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MARIA ROSANGELA DOS SANTOS
OS NEGÓCIOS DA VIDA: POBREZA RURAL E VIDA QUOTIDIANA EM
CAMPO LARGO NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX
Monografia entregue ao Curso de Graduação em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, como requisito para a obtenção do título de Bacharel em História.
Orientador: Prof. Dr. Carlos Alberto Medeiros Lima
CURITIBA 2005
2
1 Introdução
A pobreza rural em Campo Largo, na segunda metade do século XIX, será estudada a
partir de suas relações de subordinação e autonomia com o estrato superior local,
representados aqui pela administração municipal e os negociantes, não incluindo diretamente
os latifundiários. O estudo será feito tendo como ponto de partida um caso estratégico, a
falência do negociante José Ferreira Bello, a partir do qual teremos acesso ao universo das
relações sociais e econômicas da população. Uma série de inventários indo de 1873 a 1886,
bem como alguns ofícios também serão utilizados.
O município de Campo Largo, no Paraná, foi escolhido por ser representativo da
situação econômica e social de grande parte das regiões brasileiras deste período, localizadas
na periferia das grandes áreas de lavoura escravista agro-exportadora e caracterizadas
principalmente pela produção agrícola para o abastecimento do mercado interno e pela
pobreza de sua população. No Paraná, as principais atividades econômicas em meados do
século XIX eram, a coleta e beneficiamento da erva-mate1 e a criação, invernagem e comércio
de mulas nas fazendas dos Campos Gerais2, além da produção de alimentos. Quanto ao
comércio local, este era abastecido pela importação de mercadorias, principalmente do Rio de
Janeiro. Altiva Pilatti Balhana, Brasil Pinheiro Machado e Cecília Maria Westphalen nos dão
uma idéia da importância do Rio de Janeiro para o comércio paranaense oitocentista, “o Rio
de Janeiro era o“empório do sul do Império”. As mercadorias estrangeiras importadas pelas
firmas, geralmente portuguesas, do Rio, eram comercializadas nas Províncias do Sul.”3 Essas
mercadorias, “eram remetidas aos comerciantes de Curitiba com a garantia apenas do crédito
pessoal destes, e estes as revendiam para os pequenos comerciantes do interior da Província,
nas mesmas condições.”4 Na ponta deste processo podemos encontrar José Ferreira Bello,
pequeno comerciante do interior da Província do Paraná. A abertura da falência deste
negociante é significativa, pois nos aproxima do universo mercantil interprovincial citado
acima, e da rede de relações que se estabeleciam a partir da concessão de créditos. Do mesmo
modo nos permite que, no processo de sua falência, se tenha acesso a dados centrais da
cultura material, podendo ser tomados como representativos do nível de riqueza desta
sociedade agrária e das técnicas empregadas no desempenho das atividades econômicas. No
1 BALHANA, A. P.; MACHADO, B. P. & WESTPHALEN, C. M. História do Paraná.1º volume. Curitiba: Grafipar, 1969. p. 110. 2 Op. cit. p. 113 e 132. 3 Op. cit. p. 132.
3
entanto, o que mais pesou na escolha desta fonte foi a possibilidade de ter acesso à vida social
da população.
A historiografia tem mostrado o quanto a vida em sociedades agrárias está estruturada
pela relação entre o capital mercantil e os produtores agrários, uma vez que o financiamento
da produção destes está em grande medida subordinada àquele.5 A historiografia do período
tardo-colonial vem chamando a atenção para a trajetória de comerciantes e de sua importância
para a acumulação endógena de capitais e para o financiamento da produção agroexportadora
escravista.6 Em regiões periféricas, como Campo Largo, os comerciantes locais
desempenhariam a função de elo de ligação entre os pequenos produtores agrícolas e o
mercado regional, a partir da comercialização de seus excedentes, muito utilizados como
forma de pagamento.7
A pesquisa pretende contribuir para o conhecimento da economia e sociedade
características das regiões periféricas, procurando enriquecer o debate sobre o lugar dos que
se dedicam à produção de alimentos nestas sociedades. Isto se fará a partir do estudo do grau
de autonomia e dependência dos lavradores em relação ao mercado e ao estrato superior local.
O tema da pobreza rural e seu papel em relação ao sistema agro-exportador escravista
brasileiro no século XIX, têm gerado muitos estudos que pretendem dar conta da diversidade
dos indivíduos que estão sob esta definição.
A historiografia brasileira tem várias obras que tratam dos homens livres no Brasil
oitocentista. Um clássico é a obra de Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens livres na
ordem escravocrata, escrito em 1964, e que apesar de ser uma tese de sociologia, tem servido
de base a muitos trabalhos historiográficos sobre o tema. A autora estuda a região do Vale do
Paraíba, onde a lavoura cafeeira expandiu-se no século XIX. Ela faz uma classificação
importante dos indivíduos desta sociedade, dando maior ênfase, como demonstra o título, aos
homens livres. Nesta ênfase, o homem livre pobre aparece como desnecessário ao sistema
mercantil vigente, assentado na grande propriedade e na mão-de-obra escrava, mas que tinha
sua existência possibilitada pela abundância de terras não cultivadas integradas a patrimônios
privados. Este homem não tinha a propriedade da terra, somente sua posse, e esta condição ao
4 Op. cit. p. 133. 5 FRAGOSO, J.; FLORENTINO, M. O arcaísmo como projeto. Mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil no Rio de Janeiro, c.1790 – c.1840. Rio de Janeiro: Diadorim, 1993. 6 Id. e FRAGOSO, J. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790 – 1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. 7 MATTOS de CASTRO, H. M. Ao sul da história. Lavradores pobres na crise do trabalho escravo. São Paulo: Brasiliense, 1987.
4
mesmo tempo em que o libertava do peso da produção mercantil o deixava sem razão de ser.
Assim, teria se formado o que Franco denomina de “ralé”, “homens a rigor dispensáveis,
desvinculados dos processos essenciais à sociedade”8, ou seja, às atividades ligadas
diretamente à produção para o mercado. Segunda a autora, este setor teria determinado o lugar
do homem pobre na estrutura social.9 Mesmo sendo dispensável à produção mercantil, havia
outros meios pelos quais este homem poderia inserir-se na sociedade, a realização de
atividades que não eram confiáveis ao escravo e que desinteressavam aos homens ricos era
um deles. Entre estas atividades estaria o comércio no varejo, desempenhado pelo vendeiro, e
comércio de animais, realizado pelo tropeiro.10 Na classificação dos homens livres pobres,
que inclui além do tropeiro e do vendeiro, o sitiante e o agregado, a dominação pessoal
constitui elemento fundamental da inserção social daqueles indivíduos. Esta dominação era
exercida pelo fazendeiro, proprietário de terras e escravos, e podia ser realizada de várias
maneiras. A classificação de Franco, problematizada por Hebe Maria Mattos11, ajudará a
definir os indivíduos que aparecem na documentação que será usada como fonte para a
pesquisa. Esta classificação, como foi exposto acima, pressupõe a existência de uma
preponderância da produção mercantil, sendo ela reguladora da vida das pessoas, no entanto
havia uma produção voltada para a subsistência, para o abastecimento do mercado interno.
Apesar de por um longo tempo a historiografia ter dado pouca importância a esta
produção, atualmente têm surgido estudos que procuram analisa-la mais detidamente. Um
estudo muito importante que trata deste assunto é o livro O arcaísmo como projeto de Manolo
Florentino e João Fragoso. Os autores explicam que a produção mercantil não estava alheia ao
que acontecia no mercado interno, e que este tinha certa autonomia, devido a sua
especificidade, expressa na existência de uma acumulação endógena.
Tratar sobre o mercado interno é importante para a pesquisa que será desenvolvida,
pois o Paraná, Província onde se situa a cidade tratada, Campo Largo, não se caracterizava
pela agro-exportação. Os estudos que tratam desta temática costumam apontar para a extrema
dependência daquele para com a economia mercantil agro-exportadora. No entanto, há
estudos mais recentes que revêem estas posições clássicas, e propõem uma nova
interpretação. Esta é a uma das características da obra de Manolo Florentino e João Fragoso,
8 FRANCO, M. S. de C. Homens livres na ordem escravocrata. 4ª ed. São Paulo: UNESP, 1997. p. 14. 9 FRANCO. Ibid., p.15. 10 FRANCO. Ibid., p. 66. 11 MATTOS de CASTRO, H. M. Op. cit. capítulo “Da diversidade da pobreza: para além de senhores e escravos”. p. 75 –115.
5
mencionada acima. Nela, os autores vão buscar na economia e sociedade portuguesas do
Antigo Regime as bases para o entendimento da constituição da economia colonial brasileira,
uma vez que a colônia é resultado da expansão portuguesa, e a estruturação de seu sistema
produtivo segue as determinações do projeto português de colonização.12 Segundo os autores,
este projeto tinha por objetivo “perpetuar uma economia e sociedade cujos padrões
vinculavam-se ao Antigo Regime”,13 reiterando uma estrutura onde a aristocracia agrária
estava no topo. Partindo deste ponto de vista, o mercado atlântico seria visto como
“subordinado à consecução de uma diferenciação perversa”.14 Seguindo este raciocínio, os
autores procuram entender o funcionamento da colônia, chegando à “detecção da
preeminência dos grandes mercadores coloniais”,15 que se dava devido ao interesse da
estrutura social portuguesa de que o capital comercial metropolitano não se solidificasse, e à
natureza mercantil da produção colonial baseada na escravidão. Além destas condições, a
preeminência dos grandes mercadores era garantida por alguns mecanismos, que ao mesmo
tempo denunciavam a lógica de reiteração temporal da economia e sociedade colonial. Esta
reiteração era feita incorporando fatores econômicos que tinham oferta elástica e baixos
custos sociais. Eram eles terras, mão de obra e alimentos, “na base desta incorporação
encontramos uma fronteira aberta, um mosaico de produções não capitalistas que garantiriam
o abastecimento interno, e o crescimento do tráfico negreiro através do Atlântico (...)”.16 Do
projeto ultramarino português teria resultado uma economia atlântica, que por ter elementos
não capitalistas tinha certa autonomia frente às variações do mercado internacional, e pôde
sedimentar setores de acumulação endógenos a ela.17 Quanto ao mercado interno consideram
que “a estrutura de produção colonial gera os seus mercados de homens e alimentos, o que,
por sua vez, viabiliza a aparição de circuitos internos de acumulação para além das trocas com
a Europa”.18
O estudo de Fragoso e Florentino é importante na medida em que podemos ligar
Campo Largo a estes circuitos internos de acumulação, uma vez que o negociante falido, José
Ferreira Bello, estava ligado a uma casa comercial do Rio de Janeiro. No entanto, não se pode
transportar a condição do Rio de Janeiro do século XVIII e início do XIX, para o final do
12 FRAGOSO, J.; FLORENTINO, M. O arcaísmo como projeto. Mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil no Rio de Janeiro, c.1790 – c.1840. Rio de Janeiro: Diadorim, 1993. p. 25. 13 Op. cit. p. 13. 14 Idem. Ibidem. 15 Idem. Ibidem. 16 Idem. Ibidem. 17 Op. cit. p. 14.
6
século XIX, período que em que está inserido o objeto da pesquisa, sem prestar atenção nas
mudanças ocorridas. A lei de terras e a crise do trabalho escravo foram acontecimentos que
causaram importantes mudanças no período.
Ao estudar a freguesia de Nossa Senhora da Lapa de Capivary, em sua obra Ao sul da
história, Hebe Maria Mattos de Castro, volta-se para as estratégias desenvolvidas pelos
indivíduos desta região para responder à crise do trabalho escravo, e aponta algumas
respostas. A primeira, dada pelos fazendeiros, seria na direção de efetivar seu monopólio
sobre a terra, com o intuito de exercer uma coerção sobre a população pobre, para que esta
trabalhasse sistematicamente para eles. As outras respostas apontadas são as dadas pelos
sitiantes, nas quais alguns responderam do mesmo modo que os fazendeiros, enquanto outros
concentraram a mão-de-obra escrava na atividade que estava voltada mais diretamente ao
mercado, no caso a lavoura cafeeira, deixando para trás outras culturas.19 Campo Largo não
era uma região agro-exportadora, porém estava ligado às regiões que o eram, por isso também
sofreu em algum grau o impacto daquela crise. No capítulo sobre os órfãos, podemos perceber
como este impacto afetou as relações entre os livres.
