View
219
Download
0
Category
Preview:
Citation preview
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC – SP
Mylène Goudet
Urbanismos barrocos e espaços
comunicacionais: entre o formal e o
informal em São Paulo e na
América Latina
DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
Tese apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo como exigência parcial para a
obtenção do título de Doutor em
Comunicação e Semiótica, sob
orientação do Prof. Doutor José Amálio
Pinheiro.
SÃO PAULO
2010
Banca Examinadora
-----------------------------------------------------------------------
-----------------------------------------------------------------------
-----------------------------------------------------------------------
-----------------------------------------------------------------------
-----------------------------------------------------------------------
Agradecimentos
Ao Amálio, por compartilhar conhecimentos vivos.
Ao Max, por tudo que fizemos juntos até agora.
Ao Zeca e ao Chico, porque esse amor é motor.
Ao Marcelo Min, pelo olhar-imagem que atravessou
a minha escrita.
Ao Jura, por compartilhar edifícios.
À CAPES, por viabilizar esta pesquisa.
Resumo:
Resumo:
Em São Paulo, as ocupações informais da cidade, tais como comércio ambulante, favelas e movimentos sociais pró-moradia, aparecem na grande mídia como entraves para o cumprimento de planos urbanísticos de recuperação de áreas degradadas da cidade. Porém a hipótese desta pesquisa seguiu na contramão desta idéia e investiu na possibilidade de que o urbanismo de São Paulo nutre-se justamente do diálogo semiótico entre o formal e o informal para configurar-se, sendo a informalidade um dos elementos catalisadores na assimilação e na interação entre textos aparentemente distantes que compõem o mosaico cultural da cidade. O presente estudo tem como objetivo verificar em que medida as relações dialógicas entre a formalidade e informalidade nos espaços urbanos produzem aumento no volume cultural, principalmente em metrópoles cujas séries culturais tendam a se dar nos espaços abertos, nas ruas e espaços públicos. O conceito inicial para a abordagem dos espaços analisados foi o de fronteira, de Iuri Lotman, autor fundamental nos estudos da semiótica da Cultura, por meio do qual foi possível entender a fronteira como campo de diálogo e tradução, e não como separação ou limite. Também foram aproveitados conceitos de autores que analisam relações não binárias da cidade, tais como Amálio Pinheiro, Boaventura Sousa Santos, François Laplantine, entre outros. A cidade de São Paulo apresentou-se como corpus principal de análise por sua representatividade no continente latino-americano, além da proximidade tanto afetiva como geográfica da pesquisadora, permitindo imersões constantes nos ambientes escolhidos para análise. Outra questão específica é a proposição de mescla analítica entre procedimentos do barroco literário latino-americano e as configurações urbanísticas de São Paulo. Autores como Severo Sarduy, Alejo Carpentier e José Lezama Lima esclarecem que o barroco latino-americano, mais que um procedimento estilístico, é considerado como modo não-binário de operar conexões e sintaxes no ambiente informacional difuso e descentralizado do nosso continente. Além do estudo de campo e registros fotográficos, a pesquisadora realizou pesquisas para um documentário de televisão sobre edifícios modernistas em metrópoles brasileiras, prática que revelou-se fundamental na aproximação entre teoria e objeto. Verificamos que a habilidade em transitar entre o formal e o informal estão definitivamente incorporadas como relações comunicacionais nos espaços urbanos de São Paulo, e que estes trânsitos se dão mais por aptidões culturais do que por razões socioeconômicas. Entendemos que estas conclusões possam ser verificadas, com variáveis desejáveis, em outras cidades da América Latina.
Palavras-chave: América Latina; cidade informal; espaços comunicacionais; São Paulo; urbanismo barroco
Abstract:
In Sao Paulo, the city's informal occupations such slums and social movements pro-
dwelling appear in mainstream media as objection to the implementation of urban plans
for recovery of degraded areas of the city. But the hypothesis of this research proposes
the opposite of this idea and invested in the possibility that the urbanism in Sao Paulo
is fueled by the semiotic dialogue between the formal and informal, and the informality
is the catalytic element in the assimilation and interaction between apparently distant
texts in the cultural mosaic arrangement of the city.
This study aims to verify how dialogical relationships between formality and informality
increases cultural capacity, mainly in cities whose cultural series tend to be given in
open spaces, streets and public areas.
The study is based on the approach of the concept of border, proposed by Yuri
Lotman, author of fundamental studies of the semiotics of culture, through which it was
possible to understand border as a field of translation and dialogue, and not as
separation or limit . Also recovered were the concepts of authors who analyze no-
binary relations in urban spaces, such as Amalio Pinheiro, Boaventura Sousa Santos,
François Laplantine, among others.
São Paulo was chosen as the main body of analysis due its relevance as Latin America
metropolis, besides the emotional and geographical proximity to the researcher,
allowing for diligent immersion in the environments chosen for analysis.
Another specific issue is the possibility of combining analytical procedures of the
Baroque Latin American literary and urbanist settings. Authors such as Severo Sarduy,
Alejo Carpentier and José Lezama Lima propose that the Latin American baroque,
more than a stylistic procedure is considered as non-binary syntactical system
appropriate for the diffuse and decentralized information environment of our continent.
In addition to field research, and photographic records, the researcher worked on
interviews for a documentary about living in modernist buildings in Brazilian cities, a
practice that has proved instrumental in the rapprochement process between theory
and object.
Based on the analyses undertaken, it was possible to understand that the ability to
move between the formal and informal relationships are definitely incorporated as
communication in urban spaces in São Paulo, and that these transits occur more by
cultural skills than by socio-economic reasons. We believe that these findings can be
verified with desirable variables, in other Latin American cities.
Keywords: Latin America; informal city; semiosphere; São Paulo; baroque-urbanism.
Sumário
Introdução: códigos barrocos para operar nas fronteiras 1
Capítulo 1:os barrocos
1.1 Contextos Barrocos: Europa e a crise do pensamento clássico 7
1.2 Barroco americano, barroco europeu: aproximações e distinções 11
1.3 Barroco americano: (oni)presença da natureza 15
1.4 Brasil: urbanismo barroco ou paisagem barroca? 17
1.5 O urbanismo anônimo latino-americano: alternativa ao racionalismo urbano centro-europeu 25
1.6 Contextos latino-americanos: cenários urbanos 31
1.7 América Latina: Paisagem é cultura 35
1.8 A América Latina segundo a imagem de Lezama Lima 38
1.9 O maravilhoso na América Latina é o assombro do real 44
1.10 Sintaxes no ambiente barroco: as artes do engaste 52
1.11 Séries Culturais: prerrogativas deslizantes na América Latina 57
1.12 Acontecimento: a destruição do hábito e a profanação 59
Capítulo 2: arqueologia do Império
2.1 Agenciamento: um conceito para desmontar identidades 65
2.2 Fronteira: navegação por cabotagem 74
2.3 Uma folha Antiga: a ausência de poder central na fronteira 79
2.4 Cidade empresa: crueldades urbanas 81
2.5 O modelo neoliberal e o Estado mínimo 83
2.6 São Paulo: polis x urbs 87
2.7 São Paulo: o abismal 93
2.8 Um olhar estrangeiro: o outro 97
2.9 Casas Bahia e Bradesco vão se instalar na favela
Paraisópolis, em São Paulo 106
2.10 Os nenês famintos 110
Capítulo 3: vida nas ruas
3.1 Ética para olhar o informal 116
3.2 Em primeiro lugar a rua:
fronteiras mestiças do urbanismo barroco 119
3.3 Edifício Copan
3.3.1 Dias de pesquisa de personagens para o documentário
3 Edifícios, de Jurandir Muller. 121
3.3.2 Ruas do Copan: modernismo e o “comum” 129
3.3.3 Rua Unaí: o comum na sarjeta 133
3.4 Edifício Pedregulho: o modernismo e o sol, naufrágio intensivo 138
3.4.1 A desfiguração do ideal: monumentalidade à deriva 141
3.4.2 Varanda barroca: os cobogós 142
3.5 Favela Vila Praia
3.5.1 Vila Praia: a véspera do amanhã 149
3.5.2 Situação 1: o fogo 151
3.5.3 Situação 2: o íntimo alargado.
Usos impertinentes de espaços públicos 155
3.6 Rua 25 de março
3.6.1 Trabalho, festa e guerrilha nas ruas 162
3.6.2 Cidadania latino-americana: a nódoa móvel na cidade 166
3.6.3 A rua-bazaar: o oriente somos nós 168
3.6.4 O Socorro da Alegria: grátis, nas ruas 173
3.6.5 Fim de expediente, ainda dá tempo... 174
Conclusões 178
Bibliografia 181
1
Introdução:
Códigos barrocos para operar nas fronteiras
Uma discussão recorrente no campo do urbanismo tem sido a
problemática em torno da dicotomia entre a cidade planejada e a não-
planejada, entre a cidade ideal e a cidade real. Esta separação binária aponta
para uma grande cisão urbana, na qual o elemento informal é
progressivamente alijado do campo do urbanismo para ser tomado como um
problema exclusivamente social.
Mas a informalidade produz mais do que problemas. A América Latina
tem larga tradição na produção de manifestações culturais urbanas, que
acontecem nos espaços públicos. As ruas e praças constituem o espaço
protagônico da vida cotidiana da América Latina, desde o período pré-colonial
até os dias de hoje. Estas atividades culturais - as festas, procissões e feiras
livres - têm a rua como território principal. Mas também pertence à rua
atividades cotidianas tais como ―(...) o trânsito veicular e de pedestres, o
encontro social, as manifestações políticas, a oferta sexual, a cata de papelão,
a vagabundagem e a venda ambulante, entre outras‖ (DÍOS, 2004). Todas
estas atividades apropriam-se do espaço público, e podem ser tanto previsíveis
e planejadas como erráticas e descontroladas, formais ou informais.
Enquanto a cultura prolifera, o Estado se esforça em metrificar e regular
estas diversidades em nome de uma ordenação urbana. Mas como na América
Latina a produção de cultura é um fluxo irrefreável, o Estado nunca será capaz
de criar uma forma única de representar a cidade. A informalidade apresenta-
se, portanto, como uma usina de formas de vida para sobrevivência nestas
realidades, o que significa conviver simultaneamente entre os enquadramentos
do Estado e a extrema informalidade.
Mas, como observa Torroja, não há uma separação clara entre
formalidade e informalidade, porque nunca será a pobreza e a informalidade de
um lado e a riqueza e a legalidade do outro, mas o trânsito incessante entre o
formal e o informal, o que ‖põe em evidência que os processos de
2
informalidade e formalidade não sejam substanciais, mas sim relacionais, e de
que não possam ser localizados definitivamente‖ (TORROJA, 2005, p. 65).
Este trânsito é desejável, bem como a variabilidade que engendra. Para
que o trânsito seja mais produtivo é necessário que se constele um tipo
específico de espacialidade, de ambiente poroso e permeável, que alargue a
linha divisória, transformando-a em um ―campo‖. Não é suficiente que nessa
linha alargada compareçam multiplicidades e múltiplas variáveis; para que os
embates e trânsitos entre o formal e o informal produzam espaços
comunicantes, há que existir uma ampla capacidade de sintaxe entre os
elementos em jogo. Neste ponto é que o barroco torna-se recurso para analisar
o nódulo comunicacional entre o retificado e o descontrolado nos espaços da
cidade, públicos ou não.
Para falar de barroco como recurso analítico será necessário discriminar
no mínimo dois aspectos importantes. O primeiro é que o barroco histórico
americano, aquele que nas Américas coincide com o ciclo aurífero, não é uma
imitação tardia e insuficiente do barroco histórico centro-europeu. Autores que
estudaram o barroco brasileiro do ciclo aurífero, tais como Affonso Ávilla,
Giovana del Brenna, Jorge Alberto Manrique, entre outros, souberam perceber
que nosso barroco nasceu e foi forjado no continente americano, fruto da
confluência impactante de civilizações e temporalidades muito distintas, tendo
como cenário a paisagem americana. No lugar do cansaço filosófico-religioso
europeu, que reclama algum estilo sucessório que restabeleça a ordem
perdida, aqui no continente não há ordem para a qual voltar. Nossa cultura
nasce, portanto, em estado de crise e tensão permanente.
O segundo aspecto que destacamos é que, para nós, o barroco latino-
americano não é um estilo histórico-temporal. Defenderemos que o barroco
latino-americano é um sistema operatório sofisticado que pode surgir em
situações complexas, atuais, nas quais a saída não seja uma solução única,
mas a composição de vários ―possíveis‖. Como disse Lezama Lima (apud
PINHEIRO, 2007, p. 70) ―não foi o barroco um estilo que devia ser valorizado
em presença ou ausência do gótico, mas como um húmus fecundante que
misturava cinco civilizações‖.
3
Lezama Lima, Alejo Carpentier e Severo Sarduy foram autores que,
através da literatura, fundaram o continente barroco latino-americano. Sua
literatura é toda feita a partir da indizibilidade do objeto América. Suas
traduções da paisagem cultural são barroquizantes, não chegam a uma síntese
nem modelo de cultura. Os autores criam nódulos de sentido, mas não se
propõem a simplificar a problemática das Américas. Nascemos da confluência
cultural inédita, que explodiu tradições, antes incomunicáveis, e disponibilizou
seus fragmentos para novas combinações, até então inconcebíveis. Como
disse Lotman (1996, p. 101) ―em momentos de explosões culturais (ou, em
geral, semióticas), são incorporados os textos que, desde o ponto de vista do
sistema dado, são os mais distantes e intraduzíveis (ou seja,
incompreensíveis)‖. Nestas traduções nunca teremos de volta os textos iniciais,
mas em troca disponibiliza-se uma multiplicidade de traduções (LOTMAN,
1996, p. 68).
A fronteira, para o barroco, não é um obstáculo, é um espaço ―entre
coisas‖. É a dilatação da linha divisória, que se alarga como campo para o
encontro; é um espaço no qual podem ser captados os fragmentos disponíveis
para combinações novas. O barroco é capaz de, simultaneamente, coordenar
e irradiar excedentes do cotidiano urbano, da rua: o deslocamento labiríntico, o
bombardeio visual e sonoro da cidade. Quando há um excedente de
significantes, a tendência do continente americano é compor sinuosamente,
―nem uma reunião, nem uma justaposição, mas o nascimento de uma
gagueira, o traçado de uma linha quebrada que parte sempre em adjacência‖
(DELEUZE, 1998, p. 38).
Sousa Santos (2009, p. 357) nos relembra que a fronteira é um lugar
onde as hierarquias são mais fracas e o poder do Estado é menos
determinante nas relações e, para o autor, a ―fraqueza‖ do centro na América
Latina está manifesta na mestiçagem, ―tão enraizada nas práticas culturais
desses países ao ponto de ser considerada a base de um ethos cultural
tipicamente latino-americano‖, ainda que nunca se torne um discurso
politicamente dominante. Na verdade, coloca o sistema formal em questão,
tornando ―irrisória qualquer noção de influência, de pertença, de herança ou
mesmo de transmissão‖ (LAPLANTINE; NOUSS, [s/d], p. 85).
4
Porém, o trânsito e as traduções na fronteira não são amigáveis nem
justos. Os modelos de cidade atualmente repetem nos espaços, segundo a
cartilha neoliberal, na qual a cidade - que antes era uma fábrica - é uma
empresa. No modelo de cidade-empresa, a agenda do desenvolvimento social
não existe, o Estado cuida do social como problema.
José Humberto da Silva (2009, p. 30 - 39) constata que o modelo
neoliberal tem suas bases fundamentadas na diminuição da presença do
Estado nas decisões estratégicas de desenvolvimento social. O Estado figura
como ineficiente e pesado demais para reagir às solicitações do mercado,
repassando para a iniciativa privada importantes decisões estratégicas, que
giram em torno da jurisprudência e da economia. Nesta nova agenda, a do
Estado Mínimo, o desenvolvimento social está fora. Solá-Morales (2002, p. 26)
verifica que, assim como nos demais campos da política, a cidade passa a ser
vista a partir de análises de base econômica, que apontam conveniências e
oportunidades mercadológicas, ―vocações‖, facilidades produtivas que são
logo capturadas e promovidas pelo chamado ―marketing das cidades‖. O
indivíduo também passa a ser considerado uma peça ―livre‖ para atuar no
mercado, porém sem a garantia dos direitos sociais inalienáveis, nem o acesso
às instituições públicas que garantem o exercício deste direito. ―[A] letalidade
do neoliberalismo no Brasil se dá, sobretudo, pelo atrofiamento da esperança,
da utopia e da resistência social popular organizada‖ (SILVA, 2009, p. 45).
Flusser (1983, p. 73 - 79) ilustra a falência desse modelo de cidade,
flagrando o ciclo dos migrantes nordestinos pela cidade. O autor flagra a
reação de horror e insegurança da classe média que não se reconhece mais
na cidade onde vive. Como resposta à invasão da cidade por hordas de
famintos e maltrapilhos, a cidade mercadológica expulsa os migrantes e os
canaliza na periferia. O revide é que não se pode segurá-los na periferia, nem
conter sua circulação pela cidade. Eles estão por aí, ocupando os espaços
públicos, invadindo praças e viadutos, habitando buracos e montando
trincheiras de lixo e sujeira, desmontando o senso burguês de cidade.
Deleuze-Guattari alargam o movimento que Flusser percebe em São
Paulo, explicitando que não se trata apenas de um movimento circular, do
5
centro à periferia e da periferia ao centro. Os controles impostos pelo Estado
vêm de todos os lados e não param de ser transgredidos, mas a cidade informal
também exige tradução, precisa ser inscrita na cidade formal. O que resiste são
as passagens, as alternâncias e as sobreposições de uma e de outra forma de
cidade.
Solá-Morales encontra em Deleuze-Guattari um respaldo filosófico para
incorporar à cidade as espacialidades que se desdobraram destes aumentos de
complexidade urbana que percebemos nas cidades.
Termos como dobra, brechas, nomadismo, plataforma ou platôs são não somente metáforas geográficas e geológicas como também uma tentativa de organizar a diversidade espacial. Instalação, fluxo, produção ou intempestivo são também termos que procedendo das experiências estéticas contemporâneas se convertem em verdadeiras categorias filosóficas.1(SOLA-MORALES, 2002, p. 72)
Lançando mão destes parâmetros literários, sociológicos e filosóficos,
afirmamos que o que torna o urbanismo das metrópoles latino-americanas
objeto de estudo relevante é sua extrema mobilidade e capacidade de conectar
os fragmentos em sintaxes monstruosas, de difícil compreensão, utilizando-se
da acumulação exagerada dos elementos ou do alastramento a perder de vista,
diluindo qualquer compreensão de alguma totalidade.
São Paulo e Rio de Janeiro foram pontos de partida para análises de
fronteiras urbanas barrocas, mas escolhemos pontos nodais, que não se
colocam como representação sintética da cidade. Não se trata de encontrar na
parte nenhuma síntese do todo, mas sim um ponto de variação dinâmica com
esse ―todo‖ que é a cidade. Os quatro lugares escolhidos para análise - Edifício
Copan, Edifício Pedregulho, Favela Vila Praia e Rua 25 de março – levam as
dinâmicas entre o formal e o informal, entre o projetado e o vivido ao extremo,
mantendo a tensão que os torna interessantes enquanto urbanidades
1Termos como plegamiento, greta, nomadismo, plataforma ou platôs non son solo metáforas
geográficas y geológicas sino um intento de organizar la diversidad espacial. Instalación, flujo,
producción o intempestivo, son también términos que procediendo de lãs estéticas
contemporâneas se convierten em verdaderas categorias filosóficas.
6
perfeitamente atuais. A forma de análise das imagens, entrevistas e leituras
resultou em mini-epopéias urbanas, narrativas e reflexões que não esgotam os
objetos para deixá-los abertos para proliferar outras definições.
7
Capítulo 1: Os barrocos
Contextos Barrocos:
Europa e a crise do pensamento clássico
Trata-se de uma afinidade contraída em torno da experiência
da infinitude, associada ao pathos, às vezes trágico, do logro
da vida, do caráter ilusório do mundo sensível e da existência
terrena. (NUNES, 1982/1983, p. 25).
Estudos bibliográficos apontam o barroco na Europa como um evento
que durou desde a segunda metade do século XVI até o final do século XVIII.
Benedito Nunes (1982/1983, p. 23), assim como outros historiadores
estudiosos do barroco, diagnostica este período como uma fase de profundas
mudanças no pensamento centro-europeu. Segundo este recorte, o
acontecimento do barroco coincide com o declínio do absolutismo monárquico
e com a estréia das irrefreáveis alianças entre o novo poder estatal e o
capitalismo originário do impulso mercantilista das viagens marítimas para as
Américas.
À crise política, Nunes (NUNES, 1982/1983, p. 23 - 29) soma a
avalanche de descobertas científicas, que além do incremento tecnológico,
provocaram o desmonte das hierarquias e da organização clássica do universo
até então conhecido. A astronomia de Kepler, a filosofia de Spinoza e a
matemática de Leibniz abalaram definitivamente as ordenações da razão
renascentista, ―ligando a ordem sobrenatural e a ordem natural, a lei divina e o
cosmos, a moção providencial de Deus e o movimento finalístico das
criaturas‖. (NUNES, 1982/1982, p. 23). Ao homem europeu coube entender-se
com sua insignificância num cosmo infinito e descentrado.
A dispersão infinitesimal das partículas do universo leibniziano, agora
sem o centro magnético do ser supremo, só consegue unidade na
convergência de partículas independentes – as mônadas - não determinadas a
permanecerem unidas senão por contingência, contraponto e atração. Nunes
(NUNES, 1982/1983, p. 24) apresenta a dualidade experimentada pelo homem
barroco como um sentimento de exaltação das possibilidades humanas e do
8
aprofundamento da subjetividade, o que não acontece sem a dor do
sentimento de abandono e desamparo que, paradoxalmente, essa súbita
liberdade gera. O infinito e as leis da natureza foram incorporados à
experiência mundana, interrompendo a homologia entre o homem e Deus num
plano superior e divino.
O Barroco europeu traduz os paradoxos da época como um revide ao
clássico. Não há mais espaço para a lei áurea garantir o equilíbrio das
relações entre Deus e o homem. O mundo barroco perdeu a estabilidade do
universo e propõe, no lugar da clareza clássica, uma arte extremamente
voltada para a visualidade, cuja representação da realidade resulta em
montagens engenhosamente artificiais. As composições são hiperbólicas,
assimétricas, com contornos difusos; os elementos da natureza e os
elementos profanos engastam-se aos temas sacros num grande êxtase
imagético.
O exemplo mais impetuoso citado por Nunes (1982/1983, p. 24) é a
Igreja Gesú in Roma, cujo interior
tem decoração profusa e ilusionística, em que sobressaem
elementos naturais – nuvens, rochas e conchas circundando
retábulos, alinhados lado a lado de uma nave convidativa – um
suntuoso salão de Deus – desimpedido na direção do altar
mor, e para onde se transportou o fausto mundano.
O mármore vira pano, vira planta, vira carne que o êxtase religioso faz
tremular, aprovado pela teatralidade promovida pela Igreja da Contra Reforma.
O objetivo é emocionar e para tanto o barroco europeu não mede esforços,
permitindo-se capturar elementos de outros movimentos estilísticos como o
gótico e o românico para chegar ao arrebatamento formal, como explica
German Bazin (1997, p. 19). O autor enxerga na profusão desmedida de
significados do barroco uma manobra para disfarçar o enfraquecimento do
significante. Ou seja, o homem barroco europeu encontra-se perturbado pelos
questionamentos do sagrado, tanto monárquico como religioso, perdendo o
status de mimese divina, central na paisagem sagrada da fé, para existir como
um dramático ―nada‖ diante dos mistérios do universo infinito e descentrado.
9
Teto da igreja “Gesú in Roma”
Êxtase da beata Ludovica Albertoni, de Bernini. Foto sem autor.
10
Mas vale lembrar que todos esses abalos históricos acontecidos na
Europa Central se deram em janelas temporais seculares, e não de uma hora
para outra, de forma seqüencial. A partir de Lotman (1996, p. 161), é possível
afirmar que a Europa é uma cultura que se desenvolve de modo lento e
gradual, pois se fundamenta em textos criados por ela mesma, portanto
resistente à entrada de textos estranhos aos textos dominantes, desacelerando
processos tradutórios, que são os catalisadores de novos textos.
Lotman identifica momentos nos quais a cultura se desenvolve como
que por descargas elétricas brilhantes, e que, não raro, nestes momentos,
ocorre um movimento das margens para o centro, ―de periferia da área cultural,
em centro dela‖ (1996, p. 160-162). Porém, longe de querer fixar esta posição
central, o autor percebe que o que está em jogo é a intensidade e velocidade
das culturas produzidas nestas situações. Neste caso parece bastante claro
que as Américas são um caso explícito de culturas de caráter rápido.
Ou seja, simplesmente: culturas que no seu interior abrigam
um número maior e crescente de culturas têm de aumentar sua
capacidade de tradução, acelerar a imbricação entre códigos,
textos, séries e sistemas, afinar a complexidade estrutural, a
sintaxe combinatória das intersemioses. (PINHEIRO, 2007, p.
70 - 71)2
O volume imenso de textos e memórias díspares, repentinamente em
colisão, sem haver um texto dominante, disparou cascatas tradutórias jamais
vistas.
(...) o volume da memória aumenta muito mais rapidamente do
que as possibilidades de desciframento dos textos, depois
começa uma explosão, e a nova formação de textos adquire
um caráter extraordinariamente impetuoso, produtivo.
(LOTMAN, 1996, p. 161)3
Portanto, as transformações nas Américas aconteceram e acontecem
em períodos condensados e sem antecedentes. As implicações desta
2 Revista Eletrônica Ghrebh, edição de número 06/2004, ISSN: 1679-9100. Disponível em:
<http://www.revista.cisc.org.br/ghrebh6/artigos/06amalio.htm>. Acesso em: junho de 2010. 3 Livre tradução: el volumen de la memória aumenta com mucho mayor velocidad que las
posibilidades de desciframiento de los textos, después comienza uma explosión, y la nueva formación de textos adquiere um caracter extraordinariamente impetuoso, productivo.
11
velocidade na ocasião dos descobrimentos determinaram condições
completamente diferentes para o surgimento do barroco americano.
É só lembrar que na península Ibérica - que se lançou ao mar em busca
das terras novas - não aconteceu o Renascimento, e obviamente este
fenômeno nem afetou as verdejantes Américas. Portanto o cansaço clássico e
o medo do vazio deixado no centro do universo, motores do barroco centro-
europeu, não formularam paradigmas para o acontecimento do nosso barroco,
e sim o vertiginoso encontro entre civilizações tão completamente diferentes
que até hoje não esclarecemos quem descobriu e quem foi descoberto.
Barroco americano, barroco europeu: aproximações e distinções
(O barroco americano) não é um estilo degenerescente, mas
plenário, que na Espanha e na América espanhola representa
aquisições de linguagem, talvez únicas no mundo, móveis para
a vivenda, formas de vida e de curiosidade, misticismo que se
prende a novos módulos para a prece, maneiras de saborear e
de tratar os manjares, que exalam um viver completo, refinado
e misterioso, teocrático e ensimesmado, errante na forma e
arraigadíssimo nas suas essências. (LIMA,1988, p. 79)
Mas quando afirmamos que determinada igreja ou praça ou rua
localizada na Américas são barrocas, é porque nos abrigamos sob a imensa
sombra proporcionada pelo termo barroco europeu. Universalizamos tanto o
termo que, sem os devidos cuidados teóricos, estendemos o fenômeno cultural
da Europa às Américas, como contigüidade colonial.
Porém essa contigüidade não é consensual entre os teóricos
americanos. Entre os discordantes podemos citar Jorge Alberto Manrique
(1997, p. 173) que defende que o termo ―barroco americano‖ é utilizado na
falta de outro que explique melhor o fenômeno artístico e cultural que
aconteceu por aqui. É evidente que haja pertinências entre os dois barrocos, o
da Europa e da América Latina, porém não por adjacências cronológicas nem
contextuais, mas para que possamos falar no assunto a partir das
semelhanças entre os dois fenômenos. Mantivemos assim o termo ―barroco
americano‖. Isto sem contar que mesmo na América Latina há vários barrocos
12
diferentes, pois suas manifestações são peculiares em cada região onde
ocorreu.
