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Título: “O universo cultural das religiões ayahuasqueiras brasileiras e a questão
das drogas”
Sandra Lucia Goulart1
Resumo:
Trato, neste artigo, do caso de grupos desenvolvidos no Brasil, e surgidos, a partir
da década de 1930, inicialmente na região amazônica. Esses grupos utilizam em
suas cerimônias uma bebida com características psicoativas, conhecida por várias
designações, entre elas pela expressão quéchua ayahuasca. A expansão destes
grupos para fora da região amazônica, a partir do início da década de 1980,
conduziu a uma vinculação da sua imagem social ao debate público sobre uso de
drogas. Por outro lado, aos poucos, eles se legitimaram publicamente como
“religiões brasileiras”. O reconhecimento social destes grupos como “religiões” se
deve a um processo muito complexo de interlocução, que abrange diversas
instâncias da sociedade. Além disso, para os adeptos dos diferentes grupos
ayahuasqueiros a bebida ayahuasca está relacionada a diferentes significações, as
quais extrapolam a noção de “droga”. Neste texto analisarei diferentes aspectos da
dinâmica de alguns grupos ayahuasqueiros brasileiros, tais como: suas diferentes
concepções acerca da bebida ayahuasca, seu processo de legitimação social e
pública, suas diferentes estratégias de negociação com o Estado brasileiro e com
outras instâncias da nossa sociedade. Uma das minhas propostas é, através desta
análise, argumentar que práticas de usos de drogas só podem ser compreendidas a
partir da consideração de fatores de distintas ordens, não podendo ser reduzidas a
explicações puramente farmacológicas.
PALAVARAS-CHAVES: AYAHUASCA, DAIME, DROGAS, RELIGIÃO.
Os grupos ayahuasqueiros brasileiros: principais aspectos
Os grupos dos quais tratarei neste artigo começam a ser organizados na região
amazônica brasileira a partir do início dos anos trinta do século passado. Todos eles
utilizam uma mesma bebida psicoativa. Trata-se de uma cocção composta pela
combinação de duas plantas: um cipó, cujo nome científico é Banisteriopsis caapi, e as
folhas da espécie vegetal Psichotria viridis. Na composição do cipó se destacam dois
alcaloides: a harmina e a tetra-hidroharmina; e na da Psichotria viridis, o alcaloide
dimetiltriptamina (DMT). A DMT é a principal responsável pelos efeitos visionários
provocados pelo uso da bebida, entretanto é apenas a partir dos efeitos de substâncias
presentes no cipó que ela pode agir no sistema nervoso humano, produzindo, assim,
eventuais alterações da percepção.
Apesar destes grupos consumirem uma mesma bebida psicoativa, eles possuem,
entre si, muitas diferenças. Eles expressam, assim, um conjunto de práticas e
1 Sandra Lucia Goulart é Professora da Faculdade Cásper Líbero (São Paulo), Membro do NEIP (Núcleo
de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos), Doutora em Ciências Sociais (Unicamp) e Antropóloga.
concepções diversas. A formação de cada um desses grupos, apesar de envolver
aspectos comuns, também apresenta particularidades. Por fim, seu processo de
construção de legitimidade social e de relacionamentos com o Estado brasileiro e outras
instâncias da sociedade (como mídia, ciência etc.) envolve uma série de aspectos que os
aproxima, mas também, implica num conjunto de ações divergentes.
Em trabalho anterior (Goulart 2004), sustentei que, a despeito destas diferenças,
todos esses grupos participam de uma só tradição: a tradição religiosa ayahuasqueira
urbana amazônica, simplificadamente designada de “tradição ayahuasqueira” ou de
“religiões ayahuasqueiras brasileiras”. Argumentei, então, que estas distinções são
modos de desenvolvimentos particulares de um mesmo conjunto de concepções e
temas, advindos de um mesmo grupo de tradições culturais e religiosas. Dentre estas
últimas, na minha análise ganham destaque: o universo cultural amazônico mais
diretamente ligado ao contexto caboclo e seringueiro de uso da bebida ayahuasca; o
catolicismo popular expresso, principalmente, na devoção aos santos católicos e em
tradições festivas nordestinas2; e elementos de cultos afro-brasileiros tais como a
Umbanda. Em cada um dos grupos ayahuasqueiros que pesquisei, os aspectos destas
várias tradições eram mais ou menos enfatizados, e tematizados de formas diferentes,
aparecendo, também, em diferentes momentos (nas cerimônias rituais, nos mitos, nos
princípios doutrinários, em regras morais, na hierarquia etc.).
O primeiro destes grupos começa a ser organizado no início dos anos trinta, na
periferia rural da cidade acreana de Rio Branco, por Raimundo Irineu Serra, que, com o
tempo, passa a ser designado de Mestre Irineu. O Mestre Irineu registrou seu grupo em
cartório apenas em 1971, um ano antes de falecer, com o nome: Centro de Iluminação
Cristã Luz Universal (CICLU). Entretanto, o seu grupo, desde a década de 1940, já era
bastante conhecido, em Rio Branco e arredores, pelas denominações “Alto Santo” e
“Daime”. Daime é a denominação dada a esta bebida psicoativa no grupo fundado pelo
Mestre Irineu. Muitos relatos de fiéis que entrevistei durante minhas pesquisas de
mestrado e doutorado (Goulart 1996 e 2004) destacam que, nas primeiras experiências
do Mestre Irineu com a bebida3 ele teve contato com uma entidade espiritual feminina
que lhe teria revelado que o nome da mesma era Daime. Estes relatos, normalmente,
2Este ponto referente à ligação de religiões ayahuasqueiras, como o Santo Daime, com práticas do
catolicismo popular é desenvolvido por mim, também, na minha dissertação de mestrado (Goulart 1996) 3As primeiras experiências do Mestre Irineu com esta bebida se deram numa região de seringais, na
fronteira entre o Brasil, a Bolívia e o Peru, por volta de 1915.
enfatizam que a entidade espiritual explicou ao Mestre Irineu que a bebida deveria se
chamar Daime, pois, este “era seu nome divino” e “verdadeiro”, o qual tem o sentido de
invocações e pedidos tais como: “dai-me “cura”, “amor”, “iluminação” etc.
