Rodolfo Coelho - Simetria - Musica Em Contexto UNB

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Musica analise musical

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  • Revista do Programa de Ps-Graduao em Msica da Universidade de BrasliaAno VII, Vol. 1 (junho de 2013)

    Simetria e outraS propriedadeS eStruturaiS de um conjunto octatnico alternativo uSado em O LivrO dOs sOns

    rodolfo coelho de Souza Universidade de So Paulo

    rcoelho@usp.br

    resumo: Este artigo elabora um sistema baseado em colees paradigmticas octatnicas e hexatnicas, construdas com tr-tonos, que pode ser usado como modelo composicional e tam-bm como modelo analtico para o estudo de obras ps-tonais de diversos compositores. Uma coleo pouco estudada, o Modo 6 de Messiaen, aparece com um papel relevante nesse sistema. So apresentados precedentes do uso dessa coleo em peas de Messiaen e Scriabin, assim como sugerida uma aproximao desse modelo terico com o que Antokoletz usou para analisar a obra de Bartk. Mostra-se que essas colees tm na simetria estrutural abstrata uma de suas propriedades fundamentais. Apresenta-se finalmente o uso do Modo 6 de Messiaen e das trs possibilidades de modelos de simetria descritos por Roig-Fran-col, a simetria estrutural abstrata, a simetria estrutural concreta e a simetria local, na pea orquestral O Livro dos Sons.

    palavras-chave: Simetria; colees paradigmticas; conjuntos octatnicos; Modo 6 de Messiaen.

    SYmmetrY and otHer Structural propertieS oF an al-ternative octatonic Set uSed in O LivrO dOs sOns

    abstract: This paper proposes a system based on octatonic and hexatonic paradigmatic colections, built with tritones, which can

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    be used as a compositional model as well as an analytical model to study post-tonal music of some composers. A seldom-men-tioned collection, Messiaens Mode 6, appears with a relevant role in this system. Precedents of the use of this collection in works of Messiaen and Scriabin are presented. A relation of this system with the theoretical model used by Antokoletz to analyze Bartks music is also suggested. It is demonstrated that these collections have in the abstract structural symmetry one of their fundamental properties. Finally the use of Messiaens Mode 6 and three possibilities of symmetry described by Roig-Francol, the abstract structural symmetry, the concrete structural symmetry and the local symmetry, are analyzed in the orchestral piece The Book of the Sounds.

    Keywords: Symmetry; Paradigmatic collections; Octatonic Sets; Messiaens Mode 6.

    introduo

    Nosso objeto de estudo um conjunto paradigmtico de oito notas que foi pouco estudado na literatura analtica da msica ps-tonal. Obviamente encontraremos esse conjunto na lista de Forte, porque ela exaustiva, isto , foi produzida por meio de lgica computacional com o propsito de classificar todas as classes de conjuntos possveis de serem construdas. E, de fato, l est ela, entre as 29 classes de conjunto de oito notas, a 8-25 (0124678T) que no recebeu um apelido especial, como a 8-28 (0134679T), que representa a chamada escala octatnica, ainda que existam outras 28 classes de conjunto tambm com oito notas.

    O foco deste estudo analisar suas propriedades de simetria. A tabela elaborada por Straus a partir da lista de Forte traz informaes teis neste sentido (Straus 2005, 262). As duas colunas centrais da tabela indicam que a classe de conjunto 8-25 tem dois graus de simetria

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    transposicional e dois graus de simetria inversional. Dentre as classes de conjunto de cardinalidade oito, s h outras duas que exibem graus de simetria comparvel ao da 8-25, quais sejam a 8-9 (01236789), que tambm tem dois graus de simetria transposicional e inversional, e a 8-28 (0134679T), que representa a chamada escala octatnica, que tem quatro graus de simetria transposicional e quatro de inversional. Portanto, esta ltima a que tem o maior grau de simetria entre todas as classes de conjunto de cardinalidade oito, o que em grande parte justifica ter sido utilizada e estudada exausto.

    instrutivo observar tambm as relaes de complementaridade dessas trs formaes. Sabemos que os conjuntos complementares tm sempre uma relao de similaridade importante com aqueles que complementam. Como se pode observar na figura 1, as classes conjuntos de quatro notas, complementares s trs classes de conjunto acima mencionadas, so tambm relacionadas a formaes paradigmticas, e necessariamente tambm simtricas. Observa-se ali que a octatnica 8-28 tem como complementar o conjunto 4-28 (0369), que equivalente a um acorde de stima diminuta, uma das parties clssicas da octatnica usada desde Rimsky-Korsakov. O conjunto 8-9 tem como complementar o conjunto 4-9 (0167), que equivalente clula Z descrita extensivamente na msica de Bartk (Antokoletz 1984, 71). Finalmente, a classe de conjunto 8-25, que nosso objeto principal, tem como complementar o conjunto 4-25 (0268), que um segmento caracterstico da escala de tons inteiros e que corresponde ao acorde de sexta aumentada francesa.

    Figura 1. As trs classes de conjunto de cardinalidade 8 com maior grau de

    simetria transposicional e inversional e seus respectivos complementos

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    (adaptado de Straus 2005, 262).