Quando dizemos ―barroco americano‖, não estamos somente
nos referindo às obras de estilo barroco produzidas na
América, nem só dando saída à nossa necessidade
nacionalista regional. Estamos indicando, mais ou menos
conscientes, de que se trata de um barroco que não é igual ao
que supõe seu modelo conceitual, mas é de tal modo peculiar
que nos vemos forçados a qualificá-lo de americano para
podermos continuar a chamá-lo de barroco. (MANRIQUE,
1997, p. 174)
Apesar de intimamente conectado ao barroco europeu, o nosso barroco
não pode ser simplificado como a metamorfose de um estilo herdado. A idéia
de que pudemos moldar um novo barroco - símbolo de resistência aos
impérios, creditando ao estilo a semente tropical de nossa luta por
independência - é muito sedutora, porém preferimos a opinião de Manrique
(1997, p. 176), que afirma que o barroco americano nasceu e foi forjado nas
Américas, não apenas como insubordinação colonial, co-dependente das
grandes afirmações estilísticas européias, mas como uma conseqüência dos
contextos próprios e inéditos constelados no continente. Estes contextos
podem ser descritos como a aproximação e convivência inédita de civilizações
pertencentes a temporalidades diferentes no mesmo espaço e a natureza
onipresente. As Américas foram constituídas a partir de uma tensão
permanente entre o primitivo e o extremamente sofisticado. Tradições foram
quebradas, sagrados foram misturados. As conseqüências deste processo
civilizatório ímpar não foram momentâneas, mas pautam nossa cultura até
hoje.
Através do barroco não desejamos explicar, justificar ou exaltar nossos
problemas sócio-culturais por meio de uma estética, mas torná-los visíveis
num campo cultural complexo. Para isso, neste trabalho, contamos com um
conjunto heterogêneo de autores que têm em comum a proximidade com as
realidades do continente e a produção de pensamento crítico sobre a América
Latina a partir dela própria, ou seja, perseguimos desgarrar-nos de
comparações que consideram nossas especificidades socioculturais a partir da
idéia de atraso e de insuficiência em atingir equivalência aos países de
13
―primeiro mundo‖. Acreditamos ser possível pensar que o barroco americano
surja em períodos ou situações nas quais seja impossível determinar uma
única solução, dada a complexidade do momento. O barroco é uma
composição e não uma imposição. Portanto não podemos considerá-lo um
movimento estilístico aprisionado nos oitocentos.
Por eso no creeremos nunca que el barroco es una constante histórica y una fatalidad y que determinados ingredientes lo repiten y acompañan. Y los que quieren estropear una cosa nuestra, afirmando que en la cultura griega hubo un barroco y otro en el medioevo, y otro en la China, creen estaticamente que el barroco es una etapa de la cultura y que se llega a eso, como se llega a la dentición, a la menopausia o a la gengivitis, ignorando que para todos nosotros, en el descubrimiento histórico o en la realización, fue una arribada, un desembarco y un pasmo de maravillas. Pues [já] en España no fue el barroco un estilo que había que valorarlo en presencia o lejanía del gótico, sino como un humus fecundante que evaporaba cinco civilizaciones. (LIMA apud PINHEIRO, 2007, p. 70)
Para nós, o barroco é um sistema cultural sofisticado, recorrente, liberto
de causalidades estético-temporais, porém com estratagemas operatórios
extremamente precisos. Nem tudo é barroco na revolução.
Apesar de sua ligação inegável e permanente com o velho continente,
Manrique entende que entre os barrocos da Europa e da América colonial há
uma relação de concomitância, com algum atraso de nossa parte, mas o
principal é que foram desenvolvidos processos artísticos próprios para operar
barrocamente os tempos e ritmos deste continente. Portanto, os estilos de
barroco americanos não foram (...) ―um ―vazio‖ à espera de modelos e sim um
―cheio‖ com suas regras e particularidades.‖ (MANRIQUE, 1997, p. 177)
Certamente os modelos europeus não estão ausentes, mas o
barroco americano – ou os barrocos americanos, se preferir,
usa estes modelos, os aceita ou rechaça-os, na medida em
que lhe são úteis: aproveitáveis no contexto dos modos e na
dinâmica que esse mesmo barroco já possui. (MANRIQUE,
1997, p. 176)
Não é difícil, contudo, entender porque muitos teóricos, ao comparar o
barroco americano com o barroco centro-europeu, imediatamente tendem a
dizer que o nosso é inferior, um arremedo mal-acabado do outro, que na
Europa os edifícios são muito mais impressionantes em tamanho,
14
detalhamento e riqueza arquitetônica. São muito extensas as discussões a
este respeito e este trabalho não tem a ambição de introduzir nada de novo na
defesa do nosso barroco. Partimos do princípio de que são barrocos
diferentes, que podem ser aproximados, mas não mensurados
comparativamente, não imaginando que haja um barroco ―melhor‖ que o outro.
Colunata da basílica de São Pedro, em Roma. Obra de Bernini.
E porque acreditamos nessa premissa não tememos a verificação de
que o barroco europeu se destaca pela sua incomparável grandiosidade.
Como os monumentos do barroco europeu eram construídos nas apinhadas
cidades medievais, os ornamentos – colunatas, volutas, nichos e ondulações,
côncavos e convexos – das fachadas tinham como função gerar o desvio, a
diferenciação no emaranhado urbano. Já existia uma malha urbana intricada e,
a mando da Igreja da Contra-Reforma, abrem-se grandes rasgos na massa
existente gerando tridimensionalidades surpreendentes.
Fontana dei Quattro Fiumi, em Roma. Obra de Bernini
15
Como a natureza estava definitivamente banida do espaço urbano
europeu, a tridimensionalidade forjada no barroco evocava os aspectos da
natureza através dos ornamentos.
(...) e aí já se incluem as fontes de Bernini, que brotam de
rochas naturais para subirem a finos obeliscos, geométricos, as
colunetas e as escadarias exteriores, os terraços de relva ou de
água, os repuxos de arbustos ou de espuma líquida, os
patamares, os peitoris e até anfiteatros ajardinados.
(MACHADO, 1973, p. 107 - 109)
O fato é que a monumentalidade transferida para os edifícios na Europa
está presente gratuitamente na paisagem americana. Não haveria igreja
magistral que suplantasse a magnitude dos mares de morros de Minas Gerais.
Também aqui foi impossível delegar ao gesto urbanístico o domínio espacial
através da perspectiva. Ouro Preto faz elevar os olhos ao céu, mas não por
meio de arruamentos determinados pela geometria. A presença da natureza
nos faz entender que o nosso barroco é compositivo e que sua escala é,
portanto, adequada ao entorno no qual se encontra.
Barroco americano: (oni)presença da natureza
A igreja barroca de Minas deveria ter uma fachada linear,
simples e grandiosa, de cor clara e contrastante com a verdura
circundante, cuja eventual ornamentação deveria acompanhar
esse caráter severo, imponente, mas regrado, que constitui a
única maneira de destacar a obra do homem no seio de uma
natureza ciclopicamente barroca. (MACHADO, 1973, p. 110)
Machado (1973, p. 107 - 109) diz que o Brasil desta época, ao contrário
da Europa, era quase que unicamente paisagem, e que nossos monumentos
barrocos nunca precisaram concorrer em grandiosidade com as modestas
recém fundadas cidades. As igrejas eram construídas em espaços abertos e
quase sempre podiam ser contempladas de todos os lados, pois eram
construídas em solitários platôs cada vez mais altos e singelamente próximos
ao céu.
16
Ouro Preto, sem autor
Em Ouro Preto, sente-se que cada igreja busca sua plataforma
no cume de um morro e que, segundo certos indícios, essa
plataforma dominava todo o casario no momento em que se
rasgaram os alicerces. A Igreja ficava, pois, solta no conjunto
do burgo e, desde que as moradas começavam a cercá-la,
mais adiante e mais acima haveria uma nova plataforma à
espera da nova Igreja. (MACHADO, 1973, p. 108)
Os exteriores magníficos das igrejas do barroco europeu aqui talvez
parecessem igualmente pequenos diante da soberba paisagem americana.
Luz e sombra, fundo e figura, tridimensionalidade, tudo isso estava à
disposição no mundo americano. As igrejas e monumentos barrocos no Brasil
comungavam com a natureza, não se propuseram a domesticá-la.
O olhar já acostumado à desordem das florestas, às cores das flores e
plantas, à convivialidade entre as árvores nativas e as plantações cultivadas,
sabe que aqui não se imita a natureza, nenhuma representação pictórica
supera o bulício vegetal circundante. Aproveita-se da ordem e da estrutura da
arquitetura e da edificação para constringir a natureza em forma de
17
representação, não por ausência dela, mas reverenciando-a como presença
imperiosa.
Ouro Preto, sem autor.
Brasil: urbanismo barroco ou paisagem barroca?
Na obra coletiva da cidade americana, o trabalho do arruador
vai dar o caráter barroco à estrutura organizada em torno dos
poucos monumentos. Mais do que urbanismo barroco
português na América deve-se falar em paisagem urbana
barroca das cidades brasileiras nos séculos XVII e XVIII. (José
Pessôa)4
Tornou-se usual dizer que a colonização portuguesa no Brasil produziu
espaços urbanos qualitativamente inferiores aos espaços de colonização
hispânica. Segundo Giovanna Rosso Del Brenna (1982/1983, p. 140 - 146)
essa afirmação pautou-se na idéia de que o traçado xadrez hispânico fora
mais desenvolvido, com mais intenção urbana, do que o traçado orgânico,
quase casual das cidades brasileiras na época colonial. A colonização
hispânica demonstrava seu poder excluindo qualquer vestígio das civilizações
4Artigo eletrônico. Disponível em:
<http://www.upo.es/depa/webdhuma/areas/arte/actas/3cibi/documentos/089f.pdf>. Acesso em:
02 de junho de 2009.
18
vencidas, intervindo em dimensões urbanas através da tabula rasa,
construindo a partir do zero suas cidades planejadas.
O urbanismo luso-brasileiro, por entender-se de modo complementar
com sua paisagem, foi constantemente subavaliado como desleixado e
contingencial, e nesse sentido aproximado do urbanismo tardo-medieval da
Europa. A autora sugere (DEL BRENNA, 1982/1983, p. 143) que, no lugar de
urbanismo tardo-medieval, adotássemos o termo urbanismo orgânico –
―resultado coerente e de alta qualidade visual, de todo um sistema de vida‖.
Segundo Foucault (2009b, p. 412) o espaço medieval é o espaço da
―disposição e da localização‖, no qual cada coisa tem seu lugar fixo,
hierarquicamente determinado por uma cosmologia dicotômica: existe o local
sagrado e o profano, o rural e o urbano, natureza e artifício, corpo e mente, e
assim por diante. No lugar da disposição, o espaço urbano que desenvolvemos
por aqui foi o da composição, o que não impede a presença de dicotomias no
jogo cultural, mas que certamente impossibilitou a aderência completa dos
valores binários em nossa cultura.
Mas se pensarmos no termo tardo-medieval em relação à cultura,
podemos afirmar, em alguma medida, que o Brasil viveu um período
comparável ao medieval, se esta comparação for restrita ao medieval luso-
ibérico, pois, segundo Laplantine,
o que é específico do Andaluz medieval é muito mais do que
um clima de simples tolerância entre comunidades que
coexiste respeitando-se. Não se trata, contudo, da fusão das
diversidades culturais numa identidade, antes, de uma
acareação permanente que não apenas religa como
transforma uns e outros. (LAPLANTINE; NOUSS, [s/d], p. 46)
A civilização medieval da península ibérica, em especial a andaluza,
tanto acolheu como transmitiu cultura e cada civilização convivendo neste
crisol (judeus, cristãos e árabes), ainda que em relação, conservam traços de
suas tradições sem a negação das contribuições e traduções dos outros. Com
certeza a imensa contribuição árabe no Brasil amplificou nossa aptidão
inclusiva.
19
Rosso, no entanto, ao rechaçar a herança medieval, centra-se nos
traçados do urbanismo espontâneo ou semi-espontâneo da região aurífera,
que pôde alcançar resultados altamente cenográficos, confirmando seu
barroquismo em sua teatralidade. No caso do Brasil a escala monumental que
define a qualidade do barroco na Europa não está evidentemente presente no
edifício ou no urbanismo, mas a qualidade está no dinamismo que nossas
cidades barrocas alcançam através da inserção de elementos em composição
estratégica com a paisagem que jamais aconteceu nas cidades muradas da
Europa.
Daí por exemplo, a colocação de igrejas e chafarizes nunca com a
função de fechar, definir, concluir o espaço urbano, mas sempre
com a função de dilatá-lo, de abrir novos eixos perspectivos, de
acentuar ou complicar o policentrismo já existente na estrutura
urbana, de relacionar cenograficamente seus elementos. (DEL
BRENNA, 1982/1983, p. 144)
Se considerássemos a constituição dos espaços urbanos do século
XVIII no Brasil segundo os critérios da academia, não poderíamos falar em
urbanismo barroco. A escala monumental das intervenções barrocas na
Europa, como abordado anteriormente, tem como pano de fundo a crise nas
matrizes do poder político-religioso do pensamento clássico. A transferência da
monumentalidade das edificações-símbolo da nobreza, tais como palácios e
castelos, para o universo da burguesia mercantil-comercial demarcam uma
mudança de poder orquestrada pela Igreja e pela monarquia.
Formalmente, os espaços barrocos europeus tendem ao fechado
através de um cerco de edificações de alturas regulares que circundam um
vazio, conduzindo didaticamente o olhar em direção ao coroamento do edifício
apoteótico - uma igreja, por exemplo. Para obter o efeito de coroamento
magistral, o conjunto de edifícios circundantes constitui uma totalidade, mas
separados não têm valor arquitetônico individual. São casas de comércio,
blocos de moradia, colunatas, símbolos do poder financeiro, político e
religioso. Enquanto o barroco na Europa promovia rasgos de grandes
dimensões nos tecidos urbanos das cidades medievais seculares, no Brasil
nossas vilas aguardariam o século XVIII para serem promovidas a cidades.
20
Ouro Preto, sem autor
Aqui os interesses comerciais exploratórios antecederam a urbanização
dos aglomerados humanos, portanto, para o máximo aproveitamento com o
mínimo de investimento, nossas cidades começavam com a casa da moeda, a
igreja, a prisão e algum entreposto comercial. Só depois, quando a vila
adquiria aspectos de permanência, o arruamento era feito, adaptando-se ao
construído, com alguns ajustes topográficos para dar unidade ao conjunto. Os
traçados das praças raramente eram regulares e tendiam ao aberto, suas ruas
eram enviesadas, contornavam os acidentes geográficos. Mas, ao contrário de
um simples desleixo colonizatório, a implantação das Igrejas e edifícios
importantes tirava partido da topografia e lucrava com a colaboração da
21
paisagem. Toda imprevisibilidade da paisagem foi aproveitada para gerar
surpresas e efeitos visuais nunca explorados na Europa.
Lourival Gomes Machado (1973, p. 108 - 109) diz que o urbanismo e a
arquitetura da região aurífera nunca se opuseram às montanhas. Os edifícios e
as ruas solidarizam-se à dificuldade topográfica das Minas Gerais e as
soluções se tornaram primores cênicos.
O vestíbulo barroco de Santa Efigênia é a Ladeira do Vira-Saia
e jamais um arquiteto do barroco italiano imaginou jogar o adro
de sua igreja sobre um precipício como aconteceu em São
José. (MACHADO, 1973)
Del Brenna (1982/1983, p. 142 - 143) acredita que a compreensão das
especificidades e da autonomia do nosso barroco frente ao europeu se dá na
medida em que afrouxamos os rigores classificatórios da academia, que são
evidentemente pautados em parâmetros que não nos cabem. Tal comparação
reduz a importância do fenômeno no Brasil pela insistência na comparação
com a escala dos monumentos das cidades seculares da Europa.
Em Minas Gerais, por exemplo, as vilas tornaram-se cidades em menos
de cem anos, e apesar da modesta escala das edificações, o resultado é
surpreendente, interessante e dinâmico, mas não pode ser comparado às
cidades muitas vezes milenares da Europa Central.
Mas, por outro lado, se pensamos nas operações e jogos de luz e
sombra do barroco, como não pensar em Ouro Preto como paisagem barroca?
A luz dura da tarde incide sobre as fachadas brancas criando planos
fortemente iluminados, enquanto outras partes mergulham no breu das
sombras criadas por empenas e telhados, confundindo-se com o verde escuro
da natureza circundante. Esse tipo de situação urbana retrata que a
dramaticidade barroca está impressa no DNA do brasileiro, mesmo naqueles
que não conheçam Ouro Preto, que não saibam o que é o barroco e vivam
numa favela do Rio de Janeiro.
Ao olharmos com cuidado para as manifestações discretas de
condições locais nas quais o barroco se dá, tais como incidência da luz,
22
espontaneidade dos traçados, construções em diálogo com a topografia,
perseguimos os enlaces e engastes que passam ao longe de serem exemplos
denominados pelas categorias clássicas ou epocais do urbanismo, mas que,
no entanto, nos fornecem pistas, germens dos modos atuais de constituir
nossas cidades, nossos espaços públicos.
Bittencourt (1982/1983, p. 247 - 249), ao estudar composições urbanas
em Sabará, Minas Gerais, nos mostra que a ocupação das terras mineiras
pelos imigrantes por ocasião do ciclo aurífero do início do século XVIII, época
de afloramento do Barroco no Brasil, também não foi regida por apenas
ordenações superiores do reino ou por necessidades meramente funcionais.
Há na espontaneidade do urbanismo do ciclo do ouro uma relação orgânica
entre natureza, homem e urbanização.
Quando em 1704, Pascoal da Silva, mascate português
enriquecido no rio das Velhas, meteu-se de posse das catas
abandonadas pelos Camargos, iniciou a mineração pelo
processo de desbancar o terreno por levadas de água.
Sucedeu que no flanco da serra onde por hoje passa o
caminho das Lajes, deu com um veeiro riquíssimo. Ali o metal
era como terra... Ouro podre! Esse ouro excelente e tão fácil de
colher foi quem verdadeiramente fundou a futura Vila Rica,
povoando-a de forasteiros ávidos.
O movimento foi tão rápido e tão intenso, que sete anos
depois, em 1711, os primeiros arraiais de catadores eram
erigidos em vila (...) (BANDEIRA, 2006, p. 19)
O ouro da região de Sabará era de aluvião, sua exploração era fácil,
portanto aventureiros e oportunistas, comerciantes e traficantes chegavam em
hordas vorazes, disputando à unha as terras mais próximas ao rio de onde se
tirava o metal. Moravam ali mesmo, portanto os lotes não eram extensos e o
casario quase sempre térreo. A ocupação foi veloz, intuitiva e promoveu
pouquíssimas interferências corretivas na topografia irregular da região. As
ruas nasceram condicionadas pela proximidade ao ouro e pela topografia. Ouro
Preto foi se formando como um conjunto de arraiais auríferos ligados a partir de
uma estrada para entrada e saída do circuito de mineração.
Baeta considera que a região de Vila Rica, que veio a ser a capital
econômica do Brasil no século XVIII, desenvolveu-se como a primeira
23
sociedade eminentemente urbana da colônia, ―sendo difícil imaginar uma
topografia menos adequada para a ereção racional de uma cidade, mas mais
significativa no que se refere à organização dramática do espaço‖.(BAETA,
[s/d], p. 979)5. Ao mesmo tempo, segundo o autor, nunca houve o gesto de
criar um traçado dominante através de grandes massas construídas. O
urbanismo de Ouro Preto foi disperso, pulverizado. Os edifícios importantes
eram pontuais, não chegavam a definir uma massa urbana considerável, e foi
através do arruamento que se deu a liga entre a estrutura inicial das vilas,
bastante simplórias, e os edifícios representativos da autoridade política e
religiosa, tais quais igrejas, palacetes, etc. Mas nem por isso deixamos de
perceber que há intencionalidade na dramaticidade barroca do conjunto.
Aproveita-se da paisagem e da geografia exuberante para gerar um número
surpreendente de pontos de vista. A idéia de uma perspectiva que não dirige o
olhar a um único foco e que, ao contrário, através de artimanhas e artifícios, faz
um jogo de esconder-revelar uma multiplicidade de vistas-surpresa até a visão
apoteótica daquilo que se pretende revelar.
Assim, a organização artística do espaço atinge uma habilidade
de criar cenários poderosos nunca antes vista. Um conjunto
imenso de imagens espetaculares são derramadas por todo
ambiente citadino. O transeunte transforma-se imediatamente
em espectador e protagonista de uma encenação teatral
quando, inesperadamente, após longa preparação e um
sentimento de tensão e suspense, se depara com
acontecimentos dramáticos pontuais espalhados por toda a
cidade. (BAETA, [s/d], p. 977)6
Este jogo barroco parece ser mais relevante do que as teorias (ao
menos no que diz respeito ao traçado urbano) que defendem nossas heranças
do urbanismo tardo-medieval.
Ainda que não tenha havido um plano urbanístico pré-concebido nas
nossas cidades, a intencionalidade não está ausente. Havia o objetivo claro de
surpreender, tanto no aproveitamento das singularidades topográficas como na
5 BAETA, RODRIGO ESPINHA. Ouro Preto, Cidade Barroca. Disponível em:
<www.upo/es/depa/webdhuma/areas/arte/actas/3cibi/documnetos/077f.pdf>. Acesso em: novembro de 2009. 6 BAETA, RODRIGO ESPINHA. Ouro Preto, Cidade Barroca. Disponível em:
<www.upo/es/depa/webdhuma/areas/arte/actas/3cibi/documnetos/077f.pdf>. Acesso em: novembro de 2009.
24
localização ímpar dos monumentos, no posicionamento dos chafarizes e na
estruturação dos espaços públicos.
Apesar dos largos e retilíneos rasgos urbanos que constituem a cidade
barroca na Europa, Baeta afirma ―que o que transforma a cidade medieval em
barroca é justamente o contraste entre esta nova ordem com o fundo pré-
existente irregular e com a construção e restauração estratégica de praças e
monumentos‖ (BAETA, [s/d], p. 982)7. Portanto, no continente americano, a
condição primeira do barroco - o contraste de diferenças em co-existência - é
um dado, tanto pela condição natural como pela confluência civilizatória. A
complexidade ímpar e o dinamismo de nossa cultura não herdaram a falência
de uma filosofia - pulamos o cansaço clássico que a Europa sofreu. ―A única
coisa que cria cultura é a paisagem e isto nós temos em monstruosidade
magistral, sem que nos percorra o cansaço dos crepúsculos críticos‖. (LIMA,
1988, p. 62)
O americano fez existir um mundo descentralizado que, mesmo sem ter
consciência, compartilhava da idéia de infinito de Galileu que, segundo
Foucault (2009b, p. 412), foi quem primeiro desvelou, através da observação
da órbita terrestre ao redor do sol, a constituição de um cosmo infinitamente
aberto, ―o lugar de uma coisa já não era nada mais do que um ponto em seu
movimento, tanto quanto o repouso de uma coisa não era mais que seu
movimento indefinidamente desacelerado‖. (FOUCAULT, 2009, p. 412), Além
da comparação redutora do nosso urbanismo ao urbanismo tardo-medieval, o
olhar do estrangeiro sobre nossa não-ortogonalidade urbanística e cultural
rendeu outros inúmeros registros pejorativos, como observado por Robert
Smith, (SMITH apud DEL BRENNA, 1982/1983, p. 141), o que nos leva a
perceber a imensa dificuldade da cultura centro-européia em estabelecer
relações com as terras novas que não fossem comparações realizadas a partir
da suposta defasagem das Américas em relação à Europa.
A ordem era ignorada pelos portugueses como assinalavam
deliciados os viajantes. As suas ruas, ironicamente chamadas
7 BAETA, RODRIGO ESPINHA. Ouro Preto, Cidade Barroca. Disponível em:
<www.upo/es/depa/webdhuma/areas/arte/actas/3cibi/documnetos/077f.pdf>. Acesso em: novembro de 2009.
25
de direitas eram tortas e cheias de altibaixos, as suas praças
ordinárias irregulares. As casas agarravam-se às vertentes
alcantiladas das colinas em torno de uma teia de caminhos
escuros, escadas e passadiços, tendo os andares superiores
salientes como na Europa... Nada inventaram os portugueses
no planejamento de cidades nos países novos. Ao contrário
dos espanhóis que eram instruídos por lei a executar um
gradeado regular de ruas que se entrecruzam em torno de uma
praça central, os portugueses não mantinham regras, exceto a
antiga, da defesa através da altura. Suas cidades cresceram
pela vinculação gradual de núcleos isolados, formados pela
fundação individual e arbitrária de capelas, casas e mercados.
A posição destes edifícios ditava as trajetórias irregulares
seguidas pelas ruas que os uniam. (SMITH apud
BITTENCOURT, 1982/1983, p. 248)
O interessante é que o urbanismo descentrado das nossas cidades
coincide com a forma de poder que Portugal incidia sobre suas colônias. Ainda
que estivéssemos submetidos ao poder monárquico do além mar, sempre
houve possibilidades não determinadas por este poder. Manter o ouro nas
mãos da coroa não foi, portanto, nada fácil. Junto com os caminhos do ouro
para Portugal nasceram concomitantemente os caminhos para o desvio do
ouro e esta profanação da ordem causava tanto indignação por parte dos
poderes centrais como uma euforia sobre a inédita opção por não obedecer
tais poderes.
O urbanismo anônimo latino-americano: alternativa ao racionalismo
urbano centro-europeu
O afã higienista despertado pelo desenvolvimento fabril na Europa do
sec. XIX promove os urbanistas à categoria de autoridade, poder legítimo na
ordenação e regulação dos fluxos humanos e urbanos das cidades. O impacto
de suas intervenções nas velhas cidades européias é tão determinante e
duradouro que temos a impressão de que nunca houve urbanismo antes dos
higienistas. O urbanismo é então elevado à categoria de ciência. As
intervenções urbanas têm valor de lei na questão das desapropriações e
revitalizações de áreas degradadas. O centro medieval de Paris, por exemplo,
cai para dar lugar aos bulevares, que têm como centro geométrico o Arco do
26
Triunfo, um marco arquitetônico de poder. Viena foi outra capital européia que
teve seu traçado revolucionado por grandes avenidas planejadas.
Traçado urbano do higienista Barão Haussmann, que botou abaixo a Paris medieval
Já no século XX, o urbanismo do ―noveau espirit‖ transforma a regulação
levada a cabo pelos higienistas em metáfora da mecânica industrial da época,
aproximando a cidade e o homem da idéia de máquina funcional. Ou seja, na
cidade estão transcritas a idéia de reprodutibilidade, de funcionalidade, de
controle e de universalidade das soluções técnicas. O respaldo do governo e o
apoio intelectual da época referendam o planejamento urbano como questão
de segurança e de saúde pública nas metrópoles industriais, que se tornaram
espelho do ritmo frenético do desenvolvimento econômico da época.
Plan Voisin, projeto urbanístico para Paris, de Le Corbusier
27
O urbanismo de Le Corbusier levava muito pouco em conta as questões
urbanas locais, pois visava atender as grandes massas que se instalavam
rapidamente nas cidades, e esse processo, assim como a irreversível
industrialização, era, em sua opinião, universal. Seus principais instrumentos
operatórios foram o traçado geométrico de proporções grandiosas e a
setorização funcional da cidade: indústria, comércio e moradia e as artérias de
circulação viária ligam os setores.
Porém, se nos transportarmos para Cuba na mesma época, a
funcionalidade maquínica da cidade moderna emperra com os ares de maresia.
Segundo Alejo Carpentier (1982, p. 11 - 13), o poeta inglês Humboldt, ao visitar
Havana, notou que o traçado irregular de suas ruas obrigava as pessoas a
deslocarem-se em ritmo mais lento e por caminhos tortuosos. O poeta insinuou
que Havana fosse uma cidade menos importante no cenário mundial porque
seu traçado era semelhante ao das cidades mais antigas da Europa que não
absorveram a forma de metrópole, ou seja, as cidades ―menos desenvolvidas‖.
