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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
Marcos Eduardo Melo dos Santos
Que a servido pese sobre os homens!
Traduo e interpretao de xodo 5,1-6,1
MESTRADO EM TEOLOGIA
SO PAULO
2015
Marcos Eduardo Melo dos Santos
Que a servido pese sobre os homens!
Traduo e interpretao de xodo 5,1-6,1
MESTRADO EM TEOLOGIA
Dissertao apresentada Banca
Examminadora da Pontifcia Universidade
Catlica de So Paulo, como exigncia
parcial, para a obteno do ttulo de
MESTRE em Teologia Bblica, sob a
orientao do Prof. Dr. Matthias Grenzer.
SO PAULO
2015
Banca examinadora
________________________________
________________________________
________________________________
AGRADECIMENTOS
A Deus pelo dom da vida e pela graa inefvel de am-lo e conhec-lo.
Maria, me de Deus e nossa.
Aos meus pais, Emanuel e Luiza, e aos meus irmos, Emanuel, Luiz e Hugo.
Arquidiocese de So Paulo, na pessoa do Arcebispo Dom Odilo Pedro
Scherer, e Adveniat, os quais proporcionaram a bolsa de estudos a fim de que essa
pesquisa fosse realizada.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Matthias Grenzer, que aceitou com simplicidade,
competncia e dedicao acompanhar-me nessa pesquisa. Meu respeito e admirao a
quem faz da Escritura sua alegria de viver.
Ao corpo docente da Faculdade de Teologia da Pontifcia Universidade Catlica
de So Paulo, que com muito esmero, excelncia e paternal solicitude me
acompanharam nessa etapa de formao teolgica, especialmente ao Pe. Boris Agustn
Nef Ulloa, Coordenador da Ps-Graduao, ao Pe. Gilvan Leite, ao Pe. Jos Bizon, ao
Pe. Pedro Iwashita, ao Pe. Valeriano dos Santos Costa, Profa. Maria Freire da Silva e
ao Prof. Alex Villas Boas.
Ao Cn. Jos Adriano, meu inesquecvel formador, que muito me incentivou no
empreendimento desta pesquisa.
Ao Cn. Celso Pedro, exegeta e amigo, cujos conselhos sempre me
acompanharo ao longo de minha vida.
s colegas do grupo de pesquisa Traduo e Interpretao do Antigo
Testamento (TIAT), Profa. Fabiana de Sousa e Profa. Susana Aparecida da Silva.
Rita Myagui, secretria zelosa, que por sua dedicao e competncia no se
pode deixar de demonstrar gratido.
Dona Sarah, amiga e mestra incansvel, que me auxiliou na redao e na
correo gramatical e ortogrfica.
Aos filhos de Israel, cujo sofrimento ao longo da Histria comoveu o corao do
Deus que os libertou.
Ao povo pobre e oprimido de todos os tempos cujo clamor, como outro Antigo
Israel, sobe aos cus e clama por libertao.
Na Sagrada Escritura [...] manifesta-se a admirvel
condescendncia da eterna sabedoria, para
conhecermos a inefvel benignidade de Deus [...].
As palavras de Deus, com efeito, expressas por
lnguas humanas, tornaram-se intimamente
semelhantes linguagem humana, como outrora o
Verbo do eterno Pai se assemelhou aos homens
tomando a carne da fraqueza humana (CONCLIO
VATICANO II. Constituio Dogmtica Dei Verbum
sobre a Revelao divina. n. 13).
RESUMO
A percope Ex 5,1,-6,1 contempla o primeiro encontro de Moiss e Aaro com o
fara egpcio. Os irmos profetas so configurados como representantes de Deus e do
povo hebreu e negociam com o tirano a liberdade. A narrativa insere-se na parte do livro
do xodo que relata a situao opressiva pela qual passava o povo de Israel no Egito. A
presente dissertao visa estabelecer uma anlise exegtica do texto com base nos
elementos bibliogrficos que favoream a compreenso das particularidades
lingusticas, estilsticas e histricas presentes na narrativa com o objetivo de obter
concluses do ponto de vista teolgico e tico. A pesquisa apresenta-se como uma das
produes acadmicas do grupo de pesquisa Traduo e Interpretao do Antigo
Testamento (TIAT).
Palavras-chave: Bblia, Moiss, fara, servido.
ABSTRACT
The pericope Ex 5,1-6,1 contemplates the first meeting of Moses and Aaron with the
Egyptian pharaoh. The brothers are configured as representants of God and the Jewish
people to negotiate the freedom with the tyrant. The narrative is part of the book of
Exodus which reports that the oppressive situation in which passed the people of Israel
in Egypt. This work aims to establish an exegetical analysis of the text with basis of
bibliographic elements that promote the understanding of linguistics, stylistic and
historical particulars present in the narrative in order to obtain conclusions of the
theological and ethical point of view. The research presents itself as one of the academic
productions of the research group Traduo e Interpretao do Antigo Testamento
(TIAT).
Keywords: Bible, Moses, Pharaoh, Serfdom.
LISTA DE SIGLAS E ABREVIAES
Ab Abdias
Am Ams
BHS Biblia Hebraica Stuttgartensia, ed. K. Elliger W. Rudolph,
Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1997.
1Cr Primeiro livro das Crnicas
2Cr Segundo livro das Crnicas
Ct Cntico dos Cnticos
Dn Daniel
Dt Deuteronmio ed. Editor(es)
Esd Esdras
Ex xodo
Ez Ezequiel
Gn Gnesis
Hab Habacuc
Is Isaas
Jl Joel
Jn Jonas
J Livro de J
Jr Jeremias
Js Josu
Jz Juzes
Lm Lamentaes
Lv Levtico
LXX Septuaginta
Ml Malaquias
Mq Miquias
Na Naum
Ne Neemias
Nm Nmeros
Os Osias
P Tradio sacerdotal
p. pgina(s)
Pr Provrbio
1Rs Primeiro livro dos Reis
2Rs Segundo livro dos Reis
Rt Rute
Sf Sofonias
Sl Salmo
1Sm Primeiro livro de Samuel
2Sm Segundo livro de Samuel
v. / vv. Versculo / versculos
vol. volume
Zc Zacarias
SUMRIO
INTRODUO ................................................................................................................ 1
CAPTULO 1 ENCONTRO DE LIDERANAS (vv. 1-5) .......................................... 4
1.1 Texto hebraico e traduo portuguesa ........................................................................ 4
1.2 Crtica textual ............................................................................................................. 5
1.3 Estrutura literria ........................................................................................................ 8
1.3.1 Estrutura dialogal da narrativa ................................................................................. 8
1.3.2 Delimitaes dos episdios ..................................................................................... 9
1.3.3 Esquema concntrico ............................................................................................. 11
1.3.4 Repeties e paralelismos em Ex 5,1-6,1 .............................................................. 12
1.3.5 Repeties em Ex 5,1-5 ......................................................................................... 13
1.3.6 Paralelismos sinonmicos e antitticos em Ex 5,1-5 ............................................. 15
1.3.7 Anlise da caracterizao das personagens ........................................................... 16
1.4 Observaes histrico-teolgicas ............................................................................. 18
1.4.1 Moiss, representante de Deus e do povo ............................................................. 18
1.4.2. Aaro .................................................................................................................... 20
1.4.3 Fara, o vilo ......................................................................................................... 21
1.4.4 Deus, a discreta personagem principal .................................................................. 23
1.5. Consideraes conclusivas do captulo ................................................................... 27
CAPTULO 2 O DECRETO DO FARA (vv. 6-9) ................................................... 28
2.1 Texto hebraico e traduo portuguesa ...................................................................... 28
2.2 Crtica textual ........................................................................................................... 29
2.3 Estrutura literria ...................................................................................................... 32
2.3.1 Delimitao temporal do episdio ......................................................................... 32
2.3.2 Forma do discurso do fara ................................................................................... 32
2.4 Observaes histrico-teolgicas ............................................................................. 35
2.4.1 Naquele dia ............................................................................................................ 35
2.4.2 Os capatazes no meio do povo e os seus inspetores .............................................. 36
2.4.3 Os tijolos ................................................................................................................ 40
2.4.4 A palha ................................................................................................................... 43
2.4.5 O peso da servido ................................................................................................. 44
2.4.6 As palavras falsas .................................................................................................. 46
2.5 Consideraes conclusivas do captulo .................................................................... 49
CAPTULO 3 O POVO SE DISPERSA (vv. 10-14) .................................................. 50
3.1 Texto hebraico e traduo portuguesa ...................................................................... 50
3.2 Crtica textual ........................................................................................................... 51
3.3 Estrutura literria ...................................................................................................... 53
3.4 Observaes histrico-teolgicas ............................................................................. 55
3.4.1 A disperso ............................................................................................................ 55
3.4.2 O povo ................................................................................................................... 56
3.4.3 A terra do Egito ..................................................................................................... 58
3.4.4 A quantia diria em seu dia ................................................................................... 60
3.4.5 Como ontem e anteontem ...................................................................................... 62
3.5 Consideraes conclusivas do captulo .................................................................... 64
CAPTULO 4 OS INSPETORES APELAM AO FARA (vv. 15-19) ...................... 64
4.1 Texto hebraico, segmentao e traduo portuguesa ............................................... 65
4.2 Crtica textual ........................................................................................................... 65
4.3. Estrutura literria ..................................................................................................... 68
4.3.1 Delimitao do episdio ........................................................................................ 68
4.3.2 Segmentao e repeties de palavras ................................................................... 69
4.3.3 O contraste entre os sufixos possessivos meu povo e teus servos ......................... 69
4.4 Observaes histrico-teolgicas ............................................................................. 72
4.4.1 O grito do povo ...................................................................................................... 72
4.4.2 O contraste entre os teus servos e meu povo ......................................................... 73
4.4.3. Teus servos so feridos ......................................................................................... 75
4.4.4 O pecado do povo .................................................................................................. 76
4.4.5 Preguiosos! .......................................................................................................... 77
4.4.6 O verbo andar ........................................................................................................ 78
4.4.7 Sacrificar ao SENHOR ............................................................................................. 81