    Observa-se ainda que os conjuntos da classe 8-9 agrupam-se em dois clusters cromticos, {0123} e {6789}. Esses conjuntos formam as chamadas clulas X, estudadas por Antokoletz na msica de Bartk (Ibid., 69). Se o conjunto 8-25 est relacionado escala de tons inteiros, ele est relacionado tambm clula Y, igualmente analisada por Antokoletz na msica de Bartk (Ibid., 70). Percebe-se ento que as trs classes de conjuntos altamente simtricos de cardinalidade oito da figura 1 formam um sistema relacional equivalente ao das clulas X, Y e Z estudadas por Antokoletz na msica de Bartk.

    a questo do trtono como pedra angular de sistemas ps-tonais

    As propriedades de simetria estrutural dos conjuntos acima mencionados esto intimamente ligadas diviso da oitava em duas partes iguais, ou seja, ao fato bvio de que o trtono divide a oitava em duas partes simtricas em relao ao nmero de semitons cromticos. O divisor de guas entre a tonalidade e as concepes harmnicas que prescindem da noo de tonalidade est, em larga medida, na utilizao do trtono, o diabolus in musica, como sendo portador de qualidades acsticas interessantes e desejveis, em vez de uma dissonncia problemtica. O conceito de liberao da dissonncia, proposto por Schoenberg, seria, ento, entre outras coisas, a absolvio do trtono de seus estigmas acsticos e histricos.

    Um dos primeiros a perceber esse aspecto da harmonia ps-tonal foi Hindemith, quando afirmou que o trtono no tem significao definida, nem harmnica nem meldica. Para se determinar sua posio, precisamos de uma terceira nota (Hindemith 1937, 89). Todavia era cedo demais para Hindemith dar o passo radical de afirmar a percepo do trtono como uma formao estvel. Sua diviso de acordes em

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    duas categorias, com e sem trtono, persiste na interpretao clssica de reconhecer os acordes com trtono como acordes instveis que demandam resoluo. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, ele reconhece que:

    acordes que no podem ser construdos pela superposio de ter-as so inexplicveis pela teoria harmnica convencional. [...] Para explic-los, a teoria acadmica tem que empregar os mais estranhos artifcios. Pode cham-los de acordes-apojatura ou acordes-suspen-so. Mas esquece-se que uma parte essencial do efeito da apojatura ou da suspenso sua resoluo. Se o acorde dissonante apre-sentado, mas no resolvido, as condies da apojatura no so preenchidas e esses acordes devem ser apreciados como entidades independentes. (Hindemith 1937, 90)

    Apesar de suas vacilaes, Hindemith enquadra com preciso histrica a importncia estrutural do trtono quando mergulha nas ambiguidades e nas incertezas dos sistemas harmnicos ps-tonais e afirma que:

    o trtono tornou-se o objeto favorito da harmonia, atravs da enorme importncia dada a todas as formaes que servem como dominantes, atravs da harmonia do Tristo e da moda de croma-tismo que se seguiu, e mesmo atravs de dispositivos to fragilmente montados como o sistema de tons inteiros que floresceu na virada do sculo. Para ns que entendemos agora sua posio na famlia

    dos intervalos, [...], o trtono perdeu seu terror. (Hindemith 1937, 84)

    Hindemith nos fornece uma possvel chave de entrada para o sistema harmnico da ps-tonalidade por meio da anlise das formaes de tons inteiros como decompostas em trs trtonos, separados por intervalos regulares, conforme mostra a figura 3. Seguindo essa trilha, podemos explorar todas as configuraes possveis de se construir apenas com intervalos de trtonos. A ideia subjacente a essa proposta organizar um segmento da teoria de harmonia ps-tonal que, em vez de

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    ser baseada na superposio de teras, como acontece na msica tonal, gere formaes a partir de trtonos. Diferentemente do mtodo tonal, em que possvel sobrepor teras para gerar acordes, a sobreposio de trtonos no resultaria em nada novo, pois apenas repetiria ciclicamente as mesmas notas, por exemplo, C-F#-C-F#-etc. Para se montar acordes baseados apenas em trtonos, o nico processo gerativo vivel o da justaposio de dades.

    Comecemos, ento, com duas dades de trtonos, e obteremos as trs configuraes acordais possveis, que esto demonstradas na figura 2. As sonoridades de duas delas so velhas conhecidas da msica tonal: o acorde de stima diminuta e o acorde de sexta aumentada francesa (lembrar que na msica ps-tonal aplica-se o princpio da equivalncia enarmnica). Note-se que partimos da configurao mais espaada, com intervalos de 3-3-3-3 semitons, e a seguir reduzimos a distncia da segunda dade, resultando nos intervalos 2-4-2-4 e assim sucessivamente, para produzir a configurao 1-5-1-5. Essas trs configuraes esgotam todas as possibilidades de formaes baseadas em dois trtonos. Quaisquer outras montagens que tentemos obter resultaro em configuraes equivalentes a essas, por transposio ou inverso.

    Figura 2. Conjuntos de quatro notas gerados por dois trtonos

    Uma importante observao que deve ser feita que todas as trs configuraes exibem importantes propriedades de simetria. O acorde de stima diminuta a configurao mais simtrica, com quatro eixos de

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    simetria e as outras duas tm dois eixos de simetria.

    Prosseguindo o processo, podemos montar os conjuntos de seis notas que contm trs trtonos. Concluiremos que tambm s h trs configuraes possveis, que esto mostradas na figura 3. Uma maneira de confirmar essa deduo seria olhar na tabela de classes de conjuntos de Straus e verificar que s h trs classes de conjunto cujo vetor intervalar tem trs ocorrncias de intervalo de trtono, que so as formaes 6-7 (012678), 6-30 (013679) e 6-35 (02468T) (Straus 2005, 264). Quaisquer outras tentativas resultam em conjuntos equivalentes a um desses trs, seja por transposio, seja por inverso.

