosseguindo pelo menos até a
primeira década do último quadrante do século XX. Certa vez, quando ainda criança, no
143 CASCUDO, Câmara, 2002, p.32.
70
cumprimento de suas obrigações habituais, ela conta que, estando a executar um trabalho
penoso e já por isso muito aborrecida, um dos irmãos se aproxima indagando o paradeiro da
mãe ao que ele ouve com aspereza: “foi pro inferno”! E, assim, sabedora do ocorrido, a mãe
gravemente ofendida, empunhando um arreador (tipo de corda grosseira utilizada pelo sertanejo
no trato dos animais) lhe aplica sem pena muitos golpes144
. Mandar alguém para o inferno ou
desejar que se esteja naquele lugar escabroso era uma ofensa terrível e mais ainda se o injuriado
fosse um membro da família, sobretudo um dos pais. Além do grave pecado que isto incorria, o
conjurado não estava isento de ter como castigo divino o rogo da praga contra si. A ideia do
Inferno como lugar de pavor onde a alma do condenado sofre as penas eternas sob os cepos dos
demônios no além persistiu com certa força no imaginário do seridoense até muito
recentemente. (Ver imagem 05 em anexo).
Elas também foram constitutivas em demonstrar como a Igreja católica continuou
utilizando estas “imagens do medo” como forma de obter seus intentos ainda em uma época
não muito distante de nosso tempo. Outra moradora do município de Cruzeta chegou a relatar
que teve mesmo de assistir apavorada durante as Missões dos padres Redentoristas na cidade no
início dos anos 1960, a projeção de quadros luminosos nas laterais da Igreja que reproduziam
cenas do céu e do inferno com anjos alados entre nuvens e diabos pretos a brandir espetos
afiados, causando forte impacto em sua imaginação pueril.145
O recurso a ideia do inferno como
um “lugar de suplícios onde não existe qualquer redenção, onde os homens sofrem o martírio,
no meio de gritos, de lágrimas e de ranger de dentes, com o alcatrão a escorrer, as lanças
afiadas, as tenazes que maltratam as carnes” 146
, seriam ainda bastante utilizadas pela Igreja até
a véspera do Concílio Vaticano II (1962-1965) e creditada pelos católicos até pelo menos a
primeira década do último quadrante do século XX.147
É verdade que ainda podemos encontrá-la com algum arrimo no imaginário dos católicos
mais afoitos, especialmente entre os mais velhos, sem falar, então, do público evangélico,
144 Relato concedido pela Sra. Ana Lúcia Rodrigues dos Santos, 61 anos, no dia 10 de Fevereiro de 2013.
145 Depoimento concedido pela Sra. Maria Letícia Vito dos Santos, 63 anos, no dia 24 de Agosto de 2012. Sobre as
Missões dos padres Redentoristas realizadas em abril de 1962 no município de Cruzeta, registrou Pe. Ernesto da
Silva Espínola, vigário paroquiano: “Foi um espetáculo encantador para a história religiosa de Cruzeta. Todos os
paroquianos, mesmos os mais afastados buscaram as grades do confessionário, destruindo o homem velho e
edificando o homem novo [...], na vivência dos sacramentos. Foram muitos daqueles cujas vidas se extinguiam,
cuja fé se apagava, que as reavivaram pelo manancial da graça emanada do Cristo místico. O movimento religioso,
durante as missões, na paróquia de Cruzeta, bateu “Record”, com um número de 9.850 comunhões. (Primeiro
Livro de Tombo da Igreja matriz da paróquia de Nossa Senhora dos Remédios, 1944-1993. Cruzeta-RN, 01 de
abril de 1962, folha 41). 146
BECHTEL, Guy, 1998, p.143. 147
Ver a este respeito HOEFLE, Scott William, 1997.
71
circuito onde estas imagens circulam particularmente com mais eficácia148
. Mas é também
provável que ao lado desta imagética sobrenatural do Inferno tenha se desenvolvido outra visão
menos abstrata que parece suplantar aquela na maioria das mentes no limiar do último milênio:
a noção de que “o Inferno é este que agente vive”, na dimensão real do presente, do cotidiano,
no aqui e agora. Um Inferno secular movido pela vida cada dia mais acelerada e cambiante.
Mas seria preciso uma forte dose de estressamento para que este homem conservador por
formação se “desencantasse” do seu mundo. O impacto da experiência moderna na cidade, ela
mesma instituidora duma nova racionalidade ou visão de mundo, com ritmos próprios, posturas,
valores, referências e papéis sociais, talvez tenha sido a grande mola deste “despertar”.149
Beatriz Sarlo (2002), estudiosa da cultura popular na “pós-modernidade” coloca no centro
da vida moderna campesina e urbana o poder simbólico que a indústria cultural e os meios de
comunicação de massa exerceram nesta mudança de mentalidade, responsabilizando-o,
principalmente pela ruptura do hermetismo das culturas camponesas, da perda das “identidades
cristalizadas” e do rompimento com a obediência cega às autoridades tradicionais dominantes
(a Igreja Católica, por exemplo, que exerceu até pouco tempo uma forte influência na
continuação da ideia do inferno). “Onde quer que cheguem os meios de comunicação de
massa”, assegura a autora, “não passam incólumes as crenças, os saberes e as lealdades”.150
Embora na segunda metade do século XX a imagem de um Inferno cristão com diabos
horrendos, labaredas, enxofre e tachos enormes a torrar os danados continuasse a ser concebida
mentalmente com certo temor pelos seridoenses e cruzetenses de modo particular, ela se
constituiria cada vez mais num imaginário peculiar de uma população roceira que mesmo
incorporada progressivamente à esfera da cultura urbana não sofreria na totalidade os efeitos da
“modernização” ou da “urbanização civilizatória” a ponto de perder suas referências
tradicionais.151
Mesmo depois que o “progresso” gerado pelo frenesi mercantil ensaiou nas
148 Por não se constituir foco da pesquisa, o imaginário apocalíptico incluindo a produção imagética do Inferno e
do Juízo Final muito evidente entre os grupos protestantes não serão objetos de análise deste estudo. 149
O economista alemão Max Weber tematizou este problema de modo insuperável em sua obra A ética
protestante e o espírito do capitalismo a partir do conceito de “desencantamento do mundo”. Para Weber, o
processo de “racionalização” retomado pela sociedade ocidental com o encadeamento da ‘modernidade’ e o
desenvolvimento do capitalismo, gerou um processo de ‘desencantamento’ das concepções religiosas do mundo
predominantes nas sociedades pré-capitalistas, isto é, de fragmentação da consciência e das esferas de valores que
se pautavam na lógica e na eficácia da religião como única forma de explicação do mundo, instituindo outras
formas (não mais somente fundadas no sobrenatural e nas concepções mágicas da vida) de ver e situar-se no
mundo. 150
SARLO, Beatriz, 2002, p.102. 151
O sentido do termo “urbanização civilizatória” refere-se ao processo discutido por Cândido (1971, p.218) em
estudo já clássico onde defende a ideia de que, sob o ponto de vista da cidade, a expansão urbanizadora tinha um
papel de civilizar os indivíduos “propondo” ou “impondo” ao homem “rústico” “certos traços de cultura material e
não-material” que antes não fazia parte de seu sistema cultural de crenças, saberes e valores, condicionando-o a
uma reação adaptativa.
72
urbes da região o drama da experiência moderna entre as décadas de 1940 e 70 como observou
Araújo (2006) e Morais (2006), o Seridó potiguar jamais foi tão “moderno” a ponto de livrar-se
inteiramente do peso da responsabilidade da memória. A história da empresa modernizadora na
região não foi um processo que se possa dizer hoje pronto e acabado, mas ela se estende além
do recorte estabelecido por este estudo. É uma história que continua. Os rastros deste
prolongamento podem mesmo ser encontrados nos resíduos das “mundividências encantadas”
que ainda povoam o imaginário do homem da região dos quais a continuidade do esquema
cosmológico tripartite do além entre os católicos seridoenses (a crença na existência além-
túmulo do céu, do inferno e do purgatório) é um exemplo.
Talvez a pouca visibilidade dada sobre esta questão nos estudos históricos que trataram
sobre o problema da modernidade na região deva-se especialmente pela predominância do
enfoque dado aos problemas de curta e média duração que levam em consideração as
influências mesológicas e morfológicas deste fenômeno sobre o território estudado, isto é, o
impacto que este exerceu sobre os processos educacionais, físico-estruturais, sócio-políticos e
econômicos em detrimento daqueles que procuram analisar processos mais complexos de longa
duração como ocorre no plano do imaginário e do simbólico.
Visto de outra maneira, o processo de modernização regional também se incidiu sobre o
domínio das subjetividades dos sujeitos interferindo no imaginário de sua percepção do tempo.
Se para o homem norteado pela tradição rural a escatologia era a bússola por onde via avançar
para o fim dos tempos o seu mundo conhecido, para o sujeito orientado pelo mundo moderno, a
modernidade era o telescópio por onde enxergava a humanidade marchando para o melhor dos
mundos.
2.4. O IMAGINÁRIO APOCALÍPTICO POPULAR NA ESTEIRA DA “CULTURA DE
MASSA”
A tradição historiográfica local está intimamente relacionada ao trabalho da professora
Terezinha de Jesus Medeiros Goes. Urdido em meio ao processo de transformações
socioculturais e econômicas pelas quais atravessava a região entre os anos 1950 e 60, o
“Noções de Geografia e História do Município de Cruzeta” reflete o desejo tonitruante das
elites letradas regionais em desenvolver a educação e os diversos setores sociais na qualidade
de vetores de modernização e progresso técnico-científico, intelectual e humano em vista da
superação do passado de “atraso” (leia-se aqui da “ignorância” e da “cultura arcaica” do homem
sertanejo mantenedora da estagnação regional). Não por ventura sua obra ancora-se numa visão
73
urbana da história que ela ver perfilar (ou gostaria de ver?) numa pequena comuna sertaneja que
acredita embalada pelo sonho do progresso como uma seta apontada para um futuro promissor:
a “civilização” e com ela todo o peso simbólico que carrega152
. É no espaço urbano, lugar de
onde fala e produz sentidos, que ela percebe agora encenar as técnicas, os inventos e as
conquistas do mundo moderno em favor da “civilização” dos que “povoam” o lugar
consagrando a cidade como ambiente por excelência do progresso, da polidez, da cultura, da
ciência e da vida em sociedade.
Operando sob inspiração de uma idéia de história muito em voga nos quadros intelectuais
do governo os quais vincula sua obra (a Secretaria de Educação e Cultura, o Centro de Estudos
e Pesquisas Educacionais e o Instituto Histórico e Geográfico do RN, todos empenhados em
articular o processo de educação a um projeto de modernização e integração nacional), o
sentido da história em Terezinha Góes é aquele herdeiro do pensamento iluminista oitocentista
que tencionava o esclarecimento da humanidade através do instrumental da razão. Perpassada
por uma idéia derivada da “Ilustração”, sua noção de história está apoiada no otimismo técnico
e científico motivado pelas últimas conquistas do conhecimento humano influenciando sua
concepção de “tempo sagital”, isto é, aquele que apontava que o destino humano caminhava
para uma realização sociocultural e intelectual ainda mais plena no futuro, guiando-se pelo
caminho irretroativo do progresso. Mas, qual o interesse em penetrarmos mais afundo na obra
de nossa autora cruzetense? O que ela, então, nos revela de precioso para o nosso estudo?
Nosso interesse em sua obra é menos pelo que ela diz, do que pelo que não diz.
Assim como todo trabalho historiográfico, o “Noções de geografia e história do município
de Cruzeta” está impregnado de esquecimentos, pois, intencionalmente ou não, a história é feita
também de lapsos de memória que entre o lembrar e o esquecer fazem surgir as lacunas, os
silêncios ocultos que podem revelar intenções, omissões, conflitos e tensões basta que os
questionemos. Ao tecer um enredo de uma história urbana guiada pelo progresso rumo ao
dealbar da civilização, foram os indivíduos identificados com a vida na cidade (os chamados
vultos históricos)153
que pelos seus atos e “feitos” e suas existências excepcionais mereceram
um espaço privilegiado na trama de nossa autora. “Sem estes, o sentido da própria história em
152 De acordo com Azevedo (2003, p.34) “a idéia de civilização trouxe em si a questão material, seja no âmbito da
técnica ou da vida econômica. Ela foi associada ao desenvolvimento do comércio, da indústria e da tecnologia”,
além de estar relacionada ao aprimoramento da estrutura social e do nível intelectual das sociedades. 153
De acordo com SANTOS e ROCHA (2012, p.748-749) “um “vulto histórico” é, antes de tudo, um personagem
notável, insigne, exemplar, cuja memória e atuação sem-par na história mereceram notabilidade e registro para a
posteridade. Este fora ordinariamente pintado como “homem esclarecido”, de “decisões inquebrantáveis”,
envergando uma “moral insofismável” sempre dedicado à “causa” da terra. Tinham como características comuns
“o fato de serem quase todos eles provenientes das famílias e camadas sociais mais abastadas ou dominantes da
sociedade e, por conseguinte detentoras de alguma proeminência política ou prestígio público”.
74
Terezinha Goes seria impensável. Sem suas poderosas atuações, o progresso, a evolução, o
desenvolvimento, em suma, a própria marcha da história e da civilização não teria sido
possível”.154
Mas, onde se situam neste quadro aqueles outros sujeitos habitantes do campo que
na ocasião da publicação do seu livro correspondia à segunda metade da população cruzetense?
Para Terezinha Goes e do mesmo modo para a elite letrada de seu tempo, o campo e, por
conseguinte, a massa de seus habitantes rurais era esta outra parte “menos civilizada” e,
portanto, ainda ofuscada pelas “trevas da ignorância” que nem mesmo parecia ter adentrado na
“marcha da civilização” (leia-se aqui da história), embora já se percebesse alguma
“contaminação” pelo progresso. Seu olhar era o do sujeito-cidadão que via o mundo rural a
partir da cidade – lócus insofismável das mudanças que estavam sendo processadas e levadas a
cabo pelo tão aspirado mundo moderno – agora associado ao novo estilo de vida citadino, ao
lugar-comum do indivíduo polido, “civilizado”, “adestrado”, “sociável”, do homo operandis.
Habitar a cidade era compartilhar de outras representações e significados inerentes ao modo de
viver citadino que incluía aí o inteirar-se nos novos círculos e formas de sociabilidades
sincréticas e o deixar-se guiar (diga-se “iluminar”, “esclarecer-se”) pelas técnicas e os inventos
do mundo moderno.
Diferentemente da cidade, o campo era aquele espaço que permaneceu na estagnação, que
não acompanhou o processo de transformação e evolução da história, visto que ainda vive em
seu “sono profundo” que era necessário “despertar”, isto é, trazer para a civilização rompendo
com a força de seu tradicionalismo que o condenava a seu estado deplorável de letargia. Preso à
dinâmica de seu “eterno devir”, o mundo rural era aquele espaço destituído de uma história
própria, lugar de mudanças lentas e quase imperceptíveis; vestígio de uma sociedade tradicional
em colapso onde o “alento” do progresso e da civilização pouco pudera penetrar.
Em 1962, por ocasião do encerramento do curso de formação de tratoristas realizado na
Estação Experimental do Seridó, assim discursava a professora e representante da Juventude
Agrária Católica (JAC), Alexandrina de Oliveira, em acoroçoamento dos jovens rurais
cruzetenses que acabavam de completar as instruções de como operar a máquina na lide
agrícola:
A sociedade moderna caracteriza-se pelo dinamismo. E o homem ser social
precisa tornar-se sociável. E somos nós os grupos organizados os únicos
responsáveis que iremos atuar como desintoxicantes e lenitivo na sociedade
doente. Como tivemos a oportunidade de ouvir de um conferencista que o
homem é um ser essencialmente gregário, vê-se por aí que as reuniões sociais
são necessárias, porque sem elas se afrouxariam os laços da sociedade. Nossa
ação é necessária que se multiplique. Nenhum resultado teríamos nós desse
154SANTOS; ROCHA, 2012, p.748.
75
maravilhoso curso se daqui partíssemos sem o propósito de lutar, de arrastar
para a realidade aqueles que ainda não despertaram para a vida. [...]
partiremos para a ação, na certeza de dias melhores especialmente para aqueles
que ainda são massa, tudo fazendo para que eles venham a ocupar o seu lugar
no seio da sociedade [...]. [Grifos nossos].155
“Despertar para a vida” e “arrastar para a realidade” aqueles que ainda são “massa”,
significava, também, trazer para o seio da civilização e, portanto, para a dinâmica da
experiência moderna, os sujeitos alijados das novas forças sociais e produtivas que na mira do
discurso pró-modernização regional trazia implícita a condição estorvante do homem do campo
diante dessa nova sociedade que se projeta. Neste novo projeto de civilização movido pela ótica
da racionalidade técnico-científico-capitalista e guiado pelas luzes na história, não havia lugar
para a encenação da ignorância, da irracionalidade e da superstição que costumavam assaltar a
imaginação das mentes mais “incultas”. Pelo contrário, eram estes alguns dos sintomas desta
“sociedade doente” e, portanto, periclitante que os “homens mais esclarecidos” e “os grupos
organizados” (as vanguardas políticas da qual a JAC era o movimento mais atuante no local)
deviam agir como seus “desintoxicantes e lenitivos” levando o “alento da modernidade” e as
“luzes da civilização” para aqueles que ainda viviam distantes destes, “para aqueles que ainda
são massa” (isto é, sujeitos subalternos, incultos e ignorantes e, por isso mesmo, necessitados de
serem conduzidos, educados, tornado úteis).
A educação técnica é então pensada neste contexto como meio de “expurgar” os impulsos
obscuros e supersticiosos das massas rurais alicerçados na imaginação e na visão de mundo
religiosa e mágica (diga-se irracional) do homem do campo acusada muitas vezes de impedir
mudanças efetivas em suas esferas de vida e de ser um dos principais motivos de aversão ao
“elemento moderno”.156
Visto de outro modo, esta circunstância revela uma realidade histórico-social e política
que aparentemente pode nos parecer implícita: a de que a “integração dos sertões à civilização”
e como desdobramento deste processo a modernização das áreas rurais do Nordeste brasileiro
se processaram de forma autoritária e excludente, no sentido de que se buscou imprimir sobre
as classes sociais “subalternas” um modelo ideológico dominante, um ponto de vista que
pretendia hegemônico (o das elites detentoras do poder responsáveis pela direção deste mesmo
processo nas mais diversas instâncias locais) em detrimento de outros valores e visões de
mundo particulares. Mesmo quando se optou por adequar seus sistemas de valores e sentidos
àqueles já existentes localmente, o processo de modernização das áreas sertanejas nordestinas
155 Discurso apresentado no encerramento do curso de formação de tratoristas realizado na Estação Experimental
de Cruzeta em 1962. Trecho transcrito de documento datilografado e conservado pela autora. 156
GALJART, Benno, 1979.
76
se fez com a imposição de imaginários próprios que tiveram que ser apropriados, apreendidos e
decodificados por seus moradores para tornarem-se compreendidos. Neste sentido,
concordamos com Arias Neto157
quando ele nos diz que, ao lançarmos o olhar sobre um
determinado acontecimento
[...] é preciso levar em conta que há uma memória do vencedor (um indivíduo,
uma família, um partido, uma classe social), que se reproduz a partir de uma
narrativa triunfante, normalmente construída por ele próprio, acerca de seus
atos. Essa versão muitas vezes é aceita como verdade até que uma revisão
historiográfica da questão demonstre que as coisas não se passaram
exatamente como contadas.
Foi buscando “enquadrar” a sua narrativa histórica na “memória do vencedor”, isto é, dos
sujeitos sociais originados de uma elite político-econômica e letrada local e regional empenhada
em construir uma memória da nação, da região e do lugar aliada aos seus anseios e projetos
civilizacionais e modernizadores da qual também se via como parte, que Terezinha Goes teceu
os fatos de sua versão da história158
. Este artifício pode ser bem observado em dois episódios
que mereceram registro pela autora em sua obra não por julgarmos terem sido tomados como
“digno de nota”, mas por permitirmos associá-los a uma outra visão dos eventos narrados pela
“memória dos vencidos”. O primeiro destes fatos refere-se à construção de um campo de pouso
no ano de 1954 nos arredores da cidade; o outro, à chegada da propalada energia elétrica de
Paulo Afonso, em 1966. A respeito do primeiro acontecimento, assim registraria a autora:
A 22 de setembro do ano em apreço [1954], era inaugurado a uma distância de
9 quilômetros da cidade, o campo de pouso. Construiram-no os operários da
Estação [Experimental do Seridó], concretizando a iniciativa de Dr. Fernando
Melo, seu chefe. [...] Pousaram no campo para inaugurá-lo, dois aviões de
pequeno porte e um bi-motor. O povo da cidade e dos sítios acorreu em massa
ao local para assistir e aplaudir ao grande feito.159
[grifos nosso].
Em atestado ao desenvolvimento e ao progresso da cidade, comentaria a nossa autora a
respeito da “energia redentora” de Paulo Afonso: “Cruzeta, modesta cidade nordestina, a 16 de
janeiro de 1966 recebia com imensa satisfação dos seus habitantes, a energia de PAULO
AFONSO. Foi um dos maiores passos para o nosso progresso econômico”.160
A historicidade popular trazida à tona pelos depoimentos coletados revela por trás destes
eventos históricos enquadrados na “memória do vencedor” outras versões e experiências
vividas não contempladas por nossa história oficial. Decerto, como podemos notar em estudos
157 ARIAS NETO, José Miguel, 2010, p.224.
158 De acordo com Pollak (1989), o “enquadramento” da memória refere-se ao trabalho de construção de
referências e pontos de referências hegemônicos que se faz sempre em aquiescência dos grupos sociais detentores
dos meios de reprodução da memória institucionalizada pela necessidade de dar continuidade a manutenção do seu
status quo e de evitar a perda da coesão social. 159
GOES, Terezinha de Medeiros, 1971, p.63. 160
Idem, ibidem, p.67.
77
mais recentes, como os de Juciene Felix Andrade (2007) e Marcos Antônio A. de Araújo (2008),
na região do Seridó potiguar seria esta “narrativa triunfante” (a que agrega sentidos aos anseios
de “progresso” e “modernização” de uma elite letrada e privilegiada desejosa em ajustar seus
ideais de vida com aqueles existentes nos grandes centros “civilizados” do país) que
prevaleceria nos estudos sobre o problema da “modernidade” na historiografia regional.
Ao aproximarmos nosso foco de investigação das experiências de outros sujeitos não
impressas nos quadros oficializados da cultura (jornais, periódicos, fotografias, livros e etc.,
geralmente tomados pelos historiadores como os meios de representação por onde as
experiências humanas se exteriorizam), é com outro “imaginário” do “moderno” que nos
defrontaríamos em nossa pesquisa, ainda que tenhamos que concordar com Montenegro161
que
mesmo este outro sujeito situado na “tradição”, “convive, tolera, assimila, reproduz a cultura
oficial” num movimento que tanto pode ser de conformidade e reprodução autônoma, como de
resistência e inversão.
É nesta dialética que coloca em confrontação e intersecção a tradição (isto é, as
referências culturais preexistentes geradoras de permanências) e os símbolos do mundo
moderno (isto é, as novidades da história geradoras de mudanças) que emerge o imaginário
apocalíptico popular como forma de “conformismo e resistência”.162
Isto explica, em parte, por
que a energia de Paulo Afonso de símbolo do progresso e da civilização para Terezinha Goes (e
também para uma elite instruída e político-econômica regional) fora transformada em profecia
do fim do mundo associada a uma conflagração universal entre os sujeitos cerceados dos
significados e valores destes novos códigos simbólicos, e o avião, maravilha mecânica da
ciência moderna, na besta-fera do Apocalipse (a “besta do ar” profetizada pelo padrinho Ciço
para o fim dos tempos).
Esta realidade nos direciona para a compreensão de que é necessário considerar que entre
um primeiro momento concretizado pela penetração e impacto dos “símbolos de modernidade”,
experimentado como aspiração e desejo de uma elite urbana privilegiada aliada a um projeto
mais amplo de modernização capitalista e um segundo momento consagrado na sua apropriação
por uma sociedade de consumo de massa configurada numa fase mais avançada deste processo
(os anos 1960 e 70 no plano nacional de acordo com Ortiz (1999) e os anos 1980 e 90 no plano
161 MONTENEGRO, Antônio Torres, 1994, p.13.
162 Tanto o conformismo quanto a resistência são categorias de análise criadas por Marilena Chauí para explicar as
relações de poder na sociedade de classes, sob o ponto de vista da dominação econômica, política e cultural para
referir-se a forma ambígua pela qual as classes populares enfrentam as situações de domínio e controle incidentes
sobre elas. Relação que é mais preferível ser tratada como “[...] tecido de ignorância e de saber, de atraso e de
desejo de emancipação, capaz de conformismo ao resistir, capaz de resistência ao se conformar. Ambiguidade que
o determina radicalmente como lógica e prática que se desenvolvem sob a dominação”. (CHAUÍ, 1987, p.124).
78
local), existiu um lapso de tempo, uma história da qual o imaginário apocalíptico popular foi
apenas o seu preâmbulo. Não obstante, ter sido este lapso de tempo, esta história silenciada
pelos discursos culturalistas que pintavam as “culturas populares” e “tradicionais” como
estanques em sua passividade ou em sua oposição/contradição diante daquilo que elas não eram
uma “cultura de massa” numa sociedade moderna.
Discutir, pois, a cultura popular numa dialética entre “tradição” e “modernidade” a partir
da lógica do simbólico e do imaginário é atentar-se para uma visão relativizadora da alegada
passividade ou rebeldia das “massas populares”, procurando entender que o significado de um
signo de cultura não atua sobre nós como se fôssemos uma tela em branco que precisasse ser
preenchida, mas “é atribuído em parte pelo campo social ao qual está incorporado, pelas
práticas às quais se articula e é chamado a ressoar”.163
Neste sentido, compreendemos que para
que um elemento simbólico alcance sua ressonância, “faz-se necessário que ele esteja em
sintonia com os desejos e expectativas de determinada audiência” e atenda “às condições
necessárias para que consiga penetração em determinado campo social”.164
Bronislaw Baczko (1985) expressou melhor este problema ao formular o conceito de
“comunidade de sentido”. Para este autor, um organismo simbólico só encontra recepção e
audiência num determinado grupo se ele fizer parte de uma rede de sentido igualmente
partilhada por seus sujeitos. Este conceito faz-se importante neste estudo porque nos ajuda a
pensar a modernidade e o imaginário apocalíptico popular como expressões da cultura de
grupos específicos, ou seja, como um conjunto de representações simbólicas partilhadas por
uma “comunidade de imaginação” com uma identidade própria.
Em vista disso, podemos pensar que se por um lado o acesso aos meios educativos
formais institucionalizados e a aquisição de um instrumental ideológico hegemônico165
permitiam a uma elite instruída regional a assimilação do “moderno” aliada ao significado de
progresso material, econômico e cultural; a vida urbanizada e “civilizada” na cidade; ao
desenvolvimento tecnológico e científico e a fruição dos bens industriais de consumo que a
impelia atuar em conformidade com um projeto de modernização nacional, para a maior parte
da população cruzetense – e também para a grande maioria dos seridoenses em geral –
arredados dos processos educacionais deste período, o sentido de “moderno” tal como aparece
nas noções da “elite” muito pouco existia. Fazendo uso de uma metáfora apropriada, Araújo
163 HALL, Stuart, 2003, p. 258.
164 ZANFORLIN, Sofia, 2005, p.34.
165 Para os fins desta análise, consideramos como sendo “ideologia hegemônica” o sistema de representações,
normas e valores criado pelos grupos dirigentes (re)produzido pelas instituições ou aparelhos oficiais de cultura
(escolas, universidades, jornais, editoras e etc.) através dos quais aqueles se utilizavam para expressar sua visão de
mundo.