4.5 Consideraes conclusivas do captulo .................................................................... 86
CAPTULO 5 O MALOGRO DE MOISS E AARO (vv. 20-21) .......................... 88
5.1 Texto hebraico, segmentao e traduo portuguesa ............................................... 88
5.2. Crtica textual .......................................................................................................... 88
5.3. Estrutura literria ..................................................................................................... 89
5.3.1 Delimitao do episdio ........................................................................................ 89
5.3.2 Repeties e paralelismos ...................................................................................... 90
5.3.3 Estilo ...................................................................................................................... 91
5.3.4 Questo diacrnica ................................................................................................ 92
5.4. Observaes histrico-teolgicas ............................................................................ 92
5.4.1 Avanaram sobre Moiss e Aaro ......................................................................... 92
5.4.2 O verbo ver ............................................................................................................ 95
5.4.3 O verbo julgar ....................................................................................................... 97
5.4.4 A espada ................................................................................................................ 99
5.6 Consideraes conclusivas do captulo .................................................................. 102
CAPTULO 6 A ORAO DE MOISS E A RESPOSTA DO SENHOR (vv. 22-23;
6,1) ................................................................................................................................ 103
6.1 Texto hebraico, segmentao e traduo portuguesa ............................................. 103
6.2 Crtica textual ......................................................................................................... 103
6.3 Estrutura literria ................................................................................................. 105
6.3.1 Delimitao do episdio ...................................................................................... 105
6.3.2 Repeties e paralelismos .................................................................................... 106
6.3.3 Consideraes estilstico-literrias ...................................................................... 106
6.4 Observaes histrico-teolgicas ........................................................................... 107
6.4.1 O povo maltratado ............................................................................................ 107
6.4.2 A relao de enviar meu povo e enviar o profeta................................................ 110
6.5.3 Falar em teu nome ............................................................................................... 112
6.5.4 Por uma mo forte ............................................................................................... 113
6.6 Consideraes conclusivas do captulo .................................................................. 114
ATUALIZAES TEOLGICO-PASTORAIS ......................................................... 115
Aspectos literrios ........................................................................................................ 115
Aspectos histricos ....................................................................................................... 117
Aspectos teolgicos ...................................................................................................... 117
Aspectos tico-pastorais ............................................................................................... 118
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... 120
Fontes primrias ........................................................................................................... 120
Concordncias, manuais e dicionrios ......................................................................... 120
Bibliografia auxiliar ...................................................................................................... 121
ANEXO ....................................................................................................................... 126
1
INTRODUO
O trecho de Ex 5,1-6,1 contempla o primeiro encontro de Moiss e Aaro com o
fara egpcio. Os irmos profetas so configurados como representantes de Deus e do
povo hebreu e negociam com o tirano a liberdade, mas o fara responde com medidas
que agravam o peso do servio sobre o povo. A narrativa insere-se na parte do livro do
xodo que relata a situao opressiva pela qual passava o povo de Israel no Egito, a
qual precede as trs grandes partes da biografia dramtica de Israel1: a sada do Egito
(cf. Ex 13,17-15,22); a travessia no deserto (cf. Ex 15,23-Nm 21,20); e a entrada na
terra prometida (cf. Nm 21,21-Js 12).2 A narrativa se alinha s diversas tentativas de
resistncia por parte dos hebreus como o caso da narrativa das parteiras hebrias (cf. Ex
1,15-2,10) e o relato do confronto entre Moiss e o egpcio (cf. Ex 2,11-15c).3
objetivo do presente estudo, entitulado como Que a servido pese sobre os
homens! Traduo e interpretao de xodo 5,1-6,1, afrontar o problema do modo
tenaz com o qual Deus age para libertar seu povo da opresso sofrida nas mos de um
tirano. A fora com a qual Deus luta contra o opressor a fim de proteger seu povo
demonstra a potncia do seu amor para com os oprimidos. O presente estudo visa
compreender e interpretar Ex 5,1-6,1 academicamente, a fim de perceber melhor o
contedo da revelao divina.4 Juntamente com esse processo, revelou sua proposta
tica tambm chamada de moral revelada.5 Derivam tambm do texto princpios
reguladores da vida poltica encarregados de governar a vida religiosa, moral, jurdica
e poltica da nao judaica.6
Do ponto de vista metodolgico, a dissertao objetiva apresentar uma exegese
do texto, que visa compreend-lo em si mesmo, ou seja, as ideias, as intenes, a
forma literria do texto especfico e suas relaes formais com outros textos.7 Como
procedimento inicial, ser apresentada a crtica textual dos manuscritos concernentes ao
1 ZENGER, Erich. Introduo ao Antigo Testamento. Trad. Werner Fuchs. So Paulo: Edies Loyola.
2003. p. 48. 2 Cf. FERNANDES, Leonardo Agostini; GRENZER, Matthias; xodo. 15,22-18,27. Comentrio Bblico
Paulinas. 1 ed. So Paulo: Paulinas, 2011. 3 Cf. GRENZER, Matthias. O projeto do xodo. 2 ed. Ampliada. So Paulo: Paulinas, 2007.
4 PONTIFCIA COMISSO BBLICA. A interpretao da Bblia na Igreja. So Paulo: Paulinas, 2000.
5 PONTIFCIA COMISSO BBLICA. Bblia e Moral. Razes bblicas do agir cristo. So Paulo:
Paulinas, 2000 (n. 20). 6 PONTIFCIA COMISSO BBLICA. O povo judeu e as suas Sagradas Escrituras na Bblia Crist.
So Paulo: Paulinas, 2002. 7 SILVA, Cssio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bblica. 3 ed. So Paulo: Paulinas, 2009. p. 29.
2
texto a fim de estabelec-lo em sua forma provavelmente mais prxima do original.8
Aps a traduo preliminar, ser feita uma delimitao do incio e do fim do texto de
forma que se preserve a unidade da narrativa segundo alguns critrios positivos, tais
como: determinao temporal, espacial, de aes, temas e personagens no-coerentes
com os precedentes; e critrios negativos, ao averiguar se o relato no alcanou o
repouso natural do enredo ou da tenso retrica.9 Como o texto consiste em uma
narrativa, ser usada uma anlise lingustico-estilstica segundo o mtodo dito
narratologia, o qual sublinha no texto os pontos interrogativos, as lacunas, as elipses
que interrompem o fio da narrativa [...] como sinais dirigidos ao leitor,10
a fim de
extrair a riqueza teolgica implcita do texto. O presente estudo contm uma abordagem
no exclusivamente sincrnica dos episdios contidos na narrativa,11
pois a percope
apresenta somente uma questo de diacronia: a meno ao nome de Aaro como
possvel acrscimo da tradio sacerdotal.12
A anlise do texto no poder abstrair do
contexto histrico no qual foi elaborado. Para isso, sero consideradas as pesquisas dos
egiptlogos que podem contribuir para o entendimento da vida cotidiana das
personagens descritas na narrativa, especialmente do fara, dos escravos e dos
funcionrios da administrao egpcia.
A presente dissertao seguir o estilo comentrio, ao considerar cada uma das
unidades literrias da percope segundo a sequncia do texto. Como uma leitura
preliminar permite identificar seis episdios ou unidades literrias, cada episdio da
narrativa contida em Ex 5,1-6,1 ser abordado em um dos seis captulos da presente
dissertao. Cada captulo apresentar primeiramente o texto hebraico correspondente
ao texto massortico estabelecido como verso provavelmente mais original na edio
crtica do Antigo Testamento Biblia Hebraica Stuttgartensia (BHS, daqui em diante). A
segmentao dos versculos se pautar nos diversos sinais de pausa para a leitura vocal
apresentados pelos massoretas e transcritos na BHS. Em seguida, ser proposta uma
traduo portuguesa. Essa traduo, assim como o estudo filolgico decorrente do texto
8 EGGER, Wilhelm. Metodologia do Novo Testamento. Introduo aos mtodos lingsticos e histrico-
crticos. Trad. Johan Konings e Ins Borges. So Paulo: Loyola, 2005. p. 43. 9 SIMIAN-YOFRE, Horcio. Diacronia: os mtodos histrico-crticos. In: Metodologia do Antigo
Testamento. Trad. Rezende da Costa. So Paulo: Loyola, 2000. p. 80. 10
SKA, Jean Louis. Sincronia: a anlise narrativa. In: Metodologia do Antigo Testamento. Trad. Rezende
da Costa. So Paulo: Loyola, 2000. p. 123. 11
Cf. ALTER, Robert. A arte da narrativa bblica. Trad. Vera Pereira. So Paulo: Companhia das Letras,
2008. p. 19. 12
Cf. UTZSCHNEIDER, Helmut; OSWALD, Wolfgang. Exodus 1-15. Internationaler Exgetischer
Kommentar zum Alten Testament (IEKAT). Walter DIETRICH (Org.). BHS: W. Kohlhammer Druckerei
GmbH. 2013.
3
hebraico, ser feito com o auxlio dos estudos sobre a gramtica e a sintaxe hebraica de
Waltke e OConnor13
, Joon e Muraoka14
, Arnold e Choi.15
Destacamos, desde j, que o
tetragrama sagrado YHWH ser aqui traduzido para o portugus como SENHOR e
grafado em VERSALETE. Cada captulo, no subttulo intitulado crtica textual, conter
uma apresentao das variantes textuais apontadas pelo aparato crtico da BHS. Para a
consulta dos textos gregos, latinos e siracos, as variantes textuais sero apresentadas
atravs de tabelas a fim de que o ouvinte-leitor possa confrontar e comparar as
tradues correspondentes s variantes encontradas nos manuscritos antigos. Em
seguida, ser apresentada uma breve anlise da estrutura literria na qual se salientar a
beleza literria da forma final do texto, assim como outras caractersticas, tais como as
delimitaes episdicas, as estruturas concntricas, se houver, e ainda as ocorrncias de
quiasmos e paralelismos, especialmente as repeties de razes e/ou vocbulos. Em
seguida, no subttulo observaes histrico-teolgicas, sero apresentados os frutos das
pesquisas de ndole histrica e teolgica com o objetivo de propor as concluses do
captulo, na qual se salientam os aspectos teolgicos e ticos pertinentes ao texto. Essas
reflexes sero fundamentadas nas concluses decorrentes da anlise literria e das
informaes histrico-arqueolgica. Como ainda hoje quase inexistem artigos
acadmicos especficos sobre Ex 5,1-6,1, sero considerados os comentrios de alguns
pesquisadores que se debruaram especificamente sobre o texto, a fim de efetivarem um
estudo atual e pormenorizado da percope.
13 Cf. WALTKE, Bruce K., OCONNOR, M. Introduo Sintaxe do Hebraico Bblico. Traduo
Fabiano Ferreira, Adelemir Garcia Esteves e Roberto Alves. So Paulo: Cultura Crist, 2006. 14
Cf. JOON, Paul; MURAOKA, Takamitsu. A Grammar of Biblical Hebrew. Subsidia biblica. 14/II.
Roma: Pontifcio Istituto Biblico, 1991. 15
Cf. ARNOLD, Bill T; CHOI, John. A Guide to Biblical Hebrew Syntax. 8 ed. Cambridge: Cambridge
University Press, 2008.