    Figura 3. Conjuntos de seis notas formados por trs trtonos

    Esses trs conjuntos tm graus de simetria diferentes. Comentemos inicialmente que em outras reas de conhecimento, como na geometria e na fsica, o conceito de simetria igual ao da simetria inversional usada na teoria dos conjuntos, enquanto a simetria transposicional chamada de antimetria. Mas isso uma questo de nomenclatura que no afeta a essncia dos conceitos. Observa-se, ento, que os conjuntos da classe de tons inteiros so os mais simtricos entre todos da lista de classes de conjuntos de Forte, apresentando seis graus de simetria inversional e seis de simetria transposicional. Os conjuntos da classe de conjuntos 6-30 no tm nenhum grau de simetria inversional e apenas um grau de antimetria, alm da tautolgica transposio T0. Os da classe conjunto 6-7

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    tm dois graus de simetria inversional e dois de simetria transposicional. Note-se que os conjuntos da classe de conjuntos 6-7 podem ser descritos como uma clula Z qual se adicionou mais um trtono que est na posio mais cerrada possvel, criando dois pequenos clusters de trs notas, o que o faz relacionar-se, como subconjunto, famlia da classe de conjuntos 8-28 (0134679T) apresentada na figura 1, que, alis, como j comentamos, est relacionada clula X da teoria de Antokoletz. Ou tambm podemos considerar sua formao como resultante da soma de duas clulas Z que compartilham um trtono. J os conjuntos da classe de conjuntos 6-30 tm como subconjuntos uma clula Z, um acorde de sexta aumentada francesa e um acorde de stima diminuta, sempre compartilhando trtonos entre si. Portanto, os conjuntos 6-7 e 6-30 inserem-se no complexo dos conjuntos que podem ser produzidos por combinaes dos conjuntos da figura 2, enquanto a escala de tons inteiros permanece como entidade parte, com caractersticas prprias, relacionadas ao complexo das trades aumentadas, uma vez que pode ser gerada a partir delas.

    Chegamos agora ao ponto em que podemos entender as relaes das classes de conjunto da figura 1 com as formaes de menor cardinalidade que foram descritas acima. A coleo que nos interessa nesse estudo, a 8-25 (0124678T), pode ser gerada a partir da escala de tons inteiros, acrescentando-se um quarto trtono que na figura 4 est representado em notas preenchidas.

    Figura 4. Conjunto octatnico formados por quatro trtonos com a configurao

    da classe de conjunto 8-25

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    A introduo desse quarto trtono reduz drasticamente os abundantes graus de simetria do conjunto de tons inteiros1 que lhe subjacente, a apenas um eixo de simetria que coincide exatamente com o trtono adicionado (C#-G, na figura 4). Esse conjunto apresenta, portanto, apenas dois graus de simetria inversional e dois graus de simetria transposicional, o que significa que seis, dentre as doze transposies possveis, geraro conjuntos com materiais diferentes. Analisaremos a relevncia desse fato posteriormente. Quanto aos subconjuntos da coleo da figura 4 (que paradigmtica, representando todas dessa classe de conjuntos), observa-se que ela contm apenas um acorde de stima diminuta (C#-E-G-A#), trs acordes de sexta aumentada francesa (C-D-F#-G# ; D-E-G#-A# e C-E-F#-A#) e duas clulas Z (C-C#-F#-G e C#-D-G-G#). Seu conjunto complementar outra sexta aumentada francesa (D#-F-A-B), o que seria de se esperar, pois a teoria dos conjuntos demonstra que os conjuntos complementares demonstram necessariamente afinidade com os subconjuntos mais importantes para a sua constituio. Note-se que a alta incidncia de acordes de sexta aumentada francesa demonstra a grande similaridade dessa coleo com a configurao de tons inteiros, o que obviamente tambm devia ocorrer se levarmos em conta o processo como construmos essa coleo. Isso se relaciona tambm com a propriedade do acorde de sexta aumentada francesa de compartilhar 2/3 de uma coleo de tons inteiros, mas no as notas que permitiriam formar trades aumentadas.

    H apenas duas outras colees octatnicas que podem ser compostas a partir de quatro trtonos. Elas so as outras duas que j apareceram na figura 1, alm da 8-25 analisada acima.

    1 Nos conjuntos de tons inteiros, h seis eixos de simetria que coincidem tanto com os trs trtonos presentes como com os trs ausentes nas notas da coleo.

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    Figura 5. Dois outros conjuntos octatnicos formados por quatro trtonos: o 8-9, que tem uma configurao que equivale soma de duas clulas X, e o 8-28, que

    a octatnica clssica de Rimsky

    A coleo 8-9 (01236789) tem como subconjuntos apenas um acorde de stima diminuta (C-D#-F#-A), dois acordes de sexta aumentada francesa (C-D-F#-G# e C#-D#-G-A) e trs clulas Z (C-C#-F#-G ; C#-D-G-G# e D-D#-G#-A). As propriedades de semelhana com a coleo de tons inteiros e com a clula Y de Antokoletz, implicada na presena de dois subconjuntos de sexta aumentada francesa e ainda a presena de trs subconjuntos que so clulas Z, estabelecem pontes relacionais com a sintaxe da msica de Bartk, conforme estudado por Antokoletz (1984). A classe de conjuntos 8-9 apresenta dois eixos de simetria que no coincidem com as notas presentes, pois, na coleo representada na figura 5, localizam-se nos quartos de tons entre as notas C#-D/G-G# e E-F/A#-B. Quanto simetria transposicional, ela aparece com dois graus na tabela de Straus, o que significa que seis transposies podem gerar

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    conjuntos diferentes.