79
expressou melhor este problema ao considerar que o letramento era “uma porta de passagem
para o tempo moderno [...] Uma porta sinuosa porque, nas condições de vida do sertanejo,
foram poucos os que reuniram os meios para seguir a jornada escolar. Muitos dos que ousaram
foram obrigados a desistir na hora seguinte”.166
O fosso deste contraste era ainda mais fundo com relação ao trabalhador do campo que
não só despossuía (ou possuía de forma mitigada) os instrumentos ideológicos que o
condicionava a pensar os símbolos de modernidade em seu contexto original, isto é, naquele
contexto que em sua origem foram levados a significar (a energia elétrica, o avião, o automóvel,
a moda, a televisão como benefícios do mundo moderno a serviço da civilização), como
também não dispunham dos seus meios aquisitivos e de fruição fazendo com que estes não
fossem articulados nem incorporados de uma forma homogênea em suas práticas cotidianas.
Neste sentido, podemos dizer que o processo de modernização capitalista para o homem
seridoense situado na tradição rural foi duplamente excludente. Duplamente, porque imerso em
seu analfabetismo (ou semi-analfabetismo) crônico, acabava sendo lançado para as margens de
seu processo de significação. E depois, porque diante das condições de pobreza e instabilidade
de vida em que vivia o trabalhador rural, era ainda mais empurrado para aquelas margens.
Contudo, temos ainda que considerar que mesmo para uma elite instruída e do mesmo
modo para uma inexpressiva parcela da população mais aquinhoada (aqui incluímos a pequena
burguesia agrário-comercial e industrial e uma incipiente elite urbana consumidora), esta
percepção do moderno era muito mais desejo, anseios de mudança, que práxis moderna
propriamente dita. Daí porquê optamos em falar no contexto histórico abordado de “sintomas”,
“sinais” e “percepção” de modernidade para referirmos à realidade histórica das pequenas
cidades seridoenses entre as décadas de 1950 e 70 em vez de experiência e vivência moderna.
Esta hipótese se fundamenta ainda mais no fato de que mesmo quando estes “sintomas de
modernidade” correspondiam a alguma práxis concreta, esta fora mais admitida nos círculos de
relações dos “mais jovens” considerados mais suscetíveis aos estímulos econômicos e sociais
emergentes, ficando “os mais velhos” vinculados à tradição familiar de onde adquiriam parte
considerável dos seus valores e conhecimentos.167
O quadro abaixo, elaborado a partir dos censos demográficos deste período, é elucidativo
em demonstrar a incipiência de uma sociedade de consumo local para os bens duráveis que
pode ser tomado como um demonstrativo para toda a região do Seridó. Além disso, ele nos
ajuda a entender por que os anos 1950 e 70 podem ser tomados como um período de maior
166 ARAÚJO, Douglas, 2006, p.234.
167 Cf. estudo de caso realizado por CAMARGO, Cândido Procópio Ferreira de, 1979, p.182-83.
80
impacto dos símbolos de modernidade no imaginário local e regional, embora não possamos
certificar (de forma quantitativa) sua intromissão no mundo rural.168
Conforme deixa entrever os dados acima, podemos tomar a década de 1960 como o
período em que os símbolos de modernidade exerceram um maior impacto sobre o modus
vivendi da população cruzetense. Eles assinalam o ingresso da comunidade local na esteira de
uma sociedade de consumo dos bens simbólicos e por que não dizer na dinâmica do mundo
moderno. Também é o período que demarca uma maior penetração das “novidades
tecnológicas” no campo, embora seja o núcleo urbano seu ponto de maior convergência e
dispersão. Com a circulação de um número maior de automóveis na cidade os destinos
perscrutáveis entre as distâncias certamente diminuíram para os cruzetenses. Mas os meios de
transportes mais usados continuaram sendo ainda a tradicional carroça puxada a jegue, o
cavalo, a canoa e o jumento e quando muito a bicicleta, esta última uma inovação moderna (ver
imagem 07 em anexo). A lâmpada elétrica, quando se vulgarizou em 1966 causou
estranhamento. Costa e Zeferino169
trazem o caso de uma moradora da zona rural cruzetense
que, em visita a uma prima em Caicó (RN), ficara constrangida ao ser surpreendida com a
descoberta de que a luz elétrica não se apagava com um sopro. A lamparina e o lampião a
querosene ainda imperavam bruxuleantes na casinha do sitiante.
Apesar desse aceleramento, pouca coisa mudou no modo de viver do homem campesino.
Araújo (2006) destaca que até os idos de 1970 afora o trator de presença rara, pois só existia nas
grandes fazendas mais estruturadas da região, da capinadeira e do uso de alguns defensivos
agrícolas para combater as pragas eventuais das lavouras, os grandes açudes construídos com o
auxílio da engenharia moderna e o rádio de pilha ou a bateria transistorizada fora; no geral, a
168 Além do problema exposto, os censos demográficos deste período não fornecem informações continuadas para
todos os itens identificados no quadro, o que dificulta a análise comparativa entre as variadas épocas. 169
COSTA; ZEFERINO, 2008, p. 39-40.
81
maior penetração do moderno no mundo da tradição rural no Seridó.170
No município de
Cruzeta (RN), por exemplo, até 1971 a maior parte dos agricultores locais já empregava o
sistema de pulverização contra as pragas171
, embora isso não tenha ocorrido sem algum receio
ou resistência. “Seu” Manoelzinho Dantas, agricultor aposentado de 82 anos e morador no Sítio
Cruzeta Velha, município de Cruzeta (RN), relata uma profecia que atribuíra a Padre Cícero e
que assolara a zona rural da cidade com a introdução do pulverizador nas lavouras.
Pade Ciço falava e meus pais diziam muito que nas eras que nós estamos, 70
pra cá, 60, nós ia comer tudo com veneno, tudo quanto comesse era com
veneno, por isso ia morrer todo mundo. Por que tudo quanto se come é com
veneno, é pulverizado.172
A modernização da agricultura chegava para muitos sitiantes sob o augúrio das velhas
profecias apocalípticas. Mas, se os defensivos agrícolas já faziam parte da rotina de trabalho de
muitos agricultores cruzetenses no despontar dos anos 70, o mesmo não se pode dizer com a
força mecânica nos trabalhos agrários.
O Censo Agrícola e Agropecuário realizado em 1970 pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) para o município de Cruzeta (RN) registrou que dos 346
estabelecimentos rurais informados, apenas 7 (sete), isto é, 2% do total, empregavam força
mista nos trabalhos agrícolas (o uso do arado e veículo de tração animal e mecânica) contra a
esmagadora maioria dos 98% remanescentes que utilizavam força humana e animal (a enxada
de mão, o cultivador e o arado puxado à boi ou a cavalo). Para o mesmo período, nenhuma
propriedade informou utilizar força mecânica exclusiva no trato da lavoura. No mais
a vida do homem do campo e de sua família continuava como dantes. A
semelhança de seus antepassados de centúrias idas, no princípio do inverno
arranhava a terra para preparar a produção e a colheita agrícolas. Quase nada
havia mudado, agora poucos se auxiliavam com tratores, alguns usavam a
carpideira e, a grande maioria, a enxada. Semear a terra e esperar o inverno
fertilizá-la era um gesto da memória hábito daquela e de muitas gerações
anteriores.173
Mas a década de 60 não marca apenas uma guinada da penetração dos valores e símbolos
capitalistas modernos na região. Ela também coincide com um período em que os terrores
escatológicos dos últimos tempos assumiram uma dimensão alarmante entre o povo. Em
fevereiro de 1962 o jornal “A Folha” de Caicó fazia esta constatação a despeito dos mais
recentes rumores sobre o fim do mundo propalado pela mídia.
A idéia de fim do mundo é dominante entre os habitantes do Globo. Há vários
170 ARAÚJO, Douglas, 2006, p.275.
171 GOES, op. cit. p.18.
172 Depoimento concedido pelo Sr. Manoel Anastácio Dantas, 82 anos, no dia 09 de Maio de 2013.
173 Idem, ibidem, p.274.
82
séculos as criaturas humanas vivem inventando e prenunciando o dia desta
catástrofe universal. Dizem que o grande pregador Vieira já falava neste
acontecimento cósmico lá pelo século XVI. E então neste século XX esta data
tão falada já foi marcada algumas dezenas de vezes e com grande sensação nos
anos 60. Os rumores agora partiram dos astrólogos da Índia estendendo-se
também a todas as partes da terra. No Brasil muita gente está acreditando que
neste comêço de fevereiro o fim do mundo é inevitável. Os boatos na índia são
tão alarmantes que a população inteira se acha em pânico, o que acontece
também com algumas pessoas em nossa terra [...].174
Em um mundo cada vez mais integrado pelas novas tecnologias da comunicação, as
notícias e os acontecimentos que agitavam outras “bandas” remotas do planeta podiam cruzar
agora numa velocidade impressionante serras, mares e sertões.
Já no final de 1959, surgia com estardalhaço na mídia nacional um boato de que um
profeta americano havia preconizado que em 60 os negros virariam macacos e os brancos,
bananas. Em Cruzeta (RN) a radiodifusora paroquial chegou mesmo a divulgar o vaticínio na
cidade em sua programação vespertina para o terror das mentes mais crédulas.175
A profecia
logo caiu no “gosto” popular inspirando o frevo-canção pernambucano “Operação Macaco” de
Sebastião Lopes e Nelson Ferreira, na interpretação de Nerize Paiva, muito tocado nas rádios
locais como música carnavalesca.
Dizem que em 60 nego vai virar macaco
Ora vejam só que grande confusão
Se for verdade essa Operação Macaco
Penca de banana vai custar um milhão.
Quem mata um gato tem sete anos de azar
Tem nego como o diabo fazendo tchuí-tchuí
Se for verdade o que diz o profeta
O que seria de Pelé ou do Didi?
Nego é gente igual a gente
Muito preto existe pra ninguém botar defeito
Profeta toma jeito, cuidado com a negrada
Se ela te pega vai dizendo, olha a papada!176
Por ser considerada politicamente incorreta, a canção foi censurada em 1960 em pleno
carnaval da cidade, sendo proibida de ser executada em recintos públicos.177
Mas o seu aspecto
“escandaloso” e “assustador” estava mais no teor escatológico e cabalístico que a letra fazia
lembrar – o caos e a desordem horripilantes que se instalariam no mundo no final dos tempos –
174 Fim do Mundo. A Fôlha, Caicó/RN, 10 fev. 1962. p. 01.
175 Informação retirada do depoimento gravado pela Sra. Luizete Pereira de Assis Dantas em 22 de Janeiro de 2014
em sua residência no município de Cruzeta/RN. 176
Operação Macaco (Nelson Ferreira / Sebastião Lopes) – Frevo Canção. Nerize Paiva/ Orquestra de Clube da
Banda do 14º R.I (regimento de infantaria). Operação Macaco. Mocambo, Recife/PE, 1959. 177
Informação concedida pela Sra. Alexandrina de Oliveira Campus no dia 20/10/2009.
83
que na simples insinuante questão racial que trazia. A memória social sabe bem revisitar seus
repositórios imagéticos à medida que as situações e experiências do presente os fazem
reaparecer e vir à tona. Quatro anos mais tarde do espalhafatoso sucesso de “Operação
Macaco”, a “rainha do xaxado” Marinês (1935-2007) levava até o radinho a pilha do mais
isolado sitiante o seu baião “Profecia de Padre Cícero”.
No ano 15 lá no juazeiro
Toda a noite nas missões
Meu padrinho dizia aos romeiros
Tempo bom não tem mais não.
E depois da confissão
O padre santo dizia
Que na era de sessenta
Muitas coisas a gente via
Muito pasto e pouco rastro
Quem for vivo tem que ver
Vi também muitos romeiros
Tão satisfeitos dizer
Que só foi ao juazeiro
O meu padrinho conhecer.
Um romeiro perguntou
Padrinho eu quero saber
Para o mundo se acabar
Qual é o sinal que a gente vê
Meu padrinho Ciço disse:
Meu filho preste atenção
Quando o filho for contra pai
E nação contra nação.
É sinal que o fim do mundo
Ta bem pertinho meu irmão.178
Com a expansão dos meios de comunicação de massas na região, os medos apocalípticos
do fim do mundo deixavam os guetos cristãos para ganhar a “cultura popular”. Mas isso se
deveu mais em parte à popularização do rádio do que da penetração da imprensa jornalística ou
da televisão nos lares sertanejos seridoenses. (Ver imagem 08 em anexo).
A massificação do rádio e o aparecimento da TV nos anos 60, sem dúvidas, trouxeram
para o habitante do campo e, sobretudo para o da cidade, novas percepções do espaço e do
tempo, já que eles proporcionavam a população local o contato com a realidade de outros
“mundos” desconhecidos e sobressaiam como vetores de mudança da mentalidade e dos
costumes. Em 1971, escrevia Terezinha Goes a respeito do uso do rádio entre os cruzetenses:
“não o usamos para entrar em contato com o mundo apenas na cidade, mas também já o utiliza
178 Profecia do Padre Cícero (Jacinto Silva / Onildo Almeida) – Baião. Marinês. Siu, siu, siu, Marinês e sua
gente. Faixa 04. RCA Victor, 1964.
84
para o mesmo fim, a população rural”.179
Para além de sua utilidade midiática, o rádio também exerceu um forte papel civilizador e
modernizante. Através de suas ondas magnéticas, muitos munícipes podiam acompanhar tanto
na cidade como nos sítios e fazendas do município os cursos de Madureza Ginasial ou de
alfabetização ministrados pelo Movimento de Educação de Base (MEB) para as massas
analfabetas, sonhando, quem sabe algum dia, terem a capacidade de aprender, pelo menos a
assinar o próprio nome.180
Mas o rádio não foi apenas um “poderoso disseminador de progresso e civilização entre o
nosso povo”, como verificou Terezinha Goes.181
Estendendo suas ondas sonoras até o humilde
casebre do roceiro (quando a muito custo o possuía), ele também foi um notável veículo na
difusão de medos e tensões entre o povo e um importante disseminador dos terrores
apocalípticos na região, já que permitia alcançar um número cada vez maior de receptores das
mais diferentes procedências e escolaridades e chegar a lugares só acessíveis por estradas
carroçáveis e poeirentas. No tocante a isso, registrou Terezinha Goes no início dos anos 70: “é
comum ouvir-se de muitos, quer na zona rural quer na zona urbana, comentários sobre notícias
ouvidas, não só a respeito do nosso País, mas também do que se passa pelo mundo, até mesmo
sobre as guerras que ora têm lugar no mundo oriental”.182
O jornal “A Folha”, editado pela Diocese de Caicó, também traz um excerto de 1961 que
menciona o rádio como um importante propagador dos medos escatológicos do fim do mundo
na região ao lado da imprensa jornalística.
É muito comum hoje em dia a divulgação de profecias a respeito dos
acontecimentos do mundo. Frequentemente os jornais trazem e os rádios
anunciam que profeta fulano em tal parte da terra prediz acontecimentos
sensacionais no curso normal das coisas sempre com feitio catastrófico.183
Em11 de fevereiro de 1962, o mesmo noticiário registrava na crônica da semana o estado
de assombro e angústia que assaltou a população da região com a propagação de uma recente
profecia que previa acontecimentos caóticos na ordem natural das estrelas com a terrível
conseqüência de uma destruição universal.
NÃO é a primeira vez que, a título de propaganda e novidade, se propalam os
mais tolos boatos sobre o fim do mundo, e criando nos mais fracos um estado
de angústia e chocante expectativa. Parece que já é a décima vez que o mundo
se acabou... pelo menos nas manchetes dos jornais e nas mentes dos falsos
profetas do século vinte. [...] Enganaram-se redondamente os ilustres
179 GOES, Terezinha de J. M., 1971, p.26.
180 Idem, ibidem.
181 Idem, ibidem.
182 Idem, ibidem.
183 As profecias nos nossos tempos. A Fôlha, Caicó/RN, 18 de fev. 1961, p. 01.
85
astrólogos da velha Índia sendo vítimas de seus próprios sonhos no idílio
amoroso com as estrelas do céu. Encontraram-se os astros e o mundo não se
acabou...184
Em um mundo cada vez mais marcado pela proliferação de seitas e pela “perda de centralidade”
da religião em conferir significado à existência do homem e à sua experiência de vida185
, o
imaginário apocalíptico popular surge como campo de disputa ideológica entre Igreja católica
(proprietária do periódico noticioso) e as ciências esotéricas em franco prestígio e expansão no
mundo contemporâneo. Velha propagadora dos medos escatológicos na região, sob o signo da
romanização, a Igreja agora se esforçava para combater os antigos temores entre o povo.
Mas de onde vinham estes medos no descambar das eras do século XX? Certamente eles
vinham menos das novas técnicas de transmissão da cultura que de temores e experiências
anteriores. O rádio e a imprensa não deram novos teores aos pavores do fim do mundo na
região, mas ao levar suas mensagens com algum efeito a uma audiência sem precedentes foram
responsáveis em inflamá-los e reavivá-los na imaginação das pessoas, forjando muitas vezes
uma atmosfera aterrorizante.
A propalada passagem do cometa Kohoutek no final de 1973, alardeado pela mídia de “o
cometa do século”186
, provocou uma onda de pânico nas populações. Anunciado pelo rádio
como um evento de proporções colossais, não foram poucos os que se deixaram impressionar
com a notícia, havendo quem acreditasse agendado para breve a apoteótica consumação das
eras. (Ver imagem 09 em anexo).
Desde os tempos mais antigos os cometas eram vistos como mensageiros de maus
presságios, podendo anunciar catástrofes, desgraças, mortes de governantes, pestes, guerras,
eventos extraordinários e interferir negativamente nas colheitas.187
Na Idade Média a passagem
de um cometa era uma prova “de que o céu estava descontente, que algo se anunciava, ou então
um convite a um maior respeito ás ordens divinas”.188
Difundidos como augures nas velhas profecias que percorreram os sertões nordestinos de
antanho, os cometas e outros eventos astronômicos como os eclipses (a exemplo do ocorrido
184 BALBINO. Pe. Antônio. E o mundo não se acabou, A Fôlha, Caicó/RN, 11 fev. 1962. Crônica da Semana, p.
04. 185
Sobre a “perda de centralidade” da religião no mundo contemporâneo cf. Maria Lucia MONTES, As figuras do
sagrado: entre o público e o privado in. SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). História da vida privada no Brasil,
contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 64-171. 186
Sobre a passagem do cometa Kohoutek em 1973 cf. Kohoutek, o cometa do século. Disponível em:
<http://herdeirodeaecio.blogspot.com.br/2012/02/kohoutek-o-cometa-do-seculo.html>. Acesso em: 25 jan. 2014 187
Cf. GANIMEDES, Gério, 2011, Cometas: um pouco de história e estrutura destes mensageiros de catástrofe.
Disponível em: <http://projetoquartzoazul.blogspot.com.br/2011/09/cometas-um-pouco-de-historia-e.html>.
Acesso em: 25 jan. 2014. 188
DUBY, George, 1998, p.138.
86
em 1940), transformaram-se em sinais apocalípticos. Uma xilogravura de um autor
desconhecido retratou a ocasião de assombro e confusão que recaia sobre as populações
sertanejas com a passagem destes viajantes solitários do empíreo. Na ilustração, uma mulher
ajoelhada faz rogos aos céus com as mãos estendidas para o alto enquanto um homem em
debandada corre em pavoroso. No lado esquerdo da gravura, um jovem parece desmaiar de
asco. Na tradição oral da região, era esta competência em advertir os homens da proximidade
do Fim do Mundo que prevalecia na memória coletiva sobre tais prodígios. (Ver imagem 10 em
anexo). E foi por meio destas referências tradicionais que a alardeada passagem do Kohoutek
em 1973 foi interpretada.
A despeito da angustiante expectativa formada em torno do fenômeno, as rádios locais
mais fizeram reforçar o medo, empregando como ojeriza ao evento o seu sensacionalismo
estridente. Uma moradora do município de Cruzeta (RN) de 64 anos relata com detalhes o
estado de pavor e angústia que lhe invadiu os sentimentos com a repercussão da notícia pelas
ruas da cidade.
O rádio divulgou que seria o fim do mundo [...] Na época só o que se falava
era sobre este cometa. Que a passagem dele ia ser o final do mundo. E eu
fiquei impressionada com aquilo. Aonde eu via as pessoas conversando, se
tivesse duas pessoas conversando, eu tinha que ir lá onde elas estavam pra
saber qual era o assunto. Se estavam falando do cometa. Eu imaginava que
esse cometa fosse como uma bola de fogo, pois as pessoas comentavam que o
mundo ia se acabar com fogo. Então eu pensava que a passagem dele seria
essa bola de fogo que ia explodir no meio do céu. No início eu até perdia a
pressão por que eu tinha medo do que comentavam, pois diziam que os que
eram amancebados iam correr nas portas [das casas] dois dias antes [da
explosão do cometa] pedindo socorro. Tudo isso o povo comentava [...]
Falavam que quando esse cometa aparecesse no meio do céu, então os anjos
com as trombetas iam tocar anunciando o fim do mundo [...] Eu até procurei o
padre para conversar com ele. 189
Gestado e transmitido por predicadores do povo durante séculos de experiências, os
temores do fim do mundo propagado pelas rádios encontravam ressonância no arsenal
simbólico de seu público, especialmente entre os mais familiarizados com o tema. Ele fazia
parte de uma rede de constituição do imaginário sertanejo que teve na literatura de cordel e nas
gestas dos trovadores populares um de seus veios mais fecundos.
Até o final da primeira metade do século XX quando o rádio, o jornal propriamente dito e
os novos meios de transporte só timidamente começavam a penetrar a região, as editoras de
cordel espalhadas pelas capitais e cidades interioranas do Nordeste já se antecipavam na
divulgação dos fatos acontecidos repassando-os em forma de versos para os moradores do
189 Depoimento concedido pela Sra. Luizete Pereira de Assis Dantas, 64 anos, no dia 22 de Janeiro de 2014.
87
sertão. Seja em sua versão impressa (folhetos) ou na voz maviosa dos cantadores ambulantes
(poesia oral), a literatura de cordel veio se constituindo desde o final do século XIX num
importante veículo de comunicação e transmissão da cultura entre as massas de sertanejos
rurais ao converter-se no “primeiro jornal do nosso sertanejo”.190
Levados e declamados nas feiras livres e nos mercados das vilas e cidadezinhas sertanejas
por vendedores ambulantes; recitados ou entoados pelos poetas populares191
ou alfabetizados
nos serões familiares, os folhetos de cordel também foram importantes veículos na transmissão
dos medos escatológicos na região.192
O interregno entre as décadas de 1930 e 70 marca o período de maior produção e
distribuição desta literatura no Brasil. Época em que tanto os poetas populares de bancada
(cordelistas), quanto os de auditório (cantadores) produziram massificamente os seus folhetos
consolidando o formato que possui até hoje (impressos de 8 a 16 páginas geralmente de 15 a
17cm. x 11cm. com capas ilustradas com xilogravuras)193
. É também deste período que se
constatam as maiores realizações acerca de temas que envolvem as figuras de Padre Cícero,
Frei Damião e aqueles de caráter mais proféticos ou apocalípticos (os chamados sermões
proféticos ou cordéis do fim do mundo) que trazem xilogravuras em suas capas enfatizando tais
conteúdos.194
Esta produção irá ganhar espaços cada vez mais amplos nas comunidades rurais e
não somente nestas, à medida que estes trovadores do povo viajam de vila em vila, de cidade
em cidade, divulgando seu trabalho, vendendo seus folhetos e cantando ou recitando as
histórias que ouviram ou presenciaram na Terra Santa do Padre Cícero ou da boca de seus
romeiros.
A feira livre das pequenas vilas e cidadezinhas do interior torna-se num local ideal para a
difusão destas criações e ponto estratégico de suas aparições, já que esta é um lugar por
excelência da sociabilidade, espaço de maior circulação de mercadorias, idéias e pessoas.
Espaço também “das conversas, das tradições, dos encontros, das transgressões, das
experiências, das compras, vendas e permutas, das jocosidades”.195
O senhor Pedro Pereira de
53 anos, professor domiciliado em Cruzeta (RN), recorda em suas memórias a passagem dos
vendedores de folhetos pelas feiras da cidade entre anos de 1960 e 70 quando ainda habitava a
zona rural do município. Em suas recordações, ele descreve a atmosfera de medo, apreensão e
190 LOPES, José de Ribamar, 1994.
191 O termo é aqui utilizado para designar tanto os cordelistas (poetas de bancada produtores da poesia escrita)
quanto os cantadores (poetas de auditório que (re)produzem a poesia oral). 192
Ver RODRIGUES, Linduarte Pereira, O Apocalipse na literatura de cordel: uma abordagem semiótica,
Dissertação (Mestrado em Letras), Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2006. 193
ALBUQUERQUE, Maria E. B. C. de, 2011, p.26-27. 194
RODRIGUES, L. Pereira, 2006, p.82. 195
MORAIS, Ione R. Diniz; ARAÚJO, Marcos A. A. de, 2006, p. 247.
88
reverência que cingia o comportamento das pessoas nas ocasiões em que seu pai, Sebastião
Pereira (1925-2006), e seu parceiro de embolada, Gaudêncio dos Santos, entoavam ou
recitavam nos serões familiares os sermões proféticos do Padrinho Cícero adquiridos nas feiras
da cidade ou trazidos do Santo Juazeiro.
Nós não tínhamos meios de comunicação. Os meios de comunicação eram
aquelas pessoas que saiam contando as histórias do que aconteciam, às vezes
acrescentando e as pessoas ficavam com aquilo na mente. Tinham muitas que
traziam de Padim Cícero [do Juazeiro]. Padim Cícero falava: “as estradas vão
se cobrirem de luto”. “O cão, a besta-fera vem chegando com os olhos
piscando de fogo.” E as pessoas criavam e se criavam naquilo, vamos dizer,
com aquele medo de coisa grave que ia acontecer. Então quando as pessoas se
reuniam e eles [Sebastião e Seu Gaudêncio] cantavam [aquilo], as pessoas
ficavam arrepiadas, admiradas: “vige Maria”! Chega se benzia, quando eles
improvisavam os versos. Tinha muita gente que fazia o “sinal da cruz” com
medo daquilo, se afastando [...] E como não existia meio de comunicação, eles
acreditavam em muitas coisas que aqueles viajantes, aquelas pessoas passavam
avisando, divulgando no dia da feira [...] Eram pessoas que vinham no carro da
feira. E iam vendendo os versos e eles iam contando aquelas histórias,
repassando. E aquelas pessoas que estavam ali ao lado iam ouvindo e
chegavam em casa e repassavam para os filhos, para aquelas pessoas que não
viram, que não estavam presentes.196
Granjeando espaço nas ocasiões de encontro e sociabilidade organizados nas casas dos
sítios ou das fazendas da vizinhança, os “cordéis do fim do mundo” conferiam ao grupo de
parentelas um sentimento de maior pertencimento e coesão social. Aí eles desempenhavam um
papel eminentemente conservador, integrador e mantenedor de estruturas e valores tradicionais
ao serem colocados como esteio de uma ética moral cristã direcionada à conservação de normas
e preceitos aceitos coletivamente pelo grupo, ao mesmo tempo em que também se buscava com
eles inibir os desvios e as formas reprováveis de condutas. A preferência dada pelos poetas
populares a temas que versavam sobre os maus presságios celestiais como as noites de escuro,
os estrondos (tremores de terra), a vinda da besta-fera e do capa-verde, o fim do mundo,
guerras, carestias, fome, pestes e revoluções, confirma o papel e o prestígio destes artistas do
povo como emissários de valores tradicionais no interior destes grupos. Sua formação
geralmente iletrada (a maioria deles, quando muito, aprendiam a ler e a escrever de forma
espontânea ou cursando apenas alguns meses de escola), fazia com que se utilizassem dos
antigos métodos (“o medo, o diabo, os castigos, através dos exemplos, das profecias e dos
avisos”)197
como arma simbólica de um poder persuasivo. Saber ler, anunciar e interpretar
avisos proféticos num pélago de analfabetos soava quase como um dom divinatório.
A referência recorrente a figura do “padrinho Ciço” ou do “padrinho frei Damião” (como
196 Depoimento concedido pelo Sr. Pedro Pereira da Silva, 53 anos, no dia 03 de Novembro de 2009.
197 LIMA, Marinalva V. de, 2000, p.86.
89
também era familiarmente chamado pelos católicos seridoenses o missionário capuchinho frei
Damião de Bozzano) reforçava mais ainda na lira dos poetas populares a sua legítima condição
de intérpretes e anunciadores de coisas futuras arrogadas aos “santos padrinhos”, fazendo com
que, perante o auditório de seus “afilhados” (devotos), suas palavras fossem ouvidas quase
como na presença dos próprios “conselheiros”. A “voz” da autoridade do padrinho, evocada
pelo estro dos trovadores, buscava incutir, em seu auditório, a memória de sua presença real
tornada corrente em seus versos. Neste momento, já não eram os poetas que falavam ao seu
público, mas o “padrinho” falando aos “afilhados” pelos lábios de seus porta-vozes. Como na
fala de uma antiga moradora cruzetense devota do Padre Cícero que ouvira os “conselhos
proféticos” do padrinho da boca de seus antigos narradores (poetas populares), em Juazeiro do
Norte (CE), quando para lá partiu “de morada” com a família em 1960.