4
CAPTULO 1 ENCONTRO DE LIDERANAS (vv. 1-5)
O primeiro episdio compreendido os vv. 1-5 narra que Moiss e Aaro
vieram (v. 1a) apresentar o pedido dirigido ao fara a fim de que o povo pudesse fazer
uma peregrinao religiosa no deserto (vv. 1e e 3c). Os irmos profetas transmitem a
ordem divina sobre a qual pesa uma punio caso no for obedecida (v. 3de). O fara
responde ao pedido de forma negativa e incisiva (vv. 2.4-5), mesmo aps a insistncia
de Moiss e Aaro (v. 3). O Rei do Egito alega que os dois irmos esto dispersando o
povo dos trabalhos (v. 4c). O episdio faz com que o ouvinte-leitor se faa algumas
perguntas acerca da teologia bblica do profetismo, da relao revelao-histria, do
confronto entre os deveres religiosos e polticos e da prpria dimenso poltica da
religio do Antigo Israel.16
1.1 Texto hebraico e traduo portuguesa
Depois, Moiss e Aaro vieram v. 1a
e disseram ao fara: v. 1b
Assim disse o SENHOR, Deus de Israel: v. 1c
Envia meu povo, v. 1d
para que, no deserto, celebrem a mim! v. 1e
O fara disse: v. 2a
Quem o SENHOR, para que escute sua voz, v. 2b
a fim de enviar Israel? v. 2c
No conheo o SENHOR v. 2d
e tambm no enviarei Israel! v. 2e
Contudo, disseram: v. 3a
16 Embora alguns autores distingam povo hebreu e Israel, atribuindo primeira denominao parte
dos relatos anteriores ao xodo e segunda expresso, aps o xodo. Ex 5,1-6,1 trata do povo de Israel
com as seguintes denominaes: povo (vv. 1d, 4c, 6b, 10a, 10b, 12a, 16d, 22c, 23c e 23d), Israel (vv. 1c,
2c e 2d), hebreus (v. 3b) e filhos de Israel (vv. 14a, 15a e 19b). Nesta dissertao, Israel vem a significar o
povo que, segundo as narrativas bblicas, descende do patriarca Israel e no ao atual Estado de Israel,
embora este assim se autodenomine. Grenzer oberva que o povo de Israel era conhecido pelos
estrangeiros como hebreus (v. 3) embora se nomeassem como filhos de Israel (vv. 14a, 15a e 19b), ou
simplesmente, Israel (vv. 1c, 2c e 2e). Trataremos, portanto, como sinnimos as expresses hebreus,
israelistas, filhos de Israel, Israel e Antigo Israel, pois trata-se do povo herdeiro de uma tradio religiosa
comum que perdura at os nossos dias e que se afirma como descendente dos antigos patriarcas hebreus
(cf. GRENZER, Matthias. O fracasso da poltica de opresso violenta (xodo 1,8-14); cf. GRENZER,
Matthias. Revista Horizonte. Belo Horizonte, v. 12, n. 33, jan./mar. 2014. p.140-163. Do cl de Jac ao
povo de Israel (Ex 1,1-7). Revista de Cultura Teolgica. v. 81. 2013. p. 92.
5
O Deus dos hebreus se encontrou conosco. v. 3b
Queremos, por favor, andar no deserto por um caminho
de trs dias e queremos sacrificar ao SENHOR, nosso
Deus,
v. 3c
a fim de que no avance sobre ns v. 3d
com a peste ou com uma espada. v. 3e
Ento o rei do Egito lhes disse: v. 4a
Por que, Moiss e Aaro, v. 4b
dispersareis o povo de seus trabalhos? Segui com vossas
cargas.
v. 4c
O fara ainda disse: v. 5a
Eis que so muitos agora! O povo da terra! v. 5b
E os fazeis descansar de suas cargas! v. 5c
1.2 Crtica textual
Ao longo do sculo XX, estudiosos da BHS trabalharam em uma das mais
conceituadas edies crticas do texto bblico, a qual ficou conhecida como Biblia
Hebraica Stuttgartensia (BHS). O objetivo dessa edio crtica foi identificar, atravs de
um mtodo pr-determinado, a verso mais prxima do original do texto bblico ao
reconstitu-lo atravs da anlise de suas variantes presentes nos manuscritos antigos.17
Conforme o aparato crtico da BHS h cinco variantes textuais relevantes para
Ex 5,1-5. A primeira, no v. 2b, refere-se supresso na edio crtica de Gottigen18
da
palavra grega correspondente ao tetragrama () e ao acrscimo de palavras junto ao
tetragrama em outros cdices gregos: o cdice Alexandrino acrescenta a palavra ,
enquanto que no Cdice Ambrosiano e em alguns manunscritos l-se .
17 Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bblia Hebraica. 3 ed. So Paulo: Vida Nova, 2005. P.
15. 18
Cf. VERSIO LXX INTERPRETATUM GRAECA. Secundum Septuaginta. Vetus Testamentum
Graecum auctoritate Societatis Litterarum Gottingensis editum 1931; WONNEBERGER, Reinhard.
Understanding BHS A Manual for the Users of Biblia Hebraica Stuttgartensia. 2 ed. Subsidia Biblica 8.
Roma: Pontificium Institutum Biblicum, 1990.
6
Tab. 1.
v. 2b
Texto hebraico
(BHS)
Edio Crtica da
Septuaginta
(Gotinga)
Cdice Ambrosiano
e alguns cdices
Cdice
Alexandrino
Quem o
SENHOR? Quem ? Quem o SENHOR? Quem Deus?
No v. 3b, segundo a verso siraca da Peshita19
ocorre a alterao da palavra
modificada pelo substantivo construto (Deus). Em vez de hebreus, l-se
judeus:
Tab. 2
v. 3b
Texto Hebraico (BHS) Transliterao do siraco para
o alfabeto hebraico
Texto da Peshita com o
alfabeto Siraco20
O Deus dos hebreus se
encontrou conosco
O Deus dos judeus se revelou para ns (Traduo
Traduo J. Etheridge)21
O nome Peshitta deriva do siraco ( ), literalmente traduzida como
verso simples. Foi nomeada dessa forma por Moiss bar Kepha (813-903 d. C.), mas
esta traduo direta do hebreu seria datada provavelmente do sculo II d. C.. O Antigo
Testamento da Peshitta a mais antiga obra da literatura siraca at hoje conservada.22
No v. 3d, em alguns cdices da Septuaginta, qualificado pelo aparato crtico da
BHS como textus graecus originalis, omite-se o tetragrama (SENHOR).
Tab. 3. Texto hebraico (BHS) Septuaginta
19 Cf. CODEX AMBROSIANUS. Translatio syra pescitto Veteris Testamenti: ex codice Ambrosiano sec.
fere VI, photolithographice edita, curante et adnotante. Milan: Edio Antonio Maria Ceriani, 1876. 20
Cf. VERSIO SIRIACA SECUNDUM POLYGLOTTAM LONDINENSE. Vol. I.II.III. London: Edio
Brian Walton, 1654. 21
Cf. THE TARGUM OF ONKELOS ON THE BOOK OF SHEMOTH, OR EXODUS. Trad. J. W.
Etheridge with Minor Updates by Aran Ya'aqub Younan-Levine. 22
Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bblia Hebraica. 3 ed. So Paulo: Vida Nova, 2005.
7
v. 3c
e queremos sacrificar ao SENHOR, nosso
Deus, e sacrifiquemos ao nosso Deus,
Apesar da sacralidade do nome de Deus de Israel, a supresso do tetragrama
sagrado () na verso grega pode ter ocorrido por um lapso do copista ou alternativa
deliberada dos tradutores gregos. Desse modo, em Ex 5,1-5, o tetragrama (), que
traduzimos pela palavra SENHOR, ocorre quatro vezes (vv. 1c, 2b, 2d e 3c), enquanto na
verso grega, ocorre duas vezes (vv. 1c e 2d) e outras trs vezes (vv. 1c, 3b
e 3c).
Tab. 4 - A traduo de e em Ex 5,1-6,1
Septuaginta Septuaginta
v. 1c v. 1c
v. 2b
Edio crtica de Gotinga Suprimido
v. 3b Codex Alexandrino
Codex Ambrosiano e alguns manuscritos
v. 2d
v. 3c
A Septuaginta no distingue entre o tetragrama (vv. 1c, 2b, 2d e 3b) e (vv.
1c e 3b), de modo que traduz , ora como (vv. 1c e 2d), ora como (v.
3c), embora nesse trecho sempre traduza por (vv. 1c e 3b).
Com consequncias mais acentuadas sobre o significado do texto, tem-se no v.
4c, uma variante para o verbo no hiphil imperfeito (dispersareis), cuja raiz
pode significar no hiphil enviar, descabelar ou desprender, pois compartilha o
significado com o substantivo correspondente ao portugus cabeleira. Lisowsky em sua
Konkordanz sugere a traduo como desordenar ou agitar.23
Essa forma verbal no
hiphil ocorre com o mesmo significado uma nica vez na BHS: O SENHOR humilhava
Jud por causa de Acaz, rei de Israel, que tinha soltado os freios em Jud e cometido
graves delitos contra o SENHOR (2Cr 28,19). Entretanto, o texto do Pentateuco
Samaritano24
apresenta a palavra , cuja raiz verbal no hiphil significa separar,
23 Cf. LISOWSKY, Gerhard. Konkordanz zum Hebrishcen Alten Testament. 3 ed. Stuttgart: Deutsche
Bibelgesellschaft, 1993. Voz . p. 1187. 24
Cf. DER HEBRISCHE PENTATEUCH DER SAMARITANER. Edio August von Gall. Berlin:
Tpelmann, 1918.
8
dividir ou dispersar, tal como em outras ocorrncias na literatura bblica (cf. Gn 30,40;
Dt 32,8; 2Rs 2,11; Pr 16,28; 17,9; 18,18; Rt 1,17).
Tab. 5
v. 4c
Texto hebraico (BHS) Pentateuco Samaritano
dispersareis o povo de seus trabalhos? separareis o povo de seus trabalhos?
No v. 5b, em vez de (povo), ocorre a variao no texto do Pentateuco-
Samaritano: (do povo, mais que o povo ou entre o povo).
Tab. 6
v. 5b
Texto hebraico (BHS) Pentateuco Samaritano Septuaginta
Eis que so muitos agora!
O povo da terra!
Eis que so muitos agora
entre o povo da terra!
Eis que o povo agora se
torna numeroso!
Em conformidade com o princpio fundamental da crtica textual, segundo o
qual a verso mais difcil de ser lida seria a forma mais prxima do original, os editores
da BHS apresentaram as duas variaes do texto samaritano no aparato, mas no as
adotaram no texto principal, pois, parece ser uma verso aprimorada a fim de facilitar a
leitura. O texto gramaticamente mais simples e, por vezes, de leitura mais difcil possui
primazia na crtica textual.
1.3 Estrutura literria
1.3.1 Estrutura dialogal da narrativa
Alter, no clssico A arte da narrativa bblica, destaca a funo retrica
significativa do dilogo na potica e na prosa hebraica.25
Em Ex 5,1-6,1, o princpio
apontado pelo exegeta judeu nova-iorquino se confirma. Como as demais narrativas da
BHS as falas ou discursos dos personagens ocupam um papel primordial. A voz do
narrador se limita ao mnimo indispensvel para a compreenso da histria com a
determinao das vozes das personagens e o mnimo de uma sequncia cronolgica. A
raiz verbal (dizer), geralmente introdutria fala das personagens, a palavra mais
25 Cf. ALTER, Robert. A arte da narrativa bblica. Trad. Vera Pereira. So Paulo: Companhia das Letras,
2008. p. 102-103.