Carpentier, no entanto, ressalta uma qualidade urbana em Havana que o poeta
europeu não soube apreciar por não compreender as premissas do
―americanismo primordial – os desígnios tropicais de jugar al escondite com el
sol, burlándole superfícies, arrancandoles sombras, huyendo de sus tórridos
anúncios de crepúsculos, com uma ingeniosa multiplicación de aquellas
esquinas del fraile...‖ 8 (CARPENTIER, 1982, p. 12).
Os musharabis, os vitrais e as colunatas públicas brindam o transeunte
com brisas e sombras-surpresa, pois tais dispositivos enganam o sol sem bani-
lo. Na lentidão no percurso a percepção da natureza é aumentada na
experiência diversificada do traçado urbano. Aumenta-se o prazer no
deslocamento, que é mais rico e mais livre que nas grandes cidades
planejadas para o automóvel. É também importantíssimo salientar que tal
composição simbiótica entre cidade e natureza não foi outorgada por nenhum
doutor, foi-se constituindo aos poucos, com sabedorias dos equinócios, dos
ventos e das marés.
8 Livre tradução:(...)americanismo primordial – os desígnios tropicais de brincar de esconder
com o sol, trapaceando as superfícies, lhes arrancando sombras, fugindo dos seus tórridos anúncios de crepúsculos, com uma engenhosa multiplicação daquelas esquinas do frade.
28
Vista do Capitólio em Havana, foto de Jerome Baner
Esquina de Havana, foto de Jerome Baner
29
Essa sabedoria não foi levada em conta na implantação reticular de
cidades planejadas, pois enquanto, nas palavras de Carpentier, o sol aparece
como um astro livre das leis astronômicas ao brincar de esconder com os
transeuntes, nas avenidas terraplenadas o sol é obediente e estará sempre
preso ao arco do céu, e os cidadãos se moverão apenas em eixos
ortogonais,assim como os ventos, que trafegam encanados nas artérias
urbanas retilíneas das cidades planejadas. O urbanismo latino-americano
visitado por Carpentier a partir de Havana abre a perspectiva do traçado
anônimo, avesso à tabula rasa moderna, como estratégia interessante na
constituição das cidades do nosso continente. Instauram-se necessidades de
várias ordens além da ordem funcional. O autor enxerga a composição
anônima e iletrada não somente no urbanismo como também na arquitetura e é
justamente essa característica que inscreve Havana urbanisticamente no
mundo. Se Havana fosse quadricular, seria tão interessante?
La vieja ciudad, antaño llamada de intramuros, es la ciudad em
sombras, hecha para la explotación de las sombras – sombra,
ella misma, cuando se la piensa em contraste com todo lo que
le fue germinando, creciendo, hacia el Oeste, desde los
comienzos de este siglo, em que la superposición de estilos, la
inovación de estilos, Buenos y malos, más malos qui buenos,
fueran creando a la Habana esse estilo sin estilo que a la larga,
por proceso de simbioisis, de amalgama, se erige em um
barroquismo peculiar que hace las veces de estilo,
inscribiéndose en la historia de los comportamientos
urbanísticos. (CARPENTIER, 1982, p. 13 - 14)9
9 A velha cidade, antigamente chamada de intramuros é a cidade em sombras, feita para a
exploração das sombras – sombra, ela mesma quando se pensa em contraste com tudo o que
nela foi germinando, crescendo em direção ao oeste, desde os começos deste século em que
a superposição de estilos, a inovação de estilos, bons e maus, mais para maus do que para
bons, foram criando demoradamente para Havana esse estilo sem estilo, em processo de
simbioses, de amalgama, que se ergue em um barroquismo peculiar que faz as vezes de estilo,
inscrevendo-se na história dos comportamentos urbanísticos.
30
Janela de Havana, foto de Jerome Baner
Havana , foto de Jerome Baner
31
Contextos latino-americanos: cenários urbanos
A cidade européia murada contraposta ao território rural
envoltório não encontrará semelhança com nenhuma das
ocupações nos territórios americanos então existentes, os
grandes, impérios asteca e inca, tinham os seus centros
monumentais construídos numa relação direta com a
paisagem envoltória, sendo cidade e território pensados de
uma maneira única.10(José Pessôa, [s/d])
Muitas vezes desconsidera-se a natureza como parte da vida urbana.
Devemos esclarecer que as manifestações da natureza não significam uma
reserva exclusiva da vida rural, dos campos e florestas de que somos servidos no
continente. Nas metrópoles as manifestações da natureza se impõem através dos
regimes de luz, de chuvas e de ventos, além da insistência vegetal. Essas
manifestações sobre a cidade são determinantes no estabelecimento de práticas
urbanas bem próprias e diferenciadas do restante das metrópoles do mundo. O
regime de forças naturais nos apresenta a hipertrofia, o descontrole e o caos
como partes constituintes e ativas na conformação de nossas cidades.
Alejo Carpentier (1969, p. 17 - 29) reúne em certas idéias inter-
relacionáveis em combinações que o autor considera auxiliares no
entendimento das realidades americanas. A esses conjuntos de idéias ele
chamou de ―contextos cabalmente latino-americanos‖ (CARPENTIER, 1969, p.
19),circunscrevendo campos culturais que só poderiam se configurar nas
Américas, por nossa capacidade de agrupar o disperso e de acolher
fragmentos culturais de culturas distantes. Através de seus ―contextos‖ o autor
procura ambientar o homem americano em seu habitat e fornecer leituras
universalmente inteligíveis desses contextos ainda não inscritos na história
mundial, mas o mais importante não é a vontade de inscrever o latino-
americano nos compêndios literários universais, como se fosse uma espécie
de promoção, mas sim a contextualização do americano em sua própria
10
Artigo eletrônico disponível em:
<http://www.upo.es/depa/webdhuma/areas/arte/actas/3cibi/documentos/089f.pdf>. Acesso em:
02 de junho de 2009.
32
paisagem, realidade que Carpentier pôde ajudar a traduzir para o restante do
globo.
chuva em São Paulo, foto de Edilson Dantas para “O Globo” em dezembro de 2008
foto de Nelson Kon, Heliópolis, São Paulo
33
Entre estes contextos o autor inclui a natureza abismal do nosso
continente, que se impõe em manifestações furiosas, rememorando a Pangeia
– furacões, vulcões, ciclones, secas, inundações em escalas imaginárias do
além-tempo. Do mesmo modo, as dimensões, as proporções dos espaços, as
distâncias entre lugares, os vazios - as matas infinitas, os rios, as cordilheiras,
florestas, desertos gelados e quentes e o sertão - nos impedem de conter as
paisagens em um único quadro, e nos desaconselha qualquer síntese
pitoresca como recurso descritivo. As insurreições cataclismáticas das
Américas contrastam com a tranqüilidade geológica do velho continente, pois
aqui sabemos que o incontrolável da força da natureza está incluído em nossa
cultura e espiritualidade.
(Na Europa) o raio deixou de ser uma manifestação da
ira divina desde que Benjamim Franklin o caçou com um
pára-raios. E a chuva torrencial foi substituída, há
tempos, pela garoa que encharca lentamente, por
persuasão, os transeuntes que nada fazem para evitá-la
nas ruas de suas cidades. (CARPENTIER, 2006, p. 106)
Porém aqui a coisa é diferente, pois:
A América ainda vive sob o signo telúrico das grandes
tempestades e das grandes inundações. Sempre haverá
algum boletim metereológico, de Miami, de Havana, da
ilha de Gran Caimán, para nos lembrar que nossa
natureza ainda não é tão ―gentil‖ nem tão ―pacificada‖
como Goethe gostaria que fosse a do mundo inteiro – à
semelhança de sua romântica Alemanha.
(CARPENTIER, 2006, p. 107)
Nas Américas, as tempestades, citadas por Shakespeare e outros
dramaturgos europeus, ainda não deixaram de surpreender o mundo. Existem
persistentes ciclos anuais de chuvas, furacões, ciclones e terremotos,
manifestando forças impossíveis de serem domesticadas e moduladas pelo
homem.
A distância é dura e tantálica, por isso mesmo que cria
imagens-espelhismos que estão fora dos alcances musculares
do contemplador. A desproporção é cruel porquanto se opõe
ao módulo, à euritmia pitagórica, à beleza do número, ao corte
do ouro. (CARPENTIER, 1969)
34
Carpentier (1969, p. 22 – 23) alarga o significado do substantivo
desmesura agregando a ele outro substantivo: americana. Americana-
desmesura significa, no contexto de Carpentier, uma imensidão somente
conhecida a partir do descobrimento do continente americano.
Não foi possível ao homem da América portuguesa dominar todo o
entorno aplicando a geometria régia e cortando a pedra no ângulo reto. Foi
preciso ir contornando, negociando com a geografia, ancorando cidades na
beira dos mares e dos morros. Para Carpentier, ―o homem latino-americano e
suas cidades estão em constante mutação, nunca prontos‖. (1969, p. 16)
A imensidão geográfica das terras do continente está transcrita de forma
direta em metrópoles como São Paulo, nas quais seus limites territoriais são
inapreensíveis ao olho humano. Dependemos de dispositivos abstratos, tais
como imagens de Satélite e mapas para intuí-los e para mensurá-los.
Instante de São Paulo em fevereiro de 2010, no site www.panoramio.com
Na foto acima, cada quadradinho colorido sobre a imagem híbrida entre
satélite e mapa corresponde a miniaturas de registros fotográficos do local
sobre o qual ela está ―colada‖. As fotos são enviadas pela internet por qualquer
pessoa que se interesse em contribuir e interagir com o site. Ao clicarmos
sobre a miniatura, a imagem é aumentada. O site nunca está pronto, sempre
recebe atualizações de usuários e as fotos podem ser substituídas. Às vezes
35
um mesmo ponto tem mais de um registro armazenado. É interessante notar
que, não raro, as fotos são de locais sem nenhum atrativo arquitetônico
especial, e sim registros de vivências e interesses pontuais, de repercussão
ínfima, mas que em conjunto estabelecem um registro móvel, dialógico e
anônimo, em mosaico, de uma cidade única, naquele instante.
América Latina: Paisagem é cultura
(...) a primeira palavra americana que passou para o idioma
universal, agarrada pelos náufragos dos descobrimentos, é
furacão. (CARPENTIER, 1969, p. 22)
Através da frase, o autor fisga um instantâneo do complexo processo de
colonização do continente latino-americano, lembrando-nos de que, ainda no
caminho para o novo mundo, as realidades indomáveis se apresentam aos
navegantes em forma de vendavais, tornados, maremotos e calmarias,
antevendo aos viajantes os vigores selvagens da terra desconhecida da qual
se aproximam.
Não há relevância se a afirmação do autor é ou não confirmável, pois o
que interessa é o campo imagético criado por ele. Carpentier rastreia e
recupera a intensidade de um acontecimento distante da história utilizando
uma imagem poética. Para evocar a exuberância cultural do continente
americano, Carpentier nos relembra do caráter pangéico dos fenômenos
naturais que ocorrem por aqui, e, desse modo, em uma única frase, consegue
aproximar opulência natural e fartura cultural, aproximação esta que a história
oficial tende a separar.
O processo de ocupação das terras novas se desdobrou em outras
tantas intensidades contíguas aos acontecimentos das viagens marítimas.
Naufrágios e furacões são acontecimentos decisivos na constituição do
homem enxertado na encruzilhada da colonização das Américas. O europeu
que chega aqui é, portanto, naturalmente um náufrago, que tem à sua frente a
americana-desmesura das distâncias geográficas e atrás de si o oceano
transcontinental e nenhum barco para voltar.
36
E os desembarques continuaram a acontecer espalhando pelo
continente grandes quantidades de portugueses desterrados, religiosos em
missão, árabes expulsos da península ibérica, escravos e aventureiros de toda
espécie. Ao chegar, não bastando o desterro, as legiões de estrangeiros
encontraram a mata embaralhada de indígenas diferentes com costumes
complexos, integralmente estranhos aos dos viajantes. A velocidade com que
todas essas civilizações foram postas em contato gerou conseqüências
socioculturais somente comparáveis aos fenômenos naturais tropicais, tais
como os furacões dos quais falava Carpentier.
Como seria possível pensarmos em harmonia e unidade numa
sociedade formulada a partir dos escombros dos naufrágios e dos
desembarques desastrados em nossas praias? Porém o que ainda hoje
observamos é que tudo o que encalhou nas nossas areias foi aproveitado e re-
arranjado. Os elementos locais mesclaram-se àqueles vindos de longe. Aquilo
que no princípio foi o improviso pela emergência da sobrevivência náufraga,
torna-se uma qualidade comum ao continente ameríndio.
Um puro acaso.
Vieram homens perseguidos pela tempestade...
Saíram homens do mar...
Vieram homens...
Brancos.
Portugueses.
«Crescei e multiplicai-vos», dizem as Escrituras.
De outro modo: Safai-vos!
Foi o que eles fizeram. (CENDRARS, 1996, p. 51)
Porém esse encontro inédito de civilizações não gerou nenhuma síntese
definitiva, nenhuma nova raça. Não houve a fundação de uma nova identidade
nem qualquer cristalização cultural bastante duradoura para nos assegurar de
que não haverá mais ventos encrespando as águas da nossa história.
37
Como disse Laplantine ([s/d], p. 79 - 80), no Brasil o que existe, ―(...)
sem dúvida mais do que noutros lugares, são espaços de manobra em todas
as acepções do termo, não o saturado do homogêneo, mas espaços com
aberturas, vazios, entremeios‖. Aberturas estas que mantêm a necessária
distância, mesmo que muitas vezes mínima, entre ―eu‖ e o ―outro‖, que evitará
a fusão homogeneizante entre ―eu‖ e o ―outro‖, permanecendo como relação
tensionada entre dois infinitos.
Na América Latina não importa tanto a diferença entre as partes que compõem
nosso mosaico cultural. O grande salto está na arte da marchetaria, na
engenhosidade ostentatória no modo de compor com as diferenças. Quanto
mais heterogeneidade, mais sofisticada a capacidade compositiva.
A Marchetaria e o barroco: Nada menos fluido, menos fundido,
mais abrupto do que a visão que aí se exprime. É certo que o
Universo aí oferece em primeiro lugar uma profusão de cores,
de substâncias, de qualidades sensíveis e é pela sua riqueza
que provoca espanto ao primeiro contacto; mas depressa as
qualidades se organizam em diferenças, as diferenças em
contrastes e o mundo sensível polariza-se segundo as leis
estritas de uma espécie de geometria material. (GENETTE
apud SARDUY, 1988, p. 132)
Nosso trabalho fino é o de ultrapassar - sem o falso problema da
superação e da eficiência - as urgências da sobrevivência, em direção ao
complexo e sofisticado processo sintático que maneja a instabilidade viva da
América Latina.
É preciso, contudo, incorporar a incerteza nas artes do engaste. E isso
não acontece sem o abandono de algumas cristalizações teóricas, como, por
exemplo, aceitar que nossos procedimentos conectivos não são fiéis a uma
única ideologia, e que as sintaxes resultantes são acima de tudo provisórias,
pois os sistemas culturais estão em constante movimento e por isso mesmo as
conexões apresentam-se como formulações frágeis de sentido. Duram
enquanto houver tensão entre suas partes. A qualquer instante outro elemento
pode agregar-se ao conjunto ou desistir dele, traindo qualquer ilusão de
unidade e permanência que se possa ter.
38
A América Latina segundo a imagem de Lezama Lima
Que es la sobrenaturaleza? La penetración de la imagen en la
naturaleza engendra la sobrenaturaleza. En esa dimensión no
me canso de repetir la frase de Pascal que fue uma revelación
para mí ―como la verdadera naturaleza se há perdido, todo
puede ser naturaleza‖; la terrible fuerza afirmativa de esa frase,
me decidió a colocar la imagen en el sitio de la naturaleza
perdida de esa manera frente al determinismo de la naturaleza
del hombre responde con total arbítrio de la imagen. Y frente
ao pesimismo de la naturaleza perdida, la invencible alegria en
el hombre de la imagen reconstruída. (LIMA, 1971, p. 177 -
178)
Contar a história do continente americano é para Lezama Lima nunca
alcançar a verdade, por ser o fato histórico, em si mesmo, uma ficção. A
História clássica almeja a cientificidade na reconstrução de uma totalidade
comprovada pela ordenação cronológico-causal dos acontecimentos, e a re-
afirmação de uma origem normativa dos fatos. Dadas as inúmeras matrizes
culturais que nos constituíram - e que continuam a aumentar em pluralidade –
escancara-se o real multiforme, assimétrico e mutante do continente
americano, tão difícil de ser apreendido pelas formas clássicas da ciência
ocidental. Assumindo a impossibilidade americana em se encaixar nas
verdades históricas consagradas, o autor sugere ao historiador desviar sua
buscar de uma verdade científica para uma verdade poética (CHIAMPI, 1988).
Aconselha o uso da imaginação e da criação a partir da rede de imagens
instaladas no imaginário universal, imagens estas tanto eruditas como
populares, encontradas nas lendas do mundo todo, nas epopéias gregas e
também nos compêndios históricos oficiais. E que o historiador não se esqueça
de que a paisagem americana não é mero pano de fundo para as peripécias
humanas e sim produtora de cultura (CHIAMPI, 1988, p. 17 – 27).
Lezama montou barrocamente possibilidades histórico-poéticas através
do engaste dos fragmentos de imagens emprestadas e inventadas, para no
final obter uma imagem magistral, o esplendor formae, porém esta imagem
nunca alcança um absoluto do ser, por ser concebida a partir de
uma coordenada de irradiações, de metamorfoses, de
prolongamentos, de interposições - pois é inegável que entre a
39
jarra e a vareta de marfim existe uma rede de imagens,
participadas pelo poeta quando as concebe dentro de uma
coordenada de irradiações e de desigualdades entre o ser e a
imagem (LIMA, 1996)
Assim como Lezama, Deleuze também afirma a realidade como invenção:
A realidade é irrepresentável, a realidade é rebelde àcognição,
a realidade é puro sentido, puro devir, puro acontecimento. Não
posso representar a realidade, só a ficção é real. (...) Eu existo
como ficção. O acontecimento não cria nada de fixo 11
Severo Sarduy exemplifica como Lezama encarnava o recurso de cascatas
metafóricas cotidianamente. Em um encontro com o mestre, na saída de uma
apresentação do balé Bolchói, Sarduy se aproximou de Lezama, que fumava
solenemente um charuto, rodeado de pupilos e admiradores, para saber sua
opinião sobre a apresentação de dança. A resposta veio da seguinte maneira:
Olhe jovem, - e impostou sua voz gravíssima, sentencioso, aspirando uma baforada de ar, arquejante, como que se afogando - Irina Durujanova, nas variantes pontuais do Cisne, tinha a categoria e majestade de Catarina a Grande, da Rússia, quando passeava em seu alazão pelas margens congeladas do Volga... – e voltou a tomar ar. (LIMA apud SARDUY, 1979, p. 88)
Sarduy comenta a fala do mestre:
Lezama jamais viu o Volga, e menos ainda congelado; a comparação com a imperatriz que juntava à sua obesidade a magnitude de panóplia czarista era mais do que duvidosa, e, entretanto... nenhuma analogia melhor, nenhuma equivalência da dança mais textual, mais própria que essa frase.(SARDUY, 1979, p. 88)
Ou seja, uma personagem obesa da história russa, Catarina a Grande,
referendava a magnitude de uma bailarina esquálida através de sua majestade
implícita, e ainda, como último recurso de convencimento, Lezama recorre ao
alazão em cavalgada para assegurar a altivez da dança.
11
Transcrição de parte da palestra proferida por Daniel Lins, disponibilizada na internet. Disponível em: <http://www.cpflcultura.com.br/video/morte-como-acontecimento-daniel-lins>. Acesso em: julho de 2010. Publicado em 21/04/2010.
40
Severo Sarduy diz que aquele que ler Lezama Lima para flagrar seus
erros já não o leu, pois o que importa em suas páginas corre longe da
veracidade comprovável de suas fontes.
Se sua História, sua Arqueologia, sua Estética são delirantes,
se seu latim é irrisório, se o seu francês parece o pesadelo de
um tipógrafo marselhês e para seu alemão se esgotam em vão
os dicionários, é porque na página lezamesca o que conta não
é a veracidade – no sentido de identidade com algo não verbal
– da palavra, mas sua presença dialógica, seu espelhamento.
Conta a textura francês, latim, cultura, o valor cromático, o
estrato que eles significam no corte vertical da escritura, no seu
desdobrar de sapiência paralela. (SARDUY, 1979, p. 89)
Um dos recursos que Lezama utiliza para obter ―la imagen possible‖ é a
―prova hiperbólica‖, que consiste em selecionar e combinar instantes históricos
privilegiados pela imaginação universal que transcenderam a linearidade
temporal, sem submissão cultural, geográfica ou aderência aos nexos sócio-
econômicos vencedores. Aliás, o autor geralmente é impreciso nas citações,
isso quando não as manipula e interpreta livremente, ajustando a história
oficial, os mitos e relatos para melhores engastes na formulação da imagem
final.
O autor submete a rede de imagens díspares, fragmentadas e
descoladas de seus contextos originais ao aumento de ―calor‖ provocado pelas
proximidades inéditas entre tais fragmentos, para que, uma vez em estado
―vaporoso‖, as imagens, antes apartadas pela temporalidade e geografia,
agitem suas moléculas, liberando-as para enlaces outrora impossíveis.
Traços, partículas, fragmentos de textos são extraídos de
uma totalidade – como numa tomada sinedóquica – para
serem analogados com outros retalhos de uma outra
totalidade. A idéia é de compor, com esses saltos e
sobressaltos, uma espécie de constelação supra-histórica, em
que os textos dialogantes exibem o seu devir na mutação
dessas partículas. (CHIAMPI, 1988, p. 25)
Lezama entende ‖(...) a imagem como a última das histórias possíveis‖
(CHIAMPI, 1988, p. 25). A história americana é para ele um paradigma
contínuo que, assim como sua poética literária, segue ziguezagueando entre
zonas de legibilidade e a pantanosa dificuldade em fazer sentido.
41
Em seus romances, o autor faz conversar personagens celebrados pela
história oficial com outros completamente anônimos, colocando-os ombro a
ombro, dando-lhes voz amplificada de um modo raro. Deste modo o autor alivia
a história de ser o irradiador único de narrativas oficiais, confirmando que
nossas fontes vêm das diversas camadas civilizacionais, de suas também
diversas temporalidades em convivência, que aparecem entrelaçadas na
cultura - nos modos de cantar, de escrever, de comer, de festejar, de rezar, de
morrer.
Ao rebaixar a narrativa histórica ao alcance dos barbeiros, padres,
escravos libertos, anões, prostitutas e travestis, Lezama cria uma massa
sonora, um ruído que a História oficial teima em não considerar. O autor
quebra a tentativa de unidade almejada pela História e no lugar dela cria uma
tensão, quase sempre perturbadora. O residual histórico, o anônimo e o
popular constituem para Lezama a matéria prima do americano na constituição
da sua riqueza cultural.
Chiampi (1988, p. 124 - 125) observa que o interessante nas hipérboles
semânticas de Lezama Lima é a brecha que ele encontra para transformar a
História da América Latina em ―crônica poetizável de imagens‖. (CHIAMPI,
1988, p. 124 - 125)
A igreja pode situar-se abaixo do órgão, ou como afirmam alguns
teólogos protestantes, a única fé diferente em cada indivíduo pode
desgarrar o espanto, e no espanto construir-se a torre. Na visão
última é a torre ou o poema? Enquanto o vislumbramento da torre
na última visão é incomunicável, a certeza da existência do poema
é contínua e imediata, pois no poema a imagem mantém o fogo
de proporções, e na poesia, a metáfora, não no sentido grego de
verdade como desvelamento, mas no poético de obscuridade
audível, adquire seu sentido de metamorfose que justifica seus
fragmentos. (LIMA, 1996, p. 147)
As metáforas são para o autor instrumentos auxiliares para o
conhecimento, e não ornamentos de linguagem, visto que para ele as
descrições e narrativas lineares não são suficientes para ambientar as
realidades do continente. O autor recorre às metáforas em proliferação para
alcançar a imagem para a qual faltam sinônimos imediatos que a esgotem
42
como representação. Segundo Severo Sarduy (1979, p. 89), na metáfora
Lezamesca - que para o autor é a metaforização barroca por excelência – a
distância entre o significante e o significado é ampliada ao máximo através da
proliferação metafórica, que assume o risco radical da perda da
correspondência. Sua leitura exige um leitor aberto às experiências de leituras
labirínticas. O encadeamento metafórico cria uma teia de aproximações que
suplanta o que se deseja descrever. No lugar da verdade fica a imagem.
O que parece uma perda de sentido é, no entanto, uma aguda precisão.
Sua exatidão absoluta é formal, e não de conteúdo, por isso não almeja a
correspondência verificável e deixa os leitores – aqueles ávidos pela narrativa
linear com desdobramentos causais - desconcertados. O autor revela seu
objeto com a colaboração do erro, da recriação indevida de referências,
portanto é inútil decantar e dissecar todos os extratos que estão difundidos em
seu texto. O melhor a fazer é degustar a imagem.
Seus procedimentos literários afirmam o barroco americano como
processo crítico-analítico próprio do continente, em acordo com o
entrecruzamento de temporalidades, culturas e paisagem. O processo de
montagem em mosaico de suas imagens faz nosso barroco desgarrar-se da
órbita do barroco europeu, ainda considerado por muitos como a ponta seca do
compasso da produção artística das Américas.
(...) primeiro há uma tensão no barroco (americano); segundo
um plutonismo - fogo originário que rompe os fragmentos e os
unifica; terceiro, não é um estilo degenerescente, mas plenário,
que na Espanha e na América Espanhola representa
aquisições de linguagem, talvez únicas no mundo, móveis para
a vivenda, formas de vida e de curiosidade, misticismo que se
prende a novos módulos para a prece, maneiras de saborear
os manjares, que exalam um viver completo, refinado e
misterioso, teocrático e ensimesmado, errante na forma e
arraigadíssimo nas suas essências. (LIMA, 1988, p. 79 - 80)
Este americano apresentado por Lezama Lima é um homem de viver
sofisticado, desde que se entenda sofisticação como a habilidade em colocar
em diálogo cotidianamente a natureza e o rumor das culturas que re-fundaram
nosso continente. A paisagem já lhe pertence. Para o autor, o americano se
43
estabelece em suas varandas quando já não há o ―tumulto do parcelamento
das terras coloniais: é o Senhor Barroco que trança e multiplica a linguagem ao
desfrutá-la: o degustar de seu viver lhe cresce e fervoriza‖ (LIMA, 1988, p. 81).
O desfrute lezamiano do Senhor Barroco tem lugar para acontecer.
Precisa haver o sol refletido nas pratas da sala de almoço, mas delicadamente
filtrado pelo movimento de folhagens enroscadas nos alpendres enquanto a
mesa é posta com regalias de frutas, de tigelas e de cheiros.
Feira Livre de Pium, Natal. Banco de dados da UFRN
O Senhor Barroco em sua varanda pode, numa primeira visada, parecer
pertencer a uma realidade idealizada e caricata de um passado colonial dos
senhores e feitores, mas não é assim. A varanda barroca é metáfora perfeita
do completo domínio da paisagem cultural americana por parte dos latino-
americanos e não privilégio dos ricos, que muitas vezes são fóbicos aos
elementos locais. Nem mesmo as fazendas daquela época eram tais quais nos
apresentaram os livros da história oficial, que investiu mais nos estudos das
opressões do que na arqueologia das composições culturais que se sucederam
44
no continente. Desde o nosso ponto de vista, o mais importante é a percepção
de que mesmo nas situações de sujeição sofrida pelas minorias, havia e há
espaços importantes de produção de cultura não determinados pela
dominação.
Lezama recupera através da imagem justamente a persistência e a
insurgência do desfrute barroco no cotidiano do latino-americano, mesmo nos
centros urbanos nos quais vivemos atualmente, onde o tempo parece escasso
e caro. O senhor Barroco não é assunto de antigamente nem é um pálido
reflexo dos costumes de outrora, pois a fartura nos modos de viver que ele
representa é atualizada diariamente nas ruas e nas casas brasileiras e da
América Latina, independentemente do sucesso econômico, pois a abundância
do continente é tátil, visual e sonora.
