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UNIVERSIDADE BANDEIRANTE DE SÃO PAULO ANDRÉA NEVES SOEIRO
O IMPACTO DA EPILEPSIA SOBRE A VIDA E
OBRA DE DOSTOIÉVSKI: Uma análise de “O Idiota”
OSASCO
2006
ANDRÉA NEVES SOEIRO CURSO DE PSICOLOGIA
O IMPACTO DA EPILEPSIA SOBRE A VIDA E OBRA DE DOSTOIÉVSKI: Uma análise de “O Idiota”
Monografia apresentada como
exigência à Comissão Julgadora
da UNIBAN para obtenção do
grau de psicólogo orientado pela
Profa. Dra. Jurema Teixeira
OSASCO 2006
FOLHA DE APROVAÇÃO Andréa Neves Soeiro O impacto da epilepsia sobre a vida e obra de Dostoiévski: Uma análise de “O Idiota” Trabalho de Conclusão de Curso
Universidade Bandeirante de São Paulo
Curso de Psicologia
Data de aprovação: ______ / ______ / ______
Orientador:
Nome: Jurema Teixeira
Titulação: Profª. Drª. Em Ciências Sociais
Assinatura: ________________________________
Instituição: Universidade Bandeirante de São Paulo
Banca Examinadora:
Nome: Jurema Teixeira
Titulação: Profª. Drª. Em Ciências Sociais
Assinatura: ________________________________
Instituição: Universidade Bandeirante de São Paulo
Nome: Luiz Carlos Tarelho
Titulação: Prof. Dr. Em Estudos Psicanalíticos
Assinatura: ________________________________
Instituição: Universidade Bandeirante de São Paulo
Resumo
O presente trabalho tem como idéia central analisar o impacto da epilepsia na obra de Fyódor Mikhailovitch Dostoiévski (1821-1881), através da análise de um de seus romances, a obra “O Idiota” (1869). Para tanto, esta pesquisa se utiliza da Psicanálise, Neuropsicologia e da Literatura para a compreensão da inter-relação existente entre estes três ramos do conhecimento humano, que nos levarão a entender as conseqüências da epilepsia, sofrida por Dostoiévski (1869), em “O Idiota” (1869).
Palavras chave: Epilepsia. Dostoiévski, Mikhailovitch Fyódor, 1821-1881. Psicanálise.
Parecer do Professor Orientador Este trabalho tem como objetivo uma compreensão psicanalítica do romance “O Idiota” de Dostoiévsky, partindo da hipótese que a epilepsia do autor é o ponto nevrálgico do principal personagem: o príncipe Míchkin. Ponto central e nevrálgico pois Andréa vai desvelando que para além, das questões neuróticas que cada ser humano enfrenta, outras da existência colocam o sujeito diante de si mesmo. As crises de epilepsias são , na verdade, expressões de nossas quedas e fraturas que expõe nossa condição de desamparo e orfandade. Herói, cavaleiro e vítima, Míchkin é a expressão de uma busca para poder encontrar-se. Andréa Soeiro fez um trabalho que merece destaque pois apresenta Míchkin como a expressão de nossa desterritorialização já descrita por Guattari, nossa própria estranheza cotidiana.
1. Introdução
A aproximação entre Literatura e Psicanálise dá-se de maneira
profunda e diversa, o próprio Freud (SCLIAR, 2006)
inspirou-se em obras literárias na elaboração de suas teorias,
essa relação tem em si um ponto em comum: a palavra, a
palavra como matéria prima, Freud (STARTE, 2006) pensou
o sujeito a partir da palavra e partindo desse princípio pensou
uma prática onde os problemas psíquicos, conflitos, desejos,
pulsões etc, são expressos através das palavras, teoria e
prática expressam o campo das emoções através do discurso.
Entendemos a Psicologia através de uma de suas raízes na
Filosofia, assim os gregos já se preocupavam com as
conseqüências do poder da palavra sobre as pessoas, Platão
(na República) afirmava que o poeta conhecia o “segredo de
suscitar emoções” (MENESES, 1995, p.15), Freud
(MENESES, 1995) parodiou Shakespeare ao afirmar: “Os
poetas são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser
levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta
gama de coisas entre o céu e a terra com as quais o nosso
saber ainda não nos deixou sonhar, poetas e escritores estão
bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento da
psique já que nos nutrem em fontes que ainda não tornamos
acessíveis à ciência” (MENESES , 1995, p.14).
Freud (STARTE, 2006) afirmou serem os escritores
psicanalistas “avant la lettre” (STARTE, 2006) antes de
existir a Psicanálise os escritores já intuíam com grande
precisão a dinâmica inconsciente, e não por acaso o próprio
Freud (STARTE, 2006) buscou em Sófocles o que este já
havia intuído: a dinâmica da estruturação do sujeito na
tragédia Édipo rei, base da teoria psicanalítica sobre o
Complexo de Édipo.
Os grandes escritores intuíam, representavam e simbolizavam
facilmente o que Freud (STARTE, 2006) conseguia
penosamente através de seu trabalho clinico, nesse sentido as
artes, em especial a Literatura, criam sentido onde
aparentemente não existe e estão muito próximas da
Psicanálise pelo princípio de também esta, tentar dar um
sentido onde está o sem sentido, o caótico.
Os escritores, segundo Freud (MENESES, 1995) eram vistos
como pessoas incomuns, com habilidades especiais para
entrarem em contato com os afetos, com o mundo do id e
assim estão próximos das “fontes inconscientes” (STARTE,
2006), o conhecimento desses faz-se por via da intuição, eles
trazem para o plano da linguagem a imagem do desejo,
segundo o fundador da Psicanálise a arte é uma reconciliação
dos princípios do prazer e da realidade.
Num processo iniciado por Freud (MENESES, 1995) a
Literatura tornou-se fonte para a denominação de categorias
constituintes da Psicanálise: Édipo, narcisismo, sadismo, entre
outros, no entanto a Literatura chega a quase instituir
arquétipos de comportamento humano: “bovarysta,
quixotesco, macunaímico” (MENESES, 1995, p.15).
A Literatura revela uma realidade que é acima de tudo, a
realidade da alma humana, em ambas a relação sujeito/objeto
é uma relação de sobreposição onde o sujeito e o objeto
confundem-se: “o sujeito é o próprio objeto da busca”
(MENESES, 1995, p.16).
A busca da verdade sobre si mesmo é o que move o homem,
Psicanálise e Literatura tem em comum a leitura do humano
sem deixar as nuances nas quais está envolvido o indivíduo, o
grupo social, o contexto sócio-econômico e nesse ponto a
Psicanálise tem mais uma função: a interpretação da cultura.
Psicanálise, Literatura e Inconsciente A Psicanálise, como já foi dito, oferece uma leitura do
humano, porém sob o ponto de vista da Literatura, a
Psicanálise promove um instrumento de leitura, considerando
a abordagem psicanalítica como recurso de interpretação,
revelação e desvendamento, origina-se de raízes semelhantes
às da leitura ideológica. Leituras desmascaradoras filiam-se a
uma preocupação com as causas e condicionamentos da obra
literária sejam elas sociais ou psíquicas; ambas levam a um
desvendamento do real.
A coerência entre a análise ideológica e a leitura psicanalítica
evidencia-se: “Assim como é nos atos falhos que aflora o
inconsciente de uma pessoa é nas fraturas e impasses da
consciência de um texto que se capta a sua ideologia”
(MENESES, 1995, p.18).
Da relação entre a arte da palavra e a ciência do inconsciente
dois conceitos devem ser considerados: a memória e a
eficácia da palavra.
Sobre a memória pode-se relacioná-la com a ficção de um
texto, em seu trabalho Lembranças Encobridoras (apud
MENESES, 1995), Freud mostra o quanto uma lembrança
pode ser uma construção, uma ficção, nesse texto ele conclui
que a memória não é confiável porque nela também há o
desejo, daí depreende-se a relação entre o “rememorar” e o
inventar.
A importância do recordar no processo analítico faz-se através
da palavra, poder nomear o que anteriormente era sentido e
vivido, fazer a ligação com o mundo simbólico; A Literatura é
a “arte da palavra” (MENESES, 1995, p.36) e a Psicanálise
trabalha efetivamente com o discurso, a eficácia de um
tratamento se faz através da palavra, vinculando inteligência e
sensibilidade na encruzilhada do mental e do afetivo, a
palavra atua, “a palavra é mágica” (MENESES, 1995, p.36)
pois, para além da informação, há a criação de um mundo
(MENESES, 1995).
1.1. Apresentação
A fim de corroborar a formação acadêmica por mim recebida ao longo do curso de Psicologia, fez-se importante ao escolher um tema para pesquisa a
delimitação de algo que sendo instigante, contemplasse Psicanálise e Literatura, dois assuntos
de grande interesse.
Deste modo nascia a idéia de relacionar Epilepsia, Psicanálise
e Literatura através da obra “O Idiota” (DOSTOIÉVSKI,
1869).
1.2. Objetivo
Esta pesquisa tem como objetivo, estudar a epilepsia através
de uma das obras do escritor russo Fiódor Mikháilovitch
Dostoiévski. A obra escolhida, o romance “O Idiota” (1869),
o foi por este conter elementos essenciais na descrição dos
aspectos bio-psíquicos sociais a cerca da epilepsia, e pelo
papel que esta desempenha na trama.
Tem-se aqui um relato acerca do modo como a epilepsia é
descrita e tratada no romance, suas implicações para com a
Psicanálise através do estudo sobre alguns escritos de Freud
(1919) e também da biografia do próprio autor.
Assim temos neste estudo um instrumento de análise de uma
obra de ficção, mas com elementos muito verossímeis à
realidade dos portadores de epilepsia.
1.3. Justificativa
O porquê da escolha da tríade: Epilepsia, Psicanálise e
Literatura através do exame de “O Idiota” (DOSTOIÉVSKI,
1869), está relacionado primeiramente, a preferências de
ordem pessoal, no caso, o gosto pela literatura, em especial
pela literatura de Dostoiévski (1869).
Já a escolha deste romance se faz, por ser esta a obra do autor
com mais referências à epilepsia.
A importância, para além da manifestação pessoal, do tema faz-se através da necessidade de contribuir
para a desmistificação da epilepsia e de seu portador, a fim de conscientizar os leitores sobre esta
condição, em que se vislumbra a informação e a ciência como instrumentos de diminuição do estigma.
2. Desenvolvimento
2.1. Referencial Teórico
2.1.1. Dostoiévski e o Parricídio
A clínica e a literatura ensinam e formam discípulos pela
escuta e pela leitura e parecem opor-se na prática, mas as duas
formas unem-se no seu esforço de descrever o real impossível
de ser dito até ele ser derramado pelo discurso do analisando
ou pela escrita do escritor (WILLEMART, 1995).