Eles contavam a nós: “olhem meus romeirinhos, o meu padre Ciço dizia que
vocês escutassem nós, os romeiros velhos daqui, os moradores velhos. [...] Aí
vocês contem o que eu contava. Não vão mentir. Diga a verdade. Falem a
verdade o que o padre Ciço falou.198
Sob o peso da aquiescência do padrinho (mais imaginária que concreta), os poetas
populares procuravam legitimar sua narrativa usando como estratégia de convencimento a
“santa verdade” “reproduzida” do discurso de seus “conselheiros”. Através desta, eles
interpretavam um mundo que em sua vista já se encontrava “invadido pelos representantes da
besta-fera, [...] um “Mundo em desmantelo”, submerso em pecados” que logo será descortinado
pela “verdade” de sua poesia profética.199
Assim, através das gestas dos poetas populares, o
cordel do fim do mundo equiparava avisos, conselhos e exemplos com a palavra poderosa e
eficaz dos antigos profetas bíblicos que à semelhança dos frades pregadores de missões de
outras épocas, tinha de surtir algum efeito na assistência ao serem proferidas.200
Eram “palavras
vivenciadas como acontecimentos atuais, não simples memória ou recordação: as coisas estão
acontecendo ainda hoje”.201
Colocadas na boca do Padrinho Ciço a maneira de aviso ou profecia; secundadas pela
viola ou pelos cordéis dos poetas e semeadas pelo rádio e pela imprensa, as profecias
apocalípticas no novo século encontravam na memória coletiva um terreno fecundo para se
procriar. Elas foram contemporâneas de um período em que esses meios de difusão da cultura
marcaram com maior impacto a mentalidade dos seridoenses e dos cruzetenses de modo
198 Depoimento concedido pela Sra. Antônia Maria da Conceição (Dona Antônia), 78 anos, no dia 23 de dezembro
de 2009. 199
LOPES, Régias, 1994, p.46. 200
BARBOSA, F. S. de Alencar, 2007, p. 63. 201
Idem, ibidem.
90
particular, influenciando com uma força ascendente o imaginário das populações campesinas.
Mas a que devia sua eficácia poderosa em insuflar na imaginação popular medos tão antigos?
É certo que os mecanismos da memória desempenharam um papel importante na
ascensão dos medos escatológicos na região, sobretudo nos anos 60. Um verbete à guisa de
profecia do fim do mundo publicado pela “A Folha”, de Caicó, em dezembro de 1960, chega
mesmo a tecer uma comparação entre a conjuntura do momento e o tão celebrado Ano Mil da
era cristã em que “muitos esperavam ouvir as trombetas divinas conclamando a humanidade
para o julgamento final no vale de Josafá.”202
No entanto, o que importa visualizar aqui não é
apenas a dimensão da longa duração que este imaginário comporta, mas o momento em que se
manifesta como fenômeno histórico. O imaginário apocalíptico popular não é uma
“sobrevivência” simbólica que transcende incólume os tempos como o descreveram os
folcloristas. Mas re-significado e alterado pelas experiências do presente reflete medos sempre
contemporâneos, na medida em que também recebe as influências do tempo em que abrolham.
É, portanto, expressão da visão de mundo de uma “comunidade de imaginação” que o (re)cria
para dar sentido as suas formas complexas de existência e interpretar as ocasiões de crises e
incertezas que cingem os sentimentos humanos diante do desconhecido, do (in)conformismo e
do previsível. Se eles foram mais freqüentes em determinadas conjunturas históricas que em
outras, é porque abundou nelas o sentimento de que alguma coisa andava mal e que o pior
estava ainda para acontecer a qualquer instante.
Para muitos sertanejos seridoenses e cruzetenses da segunda metade do século XX, esse
mal tinha um nome, ou pior, um corpo e um rosto, embora pudesse assumir muitas formas e
contornos. Ele fora mais presente nesta conjuntura porque se acreditava que o diabo, Satanás, o
inimigo de Deus já andava solto pelo mundo causando desordens, malefícios e seduzindo as
pessoas com suas invenções e artifícios danosos. As novidades da história que ganhavam
espaço no cotidiano das cidades era agora uma prova de sua presença ardilosa e indício certo de
que a humanidade já se encontrava às encostas do fim das eras.
202 Mais uma profecia do fim do Mundo. A Fôlha, Caicó/RN, 17 dez. 1960. p. 01.
91
CAPÍTULO 3. “O MUNDO EM DESMANTELO”: MODERNIZAÇÃO E
ESCATOLOGIA EM CRUZETA (RN)
3.1. NA SENDA DO PROGRESSO
No transcurso dos anos 50 para os anos 70 do século XX, a cidade de Cruzeta passava por
muitas mudanças. As novidades do século que chegavam sob rodas davam o tom de “enigma”
ao tempo que corria. No alto da majestosa torre da matriz a presença do relógio mecânico com
suas badaladas estridentes passava a disputar com o “tempo da tradição” a ordem do dia.203
O
comércio da cidade açodado pela bem-sucedida experiência do algodão “Cruzeta”, o melhor do
país para uma gazeta carioca204
, tomava novo fôlego.205
Os principais logradouros da cidade
ladrilhados de areia e pedregulho206
recebiam pavimentação e nova iluminação elétrica.207
As
estradas carroçáveis que franqueavam os principais acessos a recém-emancipada comuna208
ganhavam outro aprumo e revestimento. Na sede da jovem municipalidade pontilhavam na
rugosidade do espaço as “modernas” representações do novel poder constituído.209
203 De acordo com Terezinha Goes (1971, p.65) o “relógio da igreja” foi adquirido pelo senhor Antônio Alves da
Cunha e colocado na torre da matriz de Nossa Senhora dos Remédios em 1956 para “fornecer as horas a todos os
cruzetenses”. Para a aquisição do aparelho foi empregado a renda angariada com as exibições de filmes que fazia
às quartas e domingos da semana com esta finalidade. Desta campanha filantrópica nascia, em Cruzeta, o “Cine
Relógio” que funcionou durante algum tempo no Grupo Escolar Otávio Lamartine. (CAMPOS & MORAIS, 2001,
p. 59). Com a presença do relógio no ponto mais alto da cidade (a torre da matriz), a rotina no núcleo urbano antes
orientada pelos elementos da natureza à semelhança da vida no campo (o galo que canta, a projeção da sombra, a
posição do sol e da lua, a noite que começa a cair eram os marcos utilizados para fazer a leitura das “horas”) foi
dando lugar ao tempo mecanizado, ritmo que regula as atividades nas sociedades capitalistas. 204
Num artigo publicado em maio de 1954, em “A Folha” de Caicó (RN), intitulado Algodão “Cruzeta”, o redator
da matéria menciona um tópico que leu no “Diário de Notícias” do Rio de Janeiro em que este reconhecia “uma
verdadeira revolução no cultivo do algodão “mocó”, o melhor produzido em terras brasileiras [...] graças aos
trabalhos da Estação Experimental de Cruzeta”. Algodão “Cruzeta”, A Fôlha, Caicó/RN, 29 mai. 1954. p. 01. 205
É também “A Folha” de Caicó numa redação veiculada em novembro de 1954 que registra o estado de ânimo
dos plantadores de algodão diante da alvissareira safra do ano. “A safra deste ano está colhida. As usinas,
superlotadas, trabalham dia e noite. O preço, se não acompanhou o ritmo elevado dos demais produtos, não foi dos
piores. Compensou os sacrifícios e suores dos plantadores [...] Formos informados de que a semente do algodão
“Cruzeta” tem sido quase toda exportada para Pernambuco e para outros estados vizinhos...” Vamos plantar
algodão. A Folha, Caico/RN, 11 dez. 1954. p.01 206
Sobre a situação da cidade no período anterior a pavimentação de seus principais logradouros, relembrava
Terezinha Góes numa carta aberta para a redação de “O Cruzetense” em 1978: “Suas ruas, eram cobertas de
pedregulho, que de repente acabava com as solas dos nossos sapatos...” Ainda sobre isto trazem Costa e Zeferino
(2008, p.84): “pelas ruas de terra passavam bois, charretes, onde hoje são substituídos pelos eletrizados motores de
automóveis”. 207
Data da administração do Prefeito Dr. Sílvio Bezerra de Melo (1955-1960), primeiro a exercer mandato
constitucional no município, a pavimentação e a posteação nova das principais ruas da cidade e a aquisição de um
motor e da Casa de Força e Luz responsável pelo fornecimento de energia elétrica a nova comuna. (GOES, 1971,
p.89). 208
Até outubro de 1953, Cruzeta se mantinha como vila juridicamente subordinada a vizinha cidade do Acari
(RN), passando a figurar dentre os municípios seridoenses pela Lei nº 915 de Novembro de 1953. 209
No interregno entre as décadas de 1950 e 60 foram instalados na sede do município, dentre outros equipamentos
públicos, as seguintes organizações/instituições: Prefeitura e Câmara Municipais (1954); Junta de Alistamento
92
Estimulada pelo ritmo em curso a vida sócio-cultural granjeava novo impulso. O “Cine
Relógio”, de concessão de Seu Cunha, proporcionava aos moradores citadinos uma impressão
de novidade e movimento ao tempo que chegava.210
O Grêmio Lítero Esportivo Cruzetense (o
GLEC) inaugurava entre os jovens um espaço de lazer e entretenimento (diga-se para o regozijo
da mocidade e a indignação dos “conservadores”).211
Na “camarinha” de suas casas as modistas
experimentadas ensaiavam as últimas tendências do século e nas ruas do comércio e nos
subúrbios da cidade ponteavam os “lugares” de sociabilidades “suspeitas”.
A modernidade chegava assim como sintomas e sinais de um “novo tempo” que se
descortinava. Abrindo horizontes (físicos e imaginários) na velha paisagem rural da caatinga,
interligava mundos, mistérios, desejos, sonhos, receios com sua velocidade automotiva.
Remodelando traços de antigos costumes e instituindo outros “marcos civilizatórios”,
confrontava espaços, códigos, valores, referências, interferindo, destarte, na subjetividade dos
sujeitos. O sentido a que assumia para os moradores locais, não era compartilhado por todos de
um mesmo modo. O imaginário apocalíptico, construído por homens e mulheres cruzetenses
acerca desta nova realidade em descortino na cidade, revela como os efeitos da modernização
atingiram a muitos de diferentes maneiras, reverberando neste espaço como um problema. Se
para alguns estes eram sentidos com otimismo e euforia, para outros predominava um
sentimento de hesitação e desconfiança. Hesitação diante do novo, do incompreendido.
Desconfiança diante do estranho, do desconhecido. Esta circunstância contrastante nos faz
pensar a “modernização” como uma construção de sentidos, uma prática, um discurso e,
portanto, uma “tradição” que se reproduz numa determinada classe ou grupo social.
Militar (1954); Agência Municipal de Estatística (1956); Sociedade Educadora (1957); Associação de Proteção à
Maternidade e à Infância (1958); Matadouro Público Municipal (1959); Comarca de Cruzeta (1960); unidade da
Associação Nacional de Assistência Rural do Rio Grande do Norte – ANCAR/RN (1965); Escola Estadual
Joaquim José de Medeiros (1965); Casa dos Correios e Telégrafos (1969). 210
O “Cine Relógio” surgiu nos anos 1950 a partir de uma campanha idealizada pelo Sr. Antônio Alves da Cunha
(Seu Cunha) com a finalidade de adquirir um relógio para a torre da Matriz de Nossa Senhora dos Remédios. Daí a
origem do nome. (Ver nota de rodapé 251). Ainda a este respeito, Campos e Morais (2011, p. 33) notificam que
“após terminar a campanha do relógio da torre da Igreja [Seu Cunha, a quem pertencia a licença de exibir os
filmes] cedeu para o grêmio [Lítero Esportivo Cruzetense] a concessão do cinema, cujos filmes vinham de Natal e
eram exibidos no Grupo Otávio Lamartine, duas vezes por semana.” A máquina cinematográfica foi adquirida pelo
Sr. Fernando Melo do Nascimento (na época chefe da Estação Experimental do Seridó) a quem incumbia a Seu
Cunha a responsabilidade de exibir os filmes na sede do município. (Idem, ibidem, p.82). 211
Segundo Campos e Morais (2011, p. 32-33) o Grêmio Lítero Esportivo Cruzetense (GLEC) surgiu da
necessidade entre os jovens locais em conquistar espaços de lazer sócio-recreativos até então inexistentes no local.
Inspirado nas agremiações estudantis dos colégios da capital onde estudavam alguns jovens cruzetenses, o clube
foi fundado em 1959 passando a funcionar primeiramente numa garagem localizada nos fundos da casa do Sr.
Celso Azevedo e sediado posteriormente na Associação Educadora de Cruzeta (Clube Municipal). Devido à
realização de bailes dançantes (os souarês) “onde as moças que sabiam dançar ensinavam aos rapazes e vice-
versa”, o grêmio passou a ser alvo de reprovação e escândalo “por parte de algumas pessoas da sociedade”.
Rememorando a importância do grêmio para os jovens locais assim expressou Terezinha Góes em um opúsculo
lançado por ocasião da Festa de Nossa Senhora dos Remédios (padroeira de Cruzeta) do ano de 1989: “Os
conservadores de curta vistas anatematizavam-no. Os jovens, por sua vez, abençoavam-no”.
93
Recentemente, em um artigo, o geógrafo Denis Castilho chamou a atenção do mundo
científico para o uso exagerado dos conceitos de “modernidade” e “modernização”212
e até de
sua banalização nos debates acadêmicos e políticos denunciando como estes têm sido
empregados para justificar e até “naturalizar” “modelos” socioeconômicos “necessários” para o
desenvolvimento ou “progresso social”. Ao atingir a esfera do plano ideológico hegemônico,
Castilho (2010) observa que a “modernização” acabou “garantindo sua aceitação não só no
meio social como também no científico” resultando numa percepção “naturalizada” de sua
expansão territorial pelo mundo.213
Em suas reflexões, ele ainda tece algumas críticas aos
autores que “abordam o tema a partir de uma concepção reducionista de espaço e de
interpretações por meio dos pares opostos e separados – tradicional/moderno, antigo/novo [...]
etc., como se a complexa dinâmica da modernização pudesse ser enquadrada em interpretações
dualistas”.214
Para o autor, que busca estabelecer este debate a partir do viés espacial e político,
“a crítica deve, também, caminhar no sentido de questionar a quem serve o modo de
modernização que se expande pelo Brasil. É preciso falar de processos, mas também nomear
seus atores”.215
Neste sentido ele demonstra que “essa lógica está diretamente relacionada aos
interesses e determinações em jogo dos atores hegemônicos” e não se restringe a uma
determinada região ou lugar216
. Por ser uma escolha, uma opção feita por uma determinada
classe social, a modernização envolve um conjunto de valores e práticas e se apresenta com
forte caráter ideológico “capaz de impor mudanças radicais sobre os valores tradicionais”
expressando as ações deliberadas dos sujeitos sobre os espaços.217
No território seridoense, este processo pode ser observado no âmbito das cidades a partir
da década de 1940218
, haja vista vir a ser o núcleo urbano o lócus preferencial de atuação das
212 Para Denis Castilho (2010, p. 127-128), “o conceito de modernização é abrangente, já que está relacionado a
um conjunto de transformações que se processam nos meios de produção, mas também na estrutura econômica,
política e cultural de um território [...] [envolvendo] um conjunto de valores que advindo de uma determinada
classe social, se apresenta com forte caráter ideológico”. Explicitando melhor o conceito, o autor pondera que
“modernização” é a “representação teórica do processo de imposição das relações sociais de produção pelas classes
hegemônicas”. Ou seja, trata-se, portanto, do próprio “processo de expansão territorial do modo de produção
capitalista”. 213
Idem, ibidem, p.134. 214
CASTILHO, Denis, 2010, p.127. 215
Idem, ibidem, p. 133. 216
Idem, ibidem, p. 131. 217
Idem, ibidem, p.129. 218
De acordo com MORAIS (2006, p. 80-83) “ao final da década de 1930, a dinâmica do rural ainda eclipsava a
vida citadina, a despeito da economia algodoeira ter impulsionado timidamente a vida de relações e das políticas
públicas implementadas, principalmente, pelos governantes filhos da terra, em termos de açudagem, educação,
saúde e vias de transportes, algumas efetivadas no cenário urbano.” Mas foi só a partir da década de 1940 que a
“trajetória ascensional do Seridó” demarcaria “um ciclo de prosperidade econômica e prestígio político”
enveredando definitivamente “pelas trilhas da cidade”.
94
elites locais.219
Colocadas sob a mira das lideranças emergentes (muitas delas recrutadas da
velha oligarquia algodoeiro-pecuarista), as cidades passam a ser o epicentro de mudanças
estruturais, isto é da transformação capitalista no mundo, que começam a serem implementadas
para atender os novos anseios de poder e (re)organização das elites agora comprometidas com o
discurso da modernização.220
Pautado por este novo ideário é que elas (re)montam seus novos
projetos civilizacionais impondo aos velhos “aparatos” rurais as (re)inovações de seus
mecanismos simbólicos de dominação e controle sintonizando-os com as tendências externas
em curso orientadas pelo binômio industrialização/urbanização. A opção pela cidade incide
sobre o fato de ser ela ideada como a melhor “ferramenta” para a consecução de seus
desígnios.221
No município de Cruzeta, a administração do engenheiro-agrônomo Sílvio Bezerra de
Melo atesta como a expansão modernizadora deflagrada em escala nacional atingiu este espaço
com seus rebatimentos. Eleito primeiro Prefeito Constitucional da recém emancipada comuna
seridoense no pleito eleitoral de 1954, seu governo sinaliza a opção das elites locais pela senda
do progresso. Dois marcos científico-culturais foram decisivos para a integração deste espaço
nos novos projetos civilizatórios das elites regionais emergentes: a instalação da Estação
Experimental de Algodão do Seridó222
nos primórdios dos anos 1930 nas proximidades de seu
núcleo urbano223
e a conquista técnico-científica do algodão denominado “Cruzeta” (uma
219 Por elites locais enfatizamos as “figuras de vulto” que se destacaram no cenário político-econômico, social e
intelectual representados nas pessoas de políticos, comerciantes, eclesiásticos, proprietários rurais, médicos, juízes,
advogados e outros profissionais liberais e intelectuais da época. 220
MORAIS op. cit. Ver também GERMANO, José Nilligton. A política do Rio Grande do norte no início dos
anos 60. In. Lendo e aprendendo: a Campanha de Pé no chão. 2 ed. São Paulo: Cortez, 1989. 221
Sobre isto Morais (2006, p.83) argumenta que a emergência de novos municípios no Seridó entre as décadas de
1940 e 60 constitui-se num processo “diretamente relacionado com as estratégias de poder da oligarquia
algodoeiro-pecuarista que elegeu os espaços urbanos como lócus de sua atuação política” repercutindo na dinâmica
campo-cidade e na fragmentação territorial da região (criação de novas unidades territoriais ou municípios). 222
De acordo com Campos e Morais (2011, p.47), “a Estação Experimental do Seridó, localizada a leste da Cidade
de Cruzêta, distante aproximadamente 2,5 km do centro da cidade, pertencia ao Ministério da Agricultura,
subordinado ao Instituto de Pesquisa Agropecuária do Nordeste – IPEANE, sediado em Recife/PE. Seu objetivo
era realizar pesquisas visando à melhoria do algodão arbóreo (mocó), produto básico da economia e principal item
da pauta de exportações do Seridó e do Rio Grande do Norte, entre o final do século XIX e os anos de 1970”. 223
No período compreendido entre os anos de 1921 e 1937, ‘Cruzeta’ era apenas uma florescente povoação
pertencente juridicamente ao município de Acari/RN. A construção do seu reservatório público homônimo
concluído pelo IFOCS em 1929, como também a reconhecida aptidão dos terrenos de sua jusante para o
estabelecimento de uma “fazenda de sementes de mocó puro”, concorreram para que as instalações da Estação
Experimental de Algodão do Seridó sediada provisoriamente desde 1925 na Fazenda Bulhão, município de Acari,
fossem transferidas para a sua nova sede agora localizada naquele povoado. O motivo da referida transferência foi
explicado por Campos e Morais (2011, p.47) como sendo conseqüência dos trabalhos de construção da bacia do
açude Gargalheiras projetado para ser aberto no terreno ocupado pelas antigas instalações da repartição. Entretanto,
outros fatores como a localização central do povoado ‘Cruzeta’ em relação aos municípios da região e a existência
de estudos que apontavam a existência na localidade de terras de “magnífica aptidão para a cultura algodoeira”
desde o início do século XX (MEDEIROS, José Augusto de, 1980, p. 34), foram tão ou mais decisivos na escolha
do novo espaço como o mais propício para o estabelecimento de uma “fazenda de sementes de mocó puro”. (Idem,
ibidem, p.35). Sobre a escolha do povoado Cruzeta para sede das futuras instalações da Estação Experimental de
95
variedade selecionada e melhorada do “mocó” ou “Seridó” de onde se obteve a “melhor fibra
do mundo”224
), fruto do “milagre” tecnológico impetrado por aquela repartição no início dos
anos 1950, cuja marca distintiva estava em “fixar [na cultura algodoeira seridoense] um tipo de
algodão uniforme e de fibra super-longa” muito “procurado pelas indústrias de tecido finos”.225
Esta façanha científica, operada pela Estação Experimental de Cruzeta trouxe um novo
aditamento para os horizontes cotonicultores nordestinos e seridoenses especialmente que desde
o final do século XIX vinham se afirmando como um dos esteios da economia e riqueza
regionais, repercutindo no cenário nacional e fora dele.226
Para a cotonicultura seridoense isso
era particularmente importante, porque surgia como “a base de uma nova era de prosperidade e
riqueza”227
retraída paulatinamente pelo baixo nível técnico da produção de seu algodão que
acabava interferindo negativamente na cotação do produto no mercado interno e internacional,
embora os efeitos desta crise só tenham se tornado mais visíveis apenas a partir dos anos
1970.228
Além deste despautério, acrescenta-se o fato do algodão seridoense encontrar-se
fragilizado geneticamente pela hibridazão natural com outras espécies alienígenas229
, o que
tornava cogente o importante trabalho de seleção e padronização de suas sementes. Uma
reportagem veiculada pela “A Folha” de Caicó em maio de 1954 revela a aura de entusiasmo
Algodão do Seridó, assim notificou o Paiz em dezembro de 1921: “Por iniciativa do Serviço de Fomento do
Algodão do Ministério da Agricultura, acaba de ser escolhido o local para a instalação da primeira das fazendas de
sementes preconizadas pelo Sr. Arno Pearse. As sementes serão da variedade “moco” e o lugar escolhido é
Cruzeta, no município de Acary, Rio Grande do Norte. Segundo narra o Seridoense, diversos motivos justificam a
escolha do local citado. Em Cruzeta está em construção um açude, cuja bacia hydráulica assenta justamente na
confluência de três rios que banham terras dos municípios de Acary, Flôres (Florânea) e Currais Novos. O
reservatório terá uma capacidade que poderá ser elevada a 20 milhões de metros cúbicos [...] Isso quer dizer que
haverá ali uma reserva d’água suficiente para ligar a questão do campo de sementes à questão da irrigação
methodicamente organizada”. Fazendas de sementes do algodão. O Paiz, Rio de Janeiro, 26 dez. 1921. Vida
Social, p. 02. 224
A declaração é de “A Folha” de Caicó veiculada na matéria O Congresso do Algodão de 17 de julho de 1954.
Num excerto do mesmo tópico o jornal ainda veicula: “Nem o Egito, nem o Sudão conseguiram a fibra uniforme
de 40 milímetros. Em Cruzeta operou-se o milagre da técnica”. A respeito desta conjuntura interna também
escreveu Terezinha Goes (1971, p.18): “Na década [de] 50, no sítio Dinamarca [localizado no município de
Cruzeta], sob os cuidados e orientação técnica do agrônomo Dr. Fernando Melo do Nascimento, o algodão ali
produzido só encontrou um competidor no mundo, nos aspecto “fibra longa”, que foi o algodão egípcio.” 225
Algodão “Cruzeta”. A Fôlha, Caicó/RN, 29 mai. 1954. p. 01. 226
É do nosso conhecimento uma carta endereçada pelo técnico britânico Larie Trinidad (autoridade mundial em
algodão) ao engenheiro agrônomo chefe da Estação Experimental do Seridó Fernando Melo do Nascimento
reconhecendo a importância internacional da conquista científica realizada por aquela repartição: “Jamais acreditei
que os senhores fossem capazes de tamanho êxito”. (Trecho citado por GUERRA FILHO, Adauto, 2001, p.49). 227
Algodão “Cruzeta”. A Fôlha, Caicó/RN, 29 mai.1954. p. 01. 228
Segundo Morais (2005, p.164-165), ainda que a crise instalada na produção algodoeira nordestina provocada
especialmente pela baixa tecnificação de seu produto atingisse a região como um todo, esta só foi sentida de forma
mais intensa no Seridó somente a partir da década de 1970 devido a excepcional qualidade de sua fibra que
ampliava sua valorização no mercado e colocava o algodão mocó “na preferência dos produtores estrangeiros, cuja
destinação era o fabrico de tecidos de qualidade superior”. 229
De acordo com Macêdo (2005, p.179-180), algumas variedades de algodão alienígenas como o Sea-Island e o
Upland, americanos, e o Jumel egípcio, foram testados em solo norte-rio-grandense ainda na primeira metade do
século XX resultando na fragilidade genética do algodão mocó nativo da região seridoense.
96
que cingiu a economia regional frente ao “milagre da técnica” operado nos campos
experimentais de Cruzeta.
Lemos dias atrás, um tópico publicado em “O Diário de Notícia,” do Rio de
Janeiro, sôbre o melhoramento e fixação das características do algodão de
fibra longa, graças aos trabalhos da Estação Experimental de Cruzeta. O
esforço silencioso e pertinaz do agrônomo Fernando Melo do Nascimento
começa a ser considerado uma verdadeira revolução no cultivo do algodão
“mocó”, o melhor produzido em terras brasileiras. Conseguiu ele, após longas
e pacientes experiências e pesquisas, fixar um tipo de algodão uniforme e de
fibra super-longa, já hoje muito procurado pelas indústrias de tecidos finos. De
tôda parte há pedidos dessas sementes selecionadas. [...] Dentro de dois anos,
no máximo, haverá abundância de sementes, é o que se anuncia. Oxalá
compreendam os nossos cotonicultores a necessidade de padronizar o cultivo
de seus campos, para readquirir o Seridó o renome de produtor do melhor
algodão do Brasil. A oportunidade é essa. Deus nos deu um terreno e um clima
propício à cultura algodoeira, a técnica nos oferece o fruto de sua experiência.