A obra de Mattos ainda é importante, por tecer considerações acerca do papel da
venda. Ela afirma que independente de quem fosse o proprietário, do “pequeno vendeiro com
casa de negócio em terra alheia ao grande fazendeiro-negociante, a venda inseria-se sempre
no atendimento de uma dupla função comercial: o atendimento das necessidades de consumo
dos lavradores locais, especialmente daqueles que não tinham acesso às praças atacadistas
regionais, e a canalização do excedente da lavoura de subsistência do município para aqueles
mercados, a exemplo do que era feito diretamente por lavradores mais abastados no tocante à
sua produção”.20 Esta autora, na sua definição da venda ao ressaltar seu papel mercantil,
aproxima-se da definição de Franco, na qual a venda, muitas vezes fazendo parte de um
complexo que integrava fazenda, rancho e venda, podia representar o espaço de fusão entre
economia de subsistência e de mercado.21 Quanto ao vendeiro, a mesma autora ressalta sua
inserção em redes de dominação pessoal, sendo ele o dominante em algumas situações. Esta
dominação se daria sobre seus clientes a partir do endividamento, mas ao mesmo tempo em
18 Op. cit. p. 28. 19 CASTRO, H. M. M. Ibid., p. 68-69. 20 Id., p. 113. 21 FRANCO, M. S. de C. Ibid., p. 75.
7
que ele compartilha de uma característica dos estratos superiores da sociedade, está também
imerso no estrato social das camadas pobres, pois compartilha de sua moralidade. 22
Esta definição do papel da venda é determinante para compreender a relação dos
lavradores pobres com o negociante falido, pois atesta a sua característica de elo de ligação
entre estes dois estratos da sociedade.
Os lavradores pobres serão apreendidos a partir da economia e sociedade nas quais
eles estavam inseridos. A análise desta economia e sociedade será feita a partir dos resultados
da tensão entre autonomia e subordinação que a permeia, tomando por base a problematização
feita por Mattos sobre o assunto23. Autonomia em relação à ordem ou grupo social dominante,
presente na gestão de suas atividades econômicas, na relação direta com a terra, no uso do
trabalho familiar, e subordinação representada pela apropriação feita pelo grupo dominante de
parte dos excedentes da produção. A “tensão entre autonomia e subordinação” e “a variedade
de combinações possíveis de realização dessa tensão” são, segundo a autora, “a riqueza da
noção de camponês, em relação a outras expressões de significado mais restrito, como
agricultura de subsistência ou pequena produção”. 24
Para a construção do tema de pesquisa, fez-se necessário inseri-lo em algumas
conceituações. Quanto à classificação dos pequenos lavradores livres pobres, compartilhamos
com a hipótese que Hebe M. Mattos de Castro utilizou como ponto de partida para a definição
das classes sociais que formavam a ‘pobreza agrícola’. Segundo a autora, o que a
caracterizava era o uso tangencial do trabalho escravo, o fato de suas lavouras e criações não
estarem voltadas para a produção de excedente comercial e obtenção de lucros, mas sim para
o suprimento de suas necessidades de subsistência, e a troca de excedentes em reduzidos
mercados locais, representados pelas vendas. 25
Quanto à opção pelo estudo de caso, o estudo da história a partir de casos estratégicos
tem sido realizado com freqüência por historiadores vinculados às propostas da micro-
história, e os resultados têm sido valiosos. A micro-história, de acordo com Giovanni Levi,
tem um método que está relacionado “aos procedimentos reais detalhados que constituem o
22 FRANCO, M. S. de C. Ibid., p. 83. 23 MATTOS, H. M. Campesinato e Escravidão. In: Escritos sobre história e educação: homenagem à Maria
Yedda Leite Linhares. SILVA, F. C. T.; MATTOS, H. M.; FRAGOSO, J. (orgs.). Rio de Janeiro: Mauad: FAPERJ, 2001. 24 MATTOS, H. M. In: SILVA, F. C. T.; MATTOS, H. M.; FRAGOSO, J. (orgs). Op. cit. p. 333. 25 CASTRO, H. M. M. Op. cit. p. 82.
8
trabalho do historiador”,26 e é caracterizado pela busca de uma “descrição mais realista do
comportamento humano”, procurando “definir as margens da liberdade garantida a um
indivíduo pelas brechas e contradições dos sistemas normativos que o governam”.27 Esses
elementos apontados por Levi, estão relacionados ao procedimento analítico da redução da
escala de observação, realizada com o objetivo de captar fatores da realidade e experiência
humana que seriam imperceptíveis em outro tipo de análise.28
Na pesquisa que será desenvolvida os pressupostos da micro-história serão
considerados na análise das estratégias sociais, procurando “reconstituir um espaço dos
possíveis – em função dos recursos próprios de cada indivíduo ou de cada grupo no interior de
uma configuração dada”,29 como propõe outro historiador ligado à micro-história Jacques
Revel.
As fontes utilizadas na pesquisa são os autos de falência de um negociante varejista,
iniciado em 1886 e finalizado em 1888, uma série de inventários de 1873 a 1886, e alguns
ofícios. Os autos da falência e os inventários estão no cartório da vara cível do Fórum de
Campo Largo, a versão utilizada dos autos é uma cópia fotografada e gravada em cd-rom pelo
professor Carlos Lima, os inventários estão em formato de bancos de dados também
disponibilizado pelo professor Carlos Lima. Quanto aos ofícios, encontram-se no Arquivo
Público do Paraná, em versão microfilmada.
A falência do negociante José Ferreira Bello é requerida por um de seus credores,
Guimarães Irmão & Companhia, negociantes da praça do Rio de Janeiro, no dia 16 de julho
de 1886, devido a sua evidente impossibilidade de cumprir com suas obrigações perante estes
e outros credores, e por não ter havido conciliação em audiência no juízo conciliatório
realizada em 22 de maio de 1886. Nesta audiência o devedor confessou ter convocado seus
credores para uma reunião em 29 de maio de 1885 em que pretendia pagar suas dívidas,
porém apareceram somente três credores e por isso não houve pagamento. Além disso, os
credores alegam que o devedor hipotecou seus bens a um só credor em prejuízo dos outros. A
dívida de Ferreira Bello com Guimarães Irmão & Cia era de 719$300 (setecentos e dezenove
mil e trezentos réis), proveniente do fornecimento de gêneros para o seu negócio. A seguir,
26 LEVI, G. Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter. (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Unesp, 1992. p. 133. 27 LEVI, G. In: BURKE, Peter. (org.). Op. cit. p. 135. 28 Idem, p. 139. 29 REVEL, J. Microanálise e construção do social. In: REVEL, J. (org.). Jogos de escalas: a experiência da
microanálise. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998. p. 20.
9
constam nos autos os depoimentos de quatro das seis testemunhas apresentadas pelos
suplicantes, prestados em 23 de julho de 1886. Os depoimentos versam sobre os motivos
apresentados pelos suplicantes no requerimento de abertura de falência de Ferreira Bello. As
testemunhas reconhecem a dívida de Ferreira Bello com Guimarães Irmão & Cia e outros
credores, a convocação da reunião dos credores, a hipoteca devida a Francisco Xavier de
Almeida Garrett em garantia de uma dívida, e fazem menção a uma crise no comércio. Esta
crise é para algumas das testemunhas o motivo da inadimplência de Ferreira Bello. Ao
depoimento das testemunhas junta-se o balanço geral apresentado pelo devedor de sua casa
comercial, o balanço contém a relação com o preço e a quantidade de todas as mercadorias
(separadas em ferragens e armarinhos, roupas feitas e fazendas, louças e molhados, utensílios
e vasilhas), as despesas com embarque, frete e armazenagem, a hipoteca devida a Francisco
Xavier de Almeida Garrett, os bens de raiz e a relação de devedores e credores.
Após a apresentação das provas, o juiz de direito da comarca decreta a abertura da
falência de José Ferreira Bello, e manda que o juiz municipal do comércio proceda aos demais
atos e diligências legais. Este, manda que seja feito o inventário dos bens do falido, na casa
comercial do mesmo. Neste inventário constam mercadorias, móveis, semoventes e bens de
raiz. Em seguida há o depoimento de testemunhas sobre a legalidade da quebra, artigos 800 e
802 do código comercial, e são unânimes em afirmar que a quebra deve-se à crise pela qual
passa o comércio da cidade, afirmando a conduta exemplar do falido em suas ações. Pelos
depoimentos e exames nos livros de registro da casa comercial, a quebra é considerada casual
pelo juiz comercial. Em seguida os bens do falido são levados à praça pública para serem
arrematados com base no preço da avaliação feita pelos avaliadores nomeados pelo juiz.
Os autos contêm, em forma de apensos, os autos das sete praças que se realizaram para
a arrematação dos bens e dívidas do falido entre 1886 e 1888. As três primeiras praças foram
realizadas para a arrematação das mercadorias da casa comercial, móveis e semoventes, a
quarta para a arrematação das dívidas, e da quinta à sétima para arrematação dos bens de raiz.
As informações contidas nos autos da falência, permitem observar a permanência de
algumas características do modelo econômico colonial teorizado por Fragoso, como as
cadeias de endividamento / adiantamento, uma vez que o credor a requerer a abertura da
falência é negociante da praça do Rio de Janeiro, assim como outros que aparecem no
decorrer do processo. A rede de crédito na qual o falido estava inserido também é importante
para a pesquisa, pois ela não se resume à sua relação com os negociantes do Rio de Janeiro,
mas também às relações com a população local de Campo Largo, uma vez que era credor de
10
mais de uma centena de pessoas que compraram a prazo em sua loja. Além dessas questões, a
partir do inventário dos produtos da loja de Bello podemos saber o que não se produzia na
região, e que por isso era adquirido no comércio local.
Quanto aos inventários post-mortem, sua estrutura “consiste na descrição, individual e
pormenorizada, de todos os bens da herança, sejam eles móveis, imóveis, semovente
(referentes a escravos e animais), dívidas ativas e dívidas passivas, e os bens alheios que
forem encontrados no espólio do inventário, para que possam ser restituídos a quem tiver
direito”.30 Os inventários podem nos oferecer informações a respeito de práticas econômicas
contidas no caso analisado, como dívidas, hipotecas, e a partir delas podemos ter uma noção
do grau de dependência dos lavradores pobres em relação ao mercado local. É preciso
observar que, ao se trabalhar com inventários temos acesso somente a uma parcela da
população, aquela que possuía bens, por isso, a informação neles contida é tomada nesta
pesquisa como um indício da realidade na qual os homens pobres que não aparecem neste tipo
de documento estavam inseridos.
30 DAUMARD, A. et. al. História social do Brasil: teoria e metodologia. Curitiba: Ed. UFPR, 1984. p. 176-179.
11
Capítulo I - Um retrato da pobreza
Segundo Barcik, baseada em documentação da Paróquia de Nossa Senhora da Piedade
do Campo Largo, Campo Largo recebeu seus primeiros povoadores em 1814, foi
desmembrado da vila de Curitiba e da freguesia de Palmeira em 1831, chegando à categoria
de vila em 1870.31 No entanto, não fica claro se essas datas referem-se também ao Tamanduá,
pois se esta região estiver incluída o povoamento data de período anterior, uma vez que ela
aparece nas listas nominativas do final do século XVIII e início do XIX, listas estas que
incluem também outros bairros rurais do que será mais tarde o município de Campo Largo.
Além das evidências das listas nominativas não devemos esquecer que Campo Largo está no
caminho das tropas em direção a Sorocaba, ocupado desde o século XVIII. Portanto,
considerando estes dados, o povoamento da região data no mínimo do século XVIII.