O falecimento do Mestre Irineu, em 1971, gerou um processo intenso de
polêmicas em torno de sua sucessão. A ruptura que culminou na saída do maior número
de integrantes do grupo originalmente criado pelo Mestre Irineu foi liderada por
Sebastião Mota de Melo, mais conhecido como “padrinho Sebastião”. Foi esta ruptura
que levou à formação do grupo inicialmente designado (em cartório) de Centro Eclético
da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra (CEFLURIS)4. Isto se deu em 1974, e
o novo grupo foi organizado, na ocasião, numa região periférica e rural de Rio Branco,
conhecida como “Colônia Cinco Mil”. Posteriormente, no início dos anos oitenta, o
CEFLURIS estabelece a sua principal comunidade no interior da floresta amazônica, no
município de Pauni, às margens de um braço do rio Purus. O momento em que o
CEFLURIS estabeleceu sua sede no meio da floresta amazônica coincidiu, também,
com o início da expansão deste mesmo grupo para várias regiões do Brasil. Este caráter
que eu chamo de “mais expansionista” distingui o grupo do CEFLURIS de alguns
outros grupos que igualmente se identificam como continuadores da tradição de uso da
ayahuasca iniciada com o Mestre Irineu, mas que se opõem ao processo de
disseminação do uso desta bebida entre sujeitos de origens culturais bem distintas do
universo amazônico. É o caso do próprio grupo originalmente fundado pelo Mestre
Irineu e, hoje em dia, liderado por sua viúva, a madrinha Peregrina Gomes Serra. Este
grupo, embora tenha sido denominado em cartório como CICLU, é bastante conhecido
como “Alto Santo”. Esta designação também é dada a outros grupos muito próximos a
este (embora com organização autônoma), e igualmente ligados à tradição fundada pelo
Mestre Irineu. O aspecto assumidamente mais regionalista dos grupos conhecidos como
do “Alto Santo” muitas vezes produz conflitos com o grupo do CEFLURIS, o qual,
como disse, expressa um movimento mais expansionista. Porém, os conflitos entre
grupos do Alto Santo e o CEFLURIS não se explicam, apenas, por um caráter mais ou
menos expansionista dos mesmos.
4Mais recentemente, nos anos 2000, este grupo alterou sua denominação jurídica, que passou a ser Igreja
do Culto Eclético da Fluente Luz Universal (ICEFLU) – Patrono: Padrinho Sebastião Mota. A alteração
está relacionada a uma série de diferenças e conflitos entre este grupo e outros grupos daimistas (como o
CICLU-ALTO SANTO). Apesar desta mudança de nome, neste texto mantenho a designação CEFLURIS
para este grupo.
No ano de 1945, ainda na periferia rural de Rio Branco, começa a se formar
outro grupo ayahuasqueiro, o qual, mais tarde, será amplamente conhecido pela
expressão “Barquinha”5. O fundador deste grupo foi Daniel Pereira de Mattos, o Mestre
Daniel, tal como é chamado por seus seguidores. Ele conheceu a bebida Daime com o
Mestre Irineu, seu amigo, que, como ele, era natural do Maranhão. Mestre Daniel
frequentou o grupo do Mestre Irineu durante alguns anos, mas, a partir de 1945, ele
começou a desenvolver um novo culto em torno do consumo do Daime. Assim, Mestre
Daniel e seu conjunto de fiéis passam a se colocar como uma expressão de uma nova
“missão espiritual” do Daime. Segundo diversos relatos colhidos por mim, a formação
desse novo culto em torno da bebida Daime foi vista como algo consensual pelos
adeptos tanto do grupo do Mestre Daniel quanto do grupo do Mestre Irineu. Neste caso,
não ocorreu, portanto, um movimento de criação de dissidências com um processo
disputas e conflitos intensos. O novo culto fundado pelo Mestre Daniel se caracteriza
por uma forte aproximação com práticas e concepções de religiões de matriz africana,
como a Umbanda. Esta aproximação é uma diferença importante com relação aos
grupos ayahuasqueiros ligados à tradição fundada pelo Mestre Irineu. O Mestre Daniel
faleceu em 1958 e, com seu falecimento começaram a surgir diferentes grupos que se
colocam como seguidores da “missão espiritual” fundada por ele. Todos esses grupos
surgiram no Acre e a maior parte deles até hoje se restringe a esse estado. Não existe um
movimento de expansão expressivo de grupos da “Barquinha” para outras regiões do
país6.
Em 1961 surge o grupo ayahuasqueiro hoje em dia conhecido como União do
Vegetal (UDV). Este grupo foi fundado por José Gabriel da Costa, também chamado
por seus fiéis de Mestre. Ele foi organizado numa região próxima à fronteira entre o
Brasil e a Bolívia, num seringal denominado Sunta, atualmente a região que
corresponde ao estado brasileiro de Rondônia. Contudo, a partir de 1965, o Mestre
Gabriel passa a organizar seu grupo na cidade de Porto Velho. Na UDV a bebida é
designada de Vegetal. A expressão Vegetal também é utilizada para denominar o grupo.
Em 1970 os integrantes deste grupo o registraram em cartório com a denominação
5A denominação Barquinha está associada à presença, neste grupo, de um imaginário forte ligado ao mar,
embarcações e marinheiros. Importante registrar que o fundador deste grupo foi marinheiro e chegou ao
Acre nessa condição. As roupas (“fardas”) usadas nas cerimônias deste grupo também lembram bastante
os uniformes dos marinheiros. 6 Enquanto o Mestre Daniel era vivo o seu grupo era mais conhecido como “Capelinha de São Francisco”.
Foi o primeiro sucessor do Mestre Daniel, Antônio Geraldo, quem registrou oficialmente esse grupo com
o nome de Centro Espírita e Culto de Oração e Casa de Jesus Fonte de Luz, em 1959.
Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (CEBUDV). O Mestre Gabriel faleceu
em 1971. Foi depois do seu falecimento que se intensificou o movimento de expansão
da UDV. Deste modo, atualmente, a UDV conta com vários núcleos em todas as regiões
do Brasil, na sua maioria, situados em grandes cidades. Ela também se expandiu para
diversos países. Como o grupo do CEFLURIS (ligado à tradição iniciada por Mestre
Irineu), a UDV tem um caráter expansionista. Entretanto, apesar desse aspecto comum
entre UDV e CEFLURIS, ambos grupos possuem, além de diferenças cosmológicas
(rituais, na mitologia etc.), distinções importantes no modo de ação com o Estado e com
diversos agentes da sociedade, o que tem gerado muitos afastamentos e conflitos entre
eles. Por outro lado, apesar de seu evidente caráter expansionista, a UDV tem,
recorrentemente, empreendido alianças e aproximações com grupos ayahuasqueiros
regionalistas, como a Barquinha e o Alto Santo.