Basta ao homem cooperar com patriotismo e entusiasmo, para que o ouro
branco dos algodoais seja a base de uma nova era de prosperidade e riqueza
[...].230
Em meio ao crescente sintoma de crise que já se dispersava como uma nuvem densa a
obscurecer os horizontes cotonicultores nordestinos, o algodão “Cruzeta” surgia como uma
“promessa” alvissareira que (re)adquiriria para o “ouro branco” seridoense “um novo e justo
conceito” no mercado nacional e internacional do produto. Na nova conjuntura políticoecômica
mundial, erigida sob princípios cada vez mais racionais e técnicos de produção, Cruzeta
despontava como um pólo geoeconômico estratégico de pesquisa e beneficiamento do algodão
nordestino cujo modelo era pensado como aquele que recuperaria para o Nordeste e o Seridó
cotonicultores a sua posição hegemônica de fornecedores da principal matéria-prima consumida
pela indústria têxtil suldestina que vinha perdendo paulatinamente para o algodão paulista,
especialmente a partir da década de 1930.231
Neste contexto, dois fatores foram fundamentais para a valoração deste espaço como
centro de importância tecnológica, científica e econômica no cultivo do algodoeiro no
Nordeste: sua localização central em relação às principais cidades seridoenses produtoras do
algodão mocó que tornava o trabalho operacional da Estação de beneficiamento, seleção e
classificação do produto mais eficiente e lucrativo, além de favorecer a distribuição da “boa
230 Algodão “Cruzeta”. A Fôlha, Caicó/RN, 29 mai.1954. p. 01.
231 Sobre a perda da supremacia do algodão seridoense e nordestino para o algodão paulista no mercado nacional
cf. Morais (2006, p.164-165); Macêdo (2005, p.179) e Araújo (2006, p.227-228). De acordo com Morais op. cit.
alguns fatores foram decisivos na reorientação do mercado nacional do algodão para a região Sudeste. Dentre estes
estão “a difusão de pragas e a ocorrência de estiagens, com destaque para a seca de 1914/1915 no Nordeste e a
derrocada do café (geada de 1918) no Sudeste” que agravada pela crise de 1929 terminaram por orientar a
agricultura paulista para a abertura de largos espaços agrícolas a cotonicultura. Estes fatores acrescidos ainda do
“baixo nível técnico de produção e de beneficiamento do algodão nordestino”, explica a “expansão da produção
algodoeira em São Paulo”.
97
semente” pelas fazendas de plantio da região e dos Estados circunvizinhos e a existência no
local de terras de excepcional aptidão para o plantio da malvácea de fibra longa apontadas pelo
agrônomo inglês Arno Pearse muitos anos antes como as melhores de toda a região Nordeste
para o desenvolvimento de uma cultura do gênero.232
Em uma carta endereçada pelo agrônomo
Dr. Fernando Melo do Nascimento (1918-2002), em fevereiro de 1953, ao então Deputado
Federal pelo RN, José Augusto Bezerra de Medeiros (1884-1971)233
, assim expressava o chefe
da Estação Experimental do Seridó em tom entusiástico:
Novo rumo vem tomando esta Estação, graças a verba conseguida por V. Exa.
no exercício passado. Sentimos um ritmo novo de trabalho, quando, rompendo
a estreita área desta instituição, estamos, nas fazendas particulares, em campos
de cooperação, multiplicando a boa semente. Embora não tenhamos todos os
tratores em mãos, quatro Fords estão rasgando a terra seridoense, aproveitando
as últimas chuvas caídas. Aguardamos a vinda dos tratores restantes e
esperamos completar, no corrente ano, 1000 hectares, aproximadamente.
Esperamos dentro de 5 anos, um novo e justo conceito para o algodão
seridoense, que florará grato a V. Exa. pelo serviço inestimável prestado ao
nordeste e ao Brasil.234
Tendo em vista a grande expectativa gerada, não é demais pensar que a importância
geoeconômica que Cruzeta adquire na nova contextura político-econômica nacional como
“pólo” do conhecimento técnico-científico de um dos principais produtos da pauta de
exportação do Nordeste – o algodão mocó, cuja fibra já era mundialmente conhecida – tenha
concorrido para a sua “captura” pelas elites emergentes seridoenses num momento em que
parecia abrolhar deste espaço uma solução para o impasse da cotonicultura nordestina
desencadeando um processo que resultaria em sua emancipação política em novembro de 1953
e na eleição do engenheiro-agrônomo Sílvio Bezerra de Melo (1908-1978), filho do empresário
e Desembargador currais-novense Tomaz Salustino Gomes de Melo (1880-1963)235
, para chefe
232 MEDEIROS, José Augusto de, 1954, p.35. A conclusão a que chegou o agrônomo inglês Arno Pearse foi
baseada em estudos mesológicos e climatérios realizados na região do Seridó norte-rio-grandense ainda no início
da segunda década do século XX quando esteve à frente da Missão Algodoeira no Brasil. Fazendas de sementes do
algodão. O Paiz, Rio de Janeiro, 26 dez. 1921. Vida Social, p.02. 233
Seridoense nascido no município de Caicó (RN) em setembro de 1884. Tornou-se o primeiro representante da
oligarquia algodoeira-pecuarista do Seridó a assumir o posto de governador do Estado do Rio Grande do Norte.
Como magistrado e político brasileiro foi um profundo defensor do algodão seridoense. Ainda em seu mandato
como governador do RN no período de 1924 a 1927, implantou a Estação Experimental do Seridó se tornando um
de seus maiores incentivadores. 234
Citado por GUERRA FILHO, Adauto, 2001, p.53. 235
O Des. Tomaz Salustino era seridoense natural do município de Currais Novos e proprietário da promissora
Mineração Tomaz Salustino S/A, empresa concessionária responsável pela exploração mineira na província
scheelítífera curraisnovense que chegou a atingir o patamar de principal produtora brasileira de sheelita. Como
empresário bem-sucedido, Tomaz Salustino chegou a figurar dentre os homens mais influentes do Nordeste
empreendendo obras de modernização urbana especialmente no município de Currais Novos e em 1954 foi
considerado pela revista Time, de Nova York, a 4ª fortuna em potencial no mundo. Sobre a atividade mineradora
no Seridó, Morais (2006, p.83) comenta que esta “teve um papel fundamental no processo de urbanização regional,
98
do poder executivo da novel comuna. Ademais, o conceito que gozava a Estação Experimental
de Cruzeta como um dos mais promissores centros científicos de beneficiamento e seleção do
“ouro branco” nordestino colocava aquele espaço sob a mira das elites interessadas em
desenvolver economicamente a região, fortalecer sua projeção no cenário político e econômico
nacional e consolidar seus domínios no território regional atrelando-o às suas estratégias de
dominação agora pensadas em termos de “modernização”.
Não foi por acaso que a despeito de discutir novos parâmetros para a cotonicultura
nordestina realizou-se em Currais Novos e Cruzeta (maiores centros de importância econômica
do algodão de acordo com o Diário de Notícias do Rio de Janeiro)236
o II Congresso Nacional
Algodoeiro em setembro de 1954 que reuniu na recém-emancipada comuna seridoense
“pessoas do mais alto nível em termos de conhecimento sobre algodão, como autoridades
nordestinas e de outras regiões do país, inclusive o Ministro da Agricultura, cotonicultores
regionais e técnicos experientes com o objetivo de estudar e debater importantes temas
relacionados ao desenvolvimento da cultura algodoeira que se expandia aceleradamente no
Seridó”.237
Mas que discutir “problemas técnicos e práticos necessários ao aperfeiçoamento da fibra
de algodão”238
, o “conclave” algodoeiro, que mobilizou técnicos e chefes políticos dos
principais Estados produtores do Nordeste, foi um exemplo bastante expressivo de que as elites
político-econômicas regionais buscaram se (re)articular estrategicamente frente a crescente
demanda dos principais parques têxtil nacionais num momento em que o progresso técnico-
científico proporcionado pela modernização da agricultura e o avanço da nova mentalidade
burguesa empresarial pareciam capazes de “salvar” do colapso final a titubeante lavoura
nordestina. Esta busca pela modernização da cultura algodoeira do Nordeste era resultado das
novas exigências técnicas de produção incumbidas pelo comércio cotonicultor internacional e
pela indústria têxtil paulista (principal consumidora da fibra nordestina), tendo em vista a
competitividade do produto no mercado e a acelerada ampliação dos mercados consumidores
principalmente no que se refere a Currais Novos e aos municípios adjacentes e, juntamente com o algodão, foi
responsável por uma fase de forte desenvolvimento sócio-econômico”. 236
FREITAS, Honorato de. Vai reunir-se o Segundo Congresso Algodoeiro do Nordeste. Diário de Notícias, Rio
de Janeiro, 5 set. 1954. Produção Rural, p. 05. 237
CAMPOS & MORAIS, 2011, p.56. O temário do certame abrangeu temas como os “problemas que se
liga[va]m à melhoria das sementes e aos tratos culturais [...] combate às pragas e moléstias, mecanização da
lavoura, épocas de plantio e causas da diminuição das safras [e os] aspectos econômicos da cultura: financiamento
e preço mínimo, custeio da entre-safra e custo da produção, preços do produto beneficiado e dos subprodutos e,
bem assim, o financiamento através das indústrias de fiação e tecelagem”. II Congresso Nacional Algodoeiro.
Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 11 jul. 1954. O Brasil de Norte a Sul, p.08. 238
FREITAS, Honorato de. Vai reunir-se o Segundo Congresso Algodoeiro do Nordeste. Diário de Notícias, Rio
de Janeiro, 5 set. 1954. Produção Rural, p. 05.
99
nacionais e estrangeiros.
No tocante ao panorama nacional, este esforço representava um meio de consolidar um
modelo de política conduzido pelas elites dominantes suldestinas que buscava reafirmar o
Nordeste como espaço agroexportador e fornecedor de matéria-prima para a expansiva indústria
nacional e o Sudeste-Sul do país como pólo urbano industrializado.239
O passo que se seguiu a
isto foi a refuncionalização do espaço urbano regional pelas elites, no intuito de moldar suas
“velhas” estruturas rurais às novas determinações postuladas pelo processo de modernização
atrelado ao paradigma urbanização/industrialização em expansão no país, capitaneados pelos
princípios da racionalidade e da técnica. Este desígnio era a inferência do “ideário
desenvolvimentista da época” que não se coadunava “com uma formação social baseada em
economias regionais fragilmente articuladas, pautadas em uma estrutura social rural com
atividades hegemonicamente agrárias”.240
A condução do desenvolvimento regional “pelas
trilhas da cidade” foi a resposta das elites político-econômicas locais visando sua inserção na
rede.241
No município de Cruzeta, as obras de modernização, de infra-estrutura urbana e de
ampliação e melhoramentos dos serviços públicos empreendidas pela administração do prefeito
Sílvio Bezerra de Melo (1955-1960), revelam as intenções das elites locais em atualizar e
sintonizar este espaço com as tendências e exigências em curso. Aliando seus projetos aos
interesses das elites político-econômicas da região e fora dela, Sílvio Bezerra de Melo
empreendeu em seu governo importantes ações modernizantes:
Reconstruiu e asfaltou as estradas intermunicipais que ligavam Cruzeta aos municípios
circunvizinhos facilitando o escoamento da produção econômica municipal e o acesso aos
principais centros comerciais da região (Caicó e Currais Novos);
Criou em 1956 a Agência Municipal de Estatística com o intuito, principalmente de
realizar a pesquisa e o controle da produção local do algodão;
Restaurou o sistema de iluminação elétrica da cidade através da aquisição de um motor
novo e da construção da Casa de Força e Luz para uso especialmente do comércio e da
indústria;
Construiu o Abatedouro Público Municipal;
Realizou a pavimentação dos principais logradouros urbanos e contratou técnicos da
URBAM de Belo Horizontes (MG) para executar o levantamento topográfico da cidade e
239 Cf. ANDRADE, Manuel Correia de, 1974.
240 MORAIS, Ione Rodrigues Diniz, 2005, p.170.
241 Idem.
100
conceber o seu plano de urbanização, dentre outras benfeitorias públicas.242
Ainda como chefe da Estação Experimental do Seridó entre os anos de 1936 e 1946,
Sílvio de Melo instalou uma Agência Telefônica (1943), fundamental para a comunicação e a
articulação com outros centros maiores (Natal, Campina Grande, João Pessoa e Recife) e
empreendeu a arborização da Vila.243
À frente desta repartição, foi responsável juntamente com
a chefia de Fernando Melo do Nascimento (1947-1956), pela introdução de novas técnicas e
insumos de cultivo no campo (máquinas do tipo plantadeiras, roçadeiras, pulverizadores e
veículos de tração mecânica – tratores, caminhonetes e jeeps)244
influindo, inclusive, no modus
vivendi e na modificação do ritmo de trabalho dos pequenos produtores rurais, sobretudo
daqueles que operavam em regime cooperado, que tiveram que adotar uma labuta diária
baseada no ritmo de produção fabril.245
Consta, ainda, no inventário de suas ações, o fato de ter construído e inaugurado junto
com seu pai Tomaz Salustino, em 1954, o campo de pouso da Estação experimental de Cruzeta
promovendo a integração pelos ares da pequena gleba sertaneja com os centros mais dinâmicos
do país e até do exterior.246
Neste ínterim, também foram significativas as suas atuações no
cenário sócio-cultural do município. Dentre as ações empreendidas neste setor está a fundação
do Clube de Mães, ainda em seu primeiro ano de governo que tinha “o objetivo de ensinar às
donas de casa artes domésticas como: crochês, adornos com o aproveitamento de recursos
naturais, corte, costura e arte culinária [...] como [também promover a] orientação para
educação da família em suas diversas finalidades”.247
Referindo-se a administração do prefeito
Sílvio Bezerra de Melo, assim expressou Terezinha Goes (1971): “tudo o que se refere ao
242 GOES, Terezinha de Medeiros, 1971, p. 89.
243 Idem, ibidem. A evolução política do município de Cruzeta seguiu a seguinte trajetória: foi fundado povoado
sob a jurisdição do município de Acari (RN) em 1920, passando a categoria de Vila em agosto de 1937 e elevado à
foros de cidade em novembro de 1953. 244
Embora estas melhorias estivessem circunscritas ao universo sócioespacial “um tanto fechado” da Estação
Experimental do Seridó, elas acabavam influenciando o modo de produção de muitos trabalhadores rurais, que de
uma forma ou de outra, trabalhavam em cooperação com os trabalhos desenvolvidos pela referida repartição. 245
CAMPOS & MORAIS, 2011, p.51-61. De acordo com Campos e Morais (2011, p.48-49), a rotina de trabalho
nos campos cooperados da Estação Experimental do Seridó “começava logo ao amanhecer, ás 5:30 min.,
registrando-se um intervalo às 7:00h para o café que era feito e servido no local do trabalho. Às 10:30 min. a
paralisação se dava em função do almoço, com um retorno à labuta às 12:30 min.; somente às 17:30 encerrava-se a
jornada diária de trabalho. Havia muita rigidez no cumprimento dos horários e todo trabalho de campo era feito
sob a vigilância de um feitor”. Durante o período em que chefiou a Estação Experimental de Cruzeta, relatam as
autoras que “Dr. Sílvio [...] percorria diariamente, montado em um cavalo, toda a área da estação, desde os campos
até a casa dos operários, visitando as famílias e as orientando sobre higiene, alimentação, cuidados com a água
potável e até o estudo das crianças”. (Idem, ibidem, p.60). 246
Cf. Filme com a inauguração dos campos de pouso da mina Brejuí e Cruzeta na década de 1950.
Disponível em <https://tokdehistoria.wordpress.com/2014/02/03/filme-com-a-inauguracao-dos-campos-de-pouso-
da-mina-brejui-e-cruzeta-na-decada-de-1950/>. Acesso em: 19 de mar. 2014. 247
GOES, op. cit., p.64. Outras ações como a criação da Sociedade Educadora de Cruzeta em 1957 e a Associação
de Proteção à Maternidade e a Infância também foram instituídas durante o governo de Sílvio Bezerra de Melo.
101
progresso de Cruzeta, está estritamente ligado à insigne figura de Dr. Sílvio Bezerra de
Melo”.248
As mudanças implementadas pelo governo de Sílvio de Melo eram o corolário do
processo de expansão territorial da modernidade e/ou do modo de produção capitalista ocidental
que avançava sobre os sertões nordestinos e atingia ita loci os pequenos grupos das
extremidades do planeta e do território nacional, repercutindo de forma mais intensa no Seridó
potiguar a partir dos anos 1940 e 50, embora nesta região este processo remonte a, pelo menos,
os fins do século XIX e primórdios do século XX, se intensificando nas seis primeiras décadas
do último século.249
Não obstante as formas particulares que este processo possa assumir nos
diferentes espaços, “na medida em que os elementos da mundialização penetram os lugares, os
seus conteúdos são alterados e (re)funcionalizados”250
, provocando mudanças que não só
afetam a dimensão tangível da realidade, mas atingindo o nível da cultura, interferem nos
modos locais dos comportamentos, dos valores, das referências e do imaginário, suscitando
formas heterogêneas e também ambíguas e contraditórias de apropriação do “moderno” e da
“modernidade”.
Esta constatação multiface da realidade nos impele a pensar como Sandra Pesavento
(2005) que, muito mais que fixar uma “verdade”,
a história trabalha [...] com um acúmulo de possíveis, com a pluralidade de
pontos de vista, o que a situa no campo da ambivalência: ser isso e aquilo ao
mesmo tempo, podendo um fato ter mais de uma versão, dotada cada uma da
sua lógica própria sem que uma delas deva ser, necessariamente, mentirosa.251
Admitir, portanto, a ambivalência na história é perceber que “um mesmo acontecimento
possa suportar julgamentos contrários, ou de que tudo o que hoje se admite como verdadeiro
pode, no futuro, ser contado e explicado de outra forma” abrindo possibilidades para que se
aceitem “múltiplas versões” e se tolerem “regimes de verdade”.252
O avanço da civilização moderno-urbana capitalista sobre os sertões seridoenses trouxe
248 Idem, ibidem, p.90.
249 MORAIS, Ione Rodrigues Diniz, 2006, p.80. De acordo com Morais (2005, 119-130), foi só a partir da década
de 1880 quando já havia iniciado o processo de industrialização nacional e começou a se desenvolver a indústria
têxtil paulista que a produção econômica regional baseada na criação do gado voltada especialmente para o
abastecimento do mercado interno nordestino iria sofrer uma reorientação, sobretudo via desenvolvimento da
cotonicultura, direcionada para o fornecimento de matéria-prima para a indústria têxtil. Esta fase caracteriza o
período inicial de penetração do espírito do capitalismo industrial na região que imporia mudanças em suas bases
produtivas. Uma dessas mudanças foi a refuncionalização da fazenda de criar antes voltada basicamente a pecuária
e a agricultura de subsistência, para atender a demanda da cotonicultura mercantil, passando a abrigar em seus
espaços as primeiras iniciativas de beneficiamento do algodão, através das bolandeiras, isto é, “máquina de
descaroçar movida por tração animal (boi ou cavalo), que produzia pelo chamado sistema de rolo (separando o
caroço do algodão, da pluma, por compressão)”. (CLEMENTINO apud. MORAIS, op. cit., 2006, p.80/86). 250
CASTILHO, Denis, 2010, p.136. 251
PESAVENTO, Sandra Jatahy, 2005, p.110. 252
Idem, ibidem.
102
consigo novos símbolos de cultura até então desconhecidos por seus habitantes que tiveram que
ser apreendidos para tornarem-se compreendidos. Neste processo de apropriação simbólica, o
imaginário apocalíptico popular exerceu uma função capital ao fornecer imagens e sentidos que
puderam ser aliciados por muitos sujeitos para traduzir este “outro” desconhecido. O drama
resultante deste processo ficaria expresso na experiência do “choque cultural” vivenciado por
muitos cruzetenses e seridoenses diante do avanço dos símbolos de modernidade no momento
em que estes irrompem o mundo rural e começam a penetrar as pequenas urbes e povoados da
região, transformando-se a exemplo do automóvel e do avião, nas bestas escatológicas do
apocalipse.
Esta experiência do “choque”, ou na melhor hipótese, do “encontro” com o elemento
moderno, não implicaria no fim ou no enfraquecimento do imaginário religioso tradicional
construído em volta das crenças no fim do mundo, mas, sim, numa transformação operada no
interior dos seus processos de produção.
3.2. O MULTIFÁRIO DA BESTA FERA
Talvez nenhuma ideia do último livro do Novo Testamento tenha causado maior impacto
no imaginário religioso do sertanejo do Nordeste que a da besta escatológica. Introduzida nos
sertões nordestinos desde os tempos coloniais pelos missionários e colonizadores portugueses e
disseminada no campesinato rural nordestino junto do folclore, das crenças e profecias
apocalípticas, a tão propalada Besta (fera) do apocalipse foi, desde muito cedo, uma figura
controversa. Já nos primeiros séculos da Igreja cristã sua noção era motivo de contestação nos
escritos da Patrística253
que se dividiam entre as opiniões quanto a esta vir a ser uma criatura
concreta ou um indivíduo humano real, ou se tratava de uma alegoria para representar tudo
àquilo que impede os desígnios de Deus para o cosmo.254
Amalgamada às tradições folclóricas do mundo rural nordestino e incorporando traços
próprios da imaginação popular, a ideia da besta apocalíptica nos sertões seridoenses chegaria à
segunda metade do século XX marcada pela concepção polimórfica. De cavalo mastodôntico
alado com olhos de fogo ao envoltório humano do diabo encoberto, ela perseguia os sonhos dos
viventes, habitava a fantasia das crianças e causava medo e pavor. Sua manifestação no mundo
sinalizaria a iminência do Fim das Eras e seria uma prova irrefutável de que o divino juiz
estaria voltando para julgar os pecadores no grande ordálio. Transmitida entre os grupos rurais
253 Nome dado à filosofia cristã elaborada pelos Padres Apostólicos ou Pais da Igreja.
254 Cf. RUSSELL, 2007.
103
pela tradição oral e jogando com a flexibilidade plástica de sua aparência, a ideia da besta
escatológica não era uma imagem pronta e acabada, mas estava sempre sendo (re)feita num
movimento contínuo do simbólico e da história.
Numa xilogravura datada de 1968 do artista cearense Walderêdo Gonçalves intitulada a
“Besta fera da terra”, o monstro escatológico é representado como um quadrúpede medonho de
feições híbridas com rosto de bode e asas de morcego conduzindo na testa o número 666, que é
a sua marca (ver imagem 11 em anexo). Numa outra ilustração do autor que retrata uma cena da
adoração à besta, o monstro apocalíptico aparece sob a forma de um tetrápode portando sete
cabeças semelhantes a fisionomia de um ruminante com chifres, diante do qual pessoas são
concebidas em posição de reverência (ver imagem 12 em anexo). Ainda em outra representação
de um xilógrafo paraibano datada de meados de 1970, a mencionada figura aterradora assume o
aspecto de um cavalo feroz de estatura colossal a galgar montes e colinas (ver imagem 13 em
anexo).
Nascida do acervo de imagens e noções de estratos cronológicos mais antigos, a imagem
da besta projetada sobre o aspecto de um quadrúpede, povoaria com mais freqüência a
imaginação popular. Ela fazia parte de um amplo multifário de representações que mesclava
tradições cristalizadas à inventividade popular, colocando em interação processos sedimentados
e criativos de idéias. Retratando um sonho que teve com a tal figura monstruosa, assim a
descrevia uma moradora cruzetense de 67 anos remetendo-o às reminiscências da infância
vivida entre os anos de 1940 e 50:
Uma vez eu sonhei com a besta-fera. Era bem grandona. Aquele animal bem
grandão branco. E quando ela passava de frente a mim, onde ela ia pisando,
ficava um buraco tirando as pedras do calçamento. Era uma bestona branca.
Era um cavalão do tamanho da igreja. E passava levando as pedras e levando
tudo. Eu sonhei. Onde ela passava levantava buraco e o buraco estriando. E aí
quando eu olhei assim, ela passou no meio campo direto e saiu voando.255
Penetrando o universo das experiências mais profundas dos indivíduos, a besta fera
também habitava o inconsciente coletivo. Associada a idéia do diabo astuto, ela podia se
manifestar no meio do povo sob a forma do disfarce, enganando os católicos menos constantes
e avisados, causando prejuízo à fé dos fieis e colocando a perder suas almas. Daí toda
desconfiança ao estranho, ao indivíduo ou a coisa desconhecida, já que sob outro envoltório
carnal sua presença ardilosa podia passar despercebida. Referindo-se a uma profecia de Frei
Damião que ouvira quando criança, lembrava dona Santina de Neco a respeito do aparecimento
da besta fera e de sua ação danosa no mundo.
255 Depoimento concedido pela Sra. Helena Silva de Goes, 67 anos, no dia 26 de outubro de 2009.
104
[Ele dizia que] no fim do mundo ia aparecer a besta-fera de casa em casa
seduzindo as pessoas, trocando voltas de ouro por rosário. Quem tinha rosário,
a besta-fera trazia aquelas voltas de ouro pra trocar pelo rosário. [...] Era o mal
transformado. Ele falava muito.
Diante da investida do maligno, o católico devia resistir e portar-se como um cristão
arguto não se deixando iludir por suas artimanhas e novidades, “por que ia aparecer nas nossas
casas um homem trocando rosários por voltas de ouro e a pessoa não quisesse. Não trocasse seu
rosário pela volta de ouro, porque aquilo já ficava pertencendo à besta-fera”, argumentava uma
outra moradora de Cruzeta de 75 anos a respeito da mesma profecia de Frei Damião que ouvira
falar na infância.
A ação da besta se manifestaria no mundo no final das eras através da inoculação do seu
sinal, na ocasião em que esta passaria “ferrando o povo pra ela como se fosse uma marca, como
um ferro que você ferra uma garrota, um jumento”.256
Os “três dias de escuro” seria o momento
em que esta “correria” solta no mundo causando atrocidades e investindo contra as residências
dos bons católicos. Uma moradora cruzetense de 63 anos lembra o que dizia os pais a respeito
deste acontecimento profetizado por “Padrinho Ciço”, quando ainda era menina e morava no
Sítio Cruzeta Velha, município de Cruzeta: “Eles comentavam que era no fim do mundo que
vinha estas três noites de escuro e que a besta fera ia sair nas portas [das casas]. Aí eu pegava o
que era de machado e lavanca de papai e enfiava por trás da porta com medo da besta fera
passar”.257
Para proteger-se da besta fera nos três dias de escuro, o católico devia recorrer a orações e
rituais que se bem preparados e executados teria o poder de livrá-lo de suas ações nefastas. Ter
um lenho de fogueira de São João guardado em casa, uma vela ou ramo bentos ou conduzir
consigo uma oração do Padrinho Ciço, seriam armas poderosas contra o assalto da besta ou do
“Capa verde”258
, pois além de resguardar o cristão de seus ardis ruinosos, também o livraria das
obras malévolas dos “amancebados” que nos “dias do sol escuro” se transformariam em bestas
256 Fala retirada do trecho da entrevista concedida pela Sra. Leonete Pereira de Medeiros, 75 anos, no dia 08 de
dezembro de 2009. 257
Depoimento concedido pela Sra. Maria Letícia dos Santos no dia 24/08/2012. 258
Figura lendária que apareceria no fim dos tempos e geralmente associada à idéia do “diabo encoberto” e por
vezes, também, confundindo-se com a imagem da besta fera que os sertanejos diziam ter sido profetizada por
Padrinho Cícero. A respeito da tal figura diabólica, lembrava uma moradora cruzetense do sítio Fechado a guisa de
descrição: “O capa verde era uma pessoa virada num bicho que ia pros curral, se deitava lá e virava num bicho,
aí saia fazendo lesura com o povo”. Sobre o Capa verde e suas diversas manifestações morfológicas ver NUNES,
Mariângela de Vasconcelos. As profecias do fim do Mundo e o Capa verde. In.______. Entre o Capa verde e a
redenção: a cultura do trabalho com o agave nos Cariris Velhos (1937-1966, Paraíba). 291 p. Tese (Doutorado em
História). Universidade de Brasília, Programa de Pós-Graduação em História, Brasília, 2006. p. 259-273.
Disponível em: <http://repositorio.unb.br/handle/10482/5160 >. Acesso em: 03 mai. 2014.
105
e asnos e sob a montaria dos demônios sairiam pelo mundo praticando “lesuras”259
com o
povo.260
(Ver imagens 14, 15 e 16 em anexo). Recordando as recomendações e os métodos que
ouvira de sua mãe na infância para livrar-se das ações maléficas do maligno nos dias de
escuridão, relatou a ex-moradora do sítio Cruzeta Velha: “Mamãe me dizia que nas três noites
de escuro, só se acende o fosco bento, quem tiver a vela benta. Aí quando eu ia pras missas eu
dizia: “mamãe, a Senhora está levando a caixa de fosco e a vela pro padre benzer?”.261
Gozando
de ampla popularidade entre os sertanejos rurais cruzetenses, a crença nos três dias de escuro e
na vinda da Besta fera, ensejavam posturas e aliciavam sentimentos que uniam o maravilhoso
às formas de vida e à religiosidade popular, não se constituindo para o sertanejo em mundos
distintos e separados.