O estudo da população campolarguense durante o século XIX realizado por Barcik,
merece nossa atenção na medida em que nos auxilia na compreensão de uma série de questões
presentes na sociedade brasileira oitocentista, existentes também na região trabalhada nesta
pesquisa, principalmente as referentes às migrações, ao empobrecimento e à ocupação
territorial. Estas questões estão relacionadas direta ou indiretamente aos dados presentes nos
inventários post-mortem da região de Campo Largo do final daquele período. Analisando os
registros de batismo, a autora verifica que no período que vai de 1832 a 1866 o número de
batismos entre a população livre apresentou um crescimento contínuo, ocorrendo um aumento
considerável no período de 1867 a 1882, tendo maior pico em 1879. Quanto à população
escrava, no período de 1832 a 1882 ocorreu um sensível aumento no número de batismos,
mas a tendência geral para o intervalo apresentou-se como sendo de estabilidade. Há que se
ressaltar que os dados da população escrava incluem os batismos de filhos de escravas
nascidos depois da lei do ventre livre, portanto livres.32 No entanto, nos parece que a inclusão
dos filhos livres de mães escravas na população escrava foi uma opção metodológica
realizada para informar muito mais sobre as mães que continuavam escravas, pois se seus
filhos não fossem classificados daquela forma se chegaria à conclusão de que após 1872 a
escravidão teria terminado na região, o que não é verdadeiro.
31 BARCIK, V. Campo Largo, 1832 – 1882: demografia histórica. Dissertação de Mestrado em História, UFPR, 1992. p. 8 - 9. 32 BARCIK, V. Ibid., p. 26 – 31.
12
A partir desses dados podemos concluir que estava ocorrendo um movimento
migratório de livres para a região a partir da segunda metade do século XIX, uma vez que
praticamente não há crescimento da população escrava, pelo contrário, se considerarmos que
filhos de ventre livre estão sendo computados como escravos podemos até supor uma queda
do número de escravos na população, sendo assim o aumento populacional não pode ser
atribuído à entrada de cativos. Outro dado que aponta nesta direção diz respeito ao movimento
de óbitos, que na segunda metade do século XIX teve um aumento significativo, indo de
menos de 50 óbitos anuais para os anos de 1830 a 1850 e chegando à década de 1880 com
aproximadamente 80 óbitos anuais. Estes dados se comparados com o crescimento
demográfico de uma população na América Latina do século XX tornam-se realmente altos, o
que não pode resultar de crescimento endógeno da população. Este movimento migratório é
associado por Barcik à chegada de imigrantes europeus, que teria ganhado fôlego na segunda
metade do Século XIX.
Para além da imigração européia, este crescimento populacional pode ser associado a
um processo migratório interno e a um empobrecimento da população local, já que pobreza e
migração andaram juntas no período colonial, e continuaram parceiras durante o século
XIX33. Faria afirma que no período colonial dificilmente um homem pobre permanecia por
muito tempo em um mesmo lugar, era previsível e esperado que ele migrasse em busca de
melhores condições de vida, e sendo forro ou descendente além deste significado, a migração
representava também uma forma de exercício de liberdade34. Para estudar a migração, a
autora se baseia na trajetória de forros e seus descendentes, pois constatou que suas escolhas
não divergiam muito daquelas tomadas pelos brancos pobres. Dentre as semelhanças está o
fato de que a migração não se fazia ao acaso. Realizada para responder a escolhas e motivos
individuais, sem deixar de ter interferência da conjuntura na qual os indivíduos estavam
inseridos, alguns fatores pesavam na escolha do destino, as áreas em expansão exerciam forte
atração, bem como aquelas onde residisse algum parente ou conhecido35.
Quanto ao século XIX, a mobilidade também era associada ao exercício da liberdade,
como no período colonial. Mattos afirma que esta associação era tida como positiva quando a
mobilidade tinha um caráter provisório. A busca por melhores condições de vida e o
33 Para o período colonial, FARIA, S. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 102, e para o século XIX, MATTOS, H. Das cores do silêncio: significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 41 – 42. 34 FARIA. Ibid., p. 102. 35 FARIA. Ibid., p. 111 – 112.
13
estabelecimento de fortes vínculos sociais na nova região estavam entre os objetivos dos
migrantes.36 Para os homens pobres, dentre eles os forros e seus descendentes, a mobilidade
espacial representava uma resposta ao desenraizamento e podia seguir dois percursos. De um
lado, havia a possibilidade de reinserção social através da montagem de um negócio, ou do
exercício de algum ofício especializado. Por outro lado, para os que não dispunham de capital
havia o assalariamento agrícola eventual, que tinha caráter provisório e visava o
estabelecimento como lavrador independente, que implicava a existência de laços sociais
sólidos, representados sobretudo pela constituição de uma família legal ou informal.37 Nesta
direção, o aumento no número de casamentos em Campo Largo, verificado por Barcik para o
período de 1867 a 188238, pode ser interpretado como inserido no contexto do fluxo
migratório, uma vez que o casamento era uma das formas de criar laços sólidos e duradouros,
e conseqüentemente de inserção social. Além disso, este aumento no número de casamentos
pode ser indicativo de que o número de lavradores independentes também está subindo na
região, o que aponta apara a existência de terras disponíveis onde estes novos lavradores
pudessem se fixar e produzir.
Contudo, o estabelecimento em uma nova região nem sempre acontecia de forma
tranqüila, ainda mais se existisse um pretenso dono das terras ocupadas. Motta analisando os
processos de embargo, despejo e de medição de terras de Paraíba do Sul do século XIX, nos
dá a medida dos conflitos gerados pela ocupação da terra por pequenos posseiros. Os grandes
fazendeiros da região, muitos também posseiros, costumavam ir até às últimas conseqüências
e lançar mão de todos os artifícios que estivessem ao seu alcance para garantir seu domínio
sobre uma parcela de terra, por menor que fosse, em detrimento dos pequenos posseiros nela
estabelecidos. Porém, isso não era feito somente para garantir o acesso à terra, mas para
assegurar o poder que exerceriam sobre aqueles que não a possuíam. Por este mesmo motivo
a medição e demarcação obrigatória das terras, antes e após a Lei de Terras de 1850, foram
deixadas de lado por muitos fazendeiros, pois poderiam significar uma limitação ao seu
poder.39 Uma notícia do jornal local O Guahyra, de 31 de julho de 1887, é indicativa dessa
preocupação com terras ocupadas por posseiros na região de Campo Largo.
“Terrenos da Capella do Tamanduá - os terrenos que constituem o patrimônio da
Capella do Tamanduá têm sido ocupados por diversas pessoas sem autorisação do
36 MATTOS. Ibid., p. 40 – 41. 37 MATTOS. Ibid., p. 42 – 43. 38 BARCIK. Ibid., p. 27. 39 MOTTA. Ibid., p.39 e 169.
14
poder competente. Tem havido mesmo a respeito verdadeiro abuso, occasionando
reclamações e queixas. Com o fim de examinar aquelles terrenos e dar o plano para
um systema de concessões de lotes á particulares o Dr. Juiz de Capelas, em 25 do
corrente mez, nomeou uma comissão composta do Major Nicoláu Gonçalves Padilha,
do Capitão Alexandre Magno de Oliveira Jorge e de Guilherme Henrique Kaehler”.40
Ao mesmo tempo em que esta notícia nos aponta para a preocupação com as terras que
estão sendo ocupadas sem autorização, representando uma ameaça aos fazendeiros da região
que podem estar perdendo uma chance de aumentar seu poder caso as terras sejam ocupadas
por posseiros, ela também nos leva a pensar que aquelas “diversas pessoas” podem ser
migrantes vindos de outras partes da província, libertos ou livres sem recursos, atraídos por
uma possível disponibilidade de terras. A respeito da possível disponibilidade de terras na
região, analisando a idade ao casar da população livre percebemos que em Campo Largo
ocorre uma diminuição durante o século XIX, se comparada com Curitiba e Lapa durante o
século XVIII41. Esta diminuição da idade dos noivos, aliada ao aumento no número de
casamentos mencionado acima, sugere que a dificuldade de arranjar um pedaço de terra não
parece ter sido muito grande, uma vez que a constituição de uma nova família requer a criação
de um novo domicílio, parece que a disponibilidade de terras não foi empecilho capaz de
retardar os casamentos em Campo Largo durante o período.
Em meio ao fluxo migratório, e seu conseqüente aumento populacional, e à
disponibilidade de terras, existia uma parcela da população, provavelmente a sua maioria, que
estava vivenciando com maior intensidade todas as mudanças ocorridas no período abordado
por esta pesquisa, entre elas a Lei de Terras de 1850, a crise do cativeiro e a perda e
autonomia das câmaras municipais, e que certamente estava elaborando estratégias para lidar
com as conseqüências destas mudanças que atingiam de perto sua vida cotidiana, estamos nos
referindo aos homens livres pobres. Estes indivíduos estavam longe de formar um grupo
social homogêneo, pois para além da fortuna sua inserção na sociedade se fazia por meio de
relações pessoais, como o casamento e o compadrio entre outras, bem como pelo exercício de
variadas atividades que conferiam status social diferenciado. Vários estudos pretenderam
identificar os homens livres pobres a partir de um referencial que fosse comum a todos que se
encontrassem sob esta condição durante o século XIX. A dependência pessoal em relação aos
grandes proprietários teria sido, segundo Maria Sylvia de Carvalho Franco, o elemento que
40 Cartório da vara cível de Campo Largo. Autos de Falência de José Ferreira Bello, 1886. O Guayhra nº 28 p.2 31 de julho de 1887. 41 BARCIK, Ibid., p. 92.
15
conferia homogeneidade àqueles indivíduos, independente das atividades por eles exercidas,
pois dentre aqueles classificados como homens livres pobres estão os tropeiros, os vendeiros,
os sitiantes, os agregados e os camaradas, categorias sociais nem sempre marcadas pela
pobreza, como afirma Hebe Mattos42. Esta autora parte da hipótese de que uma classificação
dos homens livres pobres, incluindo todas as categorias sociais que formavam a pobreza rural
oitocentista, deve levar em consideração o uso tangencial que estes faziam do trabalho
escravo, bem como o fato de que apesar de suas lavouras e criações estarem voltadas para a
subsistência, e não para a comercialização e realização de lucros, isso não impedia sua
participação nos mercados locais realizada por meio da troca, participação evidenciada pelo
grande número de pequenas vendas voltadas a tais mercados.43 Transportando estas questões
para Campo Largo pretendemos enriquecer o debate sobre os homens livres pobres no Brasil
oitocentista, ressaltando suas peculiaridades e semelhanças em relação aos estudos já
realizados.
Alguns aspectos do modo de vida da pobreza rural de Campo Largo serão aqui
analisados a partir dos dados contidos nos menores inventários de cada ano, bem como da
comparação desses dados com o dos inventários dos senhores de escravos. O estudo dos
inventários dos mais pobres serve de indicador para acessar o modo de vida dos homens livres
pobres que estão em sua maioria fora deles. A amostra completa é composta por 156
inventários, e abarca o período de 1873 a 1886. Para analisar o modo de vida dos mais pobres
selecionamos os três menores inventários de cada ano, enfatizando na análise o menor de cada
ano. Em alguns momentos será utilizada a amostra completa, com todos os inventários de
cada ano. Na amostra com os três menores de cada ano, 50% (21) são mulheres, destas 47,6%
(10) são casadas, 42,8% (9) são viúvas44 e 9,5% (2) não foi possível descobrir sua condição.
Quanto aos homens, eles são 35,7% (15), os casados são 73,3% (11) e os que não foi possível
descobrir a condição 26,6% (4). Os 14,3% (6) restantes são casais.
No que diz respeito à posse de bens de raiz, considerados nesta categoria os imóveis
rurais e urbanos, bem como à posse de animais, podemos observar a partir da tabela 1, na qual
estão representados os patrimônios em bens de raiz e animais do mais pobre inventariado de
cada ano entre 1874 e 1885, que a partir da segunda metade da década de 1870 ocorre uma
inversão na composição das fortunas. Ao mesmo tempo em que decresce a participação dos
42 MATTOS. Ao sul da história... p. 76. 43 MATTOS. Ibid., p. 82.
16
animais ocorre um aumento, na mesma proporção, da participação dos bens rurais, o que é
indicativo de que por algum motivo a pecuária deixou de interessar aos mais pobres. No início
do período, nos anos de 1874 a 1876, dos animais 81% eram muares, 8,1% cavalar e 10,8%
vacum, este é o período em que observamos o início do declínio da participação dos animais
nas fortunas do pobre inventariados. No período entre os anos 1877 e 1885, 66,6% dos
animais eram muares, 23,8% vacum e 9,5% cavalar. De acordo com as porcentagens a
mudança não parece tão grande a ponto de justificar a alteração que podemos ver na tabela, no
entanto é preciso considerar que, no primeiro período, composto por apenas 3 anos, os
animais eram em número de 37, já para o segundo período, abrangendo 9 anos, temos apenas
21 animais. Vejamos agora a questão dos bens de raiz.