9
frequente da percope somando vinte e uma ocorrncias (vv. 1b, 1c, 2a, 3a, 4a, 5a, 6c,
8f, 10b2x
, 10c, 13a, 14c, 15b, 16b, 17a, 17b, 19a, 21a, 22b e 6,1a). Das 335 palavras
contidas em Ex 5,1-6,1, somente 91 so do narrador (27,1% do texto), ou seja, 244
palavras, isto 71% do texto, compem as falas das personagens. O fara a
personagem mais eloquente com 41,8% da percope e 30,4% de participao relativa
nos dilogos. A tabela 7 facilita a visualizao da contagem absoluta de palavras usadas
por cada personagem e sua respectiva participao percentual no total da percope:
Tab. 7 Palavras em Exodo 5,1-6,1 Palavras dos dilogos presentes em Ex 5,1-6,1
Discursos Total
absoluto
Total
relativo Personagens
Total
absoluto
Relativo aos
dilogos
Relativo
ao total
Narrador 91 27,1% fara 102 41,8% 30,4%
Personagens 244 66,8% Moiss 51 22,7% 15,2%
Total 335 100%
Deus 13 5,3% 3,8%
Capatazes e inspetores 78 31,9% 23,2%
Total 244 100% 66,8%
A narrativa seria assim quase como um script de teatro, no qual o narrador
apresenta o mnimo indispensvel para a compreenso dos discursos. Estes, por sua vez,
contm dados suficientes para a delimitao de seis atos ou episdios no interior da
narrativa contida entre os versculos 5,1-6,1.26
1.3.2 Delimitaes dos episdios
Os dilogos esto subdivididos em seis cenas distintas atravs de indicaes
temporais ou sequenciais (vv. 1a e 6a), sada e entrada de personagens ativos nos
dilogos (vv. 6a, 10a, 15a e 22a) ou, por fim, pelo uso de verbos de movimento (vv.
10a, 15a, 20a e 22a).27
Tab. 8 Delimitao dos episdios
Episdios I II III IV V VI
Percopes (5,1-5) (5,6-9) (5,10-14) (5,15-19) (5,20-21) (5,22-6,1)
Personagens
que falam
Moiss
Aaro fara
capatazes
inspetores
inspetores
dos filhos de
inspetores
dos filhos
Moiss
Deus
26 Cf. HOUTMAN, Cornelis. Exodus. Historical Commentary on the Old Testament. Trad. Johan Rebel e
Sierd Woudstra. Vol. 1.Kampen: Kok Publishing House, 1993. p. 459. 27
Cf. BERGANT, Dianne; KARRIS, Robert J. (Org). Introduo, Pentateuco e Profetas anteriores.
Comentrio Bblico. Trad. Barbara Theoto Lambert. So Paulo: Loyola. 1999. p. 97.
10
fara Israel
fara
de Israel
(sujeito
oculto)
Personagens
que apenas
escutam
- capatazes
inspetores povo -
Moiss
Aaro -
Personagens
sobre as
quais se fala
Deus
povo
povo
povo
capatazes
dos filhos de
Israel
povo
Deus
inspetores
dos filhos de
Israel
fara
povo (seus
servos)
fara
povo
Por
expresso
que indica
tempo ou
sequencia
depois
(v. 1a)
naquele dia
(v. 6a) - - - -
Pelo uso de
verbos de
movimento
- - saram
(v. 10a)
vieram
(v. 15a)
avanaram
(v. 20a)
se voltou
(v. 22a)
Assim a primeira cena (vv. 1-5) narra que Moiss e Aaro foram apresentar a
ordem de Deus dirigida ao fara a fim de que o povo pudesse fazer uma peregrinao
religiosa no deserto. A segunda cena (vv. 6-9) mostra o fara transmitindo uma medida
opressiva aos chefes de corveia e aos inspetores do povo. Na terceira cena (vv. 10-14), o
povo obrigado a procurar palha, enquanto os inspetores so espancados, porque o
povo no produz a quantidade de tijolos pr-estabelecida. A quarta cena (vv. 15-19)
mostra o corajoso protesto dos fiscais hebreus diante do fara. A quinta cena (vv. 20-21)
concentra-se no dilogo entre os inspetores e os irmos profetas. Na sexta cena (vv. 22-
6,1), Moiss apela ao SENHOR que responde com a promessa de libertao.28
Ex 5,1 inicia-se com a locuo adverbial (v. 1a), traduzida como e depois
ou em seguida,29
a qual significa um pequeno intervalo de tempo,30
e procura inserir a
28 Cf. BERGANT, Dianne; KARRIS, Robert J. (Org). Introduo, Pentateuco e Profetas anteriores.
Comentrio Bblico. Trad. Barbara Theoto Lambert. So Paulo: Loyola. 1999. p. 97. 29
Cf. SARNA, Nahum M. Exodus Commentary. . The Jewish Publications Society Torah
Commentary. Philadelphia/New York/ Jerusalem: The Jewish Publications Society, 1991. p. 27.
11
narrativa em uma determinada sequncia cronolgica da histria do xodo. O termo
repetido, com a mesma construo, em cinco ocasies no livro do xodo. Contudo, esse
advrbio caracteriza tanto uma nova unidade episdica quanto o contedo do captulo
como uma narrativa.
1.3.3 Esquema concntrico
Os dilogos em Ex 5,1-6,1 seguem um esquema concntrico, o que denota mais
um tpico recurso da potica hebraica nos seis episdios narrados. Comea com a fala
de Deus atravs do anncio dos irmos profetas (vv. 1.3), seguida das primeiras repostas
(vv. 2.4-5) e do monlogo do fara (vv. 6-9). Em seguida entram em cena os capatazes
do povo (v. 6) e sua locuo (vv. 10-13) e os inspetores dos filhos de Israel (vv. 6, 10-
13, 15-16, 19-21), se bem que sua locuo seja interrompida pela volta cena do fara
com mais uma locuo (vv. 17-18). A percope se conclui com o dilogo entre Deus e
Moiss (5,22-6,1).31
Tab. 9 Estrutura concntrica de Ex 5,1-6,1
A vv. 1-5
Discursos diretos entre Deus e o fara com a mediao de Moiss e
Aaro
B vv. 6-9 Discurso direto do fara aos capatazes e inspetores do povo
C vv. 10-14 Discurso direto do fara com a mediao dos inspetores para o povo.
C vv. 15-19 Discursos diretos entre os inspetores do povo e o fara
B vv. 20-21 Discurso direto dos inspetores do povo para Moiss e Aaro
A vv. 22-6,1 Discursos diretos entre Deus e Moiss
Nota-se um detalhe aparentemente paradoxal talvez inserido propositalmente
pelos redatores hebreus. O centro da narrativa ocorre justamente com a expresso o
povo se dispersou ( O povo o centro da narrativa, tanto na temtica quanto na .(
ordem das palavras.
Quanto ao primeiro episdio (vv. 1-5), o esquema narrativo compreende duas
locues de Moiss e Aaro (vv. 1 e 3), sendo que, na segunda, ocorre em forma de
sujeito oculto (v. 3a). O fara possui, porm, trs locues, sendo que na segunda (v.
4a), o sujeito da frase denominado como (rei do Egito). As duas ltimas
30 Cf. KAISER JR, Walter C. Comments on Exodus. The Expositors Bible Commentary with the New
International version. Frank Gaebelein (Org.). Michigan: Zondervan, 1990. p. 336. 31
Cf. FISCHER, Georg; MARKL, Dominik. Das Buch Exodus. BHS: Verlag Katolisches Bibelwerk,
2009. p. 80-81.
12
locues do monarca egpcio no so respondidas pelos profetas ou por qualquer outro
personagem.
Tab. 10 Esquema das locues em Ex 5,1-5
v. 1 Moiss e Aaro
v. 2 fara
v. 3 Sujeito oculto na terceira pessoa do plural (disseram)
v. 4 Rei do Egito
v. 5 fara
1.3.4 Repeties e paralelismos em Ex 5,1-6,1
Como anlise estilstica, Alonso Schkel destaca o papel das repeties ou
outros elementos estilsticos, caractersticos da poesia e da prosa bblica, salientes em
Ex 5,1-6,1.32
As repeties dos substantivos tambm so significativas tanto pelo
significado das palavras, quanto pelo nmero de ocorrncias.33
Esses vocbulos formam
paralelismos que denotam recursos poticos hebraicos usados na prosa, ou seja, o
esquema numrico mencionado por Alonso Schkel (Vide Anexo 1).
Embora a numerologia seja, por vezes, um argumento subjetivado em nossa
cultura ocidental, nos textos bblicos sempre sugerem hipteses plausveis. Assim, pode
ser significativo o fato de que os redatores finais repetiram o tetragrama sagrado por
oito vezes (vv. 1c, 2b, 2d, 3c, 17c, 21b, 22a e 6,1a) e o termo Elohim quatro vezes (vv.
1c, 3b, 3c e 8g), somando doze ocorrncias, sem contar, porm, a expresso (Meu
SENHOR) em v. 22c. Por outro lado, evitar que o fara seja nomeado por doze vezes (vv.
1b, 2a, 5a, 6a, 10c, 14c. 15b, 20c, 21e, 23a e 6,1c), atravs do uso do sinnimo rei do
Egito (v. 4a), pode ser intencional por parte dos redatores finais do texto, que bem
32 Cf. ALONSO SCHKEL, Luis. Comentrios in: Bblia do Peregrino. Livro do xodo. So Paulo:
Paulus, 2002. p. 115. 33
Cf. HOUTMAN, Cornelis. Exodus. Historical Commentary on the Old Testament. Trad. Johan Rebel e
Sierd Woudstra. Vol. 1.Kampen: Kok Publishing House, 1993. p. 457.
13
conheciam o simbolismo da dzia e se mostravam seletivos do seu uso para pessoas ou
coisas que representavam o bem ou a virtude. Destaca-se o uso da palavra recorrente do
vocbulo povo (vv. 1d, 4c, 6b, 10a, 10b, 12a, 16d, 22c, 23c e 23d) e da expresso Israel
(vv. 1c, 2c e 2e) ou filhos de Israel (vv. 14a, 15a e 19b), sinnimos de povo hebreu no
contexto do captulo. Disso pode-se concluir a hiptese do cuidado intencional no
nmero das repeties dos vocbulos na forma final de xodo 5. Nota-se ainda que o
nmero quase idntico de citaes das palavras povo (vv. 1d, 4c, 6b, 10a, 10b, 12a, 16d,
22c, 23c e 23d) e fara (vv. 1b, 2a, 5a, 6a, 10c, 14c. 15b, 20c, 21e, 23a e 6,1c) pode
acentuar os papeis antagnicos de ambas personagens na narrativa: o fara oprime o
povo; e o povo procura libertar-se do julgo do fara.
Alm das expresses repetidas, o trecho apresenta expresses estereotipadas em
paralelo com outras partes do xodo ou da Escritura com significados poticos,
culturais e teolgicos bem determinados e que mereceriam estudos pormenorizados por
parte do pesquisador. Expresses, como, ontem e anteontem, mo forte, meu povo, teus
servos, despedir Israel, peste e espada, so repetidas duas ou at trs vezes na percope
5,1-6,1. Outras, porm, embora ocorram somente uma vez, possuem significativos
paralelos no corpo do livro do xodo (Vide tabela 12).