Esta produção imagética construída à volta do monstro escatológico sofreria
transformações em decorrência do encontro com os símbolos de modernidade travado no
interior do mundo rural sertanejo. Para nós interessa-nos neste tópico analisar mais de perto
como os símbolos modernos com destaque para o automóvel e o avião, foram apropriados a
partir do simbolismo da besta apocalíptica resultando em alterações no imaginário tradicional.
Para isso dois motivos foram cruciais: o desconhecimento do que seria exatamente a tão falada
figura escatológica e a percepção de que esta já estaria “correndo” pelo mundo. Para iniciarmos
nossa análise, comecemos, pois, pela exposição de um pequeno trecho extraído de uma
historieta “caipira”.
Dizem que a Bíblia diz que no fim dos tempos vai aparecer a besta fera.
É um animal feroz que vai destruir todos os homens. Ninguém vai poder lutar
contra ela, pois a cuja vai ter uma força descomunal. [...]
Este tipo de coisa cai bem na cabeça de alguns pobres sertanejos e os
coitados passam a acreditar nisto piamente. E os pobres morrem de medo da
tal besta fera. Acontece que eles nunca viram a coisa [...]
Antonino era um pobre sertanejo. Tinha memória curta e acreditava em
tudo o que os amigos falavam. Sobre a besta fera então nem se comentava.
Era um Deus nos acuda. O pobre se arrepiava todo e morria de medo. Não
sabia ler, o que piorava ainda mais as coisas.
Antonino jamais fora a uma cidade. Lá por volta de 1930 o progresso
não era ainda tão acentuado.
Um dia ele teve que ir a uma cidade fazer uma compra. Não havia
ninguém para ir, muito menos ir com ele. O moço partiu sozinho com as
informações fornecidas pelos amigos. Ele foi, mas sempre de olho para não
encontrar a besta fera. Andou muito por aquela estradona bonita. Havia muita
coisa bonita. Tudo ali era diferente. Casas de um lado e outro e aquela estrada
no meio. Para que aquela estrada tão larga? As pessoas não precisavam de
um caminho tão largo assim. Mas, não se importou com isto e continuou
259 Expressão retirada do depoimento de dona Ambrosina. Significa o mesmo que maldade, crueldade.
260 Sobre “superstições” envolvendo os três dias de escuro cf. DANTAS, Renato, 1976.
261 Depoimento concedido pela Sra. Maria Letícia dos Santos no dia 24/08/2012.
106
andando.
Até agora não encontrou nenhuma besta fera. Fez as suas compras,
colocou tudo dentro do saco e se preparou para vir embora. Assim que ele saiu
ouviu um ronco muito forte. Ficou de orelha em pé. Aquilo estava muito
estranho. Ouviu de novo. Novo ronco forte. Quando ele olha na ponta da
estrada lá vinha um bicho. Bicho feio, enorme, preto, vinha correndo,
roncando e soltando fumaça e poeira pra todo lado. Antonino não teve
dúvida: era a besta fera. Largou o saco no chão e correu. Andou só um
pedacinho e a besta fera já estava no encalço dele. Ele virava de um lado e
outro e a besta fera atrás. De vez em quando a besta fera dava algumas
buzinadas de amedrontar qualquer vivendo. Não havia lugar para se esconder.
Antonino já se via morto. Não tinha escapatória. Seria tragado pela besta fera.
Ele que lutara tanto para não ser derrotado por ela. Mas chegou o seu dia. Era
o fim. E não avisara ninguém na fazenda. E tinha mais uma: quem era tragado
pela besta fera, ia direto pro inferno, pois ela era o demônio em vida. E o nosso
pobre Antonino corria. Não tinha onde se esconder e se livrar dela.262
O fragmento literário citado acima foi retirado do conto “A Besta Fera” do escritor
paranaense Henrique Pompílio de Araújo e se trata, portanto, de uma “ficção”. Seu personagem
Antonino e a trama que ele encena são “invenções fictícias” do imaginário criativo do autor,
logo não possuem existência real. Entretanto, embora pertençam ao universo ficcional, eles
representam uma concepção do passado projetada pelo escritor. São recriações imaginárias do
real vivido em um tempo reconfigurado pela imaginação criadora do autor para ilustrar a visão
de uma época em que os símbolos do progresso ou da modernidade representados na narrativa
pela imagem “espalhafatosa” e “diabólica” do automóvel começam a romper o “isolamento” do
mundo rural sertanejo e penetrar a pequena urbe interiorana causando perturbações no modo de
viver tradicional de seus habitantes nativos.
Grosso modo, a trama tecida em volta do sertanejo Antonino e a Besta Fera (o
automóvel), representa aquilo que poderíamos chamar de um “choque de identidade” ou de
culturas entre duas “tradições” ou formas diferentes de conceber o mundo: a tradição
consuetudinária camponesa respaldada no catolicismo popular de caráter sobrenatural e
cosmicizante “que constituía a maneira mais generalizada de conceber o mundo no meio rural
brasileiro”263
e a tradição urbana ocidental moderna que se baseia nos princípios da
racionalidade, da ciência e da técnica, e portanto, de caráter mais laicizante.
Visto por esta perspectiva, Antonino é muito mais que um “matuto” ou “caipira” rude e
incivilizado que julga ver no automóvel, símbolo do progresso e da revolução tecnológica da
sociedade moderna em expansão, a besta fera do Apocalipse fruto de seu misticismo
exacerbado ou de sua imaginação antilógica e grosseira. Seu olhar é daquele sujeito que ver o
262 ARAÚJO, Henrique Pompílio de. A Besta Fera. Contos. Dezembro de 2009. Disponível em:
<http://www.webartigos.com/artigos/a-besta-fera/30148...>. Acesso em: 26 de mar. 2014. 263
ZALUAR, Alba, 1983, p.13.
107
“outro” (aqui simbolizado na figura do automóvel) a partir do interior da cultura de seu grupo, e
que, portanto, encontra-se condicionado pela visão de mundo e ideologia que este compartilha
ao utilizar-se de seu patrimônio simbólico para “interpretar” ou “dar a ler” o mundo em sua
volta.
Diante disso, dizemos que Antonino é um indivíduo “situado” numa tradição – a tradição
consuetudinária camponesa de base católica – e que por meio de um complexo dispositivo de
identificação e associações simbólicas socializadas que chamamos de identidade, mantêm-se
vinculado a esta. Por ser “uma construção simbólica de sentido que organiza um sistema
compreensivo a partir da idéia de pertencimento”264
, a identidade enquanto representação social
se fundamenta em “sistemas de símbolos” que orientam as formas de como os indivíduos de
uma cultura se relacionam com os outros. Segundo Clifford Geertz símbolos “são formulações
tangíveis de noções, abstrações da experiência fixada em formas perceptíveis, incorporações
concretas de ideias, atitudes, julgamentos, saudades ou crenças”265
que ao se unirem formam
“padrões culturais”.
Por sua vez, “padrões culturais” são “modelos” que tem a função de moldar e orientar os
comportamentos sociais dos indivíduos induzindo e definindo as suas “disposições”, isto é, as
tendências, capacidades, propensões, habilidades, hábitos, comportamento e inclinações que
estes estabelecem com o mundo.266
São, portando, estes conjuntos de códigos e símbolos
padronizados mobilizados pela tradição da qual Antonino participa que agem “modelando” as
suas representações de mundo formulando uma concepção sobre as “coisas”, isto é, atribuindo-
lhe significado, sentido e estabelecendo seu “olhar” sobre o outro. Mas, ao serem produzidos e
partilhados pelos membros de uma cultura, eles nem sempre possuem o mesmo sentido ou
significado para os outros grupos, podendo gerar o que Gabriela Cortés (2002) denominou de
“choque cultural”.267
O “causo” caipira tecido por Pompílio, é um exemplo disso. Ele também é útil em
264 PESAVENTO, Sandra Jatahy, 2005, p.89.
265 GEERTZ, Clifford, 1989, p.105.
266 Idem, p.109.
267 De acordo com Gabriela Cortés (2002), o choque cultural “es una reacción al stress que provoca lo nuevo y a lo
que no se está familiarizado”, sendo mais adequado para referir-se “a una reacción que se da de inmediato y de
forma consciente” podendo dar-se pelos seguintes motivos: 1. Quando ocorrem confrontos internos de culturas
implicando na situação de que tudo o que um indivíduo aprende durante sua vida não é necessariamente válido em
outro meio cultural; 2. Quando ocorrem falhas de comunicação patenteadas na situação em que um indivíduo
enfrenta novos valores, gestos, linguagens e significados porque seu contexto cultural mudou; 3. Quando ocorre
perda de sinais e códigos implicando para o indivíduo na supressão dos modelos explicativos culturais que até
então o ajudaram a entender o mundo em sua volta; 4. Quando ocorre crise de identidade provocando no indivíduo
a perda da noção de quem ele é. Cortés ainda comenta que estas situações costumam vir acompanhadas com
respostas negativas associadas ao choque cultural como o medo, a frustração, o isolamento, a impaciência e a
insônia.
108
demonstrar que códigos e símbolos provenientes de culturas distintas podem significar diferente
em outros contextos e tradições, podendo, portanto, serem apropriados e (re)significados por
seus sujeitos de maneiras diversas das quais foram particularmente investidos em suas origens.
Mas este processo de apropriação (desviante) do simbólico responde por um mecanismo
imaginário que é necessário explicitar. Com esse intuito, citemos, pois o exemplo decorrido
com o nosso personagem Antonino e o automóvel.
Partimos, pois, da idéia de que o automóvel é um símbolo inventado pela sociedade
moderna ocidental capitalista e que, portanto, “goza” no interior desta de um conjunto de
significados partilhados entre seus membros que se aliam ao sentido de poder (econômico e
social), progresso (tecnológico e científico), trabalho (transporte de carga e de pessoas) e
civilidade e lazer (urbanidade, entretenimento e bem-estar individual), não possuindo estes
mesmos sentidos para Antonino uma vez que este não participa daquele meio ou contexto
social, nem compartilha dos seus mesmos padrões culturais. Ou seja, Antonino não detém
(domina) os mesmos códigos simbólicos (o patrimônio cultural) daquela cultura, não
desenvolvendo com esta uma relação de identidade.
Entretanto, ao deparar-se à primeira vista com o automóvel, aquela imagem remete à
memória de Antonino uma concepção (o “já-dito”) sobre aquilo que ele ver acionando em suas
“reservas simbólicas”, isto é, as referências tradicionais (a tradição), sentidos e significados pré-
construídos e compartilhados pela cultura que participa e que são presentificados pela
“exterioridade” da figura do automóvel no momento que (se) olha: o forte ruído que libera, o
aspecto físico avolumado de tez escura e a presteza com o qual aquela “coisa” se move sobre o
solo espargindo poeira e vapor, associando este complexo de imagens ao que ele já concebia
como sendo um “bicho” feroz, uma “besta fera”, portanto. Assim, julgamos que houve o
“enquadramento” daquela imagem numa estrutura mental preexistente em Antonino (neste caso
no arquétipo268
da besta escatológica projetada sobre a idéia de um monstro enorme e feroz de
pele escura, com olhos de fogo e que cospe fumaça, recorrente em sua memória ativa269
). Ou
para ser mais condizente com nosso problema, dizemos que houve uma “falha de comunicação”
268 Entendemos por “arquétipos” os “elementos constitutivos do imaginário que atravessam os tempos, assinalando
formas de pensar e construir representações sobre o mundo”. (PESAVENTO, 2005, p.45). São estas, portanto,
“estruturas inatas, imagens de instintos [...] recorrentes”, capazes de orientar estruturalmente as elaborações das
representações coletivas. (idem, ibidem). 269
De acordo com Lucilia Neves Delgado (2006, p.17), “a memória ativa é um recurso importante para a
transmissão de experiências consolidadas ao longo de diferentes temporalidades”. Por este motivo esta está
diretamente relacionada com a idéia de tradições, isto é “as coisas ditas no passado e transmitidas até nós por uma
cadeia de interpretações”. (RICOEUR, 1997 apud. DELGADO, 2006, p.17). É em vista disso que esta também se
confunde com a noção de “tradição oral” definida por Vansina (2010, p.158) como "um testemunho transmitido de
uma geração para a outra" que se utiliza especialmente do "verbalismo" como maneira e forma de expressão e
transmissão da cultura.
109
que provocou um “choque cultural” (a sensação de medo e terror vivida por nosso personagem
diante daquela figura “diabólica” imaginada), já que o sentido que aquele símbolo (o
automóvel) devia comunicar, não foi apreendido (decifrado) em seu significado “original” por
Antonino.
É em vista desse processo que Orlandi (2012) argumenta que “o imaginário faz
necessariamente parte do funcionamento da linguagem”270
, já que este interfere no seu processo
de significação. “Ele é eficaz. Ele não brota do nada”271
, enfatiza a autora, pois “assenta-se no
modo como as relações sociais se inscrevem na história e são regidas [...] [condicionando] os
sujeitos em suas discursividades e, explicitando o modo como os sentidos estão sendo
produzidos”.272
Elucidando melhor o pensamento da autora, são “as imagens [o imaginário] que
permitem que as palavras “colem” com as coisas”.273
Assim, concluímos que a “conversão” do automóvel na besta fera escatológica (bíblica)
só foi possível no imaginário de Antonino, por que esta se inscreveu na “tradição” de uma
formação discursiva e imagética, mediada pelos dispositivos da memória e ordenada pela
estrutura ideológica que este compartilha – a escatologia-apocalíptica popular camponesa de
base católica – amparada num contexto sócio histórico propício – a expansão territorial da
modernidade ou do modo de produção capitalista que conduziu para o mundo rural novos
símbolos de cultura “ignorados” por grande parte de seus habitantes, mas que encontraram
sentido no “arsenal” simbólico de uma rede de constituição imaginária, qual seja, a do
imaginário apocalíptico popular sertanejo constituído durante séculos de experiências. Isso nos
faz pensar como Arias Neto (2010) que
[...] na vida humana há sempre o elemento da imprevisibilidade e da surpresa,
que torna difícil, se não impossível, afirmar que tal evento determinou outro
acontecimento. Essa imprevisibilidade faz com que a história seja sempre
indeterminável, múltipla, plural e dialética, com suas mudanças e
transformações, mas também com suas permanências.274
[Grifo no original].
Pensando assim, o “causo” caipira de Pompílio representa mais do que uma simples analogia ou
“porta” de acesso para se compreender o passado. Ele nos fornece dados passíveis de serem
confirmados ou negados pela história. Mas deixando um pouco de lado o nosso personagem da
“ficção”, voltemo-nos agora para os atores reais de nossa trama.
Como pudemos perceber, a modernidade enquanto expressão do modo de produção
capitalista da sociedade moderna ocidental, produziu símbolos que tiveram de ser decifrados e
270 ORLANDI, 2012, p.42.
271 Idem, ibidem.
272 Idem, ibidem.
273 Idem, ibidem, p.48.
274 ARIAS NETO, José Miguel, 2010, p.224.
110
compreendidos por outros povos e culturas na medida em que seu processo de expansão
territorial que chamamos aqui de modernização, ia sendo implementado pelas elites nos mais
diferentes lugares. Ademais, o processo de transição do antigo regime para o capitalismo
industrial vivido pelo Estado-nação moderno ocidental, “desencadeou a necessidade de
conquista de mercado mundiais, promovendo um forte trânsito de trocas culturais, em que o que
vinha dos países centrais, líderes do processo, tinha grande influência e impacto nas culturas
locais”.275
Um exemplo disso foi a invenção do artefato automóvel, “marca da chamada
Segunda Revolução Industrial e um dos símbolos mais importantes do século XX”.276
A respeito da figura emblemática do automóvel, esta parece ter marcado com maiores
ímpetos a memória e o imaginário dos habitantes dos espaços interioranos brasileiros e de modo
particular, do sertanejo nordestino, porque refletiu a opção das elites regionais pelo modelo
rodoviário de transporte como forma de integrar “os longínquos sertões nacionais” a
“civilização moderna e urbana do litoral”, passando a substituir a partir dos anos 1930 a
importância que vinha exercendo a ferrovia neste processo.277
Além disso, impulsionado pelo
crescente processo de industrialização brasileiro, o “rodoviarismo” surgia nesta época como
uma forma de incentivar a instalação da indústria automobilística no país, essencial para a
fabricação de transportes mais ágeis e endossar a estabilidade econômica nacional, já que
permitiria o escoamento mais rápido de mercadorias, sobretudo para as regiões portuárias e
zonas urbanas, tornando mais dinâmica a economia do país.278
É em vista disso, que os
primeiros investimentos em infraestrutura rodoviária como a construção de estradas de
rodagens vultuosas interligando as capitais brasileiras e a dilatação de vias urbanas de
transportes, seriam implementados ainda no início da República com o governo de Rodrigues
Alves (1902-1906), se intensificando na década de 1920 na gestão de Washington Luís (1926-
1930) e prosseguindo nos governos de Getúlio Vargas e Gaspar Dutra.279
Ainda no final da segunda década do século XX, instalava-se no país a primeira linha de
montagem da Ford que passou a funcionar inicialmente, em um exíguo armazém de cerca de
70m² alugado na rua Florêncio de Abreu, em São Paulo, com 12 operários. Assinara o decreto
autorizando a sua instalação no país o então Presidente da República do Brasil, Epitácio Pessoa
(1865-1942). O empreendimento fazia parte do plano expansionista de seu idealizador, o
americano Henry Ford (1863-1947), em estabelecer na América Latina subsidiárias de sua
275 MELO, Victor Andrade de, 2008, p. 190.
276 Idem, p.188.
277 Cf. ARRUDA, Gilmar, 2000, p.107.
278 BRASIL. MINISTÉRIO DOS TRANSPORTES, 2001.
279 Idem.
111
empresa automobilística com sede em Detroit, nos Estados Unidos (a Ford Motor Company),280
impelido pelo avanço da zona de influência norte-americana no continente, num contexto de
expansão do capitalismo internacional monopolista.
O primeiro projeto da Ford no Brasil foi a montagem do famoso modelo T (de 20 cv),
aqui apelidado carinhosamente de “Ford de Bigode” devido às duas alavancas colocadas sob o
volante (uma para acelerar e outra para regular a ignição) que posicionadas na horizontal
lembrava a figura de um bigode. Este modelo de automóvel já fabricado nos Estados Unidos
desde 1908, obteve uma boa aceitação no mercado brasileiro em decorrência das suas condições
de custo e manutenção que tornava-o mais acessível ao consumidor nacional (no início formado
em sua maioria por membros das elites ou da classe média endinheirada que mantinha alguma
relação com o projeto de modernização do país) e também por que apresentava novidades em
relação a outros veículos importados com características semelhantes.281
O sucesso do “Ford
Bigode” e a crescente demanda por uma maior produção, tornaram as primeiras instalações da
Ford insuficientes que tiveram que serem transferidas para um novo espaço, agora reprojetadas
para um prédio próprio localizado na Rua Sólon, no bairro do Bom Retiro, na então progressista
capital paulista. Nesta nova sede, além dos habituais automóveis, também tiveram início a
montagem dos primeiros tratores e caminhões.282
Em janeiro de 1925 novo aditamento granjeava a indústria automobilística nacional com a
chegada da General Motors no Brasil. Instalando-se primeiramente em um galpão arrendado na
Avenida Presidente Wilson, no bairro histórico do Ipiranga, em São Paulo, a montadora norte-
americana vinha com um capital social de 2 mil contos de réis e contava no início com uma
capacidade para montar 25 veículos por dia.283
Com o êxito de seu primeiro carro (um furgão de
entregas urbanas da marca Chevrolet) e o conseqüente sucesso de suas vendas, ainda em seu
primeiro ano de fundação no país, a empresa contabilizava 5.597 unidades vendidas, obrigando
a fábrica a aumentar sua produção diária para 40 veículos.284
Em setembro de 1927, a linha de
montagem fabricava seu veículo de nº 25.000 e em 1932 o primeiro ônibus com carroceria
inteiramente nacional.285
“Eram os primeiros passos da indústria automobilística que produzia
veículos que se espalhavam pelos quatro cantos do Brasil como símbolo da modernidade
280 ROCHA, Carlos R. H; PETRICH, Matthias. A história do automóvel no Brasil – Parte 1 – “Ford”. Ceará Autos.
Disponível em: <http://www.cearaautos.com/index.php?option=com_k2&view=item&id=169:historia-do-
automovel&Itemid=5>. Acesso em: 04 abr. 2014. 281
Idem. 282
Idem. 283
ROCHA NETO, Manuel Pereira da, 2005, p.102. 284
Idem, ibidem. 285
General Motors no Brasil – Chevrolet. Curiosidades. www.carroantigo.com. Disponível em:
<http://www.carroantigo.com/portugues/conteudo/curio_nacionais_chevrolet.htm>. Acesso em: 04 abr. 2014.
112
daquele período”286
, mas não só com este prestígio, já que também seriam estes primeiros
veículos motorizados, sobretudo o famoso “Ford Bigode” (um dos primeiros a ser
comercializados no país), que ficariam notabilizados por disseminar o medo e o pânico junto as
populações sertanejas com suas entradas e passagens “espalhafatosas” pelas pequenas vilas e
cidadezinhas interioranas.
Assim, aclamado como um demiurgo nos novos anseios de progresso das elites nacionais
preocupadas em vincular o país ao “civilizado mundo moderno”, mas também detratado como
“monstro diabólico” que difundia o terror e o receio com sua presença “sinistra” e “ruidosa”287
,
aos poucos, o automóvel invadia as ruas das cidades brasileiras – de início se concentrando nos
principais centros urbanos comerciais e industriais e capitais litorâneas mais bem servidas de
infraestrutura viária como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife –, para depois penetrar
as pequenas cidades, vilas e povoados sertanejos rompendo caminhos e estradas acidentadas e
poeirentas, muitas delas só acessíveis a animais de cargas, tropeiros, mulos e viajantes.
Como corolário do processo de integração e modernização deflagrado em escala nacional,
a “corrida” do progresso “sob quatro rodas” rumo aos sertões deixou marcas profundas no
imaginário e na memória de seus moradores (como as que deram fundamento a esta pesquisa),
que mesmo depois de décadas de experiências, seus ecos ainda fazem ser ouvidos na tradição
oral e nas manifestações do lendário e do anedotário regional, especialmente no que tange aos
casos do Seridó potiguar e do município de Cruzeta contemplados particularmente neste estudo.
O “causo” caipira de Pompílio apreciado aqui anteriormente, é um exemplo da apropriação
criativa desta experiência histórica “cristalizada” na memória ativa de grupo, que demonstra
como ainda ao longo de diferentes temporalidades a experiência do passado que ele espelha
continuou a ser transmitida entre seus membros. Mas o lance do sertanejo Antonino e do
automóvel transformado na besta escatológica pelo artifício de seu imaginário, não teria
nenhum valor para nossa pesquisa se ele não refletisse, ainda que sob o viés da literatura, uma
realidade histórica tão “prosaica” em nosso contexto mais amplo. O que narram os vários
“eventos” que tivemos acesso parece calhar sobre esta mesma história sucedida alhures, muito
embora encenada por diferentes atores e apresentando gradações distintas. O mesmo expôs
Paulo de Brito Guerra em sua obra “Civilização da seca” quando se referiu a “uma época em
que o automóvel, raro nas capitais, transformava-se na "besta fera" quando, a muito custo,
conseguia penetrar os sertões bravios, sem estradas”.288
286 ROCHA NETO, op. cit., p.102
287 QUELUZ, Marilda Lopes Pinheiro; VILLATORE, Flávia Roberta, 2012.
288 GUERRA, Paulo de Brito, 1981, p. 45.
113
Mas à vista deste tecido geo-histórico e antropológico muito vasto e heterogêneo que são
os “sertões” brasileiros, nunca é demais lembrar que o desdobrar-se da história mantém com os
“lugares” relações muito próximas, o que nos obriga a tratar estes espaços a partir de suas
peculiaridades e diferenças sem, contudo, deixar de lado as possíveis conexões que possam ser
tecidas com outras instâncias e contextos mais amplos (o nacional e o global, por exemplo).
Isso desloca o nosso problema muito além do desvelamento de um complexo mecanismo de
apropriação simbólica do imaginário para filiá-lo a uma rede de formação ideológica mais
ampla. Com isso, queremos dizer que, embora cada caso emirja em sua particularidade, este
encontra-se vinculado a uma complexa teia de sentidos e significados de onde extrai suas
imagens, já que sendo o imaginário vivo e potente “sem se tornar obrigatoriamente
homogêneo”, possui sempre “modelagem infinita, segundo os grupos sociais, as classes de
idades, os sexos, os tempos e os lugares”.289
Tratando-se de nossa realidade, custa-nos, pois, vincular o caso do Seridó norte-rio-
grandense e do município de Cruzeta, em paticular, à complexa teia de produção do imaginário
em movimento nos sertões nordestinos, sem que com isso tenhamos que perder de vista as
particularidades que os fizeram abrolhar no cenário local da história. A esta teia regional é que
se conecta a produção do imaginário apocalíptico popular que se construiu em torno da
passagem dos primeiros automóveis pelas plagas seridoenses – os temidos “fords besta-fera” –,
quando as suas estradas eram apenas “veredas abertas, de fazenda a fazenda, de povoado a
povoado”, alargadas pelo constante trânsito dos cascos dos animais.290
A respeito destes episódios, Antônio Othon Filho (1970) anotou em suas memórias o
grande assombro que causou na Vila de Currais Novos a passagem do primeiro automóvel no
remoto ano de 1915.291
Jayme da Nóbrega Santa Rosa (1974), historiador acariense, também
registrou em sua obra a chegada do primeiro veículo motorizado em Acari no ano de 1913 (um
Big-Four da firma Sabóia Albuquerque & Cia.) comparando-o a um “mostro mecânico” que
disseminava terror pela “estrada de animais” por onde passava provocando, inclusive, um
acidente quase fatal com um dos moradores locais.292
Outros automóveis como o Ford de
bigode chegaram na localidade ainda no começo da década de 1920 quando ainda não haviam
estradas de rodagem.293
Em Caicó a chegada do primeiro automóvel deixou a população em palvorosa. Segundo
289 MUCHEMBLED, Robert, 2001, p.9.
290 GUERRA 1933 apud. GUERRA, Otto, 1983, p.14.
291 OTHON FILHO, 1971, p. 177.
292 SANTA ROSA, 1974, p.98.
293 Idem, p.99.
114
Monteiro citado por Rocha Neto,
[...] a cidade conheceu o automóvel no dia 27 de março de 1919 às 7 horas da
noite. Seu proprietário era Manuel Coriolano de Medeiros. Foi um
acontecimento que parou a cidade. Não ficou ninguém dentro de casa porque
todo mundo queria ver os dois olhos acesos do pé-duro. Os meninos se
espantaram, temendo tratar-se da besta-fera. [...] onde o carro parava era uma
loucura. Ele ficava rodeado de gente curiosa, que logo se dispersava, num
susto, quando o motorista acionava a buzina. Houve gente que nem quis mais
jantar ao ver de perto um automóvel.294
.O caso mais notável registrado pela tradição oral da região, ocorreu em São José da
Bonita (atual São José do Seridó) onde o episódio da chegada deste “signo de modernidade”
(um Ford do modelo T apelidado de “Ford 29”) terminou em confusão. Conta a tradição que
assustada com o barulho e o aspecto “infernal” do estranho “visitante”, a população se muniu
de “enxadas e picaretas” e acabaram eliminando a “horrenda criatura” por acreditarem se tratar
da besta fera profetizada por Padrinho Ciço. Caso semelhante também ocorreu em Barcelona,
interior agreste do Rio Grande do Norte, onde a passagem do primeiro automóvel pelo lugarejo
nos anos 30 provocou o pânico entre os moradores da cercania. Conta-se que os moradores
locais se assustaram tanto com a barulheira do motor e as luzes dos faróis do veículo, “que
empunhando pedaços de paus e pedras cercou o carro e pôs-se a brandir contra o que
imaginavam ser a “besta fera”. O povo só foi tranqüilizado depois que um dos passageiros teve
a feliz idéia de dizer que o carro se tratava, na verdade, de um "fogão ambulante"”.295
(Ver
imagem 17 em anexo).
No município de Cruzeta as primeiras aparições destes “símbolos do progresso” também
deixaram rastros sensíveis na memória e no imaginário popular de seus moradores. Dona
Leonete, professora aposentada de 75 anos, lembra com detalhes da história narrada pelo pai
sobre a passagem do primeiro automóvel pelo lugarejo numa época em que a cidade era apenas
um tímido povoado capeado no meio da caatinga.