    A classe de conjuntos 8-28 (0134679T) representa as colees octatnicas paradigmticas clssicas, descritas inicialmente por Rimsky-Korsakov e que foram usadas intensivamente por muitos compositores do sculo vinte, como Scriabin, Stravinsky, Debussy e Bartk. A coleo representada na figura 5 tem como subconjuntos dois acordes de stima diminuta (C-D#-F#-A e C#-E-G-A#), dois acordes de sexta aumentada francesa (C#-D#-G-A e E-F#-A#-C) e duas clulas Z (C-C#-F#-G e D#-E-A-A#). Ela apresenta quatro eixos de simetria inversional (dois que passam nos eixos representados pelos dois trtonos ausentes e outros dois representados pelos eixos que passam nos quartos de tons entre os trtonos presentes) e quatro graus de simetria transposicional, o que significa que apenas trs transposies geram conjuntos diferentes, um fato sobejamente conhecido. As propriedades de semelhana com a coleo de tons inteiros e com a clula Y de Antokoletz implicada na presena de dois subconjuntos de sexta aumentada francesa e ainda com duas clulas Z estabelecem pontes relacionais fundamentais com a sintaxe da msica de Bartk, conforme estudado por Antokoletz (1984).

    A tabela da figura 6 resume as relaes estruturais entre as trs classes de conjuntos de cardinalidade 8, mostradas nas figuras 4 e 5, e os trs tipos de subconjuntos de cardinalidade 4 mostrados na figura 2, todos eles analisveis como formaes construdas a partir de trtonos. A coluna do complemento demonstra a relao intrnseca entre as classes de conjunto de cardinalidade quatro, complementares s classe de conjunto de cardinalidade oito, e a maior frequncia (geralmente 3x) com que elas aparecem naquelas. Na octatnica clssica, as frequncias dos trs acordes so iguais, prevalecendo ento a identidade do complemento com a coleo com maior grau de simetria, a stima diminuta, como vimos acima ao comentar a figura 2.

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    Figura 6. Relaes entre as colees octatnicas formadas por trtonos e os acordes de quatro notas tambm formados a partir de trtonos. A ltima coluna demonstra uma relao estrutural de simetria entre os acordes mais frequentes

    e os complementos das trs colees

    Esse sistema , em ltima instncia, similar teoria sistemtica que fundamenta o mtodo analtico desenvolvido por Antokoletz para a msica de Bartk. Nossa apresentao utiliza, porm, ferramentas da teoria dos conjuntos que nos permitem dar uma descrio metodologicamente mais abrangente desse sistema, que pode, alis, ser empregado com sucesso para obras de outros compositores que empreguem uma linguagem que tenha razes profundas na saturao de intervalos de trtono.

    Na apresentao acima demonstramos relaes entre diversas colees paradigmticas que j foram extensivamente utilizadas na anlise da msica ps-tonal, como os acordes de stima diminuta, de sexta aumentada francesa, a clulas X, Y e Z, as colees de tons inteiros e a octatnica clssica. Quando estudamos as colees de seis notas, apareceram duas colees que pareciam novas e relevantes, as 6-30 e 6-7 da figura 3. Podemos agora observar que elas so, na verdade, apenas subconjuntos das outras colees de cardinalidade 8 apresentadas na figura 5: a 6-30 representa 3/4 da coleo octatnica clssica 8-28, e a 6-7 tambm apenas 3/4 da dupla clula X, a classe de conjuntos 8-9, o que demonstra que a coleo de tons inteiros a nica coleo de cardinalidade seis que apresenta uma identidade prpria relevante para nosso estudo de colees baseadas em trtonos, e que por sua vez

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    constitui a base da clula Y de Antokoletz.

    Quanto s colees de oito notas formadas por quatro trtonos, vimos que elas se resumem a trs agrupamentos paradigmticos e dois deles j foram amplamente estudados: a octatnica clssica j serviu de fundamento para uma infinidade de anlises, e a que congrega duas clulas X , em ltima instncia, o paradigma do princpio da saturao cromtica, que em ltima instncia nos leva ao dodecafonismo clssico de Schoenberg.

    Esse complexo de sonoridades, que se relacionam de modo consistente por meio de configuraes baseadas em trtonos, forma um sistema sinttico que principia na escala de tons inteiros e nos duplos clusters cromticos de quatro notas e termina, na outra ponta, no octatonismo clssico2 . No meio do caminho, como ponte de ligao entre esses dois extremos, encontra-se o conjunto 8-25 da figura 4, que, entretanto, no foi batizado com nenhuma alcunha memorvel que nos ajude a identific-lo na prtica composicional cotidiana. Ser possvel que ele no tenha ocorrido como entidade individual relevante na msica de nenhum autor clssico do sculo vinte? Obviamente, ele teria que aparecer na lista de classes de conjuntos de Forte, porque a lista exaustiva e resume todas as possibilidades combinatrias a partir da escala cromtica. Mas isso no significa automaticamente que os compositores dos sculos XX e XXI o tenham notado e tirado partido de suas potencialidades. Note-se ademais que esse sistema sinttico desenvolveu-se gradativamente na primeira metade do sculo vinte para dar conta de uma parte do vazio deixado pelo abandono do sistema tonal que norteara a composio musical nos trezentos anos anteriores. Mas um sistema sinttico completo da msica ps-tonal deve incluir outras tantas possibilidades paradigmticas, como, por

    2 Um artigo que partilha preocupaes semelhantes s que apresentamos neste artigo Models of Octatonic and Whole-Tone Interaction: George Crumb and his Predecessors de Richard Bass. Toda-via naquele artigo o autor no reconhece a relevncia da classe de conjuntos 8-25, objeto central deste artigo, como ponte eficiente para a articulao entre as formaes octatnicas e as de tons inteiros.

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    exemplo, os modelos baseados em colees diatnicas e formaes quartais. Uma compreenso completa do sistema deveria levar ainda em conta as relaes sintticas que se estabelecem entre esses diversos componentes. A tarefa enorme e complexa demais para sequer ser esboada neste artigo.