Assim faz-se coerente citar Freud (apud SCLIAR, 2006) e sua
relação com a literatura, seja na elaboração de sua teoria ou
nas análises de personagens e ou autores sempre deixando
clara a idéia do não reducionismo da cultura à psicologia e da
mesma forma o unilateralismo do estudo da cultura deixando
alheia à psicologia.
Em seu ensaio sobre Dostoiévski (FREUD, 1927)
denominado: “Dostoiévski e o parricídio” (FREUD, 1927)
Freud (1927) analisa o escritor russo através da relação entre
indivíduo e o objeto paterno e suas particularidades
considerando a teoria psicanalítica.
O ensaio foi dividido em duas partes, a primeira fala da
personalidade do autor russo, de seu masoquismo e seu
sentimento de culpa relacionados à epilepsia.
A segunda parte trata da relação sobre a obra “Os irmãos
Karamazov” (apud FREUD, 1996, p.193) e o vício de
Dostoiévski (FREUD, 1927) pelo jogo, Freud (FREUD, 1996)
lança luz sobre a gênese desse vício, mas, a fim de se ater ao
objetivo deste trabalho somente a primeira parte será citada.
Segundo a análise freudiana quatro facetas podem ser
distinguidas na personalidade de Dostoiévski (FREUD,
1927): o artista criador, o neurótico, o moralista e o pecador.
O artista criador é a mais perceptível e menos duvidosa dessas
e dificilmente qualquer valorização será suficiente para
exprimir a genialidade do escritor.
O moralista em Dostoiévski (FREUD, 1927) é o aspecto mais
facilmente acessível, o escritor passou pelas mais violentas
lutas para reconciliar as exigências instintuais individuais com
as reivindicações da comunidade e veio a cair na posição
retrógrada da submissão à autoridade temporal e à espiritual
de veneração pelo czar e pelo Deus dos cristãos, e de um
estreito nacionalismo russo. Segundo Freud (1927)
Dostoiévski (FREUD, 1927) jogou fora a oportunidade de se
tornar mestre e libertador da humanidade. Parece provável
que sua neurose o tenha condenado a isso, a grandeza de sua
inteligência e a intensidade de seu amor pela humanidade,
poderiam ter lhe aberto outro caminho de vida, um caminho
apostólico.
Para Freud (1927) o “Dostoiévski pecador” (FREUD, 1927,
p.184) resulta de a personalidade do escritor possuir dois
traços essenciais aos criminosos: um egoísmo sem limites e
um forte impulso destrutivo comum a ambos, e condição
necessária para sua expressão é a ausência de amor, a falta de
uma “apreciação emocional” (FREUD, 1927, p.184) de
objetos (humanos), o instinto destrutivo muito intenso de
Dostoiévski (FREUD, 1927) que facilmente poderia tê-lo
transformado num criminoso foi em sua vida dirigido contra
sua própria pessoa manifestando-se através do masoquismo e
sentimentos de culpa.
Quanto ao aspecto neurótico da personalidade de Dostoiévski
(FREUD, 1927) cabe aqui o que Freud (1927) considerava
como neurose: um indício de que o ego não conseguira fazer
uma síntese (da complexa personalidade do autor, da
intensidade emocional de sua vida, sua disposição inata e
pervertida e seus incontestáveis dotes artísticos) e ao tentar
faze-la perdeu sua unidade, assim a neurose apresenta-se
(estritamente) sob a forma da epilepsia.
Dostoiévski (FREUD, 1927) considerava-se epilético e era
encarado como tal por outras pessoas devido às graves crises
acompanhadas por perda de consciência, convulsões
musculares e depressão subseqüente, Freud (1927) acreditava
que a epilepsia do autor nada mais era do que um dos
sintomas de sua neurose e a classificou como
“histeroepilepsia” (FREUD, 1927, p.185) (histeria grave)
porém não afirmou ter certeza absoluta do quadro pois os
dados anamnésicos do transtorno não eram confiáveis e, por
ele próprio não ter a perfeita compreensão do que chamou de
“estados patológicos combinados com crises epiletiformes”
(FREUD, 1927, p.187).
A “reação epilética” (FREUD, 1927, p.188) segundo a ótica
freudiana estava à disposição da neurose cuja essência reside
em livrar-se através dos meios somáticos de quantidades de
excitação com as quais não se pode lidar psiquicamente, então
a crise epilética transforma-se num sintoma de histeria sendo
por ela adaptada e modificada tal como é pelos processos
sexuais de descarga.
Assim em seu artigo, Dostoiévski e o parricídio (FREUD,
1927) o autor distinguiu dois tipos de epilepsia, uma epilepsia
orgânica e outra afetiva, a epilepsia orgânica é aquela onde o
indivíduo acometido apresenta uma moléstia no cérebro, já na
epilepsia afetiva a causa é a própria neurose do indivíduo.
Freud (1927) considerava a hipótese de que a epilepsia
apresentada por Dostoiévski (FREUD, 1927) era a do tipo
afetivo (neurótica) e supunha que as crises remontavam à
infância do escritor e que seu lugar foi ocupado no início por
sintomas brandos e só assumiram a forma de crises epiléticas
após a experiência aterradora pela qual passou: o assassinato
do pai.
Do ponto de vista freudiano a hipótese sugerida é que a
reação de Dostoiévski (FREUD, 1927) à morte do pai foi o
ponto decisivo de sua neurose, ainda criança o escritor sofria
de crises que tinham a significação da morte e consistiam em
estados sonolentos, letárgicos, uma sensação de que iria
morrer naquele instante.
Para Freud (1927) essas crises significavam uma identificação
com uma pessoa morta fosse com alguém realmente morto ou
com alguém que ainda estivesse vivo e que o individuo
desejasse que morresse, neste caso a crise tem então o valor
de uma punição, quero que a pessoa morra, agora sou eu essa
outra pessoa e estou morto, nesse ponto a psicanálise introduz
a afirmação de que para um menino essa outra pessoa é o pai
e de a crise constituir uma auto punição por um objeto de
desejo de morte contra um pai odiado.
“O parricídio é o crime principal e primevo da humanidade”,
(FREUD, 1927, p.190) é a fonte principal do sentimento de
culpa, embora não seja a única; O relacionamento de um
menino com o pai é marcado pela ambivalência há o ódio que
procura livrar-se do pai para conseguir exclusividade do amor
da mãe, mas há também ternura nessa relação, os dois modos
de operar o mundo interno se combinam para produzir a
identificação com o pai, o menino deseja estar no lugar do pai
porque o admira e quer ser como ele, mas também deseja tira-
lo do caminho na sua busca pelo amor materno.
Todo esse desenvolvimento se defronta com um obstáculo
poderoso, em determinado momento a criança vem a
compreender que a tentativa de afastar o pai como rival seria
punida por ele com a castração. Assim pelo temor à castração
a criança abandona seu desejo de possuir a mãe e livrar-se do
pai.
Na medida que esse desejo permanece no inconsciente
constitui-se a base do sentimento de culpa, Freud (1927) o
descreveu como destino normal do complexo de Édipo,
porém ampliou a discussão ao afirmar que devido à
bissexualidade, um menino sob ameaça de perder sua
masculinidade por meio da castração tem sua inclinação
fortalecida a divergir no sentido da feminilidade, a colocar-se
no lugar da mãe e assumir o papel desta como objeto do amor
do pai. Mas o temor à castração torna essa solução
impossível, então o menino entende que deve submeter-se à
castração se deseja ser amado pelo pai como uma mulher.
Dessa maneira ambos impulsos, o ódio pelo pai e o amor pelo
pai, experimentam repressão há uma certa distinção
psicológica do fato de o ódio pelo pai ser abandonado por
causa do temor a um perigo externo (castração) ao passo que
o amor pelo pai é tratado como um perigo interno, embora,
remonte ao mesmo perigo externo.
O que torna inaceitável o ódio pelo pai é o temor a este, a
castração é terrível seja como punição seja como preço do
amor, desses dois o medo da punição era visto por Freud
(1927) como anormal e a intensidade da patologia parecia
surgir com o temor à atitude feminina, assim uma forte
disposição bissexual inata se torna uma das pré-condições do
reforço da neurose.
Essa disposição bissexual sugerida por Freud (1927) era
verificável através do papel desempenhado pelas amizades
masculinas na vida do escritor russo, de suas atitudes
complacentes com seus rivais no amor o que para a
psicanálise só são explicáveis pelo homossexualismo
reprimido.
Freud (1927) enfatiza e detalha o complexo de castração no
caso de Dostoiévski (FREUD, 1927) por que para ele esse era
a “chave” (FREUD, 1927, p.192) para o entendimento de toda
a neurose manifestada através da epilepsia do escritor.
Ainda que muito tenha sido detalhado no ensaio sobre o
complexo de castração do escritor, Freud (1927) não se atém
a tríade: bissexualidade, ódio ao pai e medo da castração, ele
também detalha a formação do superego através do processo
de identificação com o pai, que é absorvido pelo ego e lá se
estabelece como uma parte cindida em contraste com o
restante do conteúdo do ego colocando assim o superego
como um verdadeiro “herdeiro” da influência parental, o
superego assume os atributos do pai na relação entre o ego e
ele.
Então no caso de Dostoiévski (FREUD, 1927) depreende-se
que o superego tornou-se sádico e o ego masoquista, uma
grande necessidade de punição desenvolve-se no ego, que em
parte se oferece como vítima e por outro lado encontra
satisfação nos maus tratos que lhe são dados pelo superego
(sentimento de culpa), pois toda punição, de acordo com a
psicanálise, é em última instância uma castração e assim uma
realização da antiga atitude passiva para com o pai.
Ao completar essa análise, deve-se considerar na identificação
parental do superego que o pai é temido em qualquer caso e,
especialmente no caso de Dostoiévski (FREUD, 1927), com
um pai agressivo e violento. Freud (1927) remonta ao imenso
sentimento de culpa do escritor bem como de sua conduta
masoquista, a um componente feminino intenso.
Assim, ele sintetiza a personalidade de Dostoiévski (FREUD,
1927) à de uma pessoa com uma disposição bissexual inata
intensa, que pode defender-se com intensidade especial contra
a dependência de um pai severo. Seus sintomas de crise
semelhantes à morte podem ser compreendidos como uma
identificação paterna por parte de seu ego, a qual é permitida
pelo superego como punição, um mecanismo comum dos
sintomas histéricos.
Resumidamente, Freud (1927) coloca que a relação indivíduo
e seu objeto paterno no caso do escritor, transformou-se numa
relação entre ego e superego, reações infantis oriundas do
complexo de Édipo podem não florescer caso a realidade não
lhes proporcione meios, mas no caso de Dostoievski o caráter
do pai senão permaneceu o mesmo piorou ao longo do tempo
e assim o ódio de Dostoiévski (FREUD, 1927) para com o pai
e seu desejo de morte contra esse pai vil foram mantidos.