Importante colocar, ainda, que a forma pela qual o fenômeno de uso da
ayahuasca se manifestou no Brasil é bastante original, na medida em que difere dos
modos pelos quais ele se expressa em outras regiões e países7. Assim, no Brasil, a
tendência mais marcante foi a do surgimento de grupos coesos e permanentes, os quais
possuem fiéis, conjunto de cerimônias, calendário ritual, doutrina, e em alguns casos até
dogmas e uma espécie de sacerdócio. Estes grupos, desde o momento inicial de sua
formação, se desenvolveram em contextos mais urbanos (embora em periferias
amazônicas), e não-indígenas, marcados mais pela influência “cabocla” e por tradições
amazônicas já cristianizadas. Num momento posterior, a partir principalmente da
expansão de alguns destes grupos para diversas regiões do Brasil (e mais tarde para o
exterior), começaram a se formar novos grupos usuários da ayahuasca não mais
diretamente vinculados às chamadas religiões ayahuasqueiras originais, e nem
tampouco ligados ao contexto amazônico. Estou me referindo aqueles grupos
designados por Beatriz Labate (2004) de “neo-ayahuasqueiros”, e que envolvem uma
fusão de práticas diversas, tais como: terapêuticas, lúdicas, estéticas, rituais, místicas
etc., as quais tendem a se apresentar como “alternativas” a um campo religioso mais
tradicional. Os grupos “neo-ayahuasqueiros” parecem se caracterizar por um
rompimento com uma rigidez de práticas, de fronteiras comunitárias (do tipo “igreja”)
ou de distinções hierárquicas etc., e por um pluralismo ou ecletismo de concepções,
expressando uma configuração próxima de outros fenômenos designados e analisados
7 Além da região brasileira, o uso da ayahuasca se manifesta principalmente no noroeste da Amazônia, no
leste dos Andes, na Amazônia colombiana, no Equador, na Venezuela, no Peru e na Bolívia.
através de noções como “novas espiritualidades”, “nova era”, “nebulosa mística-
esotérica”, entre outras (Maluf 2011).
Conforme os grupos ayahuasqueiros brasileiros foram se tornando mais
conhecidos na sociedade mais abrangente, atingindo, inclusive, uma notoriedade
midiática (o que se deu com sua expansão para fora da região amazônica, a partir do
início dos anos oitenta), eles passaram, também, a ser incluídos no debate público sobre
as drogas. Vale ressaltar, nesse sentido, que os assuntos relativos à regulação dos usos
rituais ou religiosos da ayahuasca, quase sempre, no Brasil, foram tratados por órgãos
do governo responsáveis pela elaboração de políticas de drogas, tais como o Conselho
Federal de Entorpecentes (CONFEN), já extinto, e o atual Conselho Nacional
Antidrogas (CONAD). Por outro lado, ao mesmo tempo, estes grupos foram
conquistando sua legitimidade social e diante do Estado brasileiro na medida em que se
afirmavam como religiões e se distinguiam de usuários de drogas (e, sobretudo, de
drogas ilícitas). A própria conquista da regulação do uso da ayahuasca se deu conforme
esta bebida foi entendida por estudiosos e agentes do Estado como um elemento
religioso e não simplesmente como uma “droga alucinógena”. Em diversos pareceres de
órgãos governamentais, esta visão ficou evidente, quando se colocava, por exemplo, a
ideia de que os efeitos psicoativos da bebida poderiam ser atenuados com a estrutura
ritual e religiosa desenvolvida por estes grupos8.
Outro ponto que quero destacar aqui, que igualmente expressa uma
ambiguidade, é o fato dos integrantes dos vários e distintos grupos ayahuasqueiros não
considerarem, em geral, a bebida aí consumida, como uma “droga”. Assim, os grupos
ayahuasqueiros são relacionados, no senso comum da sociedade mais abrangente, ao
debate sobre as drogas, mas seus adeptos não compartilham desta visão, ou seja, não se
sentem identificados, necessariamente, às questões sobre drogas (lícitas ou ilícitas). Ao
contrário, várias das noções elaboradas nos diferentes grupos ayahuasqueiros para se
referir à bebida e aos seus efeitos contém significados que parecem estar voltados para a
construção de uma diferença radical com relação aos significados compreendidos na
noção de “droga” (é o caso das noções de “enteógeno”9 e “sacramento”). Na verdade,
toda a experiência proporcionada pelo uso da ayahuasca (daime ou vegetal), em cada
8 Desenvolvo melhor esta reflexão em outro artigo, intitulado: “Estigmas de grupos ayahuasqueiros”
(Goulart 2008). 9 No grego entheos pode significar “ser possuído ou inspirado por um deus”; já geno significa “produção
ou geração de algo” (Liddell e Scot, 1997). Edward MacRae, abordando a religião do Santo Daime, diz
que a bebida Daime, para os daimistas pode ser vista como um enteógeno, no sentido de que “leva
alguém a ter o divino dentro de si” (MacRae, 1992).
um desses grupos, está estreitamente vinculada aos seus arranjos cosmológicos
particulares. Por isso, também, nos diferentes grupos, tratados aqui, há diferentes termos
para a bebida (como Daime, Vegetal, Hoasca, Santa Luz etc.). Esses termos diferentes
relacionam-se a concepções diversas sobre essa mesma bebida. No próximo item deste
artigo apresentarei algumas reflexões sobre essas diferentes concepções da bebida.
Concepções acerca da bebida: muito além da “droga”
O culto fundado pelo Mestre Irineu aparece, incialmente, no Acre, como um
culto de cura. Assim, os primeiros fiéis do grupo fundado pelo Mestre Irineu foram
convertidos, principalmente, devido à cura de diferentes tipos de moléstias, tratadas de
através de “trabalhos com o Daime”. Em muitos casos tratava-se de enfermidades
típicas de camadas sociais de baixa renda, as quais não tinham um bom acesso a
serviços de uma medicina oficial. Em muitas entrevistas que realizei durante as minhas
pesquisas, adeptos antigos deste grupo daimista, relatando a experiência muitas vezes
vivida por parentes seus já falecidos, destacaram que o Daime era visto naquelas
ocasiões como uma espécie de “remédio”, que tanto podia sozinho tratar e curar uma
doença ou que, em outras situações, era usado pelo Mestre Irineu aliado a outros
recursos (infusões de ervas, remédios alopáticos, rezas, recomendações
comportamentais etc.)