O maravilhoso na América Latina é o assombro do real
Foto de beijo de casal morador de rua, sem crédito.
45
(...) lo maravilhoso comienza a serlo de manera inequívoca
cuando surge de uma inesperada alteración de la realidad(el
milagro), de uma revelación privilegiada de la realidad, de uma
iluminación inhabitual ó singularmente favorecedora de las
inadvertidas riquezas de la realidad, de uma ampliación de las
escalas y categorias de la realidad, percebidas com particular
intensidad em virtud de uma exaltación del espíritu que los
conduce a um modo de ―estado limite‖ (...) (CARPENTIER,
1985)12
Os sentidos se entrelaçam nas vidas desde o modo de se passar um
café na padaria até na espera no ponto de ônibus. Os excessos naturais e os
artifícios composicionais deles derivados desde a colonização do continente
catalisaram variações das experiências sensoriais e nos aparelharam com
sentidos mais complexos e habilitados a traduzir o bombardeio intertextual das
nossas ruas.
Alejo Carpentier13 sabe que na América não há como querer dominar
completamente a natureza, é preciso compor com ela. Se o sol cubano é quem
castiga as casas, é também quem transmuta tudo em ouro ao fim da tarde.
Assim também é o sol do Ouro Preto e, porque não, de São Paulo. O latino-
americano dialoga com o sol, negocia com sua intensidade, usa de artimanhas,
de filtros, pátios, mas do mesmo modo que resiste também sabe ceder às
forças telúricas. É um cortejo sensual da natureza, tomamos dela o que
12
Trecho extraído do prólogo de Carpentier para seu livro O reino deste mundo, no qual faz uma diferenciação histórica entre o surrealismo europeu e o realismo fantástico latino americano e serve como um manifesto para que os escritores do continente voltem-se para o mundo americano como fonte de literatura. Livre tradução: (...) o maravilhoso começa a sê-lo de modo inequívoco quando surge uma inesperada alteração da realidade ( o milagre), de uma revelação privilegiada da realidade, de uma iluminação inabitual ou singularmente favorável às inadvertidas riquezas da realidade, de uma ampliação das escalas e categorias da realidade, percebidas com intensidade particular em virtude de uma exaltação do espírito que os conduz a um modo de estado limite.lo maravilhoso comienza a serlo de manera inequívoca cuando surge de uma inesperada alteración de la realidad(el milagro), de uma revelación privilegiada de la realidad, de uma iluminación inhabitual ó singularmente favorecedora de las inadvertidas riquezas de la realidad, de uma ampliación de las escalas y categorias de la realidad, percebidas com particular intensidad em virtud de uma exaltación del espíritu que los conduce a um modo de “estado limite”.
13 Apesar da ênfase do autor no acontecimento do barroco na Espanha e na América
Espanhola sem que faça a inclusão da América Portuguesa no trecho em destaque, os
conceitos por ele desenvolvidos abrangem o Brasil, pois a confluência de culturas diversas
ambientadas na natureza se deu no continente como um todo. O autor cita o barroco brasileiro
e seus artistas a todo o momento, principalmente as manifestações na arquitetura e na arte
escultórica de Aleijadinho.
46
queremos sem deixar de ceder e aceitar seus caprichos. Para Carpentier, a
arquitetura moderna não sabe jogar, não tem este molejo, pois quer dominar a
natureza através do controle de suas manifestações.
Mas cabe assinalar aqui, ao mesmo tempo, que o brise de
soleil de Le Corbusier não colabora com o sol, quebra o sol,
rompe o sol, aliena o sol, quando o sol é, em nossas latitudes é
uma presença suntuosa, à miúdo incômoda e tirânica, porém
sempre há que tolerar-se em plano de entendimento mútuo,
tratando-se de acomodar-se com ele, de domesticá-lo quando
for possível. Porém, para entabular um diálogo com o sol há
que brindá-lo com os espelhos adequados.14 (CARPENTIER,
1982, p. 73 - 74)
A sofisticação do americano que nos interessa nesse trabalho não é
sinônima daquela que se obtém a partir do sucesso financeiro ou das
tecnologias de ponta, embora possa perfeitamente se beneficiar destes
aspectos. Procuramos compor com os autores que melhor traduziram nossa
fartura cultural, na qual a cultura popular é, na maior parte das vezes, aquela
que melhor coordena a abundância. O pesquisador bem intencionado não pode
se furtar da constelação de materiais culturais que se apresentam
cotidianamente nas ruas, nas casas, nas festas, nas igrejas. Manejá-los requer
criação e desenvoltura, da cozinha à ciência, da ciência à cozinha.
É nas ruas, no centro do furacão intertextual, que a cultura encontra-se
menos anexada ao progresso tecnológico e científico como premissa de
desenvolvimento cultural. A realidade cotidiana possui muito mais dinamismo
do que as teorias que a explicam. As idéias não têm condição de representar o
vivido. A cultura independe do homem teorizante. À ciência cabe a
simplificação da realidade através de procedimentos lógicos e algorítmicos,
pois uma teoria é mais bem sucedida quanto mais comprovável for e, para ser
comprovável, seu resultado deve ser unívoco e até universal. A cultura, ao
contrário, desenvolve-se melhor em ambientes mais complexos, que não
obedecem a um único modelo ou algoritmo prévio. Segundo Lotman (1996, p.
14
Livre tradução: Pero cabe señalar aqui, de paso, que el brise-soleil de Le Corbusier no colabora com el sol, quiebra el sol, rompe el sol, aliena el sol, cuando el sol es, em nuestras latitudes, uma presencia suntuosa, a menudo molesta y tirânica, desde luego, pero há de tolerarse em plano de entendimento mutuo, tratando de acomodarse com el, de domesticarlo cuanto sea posible. Pero, para entablar um dialogo com el sol hay que brindarle los espejuelos adecuados...
47
67), o texto que representa maior valor cultural é o menos adaptado para
transmissão, ou seja, o mais complexo obriga à criação tradutória, que sempre
será plural, ambígua e contraditória. Na América Latina podemos dizer que a
realidade é esse texto complexo que acelera a produção de cultura.
A platibanda mexicana, a madeira boliviana, a pedra
cusquenha, os cedros, as lâminas metálicas alçavam a riqueza
da natureza sobre a riqueza monetária. De tal maneira que,
ainda dentro da pobreza hispânica, é a riqueza do material
americano, da sua própria natureza, o que forma parte da
grande construção para reclamar um estilo, um esplêndido
estilo surgido paradoxalmente de uma heróica pobreza. (LIMA,
1988, p. 101)
Porém há que se tomar cuidado para que a riqueza cultural do
continente não seja automaticamente análoga à pobreza econômica, como se
houvesse uma legitimidade cultural pautada na carência de dinheiro. Não se
trata disso. A economia e a cultura se desenvolvem independentemente,
embora estejam profundamente conectadas. O fato de um país ser
economicamente pobre não significa que sua cultura não possa ser sofisticada.
Esta preocupação fundamenta-se na constatação de que os sistemas
econômicos dominantes tendem a produzir (patrocinar) processos culturais nos
quais os elementos culturais locais limitem-se ao papel de matrizes formatadas
para serem financeiramente vencedoras e, por isso, reproduzidas à exaustão.
A este aspecto massificante do capitalismo é possível contrapor o barroco
como político e revolucionário, porque concentra na matéria ―inculta‖ um tipo de
sabedoria que viscosamente impede que o discurso político-econômico
dominante se fixe como coordenador exclusivo dos sistemas culturais. A
literatura de Lezama Lima contém esta semente revolucionária.
É uma espécie de segurança que parte da sobremesa, da
despedida, do bem entrar na oficina impiedosa, do dormir com
o reconciliado signo da morte, e por outro lado um desejo de
expressar-se no barbeiro, que lê e escuta, mas que fica a meio
do caminho, porque a religiosidade média que o impulsiona a
chegar ao formal não é a porção misteriosa que dá uma
vocação levada pela continuidade dos anos, mas pelo saber
que está numa região central do fogo com os olhos muito
abertos. (LIMA, 1988, p. 138)
48
Os ―incultos‖, que no texto de Lezama estão representados pela figura
do barbeiro, que escuta os doutores atentamente, e que, embora não
compartilhe de seus conhecimentos letrados, sabe que pode aproveitar algo
daquilo em benefício próprio, editando informações, recompondo e conectando
dados. Sua subordinação ao dominante é apenas parcial, frequentemente
financeira, porém sua atenção conectiva não tem patrão nem senhorio.
O barroco é capaz de, simultaneamente, coordenar e irradiar
excedentes do cotidiano urbano, da rua: o deslocamento labiríntico, o
bombardeio visual e a progressão decibélica15 dos sons da cidade. O que
significa que quando há um excedente de significantes, a tendência do
continente americano é compor, ou seja, operar com um dispositivo agregador,
o ―E‖ 16, cuja diretriz é a conciliação de pelo menos dois elementos
considerados irremediavelmente distantes. Trata-se de juntar e não de
circunscrever territórios. Há uma somatória, o “E”, no lugar da subtração do
“OU”, que exclui o outro.
A característica do ―E‖ é a sinuosidade, pois contorna o dilema evitando o
confronto final da escolha por exclusão, ―(...) nem uma reunião, nem uma
justaposição, mas o nascimento de uma gagueira, o traçado de uma linha
quebrada que parte sempre em adjacência‖ (DELEUZE, 1998, p. 38), mesmo
que uma das partes não esteja satisfeita com a composição, pois o Barroco
não assegura nenhuma justiça igualitária ou moral, apenas imanta as partes
conferindo-lhes um sentido, ainda que não duradouro.
O interesse pelo encontro com o outro implica em abertura sensível, intelectual
e ética aos campos mais problemáticos, o que possibilita, segundo Deleuze, o
acontecimento. O ―E‖ é o interesse por experiências de risco, localizadas no
limiar de nossos arquivos conhecidos, o objetivo é o encontro com o outro sem
a preocupação com sua filiação, origem ou categoria. Nos encontros limiares,
15
Sarduy (2000, p. 195) usa a expressão progressão decibélica para falar sobre o texto de Reinaldo Arenas que, segundo Sarduy, realiza através de sua escrita um precioso trabalho de escuta da paisagem sonora de Cuba.
16Anotações da aula do professor Luis B. Orlandi em 24 de março de 2004, na PUC/SP.
Citação consentida pelo professor.
49
as tradições e as identidades não regulam as relações. A idéia de fronteira
para o barroco é dilatada, pois aquilo que era linha divisória alarga-se como
campo para o encontro.
Mastaï, um tanto aflito pelo fracasso da missão, conheceu os
estremecimentos telúricos de dois terremotos que, sem
causar-lhe danos, lhe fizeram padecer a indizível angústia de
sentir sua estabilidade perdida. (CARPENTIER, 1987, p. 35)
A novidade e o deslocamento do encontro com o outro podem ser tão
violentos que o sujeito entra em crise, o que pode ser muito interessante ou
assustador demais. Em sociedades muito universalistas, o sujeito que vivencia
tal encontro tende a romper seus limites de suportabilidade e diante do
assombro empreende uma cruzada contra a diferença ou mantém distâncias
fóbicas daquilo que não compreende. São culturas com maior tendência aos
deciframentos unívocos que temem profundamente a perda de unidade
interna. ―La imantación del desconocido es por el costado americano más
inmediata e deseosa. Lo desconecido es casi nuestra única tradición.‖ (LIMA,
1971, p. 35)
No entanto, o sobressalto do encontro pôde, no continente americano,
ser produtor de inúmeros textos culturais, pois nunca houve unidade anterior
para a qual voltar.
Nascemos de uma confluência cultural inédita, que aproximou à explosão
textos e subtextos culturais,17 contrastantes e autônomos. Como disse Lotman
(1996, p. 101), ―em momentos de explosões culturais (ou, em geral,
semióticas), são incorporados os textos que, desde o ponto de vista do
sistema dado, são os mais distantes e intraduzíveis (ou seja,
incompreensíveis)‖. Os encontros entre heterogeneidades colocam os textos
culturais em grande dinamismo cultural, pois rompem a ―estática infantil‖ (dos
17
Consideramos, segundo Lotman, a cultura como um grande texto: La cultura en su totalidad
puede ser considerada como un texto. Pero es extraorndinariamente importante subrayar que
es um texto complejamente organizado que se decompone en uma jerarquia de textos en los
textos y que forma complejas entretejeduras de textos. Puesto que la própria palabra texto
encierra en su etimología el significado de la entretejedura, podemos decir que mediante esa
interpretación Le devolvemos al concepto texto su significado inicial (LOTMAN, 1996, p. 109).
50
novos textos ainda balbuciantes e sem tradução) e ―senil‖ (dos textos da
tradição, ensimesmados). Nestas traduções nunca teremos de volta os textos
iniciais, mas em troca disponibiliza-se uma multiplicidade de traduções.
(Lotman, 1996, p. 68).
O (assombro) de Colombo diante da América beira
freqüentemente o delírio: quando se aproxima da
desembocadura do Orenoco pensa que descobriu um dos rios
que vêm do paraíso;
(...) Por sua vez, os índios não entendiam esse animal
centáurico composto por homem e cavalo; maravilharam-se
quando um conquistador desceu de sua cavalgadura: um ser
que se divide em dois!
(...) Pois bem: esse assombro recíproco é o ovo de onde sairá
a cultura latino-americana, toda sua arte criativa. (MORENO,
1972, p. XX - XXI)
Insistimos no barroco como um mecanismo de pensamento criador
importante do continente latino-americano por sua alta capacidade tradutória, o
que significa o alastramento de novos enunciados a partir dos textos de
partida, sem algoritmos pré-estabelecidos, sustentando aquilo que Lotman
(1996, p. 79) chama de ―contraditoriedade da dinâmica cultural‖. O autor
explica que o dinamismo cultural tem a ver com um duplo e contraditório
movimento semiótico: o de aumentar a coerência interna - ou seja, de manter
os textos dominantes - ao mesmo tempo em que subtrai a importância destes
textos através da introdução de textos estranhos, que aumentam a
heterogeneidade cultural.
Mas o barroco não recusa os textos dominantes, apenas não insiste na
―reprodução do mesmo‖ (Laplantine). O barroco atua na manutenção da
tensão relacional entre os textos dominantes e os textos novos, ou
parafraseando Lotman, na manutenção da tensão entre ―(...) a tendência à
integração – a conversão do contexto em texto, (...) e a tendência à
desintegração – a conversão do texto em contexto‖ (LOTMAN, 1996, p. 79).
Em Severo Sarduy, o aspecto revolucionário do barroco está na
impossibilidade do Logos absoluto, da verdade. A frase barroca de Lezama
Lima assume e incorpora o erro, a imprecisão no enxerto textual, oscilação e
queda do sentido, enfim, a celebração de um mundo sem centro e da
51
habilidade em compor com o caos. É a organização sintática dos desperdícios
sem querer constituir-se como centro. ―(...) barroco onde se recusa qualquer
instauração, onde o que se metaforiza é o fato de a ordem ser discutida, o
deus julgado, a lei transgredida. Barroco da revolução‖. (LIMA, 1988, p. 97)
Atualizando os processos náufragos da ocupação européia para os dias
de hoje enxergamos seus desdobramentos numa grande aptidão inclusiva, ou
seja, uma cultura com pendor nato para a mestiçagem.
A mestiçagem, segundo Laplantine ([s/d], p. 80), nos ajuda a entender
nossa aptidão para a soma e nossa dificuldade em excluir. O autor ([s/d], p. 80,
98 - 99) diz que a mestiçagem não é um conhecimento da ordem do
enunciado, nem é um adjetivo, escapa do ter proprietário e do ser identitário. A
mestiçagem é, para ele, a inteligibilidade de um determinado real percebido
como camadas de múltiplos aspectos entretecidos, que a verdade não se
instala na duração, e a vida não é imobilizada no conceito, tendendo antes
para o equívoco infinito (LAPLANTINE; NOUSS, [s/d], p. 99).
Em 1517, o padre Bartolomé de las Casas sentiu muita pena
dos índios que se consumiam nos penosos infernos das minas
de ouro nas Antilhas e propôs ao Imperador Carlos V a
importação de negros para que se consumissem nos penosos
infernos das minas de ouro das Antilhas. A essa curiosa
espécie de benfeitor devemos fatos incontáveis: os blues de
handy, o sucesso que obteve em Paris o pintor e doutor
oriental dom Pedro Figari, a boa prosa do também oriental
dom Vicente Rossi, a grandeza mitológica de Abraham
Lincoln, os quinhentos mil mortos da Guerra da Secessão, os
três mil e trezentos milhões gastos em pensões militares, a
estátua do imaginário Falucho, a inclusão do verbo linchar na
décima terceira edição do Dicionário da Academia, o
impetuoso filme Aleluya, o pesado ataque de baioneta feito no
Cerrito por Soler à frente de seus Pardos e Morenos, a graça
da senhorita de Tal, o mestiço que matou Martín Fierro, a
deplorável rumba El Manisero, o napoleonismo audaz e
reprimido de Toussaint Louverture, a cruz e a serpente no
Haiti, o sangue das cabras degoladas pela faca do papaloi, a
habanera de que nasceu o tango, o candombe. E ainda mais:
a culposa e magnífica existência do cruel redentor chamado
Lazarus Morell. (BORGES, 1998, p. 21)
52
Ficou impossível nas Américas, poucos séculos depois dos
descobrimentos, determinarem de qual cultura de partida certos elementos
culturais vieram, ou como diz Laplantine, ―se torna inútil perguntar a que rio
principal pertencem os diferentes afluentes – e isso é essencial porque a
cultura para onde vamos se sobrepõe à cultura de onde viemos‖
(LAPLANTINE; NOUSS, [s/d], p. 30).
Manoel Bandeira (2006, p. 15) exemplifica esse processo de camadas
culturais formando um tecido de trama anônima com a disposição tradicional
da mobília da sala de visitas brasileira: ―o sofá com duas linhas
perpendiculares de cadeiras. A observação superficial atribui logo esse hábito
ao gosto primário da simetria, quando em verdade é uma sobrevivência tenaz
de costumes árabes herdados por intermédio dos portugueses.‖
Informações como essas não têm outro interesse que não o da
curiosidade e nos comprazem com a verificação de nossa capacidade
compositiva, de incorporação do estrangeiro, de forma visível ou não.
Sintaxes no ambiente barroco: as artes do engaste
Casa da Favela Jardim Edite, removida para a obra da Ponte Estaiada em São paulo. Foto e grafite de Mundano, no flickr.com
53
Carpentier quer inscrever a América na história do ocidente como o espaço
do encontro prodigioso de díspares culturais, históricos, temporais e naturais e o
termo que encontra para definir a paisagem cultural que o rodeia é o Realismo
Maravilhoso, que não deve ser confundido com uma projeção idílica, mas com um
derramamento informacional explosivo, difícil de ser descrito ou classificado.
Como ressalta Irlemar Chiampi (1980, p. 31 - 39), Carpentier cunha o termo ―para
designar, não as fantasias ou invenções do narrador, mas o conjunto de objetos e
eventos reais que singularizam a América no contexto ocidental‖.
O autor avisa que em seu romance O Reino desse Mundo, narrativa sobre
a independência do Haiti, a sucessão dos fatos extraordinários narrados pode ser
checada nas fontes oficiais quanto à cronologia, veracidade dos personagens
principais e até mesmo secundários, locais dos acontecimentos, etc., mas o
maravilhoso de Carpentier não tem nada a ver com o belo simétrico e harmônico,
nem mesmo com a ancoragem no verídico-histórico. É na crueldade, na tirania,
na violência emaranhada na paisagem fenomenal e na confluência de matrizes
culturais em temporalidades diversas que se localizam a percepção do
maravilhoso no real, no cotidiano. Viver na América é conviver com a
impossibilidade de verdades absolutas, e a história é suplantada pelo simples
existir sem tempo da imersão em tais realidades.
En ese tiempo sin tiempo, o más bien, en esse logos sin autoridad ni rescate final, leo hoy a Arenas. El tiempo envolvente y denso de la siesta, a la luz (inventada, en este lugar que pintó Corot y que siegue fiel a esta paleta apagada, a esse gris mustio; aciago amanecer del otoño en el estanque sin reflejo) de um medio punto colonial: punzó, amatista, azul cobalto, azul del caribe. Uma raya morada marca el canuto de la caña, el poliedro del anón. Olor a llovizna fresca. Manzanas quemadas para um dios. El tiempo se há retraído. La Historia es uma farsa seria. Despliegue em presencia: inunda las cosas, excessivo, burlón casi, desbordante en su elocuencia, el ser. (SARDUY, 2000, p. 195)
Sarduy vale-se, no fragmento acima, da frase de outro escritor, Reinaldo
Arenas (Porque el hombre es, em fin, la metáfora de la Historia, su victima, aun
cuando, aparentemente intenta modificarla y, según algunos, lo haga.), para
criticar a linearidade cronológica da história clássica e nos fazer ver um tempo
quebrado, oferecer cores e cheiros em paletas cheias de significados
54
embutidos e conectados, que, em conjunto, formulam o caráter atemporal da
paisagem americana.
Favela de Taboão da Serra, foto de Marcelo Min
Não temamos o barroquismo, arte nossa, nascida das árvores,
de lenhos, de retábulos e de altares e retratos caligráficos e até
neoclassicismos tardios; barroquismo criado pela necessidade
de nomear as coisas (...) (CARPENTIER, 1969, p. 32)
Alejo Carpentier, Severo Sarduy e José Lezama Lima incorporaram
através da literatura a missão de inscrever as Américas na História Universal,
longe do exotismo e do folclorismo tropical. Todos eles, mesmo com distintas
escrituras, tratam da dificuldade diante da indizibilidade do objeto América.
Há uma urgência lingüística em encontrar palavras cabais nas obras de
Carpentier; em Lezama há a proliferação nebulosa de significantes no limite da
perda do foco do objeto para, no final, criar uma imagem magistral; Severo
Sarduy, perseguindo a precisão barroca, discrimina seus procedimentos
operatórios, que no lugar de restringir, torna mais elaborada a sintaxe barroca.
Estes autores reclamam nossa riqueza cultural ofuscada pela razão ocidental,
insistente em nos disponibilizar uma posição cultural subalterna, na qual a
55
―primitividade‖ americana localizar-se-ia num nível abaixo da ―civilidade centro-
européia‖, sem que sejam consideradas todas as matrizes culturais do continente
americano, o que inclui, sem dúvida, os diálogos culturais proveitosos com a
própria razão centro-européia. A literatura e os ensaios de altíssima qualidade
produzidos pelos autores citados dialogam com os discursos oficiais, agregando
elementos poéticos que não pertencem à história, mas que complementam com
perspectivas mais saborosas, mesmo que não comprováveis, e talvez, por isso
mesmo, como aberturas potentes de ―possíveis‖. Isto se dá porque a
engenhosidade da linguagem textual destes autores transborda os limites da
literatura para entrar em relação dinâmica com as outras séries culturais, tais
como a dança, o vestuário, a comida, a festa.
Sarduy (2000, p. 174 - 175), por exemplo, estabelece conexões entre duas
séries culturais diferentes, a língua castelhana e as arquiteturas barrocas, para
dizer que as matrizes culturais do continente estão em constante conexão e
movimento. Para demonstrar que a cultura americana se faz por soma, por
ploriferação de signos de várias culturas, ele emprega, no texto abaixo, três
sinônimos - engastaron, engarzaron, injertaron - para falar que a marchetaria
cultural é um procedimento que ocorre entre todas as séries culturais e que tem a
ver com a proliferação de matrizes culturais das Américas:
La lengua de los conquistadores, el castellano, es como la
fachada de uma iglesia barroca en la Habana, en Taxco o en
Minas Gerais: las líneas generales, la composición, incluso los
aleros y volutas son sin duda europeos, pero los índios trajeron de
las minas o de las plantaciones donde trabajavan o de sus aldeas
a orilla del mar, pequeños detalles, cosas bellas, llenas de
colorido, decorativas que engastaron, engarzaron, injertaron en
esas fachadas. Por eso se pode hablarse em América de um
barroco minero o azucarero. Em todo caso, la fachada, a fuerza
de añadiduras se converte em taracea, em ploriferación de
signos, em reflejo de cores y formas. Lo mismo se sucede com la
lengua. Desde la conquista y hasta nuestros dias se le injertan
nuevos ornamentos, palabras y giros antes no usados.18
(SARDUY, 2000, p. 175)
18
Livre tradução: A língua dos conquistadores, o castelhano, é como a fachada de uma igreja
barroca em Havana, em Tazco ou em Minas Gerais: as linhas gerais, a composição, inclusive os
aleros e volutas são sem dúvida europeus, mas os índios trouxeram das minas ou das plantações
onde trabalhavam ou de suas aldeias, a concha do mar, pequenos detalhes, coisas belas, cheias
56
Os procedimentos barrocos criam nódulos de sentido, mas não simplificam
a problemática. Quando Sarduy utiliza uma das infinitas paletas de cores das
Américas, ele não deseja retratar uma paisagem calma e idílica do Caribe, porém
problematizar o tempo histórico clássico. Para isso a paleta de cores de Sarduy
torna-se uma ferramenta, pensada ao modo de Guattari para articular a crítica.
Forjar un lenguaje significa inventar palabras, palabras-claves,
palabras-equipaje, en el mejor de los casos, palabras-
herramientas capaces de abrir una problemática, de movilizarla y
de articularla em campos diversos. No creo ni en la literatura ni en
la filosofia universal, sino más bien en las virtudes de las lenguas
menores. (GUATTARI, 2008, p. 179)
Através da literatura, estes autores souberam, barrocamente, em jogos de
luz e sombra, ora revelar nossas realidades sob sol a pino ora cobri-la de véus,
re-atualizando os mistérios e mitos enredados em nosso cotidiano telúrico, os
estados reais que, mesmo não atuais, continuam possíveis.
A nossa arte sempre foi barroca: desde a cultura pré-
colombiana e dos códices até a melhor novelística atual da
América. Passando pelas catedrais e mosteiros coloniais do
nosso continente. Até o amor físico se torna barroco na
encrespada obscenidade do guaco peruano. Não temamos,
pois, o barroquismo no estilo, na visão dos contextos, na visão
da figura humana enlaçada pelas trepadeiras do verto e do
tectônico, metida no incrível concerto angélico de certa capela
(branco, ouro, vegetação, intrincados, contrapontos inauditos,
derrota do pitagórico). (CARPENTIER, 2006, p. 75 - 76)
Ao explorarmos os procedimentos barrocos temos em vista esclarecer a
sua precisão operatória evitando associá-lo a qualquer situação de mistura
desordenada de elementos. Deve haver um cuidado em não entendermos o
barroco como reação a alguma perda indesejável de coesão, de identidade, de
unidade. A dificuldade está em perceber que o barroco americano não é
conseqüência da desordem, e sim um sistema capaz de compor com ela, ou
de cor, decorativas que engastaram, engarzaron,enxertaram nestas fachadas. Por isso se pode
falar em América de um barroco mineiro ou azucareiro. Em todo caso a fachada, à força de
añadiduras se converte em taracea, em ploriferação de signos, em reflexo de cores e formas.
O mesmo se sucede com a língua. Desde a conquista até nossos dias são enxertados novos
ornamentos, palavras e giros nunca antes usados (Sarduy, 2000, p. 175).
57
seja, é altamente capaz de coordenar o disperso em sintaxes complexas. São
recursos que se tornam mais recorrentes quanto maior a dificuldade em
aproximar o significado do significante, quando o objeto está imerso na
superabundância verbal e visual do continente.
É importante reforçar através destes procedimentos o desprezo pelo
original, pelo Uno, visto que o barroco tende sempre à proliferação e à
hipérbole - signos do descontrole da razão – mas para que a sintaxe ocorra há
estratégias composicionais. O simples fato de dispor diferenças lado a lado não
significa que houve uma sintaxe barroca.