Portanto quando seu pai fora assassinado o escritor viu sua
fantasia tornar-se realidade e então suas defesas foram
reforçadas, daí as crises assumirem um caráter epilético ainda
que significassem uma identificação com o pai como punição,
mas eram terríveis como a própria morte violenta do pai.
Freud (1927) finalizando a primeira parte de seu ensaio
afirma que Dostoiévski (FREUD, 1927) nunca se libertou dos
sentimentos de culpa oriundos do seu desejo de matar o pai e
que tais sentimentos foram determinantes nas suas atitudes
para com a autoridade do Estado, para com a Igreja e
sobretudo na literatura.
2.1.2. Apresentação do autor: Fiódor Mikháilovich
Dostoiévski
Em junho de 1812 a Rússia é invadida pelas tropas
napoleônicas, e a elas se rende após uma batalha sangrenta.
Após cinco semanas numa Moscou incendiada, abandonada
por seus moradores, tem início a famosa retirada do Grande
Exército, ordenada por Napoleão.
Mas as tropas russas seguem-lhes as pegadas até a Alemanha,
e nesse país travam diversas batalhas. A perseguição continua
até Paris, onde, no mês de março de 1814, Alexandre I entra
triunfalmente (OS IMORTAIS, 1971).
De volta à Rússia, jovens oficiais se impressionam com os
abusos da burocracia, com a arbitrariedade do governo, com o
sofrimento dos servos, com juízes corruptos, entre outros
desmandos. Algumas sociedades secretas começam a se
organizar para reverter a situação, e até 1820 ocorrem vários
movimentos revolucionários por todo o país.
E é nessa Rússia conturbada, na cidade de Moscou que nasce
Fiódor Mikháilovich Dostoiévski (OS IMORTAIS, 1971), em
outubro de 1821, descendente de uma aristocrática família
lituana, porém agora sem fortuna alguma (OBRAS PRIMAS,
2001).
O pequeno Dostoiévski (OS IMORTAIS, 1971) cresce em
meio à pobreza e a pessoas doentes; seu pai é médico em um
sanatório para pobres em Moscou, e é nesse local que reside a
família (OS IMORTAIS, 1971).
Além das condições materiais bastante adversas, ainda lhe
amarguram a vida o temperamento despótico e brutal do pai
(DIEGUEZ, 2006). Pela casa toda ecoavam os gritos de
Mikhail a perseguir o filho, até sono adentro em pesadelos
cruéis, e a triste passividade de sua tuberculosa mãe, Maria
Fiodoróvna Nietcháieva (OS IMORTAIS, 1971).
Martirizado, Dostoiévski (OS IMORTAIS, 1971) alimenta a
esperança de que o pai morra, o que chega a pedir a Deus em
suas preces, contudo quem morre é a mãe que não resiste a
tantos sofrimentos.
Viúvo, Mikhail dedica-se com mais afinco ao trabalho e
resolve mandar o filho, na época com 16 anos, para a escola
militar de engenharia de São Petersburgo, e é ali entre
exercícios de campanha e cálculos matemáticos que o
adolescente Fiódor (OS IMORTAIS, 1971) descobre o prazer
da literatura (OBRAS PRIMAS, 2001).
Em Byron (1788-1824) encontra a exaltação dos sentimentos,
o arroubo emocional, a paixão da liberdade, a angústia pelos
problemas da existência. Em Victor Ugo (1802-1885) o culto
às tradições populares, o ardor patriótico, a preocupação
social. Shakespeare (1564-1616) dá-lhe a certeza de que os
sofrimentos são falhas da natureza humana, não envolvendo,
como na tragédia grega, determinação divina (OS
IMORTAIS, 1971).
Em Cervantes (1547-1616) revela-lhe o perfil do homem
bom, tão bom que não se ajusta a este mundo, e Homero
(século VII a.C.) empresta-lhe o símbolo da coragem: Ulisses
enfrenta uma existência repleta de padecimentos para
conquistar a felicidade, todas essas idéias encontram no
temperamento de Dostoiévski solo propício para germinar
mais tarde.
Desse encontro com os grandes escritores vem tirá-lo a
inesperadamente a morte, por assassinato, do pai em 1839.
Esse fato acaba atormentando a consciência do jovem Fiódor
(OS IMORTAIS, 1971) que rezara tanto para ver-se livre
dele, amargurado, angustiado pelo remorso (não rezara tanto
ele para que o pai morresse? não pretendera ver-se livre dele?
não seria essa morte a realização do seu desejo?), sentindo-se
responsável por toda a miséria do ser humano ele busca se
redimir por meio da criação literária (OS IMORTAIS, 1971).
Então aos 20 anos começa a escrever Boris Godunov (1841) e
Maria Stuart (1841) que não só refletem a preocupação de
seguir a moda romântica como também sua problemática
pessoal: o primeiro é a história de um tirano, como seu pai, e
o segundo é o drama de uma rainha infeliz e injustiçada, como
sua mãe. Fiódor (OS IMORTAIS, 1971) não conclui nenhuma
das duas obras.
Em 1844 ainda tentando seguir os padrões do romantismo
Dostoiévski começa a elaborar Pobre Gente (1845), novela
que descreve o ambiente medíocre em que vive, por fim cada
vez mais fascinado pela literatura, demite-se do cargo público
para dedicar-se inteiramente à carreira de escritor.
Publicada em 1845, Pobre Gente transforma-se em sucesso de
público e crítica, o que o encoraja a escrever com mais afinco,
em 1847, ano em que sai a segunda edição de Pobre Gente
(1845) sofre uma séria crise de epilepsia, no ano seguinte
publica o Duplo (1848), romance em que não obtém sucesso.
A fase de glória parece estar chegando ao fim, a fama começa
a declinar: os críticos e autoridades literárias russas que tanto
o haviam elogiado chegam a confessar de público que se
enganaram a respeito de seu talento literário.
Tão inesperada mudança isola Dostoiévski do convívio geral,
é tomado então por repentinas dúvidas a respeito da própria
capacidade e de qual seria sua real vocação.
Em 1848 Dostoiévski começa a freqüentar um grupo
socialista de idéias radicais em São Petersburgo do qual
passou a fazer parte, mais tarde, no entanto no livro Os
Possessos (1871), denunciaria o clima de violência e niilismo
vigente entre os revolucionários, acusando-os de agir
sobretudo movidos pelo tédio e de viverem inutilmente à
custa dos servos.
Antes do rompimento com o grupo, porém, o escritor já se
havia comprometido em favor do socialismo em seus
discursos públicos, denunciado juntamente com os
companheiros de grupo é preso e condenado à morte por
fuzilamento.
Já no patíbulo, no momento em que se iria cumprir a
sentença, um toque de clarim interrompe a cerimônia,
Dostoiévski passa pela macabra “falsa execução”
(DOSTOIÉVSKI, 1996) uma experiência que descreve de
maneira vigorosa em seu romance O Idiota (1869).
Ao invés da execução a pena fora comutada em prisão
perpétua com trabalhos forçados na Sibéria.
Dostoiévski parte para a Sibéria na véspera do Natal de 1849,
na bagagem leva apenas um exemplar do Evangelho e nele
encontra alento, força e a certeza de que seus sofrimentos são
o preço necessário da redenção, estava expiando não só o
crime político, mas a condição humana de imperfeição (OS
IMORTAIS, 1971).
É do Evangelho também que advém a crença de que os
pobres, as crianças, os que estão no limite entre a razão e a
loucura, os que ouvem mais o raciocínio, os indefesos, os
humilhados e ofendidos, os puros, os ingênuos, são esses os
prediletos do coração de Deus.
Em suas meditações conclui que tais qualidades que atraem o
favor divino, são as mesmas do povo russo, através do
desenvolvimento e da perseveração delas, os russos haverão
de se redimir, de se unir fortemente para, coesos e puros,
promover a coligação de todos os povos eslavos, sob a
liderança do czar e da Igreja Ortodoxa (OS IMORTAIS,
1971).
Na convivência com ladrões, criminosos e prostitutas no
exílio Dostoiévski jamais põe em dúvida a bondade humana,
ainda que nesse período tenha passado por grandes
dificuldades físicas e emocionais, além de vários ataques de
epilepsia, a partir dessa experiência escreve Recordações da
Casa dos Mortos (1862) e em um trecho do livro diz: “Posso
afirmar que no ambiente mais ignorante e mesquinho
encontrei sinais incontestáveis de uma espiritualidade
extremamente viva” (OS IMORTAIS, 1971, p.155).
A experiência carcerária na Sibéria foi importante para sua
evolução como escritor, em um dos seus romances o
protagonista é o moderno “anti-herói” (o príncipe Míchkin de
“O Idiota”, 1869, tema deste trabalho) com a ambivalência
entre a moral tradicional e as virtudes sociais (BROCA, 1960;
MENDES, 1995).
Após cinco intermináveis anos de trabalhos forçados, em
1854 aos 33 anos Dostoiévski é incorporado como soldado
raso em uma guarnição siberiana onde passa outros cinco
anos, não tem amigos, nem família, nem tampouco dinheiro,
na fria solidão da Sibéria apaixona-se por uma mulher casada,
Maria Dimitriévna Issáievna (OBRAS PRIMAS, 2001).
Seu sofrimento aumenta quando ela muda-se para outra
cidade, mas depois de alguns meses, para sua alegria, ele
vislumbra uma esperança pois Maria ficara viúva, e então em
menos de um ano passado o período de luto, eles se casam em
1857.
O casamento não tem um bom começo, na noite de núpcias
Dostoiévski sofre uma violenta crise de epilepsia, a mulher
apenas o observa com espanto (OBRAS PRIMAS, 2001).
Na fria Sibéria a desolação da paisagem o deprime, sua saúde
é péssima, o casamento revela-se um fracasso, tudo que lhe
resta é escrever um novo romance e esperar que o czar lhe dê
permissão para voltar a São Petersburgo.
Então em 1859 Alexandre I lhe concede permissão para
retornar a cidade, que tantas vezes iria retratar em seus
romances, porém, o retorno é solitário e melancólico os
amigos já o esqueceram e o público também.
Recorre então a seu irmão Mikhail com quem funda o jornal
O Tempo, e sem perder o ânimo publica Recordações da
Casa dos Mortos (1862) que faz com que seu nome ressurja e
desperta o público da apatia, no entanto a fama não lhe é
suficiente para livrá-lo das graves dificuldades financeiras,
tudo o que ganha o escritor gasta com a mulher doente,
contrai empréstimos que não consegue pagar, e por fim ao
ver-se ameaçado por credores foge para o exterior.