Esta noção do Daime como remédio, além de se expressar nesta primeira
religião ayahuasqueira, parece ser, também, muito importante numa tradição de uso da
ayahuasca anterior à formação destas religiões, mas que, igualmente, marca um
contexto não mais puramente indígena. Refiro-me às práticas em torno desta bebida
chamadas por estudiosos como Luna (1986) de “mestiças” e “vegetalistas”,
desenvolvidas em certas regiões da Amazônia a partir de meados do século XIX,
principalmente como fruto das relações entre a população migrante envolvida com a
atividade seringueira e os grupos indígenas e mestiços que aí já viviam. Luna e outros
autores (Gow 1996) sustentam que estas práticas se diferenciavam do uso que a bebida
possuía em contextos de grupos indígenas específicos, sobretudo por expressarem uma
maior ênfase nas finalidades terapêuticas. Assim, para muitos daqueles que migravam
para a floresta amazônica, instalando-se em seringais bastante isolados, aquela bebida
de origem indígena acabava se transformando num remédio para todos os tipos de
males, “uma panaceia” (Luna, 1986, p. 35). Luna estudou, particularmente, um conjunto
de práticas e concepções próprias de uma região da Amazônia peruana, as quais eram
expressas através das ações de agentes denominados de “vegetalistas”. A principal
planta utilizada pelos vegetalistas peruanos era, justamente, a ayahuasca, concebida,
neste contexto, como uma “planta-espírito”, “maestra”, capaz de ensinar e de curar.
Apesar das várias diferenças entre o contexto e as concepções do vegetalismo peruano
ayahuasqueiro e os significados do grupo daimista fundado pelo Mestre Irineu, há
semelhanças entre ambos. Assim, por exemplo, tal como a “planta-espírito” dos
vegetalistas, o Daime, para os daimistas, é também um vegetal animado, uma “planta-
professora”, capaz de ensinar, responder perguntas (diz-se frequentemente: “pergunte ao
daime”), de trazer revelações e de curar diferentes doenças ou solucionar diferentes
infortúnios.
Já em grupos ligados à tradição fundada pelo Mestre Daniel, conhecida como
Barquinha, outro conjunto de significados sobre esta bebida ganha destaque. Estes
significados estão bastante relacionados ao universo afro-brasileiro, mais
particularmente às práticas da Umbanda. Deste modo, nos grupos da Barquinha o uso da
bebida (também chamada de Daime) está profundamente relacionado com o
desenvolvimento das capacidades mediúnicas. Nesse contexto, a bebida Daime pode ser
um agente de cura, e até mesmo ser entendida como um “remédio”, mas sua atuação
terapêutica é matizada por outros aspectos, igualmente importantes. Assim, tal como
ocorre na Umbanda, a doença, ou qualquer outro tipo de desequilíbrio (visto, de um
modo geral, como “doença”), normalmente, é entendida como resultado de um
desarranjo maior, “espiritual” e, em última instância, como fruto de uma “mediunidade
não desenvolvida”. A cura consiste, justamente, na regularização das relações entre o
médium e as entidades espirituais com as quais ele trabalha.
Tanto em grupos da Barquinha como nos do Daime ocorrem, frequentemente,
relatos de cura envolvendo situações descritas como “operações espirituais”, nas quais
elementos (objetos, símbolos etc.) do universo da medicina oficial-hegemônica
(ocidental) são recorrentes. Faz parte dessas “operações espirituais” o consumo do
Daime. Neste aspecto é possível estabelecer uma relação estreita entre estas religiões
ayahuasqueiras e demais expressões religiosas brasileiras, igualmente caracterizadas
pela questão da cura e por uma relação de ambiguidade com o discurso e as práticas da
medicina hegemônica10
.
10
A este respeito existem vários estudos. Aqui, faço referência a apenas dois deles que me inspiraram na
analogia com o caso das religiões ayahuasqueiras brasileiras (Montero, 1985; Araújo, 2002)
Há semelhanças entre os processos de cura de adeptos da Barquinha e do Santo
Daime. Nos dois casos notamos que a bebida Daime tem um papel importante no
tratamento da doença, apresentando um significado de remédio ou funcionando como
um meio de revelar os medicamentos e procedimentos necessários para a cura. Mas na
Barquinha a importância do Daime como agente terapêutico é mediada por outros
fatores, em especial, pela noção de mediunidade. É o desenvolvimento e a ordenação da
capacidade mediúnica do sujeito que, em vários casos, pode levar a cura de uma doença.
Já na religião do Santo Daime a noção de mediunidade não aparece. E o Daime ganha
um papel fundamental no estabelecimento do contato entre os fiéis e o mundo espiritual.
Os fiéis da UDV, outra religião ayahuasqueira brasileira tratada aqui,
normalmente gostam de enfatizar que eles são os únicos a possuírem uma história
extensa sobre a explicação da origem das plantas que compõem a bebida por eles
designada de Vegetal e também de Hoasca. Trata-se da História da Hoasca, um relato
que, como sustentei em outros trabalhos (Goulart, 2004 e 2010), tem um caráter de
mito. Essa história é uma narração longa que contém muitos detalhes, e faz referências a
diferentes épocas históricas. Todo o seu enredo se desenvolve para explicar a origem
das duas plantas com os quais se faz o Vegetal (isto é, a Hoasca): as folhas designadas,
neste grupo, de “chacrona”11
(Psichotria viridis); e o cipó (Banisteriopsis caapi),
denominado de “mariri”. Na História da Hoasca elementos relacionados à tradição
bíblica judaica-cristã (como o rei Salomão) se combinam a noções próprias de outras
tradições, como aquelas de grupos indígenas amazônicos que utilizam a bebida
ayahuasca. Assim, um dos motes principais da História da Hoasca é a transformação de
alguns personagens humanos em plantas, ou melhor, nas plantas que, juntas, compõem
o chá12
do Vegetal. Aqui, se está em consonância, portanto, com uma lógica típica de
grupos amazônicos (indígenas e caboclos) que consomem, em seus respectivos
contextos, esta mesma bebida.