    Nosso empenho, a seguir, localizar precedentes analticos e composicionais em que se tenha reconhecido a relevncia da formao do conjunto 8-25 da figura 4 que, em nosso entender, a pea menos entendida e valorizada dessa parte do sistema sinttico ps-tonal.

    as classes de conjunto octatnicas com 4 trtonos na teoria de messiaen

    Messiaen foi pioneiro ao identificar sete colees com propriedades de simetria, que ele chamou de modos com transposies limitadas, uma vez que a simetria implica em haver algum mapeamento da coleo sobre si mesmo, seja na inverso, seja na transposio. Os modos de Messiaen no esgotam as possibilidades combinatrias de colees com propriedades de simetria, mas indicam algumas mais comuns e especialmente as que ele utilizou em suas obras (Messiaen 1956, 51-56).

    Halbreich resume com elegncia o sistema de modos de transposio limitada de Messiaen (Halbreich 1980, 116-120). O primeiro modo o de tons inteiros, ou seja, o mostrado na primeira coluna da figura 3. O segundo modo de Messiaen o octatnico clssico de Rimsky-Korsakov, mostrado na segunda parte da figura 5. O terceiro modo de Messiaen tem cardinalidade 9 e, portanto, no estaria no escopo deste trabalho, mas simples perceber que ele o primeiro modo com a insero de mais uma trade aumentada, no se relacionando com o problema das estruturas baseadas em trtonos que estamos considerando aqui. O quarto modo de Messiaen igual classe de

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    conjuntos 8-9, que apresenta duas clulas X conjugadas. Na disposio apresentada por Messiaen, a primeira nota aparece transposta para Si e, a seguir, o conjunto rotacionado para comear em D. Mas sua estrutura exatamente a mesma de 8-9. O quinto modo de Messiaen tem cardinalidade seis e apresenta uma estrutura exatamente igual da classe de conjunto 6-7 (012678), apenas transposta e rotacionada tal como no modo 4. Deixando para adiante o modo seis, o ltimo modo de Messiaen, o stimo modo, tem cardinalidade 10 e, por isso, estaria fora do escopo deste estudo. Mas h algo relevante que podemos apontar nele: as duas notas que faltam para completar o total cromtico so justamente as de um trtono, o que justificaria dizer que tambm este modo se enquadra no complexo das nossas consideraes, como resultado de uma combinao conveniente de outros modos de menor cardinalidade.

    Temos finalmente o modo 6, que revela uma estrutura igual da classe de conjuntos 8-25 (0124678T), ainda que transposta e rotacionada em relao a sua forma primria. Halbreich reconhece que este modo permite seis transposies, mas Messiaen, que listou o nmero de transposies possveis para outros modos, no menciona nada a esse respeito no Technique de mon Langage Musical. Para os exemplos que fornece, todavia, ele menciona ter utilizado a primeira e a quinta transposies (Messiaen 1944, 55).

    Tomando a forma primria da classe de conjuntos 8-25 como a transposio zero, esquematizamos, na figura 7, as seis verses possveis dessa coleo, indicando ainda a numerao equivalente das transposies indicadas por Messiaen. Na falta de um nome convencional para este conjunto, vamos cham-lo de m6m, como abreviao de modo 6 de messiaen.

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    Figura 7. As seis transposies das colees pertencentes classe de conjunto 8-25 (0124678T) equivalentes ao Modo 6 de transposies limitadas de

    Messiaen, simbolizado por m6m

    Messiaen fornece alguns exemplos de passagens de suas obras em que utilizou essa formao, tais como dois excertos de Les sons impalpables du rve, para piano, mostrados na figura 8, que utilizam a primeira transposio do M6M, e o excerto de Les Bergers, para rgo, mostrado na figura 9, que utiliza a quinta transposio de M6M.

    Figura 8. Excertos de Les sons impalpables des rves de Messiaen, que emprega T1(M6M) (isto , a primeira transposio de seu Modo 6 de transposies

    limitadas), equivalente a T4 de 8-25 (0124678T) (Messiaen 1944, vol.2, 54)

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    Figura 9. Excerto de Les Bergers para rgo de Messiaen, que emprega T5(M6M) (isto , a quinta transposio de seu Modo 6 de transposies

    limitadas), equivalente a T2 de 8-25 (0124678T) (Messiaen 1944, vol.2, 1)

    Note-se que os modos de Messiaen coincidem com todas as principais colees do sistema de classes de conjuntos derivadas por trtonos que mostramos anteriormente. Todavia, ele no apresentou nenhuma considerao sobre as articulaes sintticas que se poderia engendrar entre eles. De fato, nos exemplos que fornece, percebemos que Messiaen tratou os modos de transposio limitada como sonoridades autnomas, como um espectro individual de cores harmnicas, e no como peas articulveis numa malha relacional. Entender esse aspecto do sistema pretende ser a principal contribuio de nosso trabalho.

    o uso da octatnica m6m por Scriabin

    Scriabin reconhecido, em livros-texto de diversos autores, como um dos primeiros compositores a utilizar conscientemente a escala octatnica de Rimsky-Korsakov, em diversas obras da sua ltima fase. Kosta (1990, p.35), por exemplo, cita o Preldio Op.74 No. 5, escrito em 1914, para ilustrar esse fato. Mas h obras anteriores de Scriabin em que ele j havia usado essa escala, como a Sonata No. 6 Op.62, de 1911. A figura 10 mostra uma passagem dessa obra que utiliza a escala octatnica I (segundo a numerao de Pieter van den Toorn), que tem a seguinte formao: {Db-D-E-F-G-Ab-Bb-B}. Note-se que Scriabin usa

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    ocasionalmente as notas Eb e Bbb como notas de passagem cromticas, para intensificar a potica romntica da pea. Isso no altera a sua estruturao, que claramente baseada na sonoridade da octatnica, do mesmo modo que notas cromticas de passagem no afetam a estrutura de uma pea tonal.