Dostoiévski deixa Maria em São Petersburgo, e com recursos
obtidos na Caixa de Socorros para Escritores Necessitados
percorre a Alemanha, Itália, Suíça, França e Inglaterra
levando consigo uma jovem estudante partidária do
feminismo, entusiasta da literatura e candidata a romancista,
Polina Súslova, (OS IMORTAIS, 1971) que posteriormente
seria imortalizada nas protagonistas de vários de seus
romances entre eles: a protagonista de O Jogador, a Aglaia de
O Idiota (1868), a Lisa de Os Possessos (1871), a Catarina
Ivanôvna de Os Irmãos Karámazov (1880), no entanto o
escritor gasta no jogo tudo o que lhe resta e mais o que
consegue ganhar com a penhora de seus pertences e os de
Polina que empresta-lhe alguns rublos para que pudesse voltar
a São Petersburgo (OS IMORTAIS, 1971).
Na volta a São Petersburgo em 1863, Dostoiévski encontra
sua esposa agonizante e o jornal que fundara com o irmão,
antes de sua partida, fechado por ordem do governo.
No ano seguinte encontra ânimo e funda então outro
periódico, “A Época” (1864). Ainda em 1864, num período de
três meses morrem sua esposa e seu irmão Mikhail, ficando a
seu encargo a sobrevivência da cunhada viúva e dos
sobrinhos. É em meio a esse sentimento de angústia que
Dostoiévski inicia a redação de Memórias do Subterrâneo
(1864), obra em que o autor registra a desintegração da
personalidade, que marca o completo amadurecimento
literário do autor superando modismos românticos que
marcavam as obras anteriores, passando a interessar-se pela
sondagem dos mistérios da existência e da complexidade da
alma humana, sobretudo daqueles recantos sombrios e
tortuosos por onde ronda, ameaçador, o espectro da loucura
(DOSTOIÉVSKI, 1996).
Dostoiévski está em busca do homem bom, do “Dom Quixote
russo” (BROCA, 1960) nos romances posteriores a Memórias
do Subterrâneo (1864) ele delineia seus traços em Aliócha e
Zósima, de Os Irmãos Karamázovi (1880), e em Míchkin de
O Idiota (1868).
Se todos os russos fossem iguais a Zósima ou Míchkin, a
Rússia estaria salva, e assim poderia estender a salvação a
todos os povos eslavos, unidos numa grande família,
perseverando o amor à pátria e a Deus, esse ideal presente de
modo obscuro nas primeiras obras afirma-se constantemente
nos últimos escritos do escritor (OS IMORTAIS, 1971;
MENDES, 1995).
Embora tenha encontrado o caminho para realizar-se como
escritor, Dostoiévski é um homem solitário e infeliz à
semelhança de sua personagem de Noites Brancas (1851), as
mulheres ou o recusam ou lhe concedem rápidas aventuras,
ele foge novamente para o exterior e pede Polina em
casamento, mas ela o recusa (OBRAS PRIMAS, 2001).
Após essa negativa o escritor afunda-se ainda mais no jogo e,
conseqüentemente em suas dívidas, então seu editor exige-lhe
que cumpra o prazo para a conclusão de Crime e Castigo
(1867) assim Dostoiévski contrata uma estenógrafa, Ana
Grigoriévna (OS IMORTAIS, 1971), para ajuda-lo.
Ele encanta-se com a paciência e dedicação de Ana e expõe-
lhe um suposto problema de seu novo romance: a personagem
principal, um romancista velho e doente deseja casar-se com
uma jovem cheia de vida, mas, pergunta ele a Ana, “não será
inverossímil que essa jovem o ama? Poderiam casar-se? Que
diria você a esse homem?” ao que Ana responde: “Eu lhe
diria que o amo e vou amá-lo a vida inteira” (OS IMORTAIS,
1971, p.162). Assim, esse foi o modo de o escritor em 1867
aos 46 anos de idade pedir a jovem em casamento, a mulher
que andara buscando durante toda a vida, finalmente a
encontrara (OS IMORTAIS, 1971).
Fixa-se com Ana em Genebra, dedica-se ao seu novo
trabalho as coisas parecem ganhar uma certa calma, aparente,
pois a paixão pelo jogo, porém só faz lhe aumentar as dívidas,
mas o vício o persegue e tudo empenha (da aliança ao capote)
e tudo perde (OBRAS PRIMAS, 2001).
Ana dá a luz a uma menina que morre três meses depois. A
solidão o atormenta e a morte da filha ameaça sua sanidade
mental o que é agravado pelo sentimento de culpa de privar a
amada esposa do conforto e dos bens materiais, nesse ano de
1868 o escritor publica O Idiota (1869) onde criou seu mais
enigmático herói, o enfermo e alienado príncipe Míchkin,
cercado por uma galeria de vilões, vagabundos, de santas e
pecadoras (BROCA, 1996).
Nesse romance deve-se considerar o substrato auto-biográfico
do autor, no príncipe Míchkin há muito do escritor, epilético
como ele o escritor sublima o sentimento idêntico que devia
experimentar, transferindo sua própria moléstia para um de
seus heróis (BROCA, 1960; MENDES, 1995).
Sem a filha o casal abandona Genebra e a literatura, vagueia
pela Itália e curte as penas da saudade dupla: a da criança
morta e da pátria distante, mas com a ajuda de amigos e do
editor, o escritor recebe uma ajuda financeira que mais uma
vez esvai-se em cassinos.
Tendo como única opção voltar a escrever ele o faz sem cessar, procurando ganhar o mínimo para o
sustento doméstico. O nascimento de sua segunda filha em 1869 vem atenuar um pouco a rudeza da
vida (OS IMORTAIS, 1971).
No verão de 1871 o casal retorna à Rússia e publica Os
Possessos, dois anos depois em 1873 o escritor assume o
cargo de redator-chefe em “O Cidadão” e foi a partir dessa
época que escreve algumas de suas maiores obras primas (OS
IMORTAIS, 1971).
Em 1874 publica O Adolescente e Diário de um Escritor, e
em 1880 Os Irmãos Karamázov, torna-se ídolo de seus
leitores e exemplo de força e coragem, o escritor da Rússia
que ao retratar alma de seu povo evidenciara a própria
condição humana.
As aspirações de Dostoiévski estavam enfim realizadas:
encontrara o amor que sofridamente buscara, os filhos que
quisera, porém num dia nevado de 1881 vítima de uma
hemorragia, morre aos sessenta anos, consagrado até hoje
como um dos grandes escritores da literatura universal (OS
IMORTAIS, 1971; OBRAS PRIMAS, 2001; DIEGUEZ,
2006 et al. , 1995).
2.1.3. Epilepsia
Histórico
A palavra epilepsia, de origem grega, significa “tomar de
surpresa” (BEARZOTI E FONSECA, 1986, p.17) “ser
atacado”, “ser pego de surpresa” (DONOHOE, 1982, p.3),
“ser invadido”, “ser possuído” (MANTOVANI, 2006, p.7).
Tais significados revelam como essa condição está cercada de
mitos e preconceitos.
De acordo com Topczewski (2003), na antiguidade os povos
consideravam serem as questões ligadas à saúde relacionadas
com a religião e a feitiçaria. A doença era tida como um
castigo divino, aplicado por conta de algum pecado cometido
pela pessoa, ou por algum familiar.
A epilepsia era considerada a “doença sagrada” (DONOHOE,
1982, p.3) ou o “mal sagrado” (DIEGUEZ, 2006) a ela era
atribuída à possessão por espíritos. Na Roma antiga era dado
o nome de “mal comicial” (TOPCZEWSKI, 2003, p.15) pelo
fato de que muitas pessoas eram acometidas pelas crises
durante os comícios.
Em 1500 a.C., na Índia a epilepsia não era considerada uma
doença do espírito, mas uma espécie de retardo mental. Tal
como no folclore russo o epiléptico era considerado
acometido pela “idiotia” (BROCA, 1960) que por sua vez era
vista como uma doença divina.
Hipócrates, 460 a.C. afirmara ser a epilepsia uma doença de
origem cerebral, já no século dezenove, considerava-se que
ela era causada por excesso de relações sexuais ou
masturbação.
Infelizmente, a epilepsia é vista ainda hoje como decorrente
de processos mágicos ou mitológicos, persistem ainda crenças
como o fato de ela estar relacionada ao ciclo lunar entre
outros conceitos obtusos, estas idéias só servem para
dificultar a detecção, o tratamento e o cotidiano das pessoas
com epilepsia.
Conforme Topczewski (2003) o primeiro estudo completo
sobre a epilepsia foi publicado em 1770 por Samuel A. Tissot,
a ampliação dos conceitos de Tissot foi feita por John H.
Jackson (1835-1911) descrevendo manifestações epilépticas
utilizadas ainda hoje como base para pesquisas.
A descoberta do eletroencefalograma (EEG) pelo psiquiatra
alemão Hans Berger (TOPCZEWSKI, 2003) muito contribuiu
para o avanço do estudo da epilepsia através do registro da
atividade cerebral. Os pesquisadores Frederick Gibbs, Erna
Gibbs e Willian Lenox (TOPCZEWSKI, 2003) cunharam em
1937 o termo “disritimia cerebral paroxística”, considerado
por alguns autores um eufemismo, que contribui para o
mascaramento da epilepsia.
Conceituação e caracterização
Segundo Niedermeyer (1991) não se pode considerar a
epilepsia uma doença, “Não se trata de uma doença e sim de
uma reação anormal do cérebro” (NIEDERMEYER, 1991,
p.4). “A epilepsia (crises que se repetem) é um sintoma (...) é
conseqüência e não causa” (BEARZOTI E FONSECA, 1986,
p.20). Sendo assim neste trabalho consideraremos tais
conceitos e não classificaremos a epilepsia como doença, mas
sim como uma condição, mesmo que existam outros autores
que não a considerem como tal, assim a entendemos, pois
consideramos que os conceitos que a caracterizam como
doença, induzem ao estigma e ao preconceito em relação aos
portadores.
A epilepsia não se reduz às crises com perda de consciência,
espuma nos lábios, convulsões e contrações musculares, estas
são apenas algumas das características relativas às crises
generalizadas.
A classificação das crises epiléticas faz-se através de três
grandes grupos: crises focais ou parciais, crises generalizadas
e ausências.
A crise não é uma doença, mas um sintoma que poderá
ocorrer em várias doenças de origem neurológica ou não
(TOPCZEWSKI, 2003). Nem todo indivíduo que fora
acometido por uma crise é portador de epilepsia, vários
fatores como febres, infecções, drogas ou alterações
metabólicas podem desencadear convulsões.
As crises ou convulsões epilépticas são caracterizadas por
descargas elétricas anormais na atividade dos neurônios
(MANTOVANI, 2006). Conforme Dieguez (2006) o cérebro
suporta apenas que um determinado número de componentes
funcione ao mesmo tempo, portanto quando ocorre a crise, o
processo de excitação entre os neurônios se acelera e a
transmissão se propaga de um neurônio a outro sem que nada
possa pará-lo, uma espécie de “tempestade cerebral” de
“curto circuito cerebral” (MANTOVANI, 2006, p.8).