Podemos destacar do universo operatório do barroco algumas de suas
palavras-ferramentas: erotismo, reminiscência, colagem, decalque, artifício,
polifonia, lúdico, mosaico, labiríntico, lista díspar, aglutinação, enxerto,
plutonismo, tensão, desmesura. Tomamos estas palavras dos procedimentos
barrocos de Sarduy e de outros autores como pistas para análises espaciais
das nossas metrópoles, pois acreditamos que apesar da aparência caótica e
fragmentada delas, há vetores organizativos inteligíveis, mas que jamais se
encaixarão nas definições clássicas do urbanismo. O barroco à luz da literatura
latino-americana será considerado, neste trabalho, como um fio condutor das
ligações interessantes entre as assimetrias e as ortogonalidades das
realidades urbanas da América Latina, especialmente de São Paulo.
Séries Culturais: prerrogativas deslizantes na América Latina
Não se pode pensar a televisão e o jornal, no Brasil, por
exemplo, sem passar pelas histórias dos processos tradutórios
que envolvem a cultura do cotidiano (visual, oral, corpóreo-
táctil), performances urbano-espaciais, rádio, teatros de revista,
cinema, romance-folhetim, e muito mais. (PINHEIRO, 2007)
Séries culturais são conjuntos de sistemas com códigos próprios, mas
com delimitações frágeis, tais como as religiões, as feiras, as festas, a moda, a
culinária, etc. Na América Latina, esses sistemas são deslizantes, suas
fronteiras são tênues e os códigos de uma série invadem e intercambiam com
os de outra, significando que a interconexão de todos os elementos do espaço
semiótico não é uma metáfora, mas sim uma realidade (LOTMAN, 1996, p. 35).
58
Pinheiro (2007) diz que esses deslizamentos criam encaixes entre as séries
culturais através de nexos recíprocos: ―(...) relações entre natureza e cultura,
entre o dentro e o fora, entre a casa e a rua‖.
Do micro ao macro, várias combinatórias podem ser montadas,
a partir de séries culturais em processo: por exemplo,
oralidade, culinária, louçaria, mobiliário, arquitetura, espaço
urbano.
Retículas luminosas permeiam sistemas culturais
intermediários como mercados, ruas e igrejas, com conexões,
engastes e labirintos que se renovam nas pedrarias e
arabescos de prateiros e ourives ou então nas constelações de
sílabas, em corpúsculos pictóricos, nas diagramações de jornal
ou nas telas de vídeo ou cinema. (PINHEIRO, 2007, p.67)
Como os objetos da cultura são muito abundantes e as fronteiras
extremamente móveis, sobejam fragmentos celibatários que, deslocados de
seus contextos originais, estão liberados para o encontro com outros
fragmentos, igualmente livres. Ao invés de hierarquia e subordinação, o que os
conecta é uma pressuposição recíproca (DELEUZE, 1988, p. 42 - 43) que
ocorre no encontro entre, no mínimo, dois sistemas.
Estes enlaces não geram encaixes perfeitos ou fusões, ao contrário.
Pela divergência entre os materiais culturais em relação, o que se desenvolveu
por aqui foi uma engenhosidade compositiva ímpar. Limar, costurar, preencher,
grampear, substituir, calçar, abusar dos artifícios para fazer surgir da madeira o
brilho do ouro e a dureza do mármore.
A mestiçagem resultante das confluências não é gentil. Há eletricidade e
tensão nas ligações. Nos pontos de articulação entre as séries diferentes são
produzidas as relações complexas, desvios, e, portanto novos textos surgem
da necessidade de deciframento dos textos estranhos. Quanto mais rápida a
cultura, mais potência criadora de novas memórias, pois lança mão tanto dos
textos dominantes quanto dos textos quase esquecidos, depositados nos
estratos mais profundos.
Segundo Lotman (1996, p. 161), o conjunto de textos que saturam a
memória da cultura são de gêneros (séries) diferentes, que mudam e são uns
pelos outros. Percebemos a irrupção recíproca de códigos da pintura na
59
literatura, na poesia, na música, no teatro e na vida cotidiana quando os textos
dominantes entram em relação/conflito com outros estados atuais da cultura. O
estado atual não é, portanto, a única forma possível de realidade, já que os
vários estratos da memória cultural permanecem latentes, em virtualidades que
podem emergir a qualquer instante, re-atualizados pelos encontros.
Um dia, ia eu pela floresta. Cem passos adiante, erguia-se um
tronco a meio de uma vereda. Um tronco estranho, dir-se-ia
peludo, com um vago perfil de animal. E então o tronco se
mexeu.Mas era absurdo, um tronco não se mexe! Então o
tronco transformou-se em bode. Mas como pode um tronco
transformar-se em bode? Era preciso que a mola saltasse. E
saltou. O tronco desapareceu e até retroativamente. Sempre
houvera um bode. Mas e o tronco? Tornara-se uma ilusão de
óptica, a vista defeituosa de Robinson. (TOURNIER, 1991, p.
88)
Acontecimento: a destruição do hábito e a profanação
As questões de identidade — em múltiplos planos, como o
político e o cultural — levantam-se em geral com um
pressuposto equívoco: que a instância do poder (colonizador,
económico, estatal) faz perder uma essência ―étnica‖ qualquer,
dada uma vez por todas (a identidade). Não se vê que se ela
se perde é porque já não tem capacidade de transformação
própria. O pior que uma colonização pode fazer a uma cultura é
fixá-la, ―gelá-la‖ irremediavelmente nos traços que tinha num
certo momento. Por isso declina. Há sempre problemas de
identidade quando se esgota a capacidade de mutação e devir.
A força e a saúde de uma cultura medem-se pela sua aptidão a
transformar-se; pela sua plasticidade, pela sua apetência em
devir, evoluir, provocar grandes mudanças internas. (GIL, 2000,
p. 177)
Mas não basta a aproximação de elementos de séries culturais
diferentes para que um novo texto se produza. O acontecimento ao modo de
Deleuze (1998, p. 83), parece explicar de que forma certos encontros
produzem o novo. Para o filósofo, o acontecimento
(...) é uma multiplicidade que comporta muitos termos
heterogêneos, e que estabelece ligações, relações entre eles,
através das épocas, dos sexos, dos reinos – naturezas
diferentes. (...) O que é importante não são nunca as filiações,
60
mas as alianças e as ligas; não são os hereditários, os
descendentes, mas os contágios, as epidemias, o vento.
O acontecimento coordena uma entre inúmeras sínteses possíveis – o
agenciamento - naquele lance único. Reúne os díspares e os disparates em
coexistência.
A agitação molecular denuncia um determinado calor que a provoca e
faz reverberar os elementos, as séries, as moléculas que ele atinge. Tal
reverberação faz desmontar as estruturas cognitivas e libera os fragmentos
que, atabalhoados, juntam-se em um outro algo. Altera-se o estado das coisas,
mas antes do momento disruptivo, a mudança já se anuncia no próprio
ambiente. Percebemos que a tempestade se aproxima na medida em que
signos preparatórios se apresentam. São possibilidades de variação, tremores
a partir de reverberações entre séries diferentes que se coagulam nos
acontecimentos.
Uma qualidade do acontecimento é a destruição dos hábitos. Sua
ocorrência gera uma violenta passagem dos elementos culturais da margem
para o centro, distendendo o ambiente no qual insurge. Aquilo que é
dominante na cultura deseja manter sua soberania, o que significa colocar-se
em uma esfera separada, em especial indisponibilidade (AGAMBEN, 2007, p.
65). Por isso, o mais interessante do acontecimento não é o elemento marginal
ocupar subitamente uma posição central, mas sim o movimento ocasionado
pelas trocas de posição, fato que oxigena e dinamiza o fluxo tradutório entre
centro e margem, desmontando as bases totalitárias e quebrando clichês
(CALABRESE, 1987, p. 105 – 109). Daniel Lins19 esclarece que o
acontecimento, ao modo de Deleuze, ―não cria nada de imortal, não cria nada
de fixo. A eternidade do acontecimento se prova intensivamente mas no
instante da imortalidade. É isso o acontecimento. O instante todo o tempo
como imortal. Não sou eu que sou imortal, é o instante‖.
O acontecimento profana a soberania do central, o que significa, para
Agamben (2007, p. 65 - 68), que a profanação neutraliza o sagrado, retirando-o
19
Transcrição de parte da palestra proferida por Daniel Lins, disponibilizada na internet. Disponível em: <http://www.cpflcultura.com.br/video/morte-como-acontecimento-daniel-lins>. Acesso em: julho de 2010. Publicado em 21/04/2010.
61
de sua aura intocável, devolvendo aquilo que estava separado e indisponível
ao uso comum. Porém o autor observa que este re-uso não será funcionalista,
nem oposto ao uso inicial, mas incongruente a ele.
Ninguém ignora, e seria impossível ignorá-lo dada a evidencia
do disfarce, a nitidez do artifício, que Manuela é um bailarino
gasto, um homem dissimulado, um capricho. O que Manuela
mostra é a coexistência num só corpo, de significantes
masculinos e femininos: a tensão, a repulsa, o antagonismo
que entre eles se forma.20 (SARDUY, 1979, p. 49)
Se a combinação das disparidades for extrema e resultar em um
apinhamento obsceno, que rebaixa, desloca ou anula totalmente valores
pertencentes aos discursos dominantes, o resultado pode ser o abjeto,
segundo a definição de Kristeva (apud VILLAÇA, 2006), o abjeto é repulsivo
porque manifesta uma confusão de limites, que pontua, fratura e fragmenta a
suposta unidade(...) dos sujeitos hegemônicos e do corpo político da nação
(VILLAÇA, 2006). 21
O abjeto que nos interessa é aquele que revela algo que contraria as
estruturas de legibilidade, pois é da ordem do ingovernável. Neste sentido, o
abjeto é a profanação do regrado, o que significa existir em uma condição
política sem se estabelecer como estrutura de poder. O abjeto, ao profanar o
corpo simétrico, não age como oposição à beleza, mas como resistência a ela,
como variação e produção de diferença. Algo interessante se dá quando sua
presença é devastadoramente sísmica a ponto de destruir a idéia de totalidade
que o sujeito faz de si mesmo, flagrando sua própria falta de sentido e a
impossibilidade em assegurar sua posição. O mundo torna-se estranho e
inexplicável, mas ao mesmo tempo o monstruoso torna-se fascinantemente
necessário para o homem crer-se humano, (n)o entanto, o monstro não se
situa fora do domínio humano: encontra-se no seu limite. (GIL, 2000, p. 170)
20
Comentário de Severo Sarduy sobre uma personagem do livro do autor guatemalteca José Donoso, El lugar sin limites.
21 VILLAÇA, Nízia. Revista Eletrônica LOGOS 25: Corpo e Contemporaneidade. Ano 13, 2º
semestre 2006. Disponível em: <http://www.logos.uerj.br/PDFS/25/07_Nizia_Villaca.pdf>.
Acesso em: maio 2010.
62
O monstruoso traduz a confluência de dois vetores latentes, que se espremem
e se alternam conflituosamente dentro do ser, mas que não se manifestam
simultaneamente a não ser na redenção do seu acontecimento: uma tendência
à metamorfose e ao horror, o pânico de se tornar outro (GIL, 2000, p. 170).
Ficaram à mostra os traços de um grande tumulto, a geologia
corporal de sismos esboçados, catástrofes em estado
avançado e subitamente terminadas. Talvez por isso os signos
da monstruosidade se prestem a servir de augúrios: eles
anunciam, deixando em aberto os acontecimentos que
inauguraram; o que vier efetuará o apenas em parte formado.
Por isso também há sempre no excesso do corpo monstruoso
a privação: falta um corpo àquela dupla cabeça ou outra
cabeça àquele duplo tronco. (GIL, 2000, 178)
O grotesco não é oposto ao belo estético, mas resistente a ele, pois sua
forma é desprovida das qualidades simétricas da beleza aristotélica: social,
moral e ainda celestial (SODRÉ; PAIVA, 2004, p. 17 - 20). A tensão que
mantém os elementos dessemelhantes pode ter tal potência e plenitude que,
com algum risco, pode conter o belo. Nos permitimos concluir que o belo
gerado pela tensão entre diferenças é político, pois ―(...) suprime a oposição
entre o racional e o real e introduz a vicissitude da diferenciação histórica no
que é permanente e estável― (SODRÉ; PAIVA, 2004, p. 20).
O barroco inclui o grotesco como procedimento por sua capacidade de
síntese transbordante de significados, de profanação daquilo que é regrado e
também porque resiste à legibilidade através daquilo que não tem tradução.
Qualquer aparição monstruosa ocupa mais espaço do que a sua exterioridade,
porque através de "sua presença escapam significados não recogniscíveis
naquele conjunto. O grotesco funciona como produtor de catástrofe. Trata-se
da mutação brusca, da quebra insólita de uma forma canônica, de uma
deformação inesperada.‖ (SODRÉ; PAIVA, 2004, p. 25)
Alejo Carpentier, ainda que não qualifique as cidades latinoamericanas
como configurações urbanas do grotesco,descreve-as valorizando
sobremaneira a tendência barroquizante à proliferação de referências díspares
e outorga à patina do tempo o amansamento das ferocidades estéticas
resultantes do conjunto extremamente diverso. O autor introduz, entre o belo e
63
o feio, um elemento espaçador que mantém a cultura latinoamericana numa
cadência distinta das reduções totalitárias do gosto: os elementos mestiços,
mesmo aplainados pelo tempo, resistem alinhavando traduções impuras de
estilos considerados puros com elementos locais.
As nossas cidades não têm estilo. E no entanto começamos a descobrir agora que possuem o que poderíamos chamar um terceiro estilo: o estilo das coisas que não têm estilo, como as rocalhas do rococó, os gabinetes de curiosidades do século XVIII, as entradas do metro de Paris, os cavalos de carrossel, os negrinhos vienenses, barrocos, portadores de mesas ou portas, os quadros catastróficos de Monsú Desiderio, a pintura metafísica de De Chirico, as arquiteturas de Gaudí ou a atual pop-art norte-americana. Com o tempo, esses desafios aos estilos existentes foram-se tornando estilos. Não estilos serenos ou clássicos pelo alargamento de um classicismo anterior, mas sim por uma nova disposição de elementos, de texturas, de fealdades embelezadas por aproximações fortuitas, de encrespamentos e metáforas, de alusões de ―coisas‖ a ―outras coisas‖, que são em suma, a fonte de todos os barroquismos conhecidos. (CARPENTIER, 1969, p. 15 – 16)
Interessa-nos a percepção do autor de que nossas cidades são mais
fascinantes quanto mais conseguem juntar ―coisas‖ distintas em uma
determinada síntese. Os amontoados desconcertantes de imitações de estilos
europeus convivem inesperadamente com os elementos culturais locais. Para
legitimar como estilo próprio da cidade latinoamericana o assombro diante da
mistura, Carpentier vale-se da própria escrita, cheia de metáforas e imagens,
tão díspares como os estilos arquitetônicos que descreve em Havana.
Ligamos o barroco ao grotesco em sua capacidade convulsiva e
transgressora, capacidade esta que desejamos verificar em São Paulo, nas
ocorrências urbanas, nos discursos entre a cidade idealizada e a cidade real.
Se por um lado São Paulo não é dotada de beleza vitruviana, por outro
apostamos que sua força é estético-política e emana do transbordamento
enérgico de significados, o que pode ser considerado estético-poético.
64
Capítulo 2: Arqueologia do Império
Agenciamento: um conceito para desmontar identidades
Homem revistado pela polícia no centro de São Paulo. Foto de Marcelo Min
As identidades são o produto de jogos de espelhos entre
entidades que, por razões contingentes, definem as relações
entre si como relações de diferença e atribuem relevância a
tais relações. As identidades são sempre relacionais, mas
raramente são recíprocas. A relação de diferenciação é uma
relação de desigualdade que se oculta na pretensa
incomensurabilidade das diferenças.
Na história do capitalismo, quem tem tido poder para declarar
a diferença tem tido poder para declará-la superior às outras
diferenças em que se espelha. A identidade é originariamente
um modo de dominação assente num modo de produção de
poder que designo por diferenciação desigual. (SANTOS,
2006, p. 249 - 250)
Na América Latina os discursos identitários provaram-se muito
importantes nas conquistas emancipatórias de grupos de minorias tais quais
negros, mulheres, pobres, homossexuais, etc. São formas de luta pela
regulamentação de seus direitos. Estas identidades de resistência se formam
65
para tentar diluir a diferença que as torna subalternas a outras identidades
emanadoras de poder. As identidades minoritárias, chamadas assim por não
seguirem a tendência dominante, se produzem enquanto discurso e
visibilidade para que as injustiças que sofrem tornem-se também visíveis.
Enquanto não se organizam como grupos não existem e não têm direitos
legitimados, pois a legitimação desejada se dá através das garantias das leis,
que por sua vez são produzidas nos centros de poder.
Porém, ao mesmo tempo em que as identidades das minorias
fortalecem os grupos nas suas lutas, também reforçam sua inferioridade em
relação às identidades centrais, que produzem e balizam tais diferenças contra
as quais lutam. O problema de tais discursos é que reproduzem o senso
comum, reafirmando quem é dominante e quem é subalterno, mesmo quando
o objetivo é gerar visibilidade para as injustiças impostas.
Por isso, apesar de entendermos a importância destes discursos,
esperamos que tais identidades subalternas não se cristalizem, mas que se
dissolvam assim que seja percebida a integração conectiva daquelas
diferenças que as tornam minoritárias, para poderem ―ser‖ outras coisas não
subalternas.
Como alternativa à identidade, encontramos em Guattari e Deleuze
(GUATTARI, 2008, p. 183 – 184) o conceito de ―agenciamento‖ porque
―diferentemente de um estrato, um agenciamento comporta uma outra direção,
uma direção informal de devires‖ (MENEZES, 2006, p. 77)22. O agenciamento
de Guattari/Deleuze funciona como uma espécie de ―química conceitual‖
(MENEZES, 2006, p. 77),especialmente a química pensada a partir da
instabilidade e precariedade dos arranjos, pois as condições externas
apresentam-se sempre particulares e não universais. Basta aumentar um
pouco a pressão ou a temperatura e os arranjos caem por terra. As condições
conhecidas universalmente como normais são produzidas em ambientes
controlados, não existem de forma permanente ou natural.
22
MENEZES, RODRIGO CARQUEJA DE. Devir e Agenciamento no pensamento de Gilles Deleuze.2006. Revista Eletrônica COMUM. Disponível em: <http://www.facha.edu.br/publicacoes/comum/comum26/artigo3.pdf >. Acesso em: junho de 2010.
66
Tomemos a noção de classe ou de lutas de classes. Esta
implica que há objetos sociológicos perfeitamente delimitados:
burguesia, proletariado, aristocracia..(...) pois bem, a noção de
agenciamento pode ter aqui alguma utilidade, pois mostra que
as entidades sociais não mantém uma oposição bipolar. Os
agenciamentos complexos põem em relevo outros critérios de
raça, de sexo, de idade, de nacionalidade... Os cruzamentos
interativos implicam outras lógicas que as das classes opostas
de maneira dicotômica. Importar essa noção de agenciamento
ao campo social não exime pois, necessariamente, de sutilezas
teóricas gratuitas, mas quem sabe permita elaborar meios de
localização, de cartografias, ajudando-nos a detectar e
desmontar algumas concepções simplistas relativas às lutas de
classe. (GUATTARI, 2008, p. 183 – 184)23
A solidez dos monólitos dominantes, portanto, não impede o surgimento
de alternativas para seu desmanche. Arriscaríamos dizer que é internamente à
sua própria rigidez que se formulam as linhas de fuga dos estigmas
classificatórios. Há sempre algo inclassificável que colide com o senso comum,
abalando-o, minando sua integridade.
No momento da descoberta das Américas, por exemplo, o idílio da
natureza em estado puro e divinal do primeiro encontro colide violentamente
com a existência do canibalismo. O desassossego dessa ambivalência já está
presente, segundo Sousa Santos, nos primeiros relatos dos europeus sobre a
América colonial. Neles as imagens paradisíacas, utópicas da natureza não
podem ser separadas das ―crueldades‖ dos nativos na prática do
canibalismo24.
23
Livre tradução:Tomemos la noción de clase, de lucha de clases. Ella implica que hay objetos sociológicos perfectamente delimitados: burguesía, proletariado, aristocracia… (...)Ahora bien, la noción de agenciamiento puede tener aquí alguna utilidad, pues muestra que las entidades sociales no mantienen una oposición bipolar. Los agenciamientos complejos ponen de relieve otros criterios de raza, de sexo, de edad, de nacionalidad… Los cruces interactivos implican otras lógicas que las de las clases opuestas de manera dicotómica. Importar esta noción de agenciamiento al campo social no exime pues, necesariamente, de sutilezas teóricas gratuitas, pero quizás permita elaborar medios de localización, cartografías, ayudándonos a detectar y a desmontar algunas concepciones simplistas relativas a las luchas de clases. 24
O interessante é observar os trânsitos e trocas entre disparidades: divino e cruel ligados na
mesma realidade, sem que um princípio elimine o outro, mesmo que em composições
litigiosas, intranqüilas e efêmeras. Sousa Santos, ao citar Mario Klarer, esclarece que as tais
relações praticadas pelos selvagens das Américas não eram tão distantes do ―mundo
civilizado‖ já que estavam contidas simbolicamente no mito cristão. ―[E]nquanto os canibais
devoram os estranhos para restabelecer a unidade do sujeito e do objeto, os cristãos comem o
67
Sousa Santos nos relembra que Portugal, diante da Europa do Norte,
era considerado um país periférico, menos desenvolvido e que essa
inferioridade está presente em diversos relatos de comerciantes, padres e
intelectuais da França e da Inglaterra que visitaram Portugal. Seus
comentários jocosos definem o português como um povo subdesenvolvido,
sensual, indolente, violento, sem higiene, às vezes dócil e afável,
supersticioso. Portugal, assim como suas colônias, dizia a Europa do Norte,
havia sido contemplado com uma natureza maravilhosa que produzia frutos e
riquezas sem a necessidade do esforço de seu povo preguiçoso. Esta
constelação de características que rebaixa Portugal diante de um centro mais
forte parece ter sido retransmitida diretamente para o Brasil, numa relação de
causa e efeito da insuficiência de Portugal como país e como colonizador.
Ainda hoje ouvimos estrangeiros e até mesmo brasileiros comentarem
pejorativamente nossa cordialidade, preguiça e sensualidade como
conseqüências culturais ruins da colonização de Portugal.
Sousa Santos escolhe um comentário de Lord Byron, que lamenta que
o povo bruto de Portugal tenha herdado, sem merecer, uma natureza
estonteante, para ilustrar a imagem que se fazia de Portugal na época:
―Porque desbarataste, ó natureza, as tuas maravilhas com semelhante gente?
Eis que em vário labirinto de montes e vales surge o glorioso éden de Sintra‖
(BYRON apud SANTOS, 2006, p. 254). Fica claro que para os países de
cultura dominante, o patrimônio natural e cultural dos países ―periféricos‖ é
considerado praticamente como ilegítimo, abrindo um flanco para a
dominação, sob o pretexto da manutenção de princípios ―universais‖ de
racionalidade e de consensos dos quais a cultura dominante sente-se
portadora.
Segundo o autor, os relatos e narrativas de viajantes que passavam por
Portugal percebiam, mas não compreendiam a ambigüidade dos portugueses
que,
corpo e bebem o sangue de Jesus enquanto unidade utópica entre os homens e seu Deus‖.
(SANTOS, 2006, p. 250)
68
tanto foram racistas, tantas vezes violentos e corruptos, mais
ligados à pilhagem do que ao desenvolvimento, como foram
miscigenadores natos, literalmente pais da democracia racial,
do que ela revela e do que ela esconde, melhores do que
nenhum outro povo europeu na adaptação aos Trópicos.
(SANTOS, 2006, p. 256)
Com dificuldade em permanecer próximo do centro do poder europeu
ou soberano em sua marginalidade, Portugal, embora pioneiro na expansão
ultramarina e com o reinado mais longo sobre suas colônias, não conseguiu
manter por muito tempo sua supremacia na Europa, vendo-se freqüentemente
economicamente subalterno à Inglaterra. O colonialismo português, em
relação ao colonialismo normativo de modelo anglicano, foi considerado, pela
Europa Central, insuficiente e informal demais.
No entanto nos parece interessante que Portugal tenha sido colônia (da
Inglaterra) e colonizador ao mesmo tempo ou, ainda, que tenha alternado
posições antagônicas, confirmando-se como cultura fronteiriça, localizada
entre a Europa e o sul, ora mais ao sul, ora mais ao centro. ―Com isto, a
semiperiferia deixou de ser o elo de uma hierarquia global para se tornar num
modo de ser e de estar na Europa e Além-Mar‖ (SANTOS, 2006, p. 232).
Entender que a mobilidade de Portugal impede o país de fixar-se na posição
de dominado ou de dominador é ingrediente importante para desenvolver
outras opções interpretativas das nossas culturas, americana e ibérica.
Apesar de ser verdade que não há descoberta sem
descobridores e descobertos, o que há de mais intrigante na
descoberta é que em abstrato não é possível saber quem é
quem. Ou seja, o ato da descoberta é necessariamente
recíproco: quem descobre também é descoberto, e vice-versa.
Por que então é tão fácil, em concreto, saber quem é
descobridor e quem é descoberto?
(...) É a desigualdade de poder e de saber que transforma a
reciprocidade da descoberta na apropriação do descoberto.
Toda descoberta tem, assim, algo de imperial, uma ação de
controle e de submissão. (SANTOS, 2006, p. 181)
Ao recontextualizar a posição flutuante de Portugal, Sousa Santos
empreende um enorme esforço na conscientização de que um trabalho crítico,
político, artístico ou intelectual deve, atualmente, perseguir a interrupção dos
69
discursos hegemônicos ocidentais, os quais, através da modernidade, da
ciência e da tecnologia justificaram, racionalizaram e normatizaram as
desigualdades entre raças, sexos, povos, etc.
O autor explica que a desigualdade, assim como a exclusão, ―são
sistemas de pertença hierarquizada‖ (SANTOS, 2006, p. 280 - 284), nos quais
as culturas, através de um determinado discurso de Verdade, criam a linha
divisória que estabelece que tudo o que está além dela é transgressão. Aquilo
que está para além da linha divisória é centrífugo ao pertencimento.
Sousa Santos diferencia exclusão de desigualdade, embora reconheça
que ambos os sistemas são processos regulatórios muito reforçados pelos
dispositivos classificatórios de qualificação/desqualificação adotados pelas
ciências sociais. No sistema da desigualdade, a inclusão é desejável, desde
que a integração se dê pela subordinação sócio-econômica. A subalternidade
de alguns é indispensável no funcionamento deste sistema. Já nos sistemas de
segregação, a pertença se dá pela não-pertença, ou seja, o segregado é
incluído pela denominação de sua exclusão sócio-cultural: sem teto,
delinqüente, menino de rua, louco, etc. É importante ressaltar que tais
condições de segregação são paradoxalmente espaços de produção
barroquizante por excelência, ainda que seja extremamente desejável não
reproduzir a miséria na qual tais populações vivem. A instabilidade nestes
modos de vida explode a legibilidade dos espaços urbanos, transformando-os
incessantemente. Não é apenas que transformem o público em privado e vice-
versa, mas que inventem novas formas de convivialidade e de existência,
produzindo objetos ―inúteis‖, estruturas não duráveis. Um revide ao controle.
A necessidade científica de definir o lugar e a especificidade de cada
diferença, mesmo que sem a intenção de segregar, impede ou dificulta a
possibilidade de que estas diferenças sejam definidas de outros modos, como
sistemas diferentes daquele que os define como segregados. Desta forma, o
que não é marginalizado ou periférico nas diferenças, ou melhor, aquilo que
pode ser emancipatório, não tem como ser percebido e valorizado, a não ser
como resistência, como discurso identitário. (SANTOS, 2006, p. 235 – 237)
70
Sousa Santos (2009, p. 26) diz que as faces das dominações são
muitas e conseqüentemente são múltiplas as resistências, porém não é
possível uma teoria comum que representasse todas as lutas, pois o
conhecimento totalizante é aquele que em nome da ordem impede a
emancipação das diferenças. O autor diz que a teoria emergente deverá ser ―a
teoria de tradução, que torne diferentes lutas mutuamente inteligíveis e permita
aos atores coletivos conversarem sobre as opressões a que resistem e as
aspirações que os animam.‖ (SANTOS, 2009, p. 325).