Destaca-se a meno celebrao ou festa (hag) no deserto e a triplex repetio,
como um bordo, da expresso Andemos, sacrifiquemos ao nosso Deus! (vv. 3c, 8g e
17c). Ao que parece, a expresso, juntamente com Ex 3,18, constitui uma das primeiras
menes necessidade de um sacrifcio ritual institudo pelo Deus Libertador no livro
do xodo.
1.3.5 Repeties em Ex 5,1-5
Dentro do primeiro episdio destaca-se o verbo Piel no infinitivo construto
(enviar, despedir, deixar partir ou enviar), cuja raiz repetida cinco vezes, em Ex 5,1-
6,1. A expresso ocorre em Piel quarenta e quatro vezes no livro do xodo, sempre no
sentido de enviar, libertar, despedir. Traduz-se em Ex 5,1 como deixar partir. A raiz
verbal ocorrer em Qal ainda uma vez, mais precisamente na fala Moiss a Deus (cf. v.
22). No futuro Piel, ocorrer no primeiro colquio entre Moiss e o fara (vv. 1d, 2c,
2e) e na resposta de Deus a Moiss (v. 6,1). A expresso usada no primeiro e no
14
ltimo versculo da percope selecionada (cf. Ex 5,1-6,1). Essa expresso ser recorrente
nas tradies do xodo com diversas menes, especialmente, no relato das pragas.34
No v. 1d usa-se outra expresso de rico significado teolgico: meu povo.
ocorre apenas uma vez na percope estudada. Mas a palavra povo ocorre dez vezes (vv.
1d, 4c, 6b, 10a, 10b, 12a, 16d, 22c, 23c e 23d), algumas das quais sufixadas por
pronomes possessivos: (meu povo) vv. 1d; e .teu povo) no vv. 16d e 23d)
O v. 1e contm o verbo no Qal imperfeito na terceira pessoa do masculino plural
.ocorre quatro vezes no livro do xodo (cf para que celebrem). A raiz verbal)
5,1e; 12.142x
; 23,14). Na BHS ocorre 17 vezes.
Deve-se ainda ressaltar que na locuo de Moiss em Ex 5,3, o profeta usa
palavras idnticas quelas recomendadas por Deus em Ex 3,18.35
Tab. 11 Comparao entre Ex 3,18 e Ex 5,3
Ex 3,18 Ex 5,3
O SENHOR, o Deus dos hebreus, se encontrou
conosco. Deixa-nos, pois, ir por um caminho
de trs dias, no deserto, para oferecer
sacrifcios ao SENHOR, nosso Deus.
O Deus dos hebreus se encontrou conosco.
Queremos, por favor, andar no deserto por um
caminho de trs dias e sacrificar ao SENHOR,
nosso Deus, a fim de que ele no avance sobre
ns com a peste ou com uma espada.
Dentro dessa locuo, tem-se a expressso (sacrificar), cuja raiz est
conjugada em Qal imperfeito na primeira pessoa do plural. Essa raiz verbal ocorre trs
vezes em idntica conjugao na percope em estudo (vv. 3c, 8g e 17c). Essa raiz
verbal, ocorre em Qal dezoito vezes no livro do xodo (cf. 3,18; 5,3.8.17; 8,4.21.222x
.
23.24.25; 13,15; 20,24; 22,19; 23,18; 24,5; 32,8; 34,15). Em Ex 3,18, o uso do verbo
recomendado por Deus na fala de Moiss diante do fara como foi literalmente repetido
em Ex 5,3.
34 UTZSCHNEIDER, Helmut; OSWALD, Wolfgang. Exodus 1-15. Internationaler Exgetischer
Kommentar zum Alten Testament (IEKAT). Walter DIETRICH (Org.). BHS: W. Kohlhammer Druckerei
GmbH. 2013. p. 152. 35
Cf. BARTINA, Sebastin. xodo. Traduccin y comentarios. In: La Sagrada Escritura. Antiguo
Testamento. Pentateuco. Profesores de la Compaa de Jess. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos
(267), 1967. p. 349.
15
Deve-se mencionar a raiz que ocorre em diversos paralelismos em Ex 5,1-6,1
com significados diversos. Tem-se em v. 3e ,peste e uma espada), v. 9)
,palavras falsas) v. 11) ,diminuis coisa alguma) e v. 23) (falar
em teu nome). Por fim, deve-se ressaltar o paralelismo semntico entre as razes verbais
.descansar) que ocorrem respectivamente nos vv) sacrificar) e) ,(celebrar)
1e, 3d e 5c. Elas denotam trs caractersticas importantes do culto na religio do Antigo
Israel: a celebrao, o sacrifcio e o repouso sabatino.
1.3.6 Paralelismos sinonmicos e antitticos em Ex 5,1-5
Logo na primeira locuo de Moiss (v. 1c), usa-se a expresso estereotipada
dos orculos ou discursos profticos: assim disse o SENHOR ( ). Forma tpica
da literatura proftica, a expresso ocorre dez vezes no Pentateuco, todas no livro do
xodo (cf. Ex 4,22; 5,1; 7,17.26; 8,16; 9,1.13; 10,3; 11,4; 32,27) sempre na boca de
Moiss.36
A expresso contrasta com (assim disse o fara) que ocorre na fala
dos capatazes e inspetores no v. 10c e a expresso (disse o fara)
constantemente repetida ao longo de xodo 5 (vv. 2a, 4a, 5a e 6a) o que pode ser
considerado um paralelismo antittico. Alm da inteno de reforar a autoridade
proftica de Moiss seja diante do fara, seja diante dos ouvintes-leitores hebreus, o
recurso serve para acentuar o antagonismo entre os dois adversrios, o Deus dos hebreus
e o deus dos egpcios personificado na pessoa do fara.37
A expresso (conheo) que aparece no v. 2d, cuja raiz verbal seria
(conhecer), ocorre 41 vezes no livro do xodo. Em Qal, ocorre 36 vezes, uma das quais
na percope selecionada, e tem o ignificado de conhecer, entender ou perceber. No
contexto de Ex 5,1-6,1, trata-se da repetio em forma de negativa da pergunta Quem
o SENHOR? (2e). Ambas denotam a mesma ideia: a ignorncia para com o Deus hebreu.
Ao deixar patente a ignorncia do SENHOR, tal como os padres da Igreja e alguns
exegetas comentaram, acentua-se a empfia do fara em relao ao Deus dos hebreus.38
William Propp acredita que a ideia subjacente nessas duas referncias (2b e 2e) insere o
Leitmotif presente nos relatos das pragas, dos quais, como dissemos, xodo 5 se
apresenta como uma introduo. Trata-se do problema teolgico acerca do
36 Cf. CHOURAQUI, Andr. Nomes (xodo). Traduo e comentrios. Trad. Ivan Esperana Rocha e
Paulo Neves. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 77. 37
Cf. FISCHER, Georg; MARKL, Dominik. Das Buch Exodus. BHS: Verlag Katolisches Bibelwerk,
2009. p. 85. 38
Cf. SARNA, Nahum M. Exodus Commentary. . The Jewish Publications Society Torah
Commentary. Philadelphia/New York/ Jerusalem: The Jewish Publications Society, 1991. p. 27.
16
conhecimento e da ignorncia em relao ao SENHOR. Do ponto de vista estilstico,
parecem formar um paralelismo sinonmico.39
Quanto s locues do fara presentes nos vv. 2,4 e 5, destaca-se o estilo
grandioloquente e impregnado de elementos retricos e poticos caractersticos do
hebraico bblico. Nota-se o qudruplo paralelismo nos versculos em 4c e 5c. O
imperativo (Segui com vossas cargas) no v. 4c est em paralelismo
antinttico com a interrogao dispersareis o povo de seus)
trabalhos?) no v. 5c. Os termos so duplicados, sendo que o primeiro e
vocbulo se localiza ao final da orao denotando o uso da figura de linguagem do eco.
Outro elemento que sugere paralelismo a dupla referncia (fara), sendo que
uma vez como rei do Egito). H ainda o paralelismo antittico ao nvel)
semntico entre o imperativo (Segui) e o futuro quereis dispensar). Essas)
repeties, a primeira vista suprfluas, contribuem para a hiptese do qudruplo
paralelismo na locuo do fara entre os vv. 4 e 5.
1.3.7 Anlise da caracterizao das personagens
O sujeito em ambas razes verbais ocorrentes no v.1a, e (vir e dizer) so
exatamente as personagens principais, ou seja, o protoganista Moiss e o coadjuvante
Aaro, que transmitem a mensagem divina. O objeto indireto, no caso, o fara (v. 1b),
engloba o papel do vilo, imprescindvel para a constituio de uma narrativa dramtica.
O gnero dramtico da narrativa acentuado tambm pela estrutura dialogal com seis
ocorrncias do verbo dizer (vv. 1b, 1c, 2a, 3a, 4a, 5a), ocorrente em cada versculo, ou
seja, o episdio se resume a cinco locues entre as personagens. Destarte, j no
primeiro versculo, de modo suscinto e completo, o narrador apresenta os dados bsicos
e imprescindveis para a compreenso da narrativa. O drama tambm est caracterizado
pela meno dos dois oponentes, o heri e o vilo; a situao dolorosa dos filhos de
Israel; e por fim, a discusso sugerida aos ouvintes-leitores acerca do valor moral da
liberdade.40
39 Cf. PROPP, William H. C. Exodus 1-18. A New Translation with Introduction and Commentary. The
Ancor Bible. V. 2. New Haven-London: Yale University Press. 1999. p. 252. 40
Cf. MEYERS, Carol L. Exodus. New Cambridgre Bible Commentary. Includes bibliographical
references and index. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. p. 67.
17
A estrutura dialogal dos cinco primeiros versculos preponderante como no
restante de xodo 5 e nos demais trechos narrativos da BHS.41
Elas caracterizam um
drama, no qual se descreve a opresso tirnica imposta pelo fara sobre os filhos de
Israel. O dilogo entre Moiss e o fara, lderes do povo hebreu, descreve a oposio
entre a vontade libertadora de Deus e a tirania faranica. Como ressalta Alter, o uso de
locues para os personagens no lugar da voz do narrador enriquece a narrativa,
permitindo ao ouvinte-leitor compor com o seu conhecimento de mundo e sua
imaginao o estado de nimo e as caractersticas psicolgicas das personagens. Dessa
forma, a faculdade interpretativa do ouvinte-leitor enriquece o contedo do dilogo e os
aspectos dramticos da narrativa. A forma dialogal do drama tambm torna o texto
sinttico, pois o discurso direto costuma exprimir mais elementos psicolgicos que o
discurso indireto, geralmente de tonalidade impessoal. Assim, o discurso direto sintetiza
e insinua elementos de descrio que a voz narrativa exigiria mais palavras.42
Nos vv. 1-5, apesar da sobriedade do narrador, possvel distinguir que se trata
de uma cena-padro, na qual o profeta Moiss, juntamente com Aaro, se apresenta ao
monarca, a fim de transmitir o orculo divino que postulava, ao menos formalmente,
uma autorizao para andar no caminho do deserto por um tempo de trs dias para
celebrar uma festa cultual, conforme a ordem divina em 4,22-23.43
Essa forma se
caracteriza pela expresso utilizada logo na primeira locuo de Moiss (v. 1c),
caracterstica dos orculos ou discursos profticos: (assim disse o SENHOR).