Assim, quando este “curto circuito” atém-se a uma parte específica do cérebro recebe o nome de crise
ou convulsão parcial ou focal, também conhecida por “pequeno mal” (NIEDERMEYER, 1991, p.5).
Caso a região atingida for a responsável pelo controle dos
movimentos, poderá ocorrer repuxamento dos dedos de uma
das mãos, ou dos músculos da boca. (BEARZOTI E
FONSECA, 1996). Os sintomas podem variar muito:
alucinações auditivas, oftaltivas, visuais, ações involuntárias,
paralisias, dores e até mesmo orgasmos (DIEGUEZ, 2006).
Nas crises generalizadas a descarga ocorre em todo o cérebro,
tais crises também são chamadas de crises tônico-clônicas e
também de crises de “grande mal” (NIEDERMEYER, 1991).
Segundo Niedermeyer (1991) há um equívoco na
classificação das crises parciais como “pequeno mal”, e as
crises generalizadas serem chamadas de “grande mal”
(NIEDERMEYER, 1991, p.5). Segundo o autor, estas
denominações não auxiliam, e pelo contrário prejudicam os
portadores, aumentando o estigma em torno dos mesmos.
Nas crises generalizadas a pessoa perde repentinamente os
sentidos, há enrijecimento do corpo (fase tônica), seguida da
apresentação repetida de movimentos bruscos (fase clônica).
Durante a convulsão poderá ocorrer incontinência urinária ou
fecal, salivação e a respiração tornar-se ruidosa, é importante
ressaltar que a pessoa não sente dor durante a crise, e não se
lembra do que ocorrera durante a mesma.
A recuperação do acesso vai se dando aos poucos, a pessoa
poderá mostra-se confusa, queixar-se de dores de cabeça,
náuseas, apresentar ânsia de vômito, mal estar e sono
(DONOHOE, 1982).
Com relação ao terceiro tipo de crise epilética, conhecida
como “ausência” (NIEDERMEYER, 1991, p.5), tratam-se de
crises caracterizadas por breves lapsos de consciência de
duração de cinco a vinte segundos cada. Embora rápidas essas
crises podem ser numerosas ocorrendo várias vezes ao dia.
As ausências são mais comuns em crianças e idosos, nesses
casos a pessoa não sabe o que acontece ao redor, o olhar fica
parado e não há queda ao chão (BEARZOTI E FONSECA,
1982).
Etiologia
Cerca de meio por cento da população sofre de crises
epilépticas que se repetem cronicamente, para ser considerado
portador é preciso que a crise não tenha sido desencadeada
por febre, alterações metabólicas, uso de drogas,
hipoglicemia, uso abusivo de álcool, trauma crânio-
encefálico, tumores cerebrais entre outros.
Além dos fatores já acima citados, para a crise ser
considerada epiléptica esta deverá ser recorrente, vale
recordar que a epilepsia é um distúrbio crônico recorrente e
que muitos outros distúrbios, mesmo que tenham origem fora
do sistema nervoso central, podem provocar alterações
cerebrais que culminem num fenômeno idêntico àquele
causado pela epilepsia. Assim qualquer pessoa, nas condições
adequadas, está sujeita a ter uma convulsão.
A epilepsia pode ser provocada por vários fatores, que quando
suficientemente ativos, podem influenciar a evolução da
mesma. No entanto são raros os estudos epidemiológicos,
devido ao preconceito os portadores freqüentemente a
escondem alimentando assim à desinformação e dificultando
o tratamento (NIEDERMEYER, 1991).
Nos países subdesenvolvidos estima-se que a incidência de
epilepsia na população seja de aproximadamente de dois por
cento, nos países desenvolvidos de um por cento, a diferença
está ligada ao serviço público de saúde dos países
subdesenvolvidos ser deficitário, ocorrendo então maior
incidência de doenças infecciosas nestes países
(MANTOVANI, 2006).
Há entre os fatores desencadeantes o fator hereditário, porém
o mesmo responde por um número muito baixo do total dos
casos. Dentre os demais fatores que põem provocar as
convulsões estão a lesão cerebral, a lesão pode ocorrer
durante a gravidez (rubéola, toxoplasmose) em partos
complicados e por doenças infecciosas como encefalite,
meningite, tumores, doenças degenerativas e alterações
metabólicas.
Segundo BEARZOTI E FONSECA (1991) no Brasil uma
causa muito comum de epilepsia está ligada a cisticercose
cerebral, adquirida através de alimentos contaminados com os
ovos da taenia sollium (solitária), estes ovos se transformam
em larvas e as mesmas se transferem para o cérebro e
provocam lesões que vão dar origem às convulsões.
Há também os fatores que favorecem o surgimento da crise,
embora pessoais, os mais comuns são: uso irregular da
medicação, estresse, dormir pouco, uso abusivo do álcool,
ansiedade, período menstrual e estímulos visuais repetitivos.
Aspectos psicossociais
Segundo Topczewski (2003) um dos principais fatores a
serem considerados no estudo da epilepsia é o papel dos
fatores psicossociais que circundam o epiléptico.
O preconceito traduz-se de várias formas no plano social, e é
considerado por vários estudiosos do tema “o principal fator
responsável pelo desajustamento emocional do paciente”
(COELHO, 1980, p.27).
A dificuldade de aceitação pela qual passam muitos
portadores está freqüentemente associada ao desequilíbrio
emocional do paciente. Assim no relacionamento familiar a
pessoa defronta-se com atitudes que vão da superproteção,
como forma de minimizar o sofrimento da pessoa, ao
abandono, sendo freqüentes no caso de crianças que um dos
pais responsabilize o outro pela condição do filho.
No ambiente escolar, na maioria dos casos a pessoa é tratada
de forma estigmatizada, que podem gerar dificuldades de
aprendizagem e problemas na socialização da criança.
No caso dos adultos, o medo de que ocorram crises em
público faz com que as pessoas escondam sua condição pelo
temor da perda, do emprego, do afeto de outras pessoas e
dessa forma mantém-se um ciclo de desinformação que
corrobora o preconceito e o estigma frente a essa condição.
É grande segundo Mantovani (2006), a incidência de
depressão entre os portadores de epilepsia, além do fator
psicossocial (o temor de ser “descoberto”, ter uma crise em
público faz com que as pessoas se afastem do convívio
social); Há também o fator de origem orgânica como a local
da lesão no cérebro que gerou a epilepsia, e os efeitos
colaterais de alguns medicamentos anti-epilépticos.
Também deve ser considerado segundo a mesma autora, o
índice de transtornos mentais tais como a psicose, esta é por
sua vez dez vezes mais freqüente em portadores de epilepsia
do que em não epiléticos.
2.2. Dostoiévski e “O Idiota”
Em setembro de 1867, em Genebra na Suíça, Dostoiévski
(BROCA, 1949) então com quarenta e oito anos começa a
escrever “O Idiota” (DOSTOIÉVSKI, 1869), romance de
perfil auto-biográfico finalizado em Florença, Itália em 1869.
O romance originalmente publicado sob a forma de folhetins
no periódico “O Mensageiro Russo” (BROCA, 1949), foi
redigido em meio a várias adversidades: falta de dinheiro,
violentas crises epiléticas e a morte de sua primeira filha com
apenas três meses de idade.
“O Idiota” (DOSTOIÉVSKI, 1869) teve uma elaboração
“difícil e torturada” (BROCA, 1949, p.19) o autor o re-
escreveu várias vezes antes de decidir-se por uma narrativa
definitiva, perante a todas as adversidades decorridas no
transcurso do trabalho do escritor no romance, curiosamente
quando ele já concluía sua obra, sua esposa Ana Grigoriévna
(BROCA, 1949) lhe dá a grata notícia de que ele seria pai
novamente.
A obra, um romance denso, tortuoso, envolto num clima de
mistério, paixões lancinantes, loucura, tragédia e uma certa
aura evangélica (MENDES, 1995); Possui uma extensa gama
de tipos e tem como personagem central à figura de um
príncipe, Líev Nicoláievitch Míchkin, aqui citado como
príncipe Míchkin (DOSTOIÉVSKI, 1869).
Inspirado em Cervantes (Dom Quixote), Dickens (As
aventuras do Sr. Pickwick) e Voltaire (Pangloss) (BROCA,
1949), Dostoiévski (BROCA, 1949) escreveu “O Idiota”
(DOSTOIÉVSKI, 1869) não como um tipo ridículo e
burlesco, comum ao três anteriormente citados, até porque
não tinha o escritor no humor o seu traço característico, mas
nele havia a habilidade de mostrar “o mais profundo amargor
sob uma aparência cômica” (BROCA, 1949, p.19).
O perfil auto-biográfico do romance define-se na
caracterização do protagonista, onde é visível elementos da
personalidade do autor, bem como aspectos marcantes de sua
vivência. O fato de o príncipe ser epilético como ele, ter
vivido o episódio da falsa execução pelo qual passara na
Sibéria, suas críticas ao Catolicismo, suas preferências
artísticas, como na cena em que o príncipe descreve o que
sentiu diante do quadro de Holbein (MENDES, 1995).
À época que antecedeu a redação de “O Idiota”
(DOSTOIÉVSKI, 1869), o escritor encontrava-se a pensar na
corrupção política e espiritual do Ocidente, sabe-se por meio
de sua biografia que o autor foi um dos mais ardorosos
defensores de um forte sentimento eslavo, para ele os povos
eslavos seriam os redentores dos povos ocidentais.
Dostoiévski (DIEGUEZ, 2006) quando esteve na Sibéria
afirmou ter descoberto a “alma russa” (DIEGUEZ, 2006,
p.78), essa muito bem explorada no perfil do protagonista do
romance.
Míchkin é apresentado como a “personificação do ideal
eslavófilo” (BROCA, 1949, p.19), o russo na pureza de sua
essência, sem ser contaminado pelas deformações ocidentais,
um homem simples e puro, de uma bondade incompreendida
pelos que o cercam, mas que os afeta, e não os deixam
incólumes à presença do mesmo.
O príncipe Míchkin era um homem totalmente diferente dos
demais, com atitudes e pensamentos inteiramente contrários
aos seus contemporâneos. Enquanto a maior parte das pessoas
não o compreendem e o tomam como a um idiota, ele por sua
sensibilidade e poder de observação incomuns, as percebe em
essência, por detrás das aparências, das máscaras usadas
socialmente.
O próprio Dostoiévski (BROCA, 1949) era visto aos olhos de
muitos como uma pessoa complexa e absurda, no período que
corresponde a elaboração do romance ele passou por três
países (Alemanha, Suíça e Itália) devido aos problemas
ocasionados pelo seu incorrigível vício.