O autor identifica que a passagem da emancipação moderna à
regulação se deu já no século XIX, na Europa, por conta da forte convergência
entre modernidade e capitalismo. É a miragem de emancipação, prometida
pelo desenvolvimento econômico. Sabemos que esta idéia ainda está
instaurada como paradigma dominante e que as alternativas para o
pensamento único passam pela consciência de que vivemos em sociedades
simultaneamente libertárias e autoritárias (SANTOS, 2009, p. 26).
No entanto, para a América Latina, o paradoxo da simultaneidade entre
dominação e emancipação não parece ser exclusivo da transição do fim do
moderno, mas sim um traço constante na história do nosso continente, no qual
vivemos desde sempre a simultaneidade de rupturas e continuidades,
liberdades e autoritarismos. Por isso o pós-moderno é um conceito difícil de
ser utilizado na América Latina sem inúmeras ressalvas e explicações. Na
Europa e nos Estados Unidos o pós-moderno foi empregado à exaustão para
explicar o quadro sucessório do moderno, em evidente declínio. No continente
americano sabemos que o moderno nunca foi um processo estrutural, por isso
não faz muito sentido falarmos em superação de algo que não se completou
ou que nunca tenha acontecido de fato. Por esse motivo não consideramos
tarefa desse trabalho descobrir o verdadeiro sentido do pós-moderno, o que
não nos impede de aproveitar o elenco de sintomas que Ihab Hassan
(HASSAN apud SANTOS, 2005, p. 102) montou com o objetivo de tentar
circunscrever em que condições o pós-moderno se manifesta. São eles:
―indeterminação, fragmentação, descanonização, descentramento e
superficialização, irrepresentatibilidade, ironia, hibridização, carnavalização no
sentido de Bahktin, desempenho e participação, construcionismo, imanência‖.
71
Esta lista chamou atenção por conter condições muito familiares no cotidiano
do continente americano, não como conseqüência dos insucessos do
universalismo abstrato do moderno, mas como vivência concreta do nosso
cotidiano movediço.
Sousa Santos (2009, p. 357) diz que a colonização da América Latina
por ―centros hegemônicos fracos‖ é um aspecto interessante que pode ter
facilitado a mestiçagem, tão ―enraizada nas práticas sociais desses países ao
ponto de ser considerada a base de um ethos cultural tipicamente latino-
americano‖(SANTOS, 2009, p. 357). A mestiçagem latino-americana traduz a
crise entre os cânones clássicos e aquilo que foge deles, e o autor percebe
que é no seio dessa relação conflituosa que reside a invenção ―de um outro
lugar, uma heterotropia, se não mesmo uma utopia‖(SANTOS, 2009, p. 359).
Ou seja, a mestiçagem latino-americana inspira o projeto pós-moderno de
Sousa Santos justamente por seu caráter inacabado, descontínuo, formado
por linhas de força. ―O paradigma emergente é feito de continuidades e
descontinuidades‖(SANTOS, 2009, p. 360).
A contribuição valiosa de Sousa Santos que aproveitaremos de seu
―projeto pós-moderno de oposição‖, independentemente das nomenclaturas
adotadas, é a aposta na reciclagem das realidades atuais. O autor constata
que o moderno descartou soluções sociais, embrionárias ou desgastadas, que
ainda podem conter disparadores de novas oportunidades. As alternativas que
apontam são escavadas no conhecimento produzido na realidade, imerso nela,
repleto de localismos e de contingências (SANTOS, 2005, p. 102 – 105).
Nesse ponto, é importante salientar a diferença que o autor encontra
entre combater as instabilidades e incorporá-las na construção daquilo que ele
chama de ―subjetividades emergentes‖ ou ―transição paradigmática‖. Para o
autor, a construção do ―paradigma emergente‖ deve incluir a indeterminação, o
inacabado, o erro e a pluralidade de alternativas, atenta em amplificar
conhecimentos que nunca se cristalizaram como sistemas científicos
rigorosos. Estes conhecimentos e desvios sempre estiveram à nossa
disposição como material cultural; para o autor, que é português, fica mais
canônica a descrição da importância de tais elementos no desenvolvimento
72
cultural, mas mesmo com a pequena ressalva para a idéia de ―emergente‖, é
muito relevante sua ênfase nos conhecimentos não doutos, pertencentes à
sabedoria popular.
As grandes disciplinas do conhecimento, em nome deste rigor científico,
preocupam-se em encontrar as origens e os términos dos pensamentos –
quando começou e quando terminou o moderno e o que veio a seguir, por
exemplo - estabelecendo uma transição suave entre as temporalidades, uma
linearidade entre passado e presente. Ainda que a história se debruce sobre
os conhecimentos imperfeitos, as escritas menores, os heróis anônimos e as
ciências populares, ela sempre realizará o que é próprio ao conhecimento
oficial: o movimento das margens para o centro. O objetivo da ciência é
encontrar o momento ―emocionante‖ da gênese de um determinado
pensamento, como ele deixou de ser uma dispersão de conhecimentos e
temporalidades das margens para aglutinar-se como pensamento do centro.
Segundo Foucault (2009a, p. 156), a história das idéias
descreve sem cessar – e em todas as direções em que se
efetua – a passagem da não filosofia à filosofia, da não
cientificidade à ciência, da não literatura à própria obra. (...)
Gênese, continuidade, totalização; eis os grandes temas da
história das idéias, através dos quais ela se liga a certa forma,
hoje tradicional, de análise histórica.
A utopia pós-moderna de Sousa Santos reside, de certa maneira, na
diferença que permuta o desejo pela realidade inverossímil da tábula rasa pela
escavação arqueológica das realidades existentes, pois
sua forma de imaginar o novo é parcialmente constituída por
novas combinações e escalas daquilo que já existe, e que são,
na verdade, quase sempre meros pormenores, pequenos e
obscuros, do que realmente existe. (SANTOS, 2009, p. 332)
Viver a utopia ao modo de Sousa Santos, portanto, exige estar
verdadeiramente neste mundo conhecendo-o profundamente a ponto de incluir
em suas composições aquilo que oprime, sem a ilusão de que tudo possa dar-
se sem o diálogo com as dicotomias. O autor reafirma que a utopia é
trabalhosa, consiste em desmontar as opressões, o tempo todo, sem
descanso, porém sem uma fórmula vencedora. Enquanto a opressão se
73
multiplica, devem multiplicar-se as formas de superá-la. A opressão só pode
ser desmontada quando aproximada e descanonizada. Ignorá-la é fortificá-la,
aproximá-la demais pode ser incorporá-la como discurso. A utopia de Sousa
Santos inclui necessariamente o risco destas distâncias. A produção do ―novo‖
não está no outro e nem na manutenção do mesmo, mas no zigue-zague entre
o outro e o mesmo.
Fronteira: navegação por cabotagem
"The flat earth". Arte de Lothan Osterburg
Os que descem ao mar em navios, os que comerciam nas
grandes águas, esses vêem as obras de Deus e suas
maravilhas no abismo. (Salmo CVIII)
74
Sousa Santos sabe que viver no Além-Mar não é como viver em exílio
ou diáspora, pois não temos uma origem para a qual voltar. Também não
sabemos o que está por vir, portanto saber viver neste Além–Mar pode conter a
alegria e o cansaço de um náufrago ao chegar à terra firme. No entanto não
afirmamos que a cultura das Américas é um conhecimento sobre naufrágios,
porém um conhecimento constituído a partir do olhar náufrago.
Sousa Santos (2009, p. 348 - 354) compara a vida nas fronteiras à
navegação de cabotagem, muito utilizada até o século XVI na Europa, que
consistia na manutenção do contato visual entre barco e terra firme, ainda que
mediado pelo olhar telescópico. A linha tênue do horizonte terrestre define o
quão longe se pode ou se arrisca ir. Quanto maior a distância da costa, menor
sua interferência na navegação, porém abandonar o horizonte terrestre é abrir
novas rotas ou perecer no caos destrutivo, no fim do mundo.
A vida na fronteira é difícil e interessante. É não chegar ao porto seguro,
não ter ninguém conhecido esperando, não saber o que acontecerá a seguir,
mas, ao mesmo tempo, é estar de olhos bem abertos para novas
oportunidades, afinal de contas foi por isso que o náufrago enfrentou o ―fim do
mundo‖ e chegou às Terras Novas.
Segundo Sousa Santos, na fronteira aproveita-se das tradições trazidas
do ―centro‖ somente o que for oportuno para resolver impasses e emergências.
Mantém-se aquilo que serve e descarta-se o que não serve; escolhe-se o que
preservar e o que se esquecer do passado. A fronteira é o lugar da invenção de
socialidades e solidariedades, e também de novas formas de autoridade, pois a
distância em relação ao centro enfraquece as antigas hierarquias, abrindo
oportunidades para outros poderes se definirem.
Na fronteira, quando dois textos culturais se chocam, os consensos se
desmancham para formar um terceiro texto. É o que Lotman (1996, p. 25 - 35)
chamou de fronteiras semióticas, ou espaços de tradução. São zonas de
permeabilidade entre (no mínimo) dois sistemas heterogêneos, que afrouxam
sua coesão liberando elementos que conseguem se recombinar de outra
forma. Lotman diz que essas zonas de contato ocorrem com maior intensidade
75
e velocidade nas margens dos sistemas centrais, por sua frouxidão, por serem
menos imantados às estruturas nucleares. Por outro lado, os sistemas centrais,
por terem maior rigidez estrutural, mudam mais lentamente, tendem à
manutenção das tradições. Porém o que interessa não é a hierarquia de
valores entre o rápido e o lento, e sim a combinação entre o dinamismo
deslizante dos sistemas periféricos e a lentidão dos sistemas centrais, suas
velocidades e lentidões variáveis em movimento de fuga ou de fluxo, gerando
vetores culturais, como os encontros de águas frias e quentes geram correntes
marítimas ao redor do globo.
Dizíamos a mesma coisa para os devires: não é um termo
que se torna outro, mas cada um encontra o outro, um
único devir que não é comum aos dois, já que eles não
têm nada a ver um com o outro, mas que está entre os
dois, que tem sua própria direção, um bloco de devir, uma
evolução a-paralela. É isso a dupla captura, a vespa ―e‖ a
orquídea: sequer algo que estaria em um ou em alguma
coisa que estaria no outro, ainda que houvesse uma
troca, uma mistura, mas alguma coisa que está entre os
dois, fora dos dois, que corre em outra direção.[...] sempre
‗fora‘ e ‗entre‘. Seria por isso, uma conversa. (DELEUZE;
PARNET, 1998, p. 14)
A fronteira é uma zona de embate e freqüentemente há casos de
dominação de uma determinada estrutura/cultura sobre a outra, mas na
fronteira mestiça não existe a anulação do mais fraco por parte de um mais
forte. Há a dilatação do campo das trocas. Ali as linhas de força - tanto as
―linhas de fuga‖ quanto as ―linhas de dominação‖ (Deleuze) - tornam-se
instáveis, não mantém seu status inicial, são tomadas pelo meio.
As máquinas binárias já não têm poder algum sobre o
real, não porque o segmento dominante (determinada
classe social, determinado sexo...) mudasse, tampouco
porque mistos do tipo bissexualidade, misturas de classes
se impusessem: ao contrário, porque as linhas
moleculares fazem correr, entre os segmentos, fluxos de
desterritorialização que já não pertencem nem a um nem
a outro, mas constituem o devir assimétrico de ambos,...
76
Não se trata, é claro, de uma síntese entre os dois, de
uma síntese de 1 e de 2, e sim de um terceiro que vem
sempre de outra parte, e atrapalha a binariedade de
ambos, não se inscrevendo nem em sua oposição nem
em sua complementaridade. (DELEUZE; PARNET, 1998,
p. 152)
A natureza da fronteira, segundo Lotman, não é apenas permeável como
também bilíngüe. É preciso saber pertencer aos dois sistemas
simultaneamente, ziguezagueando entre um e outro. No lugar de limite entre
dois espaços semióticos, a fronteira definida por Lotman é um espessamento
que faz da linha de separação um campo poroso para captar elementos dos
dois espaços que se articulam naquele ambiente, sem que algum deles
submeta o outro a uma ordem de importância. Surge um terceiro ―texto‖,
também móvel e aberto, que ainda preserva memórias e fragmentos de seus
textos de partida, embora seja totalmente diferente deles.
Mas o ponto alto para o processo de semiotização são as
fronteiras da semiosfera. A noção de fronteira é ambivalente:
ao mesmo tempo em que separa, une. Ela é sempre margem
de alguma coisa e portanto pertence às duas culturas
fronteiriças, às duas semiosferas contíguas. A fronteira é
bilíngüe e poliglota. A fronteira é um mecanismo de tradução
de textos de uma semiótica alienígena para ‗nossa‘ linguagem
(...) (LOTMAN, 2000, p. 136)25
Laplantine ([s/d], p. 84 - 85) confirma a fronteira como ambiente da
mestiçagem, por ser espaço de agitação permanente, ninho da inclusão
complexa. Só a fronteira pode propiciar ambiência adequada para que as
25
Livre tradução: ―But the hottest spots for semioticizing process are the boundaries of the
semiosphere. The notion of boundary is an ambivalent one: it both separates and unites. It is
always the boundary of something and so belongs to both frontier cultures, to both contiguous
semiospheres. The boundary is bilingual and polylingual. The boundary is a mechanism for
translating texts of an alien semiotics into ‗our‘ language―...
Vale explicar que Semiosfera é um conceito formulado pelo semioticista russo Iúri Lótman para designar as relações entre os diversos sistemas de signos nos espaços culturais. O ponto de partida desta formulação foi a necessidade de compreender encontros culturais movidos pelas mais diferentes causas: choques civilizacionais, expansão de códigos, linguagens, emergências. Nesse sentido, trata-se de considerar não apenas as relações como também as conexões que aproximam os diferentes sistemas. Com isso é possível pensar mecanismos básicos da constituição do espaço semiótico tais como irregularidade, heterogeneidade, fronteira, transformação da informação em sistema de signos. Disponível em: <http://semiosfera.iv.org.br/portal/index1_html>. Acesso em: fevereiro de 2005.
77
multiplicidades se conjuguem, prerrogativa dos sistemas mestiços. A
mestiçagem, então, assume os riscos das alianças entre ―estados menores‖
(Deleuze), que constituirão ligações inéditas através de mecanismos que não
priorizam a filiação identitária das partes envolvidas. A mestiçagem arremata a
contingência, com o avulso, para realizar sintaxe. Assim sendo, a mestiçagem
nunca se tornará um discurso dominante, ao contrário, coloca-o em questão ao
criar alternativas diferentes do puro.
Para Laplantine a mestiçagem
existe na variação, na conjugação, na derivação, ou melhor, na
reconfiguração a partir de um estado menor, que transforma,
metamorfoseia e torna irreconhecível o que era ao ponto de
tornar irrisória qualquer noção de influência, de pertença, de
herança ou mesmo de transmissão. (LAPLANTINE; NOUSS,
[s/d], p. 85)
O autor percebe que a mestiçagem, mais do que estabelecer diálogos
entre diversas culturas, dá formas aos encontros, portanto não significa
confusão ou mera convivialidade multicultural, mas complexas traduções.
Laplantine ([s/d], p. 28 - 29) encontra na Umbanda um exemplo excelente da
nossa facilidade devoradora do ―outro‖, no sentido de Oswald de Andrade,
quando diz que na cerimônia religiosa um indivíduo em transe pode
―incorporar‖ todas as ―divindades‖ da religião, incluindo personagens populares
do Brasil como, por exemplo, Ayrton Senna, bem como pode incorporar
personagens de culturas e tempos distantes, como Joana d‘Arc ou Ghandi. É a
experiência emblemática do ―outro em mim‖, do distante no próximo e vice-
versa.
O autor (LAPLANTINE; NOUSS, [s/d], p. 30 - 33) percebe que o
pensamento racional, motriz cultural da Europa Central, não incorpora outras
maneiras de construção além das dualidades racionais, tais quais: branco e
preto, tradição e modernidade, civilização e barbárie, público e privado, puro e
mestiço, pobre e rico, etc. O autor não quer dizer, contudo, que na América
Latina não pratiquemos o pensamento da exclusão, que tudo é mestiçagem
democrática. Muitas das nossas instituições, sindicatos e mesmo organizações
não governamentais em torno das minorias são fundamentadas no mesmo
78
pensamento unívoco que criticamos neste trabalho. Apesar de todo talento
compósito que dispomos na nossa cultura, verificamos diariamente os
componentes de culpa, de dominação, de identidade, de racismo e de revolta,
que ressurgem e negam a mestiçagem, afirmando-a como acidente, como
perda do essencial. Mas tudo isso é material barroquizante do continente, pois
o barroco moderno, o neobarroco, reflete estruturalmente
uma discordância: a ruptura da homogeneidade, a
ausência de um logos absoluto, a carência em vez do
fundamento como episteme. Neobarroco do desequilíbrio,
reflexo estrutural de um desejo que não pode alcançar seu
objeto. (SARDUY, 1988, p. 86)
Quando abordamos a cidade a partir da lógica barroca é por desejar
maior visibilidade às estruturas não ortogonais do pensamento latino-
americano. As teorias do barroco e da mestiçagem acolhem sintaticamente o
excesso de contingência das nossas cidades, compreendendo-as como
sistemas nos quais a coerência entre as partes é aberta, e efetivada com
sofisticadas teias que as mantém conectadas com o todo cultural.
Uma folha Antiga: a ausência de poder central na fronteira
As grandes rupturas, as grandes oposições são sempre
negociáveis, mas não a pequena fissura, as rupturas
imperceptíveis, que vêm do ―sul‖. (DELEUZE; PARNET, 1998,
p. 153)
Kafka (1990, p. 19 - 21) traduz o encontro de duas culturas que se
chocam, ainda sem tradução e conversa possível, em seu conto ―Uma Folha
Antiga‖. Os bárbaros e o povo chinês não se reconhecem e o império, metáfora
do centro estável de poder, se desmonta irreversivelmente a partir do
acontecimento da ocupação da polis por uma urbs estranha e indesejável: os
bárbaros ocupam a praça do comércio.
É como se muita coisa tivesse sido negligenciada na defesa da
nossa pátria. Até então não havíamos nos importado com isso,
entregues como estávamos ao nosso trabalho; mas os
acontecimentos dos últimos tempos nos causam
preocupações.
79
(...) Mal abro a porta no crepúsculo da manhã e já vejo
ocupadas por homens armados as entradas de todas as ruas
que confluem para cá. Mas não são soldados nossos e sim
nômades vindos evidentemente do norte. De uma maneira
incompreensível para mim eles penetraram até a capital que,
no entanto, fica muito distante da fronteira. (KAFKA, 1990, p.
19 – 21)
Eles vêm de longe e transformam a pacata praça em ―uma autêntica
estrebaria‖. Não há como estabelecer um diálogo com eles, pois se comunicam
entre si com gritos e recusam qualquer tentativa de comunicação por gestos.
―Para eles nossa maneira de viver, nossas instituições são tão
incompreensíveis como indiferentes‖. Não são violentos, nem precisam ser,
pois ―[a]quilo de que precisam eles pegam‖. Do açougueiro levam tudo e como
ele tem medo dos bárbaros, não lhes interrompe o fornecimento de carne.
Todos os vizinhos juntam dinheiro para ajudá-lo, pois talvez tendo a carne que
querem, eles não incomodem os demais. Porém, atacados diretamente ou não,
todos viveram em extrema tensão, em estado de estranhamento, nos quais
todos os laços anteriores ao fato dos bárbaros ficaram em suspensão.
De qualquer maneira quem é que sabe o que lhes vai ocorrer,
ainda que recebam carne diariamente? Não faz muito o
açougueiro pensou que podia ao menos se poupar do esforço
do abate e uma manhã trouxe um boi vivo. Isso não deve se
repetir. Fiquei bem uma hora estendido no fundo da oficina
com todas as roupas, cobertas e almofadas empilhadas em
cima de mim para não ouvir os mugidos do boi que os
nômades atacavam de todos os lados para arrancar com os
dentes os pedaços de sua carne quente. (KAFKA, 1990, p. 19
– 21)
Kafka mostra o abandono da sociedade civil à própria sorte, pois em
momento de tamanha crise o poder imperial transfere-lhes a responsabilidade
de lidar com esta situação completamente nova e indesejável. O fracasso do
poder central em manter a integridade e grandiosidade do império é
representado pela Muralha da China, insuficiente na defesa da soberania de
suas fronteiras.
Porém o que a população não entende é que a chegada dos
estrangeiros sempre esteve prevista, sempre rondou os piores pesadelos do
80
imperador. Não há como evitar sua chegada. Uma brecha qualquer, um
pequeno trecho interrompido na muralha, uma distração momentânea de um
guarda, qualquer coisa já seria suficiente para a invasão dos bárbaros.
O imperador observa cabisbaixo, impotente, o que ocorre com seu povo
da janela do palácio. Os civis não sabem o que vai acontecer e quanto tempo
suportarão esta situação sozinhos, sem a proteção do imperador. Foram
ligados involuntariamente aos estrangeiros e não se reconhecem mais. Os
portões do palácio permanecem fechados e os desfiles coreográficos da
guarda imperial foram interrompidos. ―A nós, artesãos e comerciantes, foi
confiada a salvação da pátria; mas não estamos à altura de uma tarefa dessas,
(...) É um equívoco e por causa dele vamos nos arruinar‖. (KAFKA, 1990, p. 19
– 21).
Assim como o imperador, o Estado falha em promover estruturas de
proteção social aos mais pobres e já nem mesmo consegue garantir sua
segurança. Deste modo as diferenças entre quem vive dentro e fora do ―palácio
imperial‖ ficaram mais gritantes, ou seja, o poder hegemônico provê para
poucos privilegiados enquanto aqueles que vivem nas margens do sistema,
tanto por opção como por falta de opção, recorrem a mil táticas e alianças de
sobrevivência. O palácio imperial está prestes a ruir...
Cidade empresa: crueldades urbanas
Única casa que restou do Jardim Edite. Foto Marcelo Min
81
A crítica apaixonada é a verdadeira crítica. A outra crítica,
aquela que não é apaixonada, é a crítica dos funcionários
públicos. (Lina Bo Bardi)
O autor Ignasi de Solà-Morales nos aponta que atualmente a questão
urbana é abordada a partir de diversos discursos científicos bastante
específicos. Uma só ciência, a saber, o urbanismo, não abarcaria a complexa
problemática que a cidade apresenta. Hoje em dia, segundo o autor, há na
academia a
geografia urbana, a economia urbana e a antropologia urbana,
estudos que tornam crível a hipótese de que o urbano é uma
categoria cultural suficientemente específica para gerar
campos de investigação e reflexão separados de outras áreas
disciplinares (SOLÁ-MORALES, 2002, p. 25).
A crítica cabível nos estudos urbanos é que, guardadas as
singularidades de cada caso, os parâmetros de investigação tem sido os
mesmos para todas as cidades. Os atributos que as qualificam são retirados do
discurso econômico, que se torna baliza analítica do social, e quando o
discurso econômico ampara decisões de cunho social na cidade há o perigo de
aproximar demais a idéia de diferença da idéia de desigualdade e exclusão,
achatando importantes elementos da cultura urbana em favor de sua eficiência
ou ineficiência econômica. Diferenças na distribuição de renda, na distribuição
de recursos, nas tipologias das habitações, distinções entre centro e periferia
são índices que se utilizam dos discursos de base econômica para determinar
as geografias humanas das cidades. Se por um lado os diagnósticos da
economia e geografia urbana nos instrumentalizam para determinar a origem
das injustiças sociais e assim combatê-las, por outro corremos o risco de
sempre entendermos diferenças culturais como deficiências e,
conseqüentemente, cometeremos outra injustiça, a da homogeneização
cultural advinda do discurso único de cidade.
Solá-Morales (2002, p. 26) verifica que a análise de base econômica das
cidades se converte em análise social no momento em que as tendências
econômicas da cidade apontam conveniências e oportunidades
mercadológicas que podem ser consideradas ―vocações‖, facilidades
produtivas que são logo capturadas e promovidas pelo chamado ―marketing
82
das cidades‖. Ainda que estas vocações sejam inclinações reais da cidade
mercadológica, são aspectos apenas parciais da cidade, cuja valorização é
amplificada em prol da prosperidade econômica. Portanto, como observa Albert
Hirschman, o capitalismo neoliberal, (HIRSCHMAN apud SANTOS, 2005, p.
102) não pode ser demonizado por seu caráter repressivo, alienante e
unidirecional, porque era o que se esperava do sistema. Tornou-se importante,
naquele momento, reduzir a variedade humana, produzir realidades menos
multifacetadas e mais previsíveis para atender um maior número de pessoas
com as mesmas demandas. Há mesmo um caráter utópico na racionalidade do
capitalismo moderno, que, ao diminuir a imprevisibilidade, almeja a distribuição
mais justa do trabalho, do tempo, da tecnologia e do lazer. Esse era o objetivo
moderno, ao menos no campo do urbanismo, no qual temos Le Corbusier
como ícone. A razão universal, imbuída da tarefa de reduzir variações, foi o
pilar da emancipação moderna e agora se verifica que a razão, ―arma
emancipatória‖, tornou-se o ―pilar da regulação‖ (SANTOS, 2009, p. 29 - 37).
O modelo neoliberal e o Estado mínimo
Segundo José Humberto da Silva (2009, p. 30 - 39), houve em todas as
nações de governo capitalista, pobres ou ricas, uma modificação profunda na
atuação do Estado a partir da década de 70, que vai desencadear a
instauração do modelo neoliberal como modelo de governabilidade. Essa
transformação foi a reação à crise econômica desencadeada pela decadência
do modelo fordista de acumulação capitalista. Apesar do modelo neoliberal já
ter se desdobrado em formas mais sofisticadas, ainda mantém sua base
fundada na diminuição da presença do Estado nas decisões estratégicas
acerca do desenvolvimento destas nações.
Na América Latina a crise do milagre econômico encabeçado pelo
desenvolvimentismo encontra-se estruturalmente desmontado já nos anos
1980. O horizonte pós-ditadura aponta o neoliberalismo como uma alternativa
para driblar a crise. As teorias neoliberais saem dos círculos acadêmicos e
passam a orientar decisões governamentais importantes. Uma destas decisões
foi a reforma dos Estados Nacionais, que com o discurso da flexibilização para
atender às demandas de um mercado em perigo, transferem para as grandes
83
corporações privadas as estratégias políticas, econômicas e jurídicas. É o
discurso da ―liberdade‖, que gera agilidade para reagir ao mercado.
Segundo Silva o ideário da ―liberdade‖ se disseminou rapidamente pelo
mundo todo porque as mudanças nos resultados materiais apresentaram um
dinamismo que parecia justificar a sua pertinência num momento de crise e
estagnação econômica;
ao mesmo tempo, significou uma não menos intensa dinâmica
de reconstrução discursivo-ideológica da sociedade, processo
derivado da enorme força persuasiva que tiveram – e estão
tendo - os discursos, os diagnósticos, as estratégias
argumentativas e a retórica, elaborada e difundida por seus
principais expoentes intelectuais. (SANTOS, 2009, p. 33)
O neoliberalismo, segundo o autor, instaura e dissemina um Estado
mínimo26 para um máximo desenvolvimento econômico e, contando com a
aprovação da categoria ―pensante‖ do país, as pautas centrais no Novo Estado
são os acordos financeiros nos quais o investimento social está ausente. Neste
sistema, a crise social é um reflexo da ineficiência do Estado. Habitação social,
educação, saúde, passaram a figurar no horizonte mercantil das leis de
mercado visando eficiência: redução de custos, maior controle sobre o
―produto‖. Não só isso - os indivíduos também são reduzidos ao funcionamento
mercadológico.
Os pobres são culpados pela pobreza; os desempregados,
pelo desemprego; os jovens pela violência e os professores,
pela péssima qualidade dos serviços educacionais. O
neoliberalismo privatiza tudo, inclusive o êxito e o fracasso
social. (SILVA, 2009, p. 43)
A democracia neoliberal, segundo este ponto de vista, apóia-se no
indivíduo competitivo e ―livre‖ para fazer escolhas no mercado, mas sem
garantir os direitos sociais inalienáveis e as instituições públicas que garantam
o exercício destes direitos. ―[A] letalidade do neoliberalismo no Brasil se dá,
sobretudo, pelo atrofiamento da esperança, da utopia e da resistência social
popular organizada‖ (SILVA, 2009, p. 45).