Em muitas entrevistas e depoimentos que colhi, ao longo de minhas pesquisas,
junto a adeptos de grupos da UDV, se destacou a ideia de que o Vegetal (ou a Hoasca) é
um veículo para o contato com o mundo espiritual e que, só nesta medida, é que ele
poderia auxiliar em curas de vários tipos. Nesse sentido, no contexto da UDV a bebida
11
Importante observar que a chacrona também é designada de Hoasca. Assim, o termo Hoasca, na UDV,
pode se referir apenas a uma planta que compõe a bebida (a chacrona), ou, também, à bebida na sua
composição completa (com chacrona e mariri, isto é, com folha e cipó). A este respeito consultar a minha
tese (Goulart, 2004). 12
Nesta religião ayahuasqueira a bebida (o Vegetal ou Hoasca) é concebida como um chá e, por isso,
também, pode, em algumas circunstâncias, ser simplesmente assim designada.
parece estar menos diretamente relacionada à noção de remédio, isto quando
comparamos com o seu significado junto aos adeptos de grupos daimistas ligados à
tradição fundada pelo Mestre Irineu. Entretanto, conforme já comentei antes (Goulart,
2004 e 2010), há outro conjunto de práticas, enfatizado, em alguns momentos, nesta
religião ayahuasqueira, que expressa mais fortemente a associação entre Vegetal e
remédio13
.
Outro ponto importante sobre as concepções da bebida nestas três religiões
ayahuasqueiras é o modo como seus adeptos concebem sua relação com os seus Mestres
fundadores. Nos grupos daimistas parece haver uma relação bem estreita entre a bebida
e o Mestre Irineu. Assim, seus membros ressaltam, frequentemente, que o Daime é o
próprio Mestre Irineu. Além disso, são comuns, também, relatos de experiências
proporcionadas pela bebida com a ocorrência de visões nas quais o Mestre Irineu
aparece se transformando no cipó que é utilizado para fazer o Daime. Esse tipo de relato
está estreitamente relacionado aos relatos que narram as primeiras experiências do
próprio Mestre Irineu com a bebida, nos quais se conta que, em certas ocasiões, ele teria
se transformado ou penetrado na mesma14
. Na UDV, por outro lado, é menos comum
ouvir dos adeptos que o Mestre Gabriel, fundador deste grupo, é o próprio Vegetal.
Contudo, ao nos debruçarmos sobre o conjunto de concepções desta religião, expresso,
por exemplo, em algumas de suas histórias e mitos, percebemos que há uma ligação
profunda, na cosmologia da UDV, entre o Mestre Gabriel e o chá do Vegetal e,
inclusive, mais particularmente, entre ele e as plantas que compõem o chá. Assim, na
História da Hoasca, há toda uma relação estreita entre o Mestre Gabriel e o cipó mariri.
Além disso, na cosmologia mais geral da UDV (na qual se insere a História da Hoasca)
se salienta um conjunto de associações entre o Mestre Gabriel e os efeitos sensoriais
produzidos pelo Vegetal, denominados, neste grupo, de “burracheira”. Já nos grupos da
Barquinha não há muita ênfase, nem no discurso dos fiéis nem na cosmologia, numa
identificação entre o Mestre Daniel, fundador desta religião, e o Daime ou as plantas
que são utilizadas para sua confecção.
O que se torna claro com essa breve exposição de apenas alguns dos significados
que esta bebida possui para os adeptos de cada uma destas religiões é que ela não pode
13
Estou me referindo ao uso dos chamados “Nove Vegetais”, isto é, uma bebida composta por nove
plantas (não psicoativas) que, na UDV, são vistas como tendo uma capacidade terapêutica. Atualmente,
os líderes de grupos da UDV tendem a afirmar, publicamente, que não fazem mais uso dos Nove
Vegetais. 14
Em minha dissertação de mestrado analise mais detalhadamente um conjunto de narrativas com esse
teor, relativas às primeiras experiências do Mestre Irineu com a ayahuasca (Goulart 1996).
ser explicada tão somente como uma substância com características psicoativas ou,
ainda, não pode ser reduzida a seus aspectos farmacológicos. Mesmo quando, por
exemplo, no contexto de grupos daimistas ou da Barquinha, o Daime é concebido como
um remédio, trata-se de uma noção bem diversa daquela que se refere aos fármacos da
medicina científica ocidental. Para os fiéis destas religiões a bebida não é um composto
químico que age no organismo humano. Esta definição não abarca a complexidade de
sentidos associados ao Daime ou ao Vegetal (na UDV)15
. Em todas estas religiões
ayahuasqueiras (Daime, Barquinha, UDV) a bebida aparece, claramente, para os fiéis,
como uma espécie de ser animado, que interage com quem a consome. Pode ser uma
“Santa Luz”, termo recorrente nos grupos da Barquinha, ou uma planta-professora,
expressão que aparece em muitos hinos daimistas, ou um chá com “Força” e com “Luz”
que traz “chamadas” e “burracheira”16
, como concebem os adeptos da UDV.
De todo jeito, em todos estes casos, estamos diante de uma concepção bem
distinta daquela que implica em rotular esta bebida através de noções como
“alucinógeno” ou “droga”. Sobre este ponto, quero chamar a atenção, aqui, para a
divergência que, comumente, é possível notar entre a visão dos integrantes destes
grupos e aquela expressa tanto por seus estudiosos acadêmicos quanto em veículos de
comunicação nacionais quando eles abordam esse assunto. Enquanto em trabalhos
acadêmicos, de diferentes áreas científicas, a bebida pode, muitas vezes, ser classificada
como uma substância psicoativa e como uma droga, isto é, como uma substância capaz
de produzir alterações físicas ou psíquicas no organismo de quem a utiliza, para os
adeptos das religiões ayahuasqueiras abordadas aqui esse tipo de concepção é vista, em
geral, como equivocada, simplista e, frequentemente, também, como ofensiva.