O meu pai contava muito isso, que estava previsto este carro passar aqui em
Cruzeta. Que ia para a Estação (naquele tempo não era EMPARN, era Estação
Experimental do Seridó) e ficou todo mundo na expectativa desse carro. E que
quando viram disseram: “Não! Aquilo é a besta-fera”. E se juntaram na pedra,
no cacete. Tudo brabo, assombrado. Aí o motorista vendo aquilo, saiu
correndo. Quando saiu correndo, todo mundo deixou o carro e foi atrás do
motorista que era o piolho da besta-fera. [...] Ele dizia que a buzina do carro
era horrível. Ficaram tudo louco. Isso aconteceu a meio dia. Muitas das
mulheres para ver este carro, deixaram a comida queimar. Quando chegaram
em casa não tinha nada no fogo mais, tudo queimado e o povo doido na
carrera. [...] quando o carro entrou naquele beco que era de seu João Lopes e
294 MONTEIRO, 1999 apud. ROCHA NETO, 2005, p. 101.
295 Cf. O Ford besta-fera. Portal virtual Barcelona (RN – Brasil). Curiosidades. Disponível em:
<http://www.barcelona.educ.ufrn.br/curiosidades.htm >. Disponível em: 11 abr. 2014.
115
Seu Celso Clementino, o pai de dona Nazaré [...] foi que a buzina troou. [...] Aí
as mulheres saíram correndo e os homens foram enfrentar o cão.296
Mais que expressar fatos verídicos, a história narrada “do ouvir falar” por Dona Leonete
expressa o terreno de sua subjetividade sobre uma época já distante no tempo. Ela traduz em
luzes e cores as impressões de um passado projetado pela imaginação e resignificado pela
memória que são presentificadas no ato próprio do lembrar, mas que também exprimem as
representações de um tempo que lhe ficou como herança ou como memória tecido em conexão
com os imaginários sociais do grupo que participa. Isso nos faz acreditar como Sônia Maria de
Freitas que lembrar também é uma ação coletiva,
[...], pois embora o indivíduo seja o memorizador, a memória somente se
sustenta no interior de um grupo. A reconstrução do passado, portanto, irá
depender da integração do indivíduo em um grupo social que compartilha de
suas experiências. Será esse grupo que dará sustentação a suas lembranças”.297
Partindo deste ponto de vista, o caso narrado por Dona Leonete exprime mais que uma
reminiscência pessoal que ela adquiriu ouvindo das confabulações do pai nos momentos de
“prosa” entre família. São evidências históricas de experiências de grupo por ela
compartilhadas cujo drama da existência deixou vestígios em sua memória. Em sua narrativa,
estão expressos sentimentos, medos, aflições, temores e incertezas, ainda que diluídos em
alguma dose de jocosidade, sentidos por muitos cruzetenses e sertanejos que vivenciaram nos
sertões seridoenses o drama do choque cultural diante do avanço do mundo moderno. O lance
do chofer, que de agente da civilização e do progresso298
fora reduzido ao “piolho da besta fera”
no imaginário dos atores da trama, expõe a argúcia das identidades singulares em inscrever em
suas práticas específicas produtoras de sentidos, aquilo que lhes é imposto de fora como
modelo. Os muitos casos que, como o narrado por Dona Leonete, relatam o encontro do homem
sertanejo com o artefato automóvel, expressam apenas o epílogo deste drama histórico mais
amplo vivenciado pelas populações camponesas nos sertões nordestinos e resignificado pelo
seu universo ideológico religioso.
Se esta experiência do “choque” exprime no imaginário dos atores apenas uma reação
eventual diante do “desconhecido elemento moderno”, esta não parece ter sido uma condição
histórica inflexível, já que os processos de apropriação simbólica daquilo que se impõe como
296 Depoimento concedido pela Sra. Leonete Pereira de Medeiros, 75 anos, no dia 08 de dezembro de 2009.
297 FREITAS, 2006, p.42.
298 Sobre este personagem freqüentemente associado a um “forasteiro” nos sertões de antanho, assim o descreveu
Roger Bastide (1973, p.109) em passagem célebre: “o motorista, que bem merece ser celebrado pelos trovadores
rústicos, roda léguas e léguas em caminhos esburacados, em leitos de rios secos que servem de estradas, em
caminhos pedregosos sob o sol tórrido, obrigado a fazer ele mesmo todos os reparos no carro, a viver de conservas;
mas leva consigo, do litoral de onde partiu, a lei escrita, o respeito pelo Estado, as idéias novas, o interesse pela
escola, pela leitura, o progresso econômico e material”.
116
modelo não precedem a própria experiência no tempo, que tanto pode ser de conformismo e
resistência como lembra Chauí (1987), como de subversão e sutileza como cita Chartier (1995),
mas nunca de submissão e reprodução totalmente. Em vista disso, é preferível entender esta
circunstância da história para além do “choque” ou do “encontro” imediato, supondo mais
adequado percebê-la em sua condição de processo. Isso significa, aqui, situá-la na extensão de
um tempo mais longo que nos imbui a pensar como Roger Chartier que
compreender “cultura popular” significa, então, situar neste espaço de
enfrentamentos as relações que unem dois conjuntos de dispositivos: de
um lado, os mecanismos da dominação simbólica, cujo objetivo é tornar
aceitáveis, pelos próprios dominados, as representações e os modos de
consumo que, precisamente, qualificam (ou antes, desqualificam) sua
cultura como inferior e ilegítima, e, de outro lado, as lógicas específicas
em funcionamento nos usos e nos modos de apropriação do que é
imposto.299
É neste espaço de tensão que o autor chama de “recepção” ou “apropriação” que emergem as
formas denominadas “populares” da cultura, estas podendo “ser pensadas como táticas
produtoras de sentido, embora de um sentido possivelmente estranho àquele visado pelos
produtores”.300
Entender, portanto, a produção do imaginário apocalíptico construído acerca do
automóvel e de outros símbolos de modernidade nos sertões seridoenses, é inscrevê-la numa
prática popular de apropriação simbólica de grupo, já que “a vontade de inculcação de modelos
culturais [por forças externas] nunca anula o espaço próprio da sua recepção, do seu uso e da
sua interpretação”301
pelas identidades singulares que tanto podem recebê-los, como manipulá-
los e interpretá-los de diferentes maneiras. Isso nos obriga a caracterizar a cultura popular, “não
[na condição de] conjuntos culturais dados como “populares” em si, mas [em posição de] [...]
modalidades diferenciadas pelas quais eles são apropriados”.302
Na fala de dona Ambrosina de Zezão, agricultora aposentada de 75 anos e moradora no
Sítio Fechado, município de Cruzeta, estão impressos os sentimentos de medo e apreensão que
tangenciaram seus primeiros contatos com o mais novo “inquilino” desconhecido do “pedaço”,
o automóvel. Também o seu relato deixa patentes as impressões de muitos cruzetenses que
compartilharam no passado de sentimentos semelhantes. Os poucos termos que descrevem suas
experiências com este “estranho cominador” que começa a rondar a localidade, denunciam o
universo simbólico pelo qual foi apropriado e patenteiam as práticas específicas nas quais
299 CHARTIER, 1995, p. 184-185.
300 Idem, p. 185.
301Idem, ibidem, p. 186.
302 Idem, ibidem, p. 184.
117
foram inscritas, situando-as em uma época ainda não tão distante no tempo e indo além do
“choque” eventual.
Quando apareceu o carro até eu tive medo. A gente tinha medo de quando
apareceu por que ninguém conhecia. Todo mundo só andava a cavalo. Neste
tempo nem bicicleta tinha. Não tinha nada. A gente só andava de animal.
Quando começou aparecer os carros, pensava que já era o fim do mundo. Aí
foi quando que por aqui começou aparecer um Sinhô num Misto. Todo mundo
ficou assombrado. Era o único carro que tinha. Carregava gente pra todo canto.
Aí o povo quando viu esse carro ninguém quis andar com medo [...] mais aí
foram se acostumando, foram se acostumando [...].303
O novo “inquilino” atemorizante do lugar que nos fala dona Ambrosina em seu relato,
trata-se da famosa “Mogiana” (caminhão “misto”) introduzido na localidade pelo Sr. Luiz de
França Dantas (o Seu Capucho), comerciante local, já nos anos 1950. Outros veículos como o
caminhão de seu Benedito Vale, também comerciante, o “misto” de Seu Júlio Umbelino de
Araújo, marchante local e a “Rural” de Seu Neco Dantas, ainda apareceram neste período.304
(Ver imagem 18 em anexo).
O “misto”, como o próprio nome já subentende, era o termo popular empregado para
designar o caminhão Chevrolet adaptado para o transporte de pessoas e cargas, composto por
duas “boleias” ou cabines de madeira onde se transportava o passageiro e uma carroceria em
que se colocava a bagagem.305
Veículo muito utilizado pelos feirantes e sitiantes locais na
condução de gêneros e víveres para serem comerciados em dias de feira nas cidades da região
ou dos Estados vizinhos, a sua função por longo tempo como o único condutor de passageiros
das áreas interioranas do Nordeste lhe passaria à memória de muitos sertanejos como o
“ônibus” da zona rural.306
Suas aparições pelos sertões seridoenses se acenam em uma época
em que “já não afloram pelas estradas com a mesma insistência os vestígios macabros que
denunciavam a passagem das [velhas] caravanas [de tropeiros]”.307
Em substitutivo ao tangerino passo dos comboios, surge um novo elemento na paisagem
rural em mutação ainda mais veloz, ameaçador e “diabólico” que os primeiros veículos
automotores: o caminhão. “Para ele fizeram-se extensões de admiráveis panoramas, rasgaram-
se planos” onde se desenham “como um espinhaço vertiginoso” de “quilômetros de terra
303 Depoimento concedido pela Sra. Ambrosina Maria, 75 anos, no dia 20 de Agosto de 2012.
304 Informações concedidas pelo Sr. Júlio Umbelino Filho, 59 anos, no dia 16 de maio de 2014.
305 Cf. ISSLER, Bernardo. O Misto: Pau-de-arara na Região Nordeste do Brasil. Tipos e aspectos do Brasil –
coletânea da Revista Brasileira de Geografia. Disponível em: <http://www.consciencia.org/o-misto-pau-de-
arara-na-regiao-nordeste-do-brasil>. Acesso em: 15 abr. 2014. 306
Idem. 307
LEITE, Francisco Barboza. O Pau-de-arara: transporte e correntes de migrantes nordestinos. Tipos e aspectos
do Brasil – coletânea da Revista Brasileira de Geografia, IBGE – Conselho Nacional de Geografia, 8 ed., Rio
de Janeiro, 1966. Disponível em: <http://www.consciencia.org/o-pau-de-arara-transporte-e-correntes-de-
migrantes-nordestinos>. Acesso em: 15 abr. 2014.
118
arrebatada às selvas”,308
as estradas de rodagem que conectam umbilicalmente sertões e litorais,
planícies e tabuleiros, idéias e informações, aproximando costumes, povos e regiões e
estreitando os laços comerciais entre Estados e municípios.309
Estes engenhos “de quatro rodas”
conduzidos aos sertões, eram o corolário do avanço da indústria automobilística nacional que
deixava para trás suas modestas origens para transformar-se em uma das maiores do mundo nos
meados do século XX.310
A respeito da chegada dos primeiros veículos automotores em Cruzeta, também lembrava
Manuelzinho Dantas, agricultor octogenário e morador no Sítio Cruzeta Velha, rememorando
uma velha profecia que já ouvira falar quando criança e que “o povo mais antigo” atribuía ao
santo do Juazeiro:
Pade Ciço dizia que nestes tempos o povo ia ver a besta fera nas portas
carregando o povo. O povo ficava tudo assombrado falando: “Ave Maria
a Besta fera!” E quando chegava nas casas da gente – o povo tinha a
ilusão com a Besta fera, achava que era um bicho que vinha para
carregar o povo – aí depois chegou os carros. O carro carrega gente pra
todo canto, tudo no mundo, tudo. Aí eu digo muito ao povo que a besta
fera que pade Ciço falava eram os carros, por que os carros é um troço,
uma coisa que você movimenta pra todo canto, vai pra todo canto nele,
anda nele, passeia, faz tudo, mas quando dá fé, quando vai um bocado
de gente ele dá uma virada, mata um rebanho de gente, mata um bocado
de gente. A besta fera é isso, por que quando dá uma desgraça mata
tudo.311
Assim como no episódio narrado por dona Leonete, o relato de dona Ambrosina e do velho
camponês da Cruzeta Velha, expressam as experiências dos membros de um grupo que
vivenciaram em outras épocas o drama do “choque cultural” com os “novos símbolos do
progresso”, muitos deles levados aos sertões seridoenses pelo processo de modernização
implementado pelas elites locais. Foram eles lavradores, roceiros, homens do campo, sobretudo,
que não deixaram (ou não puderam deixar) outros registros que não aqueles remanescentes na
tradição oral do grupo.
Mais que exprimir o drama cultural do “choque” experimentado por estes sujeitos diante
da expansão da modernidade, o episódio narrado por dona Leonete e os relatos de dona
Ambrosina e de seu Manuelzinho Dantas também inscrevem suas experiências nas práticas
específicas populares, denunciando as maneiras próprias de como seus atores se apropriaram do
“signo moderno”, o automóvel, a partir do plano ideológico reentrante no grupo, ou seja,
308 Idem.
309 Idem, ibidem.
310 BRASIL. MINISTÉRIO DOS TRANSPORTES, 2001.
311 Depoimento concedido pelo Sr. Manuel Anastácio Dantas, 82 anos, no dia 09 de maio de 2013.
119
daquele que subscreve seus imaginários no universo simbólico da escatologia apocalíptica
sertaneja. Recordando uma profecia do “Padim Ciço” que ouvira dos pais quando ainda era
moradora no Sítio Pau Lagoa em Cruzeta, assim expressou dona Maria do Carmo, ex-
trabalhadora de enxada de 57 anos, a respeito do aparecimento do automóvel: “Ele falava que ia
chegar um cavalo com dois ôio de fogo. Aí o povo ficaram assombrado quê não sabia o que era.
Aí quando não, chegou o carro. Era o cavalo com os dois ôio de fogo”.312
Resignificado pelas
profecias apocalípticas que percorriam os sertões seridoenses, o automóvel se transformava sob
a aquiescência da “voz” do “Santo Padrinho”, na “besta apocalíptica da terra”.
Mas a “marcha” do progresso e da modernidade perpretada pelas elites, também levou
consigo novas maneiras de como tratar e viver a vida nas cidades, vilas e povoados seridonses,
impondo às populações locais medidas sanitaristas de como combater as doenças virulentas tão
comuns por aquelas plagas.Uma postura adotada neste sentido foram as “campanhas sanitárias”
de vacinação e profilaxia que ganharam espaço na região ainda na primeira metade do século
XX, algumas delas assumindo o caráter de ações emergenciais para enfrentar surtos epidêmicos
esporádicos sem a preocupação de montagem de estruturas sistemáticas mais perenes.313
No lastro da nação que se republicanizava, os cuidados com a saúde do corpo e da família
se tornaram alvo de práticas e discursos médico-sanitaristas que se intensificaram no Brasil a
partir da década de 1920, passando a fazer parte das agendas políticas das autoridades
governistas.314
Estas condutas encontravam respaldo no ideário republicano de formação de
uma nação “forte” e “sadia” no interior do qual emergia o discurso da construção da família e
do indivíduo saudável e últil.315
Corroborado por este ganhava vigor a predicação da defeza e
proteção dos corpos que via na prática de “higienizar” os indivíduos, uma atitude “crucial para
defender a “civilização” e construir uma nação saudável” que se pretendia moderna.316
Reforçada com a emergência das posturas modernizantes que tomavam formas nas mais
diferentes regiões do país, a “imunização” enquanto “cultura” da vacina e da vacinação, passou
a ser adotada como tecnologia de “incorporação” e “integração” de territórios e populações ao
Estado nacional, sendo raciocinada como uma forma de promover a cidadania biomédica entre
poder central e elites locais e obter a regularização da interdependência sanitária, isto é, dos
efeitos externos negativos das doenças de uns sobre terceiros.317
Desse modo, fazendo parte das
políticas sanitaristas e de saúde implementadas pelas ações do governo nas várias localidades
312 Depoimento concedido pela Sra. Maria do Carmo Oliveira, 57 anos, no dia 22/08/2012.
313 Cf. ANDRADE, Juciene Batista Félix, 2007, p. 122-130.
314 OLIVEIRA, Iranilson Buriti de, 2003, p. 14.
315 Idem.
316 Idem, ibidem, p.15.
317 HOCHMAN, Gilberto, 1993; 2011.
120
do território nacional, a vacinação em massa tornava-se numa forma de promover o
“saneamento nos sertões” pensado nesta conjuntura “como o caminho para recuperar e civilizar
o país”.318
Esta postura interventora era axiomática de um tempo em que as doenças e os
problemas sanitários locais deixavam de ser entendidos apenas como um “mal” privado ou
isolado, para fazer parte de ações concretas da agenda pública das elites no Brasil.
Certamente contibuiu para isso o avanço das ciências médicas incluindo os estudos de
microbiologia e as modernas técnicas terapêuticas adotadas no combate as doenças que
revolucionaram o mundo científico no decurso do século XIX. Estes progressos alcançados pela
medicina experimental tornaram possíveis a produção de imunizantes e a fabricação de vacinas
em escala industrial ainda no final do referido século que seriam utilizadas no Brasil pelos
serviços de profilaxia rural no intento de se conseguir o “seneamento nos sertões”. Algumas
doenças como as chamadas endemias rurais (a malária, a ancilostomose e a doença de Chagas)
começaram a ser alvo das políticas de saúde brasileiras na segunda década do século XX,
especialmente a partir da criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) em
1919, pelo então presidente da República, Epitácio Pessoa. Com a tônica de erradicar as
doenças nos espaços interioranos, foram instalados “postos sanitários em áreas não urbanas e
nas periferias das principais cidades, muitas vezes significando o primeiro contato efetivo da
população dessas áreas com o poder público”.319
As mazelas sociais e a precariedade das condições sanitárias experimentadas pelas
populações sertanejas do Nordeste que se agravavam ainda mais com a irrupção das secas
periódicas, fizeram com que a região se tornasse no principal alvo das campanhas sanitaristas
do governo.320
Como parte desta investida mais ampla, a região do Seridó norte-rio-grandense
não escapou à causa.
Embora se observe uma preocupação com os “problemas sanitários do Seridó” desde o
governo de José Augusto Bezerra (1924-1927) como constatou Batista de Andrade (2007), as
primeiras campanhas de vacinação implemetadas na região, seriam acionadas com o intuito de
controlar surtos epidêmicos ocasionais, sobretudo aqueles associados aos flagelos das secas,
que nem sempre estariam acompanhadas de um projeto eficaz de conscientização das
populações.321
Estas posturas esporádicas abriam espaços para o surgimento de interpretações e
deturpações as mais diversas por parte das populações assistidas que por vezes encontravam
318 Idem.
319 HOCHMAN, Gilberto, 1993, p. 15.
320 ANDRADE, op. cit., p. 122.
321 Cf. idem, ibidem, p. 122-130.
121
sentido na lógica de produção dos imaginários locais. Além disso, a adesão às posturas
sanitaristas do governo, nem sempre significava a afirmação da defesa de seus valores e
propósitos, não anulando ocasiões de dúvidas ou desconfiança nos sujeitos. Este
comportamento que Chartier denomina de “atenção oblíqua”, isto é, a capacidade dos sujeitos
de se manter à “distância” dos modelos impostos ou de se apropriar deles inscrevendo-lhes sua
própria lógica, nos ajuda a entender o simbolismo apocalíptico que se formou em volta das
primeiras vacinas contra a varíola322
que foram surgindo em Cruzeta ainda na primeira metade
do século XX. A vacina antivariólica tinha o efeito de deixar como distintivo perene um estigma
sobre a epiderme do paciente a respeito da qual o sertanejo local associava-a ao “carimbo”
(marca) da besta fera.
No tocante as primeiras medidas profiláticas do governo contra a varíola em solo
cruzetense, Alexandrina Campos, professora aposentada de 73 anos, lembra o que diziam “os
mais antigos” da família a respeito das vacinas antivariólicas no tempo de sua infância quando
ainda era moradora na zona rural em Cruzeta e tece uma ligação da prática sanitarista de
vacinação com o simbolismo da “besta” em circulação na localidade e na região.
Eu era muito criança quando fui tomando conhecimento das vacinas que foram
chegando a Cruzeta. A primeira foi a vacina contra a varíola, porque naquele
tempo tava grassando a região toda, causando grandes estragos nas pessoas,
morrendo muita gente e houve esta preocupação do governo de mandar as
vacinas que chegaram até lá. E as primeiras causaram muito pânico na
população, porque naquela época tinha a história do carimbo da besta fera e
talvez as pessoas até pensassem que estavam sendo marcadas com este
carimbo, porque a vacina da varíola deixava um marco muito profundo no
braço da pessoa. Ela inchava, depois estourava aquela bolha e ficava inflamada
e quando cicatrizava ficava aquela marca bem profunda. Marcava a pessoa pra
toda a vida. Eu não era nascida ainda quando começou a aparecer, porque
provavelmente foi lá pelo começo dos anos 1930. Eu lembro bem que eu tinha
minha irmã mais velha, Julieta, ela já tinha sido vacinada [...] quando eu já
tinha uns 10 anos ou mais [...] e a gente perguntava sempre o que tinha sido e
mamãe dizia que tinha sido esta vacina contra a varíola. [...] e a gente desde
muito sedo já tinha este conhecimento desta história [...] como os mais antigos
diziam [...] de que era o carimbo da besta fera. E passou muitos anos sem
acontecer de novo. Só nos anos bem mais recentes, já, talvez, lá pra 1950 mais
ou menos, ela voltou igual à vez de quando a gente foi vacinada.323
O relato narrado pela depoente revela sua vivência pessoal no seio do grupo familiar com
o qual mantinha suas relações interpessoais na infância entre as décadas de 1930 e 40 e por
onde travou seus primeiros contatos com as crenças apocalípticas populares. A experiência
narrada integra ainda as reminiscências familiares tecidas no calor do lar campesino e
322 Também chamada popularmente de “bexiga braba” em alusão as pequenas pústulas (bolhas purulentas) que
emergiam na superfície cutânea do enfermo. 323
Depoimento concedido pela Sra. Alexandrina de Oliveira Campus no dia 21/05/2010.
122
transmitidas por uma cadeia de sentidos e interpretações pelos “mais antigos” do grupo que
denota a importância de certos indivíduos como guardiãs de uma memória a ser passada de
geração para geração, mas que não estão circunscritas apenas ao espaço e a memória doméstica.
Em seu testemunho estão ainda expressos referências tradicionais partilhadas por uma
“coletividade de imaginação” que assim como dona Ambrosina e Seu Manuelzinho,
inscreveram suas primeiras experiências com os “símbolos de modernidade” no universo
simbólico das crenças apocalípticas do sertão. São estes fragmentos de memória, antes de tudo,
“restos”, resíduos de uma “memória cristalizada” arrancada do que sobrou do vivido no calor
da tradição como nos fala o Pierre Nora. Para o historiador indiciário são, além disso, “pistas”,
sinais deixados de experiências vividas por uma coletividade de sujeitos que compartilhara no
passado de uma cultura oral, cujos rastros presentes nas declarações daqueles que vivenciaram
ou testemunharam em solo cruzetense o drama do choque cultural ante o avanço do mundo
moderno, acusam detalhes reveladores.
Tal como ocorreu com o aparecimento das vacinas antivariólicas e dos primeiros
automóveis transformados na “besta escatológica da terra”, o surgimento dos primeiros aviões
em Cruzeta também deixariam fortes impressões no imaginário popular. É também Alexandrina
Campus que relata um caso envolvendo a sua avó materna e um monomotor, avião de pequeno
porte, presenciado em sua infância nos idos de 1940 e cujos detalhes do episódio guarda ainda
bem vívidos na memória.
Num determinado dia nós estávamos em casa na Estação e minha avó chegou
correndo muito. Ela com tia Maria que era menina neste tempo. Chegou lá
correndo muito assombrada que não podia nem falar. De lá da Estação, a gente
via algum movimento desse avião, mas não sabia se ele vinha de Natal e que
por algum problema teve que pousar lá perto, justamente da casa dela. Ela
quando viu isso apavorou-se e disse que era a besta fera. Que a besta fera já
estava chegando na casa dela. Então ela correu muito e saiu gritando. Pulou a
cerca da casa dela e saiu correndo lá pra casa. Ia morrer lá em casa, pois a
besta fera já estava correndo no mundo. Quando ela chegou lá em casa foi
dizendo assim: “madrinha a besta fera acabou de passar em Cruzeta”. [...] Ela
chegou lá nesse pranto todinho, se acabando [...], pois a besta fera tinha
acabado de chegar em Cruzeta.324
O caso narrado acima descreve o drama vivido por uma antiga moradora cruzetense, hoje
já falecida, em presença da passagem pela localidade de Cruzeta deste revolucionário símbolo
do progresso técnico-científico do mundo moderno contemporâneo: o avião. Sua experiência
narrada por uma testemunha da família mais que denotar uma evidência pessoal biográfica,
denuncia a inserção da nossa personagem num processo coletivo de grupo. Contemporânea dos
impactos provocados pelas mudanças em curso em seu mundo tradicional é esse drama mais
324 Depoimento concedido pela Sra. Alexandrina de Oliveira Campus no dia 23/08/2012.
123
profundo que ela vivencia no episódio cujo lastro da história se perdeu na memória de sua
narradora circunstante.
Residindo no local desde tempos mais longínquos, Sinhá Alexandrina, como era
conhecida nossa protagonista em Cruzeta, tornou-se parteira e curandeira afamada entre seus
compatrícios. Vivendo da filantropia de seus ofícios, adquiriu lote de terra e construiu tapera
onde se estabeleceu desde os primeiros tempos do povoado próximo aos arredores do núcleo
urbano.325
Embora já nos primórdios de suas origens Cruzeta despontasse como uma povoação
florescente com cerca de 150 prédios contabilizados por Phelippe Guerra sete anos depois do
ato de sua fundação326
, antes deste período, seu centro habitacional era bastante reduzido, não
possuído mais que “apenas algumas rústicas casas e a capela de Nossa Senhora dos Remédios,
subordinada à Freguesia de Nossa Senhora da Guia do Acari” imperando na paisagem proto-
urbana.327
A vida exordial do povoado dependia estritamente da dinâmica que pulsava do
campo, amalgamando-se com a paisagem rural do entorno, salvo apenas nos dias de feira
semanal ou dos santos e festejos principais celebrados na capela local que faziam lembrar ao
aldeão o significado primordial do vilarejo, já que os moradores dispersos pelas cercanias se
reuniam no povoado para festejar, socializar-se e “fazer a feira”.328
As relações interpessoais
tecidas entre os habitantes locais estreitavam ainda mais as afinidades entre o campo e o
“embrião de cidade”, pois eram regidas pela solidariedade grupal pautada pela necessidade de
ajuda mútua, onde os vínculos de parentesco e vizinhança eram determinantes.
As três décadas que se seguiriam a fundação do povoado, sinalizaram uma nova dinâmica
sociocultural para a localidade, sobretudo após a instalação da Estação Experimental do Seridó
nas suas proximidades. Agregando um número maior de residências e moradores, a vida
sociocultural do povoado alçado a categoria de Vila em agosto de 1937, gravitaria em torno da
325 Uma versão paralela a essa é encampada pela Sra. Alexandrina de Oliveira Campos (neta de nossa personagem)
que julga estar na origem desta circunstância o fato de sua avó ter recebido como retratação do governo uma
pequena fração das terras que pertenciam à antiga família dos “Manuínos” da qual descendia, por ocasião da
desapropriação daquelas pelo governo para dar espaço à construção do Açude Público Cruzeta. Segundo a
informante como aquelas eram “terras de negros”, não houve preocupação do governo em indenizar seus antigos
posseiros, o que foi feita apenas por uma ação de reparação por parte do poder público. (Informação concedida por
Alexandrina de Oliveira Campos no dia 16 de maio de 2014). 326
Cf. GUERRA, Phelippe. Ainda o Nordeste. Natal: Typografia d’“A República”, 1927, p.17. 327
GUERRA FILHO, Adauto, 2001, p.128. Tornou-se de praxe admitir sem maiores controvérsias tanto pela
tradição oral como pela literatura que versa sobre a história e memória deste espaço que são dois os marcos físicos
e simbólicos que se recorrem para fazer referência ao período de fundação do povoado Cruzeta, a saber: a
construção do Açude Público do mesmo nome entre os anos de 1920 e 29 e o erguimento da capela em honra à
Virgem dos Remédios, conclamada padroeira do lugarejo, no lugar onde de acordo com Goes (1971, p.56) teria
sido celebrada sob um altar improvisado a 24 de outubro de 1920 a primeira missa pelo padre João Clemente de
Morais passando à história como o dia oficial de fundação. 328
SANTOS, Luciano Aciolli R. dos. Historicizando a cidade de Cruzeta e suas práticas festivas. 2012.