26
Não é que o Estado deixe de intervir, mas as intervenções passam a depender profundamente das exigências do setor privado.
84
No Estado rarefeito, as infinitas ONGS que surgiram a partir dos anos 90
funcionam como substitutivos do seu papel social e se reorganizaram para
obter financiamentos nas parcerias, segundo a cartilha neoliberal, público-
privadas com o Estado que, ausente do papel de traçar programas nacionais,
transferiu para as ONGs a tarefa de cobrir com programas locais, ou no
máximo regionais, demandas emergenciais do campo social. O resultado tem
se apresentado como um conjunto de infinitos modelos singulares, provisórios,
incapazes de cobrir as demandas do imenso contingente pobre do país. Mas o
discurso da solidariedade tem apelo fortíssimo e tenta convencer através da
difusão midiática de resultados individuais de comovente sucesso: meninos
cegos que têm uma profissão e com isso ganham independência, garota da
favela que tocou piano em Viena ou que ganhou bolsa de estudo para dançar
ballet na Alemanha. Todos estes indivíduos são divulgados como emblemas da
vitória por conseguirem escapar da violência e da exclusão - a que estavam
virtualmente destinados - através das iniciativas solidárias. São premiados por
serem o que são, mas a medalha tem o patrocínio do governo e apoio da ONG.
Com tristeza percebemos que a terceirização apropriou-se até da esfera do
íntimo, dos sucessos e dos fracassos pessoais como emblemas de mobilização
social.
É muito importante lembrar que, durante a ditadura militar, não eram as
organizações não-governamentais que lutavam pelos direitos cidadãos, e sim
os movimentos sociais. Porém as organizações tinham um papel fundamental
no apoio à resistência civil. Segundo Silva (2009, p. 72 - 73), estas
organizações civis, que ainda não tinham sido cunhadas com o nome de
ONGs, existiam de modo importante e foram talvez a única forma de
agenciamento possível na época para a sobrevivência dos movimentos sociais.
Essas organizações tinham por ―missão tanto contribuir para a melhor
organização interna como para a articulação entre os movimentos sociais, além
de transferir para estes os recursos captados de organismos estrangeiros‖
(SILVA, 2009, p. 72).
O que Silva denuncia é a falta de crítica diante da ausência do Estado e
pede atenção quanto à atuação das ONGs que priorizam a constante
solidariedade de causas sociais emergenciais, pois os recursos repassados
85
pelo Estado a estas organizações poderiam estar sendo empregados nas
eclipsadas políticas públicas. As ONGs orgânicas e os movimentos sociais são
apontados pelo autor como as formas realmente capazes de provocar
mudanças institucionais e o alargamento dos direitos civis. As ONGs não
pretendem, em sua maioria, esta mudança, ainda que Silva reconheça nelas
uma alternativa para as inúmeras demandas do quadro assustador de
deterioração social que vivenciamos27.
Os desdobramentos do Estado Mínimo e o impacto nas políticas
públicas destinadas aos problemas urbanos estão estampados na cidade, tanto
nos projetos urbanísticos como naquilo que escapa deles. A cidade neoliberal é
hoje ―antes de tudo um empreendimento de comunicação e promoção‖. Tudo é
mercado, tudo é cultura. A isca é neoliberal: a ―parceria entre o setor público e
a iniciativa privada, encarregada por sua vez de alavancar investimentos
privados com fundos públicos‖ (ARANTES, 2000, p. 22) para a
espetacularização do urbano com o intuito de impulsionar o desenvolvimento
através dos lugares.
Se no movimento moderno a lógica urbana era a da fábrica – a cidade
―funcionaria‖ como uma linha de produção, com o máximo de racionalidade,
economia e eficiência -, atualmente a metáfora da cidade é a empresa, ou seja,
o administrador tem um olho na competitividade mercadológica dos lugares e
outro na especulação, e um dos dispositivos mais recorrentes da especulação
urbana é a revitalização de espaços públicos através das parcerias público-
privadas.
27
Para não cometer injustiças em relação à seriedade e qualidade do trabalho de algumas ONGs, Silva (2009, p. 80 - 84) discrimina dois tipos de organização: as ONGs orgânicas e as ONGs mercantis. As orgânicas são aquelas que ―direcionam sua práxis para uma dimensão contra-hegemônica. [...] São ONGs que têm como finalidade melhorar ou fortalecer a própria sociedade civil‖, e a sua missão é criar bases para devolver ao Estado a responsabilidade social; Por outro lado, o autor defende que as ONGs mercantis, que são justificadas pelas ações filantrópicas de alívio de sofrimento dos pobres, desejam preencher as lacunas do Estado, embora o façam através de isenções fiscais provenientes do dinheiro público. Estas ONGs enxergam a solidariedade no campo da emergência e, ainda que tenha boa intenção, não opera no campo do fortalecimento do cidadão ou na criação de laços coletivos em prol da cidadania. Sobre as ONGS mercantis o autor ainda denuncia que [...] seu cotidiano revela a (re)produção de modelos dominantes e oportunistas quanto à captação de recursos, transformando-se em verdadeiras “fábricas de projetos” a qualquer custo. Ou seja, visam o lucro e não o fortalecimento da cidadania.
86
(...) quando, nos dias de hoje, se fala de cidade (pensando em
estar ―fazendo a cidade‖...), fala-se cada vez menos em
racionalidade, funcionalidade, zoneamento, plano diretor, etc.,
e cada vez mais em requalificação, mas em termos tais que a
ênfase deixa de estar predominantemente na ordem técnica do
Plano – como queriam os modernos – para cair no vasto
domínio passe-par-tout do assim chamado ―cultural‖ e sua
imensa gama de produtos derivados.(ARANTES, 2000, p. 15)
E é por meio das revitalizações e de seu apelo cívico de recuperação do
patrimônio que o apoio consensual da população é angariado. Não é difícil
para a classe média entender que o correto é a cidade limpa, segura, com
prédios conservados e culturalmente pulsantes. O que não é fácil perceber é
que este discurso não transforma a cidade, apenas decide o que deve ser ou
não visível. A pobreza tende a ser encarada como paisagem indesejável.
Quando nos damos conta de que o discurso neoliberal já se naturalizou
consensualmente parece difícil enxergar que haja outra cidade dentro desta,
que escape da dominação total do discurso financeiro. Apesar dessa sensação
desanimadora sabemos que sempre há alternativas ―ali onde a mercantilização
do espaço público está sendo contestada, ali onde os citadinos investidos de
cidadania politizam o cotidiano e cotidianizam a política, através de um
permanente processo de reconstrução e reapropriação dos espaços públicos‖
(VAINER, 2000, p. 101), pois a urbs encontra as brechas na cidade e trata de
alargá-las.
São Paulo: polis x urbs
Se por desenvolvimento se entende o crescimento do PIB para
assegurar mais bem estar às populações, é hoje fácil mostrar
que o bem-estar das populações não depende tanto do nível
da riqueza quanto da distribuição da riqueza. A falência da
miragem do desenvolvimento é cada vez mais evidente, e, em
vez de se buscarem novos modelos de desenvolvimento
alternativo, talvez seja tempo de começar a criar alternativas ao
desenvolvimento. (SANTOS, 2009, p. 28)
O arquiteto-urbanista e economista João Whitaker Ferreira (2007, p. 45 -
47) esclarece que a cidade de São Paulo sempre atendeu e respondeu a
demandas econômicas em detrimento de seu desenvolvimento social mais
justo e igualitário. Até aí nenhuma novidade desde os tempos da colônia. O
87
que vai se transformando ao longo do tempo são os discursos que vestem os
interesses dominantes. Whitaker ressalta que desde os anos noventa, a marca
que a cidade vem construindo como slogan é a de que São Paulo está pronta
para ser uma cidade-global, como New York City e Tóquio. O autor diz que o
slogan de cidade global é encabeçado pela iniciativa privada, principalmente do
setor imobiliário, e apoiado pelo poder público. Esta aliança implica em
direcionamentos de investimentos e planejamentos de grandes dimensões com
conseqüências sociais e urbanas quase nunca condizentes com a realidade
mais ampla da cidade. Estes discursos procuram preparar setores específicos
através das chamadas melhorias e requalificações urbanas para catalisar
recursos vindos de investidores de fora do Brasil.
O autor chama atenção para o fato de que São Paulo vale-se dos
atrativos dos discursos desenvolvimentistas da modernidade e da globalização
para re-afirmar o velho discurso conservador, visivelmente interessado em
manter a hegemonia interna de suas elites financeiras.
A naturalização da idéia de que São Paulo já é uma cidade global é
difundida pelo poder público e pela Academia, antes de uma reflexão crítica
sobre o que significa globalização, se o termo globalização pode ou não ser
transfusionado para a América Latina. Como observa Whitaker,
a força dessa conceituação é tanta que até mesmo intelectuais
de orientação abertamente crítica ao papel predador do capital
sobre a produção do espaço urbano paulistano a incorporam
com certo automatismo, talvez caindo na armadilha ideológica
que o mito da cidade global impõe (FERREIRA, 2007, p. 29).
Mais de uma década antes da discussão das cidades globais, Ángel
Rama, escritor uruguaio, revela mecanismos latino-americanos de manutenção
do poder das classes dirigentes, desde a época da colônia, através da
produção e da naturalização de certos discursos cuja característica mais
notável é a capacidade destas elites permanecerem no poder, ainda que
mudem as ideologias. Rama nos lembra que a elite dirigente da colônia era a
elite letrada e que nasceu por ordem do rei, com a função de dirigir a sociedade
com vistas nos interesses da coroa e da igreja.
88
Os séculos da Colônia mostram reiteradamente a
surpreendente magnitude do grupo letrado que em sua maioria
constitui a frondosa burocracia instalada nas cidades a cargo
das tarefas de comunicação entre a metrópole e as sociedades
coloniais, portanto girando no alto da pirâmide em torno da
delegação do rei. (RAMA, 1994, p. 43)
Neste momento outorgam-se poderes a toda uma ―nova geração de
administradores (os prefeitos) e à proliferação de profissionais, mais
peninsulares que mestiços‖. Embora possam modificar o conteúdo de suas
mensagens, estes funcionários continuam servindo aos propósitos das classes
dominantes, e perduram, tendo como centro administrativo a cidade, pois, ―[n]o
centro de toda cidade, conforme diversos graus que alcançavam sua plenitude
nas capitais vice-reinais, houve (sec. XVI) uma cidade letrada, que compunha o
anel protetor do poder e o executor de suas ordens: uma plêiade de religiosos,
administradores, educadores, profissionais, escritores e múltiplos servidores
intelectuais‖. (RAMA, 1994, p. 43)
E a colônia, segundo Rama, imitava os costumes metropolitanos do
além-mar. No entanto, como a distância geográfica entre elas era muito
grande, a colônia almejava a sofisticação de uma metrópole que, de fato,
existia somente no imaginário colonial. Os esforços imitativos, portanto,
sobrepujavam com folga em luxo e opulência a riqueza real da Europa.
A desproporção deste luxo combinava-se com a indisfarçável
primitividade da natureza e das culturas locais, que escapava por detrás dos
cenários cosmopolitas montados para o teatro social colonial. Não é difícil
imaginar porque a saturação de elementos, o grotesco e a teatralidade sejam
até hoje componentes vivos da nossa cultura.
É possível identificar, talvez, certa vocação da América Latina à
megalomania e ao desperdício, que positivamente pensada é proveniente da
abundância cultural que tanto prezamos, mas que também revela a tendência à
adesão inapropriada aos discursos estrangeiros, quando está ausente a
reflexão crítica sobre a aplicabilidade de tais discursos às nossas realidades.
O arquiteto-urbanista estaria, segundo as observações de Angél Rama,
entre os profissionais produtores de dispositivos de manutenção do poder
89
dominante através de seu conhecimento régio, ou seja, ao outorgar-se ao
profissional o papel de condutor de uma ordem e de um conhecimento que
garanta o bem estar da maioria através do diagnóstico, do projeto e da
construção de uma ordem espacial, com o objetivo de criar estruturas
duradouras de legibilidade na cidade, o que atende ao princípio do Estado, a
saber, a permanência. Os dispositivos de legibilidade são as estratégias que
disciplinam as práticas na cidade, de modo a conter o ingovernável, aquilo que
desmonta a durabilidade e permanência: fluxos, funções, horários, etc. Há,
portanto, segundo este ponto de vista, um cruzamento estratégico entre os
saberes do arquiteto e o poder do Estado. Convém entendermos, portanto,
quais interesses do Estado tornam-se discursos da arquitetura e do urbanismo.
Segundo Agamben (2009, p. 28 - 29), é a partir da idéia de dispositivo
de Michel Foucault que pudemos entender como o poder lança mão de
elementos tão diversificados para firmar seu discurso. Segundo o autor,
Foucault percebe que mais do que determinar quais elementos são utilizados,
importa como se relacionam para formar uma rede coesa para assegurar
determinado discurso.
O dispositivo é, antes de tudo, um conjunto absolutamente
heterogêneo que implica discursos, instituições, estruturas
arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas,
morais e filantrópicas, em resumo: tanto o dito como o não dito,
eis os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se
estabelece entre estes elementos. [...] Assim, o dispositivo é:
um conjunto de estratégias de relações de força que
condicionam certos tipos de saber e por eles são
condicionados (FOUCAULT apud AGAMBEN, 2009, p. 28).
Para Foucault, as arquiteturas institucionais, tais como escolas, prisões,
monastérios, são exemplos recorrentes dos dispositivos de controle do Estado.
Naquele momento da história, as estratégias de comando e de obediência
materializadas nas instituições tinham como objetivo reformular, ou modelar, as
subjetividades sociais através
de uma série de práticas e de discursos, de saberes e de
exercícios, à criação de corpos dóceis, mas livres, que
assumem a sua identidade e a sua liberdade de sujeitos
90
no próprio processo do seu assujeitamento. (AGAMBEN,
2009, p. 46 – 47)
O exemplo escolhido pelo autor para aprofundar a idéia de dispositivo é
a disciplina penitencial. No lugar do eu pecador, a sociedade disciplinar
oferecia, como compensação pela correção, o ―novo eu‖; uma vez superado o
erro, o sujeito estava ―livre‖, mesmo que dócil. Sua remodelagem era feita a
partir de um conjunto de estratégias – dispositivos - na qual a arquitetura
disciplinar teve seu papel, assegurando e sendo assegurada pelo modelo
moderno de poder.
Mas o problema filosófico e político apontado por Agamben (2009, p. 47)
é que, atualmente, os dispositivos de poder não oferecem mais nenhuma
contrapartida de subjetivação ao sujeito pela aderência a eles, como acontecia
nas lutas de classe, ou no exemplo da disciplina penitencial. ―Na não-verdade
do sujeito não há mais de modo algum a sua verdade‖(AGAMBEN, 2009). A
política pressupunha ―sujeitos e identidades reais – o movimento operário, a
burguesia, etc.‖. Atualmente os dispositivos se multiplicaram e se
especializaram tecnicamente, esquadrinhando detalhadamente o cotidiano dos
sujeitos. Contudo, os sujeitos não se enquadram em uma única categoria de
controle e podem aderir passivamente aos inúmeros dispositivos disponíveis,
por isso o controle tornou-se impossível para o Estado, o que corresponde
dizer que todos nós somos possíveis inimigos e o que rege a multidão é a
imprevisibilidade. A governabilidade está ameaçada:
a vigilância por meio de videocâmara transforma o espaço
público das cidades em áreas internas de uma grande prisão.
Aos olhos da autoridade – e, talvez, esta tenha razão – nada se
assemelha melhor ao terrorista do que o homem comum.
(AGAMBEN, 2009, p. 46 – 47)
Condizente com Agamben, Solá-Morales (1999, p. 108 - 109) sabe que
os seres não se agrupam nem se consideram conforme categorias e
identidades fixas. E, portanto, a arquitetura dos dias de hoje deve ser
perfeitamente consciente de sua modesta tarefa, mediante a impossibilidade de
representar, como aconteceu no movimento moderno, um projeto coletivo,
91
transmissor dos valores racionais do progresso e proponente da emancipação
coletiva através da paisagem urbana.
E qual seria esta tarefa, uma vez que a arquitetura não pode mais ser
portadora de valores universais nem construtora de uma realidade absoluta?
Solá-Morales (1999, p. 60 - 61) encontra a resposta na idéia de
fragilidade, de Gianni Vattimo, que diz que a experiência estética que as artes e
a arquitetura promovem é uma forma ―forte‖ de uma construção ―frágil‖ de
realidade, porque não se pretende normativa, não se pretende um sistema
organizador.
Acumulação, reiteração, diferença e desconexão são alguns dos substantivos freqüentemente repetidos na discussão da arquitetura entendidos como aqueles que propusemos como representativos da nossa situação atual. Não é só que as fontes de nosso relacionamento com o mundo se estenderam e se multiplicaram. É também o fato de que, conforme isso se deu os ideais de integração, coerência e síntese que presidiram a produção artística do passado tornaram-se claramente inatingíveis. Com o desaparecimento desses ideais, a prática de arquitetura apresenta-se como uma tarefa humilde, frágil, uma aproximação permanente, insuperavelmente provisória.28(SOLÁ-MORALES, 1999, p. 23 – 24)
Para o autor é certo afirmar que a arquitetura não é a cidade, e sim está
na cidade. Ao contrário do postulado do urbanismo moderno, que creditava à
arquitetura o papel regulador e organizador da unidade urbana, a realidade de
nossas ruas demonstra que as grandes cidades amalgamam suas arquiteturas
num conjunto informe, na qual ilhas organizadas, ou enclaves de organização,
se destacam em meio ao urbano homogêneo e indiferenciado.
Bem distante da idéia de gerar multiplicidade através da fragilidade das
certezas, a arquitetura que o autor critica é aquela que produz ―uma cidade de
objetos singulares, repleta de episódios emocionantes perdidos no magma
28
Livre tradução: Accumulation, reiteration, difference, and disconnection are some of the substantives most frequntly repeated in discussion of architecture such as those we have proposed as representative of our present situation. It’s not only that the sources of our relationship with the world have extended and multiplied. It’s also the case that, as they have done so, the ideals of integration, coherence, and synthesis that have presided over the artistic production of the past have become patently unattainable. With the disappearence of these ideals, the pratice of architecture presents itself an undertaking that is humble, fragile, a permanet approximation, insuperably provisional.
92
cinza da produção comum. A cidade dificilmente poderia suportar a
concentração de experiências sublimes‖ (SOLÁ-MORALES, 1999, p. 24),
porque não há espaço para tudo ser espetacular. Esse tipo de evento
arquitetônico pressupõe um entorno cuja importância não deve ser maior que
um pano de fundo, para que sua singularidade seja uma experiência
magnânima.
As ilhas de organização são uma tendência mundial. Criam-se edifícios
de escala urbana, geralmente projetados pelos escritórios do star system, que
reorganizam determinados entornos, revitalizando-os. Transformam-se em
ingresso de inclusão das cidades na categoria de cidade global.
O arquiteto-urbanista será, nesta perspectiva, o personagem que vai
administrar as grandes obras, revitalizações de grandes áreas decadentes.
Não que ele planeje a cidade, sua atuação é mais parecida com a de um
gerente - um manager, para usar a terminologia neoliberal - dos investimentos
das mega-incorporadoras. Ou ainda cumprirá as tarefas de um produtor-
administrador-cultural, porque as cidades sofrem (como não usar esse verbo?)
revitalizações urbanas para entrar no mundo dos negócios e a senha, segundo
Arantes (2000, p. 30 - 31), é a Cultura, ―essa nova grife do mundo fashion, da
sociedade afluente dos altos serviços a que todos aspiram‖. O grau de
consumo cultural de uma sociedade é o termômetro dos negócios. As
multidões atraídas para as ofertas culturais ostensivas multiplicam o consumo
do qual a cidade é agora protagonista. Vale para os investidores colocarem
dinheiro numa cidade culturalmente fervilhante.
São Paulo: o abismal
Vi beija-flores. E uma vez mais, durante horas e horas, olho
para esta natureza monótona e estes espaços imensos; não se
pode dizer que sejam belos, mas colam-se à alma de uma
forma insistente. País em que as estações se confundem umas
com as outras; onde a vegetação inextricável torna-se
disforme; onde os sangues misturam-se a tal ponto que a alma
perdeu seus limites. Um marulhar pesado, a luz esverdeada
das florestas, o verniz da poeira vermelha que cobre todas as
coisas, o tempo que se derrete, a lentidão da vida rural, a
excitação breve e insensata das grandes cidades – é o país da
93
indiferença e da exaltação. Não adianta o arranha-céu, ele
ainda não conseguiu vencer o espírito da floresta, a imensidão,
a melancolia. São os sambas, os verdadeiros, que exprimem
melhor o que quero dizer29. (CAMUS, 1978, p. 132 - 133)
Nas metrópoles da América Latina, conforme visto anteriormente, a
natureza atravessa a organização da cidade através da incidência solar, de
ventos, chuvas, além da insistência vegetal sobre o construído e da
incontinência de córregos e rios que não conseguem permanecer retificados. O
regime de forças naturais a que somos submetidos é sempre da ordem do
excesso e da incontinência, o que torna os latino-americanos habituados a
certo grau extremo de variabilidade.
A desmesura é aspecto ativo na conformação de nossas metrópoles,
como forma e como processo de configuração dos espaços. A natureza nos
relembra, através de sua ingovernabilidade, a inexorabilidade da variação,
manifesta no corpo, na cultura e na cidade. Portanto a natureza telúrica do
continente inspira outros regimes de força com os quais contamos para lidar
com as variáveis.
Em São Paulo, o diálogo com a cidade pode acontecer de forma
positiva, quando criamos, a partir de certos critérios, mosaicos analíticos. Por
exemplo, para falar de seu traçado urbano e de sua arquitetura, só podemos
contar com fragmentos de traçados urbanos e de períodos arquitetônicos
retratados em edifícios aqui e acolá, sem que se constituam grandes conjuntos
epocais significativos, que determinem uma supremacia de uma época
histórica sobre outra ou de um estilo sobre outro. É quase impossível
estabelecer análise crítica a partir de estilos ou de categorias urbanas
clássicas. Os traçados de São Paulo, de modo geral, reservam aos resíduos
urbanos do passado a função de peças de um mosaico móvel, que, destituídas
de aura e nostalgia, emergem e são re-aproveitadas dentro do contexto vivo e
mutante da cidade.
Pertencem ao campo do urbanismo forças coletivas que ocupam
edifícios abandonados, espaços públicos ou mesmo a lenta e irrefreável
29
Albert Camus, em visita ao Brasil volta de uma viagem de carro a Iguape, litoral sul de São Paulo, com Oswald de Andrade em 1949.
94
insistência das favelas e ocupações, que se enquistam em áreas privilegiadas
da cidade, incomodando, tornando claro que o embate entre os poderes
oficiais e a informalidade é passível de ser solucionado através de retificações,
mas que deve ser negociado em ambas as partes.
Na França, quando pensamos no infinito, são sempre
metáforas que vêm à mente. Mas em São Paulo o infinito é
tomado ao pé da letra. Ei-nos aqui, nós, que fomos formados
no senso da medida, no espírito das idéias claras e distintas,
para quem os contrastes são mais frequentemente graduações
imperceptíveis, ei-nos confrontados com o gigantismo, as
misturas, as contradições absolutas.
(...) O que faz ainda a especificidade de São Paulo tão
radicalmente oposta à ponderação e à temperança francesas,
às nossas pequenas cidades sob a pátina dos séculos de
história, aos nossos pequenos hábitos, é essa estrita relação
entre o primitivo e o moderno, essa espantosa capacidade de
produzir mestiçagens, ou seja, de juntar o que nós separamos.
(LAPLANTINE; OLIEVENSTEIN, 1993, p. 15 - 16)
Laplantine percebe que a cidade de São Paulo confronta o comodismo
historicamente respaldado do francês médio, acostumado à poeira secular
sobre seus pequenos vilarejos imutáveis, com a agitação desmedida da nossa
cidade. O nervo óptico do latino-americano está acostumado a
receber/transmitir grandes quantidades de informação e o simples fato de
andar a pé pela cidade já pode ser considerado como o exercício da
aproximação entre mente e corpo, separados pelo pensamento ocidental
clássico ao longo de séculos.
Como observou Laplantine, o termo infinito, para uma cidade como São Paulo,
não é uma idéia que exprime um estado da alma de um filósofo diante da morte
ou do mistério divino. Experimentamos a infinitude na enervação cervical,
quando nos locomovermos de carro pela cidade durante horas sem jamais
apreender seus limites geográficos.
Contudo, essa capacidade de conviver proximamente com ”aquilo que é
inteiramente fora de nós‖ (BLANCHOT, 2001, p. 95) não acontece sem alguns
problemas. Há que se levar em conta a resistência dos redutos mantenedores
das distâncias entre as diferenças a fim de proteger seus valores próprios da
95
contaminação do estranho. As manifestações culturais mais interessantes do
mosaico móvel muitas vezes parecem situações indesejáveis, pois nos obrigam
a deslocar nossos modos de ver e de viver na cidade.
Um olhar estrangeiro: o outro
Eros ainda é o desejo nostálgico da unidade perdida, um
movimento de retorno ao Ser verdadeiro. O desejo
metafísico é o desejo daquilo que com o que não se foi
nunca unido, desejo do eu, não somente separado, mas
feliz com sua separação que o faz eu e, no entanto, tendo
relação com aquilo de que ele permanece separado, do
que ele não tem nenhuma necessidade e que é o
desconhecido, o estrangeiro: outrem. (BLANCHOT, 2001,
p. 101)
No continente americano foram produzidos, tanto por estrangeiros como
por artistas nacionais, inúmeros relatos literários e artísticos em resposta ao
espanto diante dos transbordamentos do real que saturam nosso cotidiano.
Alguns destes relatos literários e visuais nos ajudam a recuperar o
estranhamento, a retomar a consciência do teor fantástico das ruas, do
emaranhado de simultaneidades paradoxais, tornadas imperceptíveis pelo
costume.
O artista espanhol Dionísio Gonzalez30, por exemplo, fotografou favelas
do Brasil e com elas fez uma montagem em forma de foto panorâmica, como
se fosse um instantâneo. Sobre essa montagem o artista insere, aos poucos,
intervenções eletrônicas virtuais, substituindo ou colando elementos
arquitetônicos sobre a foto do ―existente‖, que também é uma montagem. Nem
a montagem nem a colagem têm a intenção de organizar o caos visual da
favela e sim compor com sua estética saturada. O olhar corre entre o possível
e o impossível, e aos poucos a favela torna-se um local desejável, quase real,
quase impossível, utópico. O artista subverte o enquadramento da favela como
lugar de miséria, de violência e de criminalidade, dando em troca aberturas
30
FLOREZ, F. C. (2009). DIsponível em: <www.dionisiogonzalez.com.es/txt/texto_folkwang_fcas.pdf>. Acesso em: 24 de abril de 2010. Para ver mais sobre o trabalho do artista nas favelas do Brasil, consultar o sítio: http://video.google/videoplay?docid-.148880578921304#
96
para realidades inventadas, sempre com base no real, que não é dado, mas
inventado.
Fotomontagem da favela Roberto Marinho em São Paulo, de Dionísio Gonzalez
Fotomontagem da favela Roberto Marinho em São Paulo, de Dionísio Gonzalez
Nas montagens de Gonzalez (FLOREZ, 2004, p. 3) as favelas persistem
como táticas de resistência à correção, à retificação do habitar. Para ele a
favela deve resistir como ―um sistema insurrecional do olhar, algo que
sobrevive e desconstrói o imaginário arquitetônico contemporâneo‖ através de
97
hibridações do precário. Gonzalez evidencia que acontecimentos urbanos, tais
como as favelas e as ocupações, requerem novas categorias críticas, que des-
universalizem a vitimização da pobreza, para que não sejam usadas como
instrumento de sublimação estética do terrível, mantendo-o como alteridade,
porque desta forma a segregação funciona como margem de segurança para a
manutenção da exclusão: o terrível é o outro. Gonzalez inclui o inacabado e o
precário como parte do cotidiano, como constituinte do urbano como um todo.