Durante o primeiro período, bem como no segundo, os bens de raiz são compostos por
terrenos inteiros, casas e partes de terrenos, no entanto no primeiro observamos uma menor
divisão dos bens de raiz, sendo em sua maioria compostos por apenas uma propriedade, um
terreno ou uma parte. Já para o segundo período, estes bens são compostos por mais de uma
propriedade, por exemplo, a inventariada Catarina Pereira tinha entre seus bens de raiz “um
sítio de terras de logradores com casa coberta de tabuinha, com quintais e benfeitorias em
comum com outros herdeiros”, “uma parte de terras lavradias no lugar cerne em comum com
outros co-herdeiros”, “uma parte de terras lavradias no lugar Assungui em comum com outros
co-herdeiros” e “uma parte de casa no lugar cerne em comum com Joaquim Roberto, muito
velha coberta de tabuinha e muito deteriorada”.45 Além de Catarina, mais três dos nove
inventariados do período tinham mais um de terreno ou parte de terreno entre seus bens.
Voltando à posse de animais, neste período somente 5 inventariados possuíam estes entre seus
bens, ao passo que no primeiro todos possuíam.
A partir desses dados podemos concluir que a posse de animais, mais especificamente
muares, deixa de ser significativa para os mais pobres, porém não dispomos de informações
consistentes que possam nos indicar os motivos desta mudança. A historiografia tem
relacionado a decadência da pecuária no Paraná ao desenvolvimento das estradas de ferro, no
entanto a abertura de novas áreas voltadas para a pecuária, como o Mato Grosso, também
podem ter influenciado este declínio. Ao mesmo tempo, a fragmentação dos bens de raiz pode
ser um indício da crescente valorização da terra iniciada com a Lei de Terras de 1850.
44 Podemos afirmar com certeza que apenas 1 é viúva, pois seu estado civil aparece no inventário. As 8 restantes são tidas como viúva devido ao fato do inventariante ser outro membro da família que não seu marido. 45 Cartório da vara cível de Campo Largo. CX18839.
17
Tabela I.
Participação (%) dos bens de raiz e animais nas
fortunas dos pobres inventariados em Campo Largo
(1874 - 1885)
0
20
40
60
80
100
120
1874-5 1876-7 1878-9 1880-1 1882-3 1884-5
bens de
raizanimais
Quanto aos senhores de escravos, também percebemos um aumento nos investimentos
em bens de raiz, no entanto sua relação com o investimento em animais não é nada parecida
com aquela verificada entre os pobres, não há correlação entre um investimento e outro, uma
vez que a participação dos animais mostra-se oscilante em todo o período. Percebemos a
partir da tabela uma correlação negativa entre a participação em bens de raiz e os escravos. O
declínio na participação dos escravos nas fortunas é típico do período estudado, uma vez que,
devido ao aumento do preço do escravo a partir de 1850, quando da proibição do tráfico
atlântico, e o fato de Campo Largo estar inserido em uma das áreas que funcionaram como
fornecedoras de cativos para as lavouras do Sudeste em expansão, o investimento em escravos
deixou de ser interessante, tornando-se vantajosa somente aos grandes produtores com
lavouras voltadas para a exportação, o que não era o caso dos produtores de Campo Largo. No
entanto, apesar de estar em declínio durante o período como um todo, ainda existe durante
década de 1880, e o que é mais interessante, apresenta um leve aumento.
Tabela II.
Participação (%) dos bens de raiz, animais e escravos
nas fortunas dos escravistas inventariados em
Campo Largo (1874 - 1885)
0
10
20
30
40
50
60
70
80
1874-5 1876-7 1878-9 1880-1 1882-3 1884-5
bens de raiz
animais
escravos
18
Olhando para os três menores inventários de cada ano, quanto ao ano de 1873, temos
que nos dois menores inventários os bens de raiz correspondem a mais de 80% dos
investimentos, no terceiro inventário, o maior, significou menos de 50% devido ao
investimento em animais, correspondente a mais do 30% do total da soma dos bens. Este
último caso destaca-se dos outros por incluir entre seus bens a posse de 2 cativos, e por isso
não é representativo do grupo que pretendemos conhecer, os mais pobres, no entanto ele está
entre os três menores do ano devido ao fato da série de inventários estar incompleta. Ainda
neste grupo de inventários temos a questão das dívidas passivas, elas aparecem nos dois
menores, sendo extremamente alta para o menor deles, o do inventariado João Tomas da
Penha, correspondendo a 298% da soma dos bens, ou seja, o inventariado devia 3 vezes mais
do que possuía, que não era muita coisa, apenas “25 alqueires46 de capoeiras” avaliados em
700.000 réis, “uma parte de sítio velho com gramado, alguma erva mate e 5 alqueires de
capoeiras” valendo 350.000 réis e “um ervalzinho” de igual valor47. Esta dívida correspondia
a uma hipoteca e créditos a Mariano Torres, que também aparece como credor em outros
inventários48. A outra dívida, referente à inventariada Francisca de Andrade, casada com um
lavrador, correspondia a 31,6% da soma de seus bens, que somavam 2$599.000 réis, divididos
entre bens imóveis, animais e dívidas ativas. O valor de suas dívidas passivas correspondia
aproximadamente ao valor de uma parte de seus bens de raiz, “um terreno de pastagem com
alguma erva, duas pequenas campinas e um capoeirão”, avaliado em 900.000 réis, uma vez
que suas dívidas somavam 821.720 réis49.
Para o ano de 1874, temos os bens de raiz como a categoria que concentra o maior
investimento, seguido pelos animais. No menor inventário daquele ano50 aproximadamente
metade de todos os bens estão investidos em animais (46,6%) e a outra em bens de raiz
(53,4%). No que se refere às dívidas passivas, os três inventariados as possuíam, sendo que no
menor inventário elas correspondiam a 16,9% da soma dos bens e nos outros dois giravam em
torno de 4%. Para saldar a dívida, no caso do menor inventário, os herdeiros seriam privados
de alguns bens, o valor desta, 200.000 réis, correspondia a “uma pequena parte de campo e
46 1 alqueire corresponde a 2,42 hectares, e 1 hectare corresponde a 10 mil m2. (605.000m2). Uma unidade camponesa na Europa era ce 4 a 7 hectares, na época moderna. 47 Cartório da vara cível de Campo Largo, LB3. 48 Inventário de Umbelino Ferreira Chaxim, de 1878, soma dos bens 1$359.5000, dívida com Mariano de Almeida Torres de 233.924 réis, A1. Inventário de Jesuína Maria do Nascimento, de 1882, soma dos bens 9$482.000 réis, dívida com Mariano de Almeida Torres de 427.432 réis, CX18826. Inventário de Inocência Lúcia de 1885, soma dos bens 4$734.000 réis, dívida com Mariano Torres de 73.500 réis, CX 18845. 49 Cartório da vara cível de Campo Largo, ND4. 50 Cartório da vara cível de Campo Largo, CL12.
19
mato no quarteirão Bugre” avaliada em 100.000 réis, a “três alqueires de capoeiras devassadas
no quarteirão do Bugre” avaliados em 50.000 réis e a um cavalo avaliado em 50.000 réis.
Olhando para os dois anos em conjunto, observamos que os menores inventários de cada ano
são os mais endividados. Quanto aos dois maiores inventários fica claro que não são
representativos da pobreza rural da região, pois a soma dos bens de cada um ultrapassa os
3$500.000, sendo que o de 1873 soma 4$616.000, pertencendo, como já mencionamos, a um
senhor de escravos. Tanto pelo valor da soma dos bens quanto pela posse de cativos estes
inventariados não podem ser classificados como pobres, no período em que viveu o
inventariado senhor de escravos, Bento Rodrigues Cordeiro, o preço do cativo era muito alto
estando sua posse vedada aos menos favorecidos economicamente. O plantel deste senhor era
composto por uma escrava de 40 anos e um escravo de 15, aquela avaliada em 100.000 réis e
este em 700.000 réis, sendo mais caro do que um de seus bens de raiz “um terreno de
capoeiras e erval na Lapa”, avaliado em 600.000 réis51, não devemos esquecer que a coleta de
erva-mate era uma das principais fontes de renda do Paraná naquele período.
Nos anos de 1875 e 1876 os investimentos em bens de raiz e animais continuam a
corresponder à maior parte da soma dos bens dos inventariados. As dívidas passivas aparecem
em três casos, em um deles, o maior dos três inventários de 1875, a dívida corresponde a 8.1%
dos bens do inventariado, Maurício Domingues Ferreira, e tem o mesmo valor de um dos bens
imóveis presente no inventário, “uma casa coberta de telhas, 30 palmos de frente, 24 palmos
de fundos e suas benfeitorias no lugar Figueiredo”, avaliada em 100.000 réis52. Os outros dois
casos são do segundo e terceiro menor inventário do ano de 1876, correspondendo a 11,6% e
4,1% da soma dos bens respectivamente. O primeiro destes, de Maria Correa do Espírito
Santo53, cuja soma dos bens é de 2$118.800 réis, deve a 11 credores, num total de 247.100
réis, equivalente a “uma pequena parte de campo e matos, logradouro e alguma erva no lugar
Fazendinha” avaliada em 250.000 réis. O outro caso, de Francisca Maria da Trindade54, tem 4
credores, sendo o maior deles o Tenente Coronel Francisco Pinto de Azevedo Portugal, credor
51 Cartório da vara cível de Campo Largo, ND6. 52 Cartório da vara cível de Campo Largo, CL5. 53 Cartório da vara cível de Campo Largo, ND1. 54 Cartório da vara cível de Campo Largo, LA1.
20
em outros inventários55 e comprador de uma legítima e de uma meação em outros dois
inventários56.
Para os inventários de 1877 e 1878, em apenas um a maioria dos investimentos não se
concentra nem em terras nem em animais, mas nas dívidas ativas, que correspondem a 42,8%
de seu patrimônio de 548.500 réis, seguidas pelos bens de raiz que representam 27%,
acompanhados pelos animais que somam 22,8%. É o inventário de José Tomas de Souza, um
dos únicos da amostra a ter dinheiro, bem como um dos mais endividados, devendo 245,2%
de seu patrimônio57. Esta dívida é referente a um par de botinas a José Gonçalves Padilha, no
valor de 47.006 réis e a Manoel Luis de Souza, no valor de 1$297.915. Neste grupo não há
nenhum senhor de escravos, dos 6 patrimônios 5 estão entre 300.000 e 566.000 réis, e o maior
é de 1$359.500 réis. Este é um dos grupos da amostra que contém os menores inventários,
sendo um retrato mais aproximado do que poderia ser a situação dos pobres do período, ao
contrário do grupo do ano de 1879.
No grupo de inventários dos anos de 1879 e 1880, os patrimônios do ano de 1879 não
parecem representar indivíduos pobres, uma vez que dois deles são superiores a 4 contos de
réis, sendo um deles de um senhor de escravos. Observando o ano de 1880 encontramos
também um senhor de escravos, no caso uma senhora, cujo plantel representa 53,2 % de todo
seu patrimônio de 658.000 réis, sendo os 46,8% restantes correspondentes a animais. Este
caso chama a atenção na medida em que o patrimônio corresponde ao de um indivíduo pobre,
mas é composto em grande parte por um bem típico dos indivíduos mais ricos da sociedade
brasileira oitocentista, escravos. Para entender este caso devemos olhar para as características
dos bens da inventariada, Maria Magdalena Vieira58, falecida em 1878. O seu plantel é
composto por um escravo que tem nada menos do que 60 anos e aparece no inventário como
roceiro. Como Maria Magdalena não possui terras entre seus bens, é possível que seu escravo
trabalhasse para outros, sendo assim uma fonte de renda para sua senhora. Não temos como
descobrir isso, mas o que importa ressaltar é que mesmo tendo chegado ao fim da vida pobre,
Maria Magdalena não é representante da pobreza rural da região, e isso se comprova pela
posse de um cativo. Muito provavelmente ela sofreu um processo de empobrecimento, talvez
devido à morte de seu marido, apesar de não haver menção de seu estado civil no inventário.