Vários adiantamentos, em dinheiro, lhe foram concedidos por
parte do editor, para a elaboração da obra, mas ele os
desperdiçava, vez após vez, colocando sua família em
delicadas situações. Nessas ocasiões o escritor prostrava-se
diante da esposa pedindo-lhe perdão e tão logo o tinha voltava
ao jogo, por analogia agia como a um idiota (BROCA, 1949).
A inspiração para fazer do protagonista, um herói idiota,
adveio do folclore russo onde “a idiotia era considerada uma
doença divina” (BROCA, 1949, p.18) pela inocência em que
coloca quem a sofre.
Não somente no folclore russo, mas também no folclore de
outros povos figura a idéia de que os simplórios e doentes
mentais são tidos como seres eleitos da vontade divina, por
serem consideradas criaturas abençoadas, dotadas de uma
sabedoria natural, instintiva que os distingue dos demais.
Em várias passagens do livro o príncipe apresenta um
discurso “profundo e iluminado” (BROCA, 1949, p.18),
despertando dúvidas nas pessoas que o rodeiam de que ele se
tratava ou não de um idiota; A simplicidade, a pureza e a
inocência consistem para o autor dons divinos capazes de
despojar do homem os preconceitos que “lhes encurtam a
vista e lhes envenenam a existência” (BROCA, 1949, p. 18).
Sabe-se que o escritor somente após vários esboços decidiu-se
sobre o conteúdo do romance, porém, um destes esboços (o
oitavo) merece destaque à medida que há nele uma
identificação do protagonista com o sentimento cristão do
autor.
O protagonista era descrito como príncipe Cristo, tal
colocação é importante para entender o perfil traçado pelo
autor para o seu herói.
“Ele é um idiota, mas é um príncipe” (BROCA, 1949)
escrevera Dostoiévski (BROCA, 1949) no referido esboço,
“É um idiota, mas é um ser superior e nobre, a pureza e a
inocência produzidas pela doença estão igualmente
condicionadas à fina estirpe desse homem diferente da
maioria” (BROCA, 1949, p.20).
No período em que esteve preso na Sibéria, Dostoiévski (OS
IMORTAIS, 1971) aprofundou-se na leitura dos evangelhos
(a única permitida) e conforme as várias passagens presentes
nos evangelhos há a frase do Cristo: “Meu reino não é deste
mundo” (BROCA, 1949), no romance o autor também sugere
que os príncipes não foram feitos para reinar neste mundo.
Míchkin humilha-se a todo instante, após ser agredido na face
perdoa seu agressor, ouve insultos e os recebe com atitudes
compreensivas para com os agressores... porque assim está
escrito “os humilhados serão exaltados e os exaltados serão
humilhados” (BROCA, 1949, p.21).
A “eslavofilia” (BROCA, 1949, p.21) do autor confunde-se
com seu cristianismo, assim o príncipe possui a imagem e
semelhança do modelo russo idealizado e apresentado ao
Ocidente.
Ao final do romance o príncipe mergulha definitivamente na
“idiotia”, ante a realidade demasiadamente adversa, Míchkin
sucumbe à força da realidade, das circunstâncias e da
insanidade.
“Agora completamente idiota, para sempre! (...) não poderia
haver outro fim” (BROCA, 1949, p.21) dissera o autor a
respeito do final concedido ao seu herói, como para que selar
seu destino infinitamente.
2.3. Epilepsia, Psicanálise e Literatura:
Uma análise de “O Idiota”
A fim de analisar o impacto da epilepsia de Dostoiévski
(DIEGUEZ, 2006) em sua obra, este trabalho se propõe ao
exame do romance “O Idiota” (DOSTOIÉVSKI, 1869).
“O Idiota” (DOSTOIÉVSKI, 1869) romance iniciado em
setembro de 1867 e finalizado em janeiro de 1869 é a sexta
publicação do escritor, tendo ele 48 anos de idade na ocasião.
Nesta obra Dostoiévski (DIEGUEZ, 2006) analisa com
“sensibilidade e profundeza as manifestações psicológicas do
epilético” (COELHO, 1980, p.26) através da figura do
protagonista da obra, príncipe Míchkin.
O príncipe nos é apresentado como um “indivíduo retraído,
desajeitado, que mantém uma ligação precária com a
realidade, mas que revela extremo refinamento em seus
sentimentos” (COELHO, 1980, p.26). Míchkin “é incapaz de
se nortear segundo as normas convencionais do meio onde
vive, é um homem inteiramente diferente dos outros, é mal
compreendido e freqüentemente considerado ridículo e
infantil; porém estabelece ligações afetivas mais profundas do
que os demais...” (COELHO, 1980, p.26).
Dostoiévski (DIEGUEZ, 2006) nos mostra as primeiras
impressões do que iremos encontrar em sua obra, quando,
como narrador, discorre sobre a aparência do príncipe:
“Através dele transparecia algo gentil, mas com uma
expressão afatigada e tão esquisita que muita gente ao
primeiro relance reconheceria estar defronte dum epilético”
(DOSTOIÉVSKI, 1869, p.2).
Ironia e ambigüidades permeiam o romance no que tange à
epilepsia e a relação das pessoas que de alguma forma se
relacionam com o príncipe. Em um dos encontros do príncipe
com Rogójin (antagonista de Míchkin), este ao falar de sua tia
exprime a veia cáustica do escritor: “Ora minha tia cozinha
uma viuvez há mais de trinta anos e passa a vida com os
iuródivii, uns romeiros malucos” (DOSTOIÉVSKI, 1869,
p.8,9).
Iuródivii, segundo nota do tradutor, é o nome dado, em russo,
aos “simples de espírito, muitas vezes epiléticos que
passavam por ter os atributos de santos e um certo dom
profético” (apud VIEIRA, DOSTOIÉVSKI, 1869, p.9).
A relação entre epilepsia e estigma social permeia todo o
romance, mas, começa a aparecer no episódio em que o
general Epantchkín, parente de Míchkin, ao descrevê-lo à sua
esposa usa das seguintes palavras: “Que freqüentes ataques
duma moléstia tinham feito dele um idiota. (Empregou
pessoalmente essa palavra “idiota”)” (DOSTOIÉVSKI, 1869,
p.28).
O mesmo general ainda a descrever o príncipe à esposa, conta
como o príncipe houvera sido tratado no exterior: (...)
“Encontrara em Berlin o professor Schneider, um especialista
suíço em tais doenças... cuidava de doentes que sofriam de
idiotia e de loucura, tratando-os por métodos próprios, com
duchas frias e ginástica, educando-os superintendendo o
desenvolvimento mental deles” (DOSTOIÉVSKI, 1869,
p.28).
“(...) Imaginem lá se existe algum tratamento para a idiotia!”
(DOSTOIÉVSKI, 1869, p.270).
Segundo BEARZOTI E FONSECA (1996) um dos motivos
que levam à rejeição do portador de epilepsia é a crença de
que ele deva ter retardo mental. Em alguns casos, segundo os
autores, a lesão cerebral que origina as convulsões é externa e
atinge partes importantes do cérebro e podem provocar além
da convulsão, distúrbios de memória e deficiência intelectual.
O preconceito está na crença de que TODO portador de
epilepsia tenha tais deficiências, quando na realidade apenas
uma pequena porcentagem dos portadores as apresenta.
O preconceito ante a epilepsia é segundo Coelho (1980) o
principal responsável pelo desajuste emocional do portador.
No romance vemos vários exemplos de situações onde o
príncipe enfrenta velada ou abertamente, constrangimentos
gerados por conta do estigma social que variam da piedade,
do desprezo ao tratamento agressivo.
Entre tais situações está o diálogo entre a Sra. Epantchína e o
general, onde a mesma fica apreensiva pensando tratar-se o
príncipe de um “pobre idiota” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.51),
após o general descrever Míchikin como uma pessoa incapaz
de responder por si própria: “É completamente uma criança,
tem um feitio quase patético! Imagina tu que lhe dão ataques,
de vez em quando” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.51), ao que sua
esposa responde: “Tu me apavoras! (...) tem ataques! Mas que
espécie de ataques?” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.51).
Em outros episódios:
“Ora aí está uma coisa que não entendo... como foi que o
senhor (um idiota ajuntou mentalmente) se tornou de repente
depositário da confiança dela...” (DOSTOIÉVSKI, 1869,
p.89).
“Veja bem! Não terá o senhor omitido alguma coisa? Que raio
de idiota! (...) não sabe nem contar as coisas direito”
(DOSTOIÉVSKI, 1869, p.91); “Em primeiro lugar este
príncipe é um doente, um idiota, e em segundo lugar - um
louco.” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.519).
Além das idéias pré-concebidas, maculadas pelo estigma, em
relação à epilepsia demonstrada pelas pessoas que circundam
o príncipe, há na obra também o modo como, segundo
Dieguez (2006), Dostoiévski via-se como epilético, ou seja,
um modo ambíguo.
A auto-depreciação aliada ao humor cáustico do autor faz-se
presente em algumas passagens do romance: “Contou-lhe que
estivera fora da Rússia; que o tinham mandado para o
estrangeiro por causa da saúde, duma certa moléstia nervosa
fora do comum, do gênero assim da epilepsia ou da dança de
São Guido” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.2,3). Na fala do
príncipe: “Todo mundo me toma por um idiota e isso também
pela mesma razão. Outrora estive tão doente que realmente
parecia um idiota” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.76).
Conforme alguns autores “epilepsia não deve ser motivo de
vergonha como não é ter enxaqueca, reumatismo, asma...”
(BEARZOTI E FONSECA, 1996, p.74), no entanto muitos
dos portadores escondem a sua condição de outras pessoas,
revoltam-se, punem a si próprios de forma a dificultar um
convívio harmonioso com essa condição.
A rejeição ou desqualificação do indivíduo para consigo
mesmo é, muitas vezes, reflexo de atitudes discriminatórias de
outras pessoas, mas que acabam por interferir na auto-imagem
e na auto-estima do portador (TOPCZEWSKI, 2003).
“Perdoe-me, mas acho que o senhor se engana no que disse de
Márfa... Era severa, mas... como não haveria de perder a
paciência com um idiota da marca que eu era naquele tempo?
(...) O senhor sabe muito bem que eu era um completo idiota”
(DOSTOIÉVSKI, 1869, p.551).
Com relação às crises, Dostoiévski (DIEGUEZ, 2006)
descreve de forma magistral como estas acontecem. O que as
precede, como estas se dão e quais são suas conseqüências.
Vale lembrar que, de acordo com os diários deixados pelo
autor e pelos registros de biógrafos, Dostoiévski (DIEGUEZ,
2006) sofria de crises generalizadas, da epilepsia do lobo
temporal, chamadas erroneamente de crises de grande mal e, é
a respeito do modo como tais crises ocorrem que trata o livro.