Assim, por exemplo, num evento acadêmico do qual participei no ano de 2011,
intitulado “A Ayahuasca e o Tratamento da Dependência”, esse tipo de contraste de
visões era bastante evidente. Isto se deu porque este evento, de modo excepcional,
reunia apresentações de trabalhos de estudiosos de áreas científicas e apresentações
15
Em um artigo anterior abordei vários dos significados que esta bebida implica para membros de grupos
daimistas e da Barquinha, me detendo na análise de diferentes concepções terapêuticas presentes nestas
religiões (Goulart 2011). 16
“Burracheira”, como já disse, é um termo utilizado pelos adeptos da UDV para se referir aos principais
efeitos de modificação da percepção causados pelo Vegetal; e “chamada” é uma expressão, também
utilizada na UDV, para se referir a um conjunto de músicas que são cantadas nas cerimônias da UDV. A
maior parte das “chamadas” da UDV é de autoria do próprio Mestre Gabriel. Há um conjunto de
chamadas (cinco) que são sempre cantadas num momento específico (sempre o mesmo) das principais
cerimônias desta religião. As chamadas fazem referências às principais concepções, entidades espirituais,
elementos etc. da UDV.
realizadas por representantes de diferentes grupos ayahuasqueiros sobre suas
experiências com o uso da ayahuasca para o tratamento das chamadas dependências
químicas17
. Este evento foi realizado em dois dias, no primeiro concentraram-se as
apresentações dos representantes de grupos ayahuasqueiros, e no segundo ocorreram as
apresentações de estudiosos acadêmicos, na sua maioria da área de Ciências Humanas.
As falas de vários dos estudiosos, apresentadas no segundo dia, apesar de serem
bastante aplaudidas por uma plateia composta majoritariamente de integrantes dos
diversos grupos ayahuasqueiros ali presentes, causaram, em alguns momentos, um
evidente desconforto, gerando ressalvas e polêmicas, colocadas, em alguns casos, antes
mesmo da abertura para a sessão de debates. Foi o que ocorreu, por exemplo, quando
uma renomada antropóloga, professora de uma das Faculdades da Universidade onde se
realizava o evento, afirmou, ao longo de sua exposição, que não era preciso beber a
ayahuasca para falar cientificamente dela, já que vivência e concepções nativas se
relacionam com vivência etnográfica e concepções antropológicas, mas, não são,
jamais, a mesma coisa. A antropóloga mal conseguiu concluir seu raciocínio, pois foi
interrompida por uma só voz, em uníssono, de boa parte da plateia, que retrucava a sua
afirmação de que não “era preciso beber ayahuasca para falar dela”, dizendo: “é sim!”.
Risos constrangidos se sucederam ao episódio.
No mesmo dia, ocorreu outra mesa de apresentações composta por estudiosos,
da área de Ciências Humanas, especializados no estudo de diferentes contextos de usos
de psicoativos, principalmente da ayahuasca. Embora estas apresentações tenham sido,
em geral, muito bem recebidas por grande parte do público ali presente, muitas
expressões e interpretações colocadas causaram, também, uma reação negativa. Eu
participei desta mesa de apresentações. O título do trabalho que apresentei foi: “O
Conceito de Droga e a Ayahuasca”. Ao longo de minha apresentação, em alguns
momentos (mas não em todos), procurei apontar que a ayahuasca também (mas não
apenas) era uma “droga”, no sentido de substância psicoativa. Ao final das exposições,
no momento dos debates, vários dos presentes na plateia, que eram integrantes de
diferentes grupos ayahuasqueiros, dirigiram perguntas ou colocações a mim que
17
O evento a que estou me referindo foi um Encontro realizado em setembro de 2011 pela Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). Este evento contou
com a participação não apenas de representantes de grupos ayahuasqueiros desenvolvidos no Brasil, mas
também de integrantes de grupos usuários da ayahuasca de fora do Brasil, como do grupo peruano
Takiwasi, criado e dirigido por Jacques Mabit. Eu participei deste evento apresentando nele um trabalho
na Mesa dedicada a estudos da área de Ciências Humanas sobre diferentes contextos de usos de
psicoativos.
questionavam a analogia que eu tinha feito (entre ayahuasca e droga e psicoativo). Num
desses questionamentos me foi dito que a ayahuasca não podia ser chamada de droga,
pois droga é o crack ou a maconha, enquanto a ayahuasca é algo totalmente diferente,
“não tem nada a ver com droga”. O que me chamou a atenção, num primeiro momento,
neste tipo de fala, é que não se estava acentuando a diferença entre ayahuasca, crack e
maconha por serem substâncias (drogas) diferentes, e sim se estava enfatizando a
diferença entre ayahuasca e droga. E aqui, nesse momento, eu estava sentindo na pele a
força e a complexidade da distinção que a antropóloga da Universidade onde se
realizava o evento tinha mencionado: concepções nativas e concepções antropológicas
(e analíticas) não são equivalentes. Além disso, eu me dava conta de que a afirmação “a
ayahuasca não tem nada a ver com droga” apontava para uma imensa gama de outros
significados associados a essa bebida.
Certos tipos de interpretações, comparações e análises feitas por estudiosos
causam, por vezes, estranhamento entre integrantes de religiões ayahuasqueiras, mas
este estranhamento costuma ser muito menor do que aquele em relação a determinadas
abordagens sobre a ayahuasca expressas em alguns veículos de comunicação nacionais.
De fato, neste último caso, mais que uma diferença de visões, ocorre, muitas vezes, uma
espécie de choque, e, não raramente, integrantes de grupos religiosos ayahuasqueiros,
bastante diferentes entre si, sentem-se, contudo, igualmente ofendidos com termos
utilizados em artigos, reportagens, matérias etc. da mídia brasileira que se debruçam
sobre o tema da ayahuasca. Farei, aqui, um pequeno comentário de duas matérias
realizadas este ano e que me chamaram, mais recentemente, a atenção. Trata-se de duas
reportagens que abordaram resultados advindos do uso da ayahuasca que, em princípio,
aparecem como positivos.
Uma primeira matéria é de 24 de maio de 2015, realizada pelo programa
televiso, da emissora Rede Globo, Fantástico, exibido nacionalmente todos os domingos
desde a década de 1970. A matéria relata o caso de uma ONG denominada Acuda,
situada na cidade de Porto Velho, em Rondônia, que desenvolve um trabalho pioneiro
com a população presidiária local. Na sua atuação junto a essa população a ONG realiza
uma série de terapias que normalmente são classificadas como “alternativas”, tais como
aplicação de reiki, meditação e banhos de lama. Além destas terapias já vistas como
bastante diferentes das convencionais, a ONG Acuda oferece para uma parte dos presos
com os quais trabalha (aqueles de regime semiaberto e os que residem na própria ONG)
uma experiência com a bebida ayahuasca, também chamada na reportagem de “Daime”.