55 Inventário de Manoel leite da Silva, de 1875, soma dos bens 2$115.000, dívida com Ten. Cel. Francisco Pinto de Azevedo Portugal de 35.500 réis, LM3. 56 Inventário de Leocádia Maria da Conceição, de 1881, CX 18813. Inventário de Catarina Pereira, de 1884, CX 18839. 57 Cartório da vara cível de Campo Largo, MD1.
21
Mattos em seu estudo sobre lavradores pobres na crise do trabalho escravo, encontra em sua
amostra de inventários da região de Capivary da segunda metade do século XIX, alguns casos
como o de Maria Magdalena. A explicação da autora para estes casos é a de que “antes que a
crise de mão-de-obra inaugurada com a extinção do tráfico começasse a produzir plenamente
seus efeitos, a propriedade cativa encontrava-se difundida para além das fronteiras da
agricultura comercial, exportadora ou não”.59 O caso de Maria Magdalena também pode ser
interpretado neste sentido, além daquele exposto acima.
Quanto aos demais inventários daquele grupo, todos são compostos por patrimônios de
até 600.000 réis, estando entre eles o inventário de um casal, de 1879, cujo patrimônio
somava exatamente 600.000 réis, composto por um único bem, “um terreno de capoeiras com
30 alqueires mais ou menos sendo metade boa e metade ruim por ter muita samambaia”60.
Este casal devia 215,3% de seu patrimônio a Jesuíno Antônio dos Santos, o correspondente a
1$292.037 réis. Ainda sobre as dívidas passivas, voltando aos maiores inventários deste
grupo, notamos que em um deles, o do senhor de escravos, o valor da dívida corresponde a
1.047,5% do valor de seu patrimônio de 4$570.000. A origem desta dívida não está
mencionada no inventário, a única informação sobre ela é a de que o credor é o Barão de
Nácar61.
Para os inventários de 1881 e 1882, continua a concentração dos investimentos em
bens de raiz e animais, quanto às dívidas passivas, elas aparecem em 2 dos 6 inventários, e em
nenhum dos casos chega a ultrapassar 10% do patrimônio. Apenas um patrimônio é maior que
2 contos de réis. Não há senhores de escravos neste grupo.
Quanto aos patrimônios dos anos de 1883 e 1884, em um deles o investimento em
animais corresponde a 59,1% da soma dos bens, enquanto o em bens de raiz é de 34,2%, este
é o único caso na amostra dos três menores de cada ano em que os animais ultrapassam os
bens imóveis. Os outros inventários da série seguem a tendência da amostra quanto à
importância dos bens de raiz na soma dos bens. Para os anos de 1885 e 1886, os animais
aparecem somente em um inventário. Neste grupo aparece uma dona de escravos, com um
plantel de dois cativos, assim como Maria Magdalena ela não é representante da pobreza rural
do período, possivelmente sofreu um processo de empobrecimento, neste caso podemos
associa-lo ao fato de ser viúva, uma vez que esta condição aparece em seu inventário. A
58 Cartório da vara cível de Campo Largo, CX188075. 59 MATTOS. Ao sul da história... p. 92. 60 Cartório da vara cível de Campo Largo, LEA4.
22
descrição de seus bens demonstra o processo de empobrecimento que passou quando se
tornou viúva. Além dos escravos, um homem e uma mulher sem idade mencionada, avaliados
em 700.000 réis, Ana Joaquina Beira possuía somente “metade de uma casa no quarteirão da
ilha do meio, em comum com os outros herdeiros”, no valor de 150.000 réis62.
Recortando na amostra o menor inventário de cada ano, temos que 64,3 % (9) são
mulheres, e destas 44% (4) são viúvas, os casais correspondem a 21,4 % (3), e os homens a
14,3 % (2). Quanto à propriedade de bens imóveis, incluídos nesta categoria terras,
benfeitorias e casas, ela aparece em todos os inventários, sendo que para 11 dos 14
inventariados estes correspondiam a mais da metade de seus bens. Esta categoria correspondia
a 77,2% do total da soma dos bens da amostra. A posse de escravos não aparece na amostra, o
que é normal uma vez que a região não é marcada pela agroexportação, mas pelo contrário,
estava entre as áreas caracterizadas pelo fornecimento de cativos para aquelas regiões, através
do trafico interno. A categoria dos bens pessoais, incluindo objetos de uso doméstico como
panelas e móveis, de uso pessoal como jóias, além de imagens de santos, é pouco significativa
correspondendo a 1,5% do total da somas dos bens. A freqüência destes objetos nos
inventários é muito pequena, apenas 4 inventários apresentam este tipo de bem, sendo todos
inventários de mulheres, das quais 3 eram viúvas. Os animais são os bens mais significativos
depois dos imóveis, correspondem a 18,2% do total das somas dos bens e aparece em 8 dos 14
inventários. Nesta categoria estão incluídos cavalos, mulas, éguas e vacas. A categoria mais
insignificante é a dos implementos agrícolas, correspondendo a 0,06 % do total das somas dos
bens, aparecendo somente em 2 inventários e incluindo um carro de boi e dois machados. As
dívidas ativas aparecem em 2 inventários e correspondem a 3,1% do total da soma dos bens.
Em nenhum dos inventários da amostra aparece dinheiro, nem o que se categorizou
artesanato, incluindo ferramentas e objetos utilizados em trabalhos manuais como carpintaria
e sapataria, bem como objetos feitos artesanalmente como portas e camas. As dívidas passivas
aparecem em 35,7 % dos inventários e correspondem a 59,4 % da soma dos bens.
A partir da descrição dos bens presentes nos inventários podemos chegar a algumas
conclusões. A maior concentração dos bens na categoria imóveis e animais nos mostra que
estamos diante de uma região rural, o que não é novidade. A inexistência de escravos também
é normal uma vez que o preço do cativo era alto neste período. Além disso, nos aponta para o
fato de que provavelmente a mão de obra utilizada era a familiar. As dívidas passivas são uma
61 Cartório da vara cível de Campo Largo, LA5. 62 Cartório da vara cível de Campo Largo, CX18862.
23
categoria significativa, pois mostra o alto grau de endividamento da parcela mais pobre da
população, dos 5 inventários com dívidas, em 3 elas eram maiores que a soma dos bens do
inventariado. Estas dívidas são indicativas da intensa inserção dos menos favorecidos
economicamente em redes de endividamento pessoais, que comprometiam mais do que seu
patrimônio, pois envolvia questões como troca de favores, dependência pessoal e fidelidade
entre devedor e credor, pagamento que não tem valor explícito, mas é tão importante quanto
os bens materiais em si.
Na amostra dos três menores inventários de cada ano, encontramos no ano de 1882 o
inventário de Maria Moreira do Espírito Santo63, falecida em 1870, provavelmente viúva, uma
vez que o inventariante foi seu filho. Neste processo aparecem 4 meia colações que
correspondem a 8,6% da soma dos bens de 1$123.250 réis. O restante dos bens são imóveis
correspondente a 87 % do total e uma dívida ativa com “o herdeiro Joaquim Teixeira”
correspondendo a 4,4 % do total de seus bens. A meia colação era o retorno do dote ao
espólio do inventariado para que se procedesse à partilha dos bens. Muriel Nazzari, estudando
a prática e o desaparecimento do dote entre os séculos XVII e XIX na cidade de São Paulo,
afirma que geralmente as filhas que levavam seu dote à colação o faziam por acharem que ele
era menor do que a herança que lhes cabia64. Este indício de concessão de dotes por uma
família relativamente pobre no momento em que esta prática está perdendo sua função
primeira, a de garantir a continuidade dos negócios da família, nos aponta para a direção de
que esta concessão foi feita muito mais com o intuito de auxiliar minimamente o casal, do que
com a intenção de reprodução social do clã, sendo assim, verificamos que está presente o
fundamento tradicional do dote apontado por Nazzari “ajuda no sustento da nova família”.
Isso se verifica pelo tamanho das meias colações, todas juntas não chegam a um décimo do
patrimônio da inventariada. Portanto, temos que considerar que, sendo a inventariada uma
viúva, provavelmente o valor levado à colação pelas filhas corresponde a somente metade do
dote recebido. Mesmo assim, percebemos que o valor não era muito grande, o que confirma o
caráter de auxílio inicial. É interessante destacar que todas as filhas casadas são dotadas, e que
até o dote da que já era falecida no momento da abertura do inventário foi à colação.
Verificando o ano da morte da inventariada, 1870, e as idades das filhas, apesar de termos
somente a informação da idade de duas das 4 filhas, 42 e 46 anos quando da abertura do
63 Cartório da vara cível de Campo Largo. Cx18825. 64 NAZZARI, M. O desaparecimento do dote: mulheres, famílias e mudança social em São Paulo, Brasil, 1600 – 1900. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 195.
24
inventário, podemos verificar que o dote foi provavelmente concedido na primeira metade do
XIX, momento em que, como afirma Nazzari, mudanças estão ocorrendo na definição de
propriedade, bem como no papel social da família, que, economicamente, está passando de
unidade produtora para consumidora. Outra mudança deriva da alteração da legislação, que
diminui a maioridade e concede igualdade para seus membros favorecendo assim o
surgimento do individualismo dentro da família. A separação entre negócios e família também
foi importante na medida em que o surgimento de uma nova família não significava
obrigatoriamente o surgimento de uma nova “empresa”. Todas essas mudanças transformaram
o casamento em escolha individual e baseada em outros valores, diferentes do econômico65.
Neste contexto, a concessão de dotes tende a aparecer como uma ajuda, não sendo decisivo
para a realização do casamento de uma filha. É neste sentido que entendemos a existência da
concessão de dotes na amostra analisada.
65 NAZZARI. Ibid., p. 150 – 188.
25
Capítulo II – Os filhos da pobreza
No dia 7 de abril de 1887, no município de Campo Largo, o jornal local O Guahyra -
“órgão popular de instrução e recreio”, nº 13, veiculava a seguinte notícia:
“Cadastro dos Orphãos – Acha-se organisado pelo Dr. Juiz de Orphãos o cadastro
dos orphãos deste Termo.
Figurão nelle – 736 orphãos, sendo 389 do sexo masculino e 347 do sexo
feminino.
Achão-se com tutores 96; com mestres aprendendo diversos officios 4;
contractados por 3 annos para serem empregados no serviço da lavoura e criação 46;
e entregues para receberem educação conveniente 11 orphans.
Os orphãos de 8 á 15 annos que são em número de 167 estão freqüentando
escolas públicas e particulares.
No trimestre de Janeiro á Março foi recolhido á collectoria deste Município a
quantia de 1:062#000 pertencente aos 46 orphãos contractados.
Dos 736 orphãos que existem neste termo – 583 residem no districto de Campo
Largo e 153 no de S. Luiz do Purunan.” 66
Sendo o objetivo desta pesquisa lançar luz sobre as formas de relação entre os estratos
sociais, procurando ressaltar as formas de subordinação e autonomia da pobreza rural em
relação ao estrato superior local, esta notícia nos coloca perante uma dessas formas, a relação
entre as instituições municipais e a população local. Esta notícia abre a possibilidade de trazer
para a análise do campo no Paraná as discussões mais amplas, realizadas quanto ao Brasil
como um todo, a respeito das mudanças que a crise do cativeiro estava induzindo nas relações
entre diferentes segmentos dos homens livres. Como se pode notar, ela informa sobre a
situação de alguns dos mais de 700 órfãos cadastrados, o número dos que estão com tutores,
dos que estão estudando ou aprendendo algum ofício, e dos que estão contratados para o
trabalho na lavoura e na criação. Estas informações são importantes pois, o fato de alguns
órfãos estarem contratados ou aprendendo um ofício é indicativo de que a sociedade estava
acentuando a estratificação entre seus membros livres, uma vez que o trabalho escravo na
região não era predominante.