Essa forma tpica da literatura proftica, a expresso ocorre dez vezes no Pentateuco,
todas no livro do xodo, sempre na boca de Moiss (cf. Ex 4,22; 5,1; 7,17.26; 8,16;
9,1.13; 10,3; 11,4; 32,27). O cenrio que o episdio padro inspira pode ser o prprio
palcio do fara,44
ou uma sala de audincias, tal como sugerem a leitura de outros
trechos correlatos que descrevem cenas semelhantes no tempo dos reis de Israel. Os
profetas tambm costumavam apresentar-se diante dos monarcas, como nos diversos
relatos contidos nos livros dos reis. Episdios de figuras como Samuel (cf. 1Sm 15,1ss),
41 Cf. UTZSCHNEIDER, Helmut; OSWALD, Wolfgang. Exodus 1-15. Internationaler Exgetischer
Kommentar zum Alten Testament (IEKAT). Walter DIETRICH (Org.). BHS: W. Kohlhammer Druckerei
GmbH. 2013. p. 154. 42
Cf. CHOURAQUI, Andr. Nomes (xodo). Traduo e comentrios. Trad. Ivan Esperana Rocha e
Paulo Neves. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 77. 43
Tu lhe dirs: assim fala o SENHOR: Israel meu filho primognito. Eu te digo: deixa ir o meu filho,
para que ele me preste um culto (Ex 4,22-23). 44
Cf. UTZSCHNEIDER, Helmut; OSWALD, Wolfgang. Exodus 1-15. Internationaler Exgetischer
Kommentar zum Alten Testament (IEKAT). Walter DIETRICH (Org.). BHS: W. Kohlhammer Druckerei
GmbH. 2013. p. 154.
18
Nat (cf. 1Rs 1,23ss), Elias (cf. 2Rs 1,7ss), entre outros, assemelham-se cena-padro
contemplada no presente estudo. Moiss e Aaro, sero ao mesmo tempo profetas de
Deus e embaixadores do povo diante do fara. Exercem simultaneamente uma atividade
proftica e poltica.45
Por outro lado, verifica-se no livro do Gnesis, uma profuso de
narrativas que envolvem patriarcas em colquino, audincia ou mera presena passiva
diante dos monarcas do Crescente Frtil. Abrao apresenta-se ao fara e dialoga com
reis de Cana como Abimelec (cf. Gn 20; 21,25-34). Isaac tambm se apresentou diante
do rei de Gerara (cf. Gn 26,1-17). Jos reaparece nesse papel, primeiramente enquanto
escravo-intrprete dos sonhos do fara (cf. Gn 41), e depois recebe sua famlia enquanto
ministro do monarca egpcio (cf. Gn 43-46). Em xodo 5, nota-se o que seria a primeira
apresentao de um legado do povo diante de um monarca estrangeiro, pois o papel
representado pelos patriarcas era de abrangncia familiar, enquanto que, j nos
primeiros captulos do livro do xodo, Israel tratado como uma nao. No livro dos
Nmeros, o povo de Israel tambm se apresenta em conjunto diante do Rei de Edom,
que no permite que os israelitas atravessem o seu territrio (cf. Nm 20,14-21). E em
Nm 21,21-35, h outra narrativa na qual Israel tenta negociar com um monarca
estrangeiro. Israel havia enviado mensageiros a Seon, rei dos amorreus, para que lhes
permitisse passar pela sua terra nas mesmas condies feitas ao rei de Edom (vv. 21-
22).
1.4 Observaes histrico-teolgicas
1.4.1 Moiss, representante de Deus e do povo
Sobre as personagens convm destacar desde logo a figura de Moiss, um dos
protagonistas da narrativa. Em Ex 5,1-6,1, seu nome ocorre quatro vezes (vv. 1a, 4b,
20a e 6,1a). Os captulos precedentes (cf. Ex 1-4) preparam a simpatia dos ouvintes-
leitores para com o beb sujeito tirania cega que procurou elimin-lo junto com os
recm-nascidos hebreus (cf. Ex 1,7-22), ou ainda, pela criana abandonada ao fragor das
correntes do Nilo como nica e ltima esperana de uma me desolada (cf. Ex 2,1-8).
Protegido miraculosamente por Deus desde os primrdios de sua vida, descendente da
estirpe levtica (cf. Ex 2,1) e levado casa da princesa egpcia (cf. Ex 2,10), Moiss
caracterizado nos quatro captulos precedentes, respectivamente como: amado de Deus,
45 Cf. FISCHER, Georg; MARKL, Dominik. Das Buch Exodus. BHS: Verlag Katolisches Bibelwerk,
2009. p. 82.
19
nobre de Israel, prncipe do Egito, em suma, o heri arquetpico da narrativa.
Representa o bem e o desgnio de um Deus que age na Histria humana atravs da
intercesso de um homem, em vista da libertao social e religiosa.46
Alis, Deus fala
com Moiss (Ex 3,1- 4,22), predispondo o ouvinte-leitor ao beneplcito para com as
atitudes e locues. Moiss ser o maior profeta de Deus (cf. Dt 34,10-12), que usar
em xodo 5 a terminologia estereotipada do orculo, caracterstica da literatura
proftica, para transmitir a vontade divina: Assim disse o SENHOR)
Deus de Israel; v. 1c). A prpria hesitao de Moiss, movida por uma humildade quase
invencvel, atrai a simpatia para com a sua pessoa desprendida. Seu carter honesto, por
vezes violento em favor da justia como no episdio em que fere mortalmente o
egpcio ou em que defende as filhas de Jetro (cf. Ex 2,16-17) caracteriza-o como o
homem bom, justo e amante do direito, que inclusive tem uma vida amorosa frtil (cf.
Ex 2,21-22). Impressiona como todos os elementos retricos valorizantes de uma
personagem esto desenvolvidos nos quatro primeiros captulos do xodo.47
Essa caracterizao do protagonista prepara o ouvinte-leitor para o embate
central do drama que se inicia com o primeiro encontro de Moiss com o monarca
egpcio. Em xodo 5, essas caractersticas possuem uma continuidade com as demais
narrativas da vida de Moiss. O profeta se faz impetuoso ao insistir diante do fara pela
permisso de sacrificar no deserto, inclusive aps a primeira negativa do fara (v. 1a).
acusado de sublevar o povo e de defender o descanso das cargas impostas pelo fara no
discurso do prprio monarca (v.4d). Faz-se tmido em seus silncios diante dos
inspetores que avanam contra si aps o seu malogro diplomtico (v. 20a). Faz-se
perseverante, forte contra Deus, como outro de Israel, ao inquirir ao SENHOR acerca do
fracasso da embaixada diante do fara e o conseguinte agravamento da opresso sobre o
povo (v. 22a). Essas razes fazem com que no seja exagerado dizer que a
caracterizao de Moiss presente nas tradies do xodo harmnica com o episdio
narrado na percope contemplada.
46 Cf. SKA, Jean Louis. Introduo leitura do Pentateuco. Chaves para a interpretao dos primeiros
cinco livros da Bblia. Trad. Aldo Vannucchi. Bblica Loyola (37). So Paulo: Loyola, 2003. p. 49. 47
Jean Louis Ska resume a preeminncia de Moiss sobre os demais personagens da BHS em trs pontos
primordias: 1. O maior dos profetas. A lei de Moiss, contida na Tor, foi recomendada e defendida
pelos demais escritores da literatura histrica, proftica e sapiencial. 2. A superioridade de Moiss
tambm deriva de seu especial relacionamento para com Deus a quem fala face a face (Ex 22, Nm 12,6-
8; Jo 1,18; 3,11). 3. A preeminncia do xodo enquanto episdio fundante da religio e da nao de Israel
(cf. SKA, Jean Louis. Introduo leitura do Pentateuco. Chaves para a interpretao dos primeiros
cinco livros da Bblia. Trad. Aldo Vannucchi. Bblica Loyola (37). So Paulo: Loyola, 2003. p. 24).
20
1.4.2. Aaro
Em Ex 5,1-6,1, o nome de Aaro, irmo de Moiss, ocorre trs vezes
explicitamente (vv. 1a, 4b e 20a). Nas tradies do xodo, aparece por primeira vez no
captulo quarto. Basicamente, chamado por Deus para ser o profeta, enquanto Moiss,
seria um Deus aos olhos do fara (cf. Ex 7,1). Aaro at esse momento da narrativa no
passa de um auxiliar e companheiro de Moiss. Como nos demais episdios do relato
das pragas (cf. Ex 7,17.19), nas trs ocorrncias do captulo quinto do livro do xodo,
permanece sombra do protagonista como mero coadjuvante. Ademais, no v. 20a,
Aaro hostilizado, juntamente com Moiss na revolta dos filhos de Israel, devido ao
fracasso diplomtico dos irmos profetas. Seu papel de transmissor da mensagem
recebida por Moiss descrito nos captulo anterior no parece claro uma vez que o verbo
e disseram) est no plural da terceira pessoa, indicando que Moiss e Aaro)
falaram ao fara. No parece verossmil que os dois tenham falado ao mesmo tempo.
Aaro, ao menos em Ex 5,1-6,1, e no em todo o Pentateuco, permanece sombra de
Moiss, vinculado, calado, sem ao individual.
Mas qual seria a inteno dos redatores com essa presena passiva do irmo de
Moiss? justamente a perspectiva diacrnica que pode revelar uma hiptese plausvel
para esse particular. A proximidade de Aaro com as origens do povo e da religio
judaica eleva consigo toda a classe sacerdotal, diretamente envolvida na redao e na
difuso dos relatos do xodo. De fato, dados biogrficos preliminares da vida de Aaro,
tambm presentes nas tradies do xodo fazem de sua figura uma representao do
sacerdcio de Israel, pois a ele que cabe a presidncia dos cultos e o ttulo de patriarca
da ordem ou casa sacerdotal evocada nos salmos litrgicos (cf. Sl 98,6; 104,26;
113,18.20; 117,3; 132,2; 134,19). Ele descendente de Levi, a tribo sacerdotal, o
irmo mais velho de Moiss, o filho primognito, segundo a tradio sacerdotal (cf.
Ex), muito embora, na tradio javista, Moiss mencionado antes do que Aaro.
Segundo a hiptese de Utzschneider e Oswald,48
seu nome teria sido acrescentado
posteriormente ao relato original contido em xodo 5, a fim de prestigiar a classe
detentora dos conhecimentos escritursticos, como os escribas e os sacerdotes. O
acrscimo de Aaro teria sido ento realizado pela fonte sacerdotal (P) como seria
perceptvel nos ltimos versculos da percope. Moiss, sozinho, recorre a Deus
48 Cf. UTZSCHNEIDER, Helmut; OSWALD, Wolfgang. Exodus 1-15. Internationaler Exgetischer
Kommentar zum Alten Testament (IEKAT). Walter DIETRICH (Org.). BHS: W. Kohlhammer Druckerei
GmbH. 2013. p. 154.