A experiência com o Daime é feita na cidade de Ji-Paraná, no interior de Rondônia,
organizada por outro grupo (chamado de “instituição” na reportagem), com o qual a
ONG parece ter uma relação de parceria. O contexto desta experiência é denominado,
na matéria, de “religioso”. De fato, conforme quem conhece mais profundamente o
tema abordado na matéria pode perceber trata-se, claramente, de um contexto ritual
próprio dos grupos ligados à religião ayahuasqueira brasileira mais conhecida pela
designação Barquinha, na qual a bebida é chamada de Daime e práticas e concepções de
cultos afro-brasileiros como a Umbanda se fazem sentir mais fortemente. A matéria do
Fantástico descreve esta experiência com a ayahuasca como “religiosa”, fazendo
referências, em sua descrição, ao uso de elementos como “orações” e “cânticos” e,
aproximando o evento de fatos, em geral, na nossa sociedade, já vistos como religiosos,
ao afirmar, por exemplo, que a “religião do Daime encontra a Umbanda”.
Entretanto, apesar disso, a reportagem apresenta uma exposição bastante
superficial do aspecto religioso ou ritual da experiência com a ayahuasca aí abordada.
Os elementos que indicariam o aspecto religioso do evento não são explicados ou
analisados, são simplesmente mencionados e, por isso, apenas prévios conhecedores
deste universo são capazes de identificar (pelas imagens apresentadas) qual é o contexto
ritual e religioso exposto na reportagem. Esses elementos mais religiosos/rituais perdem
importância em função do destaque, dado na matéria, há outro conjunto de aspectos da
experiência relatada, os quais parecem ser resumidos pela expressão “alucinógeno”. O
termo, aliás, aparece na chamada da matéria televisa (e no título da matéria colocada no
site do programa): “Presos tomam chá alucinógeno em projeto social polêmico em
Rondônia”, o que já aponta para o recorte da reportagem. Assim, mesmo quando a
matéria foca o contexto ritual-religioso da experiência ela usa e abusa de noções como
alucinógeno ou alucinações na tentativa de detalhar os significados da experiência. Por
exemplo, quando se está descrevendo o contexto de uso, ao se relatar que todos os
presentes tem que se vestir de branco, em seguida, se diz que agora “todos vão tomar o
chá alucinógeno”. Depois, na sequência desta descrição, quando se mencionam a
presença de cânticos e orações (mostrados de relance nas imagens), o narrador da
reportagem afirma que as pessoas do Daime permanecem de olhos fechados porque
assim “as alucinações ficam mais intensas”.
Os termos alucinógeno e alucinações tem origem na psiquiatria, o primeiro,
aliás, derivando do segundo. A relação entre os termos alucinógeno e alucinação faz
com que o primeiro passe a destacar significados relacionados a ilusões e falsas
experiências ou percepções. É justamente esse tipo de significado que é, muitas vezes,
questionado em alguns estudos sobre o uso de substâncias psicoativas, os quais
enfatizam o caráter autêntico (e não ilusório) destes usos18
. Além disso, essas
expressões, assim como o termo droga, quando utilizadas para se referir a ayahuasca
causam, normalmente, um mal estar entre os diversos integrantes das várias religiões
ayahuasqueiras. Para estes, assim como a ayahuasca “não tem nada a ver com droga”,
ela também não é, de modo algum, um alucinógeno que causa “alucinações”. Sem
entrar mais profundamente nessa discussão, aqui, o que quero destacar, no momento, é
que estas noções, advindas do campo da psiquiatria, me parecem pouco adequadas para
dar conta da explicação de contextos rituais e religiosos. Nesse sentido, é importante
notar que, ao longo de toda a matéria do Fantástico, só um especialista acadêmico é
consultado e, trata-se, justamente, de um psiquiatra. Nenhum estudioso de Ciências
Humanas (tais como a antropologia ou a sociologia) é citado, sendo que, no Brasil, há,
atualmente, uma razoável produção antropológica sobre o caso das religiões
ayahuasqueiras19
. O psiquiatra citado na reportagem faz parte de uma equipe que
desenvolve, no momento, um importante estudo sobre o uso da ayahuasca para casos de
depressão20
. Consultado, na reportagem, para opinar a respeito do caso da ONG que
utiliza a ayahuasca em contextos rituais e religiosos para recuperar socialmente
presidiários, o psiquiatra, em suas falas, lança mão de explicações típicas da psiquiatria.
Assim, ele afirma que “o chá aumenta a atividade em regiões muito específicas do
cérebro”, e que possui uma “ação que dura cerca de 40 a 50 minutos”, o que ele designa de
“quadro alucinatório”. As falas do psiquiatra enfatizam o caráter benéfico da bebida, e eu
não notei, nas mesmas, um sentido depreciativo das experiências abordadas na reportagem.
Quero deixar, aqui, bem clara, minha posição. Não vejo nenhum problema, evidentemente,
no psiquiatra utilizar, para sua explicação, noções da psiquiatria. Afinal, esta é sua área de
conhecimento.
O que me causa estranhamento é o destaque deste tipo de explicação para abordar
um fenômeno que, claramente, apresenta importantes conteúdos sócio-culturais. Mais do que
destaque, o que parece ocorrer aqui é um velho monopólio: o das ciências biomédicas na
18
Na introdução do livro O uso ritual das plantas de poder, teço, junto com outros colegas, comentários e
reflexões acerca dos termos “alucinógeno”, “psicoativo” e “enteógeno” (Goulart, Labate e Carneiro
2005).