    Figura 10. Excerto da Sonata N. 6, Op.62 de Alexander Scriabin, que usa a escala

    octatnica I

    O uso que Scriabin fez da escala octatnica sofisticou-se a cada nova pea que empreendeu. George Perle, analisando as ltimas peas de Scriabin, descobriu que ele incrementou sua tcnica composicional com a inveno de um sofisticado sistema de modulaes a partir de oito recortes heptatnicos de cada escala octatnica, com o propsito de restaurar possibilidades modulatrias que ficavam restritas com o uso simultneo das oito notas da octatnica, que s permitiam trs transposies (Perle 1984, 101-122). Isso nos faz crer que Scriabin, mesmo tendo vivido pouco tempo para escrever muitas peas que usassem suas engenhosas maquinaes ps-tonais, poderia, de fato, ter desenvolvido seu sistema suficientemente para compreender e utilizar as relaes de conjuntos que expusemos acima.

    Teria ento Scriabin utilizado tambm o conjunto octatnico que corresponde ao Modo 6 de Messiaen? Numa busca pela resposta a essa questo, nos deparamos com o Estudo Op.65 No.3, escrito entre 1911 e 1912, que emprega, sem sombra de dvida, a classe de conjuntos

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    8-25 (0124678T), inicialmente em uma rotao da transposio T3 mostrada na tabela da figura 7, ou seja, na sexta transposio do Modo 6 de Messiaen (vide figura 11). A centralidade ou tonalidade dos trs compassos iniciais dada pelo trtono G-Db, que aparece nas notas do baixo. A coleo octatnica usada {Dd-Eb-E-F-G-A-Bb-B}, sem nenhuma nota faltando e sem nenhuma nota estranha, seja de passagem, seja ornamental. Nos compassos 4-5, Scriabin usa uma transposio da coleo: T5(8-25), que a segunda transposio de M6M na figura 7. As alturas empregadas so, portanto, {F-F#-G-A-C-C#-Eb}. Novamente, todas as notas dessa octatnica alternativa esto l e a centricidade, dada pelo apoio do baixo, moveu-se para A-Eb. Finalmente, nos quatro compassos seguintes, Scriabin transpe novamente a coleo, dessa vez para T1(8-25), a quarta transposio de M6M da figura 7. Ele s usa seis das oito notas {B-C#-D#-E#-G#-A}, omitindo a quarta justa D-G, que completaria a octatnica, mas isso no cria nenhuma ambiguidade dentro do sistema, uma vez que a dade omitida no um trtono. A centricidade explicitada pela linha do baixo desloca-se agora para B-F.

    Figura 11. Compassos iniciais do Estudo Op.65 N.3 , de Alexander Scriabin, que

    usa a coleo octatnica alternativa M6M em trs transposies sucessivas

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    Observando as transposies dessa progresso, percebemos que Scriabin no s usou a coleo M6M, como tambm entendeu seu forte vnculo estrutural com a coleo de tons inteiros. A coleo de tons inteiros {C#-D#-F-G-A-B} o elo comum entre as trs transposies de M6M utilizadas nessa passagem. Os eixos de centralidade que se deslocam sucessivamente de G-Db para A-Eb e finalmente para B-F tambm desenvolvem, ao longo do tempo, a mesma coleo de tons inteiros subjacente. Portanto, no resta dvida que Scriabin entendeu as possibilidades combinatrias e as relaes estruturais entre as colees hexatnicas e o modo M6M octatnico, tal como descrevemos acima, mesmo que no tenha tido tempo de explorar o potencial desse sistema em muitas obras. Todavia, no encontramos ainda evidncias de que ele tenha estendido essas relaes a um sistema completo que abarcasse as octatnicas clssicas, o modo 6 de Messiaen, a coleo de tons inteiros, e a coleo da dupla clula X. Essa uma possibilidade que requer um aprofundamento da nossa pesquisa com a anlise de obras de maior vulto, como seus poemas sinfnicos. Todavia, ainda no se pode descartar a hiptese de que ele, de fato, tenha chegado a entender e a utilizar todas as potencialidades desse sistema complexo.

    tipos de simetria e seu emprego em o livro dos Sons de rodolfo coelho de Souza

    Apesar das diferenas que localizamos nas abordagens, as diversas teorias da msica ps-tonal que encontram guarida entre os pesquisadores de hoje mencionam o princpio da simetria como sendo fundamental para sua formulao. Ainda assim, o panorama parece confuso porque cada autor aborda o problema de maneira diferente. Alguns, como George Perle, usam at termos paradoxais, como tonalidade atonal, enquanto outros falam em eixos de simetria, centricidade ou centralidade atonal, enfatizando aspectos diferentes do problema. Para Antokoletz, por exemplo, uma seo de uma pea pode

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    ter uma tonalidade dada por assero pela repetio de uma nota, ou por um baixo pedal, como frequente encontrar-se em Debussy, e ao mesmo tempo apresentar um eixo de simetria distinto que representa uma centralidade atonal, que, bem ou mal (por no ser audvel), convive com aquela tonalidade ps-tonal implcita (e possivelmente perceptvel) (Antokoletz 1992, 88-89). Creio que no produtivo, neste momento, tomar partido nessa discusso. mais prudente analisarmos todos os aspectos de uma pea a partir das mltiplas perspectivas oferecidas pelas diferentes teorias e tirar vantagens analticas daquilo que se mostrar mais elucidativo. Vamos, por isso, adotar a posio de Miguel Roig-Francol (2008), que discute essas diferentes abordagens como possibilidades analticas distintas, mas plausveis de conviver numa mesma pea.