Hebe Mattos, ao inventariar as representações da liberdade no sudeste escravista
durante a vigência do tráfico atlântico, afirma que a potência da propriedade escrava tendia a
se sobrepor às diferenças socioeconômicas e sociais entre os homens livres, e que esta
representação da liberdade, além de legitimar a propriedade escrava, priorizou o ideal de não-
trabalho nas representações sobre a liberdade, sendo assim, “todo homem livre o era enquanto
26
proprietário de escravos ou rentista em potencial, mesmo que apenas uma minoria
efetivamente o conseguisse.”67 Mattos afirma que numa sociedade escravista ser livre era não
trabalhar ou viver de rendas, nela “a liberdade é pensada idealmente, portanto, como um
atributo do homem branco e potencializadora do não-trabalho. (...) Este ideal de liberdade
perpassa a qualificação dos homens livres na ordem escravista até, pelo menos, a primeira
metade do século XIX.” 68 No entanto, a autora alerta para a questão de que, a liberdade como
atributo do branco e potencializadora da inserção social e da propriedade começa a ser posta
em xeque na segunda metade do século XIX.69 Dois fatores são apontados, o crescimento
demográfico de negros e mestiços, seja na condição de livres ou de libertos, e a maior
dificuldade de acesso ao escravo após o fim do tráfico atlântico, resultando na centralização
da posse de cativos nas grandes propriedades, causando uma inversão da posse de ativos
predominante no período colonial, caracterizada principalmente pela pulverização. No
entanto, Mattos coloca que apesar dos significados da noção de liberdade terem se redefinido
neste contexto, eles continuam a ser construídos “em oposição à escravidão e referenciados
estruturalmente ao padrão cultural anterior.” 70
Em Campo Largo, podemos notar, a partir dos indícios contidos na notícia sobre os
órfãos, que justamente no momento em que está ocorrendo o crescimento demográfico de
negros e mestiços livres, e o fim da escravidão, parece estar se criando uma nova forma de
dominação, subordinando uma parcela da sociedade considerada até então detentora de certa
autonomia por ser proprietária, os órfãos. Provavelmente, muitos dos órfãos contratados eram
filhos de pequenos proprietários rurais, que tiveram seus bens inventariados por terem vivido
no momento do início da vigência da Lei de Terras de 1850.
A Lei de Terras foi elaborada para regular o acesso a terras devolutas, uma vez que a
concessão de sesmarias foi suspensa em 1822. Mas para isso precisou regulamentar as formas
anteriores de ocupação, que eram basicamente a sesmaria e o apossamento. Márcia Maria
Menendes Motta, ao tratar da questão do lugar atribuído ao posseiro na lei de 1850, afirma
que apesar da maior parte deles estar entre os grandes fazendeiros, a lei poderia beneficiar um
sem-número de pequenos posseiros, ao “salvaguardar os interesses dos lavradores que haviam
66 Cartório da vara cível de Campo Largo. Autos de Falência de José Ferreira Bello, 1886. 67 MATTOS, H. M. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 32. 68 Idem. Ibidem. 69MATTOS, H. M. op. cit. p. 33. 70 MATTOS, H. M. op. cit. p. 34.
27
ocupado pequenas parcelas de terras, antes da aprovação da lei.”71 Segundo a lei, estas
parcelas seriam revalidadas se estivessem cultivadas, devendo ser demarcadas dentro de um
prazo estipulado, e registradas no registro paroquial de terras.72 Este registro era de
responsabilidade do vigário de cada freguesia, que deveria receber as declarações para o
registro das terras, seja qual fosse o seu título de propriedade ou possessão. Sendo assim, para
a autora, o Registro Paroquial teria sido encarado pelos pequenos lavradores, livres ou
libertos, como uma possibilidade de regularizar seu acesso à terra, aproveitada enquanto foi
possível.73
A partir desta constatação de Motta, procuramos definir a situação econômica e social
dos órfãos em questão. Sendo eles filhos de pequenos lavradores, com a morte do dono a
propriedade sofreria partilha, e a situação econômica dos herdeiros tenderia a ser inferior
àquela anterior à divisão. Assim, o trabalho para outrem se tornava uma forma de ganhar a
vida. A notícia contém indícios que apontam para esta direção.
No entanto, os vestígios de uma possível ética do trabalho presente no estrato superior
local, representado, neste caso por um membro da administração pública, o juiz de órfãos, nos
leva a rever o lugar deste no quadro da administração imperial, assim como seu papel no
âmbito da administração municipal, considerando a possibilidade de estar ligado a redes de
clientelismo locais. Levando em conta a afirmação de Giovanni Levi de que “toda ação social
é vista como resultado de uma constante negociação, manipulação, escolhas e decisões do
indivíduo, diante de uma realidade normativa que, embora difusa, não obstante oferece muitas
possibilidades de interpretação e liberdades pessoais,”74 pretendemos olhar para a relação do
juiz de órfãos, membro da administração municipal, com o estrato inferior da sociedade como
fruto de suas interpretações pessoais da realidade normativa na qual está inserido.
O fato de alguns cargos da administração pública serem estratégicos para a formação
de fortunas foi constatado por João Fragoso em seu estudo sobre a formação da primeira elite
senhorial do Rio de Janeiro nos séculos XVI e XVII. Neste estudo o cargo de juiz de órfãos
aparece dentre aqueles que dão acesso ao que o autor denominou de “poupança social”, que
71 MOTTA, M.M.M. Nas fronteiras do poder: conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Vício de Leitura: Arquivo Público do estado do Rio de Janeiro, 1998. p. 142. 72 MOTTA, M.M.M. op. cit. p. 141-142. 73 MOTTA, M.M.M. op. cit. p. 175. 74 LEVI, G. Sobre a micro-história. In: BURKE, P. A escrita… p. 135.
28
nada mais era do que os impostos e os bens dos órfãos75. O juiz de órfãos tinha como
atribuição zelar pelo bem-estar dos órfãos, o que incluía cuidar da arca dos órfãos, onde os
rendimentos e o dinheiro herdados pelos órfãos estavam depositados. Através da
recomposição das famílias dos primeiros colonizadores do Rio de Janeiro o autor descobre
que seus descendentes formaram a primeira elite senhorial e a primeira elite administrativa da
capitania, e conclui que grande parte da acumulação primitiva necessária à montagem da
economia escravista agroexportadora na região derivou dos rendimentos dos cargos
administrativos coloniais.
John Manuel Monteiro, em sua obra sobre a sociedade seiscentista paulista76,
escrevendo sobre a segunda expansão territorial ocorrida no Planalto Paulista a partir de 1640,
ressalta a importância da formação de novas vilas a partir do desmembramento de unidades
municipais já existentes uma vez que, “proporcionavam uma estrutura administrativa
necessária para a organização de cada fase da expansão pioneira”77, e que mais do que isso,
elas eram importantes por produzirem instituições fundamentais na criação, garantia e
transmissão dos direitos de propriedade. Dentre estas instituições, as mais relevantes foram a
câmara municipal, o registro de notas e o juizado de órfãos78. Detendo-se na instituição do
cartório dos órfãos, o autor aponta as duas funções por ele acumuladas. A primeira, e mais
evidente, seria a tarefa de “garantir a observância das leis de herança”,e a outra, “emprestar a
juros o valor dos bens dos órfãos” 79, o que transformou a instituição em fonte de crédito para
os colonos. O autor estende esta segunda função para todo o Brasil colonial, afirmando que
ela era importante principalmente nas pequenas vilas situadas em regiões remotas, onde
geralmente as instituições religiosas eram pobres e quase não existiam comerciantes ricos.
Contudo, Fragoso afirma que a importância dos cargos administrativos, enquanto
principais formadores de fortunas e responsáveis pela movimentação das riquezas da
capitania, chega ao final do século XVIII em declínio, quando a elite econômica passa a ser
formada pelos comerciantes de grosso trato.80 Avançando no tempo, este mesmo autor afirma
75FRAGOSO, J. A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira elite senhorial do Rio de Janeiro (séculos XIX e XVII). Topoi. Revista de História, set / 2000, n. 1. Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ. Ed. 7 Letras. p. 61. 76 MOTEIRO, J. M. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 77 MOTEIRO, J. M. Op. cit. p. 110. 78 MOTEIRO, J. M. Op. cit. p. 110. 79 MOTEIRO, J. M. Op. cit. p. 111. 80 FRAGOSO, J. A nobreza da República.... p. 102.
29
que durante o século XIX esta primazia passou dos comerciantes para os capitalistas e para
instituições financeiras, como o Banco do Brasil, criado em 1853.
No entanto, um inventário de Campo Largo datado de 1881, é indicativo de que aquela
prática do juizado de órfãos no período colonial adentrou e se estendeu durante o período
imperial, ou então de que estava sendo recriada sobre outras bases na segunda metade do
século XIX. Neste inventário, pertencente ao estudante James Custódio Natel, aparece entre
os bens inventariados uma quantia significativa do total da soma de seus bens em capital e
juros no cofre dos órfãos, 2$360.870 réis, do total de 3$815.707 réis81. Assim, este documento
sustenta a necessidade de rever o lugar do juízo de órfãos durante a vigência do Império. Este
significativo inventário faz parte de uma série de 157 inventários, que abarcam o período de
1872 a 1886. Nesta série, se atentarmos para as três menores fortunas de cada ano, exceto o
ano de 1872 para o qual temos somente 1 inventário, podemos perceber que dos 43
inventários resultantes deste recorte, 20 possuem dívidas passivas, ou seja, aproximadamente
46,5% da pobreza rural de Campo Largo tem parte, ou em alguns casos a totalidade, de seus
bens comprometidos com dívidas. E além disso, há de se considerar que muitas dessas dívidas
resultaram de empréstimos feitos a juros, que variavam de 1,5 a 2% ao mês.
O lugar do juiz de órfãos no século XIX, está ligado ao papel da administração
municipal neste período. Para entender de forma mais completa o significado da intenção do
juiz de órfãos, ao expor o cadastro dos herdeiros que estão sob sua tutela, é necessário inseri-
lo na administração municipal oitocentista.
A historiografia que trata das instituições administrativas durante o século XIX,
consagrou duas vertentes interpretativas principais. A primeira, aponta para uma “aniquilação
dos corpos municipais” quando da organização do Estado brasileiro no momento
imediatamente posterior à emancipação política da colônia. Tal aniquilação teria sido
processada com o intuito de realçar a posição das capitanias “como se apenas [nelas] se
aninhasse o princípio de autonomia regional.”82 Sérgio Buarque de Holanda, autor desta
interpretação, coloca como marco desta aniquilação a lei de 1º de outubro de 1828, pois esta
teria reduzido as Câmaras municipais a “corporações meramente administrativas”, atendendo
aos ideais dos novos tempos, que exigiam uma rigorosa divisão das funções políticas,
administrativas e jurídicas, que tradicionalmente tinham coexistido indistintamente nas
81 Cartório da vara cível de Campo Largo, caixa 188073. Valores em contos de réis.
30
Câmaras municipais coloniais. Junto com a indistinção das funções, os poderes de que
dispunham para fazer valer suas pretensões também teriam ficado para trás. Nesta linha, o que
poderia ter restado da pujança das Câmaras teria se desfeito com o Ato Adicional de 1834,
que transferiu às assembléias provinciais a atribuição de legislar sobre impostos, despesas e
empregados municipais, reforçando uma situação já existente e que se impôs com maior força
após o estabelecimento do sistema representativo. Assim, com o Ato Adicional, o poder
municipal foi centralizado na província, e o provincial foi descentralizado do poder geral. 83
Complementar a esta interpretação temos o trabalho de José Murilo de Carvalho, no
qual pretende analisar a construção do Estado brasileiro a partir do estudo da elite política
imperial. O autor define os membros desta elite política a partir de seus cargos e atribuições,
sendo no geral aqueles homens que tomavam as decisões dentro do governo central. Dentro
desta elite existiriam quatro grupos, seriam eles, os ministros, os senadores, os deputados
gerais e os conselheiros de Estado. Ao mencionar o “segundo escalão da burocracia”, no qual
inclui “presidentes de província, diretores, chefes de seção”, deixa claro que estes o
interessam somente na medida em que conseguiram chegar à política nacional, pois em seu
estudo não aborda a questão das elites locais, e que o peso político destes funcionários, como
um grupo, seria de difícil avaliação.84 O trabalho de Carvalho é próximo ao de Holanda, na
medida em que separa a elite política das elites regionais e locais, deixando pouco espaço para
que se pense a participação das instituições municipais na administração imperial ao longo do
século XIX, assim como Holanda o faz para o imediato pós-independência.