A tendência à epilepsia no lobo temporal é maior do que a dos
demais lobos cerebrais (NIEDERMEYER, 1991), as crises
generalizadas são a manifestação mais recorrente deste tipo de
epilepsia. O lobo temporal engloba várias funções tais como
fala, emotividade, memória, olfato, gustação e audição,
portanto em tais crises mais de uma área do lobo temporal é
atingido, e assim há comprometimento de no mínimo duas
dessas funções concomitantemente (NIEDERMEYER, 1991).
Períodos Pré-Crise
Quanto aos precedentes, segundo Topczewski (2003) existem
alterações sensoriais que podem ser visuais, auditiva,
oftaltivas, etc. Alterações comportamentais como depressão,
inquietude, irritabilidade, ansiedade entre outras.
Há também um tipo de alteração, descrito ricamente no livro,
denominado “aura” (TOPCZEWSKI, 2003, p.79); Dieguez
(2006) fala em “aura extática” (p.79) devido às sensações de
plenitude, alegria, êxtase, “muitas vezes com clara denotação
mística e religiosa” (DIEGUEZ, 2006, p.79).
A aura para Niedermeyer (1991) designa fenômenos que
anunciam a chegada da crise, como descreveu Dostoiévski
(DIEGUEZ, 2006) neste trecho do romance:
“Lembrou-se ... que sempre um minuto antes do ataque
epilético... lhe iluminava o cérebro, em meio à tristeza, ao
abatimento e a treva espiritual, um jorro de luz e logo, com
extraordinário ímpeto, todas as suas forças vitais se punham
a trabalhar em altíssima tensão. A sensação de vivência, a
consciência do eu decuplicavam naquele momento, que era
como um relâmpago de fulguração. O seu espírito e o seu
coração se inundavam com uma extraordinária luz. Todas as
suas inquietações, todas as suas dúvidas, todas as suas
ansiedades ficavam desagravadas imediatamente.Tudo
emergia calma e suave, cheia de terna e harmoniosa alegria
e esperança. Tal momento, tal relâmpago era apenas o
prelúdio desse único segundo (não era mais do que um
segundo) com que o ataque começava. (...) Que tem que seja
doença? Que mal faz que seja uma intensidade anormal, se o
resultado desse fragmento de segundo, recordado e
analisado depois, na hora da saúde, assume o valor de
síntese da harmonia e da beleza, visto proporcionar uma
sensação desconhecida e não adivinhada antes? Um estado
de ápice, de reconciliação, de inteireza e de êxtase
devocional, fazendo a criatura ascender à mais alta escala da
vivência? (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.232) (...) “Se, nesse
segundo, ou melhor, bem no último momento consciente
anterior ao taque, ele tivesse tempo para dizer a si mesmo,
clara e lucidamente: Sim, por este só momento se daria
toda a vida!” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.233).
Outra alteração que acomete a alguns epiléticos antes ou não,
da crise generalizada, é a chamada “ausência” (BEARZOTI E
PEREIRA, 1996, p.28) (TOPCZEWSKI, 2003, p.40). A
ausência já é na realidade a crise “as crises de ausência são
manifestações breves de perda de consciência (desligamentos)
com duração de 5 a 20 segundos” (TOPCZEWSKI, 2003,
p.40) “as ausências podem ser numerosas repetindo-se várias
vezes por dia” (BEARZOTI E PEREIRA, 1996, p.28).
Eis como o autor relata uma das ausências de Míchkín:
“Ah! Sem dúvida não estava se sentindo bem, hoje, a
bem dizer se achando quase no estado em que
outrora se sentia quando estava para vir um dos
ataques da sua antiga moléstia. Sabia que em tais
ocasiões costumava se sentir excepcionalmente
“ausente” de tudo, e que então confundia coisas e
pessoas, caso não se esforçasse por prestar bastante
atenção nelas” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.231).
Manifestações de caráter sensorial e comportamental, além
da aura e das ausências, foram descritas no livro, momentos
antes de uma crise generalizada do protagonista.
Com base em Dieguez (2006) é provável que Dostoiévski
(DIEGUEZ, 2006) também tenha sofrido de tais
manifestações. No romance, alusões à alucinação, confusões a
cerca da identidade de pessoas, distorções de pensamento,
sensação de perseguição, de dejá vú e fenômenos equivalentes
são mostrados na passagem anterior ao primeiro ataque,
quando Míchkín erra pelas ruas de São Petersburgo:
“Perambulou por praças e pontes, esteve parado em
esquinas admirando a fachada dos prédios. (...) De
quando em quando dava para prestar a atenção nos
transeuntes com muito interesse; depois esqueceu
essa gente das calçadas, seguiu a esmo. Sentia-se
constrangido e aflito ansiando ao mesmo tempo por
solidão.
(...) Reagiu à idéia de prestar atenção às questões que
surgiam do seu coração e do seu espírito,
murmurando para si mesmo, confusamente: “Que
culpa tenho eu de tudo isso em que me baralhei?”
(DOSTOIÉVSKI, 1869, p.230).
O estado angustiante em que se encontrava o príncipe é
descrito com detalhes mais adiante no romance:
(...)“Já na rua, se recordou subitamente de qualquer
coisa. Foi como se tivesse enfim agarrado uma
preocupação angustiosa e que desde muito o
molestava. E então percebeu que viera até ali imerso
em qualquer preocupação que já durava tempo;
(...) Durante horas e horas antes, (...) estivera a
procurar não sabia o que; as vezes se esquecia dessa
preocupação mas daí a meia hora, se tanto, ela
voltava transformada ora em angústia, ora em
apreensão” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.231).
Sobre os episódios de dejá vú:
“Mal acabara exatamente de verificar este mórbido e
até então inconsciente impulso de busca, de angústia,
de cuidado por qualquer coisa difusa, quando lhe
surgiu uma recordação que o interessou sobremodo...
Resolveu já agora verificar se deveras tinha estado
diante de tal loja cinco minutos antes, talvez; ou se
não teria sido sonho; ou se, se teria enganado”
(DOSTOIÉVSKI, 1869, p.231).
Crises
Há no romance a descrição de duas crises epiléticas, a
primeira ocorre na tentativa de Parfión Rogójin, o já citado
antagonista do príncipe, assassinar Míchkin, e a segunda já no
final do romance, na residência do casal de generais.
Eis a descrição do primeiro ataque de Míchkin:
“Os olhos de Rogójin faiscaram e um sorriso de fúria
lhe contorceu a face. A sua mão direita estava
erguida e uma coisa fulgurava nela; Míchkin nem
pensou em resistir. Apenas se recordou de que
pensou ter gritado: “Parfión não acredito!” E nisto
alguma coisa pareceu girar em partículas diante dele!
Toda a sua alma se inundou de intensa claridade
interior. Durante esse momento, o que? Meio
segundo talvez; mas ainda assim, clara e
conscientemente, se lembrou do começo do primeiro
som do pavoroso grito que rompeu do seu peito e que
não pode evitar de modo algum.Depois a sua
consciência instantâneamente se extinguiu e trevas
completas se seguiram .
Era um ataque epilético, o primeiro que tinha depois
duma longa pausa” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.241).
Logo em seguida Dostoiévski (DOSTOIÉVSKI, 1869)
descreve o ataque como narrador do romance:
“É bem conhecido que o ataque epilético sobrevém
inesperadamente. Nesse momento o rosto se deforma
horrivelmente, de modo particular os olhos. Não só o
corpo inteiro como os traços do rosto trabalham com
sacudidelas convulsivas e contorções. Um terrível e
indescritível grito, que não se assemelha a coisa
alguma, é emitido pela vítima. Nesse grito tudo
quanto é humano fica obliterado; e é impossível, ou
dificílimo, ao observador imaginar e admitir que seja
um homem quem o desfere.
É como se um outro ser estivesse gritando dentro do
homem. Pelo menos é assim que muita gente tem
descrito a impressão que isso dá. A cena dum homem
acometido de ataque epilético enche os que o
testemunham de verdadeiro e irreprimível horror,
tanto no acesso como no horror resultante havendo
um elemento de mistério”(DOSTOIÉVSKI, 1869, p.
241,242).
Segundo Dieguez (2006), conforme biógrafos de Dostoiévski
(DIEGUEZ, 2006) o próprio autor emitia um estranho grito
sempre que perdia a consciência, no início de uma crise. Ana
Grigoriévna, segunda esposa do autor, quando notava a
respiração do marido rouca e vacilante, temia pelo grito, que
classificara de “inumano” (DIEGUEZ, 2006, p.80) por que já
sabia, pelo prenúncio, que era iniciada a crise.
“Só assim se explica que o príncipe não tivesse sido
apunhalado. Decerto Rogójin bem naquele instante
foi surpreendido com a cena do ataque, ouvindo o
uivo e vendo o príncipe cambalear, cair e bater com a
cabeça violentamente num degrau”
(DOSTOIÉVSKI, 1869, p.242).
A crise descrita nesta passagem de “O Idiota”
(DOSTOIÉVSKI, 1869) nos remete, novamente à epilepsia
do lobo temporal. Dostoiévski, segundo Dieguez (2006)
chegou a escrever a seu irmão que sofria de “todos os tipos de
crise” (DIEGUEZ, 2006, p.80), esta sensação possivelmente
era devida ao modo como se dão as crises generalizadas
típicas da epilepsia do lobo temporal.
A crise descrita no romance também é, conforme Dieguez
(2006), uma crise do tipo generalizada do lobo temporal.
Estas crises dão-se com o comprometimento das partes
profundas dos lobos temporais, seguidas de descargas
sincrônicas que propagam-se para outras áreas do cérebro até
atingi-lo como um todo, provocando perda de consciência e
convulsões.
Conforme Mantovani (2006) a crise epilética é caracterizada
por “descargas elétricas anormais na atividade dos neurônios,
uma espécie de curto-circuito cerebral” (MANTOVANI,
2006, p.7), os locais dessas descargas apontam para as
características das crises. Caso a descarga tenha sido numa
região cerebral responsável pelo controle da visão, o paciente
poderá ver alterações de luz, flashes, caso seja uma região
responsável pelo sentir a pessoa poderá ter sensações de dejá
vú, etc. Todos os registros deixados pelo autor apontam,
segundo neurologistas, para este tipo de crises, assim
justifica-se o que o autor escrevera ao irmão sobre sentir
“todo o tipo de crise”.
A segunda crise dá-se de maneira mais branda, mas não
menos desconcertante:
“Ergue-se por um instante, enquanto falava. De
repente o ancião o olhou estupefato, sendo que
Lizaveta Prokófievna(1), erguendo os braços,
aturdida, exclamou: “Deus do Céu!”, pois fora a
primeira a perceber a terrível surpresa. Nisto,
Aglaia(2) se precipitou donde ele estava para ele e
ainda chegou a tempo de tomá-lo nos braços,
ouvindo com terror, a face repuxada pela angústia,
aquele uivo selvagem do “espírito que dilacera e
rasga um desgraçado” ” (DOSTOIÉVSKI, 1869,
p.564, 565).