Disponível em: <http://patrimonioculturalcruzeta.blogspot.com.br/>. Acesso em 24 abr. 2014.
124
Capela com suas atividades sociorreligiosas e do “Palanque” erguido num ponto central do
vilarejo para a realização das festas sociais e recreações de cunho mais “profanas”. O
“palanque” era o local dos festejos e das solenidades oficiais onde os moradores se reuniam por
ocasiões dos bailes, das noites de festas juninas, das apresentações de reisados vindos de outras
localidades e das festividades da Páscoa onde se malhava publicamente o Judas às algazarras da
meninada e à meditação circunspecta dos adultos.329
A vida socioreligiosa dos moradores da Vila estava organizada em torno das agremiações
e irmandades leigas que eram incumbidas de organizar as rezas de terços, novenários e
capelinhas nas residências locais, como também de caminhadas de orações (cruzadas) pelo
entorno da capela, bem como ainda de outras atividades paralitúrgicas. A volubilidade da
presença de um agente eclesiástico institucional responsável pelos serviços regulares da capela,
relegava aos cuidados leigos suas atividades devocionais que tinham também que assumir as
tarefas de conservação e zelo do templo. No mais, a comunidade local contava apenas com
visitas regulares de um cura quando este afluía da paróquia-sede localizada na cidade de Acari
para realizar a desobriga ou as visitas pastorais no vilarejo.330
Havia épocas em que ocorriam “missões” religiosas na região e a vila recebia clérigos e
religiosos provenientes de várias congregações católicas. Eram temporadas em que os
moradores da Vila mais engajados com os serviços litúrgicos da capela, tinham que se dedicar a
angariar recursos para prover os custos com a estadia e condução dos “santos homens” e
destinar ajuda financeira às instituições religiosas de suas procedências. Por este motivo, as
missões também implicavam em momentos de grande movimentação financeira na Vila onde se
colocava a venda nas barracas armadas ao redor da igreja instrumentos de devoções populares,
livrinhos de orações e cânticos e outras “lembranças das Santas Missões”.
Mas existia uma época do ano em que o vilarejo recebia um aparato todo especial e os
moradores locais engalanavam suas residências da “rua” e preparavam as melhores iguarias da
terra para receber os parentes, amigos e visitantes que afluíam do campo, das redondezas e de
outras localidades da região. Assim era a atmosfera festiva vivenciada na ocasião da Festa de
Nossa Senhora dos Remédios que ocorria no mês de Outubro de cada ano em homenagem à
santa homônima que é padroeira do lugar.331
Participando da tradição do grupo através da vivência do cotidiano, e ligada aquela por
uma complexa rede simbólica de afinidade e pertencimento, era nesta tessitura sociocultural do
329 Cf. CAMPOS; MORAIS op. cit., p.31.
330 Esta situação só mudaria com a criação da Paróquia de Nossa Senhora dos Remédios em 13 de novembro de
1944, quando seu primeiro vigário, padre Ambrósio da Silva, passaria a fixar residência na comunidade. 331
CAMPOS; MORAIS op. cit., p.22-26.
125
lugar que estava situada a velha curandeira Alexandrina no contexto do encontro com o
“invasor” adventício, o avião, transformado em seu imaginário na “besta apocalíptica do ar”.
Condicionada pela visão de mundo da cultura que compartilhava sua experiência não se
esgotava em si mesma, nem era irredutível a ela, mas transmitida aos demais do grupo pelos
mecanismos da oralidade, refletia a situação de muitos sujeitos diante deste “outro” imaginado
(o avião) que assim como ela também se encontrava conectado à mesma teia imaginária pelo
fio comum da memória. Referindo-se a uma antiga profecia atribuída ao Padrinho Ciço sobre o
final dos tempos, notava uma velha beata cruzetense de 78 anos e romeira do santo do Juazeiro:
Ele falava muitas coisas em parábola. Ele dizia: meus romeirinhos, vai chegar
tempo que vai ter um besouro no ar, zoando no ar, viajando pelo ar: o avião.
[...] E dizia também que ia chegar o tempo que o galo ia cantar e se escutava
no mundo inteiro e que também as paredes iam falar: era o rádio.332
Apropriados e resignificados pela profecia apocalíptica popular, os símbolos de modernidade
encontravam sentido no rico arsenal simbólico de seu imaginário, orientando ações individuais
e condicionando comportamentos de grupo. Aí “cada qual é depositário de partes deste saber e
das leis que o regem, possibilitando compreender o que acontece ao indivíduo, isto é, partilha
com os outros, ou com outros pelo menos, de um sentido comum cuja denominação define, de
forma precisa, um caráter de unidade”.333
Sobre o aparecimento dos primeiros aviões em
Cruzeta lembrava dona Ambrosina: “quando começou a aparecer o avião todo mundo dizia:
“pronto, o mundo agora vai se acabar!”. Interpretado como sinal apocalíptico, a imagem do
avião encontrava sentido nas representações proféticas do fim do mundo.
Houve uma festa do algodão em Cruzeta que vieram muitos aviões. Dr. Sílvio
Bezerra trouxe de vários lugares. Mas neste dia desmaiou gente, acontece que
quase morreu gente de medo. Lembro que dona Tetê de Basto quase morre e
foi até pro hospital em Acari passando mal. Pouca gente sabia o que era o
avião. Eu era pequena neste tempo e papai me levou pra ver estes aviões no
campo de aviação durante a festa. [...] Agente foi num jumento e quando
chegamos lá perto que vi o avião, agarrei o pescoço dele e comecei a gritar e
papai se aproximando do avião e o avião bem devagazinho andando... E eu
agarrada com ele gritando... Aí o piloto viu que papai queria olhar o avião mais
de perto e disse: “neném não chore não que lhe dou um presente. Te dou um
guaraná”. E eu atrás do guaraná, mas com medo do avião. E ele dizia: “olhe
aqui!” Aí eu sei que eu soluçando e engolindo o soluço, agarrei a garrafa de
guaraná e papai entrou no avião comigo e eu em tempo de morrer de medo. A
garrafinha era bem pequenininha, bem bonitinha e eu agarrada com o guaraná.
Depois papai saiu de dentro do avião e eu chorando, gritava: “me tire daqui,
me tire daqui”. Pra mim aquilo era um bicho, um besouro. Sei lá o que
pensava.334
332 Depoimento concedido pela Sra. Antônia Maria da Conceição (Dona Antônia), 78 anos, no dia 23 de dezembro
de 2009. 333
MUCHEMBLED, Robert, 2001, p.9. 334
Depoimento concedido pela Sra. Maria Letícia dos Santos no dia 24/08/2012.
126
A fala transcrita acima pertence às reminiscências da infância de dona Maria Letícia,
professora aposentada de 63 anos e moradora no município de Cruzeta. Nascida e educada na
comunidade rural da Cruzeta Velha é a partir da posição de membro deste grupo que ela tece
suas memórias. A cena por ela narrada descreve sua primeira experiência com este símbolo
moderno, o avião, por ocasião da Festa do Algodão realizada na Estação Experimental de
Cruzeta como evento de encerramento do 2º Congresso Nacional Algodoeiro ocorrido em
setembro de 1954. Para esta ocasião é que fora inaugurado neste mesmo período o Campo de
Pouso da referida repartição que pode ser utilizado pelos congressistas.335
(Ver imagem 19 em
anexo).
Mais que expressar o universo maravilhoso das crendices pueris, o episódio narrado por
Dona Maria Letícia revela como sua relação com este símbolo de modernidade foi afetada pelas
formações imaginárias tecidas e partilhadas pela tradição de grupo que não estão circunscritas
ao momento do real vivido, mas se vinculam ao próprio tempo do narrar o acontecido. Isso nos
faz compreender a memória não como algo pronto e estático no tempo, mas como um processo
de (re)construção e (re)invenção constante do vivido que se (re)atualiza a medida que também
se renovam as experiências individuais e coletivas.
Neste processo de recriação contínuo dos acontecimentos passados, estão entrelaçadas
múltiplas temporalidades que se projetam sobre as formas de como os sujeitos ouviram em
outras épocas o mesmo fato rememorado; como estes foram (re)construídos em sua memória a
partir de estímulos diversos, fazendo com que a memória seja sempre um processo em
permanente mutação.
A associação do avião com o “besouro” ou a “besta do ar” das profecias populares fazia
parte de um sistema imaginário transmitido entre os círculos das relações intergeracionais que
pôde ser evocado pela depoente para significar o fato por ela vivido à medida que também
abrolhavam em sua memória os sentidos e experiências ouvidos e compartilhados em outras
épocas com outros membros do grupo e trazidos à tona no ato próprio do lembrar.
Estas imagens eram parte de um conjunto mais amplo de significados que encontrava nas
religiosidades populares uma referência maior e eficaz. Se a história lhes conferia motivos para
sua insurgência, eram, portanto, na ideologia dos movimentos religiosos populares que elas
auferiam estatuto de legitimidade.
Concomitante ao processo de modernização regional, dois movimentos religiosos de
participação popular alcançavam importância entre as populações locais e contribuíam para que
335GOES, 1971, p. 59.
127
este imaginário encontrasse ressonância entre as massas de sertanejos rurais: as “Santas
Missões Populares” de frei Damião de Bozzano (1898-1997) e o movimento dos romeiros do
Padre Cícero do Juazeiro.
3.3. “BOM TEMPO NINGUÉM MAIS VER”: A “AURA” PROFÉTICA DAS SANTAS
MISSÕES DE FREI DAMIÃO E DO MOVIMENTO DOS ROMEIROS DO PADRE CÍCERO
Em maio de 1964 quando se anunciou que o “velho e famoso missionário do povo” se
encontrava mais uma vez pelas plagas seridoenses arrastando multidões, o jornal “A Folha” de
Caicó iniciava seu comentário inquirindo a respeito do “feitiço” de Frei Damião: “que magia é
essa? Que feitiço é esse?” E passava a completar a glosa descrevendo a natureza do fenômeno:
As estradas se enchem de peregrinos... Caminhões e mais caminhões de
gente...Casamentos de amancebados... Penitentes de 20 e 30 anos sem
confissão...Todo mundo quer ver o frade...Filas e filas para tocar em sua
batina...Muitos só sossegam quando são benzidos por Ele...[...] Verdadeiras
procissões se encaminham para os Confessionários...A mesa da Eucaristia fica
cheia...A fala do penitente e gasto missionário arrasta multidões... Até os
duros de coração, os que não tem fé não resistem à atração do
Capuchinho gorducho, feio e sem jeito, humilde e calado [...]336
Devassando alguns álbuns de família as mesmas imagens parecem vir à tona quando
lançamos o olhar para velhas fotografias que retratam as missões de frei Damião em Cruzeta:
multidões de devotos se aglomeram em torno do frade; filas intermináveis serpeiam pelas ruas
da cidade seguindo os passos adiantados do capuchinho; centenas e milhares de fiéis se
amontoam no largo da matriz ao aceno do missionário, e daí nos surge um inevitável
questionamento: o que fazia reunir no despenhar do século XX com tamanha piedade e euforia
milhares de almas sertanejas em volta de um frade andarilho feio, gorducho e avelhantado? Esta
parece ter sido a grande questão formulada pelo jornal de alcance regional a pretexto de realçar
sua opinião sobre o suposto “feitiço” deste “feiticeiro do céu”.
Para nós, a resposta podia vir de tantos quantos foram seus curiosos e seguidores. Mas
tanto as Santas Missões de frei Damião como o movimento romeiro do Padre Cícero, guardam
com o tempo em que dimanam motivos de serem e existirem que são engendrados e
compartilhados por seus atores mantendo com a história uma relação de sentido. Ao se
inscreverem no tempo, estas experiências não estavam assentadas sob uma realidade a parte ou
distante de seus sujeitos, mas produto e produtora de sentidos refletiam a dinâmica histórica
espelhada no tempo presente.
336 O feitiço de frei Damião. A Fôlha, Caicó/RN, 23 mai. 1964. p. 06.
128
Talvez sustivesse aí a força irresistível que exerceu sobre tantos cruzetenses no deambular
do século XX a “voz” do “santo padrinho” transportada por seus romeiros à maneira de
profecia. Ela tinha o efeito de representar com propriedade o conjunto de mudanças que já
podiam ser vislumbradas ante os olhos do crédulo atestando a eficácia da virtude visionária do
padrinho. Este efeito não era apenas tributário a arrogada aura de santidade que emanava do
fenômeno padre Cícero, mas também, e mais ainda porque, atuava em conformidade com o
patrimônio simbólico de seus interlocutores. A forma como este fora manejado pelos
movimentos religiosos populares, talvez explique em parte a forte influência que exerceu a
figura de Frei Damião de Bozzano e o prestígio dos romeiros do padre Cícero em Cruzeta.
O apostolado do frade capuchinho italiano frei Damião337
nos sertões nordestinos foi
caracterizado pela prática da “santa missão popular” e teve sua inserção junto às populações
sertanejas do Nordeste a partir da década de 1930 assumindo uma maior projeção no interregno
de 1940 a 1980.338
Conduzindo “uma ação missionária pautada no cuidado com a salvação das
almas, a luta contra o pecado mundano, falando da relação entre Terra e Além, Céu e
Inferno”339
, o frade capuchinho se transforma ao lado da legendária figura do Padre Cícero do
Juazeiro na maior força moral dos sertões.
Com uma mensagem enérgica que buscava denunciar o pecado e suas mazelas e trazer a
vaga de católicos “desviados" para o ceio da “santa religião” através da ameaça com as torturas
do inferno, a expiação no purgatório, a impossibilidade de escapar do Juízo Final e dos pavores
do Apocalipse, o afamado “missionário dos sertões” arrastava multidões inteiras e sua presença
nas vilas, povoados e cidades sertanejas do Nordeste, era um motivo de alvoroço entre as
populações locais que afluíam do campo, dos sítios e fazendas para ouvir estarrecida a “voz
temível do frade, nas pregações que abalam o sertão”.340
“De estatura baixa [...], sandálias franciscanas, terço em mãos, crucifixo na cintura”341
e
“envergando a estamenha parda dos filhos de São Francisco”342
, Frei Damião andava
percorrendo “povoados, pequenas e médias cidades do sertão nordestino prometendo o fogo do
337 Pio Giannotti, nome de batismo de Frei Damião, nasceu em 5 de novembro de 1898 na vila, hoje cidade italiana
de Bozzano, filho dos camponeses Félix e Maria Giannotti. Ingressou na Ordem dos Capuchinhos em 1914 aos 16
anos e ordenou-se sacerdote em agosto de 1923, aos 25 anos. Em 1931, com 33 anos, é enviado em missão ao
Brasil junto com mais dois religiosos, instalando-se no Convento da Penha, em Pernambuco. Era o início de um
longo apostolado dedicado às plagas nordestinas que duraria mais de 6 décadas, quando já muito idoso e mal
podendo andar faleceria aos 98 anos vítima e uma parada cardiorrespiratória deixando arrancando comoção e
deixando saudades entre milhares de admiradores e devotos espalhados pelo Nordeste. 338
SOUZA, Silvana Vieira de, 2010, p. 168 339
Idem. 340
SANTOS, Luiz Cristovão dos. 1953, p. 21. 341
CRUZ, João Everton da, 2010, p. 12. 342
Op. cit., p.8.
129
Inferno aos pecadores e o Paraíso aos justos”.343
Em 1937 se constata a realização de sua
primeira missão em Cruzeta. Daí em diante voltaria mais vezes em 1949, em 1977 e em 1986 como
apontam alguns registros paroquiais.
A chegada do frade capuchinho na localidade era anunciada pelo serviço de auto-falante
paroquial (difusora) e recebida com tom de festividade pelos fregueses que viam na ocasião de
sua visita missionária uma oportunidade de vivenciar mais intensamente a fé e a religião que
receberam dos pais. Seu trabalho apostólico geralmente durava de quatro a sete dias e consistia
na realização de pregações, batismos, confissões, casamentos, crismas, aconselhamentos,
celebrações de missas e caminhadas com cânticos e orações pelas principais ruas da comuna.344
Como constatou João Everton da Cruz, a estrutura das missões pregadas por Frei Damião,
acompanhou as antigas tradições dos velhos missionários de antanho que perambularam os
sertões do Nordeste, especialmente dos capuchinhos.345
No tocante ao método de pregar
“missão”, o capuchinho tinha um modelo pronto. No geral, sua “santa missão” iniciava ainda
no escuro da madrugada, quando o frade agitando uma campainha e andando pelas ruas da
freguesia acordava o povo convidando-o para “ouvir missão”, cantando uns versos que a
multidão em procissão repetia:
Vinde pais, e vinde mães,
Vinde todos à Missão
Para cuidar, como cristãos,
De alcançar a salvação.
Pecador arrependido,
Pobrezinho pecador:
Vem, abraça-me contrito,
Sou teu Pai, teu Criador.346
A agitação na freguesia começava desde o dia anterior quando as beatas e as organizações
leigas cuidavam de providenciar os últimos preparativos para receber o “santo peregrino” na
paróquia. Também na zona rural o dia começava cedo para os que vinham “ouvir missão” e
prestigiar o “padrinho frei Damião”. Dona Maria Do Carmo que morou no sítio Pau Lagoa,
município de Cruzeta, até 1979, relata como toda família se preparava para vim assistir missão
343 CRUZ, op. cit., p.12.
344 Operando com base na doutrina do catolicismo tridentino e do Concílio Vaticano I (1869-1870), as missões de
frei Damião buscavam incentivar entre os católicos, sobretudo os mais afastados, uma maior vivência dos
sacramentos da igreja. Sua passagem pelas paróquias por onde missionava era sempre um momento de
afervoramento religioso e de um maior contato dos paroquianos à vida sacramental. Alguns números prospectos
dos registros de Tombo da Paróquia de Nossa Senhora dos Remédios em Cruzeta demonstram como a realização
de suas santas missões na localidade implicava num momento de maior recorrência dos fregueses aos sacramentos
da igreja como o aumento na ocorrência de comunhões e confissões. 345
Idem, p.40. 346
Vinde, Pais e vinde, Mães. Cânticos das Missões. In. OLIVEIRA, Gildson. 1997, p. 146.
130
de frei Damião na cidade:
A gente tudo se preparava para vim [...] Em casa a gente fazia a preparação.
Cortava a ração pro gado pra deixar os dois dias que vinha. Encostava a água.
Enchia os tanques d’água. Os currais deixava com a ração pro gado comer. A
gente se preparava em tudo.347
Com os paroquianos já reunidos, após a caminhada matinal havia missa e pregação em
frente da igreja onde o frade erguido sobre um púlpito à vista da multidão circunspecta e
vigilante pregava a “santa doutrina”. (Ver imagem 20 em anexo).
“As pregações de Frei Damião tinham um conteúdo moralizante e conservador que ia ao
encontro das concepções do povo: como explicar as calamidades, as secas, a pobreza, a fome,
como castigos de Deus”.348
Possuidor de um forte carisma religioso ele se torna no grande
conselheiro do homem sertanejo dividindo com o Padre Cícero a preferência da devoção entre
um grande número de fiéis. Num cartão de recordação encontrado em um oratório doméstico de
uma devota cruzetense adquirido como “Lembrança das Missões do Frei Damião” em Cruzeta,
os bustos de padre Cícero e do missionário italiano aparecem projetados nas ilhargas da
estampa tendo ao meio a imagem de Nossa Sra. das Dores e a igreja de São Francisco do
Canindé-Ce que atestam a aura de santidade que gozavam estes “santos homens” entre as
populações locais. (Ver imagem 21 em anexo).
Dentre os muitos conselhos que o frade costumava dirigir aos fiéis estava a reprovação à
alguns “hábitos modernos” como o uso da calça comprida e sobretudo da minissaia pelas
mulheres sobre o qual costumava aconselhar dizendo que por causa deste exagero “muitos
homens já perderam a cabeça”.349
Outros temas como o inferno, o céu, o paraíso e o juízo final,
gozavam preferência nas prédicas do capuchinho assumindo muitas vezes um teor apocalíptico.
Ao enfatizar em suas prédicas situações como a ira divina, a perdição dos homens, o juízo
final e a crença na vinda do anticristo e da besta-fera, as “Santas Missões” de frei Damião
acabavam (re)acendendo entre o povo os medos escatológicos do fim do mundo, sendo,
inclusive, apropriadas para interpretar as mudanças que se operavam no mundo do cotidiano.
Elas se constituiam num momento em que este imaginário passava a circular com mais
frequência entre os católicos reforçando na memória popular estas “imagens do medo”.
Interrogada sobre o que costumava ouvir dos seus genitores a respeito da Besta fera e do
Anticristo, lembrava dona Maria Do Carmo a postura do pai sondado os conselhos do
“padrinho frei Damião”:
347 Depoimento concedido pela Sra. Maria do Carmo Oliveira, 57 anos, no dia 22/08/2012.
348 Idem, p.42.
349 Conselho de Frei Damião sobre o uso da minissaia pelas mulheres citado por OLIVEIRA, Gildson, 1997, p.82.
131
Isso ele sempre dizia que era esse povo que fazia estas coisas. Ficava carimbado pelo
carimbo da besta-fera. Era por isso que ele não deixava nós usar calça, nem roupa
sem manga, nem minissaia, nem miniblusa, porque ele dizia que estas coisas era da
parte do diabo.
Ressemantizadas pela ótica da religiosidade popular as mudanças culturais como a
introjeção de novos hábitos e valores adquiriam um sentido negativo. Elas eram utilizadas para
explicar um mundo que não mais ocorria dentro do padrão da normalidade ou das fronteiras do
correto sendo interpretadas como indícios da proximidade do fim do mundo. Isto era creditado
particularmente entre os católicos mais conservadores, porque se acreditava que o inimigo de
Deus, o diabo, já andava atuando no mundo, responsável pelas desgraças e seduções tão
visíveis a olhos limpos. A esta visão superpunha-se a noção de que Deus se vinga dos pecadores
consentindo a ação do mal no mundo e que sua desforra contra toda maldade fora deixada para
o final dos tempos. Por que Deus destruiu o mundo no tempo de Noé enviando o grande dilúvio
para abolir a iniqüidade dos homens, Ele não tardará a destruí-lo novamente, uma vez que a sua
maldade tornou-se demasiadamente maior. É por isso que
[...] o mundo dos apocalípticos é um mundo ameaçado e perigoso, onde as
artimanhas das forças demoníacas cercam as pessoas e a sociedade. Não há
uma concepção de progresso, de desenvolvimento moral no tempo. [...] Há um
pessimismo tal que não permite esperanças do jeito como as coisas caminham.
É necessária uma ruptura e esta ruptura acontece no juízo.350
Paralelo aos tempos áureos das missões de frei Damião o movimento dos romeiros do
Padre Cícero também desempenharam um papel importante na constituição do imaginário
apocalíptico em Cruzeta refletindo nas muitas profecias populares tributadas ao Santo do
Juazeiro.
Afirmando-se como ponto de passagem de muitos romeiros que desciam de outros
lugares e regiões rumo ao Juazeiro do padre Cícero, Cruzeta recebia grupos de peregrinos todos
os anos que passavam pelo lugar em romaria a “terra santa do Padrinho”.351
O contato destes
viajantes com as populações locais engendraram a constituição de fluxos de imagens e
informações que eram trazidos da “interlândia” caririense à medida que o contato entre estes
“andarilhos da fé” e a comunidade local se intensificava. Alguns romeiros chegavam mesmo a
permanecer por mais de um dia na localidade e havia devotos locais que se reuniam aos
peregrinos de fora e iam de “mutirão” em direção a “Meca Sertaneja”.
350 NOGUEIRA, Paulo, 2008, p.20.
351 Estamos utilizando o termo “romaria” conforme Braga (2008, p.243) para designar as “experiências de
deslocamentos individuais ou coletivos em direção a um centro que é sagrado em virtude da presença de um
Santo”.
132
Pedro Pereira dos Santos, professor aposentado de 53 anos, lembra com riqueza de
detalhes a passagem dos romeiros do Padre Cícero por Cruzeta quando ainda residia no sítio
Riacho da Barra, zona rural da cidade, nos anos 1960 e 70. Em sua narrativa ele descreve a
indumentária, os apetrechos, os artefatos de devoção e a paisagem que envolvia o viajante rumo
a “Meca” do sertão fazendo um breve inventário da figura do romeiro.
Com mais freqüência mesmo foi na década de 70 quando a gente ainda morava
no sítio, que via eles passando na parede do açude, a fila deles. Só que cada
um com um matulãozinho nas costas e seguiam, passavam aí. Nesta época não
tinha pista ainda, era tudo estrada de barro. Tinha uns que andavam de sandália
de borracha, mais resistente. Tinham uns que iam de [camisa com] manga
longa, outros de chapéu e aqueles cabaços de botar água. [...] Iam muito de
[traje de] São Francisco pra lá pagando promessa. Falavam da casa dos
milagres quando chegassem lá, quando iam botar aquela peça. Tinha gente que
levava uma perna de madeira, tinha gente que levava um braço [...] e assim por
diante. Aonde eles faziam aquela promessa, vamos dizer, o quê que ia
melhorar, o quê que eles sentiam, se eram uma dor na perna, se era um alejo,
era um.... Qualquer coisa, aí eles realizavam: “Minha cabeça ficou boa eu
quero que você desenhe minha cabeça pra eu deixar lá em Padre Cícero”.352
A romaria a terra sagrada do padrinho costumava durar em média duas semanas,
principalmente para aqueles que faziam o itinerário a pé sem auxílio de algum transporte. A
volta do conterrâneo ausente era sempre comemorada com as visitas dos parentes e amigos, que
se dirigiam à casa do peregrino para “tomar notícia” do que viram e ouviram na terra santa “do
meu Padrinho”. Dona Maria Letícia, professora aposentada de 63 anos, que morou até pouco
tempo na comunidade do sítio da Cruzeta Velha, relata como era freqüente em sua infância ir
visitar os parentes e conhecidos da vizinhança que chegavam de romaria do Juazeiro. Ela narra
um quadro que aponta a importância do romeiro na transmissão e circulação do imaginário
apocalíptico sertanejo ao revelá-lo como fonte de disseminação das profecias populares que
percorriam os sertões de antanho.
Quando os romeiros [do Padre Cícero] chegavam, a gente ia visitar porque eles
vinham à pé e demoravam uns 15 dias de viajem. Quando eles chegavam
“vinham só o pito”353
. [...] A gente ia visitar e o assunto deles eram esse do que
já falava padre Ciço sobre as eras de 50 e 60. Naquela época eu era pequena,
tinha uns 6 anos, 7, 8 anos. Isso aconteceu lá pros anos 60, 58, 57 e existiam
muitos romeiros [em Cruzeta] que iam [para o Juazeiro] a pé ou de pau-de-
arara.354
A passagem dos romeiros do Padre Cícero por Cruzeta, deixou um lendário religioso
acerca dos últimos tempos que se refletiram nas muitas profecias apocalípticas populares
atribuídas ao santo do Juazeiro, muitas delas (re)apropriadas para significar e dar a entender as
352 Depoimento concedido pelo Sr. Pedro Pereira da Silva, 53 anos, no dia 03 de Novembro de 2009.
353 Expressão utilizada para significar um estado ou situação penosa, sofrida, desditosa.
354 Depoimento concedido pela Sra. Maria Letícia dos Santos no dia 24/08/2012.
133
mudanças culturais e tecnológicas que estavam sendo operadas na cidade entre as décadas de
1950 e 70. Um exemplo disso foi o imaginário apocalíptico construído em volta da “Energia de
Paulo Afonso” associado a crença numa conflagração universal.