A segunda vertente pode ser representada pelo estudo de Richard Graham, que ao trata
da relação dos proprietários com o governo central, afirma que na primeira metade do século
XIX, aqueles escolhem o aparato governamental como instrumento de exercício de poder, e
ocupam os cargos deste, criando instituições de controle úteis na contenção da desordem
social. Graham, ao abordar a situação política após o Ato Adicional de 1834, caracterizado
como um recuo do liberalismo, nos informa o grau de centralização política dele decorrente.
As Assembléias Provinciais tinham o poder de eleger os vice-presidentes províncias, sendo os
presidentes nomeados centralmente, o poder de vetar as medidas das câmaras municipais,
assim como tinha o poder de nomear executivos municipais. Apesar deste Ato ter sido
82 HOLANDA, S. B. de. A herança colonial – sua desagregação. In:_______ (dir.) História geral da civilização brasileira. O Brasil monárquico. Tomo II. 1º volume: O processo de emancipação. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970. p. 24. 83 HOLANDA, S. B. de. Op. cit. p. 25.
31
considerado uma medida descentralizadora, Graham afirma que no todo tendeu a reduzir a
verdadeira autonomia local, embora não tenha levado à centralização no Rio de Janeiro85. A
centralização se consolidaria até 1850, quando como conseqüência do aparato do sistema
político centralizado e estável, criado pelos homens de posses para resolver suas diferenças
mas garantindo a ordem, os detentores do poder começaram a nomear legalmente uma lista
imensa de funcionários por todo o Brasil, transformando, pelo apadrinhamento, a capital em
um centro nacional86.
O que percebemos nesta abordagem de Graham da política brasileira no século XIX é
o fato desta estar se voltando para estratégias de poder do alto escalão. As redes clientelares
locais entrariam em cena somente para fortalecer a posição da “elite política” de Carvalho,
através do apadrinhamento. No entanto o que percebemos em Campo Largo é um
enraizamento local da administração municipal, representada pelo juízo, mesmo sendo
nomeado pelo presidente de província, que por sua vez era nomeado pelo Rio de Janeiro,
centro do poder político nacional.
Estas duas interpretações foram abordadas com o intuito de entender o terreno no qual
se inseria o juízo de órfãos na segunda metade do século XIX. Apesar da ênfase dada pelos
autores à centralização do poder na Corte, podemos perceber a partir do inventário citado
acima e das dívidas dos pobres de Campo Largo, que as redes de poder ao nível mais local,
que era o município, continuaram a existir de alguma forma neste período, e que as clientelas
locais ainda vigoravam. Um fragmento desta rede pode ser captado a partir da relação do juiz
de órfãos com seus tutelados.
Este, mesmo nomeado pelo poder central lança mão de estratégias a fim de criar uma
rede clientelar local, a partir da concessão de créditos. Esta concessão pode ser encarada como
um elemento instituidor de uma “economia moral do dom”, assim como a concessão de
honras e privilégios pelo rei o era no Antigo Regime87, segundo a qual os indivíduos
beneficiados passavam a estar ligados a uma rede assimétrica de troca de favores e serviços.
A partir da criação desta rede o juiz de órfãos estaria trilhando um caminho em direção a uma
“preponderância política, econômica e simbólica”, que segundo Antônio Manuel Hespanha,
84 CARVALHO, J. M. de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.p. 56 – 58. 85 GRAHAM, R. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997. p. 73 – 74. 86 GRAHAM, R. p. 82. 87 Sobre a economia moral do dom no Antigo Regime, XAVIER & HESPANHA. As redes clientelares. In: HESPANHA, A. M. (coord.) História de Portugal. Vol. 4. Lisboa: Ed. Estampa, 1993.
32
também autor do conceito de economia moral do dom para o Antigo Regime, são as
motivações subjacentes ao comportamento dos indivíduos.
A partir da abordagem de algumas questões correntes na historiografia, pudemos
perceber como as relações de dominação estavam se rearranjando em um período da história
do Brasil marcado pela crise do cativeiro. Junto com ele, outros fatores como a lei de terras de
1850 e a centralização política da década de 1830, formam o pano de fundo para o palco onde
se movimentarão os sujeitos que a partir de uma lógica própria, farão seus arranjos,
estratégias, para garantir sua posição e seus interesses em meio ao universo normativo no qual
estão inseridos, e do qual não podem fugir completamente. O caso do juiz de órfãos de
Campo Largo é representativo deste movimento, uma vez que apesar das decisões e
nomeações para cargos políticos estarem centralizadas na capital do Império, o juiz ao que
parece procurou inserir-se em uma rede de poder local, a fim de garantir sua posição
privilegiada.
Ao lado desta questão da formação de clientela local, o discurso do juiz de órfãos
parece ir ao encontro das políticas públicas destinadas aos órfãos carentes da Província do
Paraná durante a década de 1870. Alguns ofícios deste período são indicativos das ações que
estavam se dando nesta direção. São três ofícios enviados por juízes de órfãos ao presidente
da Província, sendo um de Ponta Grossa, um de Campo Largo, e o terceiro de Palmeira. O
primeiro ofício, de 8 de fevereiro de 1870, é um comunicado encaminhado ao Presidente da
Província pelo juiz de órfãos de Ponta Grossa, no qual este confirma o recebimento de uma
circular enviada pelo presidente em janeiro daquele ano recomendando o “alistamento dos
órfãos sem recursos à Companhia de Aprendizes de Marinheiros”. O juiz termina o
documento afirmando que irá cumprir a ordem.88 O segundo ofício encontrado tem o mesmo
conteúdo do primeiro, é também uma resposta do juiz de órfãos de uma cidade ao presidente
da Província referente ao envio de menores à Companhia de Aprendizes Marinheiros, o
documento data de maio de 1875 e tem como remetente o juiz de órfãos de Campo Largo,
neste ofício temos a informação de que a Companhia fica em Paranaguá.89 O último ofício,
também de maio de 1875, apesar de se referir à Companhia e ter como remetente um juiz de
órfãos, o de Palmeira, não faz menção direta ao envio de órfãos pelo juiz, mas ao “emprego
88 Arquivo Público do Paraná. Ofícios. 1870, vol. 004, pág. 71. 89 Arquivo Público do Paraná. Ofícios. 1875, vol. 008, pág. 24.
33
dos meios legais para que a Companhia de Aprendizes de Marinheiros atinja seu estado
completo”.90
A partir destes ofícios temos a indicação de que o Estado estava cada vez mais
interferindo no destino dos menos favorecidos, neste caso os órfãos. Estas iniciativas vão ao
encontro daquelas mudanças que estão ocorrendo na segunda metade do XIX, mais
precisamente as derivadas da crise do cativeiro. Durante a vigência da escravidão o trabalho
para outrem estava fortemente relacionado à experiência do cativeiro, isso não quer dizer que
homens livres não trabalhassem para outros, mas esta prestação de serviço, assalariado, era
essencialmente marcada pela transitoriedade e exercida por indivíduos recém chegados à
região ou por lavradores em situação de dificuldade, como afirma Mattos91. A formulação de
políticas que visavam o aproveitamento da mão de obra do trabalhador nacional teve espaço
nos debates em torno da transição do trabalho escravo para o livre na segunda metade do XIX.
Denise Moura, aponta que a lei Euzébio de Queiroz de 1850, proibindo o tráfico atlântico de
africanos, foi o sinal de alerta para os senhores de escravos e elite dirigente sobre a
necessidade de ação mais efetiva e precisa no encaminhamento do problema da transição para
o trabalho livre. A elite cafeeira teria assumido um compromisso transitório, sendo uma das
tarefas introduzir um culto à ética do trabalho no país, a fim de fazer com que o trabalho
deixasse de ser aviltante da condição humana, e desonroso aos que o exercessem. A
valorização do trabalho para os pobres pretendia utilizar sua força de trabalho, canalizando-a
para os interesses agrários e para conter o potencial risco de criminalidade e anarquia que se
acreditava que a camada popular contivesse.92 Os senhores de terras se mobilizaram frente ao
problema dos braços para a lavoura, por meio de um compromisso político, com vistas a
apaziguar os efeitos da transição do escravismo para o trabalho livre. Para isso, utilizaram as
Assembléias Legislativas, os editoriais de jornais, os teatros e reuniões particulares para
discutir como resolver o problema da abolição, o que fazer com os livres pobres, os libertos,
os ingênuos e órfãos, como promover a formação de uma ética do trabalho que respondesse
aos interesses dos cafeicultores do sudeste e suas lavouras. As elites se envolveram nestes
debates como estratégia do compromisso transitório que assumiam, como uma maneira de
protelar e amaciar os quadros de incerteza, dar tempo para que novas condições se
estabelecessem quando já não ameaçassem suas posições, privilégios e poderes há muito
90 Arquivo Público do Paraná. Ofícios. 1875, vol. 008, pág. 22. 91 MATTOS. Das cores... p. 40.
34
enraizados. A idéia da “educação para o trabalho”, discutida nestes anos pelas pessoas ligadas
ao mundo cafeeiro de então foi um dos pilares do compromisso estabelecido, que pretendia
reajustar noções de trabalho existentes às exigências do tempo, de modo que quando a
abolição fosse inevitável, os ritmos de trabalho nas lavouras cafeeiras pudesse se manter.
No entanto, nossa pesquisa não trata de uma região cafeeira agroexportadora, pelo
contrário, a província do Paraná, como já mencionamos, é caracterizada pela produção para o
mercado interno, a coleta de erva mate e a pecuária, então como explicar a preocupação com
os órfãos pobres? A pesquisa em desenvolvimento de Heloísa Maria Teixeira93 pode nos dar
indicações do interesse pelos órfãos despossuídos. Em seu estudo sobre o trabalho infantil em
Mariana na segunda metade do século XIX, parte do princípio de que estando a maioria das
crianças na pobreza, entravam muito cedo no mundo trabalho, seja ajudando sua família ou
trabalhando para outros, também a orfandade é tida como um elemento que impulsionava as
crianças pobres ao trabalho94. Sendo assim, a partir de suas fontes – processos de tutela,
criminais e o recenseamento de 1872 – a autora lança algumas questões que nos ajudam a
compreender o interesse dos estratos superiores da sociedade em relação aos órfãos.
Analisando os processos de tutela referentes a crianças pobres, percebe que a maioria dos
tutelados era do sexo masculino e tinha entre 6 e 14 anos, quanto à filiação percebe que a
maioria das crianças a tinha descrita, no entanto a existência destas informações nos processos
não significa que não viviam na orfandade. Outro dado importante presente nos processos é o
de que as crianças pobres não precisavam ser necessariamente órfãs para ter sua tutela
requerida. A dificuldade dos pais em prover a família era um dos motivos que poderiam fazer
com que uma criança tivesse sua tutela concedida a quem a tivesse requerido. Nos processos,
a autora verifica que este motivo foi muito utilizado pelos indivíduos com maiores posses
para conseguir a tutela de uma criança, seguido da afirmação de que melhores condições de
vida seriam dadas a ela. Para além da suposta bondade daqueles que procuravam o juiz de
órfãos para requerer a tutela de crianças pobres, Teixeira chama a atenção para o fato de que a
mão de obra infantil era empregada em serviços domésticos, sendo assim, ter a tutela de uma
criança era a certeza de poder dispor de sua mão de obra, uma vez que não havia
impedimentos legais quanto a isso.
92 MOURA. Denise A. S. de. Café e educação no século XIX. Cadernos CEDES, ano XIX, n.51, 200. p. 29 – 49. p. 34. 93 TEIXEIRA, Heloísa. M. A labuta sem ciranda: crianças pobres e trabalho em Mariana (1850 – 1900). ABPHE. Conservatória, 2005. 94 TEIXEIRA. Ibid., p. 3.
35
A partir das constatações de Teixeira, a notícia do cadastro dos órfãos de Campo
Largo também aparece como uma espécie de “edital”, informando a disponibilidade de uma
mão de obra barata, uma vez que o tutor deveria somente oferecer educação, vestuário,
alimentação, e um pequeno salário a seu tutelado, mas somente quando este chegasse aos 14
anos de idade.