21
alegando que foi mandado, mais uma vez sozinho, sem a meno a Aaro, para falar em
nome do SENHOR. Ademais, a figura de Aaro no faria falta para a compreenso do
relato.49
Dessa forma, pode-se conjecturar que na poca da redao, a meno a Aaro,
seria tambm conveniente aos que iriam explicar o texto. Os detentores do
conhecimento da tradio do xodo, sucessores no ofcio sacerdotal aaronita, poderiam
t-lo inserido a fim de acentuar a prpria autoridade como intrpretes dos textos
sagrados de Israel. Esse pormenor ainda pode ser comprovado pela tentativa de
aproximao realizada pelos inspetores hebreus para com o fara, sem a ajuda do
malogrado Moiss, como ser considerado no captulo quinto desse trabalho. Os
inspetores tambm defendem os interesses do povo, tal como Moiss. E compartilham,
ao menos intencionalmente, seu carter herico.
1.4.3 Fara, o vilo
O substantivo fara ocorre oitenta e quatro vezes no livro do xodo e onze vezes
em Ex 5,1-6,1 (vv. 1b, 2a, 5a, 6a, 10c, 14c. 15b, 20c, 21e, 23a e 6,1c). Seria demasiado
amplo estabelecer uma sntese dessas numerosas ocorrncias, por isso, no presente
estudo, se estabelece o foco nas onze ocorrncias da percope. O fara o vilo da
narrativa, porm no mencionado o seu nome prprio com nas demais narrativas do
Pentateuco. Parece ser o segundo fara presente nos relatos do xodo. H, no entanto,
aproximaes com as dinastias egpcias que procuram distinguir sua identidade, ou ao
menos, a que dinastia pertenceriam o fara ou os faras annimos do Pentateuco. Essas
tentativas de paralelismo entre a exegese e a egiptologia no lograram uma certeza
absoluta. Entretanto, Ballarini afirma, como hiptese mais plausvel, que os faras
descritos no livro do xodo pertenceriam s XIX e XX dinastias, que governaram o
Egito nos sculos XII e XIII a. C.50
Para Freedman, a meno cidade de Ramss em
Ex 1,11 e os grandes projetos arquitetnicos inferidos das narrativas da opresso dos
hebreus no Egito fizeram crer que as narrativas do xodo se referem a essa poca.51
Dada a informao como plausvel, a sociedade egpcia, na poca que a narrativa do
49 Cf. UTZSCHNEIDER, Helmut; OSWALD, Wolfgang. Exodus 1-15. Internationaler Exgetischer
Kommentar zum Alten Testament (IEKAT). Walter DIETRICH (Org.). BHS: W. Kohlhammer Druckerei
GmbH. 2013. p. 159-160. 50
Cf. BALLARINI, Teodorico. Introduo Bblia com antologia exegtica. Pentateuco. II/1. .
Petrpolis: Vozes, 1975. p. 257. 51
Cf. FREEDMAN, David Noel (Org.). The Anchor Yale Bible Dictionary. Vol. 2. D-G. New
Haven/London: Yale University Press, 1992. p. 351. VOZ, EGYPT, History of (Dyn 18-20).
22
xodo procura retratar, corresponde ao Reino Novo (1610-1085 a. C.). Segundo
McKenzie,
trata-se do perodo mais florescente do antigo Egito. [...] deram incio a
expedies de conquista para garantir sua fronteira oriental. O maior
dos conquistadores foi Utmsis III (1502-1448 a. C.) que guiou os seus
exrcitos atravs da Palestina e da Sria at o Eufrates, estendendo o
domnio egpcio na sia.52
Na poca a Palestina, a clebre terra prometida, sobretudo na parte costeira,
tambm era dominada pelas tropas do fara. Essa informao pode inclusive negar o
xodo como evento histrico, uma vez que a fuga narrada do xodo seria para um
territrio dominado pelo Egito.53
Seria mais ou menos como se algum que quisesse
fugir do Brasil tivesse se retirado para o Rio Grande do Sul... fuga no mnimo paradoxal
uma vez que ainda se permaneceria nas fronteiras do mesmo pas. Contudo, conforme
os prprios Finkelstein e Silberman, devido influncia quase insignificante dos
assentamentos egpcios na formao das vilas da regio montranhosa da Palestina
durante a Idade do Ferro,54
esse argumento no pode ser absolutizado. No se pode
afirm-lo seno como hiptese verossmil.55
Atendo-se, por essa razo, na anlise da narrativa bblica, os estudiosos tambm
estabelecem uma comparao entre o fara dos quatro primeiros captulos do xodo e o
fara do quinto captulo. Em contraste com o primeiro fara do xodo, que procurava
no controle de natalidade uma proteo contra as possveis insurreies israelitas (cf. Ex
1,11.19.22), o fara que recebe pela primeira vez o enviado de Deus (cf. Ex 5,1-6,1),
apresenta uma viso positiva acerca do crescimento do povo (v. 5b). Mo-de-obra
sinal de riqueza. Nisso o segundo fara do xodo no quer a eliminao massiva dos
hebreus e no v com bons olhos o afastamento do povo dos campos de trabalho (v. 5c).
O ritmo de construo das cidades era ditado pela fabricao de tijolos; e este, pela
disponibilidade de mo-de-obra.56
Percebe-se tambm que o fara representa o papel do vilo e encarnar
o mal na percope estudada. A opresso imposta pelas suas atitudes
52 MCKENZIE, John L. Dicionrio Bblico. Trad. lvaro Cunha. 8 ed. So Paulo: Paulus, 2003. p. 259.
Voz. EGITO. 53
FINKELSTEIN, Israel; SILBERMAN, Neil Asher. A Bblia no tinha razo. So Paulo: A Girafa,
2003. p. 74-106. 54
FINKELSTEIN, Israel; SILBERMAN, Neil Asher. A Bblia no tinha razo. So Paulo: A Girafa,
2003. p. 74-106. 55
SANTOS, Marcos Eduardo Melo. Caracterizao da personagem Moiss atravs da anlise dos
dilogos da narrativa de xodo 5,1-6,1. Teocomunicao. Porto Alegre. v. 44. n. 3. Set.-dez. 2014. p. 335. 56
BERGANT, Dianne; KARRIS, Robert J. (Org). Introduo, Pentateuco e Profetas anteriores.
Comentrio Bblico. Trad. Barbara Theoto Lambert. So Paulo: Loyola. 1999. p. 97.
23
ainda ser agravada pelo tom arrogante e irnico do seu discurso como
denota os estudo das locues a ele atribudas. Usar uma linguagem
potica e grandiloquente para decretar uma medida opressiva sublima a
maldade da personagem. Alm de retirar a palha, que facilitava a
confeco dos tijolos, o fara ser apresentado como mpio, ou seja, no
sentido de um homem que no conhece o SENHOR (v.2) e no permite a
liberdade do culto religioso postulado pelo povo (v.3).57
Em nossa poca de secularismo dominante, essa informao poderia no pr-
indispor o ouvinte contra o vilo, mas na sociedade hebraica, ou mesmo nas sociedades
antigas, o atesmo e a insensibilidade para com a vontade dos deuses caracterizava a
impiedade no sentido estrito do termo e j indispunha o ouvinte-leitor para com o vilo,
agravando a maldade inerente s suas atitudes. O fara completamente insensvel s
postulaes do povo.58
Na percope em estudo, o fara nomeado uma nica vez como rei do)
Egito; v. 4a). No livro do xodo, a expresso utilizada como substantivo treze vezes
(cf. 1,8.15.17.18; 2,23; 3,18.19; 5,4; 6,11.13.27.29; 14,5.8) e uma vez como verbo:
reinar sobre o Egito (cf. 15,18). Pode-se dizer que o fato dos redatores denominarem o
monarca opressor com o ttulo de rei do Egito pode caracterizar a inteno de que no
se repita a palavra fara por uma dcima segunda vez em xodo 5,1-6,1. No atribuir o
simbolismo da dzia ao vocbulo fara seria significativo para o esquema numrico
amplamente utilizado pelos redatores em sua forma final. Agostinho, contudo, prope
uma interpretao alegrica semelhante de Orgenes infra mencionada, a qual
estabelece o sentido simblico do Egito, enquanto terra de trevas, que se harmoniza, de
um lado, com ideia de que fara no conhee o SENHOR; e de outro, com a ideia de sair
do Egito, para o Deserto (cf. Agostinho. Sermo 5003. Tertio de Josepho). O Bispo de
Hipona salienta a motivao de sair do Egito pelo vis sacerdotal. O sacrifcio ao Deus
de Israel no se coaduna com a ignorncia da infidelidade e do pecado. O sacrifcio no
pode ser celebrado numa terra maculada. Subjaz, segundo Agostinho, a ideia de uma
terra santa, imaculada e cognoscente do SENHOR.
1.4.4 Deus, a discreta personagem principal
Em xodo 5,1-6,1, o tetragrama sagrado (SENHOR) ocorre oito vezes nos
principais manuscritos e no texto adotado pela BHS (vv. 1c, 2b, 2d, 3c, 17c, 21b, 22a e
57 SANTOS, Marcos Eduardo Melo. Caracterizao da personagem Moiss atravs da anlise dos
dilogos da narrativa de xodo 5,1-6,1. Teocomunicao. Porto Alegre. v. 44. n. 3. Set.-dez. 2014. p. 335. 58
Cf. HOUTMAN, Cornelis. Exodus. Historical Commentary on the Old Testament. Trad. Johan Rebel e
Sierd Woudstra. Vol. 1.Kampen: Kok Publishing House, 1993. p. 457.
24
6,1a). Ademais, usam-se ainda mais duas expresses para referir-se ao Deus de Israel:
Deus () nos vv. 1c, 3b, 3c e 8g e Meu SENHOR () no v. 22c.59
Logo na primeira
locuo de Moiss (v. 1c), usa-se a expresso estereotipada dos orculos ou discursos
profticos: (Assim disse o SENHOR). Forma tpica da literatura proftica, a
expresso ocorre dez vezes no livro do xodo, quase sempre na boca de Moiss.60
A
expresso contrasta com o Assim diz o fara (v. 10b) e o fara (rei do Egito) disse
repetida cinco vezes ao longo de xodo 5,1-6,1 (vv. 2.4.5.6.17). Alm da inteno de
reforar a autoridade proftica de Moiss seja diante do fara, seja diante dos ouvintes-
leitores hebreus, o recurso serve para acentuar o antagonismo entre os dois adversrios,
o Deus dos hebreus e o deus dos egpcios personificado na pessoa do fara.