    Roig-Francol estuda trs categorias de simetria (Ibid., 5-7). Das trs categorias que ele descreve, a que nos ocupou at aqui foi a da simetria estrutural abstrata, intrnseca s colees utilizadas. Esse tipo de simetria um fator decisivo para tornar a harmonia de uma pea direcional ou no. A msica tonal essencialmente direcional devido assimetria intrnseca das escalas diatnicas. Essa assimetria se expressa nas tendncias atrativas dos semitons, seja da sensvel em relao tnica, do quarto grau em relao mediante, em maior, ou do sexto grau em relao dominante, em menor, relacionado cadncia frgia. Todas essas tendncias atrativas, que empurram o discurso tonal em determinadas direes, desaparecem quando as colees usadas so simtricas, ambguas quanto a possveis polos de atrao. Nessa situao, so os eixos de simetria (sempre representados por um par de notas formando um trtono) que afloram como entidades relevantes para a compreenso da estrutura da pea. Porm, isso no significa que esses eixos de simetria se ofeream diretamente nossa percepo. Por exemplo, nos compassos 1 a 3 da pea de Scriabin mostrada na figura 11, o eixo de simetria intrnseco coleo utilizada coincide com o trtono E-Bb. Entretanto, nossa audio privilegia outro trtono, o G-Db,

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    que est ancorado nas notas do baixo e na coleo de tons inteiros. E, de fato, o trtono E-Bb no pertence coleo subjacente de tons inteiros, mas o par que amarra a centralidade da coleo a um eixo fixo, em vez de deix-la flutuando entre as mltiplas possibilidades oferecidas pela coleo de tons inteiros.

    A segunda possibilidade de simetria analisada por Roig-Francol (2008), a simetria estrutural concreta, refere-se a centralidades que aparecem em uma seo ou mesmo numa pea inteira. Uma nota ou altura, que inclusive nem precisa estar presente, nem ser audvel, pode funcionar como um eixo em torno do qual as outras notas gravitam. Isso ocorre com certa frequncia na msica de Webern, como na segunda das Variaes para piano Op.27. E h ainda uma terceira possibilidade que ocorre quando dois ou mais materiais se espelham localmente em torno de um eixo de simetria que muda ao longo do discurso. Esse tipo de simetria local ocorre, por exemplo, na melodia do incio da Msica para Cordas, Percusso e Celesta de Bartk (Ibid., 41-64 e 187-195).

    Em O Livro dos Sons para orquestra e sons eletrnicos (2010), exploramos todas as trs possibilidades de simetria acima descritas, assim como as potencialidades estruturais do sistema de classes de conjunto octatnicas e hexatnicas baseadas em trtonos que expusemos anteriormente.

    Durante trezentos anos, de 1600 a 1900, os compositores exploraram quase que exclusivamente as potencialidades do sistema tonal, que, em certo sentido, so mais limitadas do que as disponveis no vasto universo de alternativas combinatrias do campo ps-tonal. No sculo XX, muitos compositores, como Debussy, Stravinsky, Bartk e Messiaen, exploraram o que se chamou de colees paradigmticas no tonais, entre as quais as principais so as de tons inteiros, as octatnicas e as diatnicas simtricas, mais seus recortes pentatnicos. Num campo oposto, situaram-se os compositores que, como Schoenberg, Webern, Berg, Boulez e Stockhausen, empregaram as tcnicas

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    dodecafnicas e serialistas, cujo universo de sonoridades, de espectro mais denso, gravitava em torno da saturao da escala cromtica. Hoje, compreendemos que essa oposio nunca foi absoluta e que ambas as correntes partilhavam princpios comuns de estruturao que so condicionadas pelas possibilidades inerentes aos sistemas no tonais. Todavia, as poticas individuais podem, de fato, ser muito diferentes na abordagem dos recursos disponveis dentro desse vasto universo de possibilidades. Quanto a mim, que no incio de minha carreira, nos anos 1970, me alinhava com as correntes vanguardistas do ambiente brasileiro, me sentia incitado a corresponder s demandas da linguagem serial, visto que as alternativas disponveis pareciam remeter a uma msica simplista, de carter nacionalista. Mas, nos anos 1980, esse panorama se alterou por meio da influncia do minimalismo, que me fez compreender a possibilidade de usar recursos modais num sentido amplo, dentro de um contexto ps-tonal que no regredia necessariamente a um conservadorismo neoclssico. A partir de meados dos anos 1990, e dali em diante, at hoje, esses horizontes se fundiram na compreenso das amplas possibilidades do sistema ps-tonal, que se amplia ainda mais com os recursos eletroacsticos disponveis que convidam a que aventuremos em mergulhos na natureza intrnseca do som e estabeleamos novos vnculos entre o espectro do timbre instrumental e as estruturas de alturas definidas pelos modelos pr-composicionais. O Livro dos Sons foi, para mim, o ponto mais abrangente at agora desse processo. As possibilidades estruturais acima descritas, e ainda diversas outras que no cabe descrever aqui, inclusive recursos eletroacsticos, foram usados para criar um universo sonoro que ao mesmo tempo utiliza recursos tcnicos amplos como nunca antes em minha potica e, paradoxalmente, pretende se tornar acessvel ao ouvinte mdio, tal como a msica tonal o fora.

    O tema principal do primeiro movimento, apresentado em reduo para piano na figura 12, faz uso extensivo da primeira transposio do modo 6 de transposies limitadas de Messiaen, ou

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    seja, de um conjunto cuja classe 8-25 (0124678T).