19 A este respeito é importante consulta o levantamento sobre a produção de estudos relativos ao tema das
religiões ayahuasqueiras, no Brasil e em outros países, feito por Labate, Rose e Santos (2008). 20
É o estudioso Jaime Hallak, e o estudo está sendo realizado na Faculdade de Medicina do campus da
Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto.
abordagem de temas relacionados ao uso de drogas. Explicações da psiquiatria ou de outras
ciências da biomedicina podem contribuir para o entendimento de usos de psicoativos em
diferentes contextos, mas, contudo, não penso que elas podem dar conta, sozinhas, desse tipo
de experiência. Como vários autores já salientaram (Zinberg, 1984; MacRae e Simões, 2000;
Becker, 2008), desde muito tempo, o uso de drogas implica na conjunção de diferentes tipos
fatores, bio-psico-sociais. É lamentável, nesse sentido, que um senso comum sobre estas
substâncias que supervaloriza a ação de componentes químicos (e, portanto, de especialistas
biomédicos) continue sendo enfatizado em certos veículos da mídia brasileira.
A outra matéria que quero destacar, aqui, foi publicada em 14 de junho de 2015, no
Jornal Folha de São Paulo, e trata, justamente, do estudo com a ayahuasca, feito na USP,
coordenado pelo mesmo psiquiatra que é citado na reportagem do Fantástico. A matéria é
intitulada: “Em estudos, ayahuasca melhora depressão”, e comenta resultados positivos de
diferentes pesquisas com a ayahuasca, coordenadas por psiquiatras da USP de Ribeirão
Preto, que visam testar os efeitos da bebida em pessoas que apresentam quadros de
depressão e ansiedade. A maior parte dos resultados comentados na matéria foi adquirida
através do consumo da ayahuasca feito em contextos rituais religiosos (nas chamadas
religiões ayahuasqueiras). Além do psiquiatra que coordenou o estudo, já citado na matéria
do Fantástico, a reportagem da Folha usa falas de outra psiquiatra, a qual faz parte da
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), e não participou do estudo21
. Novamente,
não se recorre a explicações de especialistas das Ciências Humanas. A psiquiatra da Unifesp,
que não participou dos estudos comentados, coloca afirmações mais reticentes em relação
aos resultados dos mesmos. Assim, ela ressalta que o uso da ayahuasca para estes casos pode
ser um “risco bem sério” na medida em que a bebida “não é um antidepressivo tradicional”,
o que dificultaria avaliar se ela causa ou não dependência22
.
Já o psiquiatra que coordenou os estudos enfatiza os aspectos promissores dos seus
resultados. Entretanto, ele também destaca riscos e eventuais “problemas” do uso da bebida e
apresenta, como exemplo disso, o fato da bebida usada na pesquisa não ser um composto
químico puro que contenha apenas os princípios ativos principais. Nas suas palavras, “um
dos problemas é que a bebida é “suja” e não contém somente os princípios-ativos DMT
e THH”, mas, segundo ele, nesse formato (“sujo”), a bebida possui “contaminantes, que
podem ser responsáveis pelos efeitos colaterais”. Estes efeitos colaterais, de acordo com
21
Trata-se da psiquiatra Ana Cecília Marques. 22
Maurício Fiore faz uma análise detalhada dos significados que noções como de “risco” e de
“dependência” possuem entre especialistas da área médica que se dedicam ao estudo sobre substâncias
psicoativas (Fiore, 2007 e 2008).
esse psiquiatra, seriam as náuseas e vômitos apresentados por muitos daqueles que
bebem a ayahuasca. Não questiono que o uso da ayahuasca possa ter riscos ou mesmo
problemas para certos tipos de usuários em certos contextos. Assim como, penso e
sustento, que o uso de toda droga (ilícita ou lícita, e mesmo aquelas que são fármacos da
medicina oficial) pode ter, eventualmente, riscos, problemas, mas também, é bom
lembrar, benefícios. O que para mim é digno de nota nesses discursos é que boa parte
dos dados destas pesquisas resulta do consumo da ayahuasca feito em contextos rituais
religiosos, mas, os especialistas desse tipo de tema, majoritariamente, da área de
Ciências Humanas, não são ouvidos. Seus conceitos, teorias, interpretações etc.
parecem, aqui, desnecessários. Eles são excluídos do discurso predominante, da nossa
sociedade, sobre o uso de drogas.
Outro ponto que se destaca na fala do psiquiatra da USP é o uso da expressão
“suja”. É verdade que ele coloca o termo entre aspas, e talvez, podemos supor, isto
tenha sido feito para se atenuar o significado pejorativo da palavra. Porém, o termo está
aí, ele é usado, e mesmo que seja num sentido metafórico aponta, na visão do
especialista da psiquiatria, para um conjunto de aspectos indesejáveis da bebida. O uso
desse termo, na matéria da Folha, me fez pensar em todos esses aspectos complexos e
riquíssimos de significados que a bebida (Daime, Vegetal, ayahuasca...) possui entre os
integrantes das várias e distintas religiões ayahuasqueiras brasileiras, alguns dos quais
eu comentei nesse texto. O “sujo” da fala do psiquiatra, num outro contexto, o dos
integrantes destas religiões, pode ser apenas a porta de entrada, a ponta do iceberg de
uma vasta gama de concepções que não apenas visam explicar as experiências com esta
bebida, mas ajudam a moldar e construir seus efeitos desejáveis e benéficos, para o
corpo, a mente e o espírito. Ao desconsiderar tais concepções e saberes, e ao se
privilegiar tão somente um tipo de conhecimento (o biomédico), tal perspectiva corre o
risco, sério, (aí sim) de avançar pouco no conhecimento sobre as consequências dos
usos desse tipo de substância.
Conforme comentei no início dessa reflexão, os grupos não indígenas que se
desenvolveram, no Brasil, em torno do uso da ayahuasca foram construindo sua
legitimidade pública ao se apresentarem como religiões. Em grande medida foi
conforme eles passaram a ser vistos deste modo (como um “fato religioso”) que eles,
aos poucos, conseguiram a regularização do uso da ayahuasca pelo Estado brasileiro.
Atualmente, o discurso público de muitos dos representantes e porta-vozes destes
grupos vem mostrando algumas alterações importantes. Ao lado da sua identificação
com a esfera religiosa, eles começam a recorrer à outra associação, entre uso ritual da
ayahuasca e esfera cultural. Assim é que alguns destes grupos procuram inserir os seus
usos da ayahuasca num debate sobre patrimônio imaterial. Todos esses aspectos
indicam que o caso das religiões ayahuasqueiras brasileiras é complexo e, por isso, não
pode ser explicado apenas em função de um discurso único (pautado apenas num tipo de
saber e numa lógica) sobre drogas.
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