Desde as sociedades mais antigas a idéia de uma conflagração escatológica vem
perseguindo a humanidade. Uma mostra disso é o tema da destruição do mundo pelo fogo
(conflagração) encontrado nos escritos dos Pais da Igreja, mais também muito presente nas
mais diversas tradições da Antiguidade.355
Entre os cristãos primitivos esta crença desfrutava de
ampla popularidade e estava associada aos desastres naturais e às catástrofes cósmicas
(terremotos, inundações, doenças, fomes, guerras, cometas e o estampido do cair das estrelas)
significando “o estopim natural da desordem” desencadeada pela imoralidade dos homens e
assumindo um papel de julgamento e de punição.356
Conduzida pelos missionários e colonos lusitanos para o Novo Mundo e difundindo-se
junto às profecias apocalípticas populares pelos sertões nordestinos, a crença na destruição do
mundo pelo fogo estava bastante difundida entre os cruzetenses de meados do século XX.
Referindo-se a aludida crença que ouvira dos lábios da mãe, lembrava uma dona de casa
aposentada de 79 anos domiciliada em Cruzeta:
Ela dizia que o mundo tinha se acabado com água e agora seria com fogo [...]
Que aquilo vinha do momento. Não tinha quem acudisse nem onde se socar.
Ela dizia muito que até pra onde a gente corresse, pra os açudes, as águas
ferviam da quentura, pois [...] o mundo ia terminar em fogo. Ia se acabar com
o fogo que Deus mandava.357
Dona Helena de João Pedro, funcionária pública aposentada de 67 anos, também relata a
tradição que costumava ouvir dos pais e apresenta sua versão: “Eles diziam que quando o
mundo fosse se acabar vinham três anjos: norte, sul, leste-oeste, parece que era assim. Três
anjos. Iam estes anjos tocando fogo no mundo”.358
Numa xilogravura intitulada “os três anjos vingadores” de um artista popular cearense
datada de 1968, a mesma tradição aparece representada. Na ilustração, as três figuras angélicas
são concebidas numa posição de altivez. Elas parecem sobrevoar os céus e conduzem nas mãos
um livro aberto. (Ver imagem 23 em anexo). Pela tradição que se filia a representação, é
possível inferir que cada livro represente o registro dos nomes dos pecadores que foram
amaldiçoados em juízo, pois como já entoava o salmista: “Todo o mal feito pelos maus é
355 Cf. JORGE BERGO, Mirian Reis, 2008, p.38.
356 Idem, ibidem, p. 52.
357 Depoimento concedido pela Sra. Gizelda Maria Rocha, 79 anos, no dia 11 de janeiro de 2010.
358 Depoimento concedido pela Sra. Helena Silva de Goes, 67 anos, no dia 26 de outubro de 2009.
134
registrado, e eles não o sabem”.359
O analogismo é confirmado numa outra gravura de cordel
datada de pelo menos 1948. Na composição imagética a figura de um varão (Deus) aparece no
alto entre nuvens numa vetusta compleição. Ele aponta o indicador para uma interminável
multidão alvoroçada que sugere deixa para uma cidade que arde fumarenta por entre morros e
colinas. Bem no meio da ilustração um anjo conduz nas mãos um archote ardente e parece
agitá-lo em direção do tropel. No alto dos céus, cingindo a figura masculina, as siluetas de dois
anjos surgem empunhando trombetas e parecem anunciar um momento solene a que o folheto
apregoa: “o Fim do Mundo”, colocado em evidência na gravura sertaneja por letras garrafais.
(Ver imagem 24 em anexo).
Como podemos observar, a crença na conflagração universal era uma tradição
escatológica bastante difundida entre os sertanejos do Nordeste. Ela fazia parte de um arsenal
simbólico ainda mais rico e diversificado que compunha o acervo do imaginário apocalíptico
popular do sertão. As imagens evocadas pelas gravuras sertanejas, não eram apenas produto da
imaginação fecunda de seus artífices, mas compartilhadas por uma comunidade de imaginação
mais ampla, estavam interligadas por uma teia de sentidos que tinha na concepção de um Deus
vingativo e na noção pessimista do tempo seu fundamento maior de sustentação. Elas eram uma
expressão das profecias cataclísmicas que inundaram os sertões amparadas na idéia de que
Deus puniria o mundo velho de pecado destruindo-o com fogo no dia de Juízo. E foi por meio
destas referências tradicionais que muitos cruzetenses interpretaram a chegada da energia de
Paulo Afonso. Neste processo de (re)apropriação simbólica também contribuiu a atuação dos
romeiros do padre Cícero ao se apropriarem deste evento histórico a partir daquele patrimônio
simbólico colocando-o à maneira de profecia na voz do Padrinho.
Dona Leonete, professora aposentada de 75 anos e residente no perímetro urbano de
Cruzeta desde 1978, relata o clima de desconfiança que sobreveiu sobre muitos cruzetenses em
meados dos anos 1960, sobretudo entre as populações rurais, quando se propagou a notícia de
que em breve Cruzeta receberia a energia de Paulo Afonso e aponta a participação dos romeiros
do Padre Cícero como uma das causas maiores da suspicácia.
Quando falaram que ia chegar a energia de Paulo Afonso [...] um dia chegou
os romeiros que vinham do Ceará. Aí chegou uma historia que Padre Cícero
tinha dito que o mundo tinha se acabado com água a primeira vez e a segunda
vez ia ser com fogo. Mas não é a gente chegar e colocar fogo nas casas não. É
a energia de Paulo Afonso que quem vai acabar com tudo. Aí eu sei que
quando chegou a energia pra todo canto, que hoje onde você chega tem
energia, eu tava dizendo a Sebastião: “Oh Sebastião, você acha que dá quase
pra gente entender um negócio desse do que padre Ciço disse? Por que o
mundo ta completo e a energia é perigosíssima. Se incendiar o negócio? Pega
359 Salmos 50, 3. Uma passagem semelhante é encontrada em Apocalipse 14, 20.
135
fogo. Morre todo mundo. [...] Nos sítios só se dizia: “se vier energia, esse
Paulo Afonso pra minha casa, eu não quero. Porque eu não vou pagar uma
energia que vai me matar queimada”.360
A noção de que a eletricidade podia provocar incêndios e mortes por meio da eletrocução
(choques elétricos), foi em grande medida um dos motivos que nutriram o receio diante da
novidade. Ela encontrava sentido no simbolismo de uma conflagração escatológica
direcionando comportamentos e imprimindo posturas relutantes. Dona Giselda, doméstica
aposentada de 79 anos, lembra a conduta de sua mãe que chegou a fechar as portas de sua casa
aos serviços de instalação elétrica do governo a pretexto daquilo se tratar de uma “invenção”
que resultaria na destruição dos moradores da cidade.
Ela não queria que ninguém entrasse lá em casa. “Não, na minha casa nem
entre. Nem entre que eu não quero”. Ela dizia. Os homens entrar na casa dela
pra botar a luz, ela não queria, porque aquilo era uma invenção. O povo ia
morrer tudo torrado com essa coisa. Que aquela luz era pra acabar com o povo
de Cruzeta. Na casa dela ela não queria. Não queria nem conversa com os
homens.361
Junto ao papel desempenhado pelos romeiros do Juazeiro e as profecias apocalípticas
populares, a contribuição da memória foi indispensável neste processo de atribuição de
sentidos, uma vez que era responsável por tecer os significados em jogo e estabelecer as
conexões entre a tradição (o patrimônio simbólico) e a própria experiência do vivido, como
deixa patente a fala de Dona Ambrosina, devota do Padre Cícero e moradora no Sítio Fechado:
“quando chegou a energia [de Paulo Afonso] todo mundo disse: “pronto o mundo agora vai
pegar fogo”, porque as pessoas lembravam das palavras que padim Ciço tinha dito. Aí ficava
todo mundo assombrado: “meu Deus e agora, nós vamos morrer tudo incendiado”.362
Era o
princípio das dores do Apocalipse.
Tanto na fala de nossa romeira do “Padim Ciço” como naquelas dos demais narradores,
ficaram apenas expressas uma pequena parcela das experiências de muitos cruzetenses que
vivenciaram no passado o drama do “encontro” com o “mundo moderno”. Este mundo
enquanto uma realidade “outra” não era algo dado desde sempre, como se todos os seus
sentidos e significados fossem parte de um enredo de um “espetáculo” que precisasse apenas
ser encenado para um público perito. Mas como realidade nova teve que ser vivido,
experimentado e construído. Sobre qual edifício? Sobre o edifício da tradição e da memória
como ficou impresso no imaginário apocalíptico sertanejo e nas muitas profecias populares que
o circundaram no passado.
360 Depoimento concedido pela Sra. Leonete Pereira de Medeiros, 75 anos, no dia 08 de dezembro de 2009.
361 Depoimento concedido pela Sra. Gizelda Maria Rocha, 79 anos, no dia 11 de janeiro de 2010.
362 Depoimento concedido pela Sra. Ambrosina Maria, 75 anos, no dia 20 de Agosto de 2012.
136
A energia de Paulo Afonso chegou à Cruzeta a 16 de janeiro de 1966 imprimindo uma
revolução nos hábitos e na forma de viver na cidade. Levado a cabo pela política de
modernização empreendida pelo governo progressista de Aluísio Alves (1961-1966), o projeto
fazia parte do plano executivo de sua administração em promover na região uma infraestrutura
necessária para o desenvolvimento do “progresso” e da indústria. Para muitos cruzetenses ela
significava um sinal apocalíptico e uma revelação de que em breve este mundo velho e
empedernido no pecado se consumiria em chamas ao toque das trombetas dos anjos. A cidade,
este lugar de erros e vícios, mas também de encantamentos e seduções, estava reservada à
destruição no dia de Juízo. As novidades que já lhes tomavam assento não deixavam, agora,
muitas dúvidas quanto a isso.
137
5. CONCLUSÃO
As mudanças culturais e tecnológicas processadas nas cidades seridoenses e notadamente
no município de Cruzeta, sobretudo na segunda metade do século XX, trouxeram novas formar
de conceber o mundo para os seus moradores. Elas faziam parte, inicialmente, de um projeto
político mais amplo de construção da nacionalidade dirigido pelas elites nacionais, locais e
regionais que nem sempre levou em conta o patrimônio simbólico localmente preexistente.
Este, tecido e compartilhado durante séculos de experiências, funcionava como esteio de
valores e sentidos utilizados por seus habitantes para dar a entender o mundo em sua volta.
Neste cabedal simbólico o imaginário apocalíptico popular exercia uma função dinâmica e
reativa ao se constituir num paradigma cognoscível por onde as experiências de crise eram
interpretadas.
O “choque” ou na melhor das hipóteses o “encontro” entre a tradição camponesa e a
urbana ocidental moderna ocorrido no sertão seridoense, balizou um período de “crise” para as
populações locais acionando em suas reservas simbólicas o papel que tradicionalmente
desempenhava o imaginário apocalíptico popular nestes grupos. Esta experiência resultante do
contato com os “símbolos de modernidade” até então ignorados ou poucos conhecidos, assumiu
uma ascendência maior na passagem da primeira para a segunda metade do século XX, porque
correspondeu a um momento de intensificação da atuação das elites locais pensada agora em
termos de modernização.
No município de Cruzeta, este foi o período de maior atuação da Estação Experimental do
Seridó e da administração do prefeito engenheiro-agrônomo Sílvio Bezerra de Melo,
responsáveis pela implementação de muitas mudanças estruturais no equipamento urbano e pela
introdução de novas técnicas e insumos de cultivo no campo. Estas mudanças na medida em
que iam sendo processadas, acabavam atingindo a dimensão da cultura, interferindo nos
valores, referências e imaginários tradicionais.
Entre as décadas de 1950 e 60, Cruzeta havia se tornado numa pequena gleba sertaneja
“aberta” as influências externas. Contribuíra para isso as obras de infra-estrutura urbana
concretizadas pelo governo de Sílvio de Melo. Com a pavimentação dos seus principais
logradouros urbanos e os melhoramentos realizados nas estradas intermunicipais que a
interligavam a outros centros maiores e dinâmicos, houve uma maior circulação de automóveis,
serviços e pessoas. A chegada da energia de Paulo Afonso em 1966 trouxe neste sentido,
maiores aditamentos, porque franqueada ao usufruto da população, servia como uma forma de
incentivo a uma nascente sociedade local de consumo, estimulada a adquirir os novos
138
“símbolos do mundo modernos” estandardizados nos eletrodomésticos (o rádio, a geladeira, o
telefone, a televisão).
No interstício dos anos 1960 e 70, a cidade deixava de ser apenas uma pacata comuna
interiorana com um estilo de vida “homogêneo” para aglutinar em seu centro urbano, novas
formas heterogêneas de costumes. O acesso aos veículos de comunicação de massas (o rádio, o
jornal, a revista e muito raro ainda a televisão), foram os maiores responsáveis pela revolução
dos comportamentos entre os jovens que passaram a investir em novos espaços de lazer e
entretenimento para longe da sisudez dos mais velhos. Eram os tempos das discotecas nas
“sedes”, dos “souarês” e do namoro no escurinho do cinema.
Novos estilos surgiram entre os jovens influenciados pela indústria da moda e os novos
valores juvenis, como a utilização da calça e dos cabelos curtos pelas mulheres que até então
havia sido um uso tolerado apenas entre os homens. Muitas destas tendências eram trazidas dos
centros urbanos mais dinâmicos, sobretudo da capital pelos jovens cruzetenses ausentes, que ao
retornarem a terra natal durante o período das férias escolares ou das celebrações da padroeira,
eram logo reproduzidos entre os círculos dos amigos. Um exemplo disso foi o uso dos biquínis
e maiôs nos banhos públicos de açude nas “Manhãs de Sol”. O contato com esta outra realidade
mais distante e a partilha de uma cultura juvenil pela juventude citadina, foram responsáveis
por criar um fosso cada vez mais profundo entre os valores defendidos pelas gerações dos mais
jovens e aqueles herdados das gerações paternas, abrindo espaços para ocasiões de tensões e
conflitos.
É neste contexto que se processa a recusa e a perda de muitas referências tradicionais por
parte das gerações mais “modernas” que passam a não mais enxergar na sabedoria dos mais
velhos – sustentáculo dos valores da família nas sociedades conservadoras patriarcais – uma
“verdade” a ser seguida sem contestação. Não é difícil inferir que a expansão do acesso aos
processos educacionais tenha contribuído para um maior acirramento desta circunstância, pois
com um número maior de jovens em idade estudantil freqüentando a escola como demonstram
os censos demográficos do período, outros códigos passaram a fazer parte do seu arsenal
simbólico que antes se amparava preeminente na cultura oral de grupo.
Por outro lado estavam aqueles que permaneciam atrelados à tradição do mundo rural.
Patenteando ainda a maioria, entre estes a barreira moral que separava um comportamento
aceitável do desviante continuava a ser medida pela tônica da sanção sobrenatural, por isso que
o anátema contra os costumes e os chamados “usos modernos” continuavam a ser emitidos.
Eles encontravam reforço e um valhacouto certo na ideologia mobilizada pelos movimentos
religiosos populares ainda muito atuantes no terceiro quadrante do século XX. A imagem de um
139
Frei Damião de Bozzano pregando do púlpito para a grande multidão contra a “moda
escandalosa” (a calça feminina e a minissaia) e as posturas “imorais” e recalcitrantes (o
amancebamento e a liberalização sexual) abonando o inferno para os transgressores, era um
peso que não podia ser facilmente negligenciado. Suas palavras faziam lembrar que existia um
Deus justiceiro pronto para perdoar o pecador, mas também para condená-lo em juízo caso não
houvesse conversão e arrependimento. O medo do inferno e do castigo divino ainda era usado
como recursos coibentes para recalcar comportamentos violadores.
Estendendo paulatinamente o seu campo de influência sobre uma população campesina
que passava a ver na cidade um “celeiro de facilidades”, a nascente “sociedade de consumo”
não mudou drasticamente a maneira tradicional do homem do campo de entender o seu mundo.
No máximo ela se projetou num terreno flutuante da contradição ou da ambiguidade onde o
“consumir a novidade” nem sempre significava uma renúncia consciente de suas referências
tradicionais. Mesmo depois que a experiência moderna começou a ser ensaiada na cidade, os
“símbolos de modernidade” não perderam o sentido escatológico negativo que os associavam a
sinais apocalípticos, embora, quanto a isso, eles se convertessem cada vez mais num
“imaginário” partilhado entre os mais velhos, culturalmente enraizados na tradição oral de
grupo e menos vulneráveis as novas motivações psicológicas. A memória ativa, este poderoso
mecanismo vivo de tradução capaz de conectar os sentidos de experiências vividas já distantes
no tempo, foi a maior mantenedora desta tradição entre os mais velhos, considerando que
mesmo hoje, os processos de continuidade lhes sejam ainda devedores.
Em vista disso não é demais pressupor que o imaginário apocalíptico popular tenha
contribuído para uma maior resistência do seridoense e do cruzetense, de modo particular,
diante do processo modernizador da região. Entre os decênios de 1960 e 70 quando se divulgou
que o Seridó e, sobretudo o “velho edifício rural” dos seus municípios estava “desmoronando”,
esgrimido pela perda do “orvalho moderno” que vinha bafejando a região como constatou
Araújo (2006), foi com um sentimento de frustração que os técnicos e planejadores do governo
e da SUDENE (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) perceberam “a densidade
quase irremovível da tradição frente ao poder alavancado, até então, pelas políticas públicas de
incentivo à modernização da economia agrária do Seridó”.363
Segundo o autor,
“a meta básica era transformar a propriedade rural em uma empresa moderna.
[...] [pois se esperava] que o homem, proprietário e trabalhador campestres do
semi-árido se encantasse, melhor dizendo, se desencantasse do seu mundo, e
se atirasse no lago do cisne, pronto para render fidelidade à racionalidade
moderna. O que, obviamente, não aconteceu. A modernização agrícola nessa
363 ARAÚJO, 2006, p. 280.
140
fase, quando ocorreu, foi pontual e se restringiu basicamente à área de
produção do açúcar”.364
O que pretendemos expor com isso ao trazer esta questão, é que os fatores utilizados para
explicar o atestado de “fracasso” da empresa modernizadora no semi-árido nordestino e, em
particular, no Seridó potiguar ocorrido no período aludido, nunca ou quase nunca levam em
consideração o patrimônio simbólico e como parte deste, o imaginário religioso, enquanto
agente importante neste processo. No mais, geralmente as muitas investigações existentes a este
respeito se comprazem em explicar esta circunstância como sendo conseqüência de fatores
político-econômicos e sociais internos e externos, denunciando, quando muito, uma postura
“resistente” do sertanejo nordestino diante da “racionalidade moderna”.
Talvez esta invisibilidade dada ao papel do imaginário religioso neste processo e aqui
gostaria de enfocar a sua dimensão escatológico-apocalíptica, seja fruto de uma “mentalidade”
(pré)conceituosa compartilhada de modo consciente e/ou inconscientemente entre os scholar e
entranhada no meio acadêmico brasileiro, de que o chamado “folclore do povo” não seja algo
que se deva levar muito à sério. Fato é que o imaginário apocalíptico popular como aquele que
tivemos acesso através dos depoimentos contemplados nesta pesquisa, nos abre muitas
possibilidades de investigação que poderiam caminhar por esta direção, hoje muito pouco ou
talvez mesmo ainda não exploradas.
Se por um lado chegamos à conclusão de que a experiência “moderna” implicou na
superação de certos medos escatológicos alicerçados numa cosmovisão encantada do mundo,
Por outro não seria correto afirmar que estes medos estão de todo modo superados. O sucesso
de bilheteria do filme 2012 de Roland Emmerich lançado em 2009 talvez explique o peso que
as reminiscências destas experiências acumuladas no tempo ainda exercem sobre muitas mentes
no mundo contemporâneo. Do mesmo modo também não se pode dizer com relação ao
imaginário apocalíptico construído em torno dos “símbolos de modernidade”, embora
expressamente para uma grande maioria este se subtraia a uma “fantasia de velhos”.
Questionada sobre o que dizia o Padrinho Ciço a respeito do automóvel, conjeturava uma
antiga beata de Cruzeta em alusão a “besta fera” falada: “naquele tempo ele falava isso... Mas
hoje quem sabe né? Quem sabe, muitas vezes ela passa no meio de nós e a gente não ver?
Nestas épocas muitas coisas diferentes, muitas coisas esquisitas está se passando. Ninguém sabe
se ela vem acompanhando”.
364 Idem, p.279.
141
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Revista Veja/ano: 4 de novembro de 2012/ pág. 90-99
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Remédios, 1944-1993/ Cruzeta-RN
Discurso apresentado no encerramento do curso de formação de tratoristas realizado na Estação
Experimental de Cruzeta em 1962 pela Sra. Alexandrina de Oliveira sem numeração de
páginas, datilografado e faltando partes.
LIVROS de casamentos da paróquia de Nossa Senhora da Guia/ Acari-RN.
LIVRO Nº 6: 1922-1930
LIVRO Nº 7: 1930-1939
LIVRO N° 8: 1939-1953.
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CAMPUS, Alexandrina de Oliveira. Entrevista I. Caicó/RN: Outubro, 2009.
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MEDEIROS, Leonete Pereira de. Entrevista. Cruzeta/RN: Outubro, 2009.
NASCIMENTO, Santina Marta do. Entrevista. Cruzeta/RN: Outubro, 2009.
AMBROSINA MARIA. Entrevista. Cruzeta/RN: Agosto, 2012.
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ROCHA, Gizelda Maria. Entrevista. Cruzeta/RN: janeiro, 2010.
DANTAS, Manoel Anastácio. Entrevista. Cruzeta/RN: Maio, 2013.
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CONCEIÇÃO, Antônia Maria da. Entrevista. Cruzeta/RN: Dezembro, 2009
DANTAS, Luizete Pereira de Assis. Entrevista. Cruzeta/RN: Janeiro, 2014
SANTOS, Ana Lúcia Rodrigues dos. Entrevista. Cruzeta/RN: Fevereiro, 2013
MELLO, Maria Daguia de Araújo Vale. Entrevista. Cruzeta/RN: Novembro, 2009
LIMA, Marcelino Martins de. Entrevista. Cruzeta/RN: Novembro, 2009
SILVA, Sebastiana Maria da. Entrevista. Cruzeta/RN: Agosto, 2012
SILVA, Francisco Carneiro da. Entrevista. Cruzeta/RN: Agosto, 2012
ROCHAEL, José Luiz. Entrevista. Cruzeta/RN: Dezembro, 2009
FOLHETOS DE CORDEL
ATHAYDE, João Martins de. Os últimos dias da Humanidade ou o Fim do Mundo. Recife,
1948.
LEITE, José Costa. A vinda da besta fera. Condado/PE, s.d.
FILME
2012 – Produzido por Roland Emmerich e Mark Gordon/ Dirigido por Roland Emmerich.
Ficção científica/Aventura 158 min, 2009. Distribuidora Columbia Pictures. Estados Unidos.
152
ANEXOS – ÁLBUM DE DOCUMENTOS
153
Imagem 01. Mapa das sub-regiões do Nordeste brasileiro com destaque para a localização da
região do Seridó norte-rio-grandense e do município de Cruzeta (RN), tendo como referência o Juazeiro
do Norte (do Padre Cícero). Cartografia: Alexsander Pereira Dantas
154
Imagem 02. Representação do Juízo Final e da pesagem das almas, tirada de um saltério
francês do século XIII. Fonte: Mary Evans Picture Library.
Imagem 03. Xilogravura de Álvaro Barbosa representando uma cena da Pesagem dos
pecados ou da Alma. s/d. Fonte: Museu de Arte da Universidade do Ceará.
155
Imagem 04. Apocalipse – [A mulher
e] o Dragão. Xilogravura de
Walderedo Gonçalves. Crato-Ceará,
1968. No imaginário do sertanejo
nordestino a Virgem Maria se
transforma na “mulher escatológica”
que contracenará com o Dragão (a
antiga serpente do mal, Satanás, o
Diabo) o combate final no fim das
Eras. Fonte: Museu de Arte da
Universidade do Ceará.
Imagem 05. A alma no inferno.
Xilogravura de Joel Borges.
Bezerros/PE. s/d. Fonte: Centro
Nacional de Folclore e Cultura Popular.
156
Imagem 07. Sitiante cruzetense em seu tradicional meio de transporte: o jumento.
Final dos anos 1950. Fonte: Acervo particular do Autor.
Imagem 08. Pelas ondas do rádio também chegavam “idéias” apocalípticas.
Rádio de uso doméstico pertencente a uma família cruzetense.
Década de 1960. Fonte: Acervo particular do Autor.
157
Imagem 09. Fotografia colorida do cometa Kohoutek tirada do Observatório Catalina no
Arizona/EUA em 11 de janeiro de 1974. O sensacionalismo catastrófico criado pelas rádios
locais em torno do fenômeno difundiu o pânico entre muitos seridoenses.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Cometa_Kohoutek
Imagem 10. Os grandes sinais do Fim do Mundo. Xilogravura de autor desconhecido.
s/d. Fonte: Museu de Arte da Universidade do Ceará.
158
Imagem 11. Apocalipse – A Besta da Terra.
Xilogravura de Walderedo Gonçalves.
Crato-Ceará, 1968. Fonte: Museu de Arte da
Universidade do Ceará.
Imagem 13. Capa do folheto “A vinda
da Besta-fera”, de José Costa Leite.
Condado/PE. Xilogravura do autor. s/d.
Fonte: Centro Nacional de Folclore e
Cultura Popular
Imagem 12. . Apocalipse – A Besta da Terra. Xilogravura de Walderedo Gonçalves.
Prancha da série Apocalipse. Crato-Ceará, 1968. Fonte: LOPES, José de Ribamar, 1994. p.72.
159
Imagem 14. Oração do Padrinho Cícero para
livrar da Besta Fera e dos perigos dos três dias
de escuro encontrada em oratório doméstico de
uma devota cruzetense. Lembrança de Frei
Damião das Missões. s/d. Fonte: Acervo pessoal
do autor.
Imagem 15. O Capa Verde. Xilogravura de
Damásio Paulo. s/d. Fonte: Museu de Arte
da Universidade do Ceará.
Imagem 16. O Capa Verde. Xilogravura
sem autor. s/d. Juazeiro do Norte. Fonte:
Centro Nacional de Folclore e Cultura
Popular.
160
Imagem 17. “Ford de Bigode” modelo 1925. Muitos veículos como estes foram
associados à Besta apocalíptica em suas primeiras aparições nas cidades e povoados
seridoenses. Foto da década de 1920. Fonte: OTHON FILHO, Antônio, 1970. p.155.
Imagem 18. Caminhão “misto” Chevrolet-Brasil (o primeiro montado no país, daí o
nome). Ano de 1956. Sua aparição na localidade de Cruzeta representou um “sinal” do Fim do
Mundo para muitos moradores locais. Fonte: Acervo particular do autor.
161
Imagem 19. Inauguração do Campo de pouso da Estação Experimental de Cruzeta em
setembro de 1954. Diversamente do que narra a “história oficial” deste episódio, os primeiros
aviões a aparecerem em Cruzeta seriam associados por muitos cruzetenses a “besta fera do ar”
que descreviam as profecias apocalípticas populares. Fonte: Acervo particular do autor.
Imagem 20. Frei Damião presidindo a santa missa ao lado de Frei Fernando, seu
companheiro de Missão, em frente da igreja de Nossa Senhora dos Remédios em Cruzeta (RN)
para uma multidão que o assiste. Junho de 1977.
Fonte: Acervo pessoal do autor.
.
162
Imagem 21. Cartão de lembrança das Missões de Frei Damião em Cruzeta com a
“Bênção dos lares”. s/d. Fonte: Acervo pessoal do autor.
Imagem 23. Apocalipse – Os três anjos vingadores. Xilogravura de Walderedo Gonçalves.
Crato-Ceará, 1968. Fonte: Museu de Arte da Universidade do Ceará.
Imagem 24. Capa do folheto “O fim do mundo”, de João Martins de Athayde publicado em
1948. Recife/PE. Xilógrafo desconhecido. Fonte: Centro Nacional de Folclore e Cultura
Popular.
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