    Figura 12. Tema principal do primeiro movimento de O Livro dos Sons

    que usa M6M na transposio I

    Certamente, o interesse principal desse primeiro tema no est apenas no exotismo do modalismo utilizado, ainda que isso seja tambm parte do interesse que ele possa despertar. Sua caracterstica mais importante talvez seja o jogo de deslocamentos rtmicos que alude a um movimento de dana marcado por acentos irregulares que, de certa maneira, nos remete tambm a Messiaen e seus processos rtmicos aditivos e aos ritmos blgaros de Bartk. Embora no se possa falar de simetria estrita na composio desse tema, observe-se que o antecedente da primeira frase meldica tem um perfil ascendente que cobre a tessitura Si-Sol#, enquanto o consequente da frase tem um perfil descendente que completa o registro de uma oitava de Si a Si, sugerindo

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    uma reflexo especular estendida no perfil meldico.

    Na transio que se segue (vide figura 13), so usadas colees de dupla-clula X e mltiplas transposies de M6M para saturar cromaticamente a textura, aumentando a tenso para preparar a entrada do tema subsidirio. Note-se que o primeiro tema usou a coleo {B-C-D-E-F-F#-G#-A#}, que pertence classe 8-25 (0124678T). Na transio, esse material ser confrontado com outra transposio de M6M, que se pode recortar da parte de violoncelo da figura 13, que emprega a coleo {B-C-C#-D#-F-F#-G-A-B}. Observe-se que essa coleo tem justamente as quatro alturas {C#-D#-G-A} que faltavam ao material do primeiro tema para completar a saturao cromtica. Nas linhas meldicas, a nfase se desloca para os blocos cromticos do tipo da clula X e podemos reconhecer, por exemplo, entre outras dessa seo de transio, a coleo {D#-E-F-F#-A-A#-B-C}, pertencente classe de conjuntos 8-9 (01236789), cuja relao com M6M foi demonstrada acima na figura 7. Somadas, essas colees criam um agregado polimodal que nos conduz imediatamente a um adensamento de alturas rumo ao total cromtico.

    Um processo de simetria de registros, semelhante ao mencionado acima, empregado nessa transio. O primeiro gesto nos violinos descendente, preenchendo cromaticamente a tessitura F6-B5, enquanto o segundo gesto, nas cordas graves, preenche a tessitura B5-F5, realizando, no tempo, uma imagem espelhada do primeiro gesto. Trata-se, portanto, de um exemplo do segundo caso de simetrias descrito por Roig-Francol, pois B5 funciona como um eixo em torno do qual as notas gravitam.

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    Figura 13. Incio da seo de transio do primeiro movimento de O Livro dos Sons, em que mltiplas transposies de M6M, e outros conjuntos relacionados,

    se superpem para produzir saturao cromtica

    A questo da simetria pode funcionar tambm como um tipo de problema a ser resolvido. A teoria da sonata clssica tem como pedra angular o problema da modulao do segundo tema para a rea da dominante na exposio, que resolvido com sua transposio para a tonalidade da tnica na recapitulao. Na ausncia de um sistema como o tonal, que capaz de sustentar esse tipo de teleologia, a msica ps-tonal precisa recorrer a outros artifcios para construir relaes formais de longo prazo. Um desses recursos pode ser justamente a simetria. No caso de O Livro dos Sons, a segunda rea temtica, na exposio, uma melodia lrica expansiva que se apresenta como um dueto de primeiro e segundo violinos. Ela se expande em uma ampla tessitura de vigsima segunda, de Bb3 a F#6, e no apresenta nenhuma forma de simetria. Na esttica da ps-tonalidade, isso pode ser encarado como um problema a ser resolvido na recapitulao, permitindo uma releitura do sentido de forma por meio dos recursos idiomticos desse sistema.

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    Apresentamos a seguir, na figura 14, um exemplo do terceiro caso de simetrias descritas por Roig-Francol. Na recapitulao do segundo material de O Livro dos Sons, conforme podemos ver na figura 14, os primeiros violinos em divisi espelham-se inicialmente em torno do eixo C-F# situado entre as notas iniciais B e D. A seguir, esse eixo se desloca para E-A# situado entre as notas C-G#. So eixos estritamente locais, que, embora se apliquem somente a cada um dos fragmentos da melodia, seriam talvez audveis.

    Figura 14. Melodias simtricas em relao aos eixos C-F# e E-A#, sucessivamente, na recapitulao do segundo tema do primeiro movimento de

    O Livro dos Sons

    Conclui-se que os diversos tipos de simetria, estrutural abstrata, estrutural concreta e local, descritas por Roig-Francol, foram empregadas em O Livro dos Sons e so componentes importantes da potica composicional da obra.

    No presente estgio desta pesquisa, h ainda diversos caminhos a explorar. No plano analtico, a hiptese de que o sistema de colees octatnicas baseadas em trtonos seja relevante para a msica de diversos outros compositores no analisados aqui, como Bartk, Villa-Lobos e Stravinsky, parece encorajadora, visto que o sistema relaciona-se consistentemente com outras teorias usadas para estudar suas obras, apresentando, porm, um quadro terico mais abrangente. Especialmente o papel do conjunto M6M, como elo entre as colees cromticas do tipo clula X e as colees octatnicas, coloca uma possibilidade que ampliaria a coerncia do arcabouo terico usado para analisar um tipo de sintaxe muito comum na ps-tonalidade. A articulao dessa parte

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    do sistema com outras, como a das colees diatnicas e pentatnicas, caminharia na direo de se entender a funcionalidade relacional das diversas subcategorias da lista de conjuntos de Forte que, alis, por ser meramente taxonmica, no deve ser entendida como autossuficiente.

    referncias

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