Nota-se na narrativa que esse Deus se identifica com Moiss e com o povo de
Israel. Em relao ao profeta, representado por Moiss enquanto seu orculo. Na boca
de Moiss, Deus ordena do fara para que o povo sacrifique e celebre para si no deserto
(v. 1e). Diante das afrontas do fara que afirma no conhecer a Deus (v. 2d) e que, por
conseguinte, no obedece vontade divina (v 2e). Deus no reage, nem mesmo atravs
do profeta. Permanece impassvel diante das ofensas sarcsticas do fara (vv. 4.6-9) e,
em um primeiro momento, aparentemente insensvel para com o sofrimento do povo. O
monarca egpcio aumenta a carga horria de trabalho (v. 18bc), o povo se revolta contra
Moiss (v. 20a) e Deus no toma parte ativa nos dilogos. Pelo contrrio, no texto, as
referncias ao Deus de Israel s ocorrem na boca do fara como objeto de sarcasmo (vv.
17-18). Contudo, somente no v. 6,1, aps a imprecao de Moiss, Deus promete
libertar o povo com mo forte. Deus reage e toma as dores do povo como que esperando
a intercesso de Moiss.
Diante dessa interpretao da narrativa, pode-se dizer que Deus tambm faz seu
papel na narrativa. um Deus que se comove com as dores e ouve o clamor do povo
59 Nota-se ainda no v. 1c a ocorrncia da expresso Elohim. Esta seria o nome universal da divindade nas
culturas do Crescente Frtil. Designa, ao mesmo tempo, o Deus de Israel e os das etnias circunvizinhas.
Seria bem traduzido simplesmente por Deus. Andr Chouraqui explica que a forma gramatical um
plural e serve, s vezes, para designar vrios deuses (Ex 18,11). Para Israel, Elohm um; da, a ausncia
do artigo (Gn 2,5) (CHOURAQUI, Andr. Nomes (xodo). Traduo e comentrios. Trad. Ivan
Esperana Rocha e Paulo Neves. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 77). Enquanto que no v. 1c, os irmos
profetas nomeiam a Deus conforme o uso habitual na linguagem do Pentateuco como (SENHOR) e
(Deus de Israel), no v. 3b, consta a expresso Deus dos Hebreus). Essa mudana)
no lxico demonstra certa adaptao do discurso do profeta no tocante ao modo de nomear Deus. De fato,
o nome do patriarca Israel seria desconhecido pelo fara, mas os hebreus seriam identificveis uma vez
que so os operrios das manufaturas de tijolos. Se por um lado, Moiss esfora-se por ser compreendido
pelo fara, tambm inculte temor em relao ao Deus dos hebreus. 60
Cf. CHOURAQUI, Andr. Nomes (xodo). Traduo e comentrios. Trad. Ivan Esperana Rocha e
Paulo Neves. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 77.
25
desde os primeiros captulos do xodo, mas que espera pacientemente Moiss ter
coragem de cumprir sua misso. O Deus que espera a orao do seu profeta em favor do
povo (vv. 22) em uma aparente indiferena, o mesmo Deus que move o corao de
Moiss (v. 22) e que lhe d coragem de enfrentar o monarca (vv. 1-5). O Deus que quer
a libertao do povo, no aconselha Moiss a pedi-la diretamente, mas, alm de ordenar
atravs de um profeta, levanta como argumento o problema da necessidade cultual do
povo de Israel (vv. 1e e 3bc). Deus, ao mesmo tempo to zeloso em realao ao bem-
estar do povo, embora ordene com um imperativo a libertao do povo (v. 1d), respeita
a autoridade constituda do fara, ao fazer com que seu profeta explique a necessidade
do povo ir ao deserto (v. 3), mas diante da rotunda negativa do fara (vv. 2.4.5), que
responde com sarcasmos a Deus e aumento da opresso diante do povo (vv. 6-9), a
promessa de libertao renovada e o relato introdutrio das dez pragas que assolaro o
Egito nos captulos subsequentes est conformado em uma espcie de clmax de
opresso. As pragas so o cumprimento da ameada feita por Moiss em sua segunda
fala: a fim de que no avance sobre ns com a peste ou com uma espada (v. 3de).
Esse Deus espera as horas nas quais todos os meios humanos se esgotaram, seja a ordem
proftica, seja, inclusive, o dilogo com o opressor (vv. 1.3.), seja a negociao
subserviente atravs das autoridades judaicas constitudas pelo prprio opressor (vv.
15c-16c), ainda que no seja factvel, e mesmo com o fracasso previsto (cf. Ex 3,19),
para agir e tomar diretamente as dores e a causa da libertao de um modo prtico e
efetivo.
Deus, enquanto personagem na narrativa de Ex 5,1-6,1 seria uma divindade que
valoriza a liberdade fsica e cultual; que se mostra reverente para com as autoridades
constitudas, mas que exerce sua prpria autoridade, ciente de sua autosuficincia; que
usa da mediao do profeta como seu comunicador; que ouve e se compadece dos
sofrimentos do povo ou do paradoxal e j anunciado malogro da embaixada de Moiss;
que promete ser forte e pertinente ao agir em favor da libertao do povo (cf. Ex 3,19;
6,1). Essas caractersticas conformam um arqutipo que dever ser admirado, e
portanto, imitado pelos ouvintes-leitores da narrativa e conforma uma viso do bem,
nada ingnua, que valoriza a justia de um Deus que se reserva todos os direitos e age
com prudncia e respeito, seja atravs de uma ordem transmitida por um orculo, seja
atravs do dilogo explicado e argumentado.
Israel ocorre seis vezes em xodo 5,1-6,1. Entretanto, em trs destas ocorrncias
no se refere ao personagem histrico, mas somente ao povo de Israel (vv. 1c, 2c e 2e).
26
Em outras trs ocorrncias (vv. 14a, 15a e 19b), os filhos de Israel) pode ser)
entendido como filhos do povo de Israel ou do patriarca Israel. A expresso sugere, de
certo modo, a interrogao acerca da poca de redao da narrativa. A partir de que
momento da histria dos hebreus, o povo passou a se autodenominar como Israel?
Chouraqui da opinio que Israel, mais provavelmente, designou o povo hebreu aps o
episdio do xodo, quando os descendentes de Abrao teriam comeado a passar a ser
conhecidos como povo numeroso (cf. v. 5b), sobretudo, durante o agrupamento de tribos
no deserto a caminho de Cana.61
Nesse perodo, Deus era conhecido pelo nome de um
de seus mais ilustres adoradores e ancestrais da tribo: Israel, tal como se faz uso em Ex
5,1.62
Distinguia-se a divindade invocada pelos seus antepassados: o Deus de nossos
pais dos deuses estrangeiros. Esse Deus no tem um nome como as demais divindades
cultuadas pelos povos do Crescente Frtil. Mas faz-se conhecer, primeiramente, como
um Deus de um cl determinado, de uma famlia, o Deus de Abrao, o Deus de Isaac e
o Deus de Jac.63
Uma leitura do Pentateuco faz supr que a proteo desse Deus torna
essa famlia em uma tribo, posteriormente em um povo, e o Deus dos antepassados ser
por fim denominado como o Deus do povo dos filhos de Israel. Mais tarde, a expresso
se simplificaria para (Deus de Israel), da nao de Israel. Essa evoluo por
assim dizer lingustica vem acompanhada de um desenvolvimento social. O cl passa a
ser nao. E o Deus participativo na histria pessoal e familiar, torna-se o Deus da tribo,
a divindade nacional. Esse uso literrio prope uma teologia. A proposta do Pentateuco
se alarga e o Deus de Israel, atuante na vida de cada homem simbolizada na vida dos
patriarcas, passa tambm a ser do povo eleito.
61 Cf. CHOURAQUI, Andr. Nomes (xodo). Traduo e comentrios. Trad. Ivan Esperana Rocha e
Paulo Neves. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 78. 62
Cf. SARNA, Nahum M. Exodus Commentary. . The Jewish Publications Society Torah
Commentary. Philadelphia/New York/ Jerusalem: The Jewish Publications Society, 1991. p. 27. 63
Albrecht Alt (1883-1956), Gerhad Von Rad (1901-1971) e Martin Noth (1902-1968) sero os
exponenciais na defesa de uma exegese do Pentateuco que valorizava os dados arqueolgicos recm
descobertos para defender o perodo dos Juzes eo prprio perodo anterior, quando Israel vagava pelas
zonas semidesrticas em torno da terra prometida. Jean Louis Ska define as duas teses fundamentais de
Albrecht Alt sobre o Deus de Israel: Para ele, o Deus dos pais pertence religio dos nmades, porque
a divindade no est circunscrita a um lugar, mas a uma pessoa. No tem nome prprio. Indentifica-se
pelo antepassado a quem se revelou. [...] os patriarcas figuram, assim, como fundadores de culto. Desse
modo, a religio patriarcal afasta-se da Canania, ligada aos santurios (SKA, Jean Louis. Introduo
leitura do Pentateuco. Chaves para a interpretao dos primeiros cinco livros da Bblia. Trad. Aldo
Vannucchi. Bblica Loyola (37). So Paulo: Loyola, 2003. p. 131).
27
1.5. Consideraes conclusivas do captulo
Os vv. 1-5 apresentam ao ouvinte-leitor as caractersticas elementares dos
principais personagens envolvidos na narrativa. Moiss e Aaro mostram-se como
transmissores da palavra divina e negociadores da liberdade do povo. O fara se mostra
como o tirano que desconhece o Deus cuja mensagem havia sido anunciada pelos
irmos profetas e como resistente vontade desse Deus que visava ser adorado no
deserto. O fara preocupa-se com a fabricao dos tijolos e responde a Moiss com a
acusao de que estavam usando o argumento religioso para folgar. O povo deve ir, isto
sim, para seu trabalho. Que aproveitem o fato de ser numerosos para melhor produzir e
que no sejam agitados pelas mensagens subversivas em forama de orculo transmitidas
por Moiss e Aaro.
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CAPTULO 2 O DECRETO DO FARA (vv. 6-9)
O presente captulo abordar o episdio subsequente embaixada de Moiss e
Aaro junto ao fara. O trecho contm o discurso opressivo do fara. O monarca ordena
aos capatazes no meio do povo e aos seus inspetores (v. 6) que no entreguem mais a
palha aos filhos de Israel a fim de que faam tijolos (v. 7b). A restrio de fornecimento
desta matria-prima, quase imprescindvel para a obteno da meta estipulada (v. 7b),
tem como consequncia o aumento da carga de trabalho, uma vez que eles mesmos
deveriam ir atrs da palha (v. 7c). O motivo religioso para a absteno temporria dos
trabalhos alegado por Moiss (vv. 1 e 3) no episdio anterior (vv. 1-5) ridicularizado
pelo monarca (v. 8) que acusa os israelitas de preguiosos (v. 8d) e, indiretamente, os
irmos profetas de falsos transmissores das palavras atribudas a Deus (v. 9c). Com esta
locuo do monarca egpcio decretado o clmax de opresso sobre os filhos de Israel.
2.1 Texto hebraico e traduo portuguesa
Naquele dia, o fara ordenou v. 6a
aos capatazes no meio do povo v. 6b
e aos seus inspetores [dizendo]: v. 6c
No continuareis a dar palha ao povo v. 7a
para formar os tijolos, como ontem e anteontem! v. 7b
Que eles andem e ajuntem a palha para si! v. 7c
E a quantia de tijolos que eles estavam fazendo
ontem e anteontem
v. 8a
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