“O cérebro funcionava bem, apesar da alma estar
inquieta e aflita” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.566).
Intervalo entre as crises
Cabe aqui um registro do que é conhecido como
“sintomatologia interictal” (DIEGUEZ, 2006, p.80), esta
corresponde ao conjunto de sintomas que se manifestam entre
uma crise e outra. Tais sintomas apontam na direção de um
tipo de personalidade próprio dos portadores de epilepsia do
lobo temporal (DIEGUEZ, 2006).
Mesmo controvertida, esta teoria já foi várias vezes aplicada a
Dostoiévski (DIEGUEZ, 2006), chegando mesmo ao ponto de
alguns neurologistas a classificarem de “epilepsia de
Dostoiévski” (DIEGUEZ, 2006, p.81).
Este “tipo” de epilepsia seria caracterizado por:
“(...) aderência excessiva a determinadas idéias,
detalhes ou pessoas; tendência compulsiva a
escrever, alto senso de moralidade e preocupação
com questões éticas relativas ao bem e ao mal,
acompanhada de idéias místicas e religiosidade,
seriedade excessiva, sentimento de culpa e
perseguição, grande emotividade; falta de interesse
pela sexualidade; convicção num destino pessoal fora
do comum”(DIEGUEZ, 2006, p.81).
Conforme Coelho (1980) algumas reações psicológicas são
consideradas, por alguns autores, particulares ao epilético.
Alguns chegam a falar em “personalidade epilética”
(COELHO, 1980, p.27), que seria o conjunto de
manifestações emocionais que surgem ante as dificuldades
que enfrentam os portadores para alcançar uma razoável
adaptação ao ambiente.
Ainda assim, conforme a autora já acima citada, toda tentativa
de simplificação, no caso da “personalidade epilética”, dos
aspectos psicopatológicos a alguns traços de personalidade
oferecem reduzida contribuição à complexidade dos
dinamismos psíquicos no estudo da epilepsia e da
personalidade.
Períodos pós-crise
Com relação ao que acomete a pessoa no período pós-crise,
também conhecido como período “pós-crítico” (DIEGUEZ,
2006, p.80), os sintomas variam conforme o tipo de convulsão
(parcial ou generalizada) e a duração da mesma.
Nesse período a pessoa poderá ficar inconsciente por alguns
instantes, confusa ou sonolenta. Nesses casos, segundo
Mantovani (2006); Donohoe (1982), deve-se informar a
pessoa do ocorrido, permitir que a pessoa descanse em
posição confortável; E, não há necessidade de alarmar-se caso
a convulsão apresentar duração menor que um ou dois
minutos, não for seguida por outras crises e certamente se a
pessoa não se machucar, não for diabética, não estiver grávida
ou doente.
No romance, Dostoiévski (DOSTOIÉVSKI, 1869), através de
seu herói, descreve quais os sintomas que o acometiam nos
períodos do pós-crise. Segundo Dieguez (2006) o autor levava
vários dias para se recuperar de uma crise e neste período
sofria de distúrbios de memória, depressão, sentindo-se tão
confuso a ponto de ter dificuldades para escrever.
“Eu acabara de ter uma série violenta e lancinante de
ataques da minha doença. Sempre que piorava e os
acessos vinham com mais freqüência eu caía numa
estupefação. Perdia a memória e embora o meu
cérebro trabalhasse, parecia que a seqüência lógica
das minhas idéias se tinha quebrado. Era incapaz de
ligar mais do que dois ou três pensamentos. Pelo
menos é a impressão que me dava. (...) Lembro-me
que vivia permanentemente assustado e com pavor.
O mais chocante era tudo me parecer estranho. Tudo
me parecia alheio e isso me oprimia”
(DOSTOIÉVSKI, 1869, p.56).
“O príncipe alquebrado, deprimido e fisicamente
incapacitado (...) isto é três dias depois do ataque,
parecia estar bem, embora sentisse ainda, por dentro,
as conseqüências do mal” (DOSTOIÉVSKI, 1869,
p.244).
Vemos nestas duas passagens o quanto o autor projetava seus
sintomas no príncipe, ou seja, o quanto ele reproduziu no
príncipe aspectos que lhe eram próprios.
A diferença na sintomatologia, dependendo do tipo e do grau
da crise é ilustrada na segunda crise de Míchkin, esta um
pouco mais branda e por isso mesmo com sintomas
ligeiramente diferentes da primeira:
“O ataque da noite anterior fora de pouca
importância, só lhe permanecendo agora, sem contar
a depressão e o enfado, dores de cabeça e pelos
membros. O cérebro funcionava bem, apesar da alma
inquieta e aflita” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.566).
_______________ (1) Nome completo da Sra. Epantchína. (2) Heroína do romance.
A fim de finalizarmos esta análise, faz-se importante citar o
caráter de ambivalência revelado por esta. Dostoiévski (1869)
em todo o romance ao se referir à epilepsia o faz de modo
ambíguo, ora associando-a a dor e sofrimento, ora
relacionando-a a êxtase e magnitude da alma.
Em seu artigo “O Estranho” (FREUD, 1919) Freud (1919)
nos direciona a compreensão da ambivalência e, nos
aproveitando de alguns trechos do romance finalizaremos esta
análise sob este viés.
O modo como Míchkin era visto entre os que o circundavam,
variava da compaixão ao desprezo pelo fato de ser ele
epilético. O modo como o próprio príncipe via-se, muitas
vezes complacente com seus pares, também ambíguo por não
se considerar doente, mas ao mesmo tempo não revidar as
injúrias que lhe eram direcionadas, apontam para o fato de ele
também não saber, ao certo de quem ele se tratava.
“Em boa hora lhe confesso, (...) que em tempos
estive tão doente, que realmente fiquei quase um
idiota. Mas já há muito tempo que me restabeleci, e
portanto não admito que me chamem de idiota no
rosto. Conquanto eu, em consideração à sua má sorte
de hoje, lhe possa perdoar isso, pois compreendo o
que seja confusão;” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p. 91)
“Sim, sou um idiota, verdadeiramente um idiota,
disse para si mesmo, num paroxismo de vergonha e
de mal estar” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.284).
Em outro trecho do romance após Míchkin ter sido
apresentado a Sra. Epantichína, esta sentencia:
“Verifico, com prazer, que o senhor não se aproxima
da criatura estranha que me foi descrita como sendo
o senhor!” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.54).
Mais adiante outro personagem se dirige ao príncipe:
“Não concordo e até me indigno quando alguém o
chama de idiota. O senhor é inteligente demais para
merecer essa classificação. Mas o senhor é tão
estranho que não se assemelha a nós outros...”
(DOSTOIÉVSKI, 1869, p.589).
Em “O Estranho” Freud (1919) nos fala sobre a ambivalência
através desta categoria aleatória do que nos causa estranheza,
do que nos é estranho e do caráter duplo que permeia este
conceito.
Freud (1919) parte do princípio de que o estranho é “tudo
aquilo que desperta medo em geral” (FREUD, 1919, p.86), e a
partir desta colocação ele realiza um extenso estudo
lingüístico no qual analisou o significado, as origens da
palavra em vários idiomas, e ao que a ela está relacionado.
Em sua pesquisa o autor nada encontra que possa relacionar
ao que é estranho algo que seja belo, atraente ou sublime
(FREUD, 1919), ou seja, a sentimentos de natureza positiva.
Pelo contrário, às estranhezas estão relacionados sentimentos
de “repulsa e aflição” (FREUD, 1919, p.86). Para o autor o
estranho é “aquela categoria do assustador, que remete ao que
é conhecido, de velho e há muito familiar” (FREUD, 1919,
p.87), mas por outro lado, algo precisa ser acrescentado ao
que não é novo e não familiar para torná-lo estranho.
No trecho do romance, referente a Sra. Epantchína já citado,
vemos que a personagem revela que antes mesmo de conhecer
o príncipe já o tinha como “criatura estranha”
(DOSTOIÉVSKI, 1869, p.54). A teoria freudiana sobre o
estranho afirma que a origem do sentimento de estranheza
está relacionada à “incerteza intelectual, de maneira que o
estranho seria sempre algo que não se sabe abordar” (FREUD,
1919, p.87).
O encontro com a Sra. Epantchína denota a aflição da mesma
em lidar com algo que ela não conhece, mas que ao mesmo
tempo mobiliza sentimentos hostis em relação a esse “algo”
que numa análise mais aprofundada poderíamos dizer se tratar
de sua própria estranheza. Do que nela é familiar e
desconhecido ao mesmo tempo. Familiar por que lhe é
próprio e desconhecido por ser recalcado.
Assim, no romance podemos compreender o porquê de
Dostoiévski (1869) colocar-se através de seus personagens –
em especial Míchkin, de modo ambíguo com relação à
epilepsia.
Se o estranho é algo que nos é ao mesmo tempo familiar e que
não sabemos como lidar, depreende-se que o autor demonstra
em “O Idiota” (DOSTOIÉVSKI, 1869) o quanto lhe era caro,
ainda que o fosse vulgar, lidar com sua condição de epilético.
Desta forma o caráter duplo desta condição revela-se, entre
outros aspectos, no modo como Dostoiévski (1869)
descrevera as crises epiléticas. Ao mesmo tempo em que estas
deixavam-no deprimido e debilitado, era também através
delas que ele de próprio punho escrevera, que pelos
momentos de êxtase (auras) que provocavam, ele seria capaz
de dar a própria vida.
3. Conclusão
Em suma, a análise do romance “O Idiota” (DOSTOIÉVSKI,
1869) demonstra o quanto a epilepsia sofrida por Dostoiévski
(1869) permeou, influenciou e até mesmo determinou o cerne
desta obra.
Em todo o romance a epilepsia aparece de modo a ser mais do
que um acessório do protagonista - ela cumpre função na
trama. Através das minuciosas descrições a cerca das
convulsões e do modo como o epilético era visto socialmente
se desenvolve a trama, bem como o modo como o próprio
autor se colocava em função destes aspectos.
Assim conclui-se que a epilepsia do autor, na obra “O Idiota”
(DOSTOIÉVSKI, 1869) é mais do que impacto, mas sim o
próprio enredo, o próprio romance.
4. Referências
BEARZOTI.P. FONSECA. L. Como enfrentar a epilepsia.
São Paulo. Ícone, 1986.
BROCA. B. Dostoiévski e “O Idiota” In: DOSTOIÉVSKI. O
IDIOTA. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1960. p.18-21.
COELHO.L.M.S. Epilepsia e personalidade. São Paulo:
Ática, 1986.
DIEGUEZ, S. O Mal Sagrado de Dostoiévski. Revista Viver
Mente & Cérebro - Revista de Psicologia, Psicanálise,
Neurociências e Conhecimento. São Paulo, nº157 p.76-81,
fev.2006.
DONOHOE, N. Epilepsias da infância. São Paulo: Livraria
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