36
Capítulo III – Os negócios da vida
Como já mencionamos acima, o século XIX foi marcado por transformações em
diversos setores da sociedade, como o político e o econômico. Tais transformações atingiram
o modo de vida das pessoas de várias formas, a família construída sobre novas bases que não
a econômica pode ser um exemplo. No entanto as conseqüências destas transformações que
interessam mais de perto a esta pesquisa são aquelas ligadas à intensificação da estratificação
social e diferenciação nas relações entre os estratos sociais dela decorrente. Vimos no capítulo
anterior uma nova forma de relação entre a administração pública e os herdeiros pobres, no
caso do juiz de órfãos com os órfãos pobres, quando a partir de seu discurso percebemos nas
entrelinhas o anúncio de uma capacidade de arrebanhar mão de obra entre a população livre,
questão impensável antes de 1850, quando o poder sobre a força de trabalho era exercido
somente sobre a população escrava. Neste capítulo veremos uma forma de relação entre os
estratos sociais a partir da concessão de crédito, semelhante àquela estabelecida entre o juiz de
órfãos e seus credores.
Olhando para os inventários, recortando o menor de cada ano e agrupando-os por
biênios, temos que as dívidas passivas existem em 5 dos 7 biênios, apesar de sua participação
nas fortunas ser muito oscilante. Comparando as dívidas passivas dos pobres com as dos
escravistas, temos que em todos os biênios parte da fortuna destes está comprometida com as
dívidas passivas, mas estas nunca ultrapassam 50% do valor de seus ativos, ao contrário do
que ocorre com dois dos inventariados mais pobres.
Participação (%) das dívidas passivas no menor inventário e nos inventários de escravistas por
biênios em Campo Largo (1874 – 1885)
Biênios Escravistas Pobres
1874-5 5,3 12,9
1876-7 10,0 0,0
1878-9 46,4 143,6
1880-1 22,7 0,0
1882-3 13,0 2,7
1884-5 0,6 70,3
Nos autos de falência do negociante José Ferreira Bello temos a lista de seus
devedores, composta por 153 nomes, dentre eles há 11 escravos, contendo ao lado de seu
nome e condição o nome de seu senhor, 1 camarada e 1 sapateiro. Destas dívidas, 8,5% (13)
têm valor até 1.000 réis, 60,7% (93) estão entre 1.000 e 11.000 réis, 21,6% (33) estão entre
11.001 e 100.000 réis, apenas 1 é superior a 200.000 e 9,1% (14) estão ilegíveis. Comparando
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o valor destas dívidas com o que o negociante falido, José Ferreira Bello, tinha no estoque de
sua loja podemos ter uma idéia do que estes devedores, possivelmente lavradores ou como
dito acima, escravos e camaradas, ou ainda artesãos como o sapateiro, adquiriam no mercado
local.
O estoque da loja de Bello é composto por variados itens, entre eles, roupas prontas e
fazendas, calçados, panelas e caçarolas de ferro, chaleiras de ferro, balanças, prensa para
copiar cartas, enxadas, chumbo de munição, pregos, medidas para secos, medidas para
líquidos, funis, garrafas vazias, fechaduras de aço, fechaduras para gavetas e para alcova,
cadeados, pares de dobradiça para porta, parafusos de latão e de ferro, pares de estribo de
metal, colheres de pedreiro, facas e garfos com cabo de osso, garfos de prata inglesa, colheres
de metal, colheres de chá, facas para sapateiro, facas com cabo de jacarandá, canivetes, fuzil,
pedras de fuzil, isqueiros, corda de linho, vassoura de piaçaba, cinzeiros, colheres de ferro
para sopa, maços de taxas americanas, ferros de engomar, “brochas para cavar”, “brochas
francesas para pintor”, saca-rolhas, “fio de Hamburgo”, fio de sapateiro, “póz de sapateiro”,
lápis de cor, lápis de Fabér, vidros de magnésia, vidros de “Rhuibarbo”, maços de chocolate
de primeira qualidade, caixas de goma de engomar, maços de palitos para dentes, caixas de
mercúrio, 4 livros em branco – dois com 100 folhas e dois com 50, 31 livros escolares para
instrução primária, quilos de anil, resma de papel lixa americana, torneiras, tesouras de aço, 5
pares de sapatos – diversos modelos e tamanhos, peças de isca para isqueiro, vidros de pílulas
de [il.], vido de “póz de juanne”, fitas, rendas venezianas, renda inglesa, entremeios, fitas de
cetim, papel e envelopes, sal-amargo, semente de linhaça, garrafinhas de óleo de rícino,
abotoaduras guarnição para camisas ordinárias, vidros de “pílulas catharticas de chyer”,
agulhas, agulhas de crochê, baralhos de cartas sortidos, pacote de “torcida” para lampião,
cadarço de diferentes qualidades, canetas com cabo de pau, penas, fivelas para calças,
grampos, dedais, alfinetes, fivela e colchetes portugueses, pentes, espelhos, perfumes, escovas
de dentes, retrós, linhas cruas, tintas para pintar, medicamento, graxa para sapato, pares de
meias para menino, carteiras de cigarro de [il.], latas de sardinha em azeite, latas de sardinha
em tomate, lata de manteiga, lata de goiabada, lata de farinha láctea, garrafas de “água Seltz”,
pacotes de maisena, bacias de louça pintada, bacias de louça branca, ourinol sem tampa,
pratos brancos fundos, tigelas de louça pintada, bules pintados, canecas de louça brancas e
pintadas, cânfora, copos pequenos, pratos, garrafas vazias de vários tamanhos e qualidades,
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pimenta do reino, chaminés de vidro para lampião, lampião de meia, cera em velas, caixa para
guardar cera, uma escada de mão.95
Todos estes objetos são indicativos do que os habitantes do município de Campo
Largo não produziam, e conseqüentemente iam buscar no comércio local. A partir da lista dos
produtos podemos observar que não há menção a produtos perecíveis como milho, e outros
alimentos, pelo contrário, encontramos menção a alimentos em conserva, como sardinha, e
goiabada. Desta ausência podemos concluir que a maioria da população do município de
Campo Largo produzia para sua subsistência. Esta produção garantia uma certa autonomia
desta população em relação ao mercado local, e ao mesmo tempo a existência da venda de
José Ferreira Bello é indicativa de que esta população também estava inserida neste mercado,
a lista dos devedores de Bello confirma esta inserção.
O caso do pequeno negociante falido José Ferreira Bello, também nos coloca diante de
uma situação instituidora de uma economia moral do dom, uma vez que estava envolvido em
uma cadeia de endividamento tanto como credor da população local que consumia em sua
loja, quanto como devedor dos seus fornecedores de outras partes da Província e do Império.
Um de seus fornecedores era a casa comercial Guimarães Irmão & Cia da cidade do
Rio de Janeiro, à qual devia 719.300 réis, proveniente do fornecimento de gêneros para o seu
negócio. Esta relação de um pequeno negociante situado em um município extremamente
periférico e pobre com uma casa comercial da Corte, nos remete ao estudo de Fragoso e
Florentino sobre o funcionamento da economia colonial. Neste estudo os autores constatam a
existência de uma cadeia de adiantamento/endividamento como a base do funcionamento da
economia colonial, envolvendo desde o topo da hierarquia fluminense até os agentes
menores.96 A cadeia de endividamentos estava centrada na praça mercantil do Rio de Janeiro,
estendendo-se a partir dela a outras regiões e países97. A partir desta cadeia, os negociantes
fluminenses se apropriariam de parte dos excedentes gerados internamente e o utilizariam
para reproduzir uma economia e sociedade excludentes baseadas na estrutura aristocrática do
Antigo Regime Português, esta reprodução se faria a partir do investimento em terras, homens
e sobrados, atividades de cunho senhorial, atitude que esterilizava parte do capital obtido no
comércio, mas necessária para a inserção no seleto grupo da aristocracia colonial98. O
negociante falido José Ferreira Bello está na extremidade inferior desta cadeia, a partir dele os
95 Cartório da vara cível de Campo Largo. Autos de falência de José Ferreira Bello. 1886. folhas 47 a 60. 96 FRAGOSO, J. & FLORENTINO, M. O arcaísmo como projeto... p. 90. 97 Ibid., p. 91.
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negociantes do Rio de Janeiro ligam-se a Campo Largo e têm acesso ao excedente da
produção dos pequenos lavradores da região, isso é possível pois Ferreira Bello exerce a nível
local aquilo que os grandes comerciantes do Rio de janeiro fazem em âmbito colonial, ou seja,
fornece crédito aos habitantes da região, como podemos ver na lista de devedores da sua loja,
e recebe como pagamento provavelmente os excedentes produzidos pela população local,
especialmente da parcela mais pobre, e é com o rendimento destes que salda suas dívidas com
seus fornecedores. Apesar de não haver, como dito acima, entre os produtos encontrados na
loja de Bello alimentos como milho ou outros grãos, deduzimos que o pagamento era feito
desta maneira, sobretudo pelos pobres, pelo fato de não ter sido encontrado dinheiro entre os
bens dos inventariados mais pobres de cada ano, e entre os três menores inventariados de cada
ano foram encontradas somente duas menções. Lembrando que estes inventariados mais
pobres são os mais bem sucedidos entre os pobres, uma vez que chegaram a ser inventariados,
podemos inferir que a circulação monetária era quase inexistente entre este estrato da
população, e que sua forma de inserção no mercado se fazia por meio da troca. Esta afirmação
vai ao encontro da definição de Mattos da pobreza agrícola, mencionada acima, como aquela
parcela da população que apesar de produzir para sua subsistência não deixava de estar
inserida no mercado, e que esta inserção se dava pela troca de seus excedentes no mercado
local, a fim de obter o que não produziam.
Sendo assim, este pequeno negociante ao conceder crédito aos habitantes da região
está formando sua própria rede de endividamentos a nível micro, que faz parte de uma rede de
endividamentos macro, e sua rede clientelar, no sentido que Hespanha dá ao termo.
Considerando a concessão de crédito uma “dádiva”, no sentido maussiano do termo, podemos
afirmar que o negociante institui um “contrato” com seus devedores que engloba outras
dimensões além da econômica. Seguindo a tese de Mauss, explicada por Lanna, de que a vida
social é constituída por um constante dar e receber, sendo ambas atitudes obrigatórias99, ao
dar o crédito o negociante cria a obrigação da retribuição, que além de ser feita na forma de
pagamento em dinheiro ou gêneros alimentícios, pode incluir também a prestação de favores e
serviços.
98 Ibid., p. 14. 99 LANNA, M. Nota sobre Marcel Mauss e o Ensaio Sobre a Dádiva. Revista Sociologia e Política, Curitiba, n. 14, p. 173 – 194, jun. 2000. p. 175.
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Considerações Finais
Esta pesquisa buscou lançar luz sobre algumas formas de relação entre os estratos
superiores e inferiores da sociedade em Campo Largo na segunda metade do século XIX,
pretendendo com isto, contribuir para o conhecimento das regiões periféricas localizadas ao
sul do Império do Brasil. As relações de autonomia e subordinação da pobreza rural da região
em relação à administração municipal e aos negociantes forma privilegiadas pelo estudo.
Em relação à autonomia da pobreza agrícola de Campo Largo, ela foi observada a
partir da posse da terra, presente em todos os inventários do mais pobre de cada ano, e da
produção para a subsistência, uma vez que, segundo o estoque da loja do comerciante falido
José Ferreira Bello, a população da região não adquiria alimentos no mercado, já que a
menção a alimentos na lista de produtos da loja é ínfima se comparada aos objetos de uso
pessoal e doméstico como talheres, panelas e fazendas, e não se refere a alimentos como
cereais e grãos, mas a conservas. Desta ausência podemos concluir que a maioria da
população do município de Campo Largo produzia para sua subsistência, garantindo uma
certa autonomia em relação ao mercado local. Quanto à subordinação, pudemos encontra-la
na relação do juiz de órfão e da presidência da Província com os órfãos pobres, e na do
negociante com seus devedores.
Para finalizar, é preciso ressaltar que autonomia e subordinação não se excluem, uma
vez que, ao mesmo tempo em que o homem livre pobre detém a posse da terra, está envolvido
em redes de endividamento, captadas por nós partir das dívidas passivas dos inventariados
pobres e da lista de devedores da loja de Ferreira Bello, que o envolve em relações
assimétricas de troca de favores e serviços. Bem como a administração local, no caso o juiz de
órfãos, apesar de criar estratégias para garantir sua preponderância política, econômica e
simbólica sobre a população local, não deixa de estar subordinada ao poder central. Sendo
assim, deve-se ressaltar que é na interação entre estes dois pólos que se desenvolvem as
relações entre os grupos abordados na pesquisa.
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