O artista quer mostrar que todos nós habitamos, não só os favelados,
demolições de sentidos, vivemos em meio às catástrofes.
Os arquitetos são versados nas técnicas do habitar, enquanto as
favelas empreendem a técnica do abrigo, diz Paola Berenstein Jacques (2001,
p. 23 - 26) estabelecendo as diferenças entre as duas formas de morar. A
habitação é planejada para dar abrigo e algo mais - conforto, proteção contra
intempéries, privacidade; o abrigo é a proteção emergencial que vem depois
da vestimenta, é a terceira pele. Enquanto a habitação é planejada e depois
construída, o abrigo é determinado pelo acaso do conjunto de materiais de
segunda mão recolhidos dos descartes da cidade oficial. A habitação pode ser
reproduzida infinitamente porque domina a topografia através do corte, da
fundação; o abrigo é único, negocia e compõe com a topografia e com os
vizinhos; partes de um abrigo precisam apoiar-se no abrigo vizinho, passagens
e acessos são compartilhados e tudo é negociado caso a caso.
As pedras! As pedras são a couraça da rua, a resistência que
elas apresentam ao novo transeunte. Refleti que nunca
pisastes pela primeira vez uma rua de arrabalde sem que o
vosso passo fosse hesitante como que, inconscientemente, se
habituando ao terreno; refleti nessas coisas sutis que a vida
cria, e haveis de compreender então a razão porque os
humildes limitam todo o seu mundo à rua onde moram, e
porque certos tipos, os tipos populares, só o são realmente em
determinados quarteirões. (DO RIO, 2007, p. 37)
Jacques diferencia as duas técnicas pela idéia de completude. O papel
do arquiteto é conduzir a obra do projeto ao seu término, quando é
considerada completa. O abrigo parte das contingências e nunca está pronto,
continua aberto ao acaso, à coleta permanente e à substituição de partes por
fragmentos destituídos de sua função original. O resultado é sempre
98
intermediário, defasado, sempre pronto às interferências, ampliações e
ajustes. O favelado é, para Jacques, o construtor que sabe que ―o acaso é
parte integrante da idéia de bricolagem; é o incidente, ou seja, o pequeno
acontecimento imprevisto, o micro-evento, que está na origem do movimento.
Bricolar é, então, ricochetear, enviesar, zigue-zaguear, contornar‖ (JACQUES,
2001, p. 24).
E pelo inacabamento do abrigo configura-se a permanência que o torna
habitação. Embora transformar o abrigo de madeira em alvenaria seja um
objetivo, ele não determina nunca o final da obra. Sempre tem uma nora ou um
neto que vem para morar e o barraco cresce.
Em seu livro, Jacques nos guia através da imersão de Helio Oiticica no
morro da favela de Mangueira, movimento que vai revolucionar sua vida e obra
artística. Oiticica é tomado pela realidade extraordinária do morro e percebe
rapidamente que o valioso da cultura brasileira não é feito nas academias e
nas vanguardas artísticas, mas na construção anônima do monumento
cultural. A partir daí toda sua experiência na favela torna-se obra e vida:
samba, o morro, a arquitetura das favelas ―e principalmente das construções
espontâneas, anônimas, nos grandes centros urbanos - a arte das ruas, das
coisas inacabadas, dos terrenos baldios, etc.‖ (OITICICA, 1968)31.
Oiticica traduz no Parangolé a intensidade de sua vivência na favela: seu
compromisso como passista da Mangueira, a experiência do espaço
fragmentário e labiríntico da favela, as subidas e descidas das ladeiras e
escadas, o jogo de corpo necessário para locomover-se; da estética em
mosaico dos materiais descartados e revitalizados nas fachadas e interiores
dos barracos, tudo foi aproveitado.
No vídeo ―Quando o passo vira dança‖, dirigido por Jacques32, a câmera
faz foco no andar gingado dos moradores, produzido pela topografia e situação
labiríntica da favela. O andar ali é um acontecimento. Os pés tateiam os
31
Helio Oiticica, Tropicália, artigo de 04 de maio de 1968. Disponível em:
<http://tropicalia.uol.com.br/site/internas/leituras_gg_objetividade2.php>. Acesso em: abril de
2010
32 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=7I6CDo-Z70Y>. Acesso em: abril de 2010.
99
caminhos menos acidentados, evitam tropeços saltando sobre os obstáculos,
redirecionando o passo a todo o momento com a habilidade da ginga,
enquanto os chinelos de dedo estalam marcando o compasso da
irregularidade geográfica dominada pela habilidade da ginga. Os eixos de
orientação são múltiplos, há várias opções para percorrer o mesmo trajeto. O
mover-se no morro provoca acordos com as interdições e relevos.
Quero fazer voltar o Parangolé ao gênio anônimo coletivo de
onde surgiu, e com isso jogar fora os probleminhas de estética
que ainda assolam nossa vanguarda em sua maioria,
transformando a pequenez deste problema em algo maior [...]
nas escolas de samba ninguém sabe quem fez isso ou aquilo;
o importante é o todo onde cada um dá tudo o que tem. Minha
experiência como passista da mangueira é fundamental para
que eu me lembre disto: cada qual cria seu samba com
improviso, segundo seu modo e não seguindo modelos; os que
o fazem seguindo modelos não sabem o que seja o samba ou
sambar. (OITICICA apud JACQUES, 2001, p. 30)
O vídeo nos conduz ao entendimento de que o andar favelado
agencia e é agenciado pela cultura rítmica, só possível no espaço composto
por favela- morro-Rio de Janeiro-chinelo. O samba é a representação da
experiência de andar na favela e por isso Jacques diz que é natural que uma
criança do morro aprenda o samba antes de saber andar direito.
A diretora opta pela cartografia rítmica da favela, eclipsando aspectos
sociais difíceis, como a violência e a pobreza, que não compõem nenhum
primeiro plano do vídeo. No entanto acreditamos que esta escolha é política e
nada leviana. Não se trata de estetizar a pobreza através do viver exótico e do
molejo sensual das populações faveladas, nem de mascarar a terrível violência
em meio à qual vivem os favelados, mas de ampliar a potência cultural destas
populações e, através dessa ampliação, desejar outras definições mais
emancipatórias para esta situação urbana. O aspecto labiríntico e
multidirecional da favela são acolhidos como desejáveis, como produtores de
cultura, produzidas pela dupla corpo/espaço. Sua proposta não tem intenção
de intervenção sobre a espacialidade das favelas, mas revela riquezas que a
análise de critérios de pobreza não contempla.
100
Frames do vídeo "Quando o passo vira dança”, direção de Paola B. Jacques
101
Ao se sair da escala de abrigo para aquela do conjunto de
abrigos, do espaço deixado livre entre os barracos que formam
as vielas e os becos das favelas, a figura do labirinto aparece
quase que naturalmente ao "estrangeiro" que penetra os
meandros da favela pela primeira vez. Além de formar
realmente um labirinto formal, os caminhos internos da favela
provocam a sensação labiríntica ao visitante principalmente
pela falta de referências espaciais urbanas habituais, pelas
perspectivas sempre fragmentárias que causam um
estranhamento (...)33 (JACQUES, 2001)
De qualquer forma há o momento no qual o urbanismo deverá entender-
se com esta poética e vice-versa. Ações tais como escolas de dança, de artes,
de música, atendimento às mulheres, empreendidas por instituições em
favelas incidem melhor sobre esta poética cultural do que muitas vezes faz o
urbanismo, talvez por ser o urbanismo a disciplina que se preocupa em criar
legibilidade para as cidades, na ânsia por controle e proteção contra toda a
contingência da vida na favela, voltada ―perigosamente‖ ao ―fora‖, sem limites
claros entre o público e o privado.
A legibilidade consiste nos traçados viários claros, crescimento e
zoneamento controlado além da disponibilização de serviços públicos e infra-
estrutura. Todas estas benesses do urbanismo são desejáveis, fazem parte
dos direitos de cidadania, embora por si mesmas não sejam suficientes para a
promoção de opções que traduzam e amplifiquem a cultura fervilhante das
favelas. Por funcionarem de modo diametralmente oposto aos postulados do
urbanismo clássico, as favelas são consideradas enclaves34 de informalidade e
descontrole indesejáveis ao planejamento estratégico de qualquer cidade.
No entanto, a própria existência da disciplina urbanística
tradicional, como estratégia, é ainda em grande parte
orientada para a caça aos labirintos, ou seja, para a ordenação
33
Estética das favelas , de Paola Berenstein Jacques. Junho de 2001. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/02.013/883>. Acesso em: abril de 2010 34
A palavra enclave, segundo o dicionário eletrônico Michaelis, pode ter dois significados,
sendo um deles geográfico: território ou trato de terra de um país, encerrado no território de
outro; e o outro biológico: substância destacada de sua conexão normal e incluída dentro de
outro órgão ou tecido. No caso das favelas a idéia de enclave é lapidar e os dois exemplos
parecem traduzir sua situação diante da cidade oficial. Disponível em:
<http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-
portugues&palavra=enclave>. Acesso em: abril de 2010.
102
formal e racional do espaço urbano, de forma a impedir a
experiência labiríntica. (JACQUES, 2001, p. 97)
Há urbanistas que optam pela remoção das favelas como solução
urbana definitiva, por considerá-las enquistamentos indesejáveis na malha da
cidade. Outros optam por planejamentos de urbanização das favelas que
imitem ou aproximem-se o máximo possível do padrão dos bairros formais,
desejando supri-las de infra-estrutura, o que é importante, além da instauração
do controle urbano mais eficaz, e eficiência é uma palavra que faz as vezes de
um enunciado, encobrindo outras possibilidades de relação com o ambíguo e
complexo.
A grande questão da habitação é a construção da cidade.
Se você considerar uma cidade como as nossas, com mais de
cinco milhões de habitantes, não pode fazê-la inteira pensando
em palácios, museus, teatros. Isso são adereços
indispensáveis à cidade. Mas ela é feita de milhões de casas,
que têm de saber conviver com o comércio, com acesso à
saúde, à educação, ao transporte público. Portanto, é um
problema muito mais complexo do que simplesmente fazer um
determinado número de casas, no caso um milhão. Esse
contra senso de se afastar das áreas centrais é até explicável
pela ideologia das classes mais ricas. Mas a cidade bem feita
é sempre um espaço democrático. Isso apavora esse pessoal
que gosta de morar afastado. Não percebem que, com isso,
destroem a sua própria cidade, a sua própria moradia. Eu não
sei como é que se faz para educar os filhos na adolescência
em condomínios fechados. Estão produzindo monstrengos35.
No Rio de Janeiro, a proximidade obrigatória entre a população ―do
morro‖ e a população ―do asfalto‖ gera um clamor popular acerca das questões
de moradia e de urbanização, talvez mais visível do que em outras capitais do
país, pela localização geográfica das favelas e suas relações com a beleza
natural da cidade. Abramo e Faria (1998) contam que na história urbanística
do Rio de Janeiro houve duas formas de abordar a questão das favelas: a
remoção e a urbanização.
A remoção, que visava extinguir uma favela de uma
determinada área, transferia os moradores para conjuntos
35
Entrevista do arquiteto Paulo Mendes da Rocha para o caderno Cotidiano do jornal Folha de São Paulo em 19 de abril de 2009 sobre o plano de financiamento de habitação proposto pelo governo Lula, Minha Casa, Minha Vida.
103
habitacionais da COHAB (Companhia de Habitação)
localizados nas periferias, e provocando descontentamento da
população devido aos efeitos negativos de tais remoções como
o afastamento do local de trabalho, e o rompimento dos laços
sociais de solidariedade existentes nas favelas de origem, o
que levou muitas famílias a retornarem às favelas do núcleo da
cidade. (ABRAMO; FARIA, 1998, p. 11)
A remoção de favelas tem por objetivo a renovação urbana e a
revalorização de áreas degradadas, fazendo girar novamente o capital nestas
regiões. Os que não podem mais pagar pelos imóveis revalorizados são
obrigados a partir em busca de estoques imobiliários mais acessíveis,
aumentando a movimentação intra-urbana.
Já a urbanização de favelas quer fixar as populações em seus locais
através de melhorias urbanas, tais como a regulamentação dos lotes, o
fornecimento de infra-estrutura urbana e a gradual aproximação dos bairros na
qual está inserida. Este movimento foi retomado recentemente no Rio de
Janeiro pelo Programa Municipal Favela-Bairro, que se estende além da
questão da moradia, propondo a retomada da problemática social das favelas,
do resgate da cidadania, etc. Não se pode, no entanto, negligenciar a força de
interesses políticos agindo sobre o Programa. Alinhado com outros projetos em
andamento de revitalização urbana, o Favela-Bairro também é fruto do esforço
de situar a cidade do Rio de Janeiro entre as cidades globalizadas e, para
tanto, os números crescentes de moradores de favela - indicadores do
aumento da pobreza - dificultam a inclusão da cidade no patamar desejado.
Porém o programa exclui a faixa da população mais pobre, que recebe menos
de três salários mínimos, e impulsiona o processo velado de expulsão destes
por conseqüência do aumento do valor negociável dos imóveis que,
beneficiados pelo programa ou próximos das áreas valorizadas, passam a
custar mais caro.
A favela, que era uma saída para que estas populações deixassem de
comprometer a minguada renda familiar com aluguéis, passa agora a participar
de modo mais mimético dos jogos imobiliários da cidade formal. ―Isso significa
que combater o mercado informal pressupõe, obrigatoriamente, a adoção de
104
políticas públicas massivas de ofertas de moradias para a população que
recebe abaixo de três salários mínimos‖, defende Abramo36.
A movimentação migratória intra-urbana que resulta desse novo
movimento desmonta as estratégias de sobrevivência dos mais pobres que,
menos do que a qualidade e tamanho das moradias, fazem suas escolhas
valorizando as relações de vizinhança e de parentesco nas táticas de
sobrevivência no cotidiano. (ABRAMO; FARIA, 1998, p. 9 – 10)
No entanto o estudo ainda revela que as redes sociais de solidariedade
são também estratégias de grande importância dos menos pobres, que
procuram moradias próximas à família e às vizinhanças da mesma faixa de
renda, fato que explica e reforça a segregação sócio-espacial a partir de fatores
econômicos. Criam-se manchas de pobreza nas áreas ricas e também
manchas de riqueza nas favelas.
Apesar da fragilidade das estruturas de sobrevivência, os mais pobres
não são passivos nos jogos imobiliários da cidade. Estão atentos e especulam
com o que podem. Melhorias na habitação, localização próxima a bairros e
comércio, além da inserção em programas de revitalização urbana, são
moedas valorizadas na comercialização das moradias ―ilegais‖, fortalecendo o
mercado imobiliário informal, atualmente sob a mira do capitalismo formal por
sua vitalidade e números expressivos. Em matéria do jornal Diário de São
Paulo observamos o movimento do formal em direção ao informal.
Casas Bahia e Bradesco vão se instalar na favela Paraisópolis, em São
Paulo
Grandes redes de varejo e bancos estão investindo em uma
das maiores favelas da cidade de São Paulo, a Paraisópolis. A
inauguração da primeira loja da Casas Bahia está prevista para
agosto, no Dia dos Pais. A obra já entrou na fase final, faltam
apenas piso, pintura e acabamento. Cerca de 60 moradores
serão contratados pela loja e outros 40 já estão em atividade,
na construção.
36
Marina Ramalho em artigo de 31/08/2006. Disponível em: <http://www.faperj.br/boletim_interna.phtml?obj_id=3093>. Acesso em: abril de 2010
105
A Marabraz e o Bradesco também aprovaram a abertura de
unidades lá. Ambos estão buscando terrenos para dar início às
obras. Segundo o banco, a inauguração deverá sair ainda
neste ano.37
A matéria de Maria Cristina Fernandes sobre a mesma inauguração da
loja Casas Bahia publicada no site do Valor Econômico explicita com mais
abrangência o quanto as relações entre o informal e o formal deixam de ser
unidirecionais, ou seja, não só os favelados saem para trabalhar no ―asfalto‖
como também centenas de funcionários do setor formal vêm trabalhar dentro
da favela. Embora esta tendência abra vagas de emprego formal para a
população da favela, outros cargos são preenchidos por pessoas de fora da
favela, com maior qualificação profissional.
No dia em que foi aberta, em novembro do ano passado, a loja
das Casas Bahia na favela de Paraisópolis vendeu mais do que
qualquer outra unidade em São Paulo. Desde sua inauguração,
que atraiu cobertura do ‗Financial Times‘, seu volume de
vendas mantém-se superior ao de muitas das lojas que o grupo
mantém em shoppings, o que animou a direção a abrir
unidades semelhantes nas maiores favelas de São Paulo e do
Rio – Heliópolis e Rocinha. 38
A favela de Paraisópolis tem uma inserção atípica na malha urbana de
São Paulo, por estar encravada em um bairro de mansões, o Morumbi, e não
nas periferias da cidade. A maioria da população da Paraisópolis busca
empregos no bairro. São babás, domésticas, motoristas, seguranças, garçons,
pedreiros, jardineiros que têm a oportunidade de trabalhar perto de casa, ao
invés de enfrentar as desgastantes jornadas de três a quatro horas diárias de
trânsito até os locais de trabalho.
37
Matéria publicada em 01/07/2008 no diário de São Paulo por Mariana Sallowicz Disponível em: <http://oglobo.globo.com/sp/mat/2008/07/01/casas_bahia_bradesco_vao_se_instalar_na_favela_paraisopolis-547045899.asp>. Acesso em: abril de 2010. 38
Reprodução da matéria de Maria Cristina Fernandes para Valor Econômico em 13/02/2009 Disponível em: <http://ohermenauta.wordpress.com/2009/02/13/quer-pagar-quanto/>. Acesso em: abril de 2010. A foto da inauguração está no site THE ECONOMIST, que foi acessado na mesma data: <http://www.economist.com/specialreports/displayStory.cfm?story_id=13063298&source=hptextfeature>.
106
A localização da favela também facilitou a implantação de diversas
parcerias com ONGs ofertantes de serviços de saúde e educação de primeira
qualidade. O hospital Albert Einstein, o colégio Porto Seguro, entre outros.
A associação dos moradores avalia que atuação de mais de 50
organizações governamentais atenda à metade da demanda
local. Avalia-se que, apesar das quatro escolas municipais e
quatro estaduais da região, haja 5 mil crianças e 1 mil jovens
desmatriculados, além de 15 mil analfabetos. O ensino médio
abriga apenas 20% da população elegível. Apenas 0,5% dos
jovens entre 18 e 24 anos estão no ensino superior”.39
Estes dados evidenciam, segundo a reportagem da jornalista, a
insuficiência das parcerias com o setor privado em redimir a ausência do
Estado ―na assistência a uma legião de excluídos espremidos entre as bolsas
de estudo disputadas a tapa em colégios de elite e o crediário em 48
prestações‖. 40
Atualmente, a favela de Paraisópolis passa por uma reurbanização na
qual estão compreendidas remoções e re-assentamentos, além da construção
de uma avenida que corta a favela com o objetivo de aliviar o tráfego da
avenida Giovanni Gronchi, quase que única via responsável pelo escoamento
dos veículos desta área densamente ocupada por condomínios de edifícios de
classe média alta.
No tecido urbano, o encontro entre o bairro ―formal‖ e a favela,
observado a partir de uma vista aérea41, já demonstra que a relação entre
estas duas formas de ocupar o solo não pode ser nada menos que litigiosa. A
classe média não quer morar perto das favelas, e seus imóveis localizados
muito próximos delas têm seu valor diminuído além de serem difíceis de
vender. Na contramão da classe média, os imóveis nas favelas têm grande
39
Reprodução da matéria de Maria Cristina Fernandes para Valor Econômico em 13/02/2009 Disponível em: <http://ohermenauta.wordpress.com/2009/02/13/quer-pagar-quanto/>. Acesso em: abril de2010 40
Reprodução da matéria de Maria Cristina Fernandes para Valor Econômico em 13/02/2009 Disponível em: <http://ohermenauta.wordpress.com/2009/02/13/quer-pagar-quanto/>. Acesso em: abril de2010 41
foto da favela Paraisópolis em São Paulo, sem autoria, copiada do blog Disponível em: <http//www.tijolaço.com>. Acesso em: abril de 2010. Postagem de 02/04/2009.
107
liquidez justamente pela proximidade estratégica de um bairro formal que
disponha de infra-estrutura, de comércio e de possibilidades de emprego.
Com programas municipais de urbanização de favelas, este encontro se
intensifica, pois a relação estabelecida, ainda que desconfortável, havia sido
estabelecida gradualmente até a implantação dos programas municipais. As
melhorias aceleram a ocupação das áreas que se situam exatamente entre o
bairro e a favela, as chamadas áreas lindeiras.
À espera das benfeitorias prometidas pelos programas, chegam os
comércios sem alvará e multiplicam-se as ocupações clandestinas,
pressionando os moradores de classe média ou alta dos bairros vizinhos. A
classe média reclama e tenta se organizar, como pudemos ver no manifesto
de indignação de Maria Lúcia Massot, moradora de uma área de classe média
no Rio de Janeiro, que teve subitamente seu muro de fundo como única
separação entre sua casa de classe média e a favela, desde a aprovação do
Programa Favela- Bairro, em 1990: ―As áreas próximas às favelas são
consideradas áreas favelizadas, aonde tudo é permitido em nome do social e
as favelas continuam a crescer até atingirem os muros das construções
legalizadas da classe média que passam a ser seus limites‖.
Ela prossegue fazendo seu diagnóstico e contabilizando as perdas que
sofreu com a implantação do projeto Favela-Bairro na sua vizinhança.
Pelo contrário, visando exclusivamente o lucro fácil,
aproveitadores iniciaram um processo de favelização dos lotes
lindeiros, até então ainda não atingidos pelas favelas, e a
fiscalização da prefeitura é inoperante. Invade-se tudo: morros,
canais, ruas, praças, propriedades particulares, sítios
tombados, surgem loteamentos clandestinos e favelas da noite
para o dia, às escâncaras, sem qualquer fiscalização.
Aguardam o Favela-Bairro e a urbanização prometida pelos
governantes.42
Maria Lúcia percebe que os mais carentes brevemente serão expulsos
com a valorização dos imóveis nos Favelas Bairro, que passarão a ser
42
Manifesto de Maria Lúcia Massot. Disponível em <http://favelabairro.orgfree.com/page3.html.>. Acesso em: junho de 2010.
108
comercializados como imóveis de classe média. Ela diz que desde a aprovação
da lei orgânica em 1990 pululam ―comércios sem alvará, quartos e lojas de
aluguel, pertencentes sobretudo a aproveitadores que vivem fora das favelas‖
porque a população já percebeu as oportunidades de negócios que ainda
burlam a formalidade, por estarem localizados entre a formalidade e a
informalidade, na fronteira entre legalidade e ilegalidade, servindo-se desta
situação transitória.
A isenção de pagamento de impostos desta população de
―aproveitadores‖ costuma irritar a classe média, sempre sobrecarregada com
os tributos que são impostos pelos governos e a moradora percebe que se
encontra no limite da habitabilidade quando o muro de sua propriedade
estancou a favela, no lugar da intervenção do Estado, apenas uma pilha de
tijolos a separa da assustadora informalidade habitacional.
A classe média novamente se vê expulsa. Imóveis são
vendidos a preço vil. Alguns privilegiados conseguem morar em
condomínios fechados. A maioria não tem opção. Ou aceita a
favelização ou procura outro lugar para morar. É entretanto a
classe social que mais impostos paga, obrigada a descontar IR
na fonte, pagar as prestações intermináveis do SFH, o IPTU, e
quando constrói é obrigada a seguir a legislação, caso
contrário é penalizada com multas e embargos.43
Os nenês famintos
Nos anos 70, Vilém Flusser (1983, p. 20 - 22) faz predições deste futuro
instável testemunhado por Maria Lúcia, no qual a segurança dos lares
burgueses deixaria de existir. O primeiro sintoma de instabilidade que o autor
identifica são as migrações de nordestinos em direção ao sul do país,
especialmente para São Paulo, e a conseqüente aparição massiva dos
migrantes na paisagem urbana. Flusser refere-se aos migrantes como ―nenês
famintos‖, por serem submetidos ao tratamento assistencialista por parte do
poder público, que investe na canalização dessas populações para a periferia
43
Manifesto de Maria Lúcia Massot. Disponível em <http://favelabairro.orgfree.com/page3.html.>. Acesso em: junho de 2010.
109
como estratégia de controle e proteção da cidade incluída. O que Flusser
flagra é justamente o movimento dessa recente população na cidade, e
profetiza precocemente que os ―nenês‖ não permaneceriam nas periferias e
que, descontentes com as distâncias dos centros financeiros e da falta de
infra-estrutura, retornariam para o centro da cidade para ocupar os espaços
públicos e alterar definitivamente a paisagem da cidade. O autor recomenda
que todos, não só os marginalizados, captem esse movimento como parte
inexorável da urbanidade a partir de então.
Está se processando profunda modificação da forma como moramos. Modificação comparável apenas àquela no início do neolítico, quando passamos ao estagio sedentário. Estamos abandonando a forma sedentária de vida. Estamos de mudança, indivíduos e grupos. Observador distanciado da atualidade terá imagem de formigueiro espantado por pé transcendente. (FLUSSER, 1983, p. 22)
Atualmente podemos verificar que o refluxo dessas populações para o
centro de São Paulo aconteceu e acontece diariamente e a luta pelo centro
está cada dia mais acirrada. Os ―nenês famintos‖ competem - tribos contra
Estado - com a especulação imobiliária e a revitalização dos centros das
grandes cidades, promovida pelo poder público em consórcios com a iniciativa
privada, para a possível recuperação das áreas centrais como pólo atrativo de
produção de capital.
Flusser, mesmo reconhecendo que ―lar‖ não é necessariamente um
lugar fixo, e que perdê-lo não significa ter que sair ou ser expulso, continua
ameaçando ironicamente a segurança do seu leitor - o paulistano da classe
média dos anos 70, já bastante dilapidado de seus bens pelas políticas
desenvolvimentistas empreendidas pelo governo Federal. O autor deseja
mostrar a fragilidade do território sagrado do ―lar‖ burguês e a dificuldade da
classe média em lidar com sua parcela de responsabilidade pelas migrações. A
cidade burguesa se vê profanada por hordas de subdesenvolvidos
maltrapilhos. O autor destrói o sentido do lar burguês, subitamente frágil, diante
das novas realidades, o que significaria o mesmo que ―ter que viver em
ambiente inabitual, portanto inabitável‖. (FLUSSER, 1983, p. 24)
110
Foto de Michel Filho para "O Globo"
Segundo Delgado (2007, p. 52), ―logo se descobriu que aquele interior
doméstico também estava afetado pelas inclemências das quais as vítimas do
mundo moderno procuravam se proteger a qualquer custo. Também nesse
dentro fracassado se reproduziam a mentira e a insegurança de fora‖. E esse
fora incerto - que invade a fé na família como unidade mínima de socialização -
é traduzido na perda da cidade pela dissolução em um urbano desconhecido,
em uma cidade de vários centros difusos, bairros de periferia ligados ao
restante da cidade apenas por neutras autopistas.
A família teve sua porta arrombada e por isso, ―empurrou o indivíduo
para um auto-aquartelamento em sua reserva natural de autenticidade, (...)
último refúgio para uma verdade inabalável‖ (DELGADO, 2007, p. 56). O
externo ameaça a consistência interna, tomada como o bem maior que
devemos defender. O ―dentro‖ que se pode garantir neste mundo descentrado
é o ―eu‖, individualizado em grau máximo. Uma comunidade funcionará
enquanto tal apenas na medida da causa comum da defesa do direito de ser
―eu‖, que foi o que parece ter sobrado do desmanche social.
111
Está aí o resultado do individualismo impresso na cidade: as
segregações definem territórios por preponderância de influências e por
consumos categorizados. Classes solventes constroem ilhas de segurança
com redes de serviços intramuros, exclusivos e proporcionais ao recurso
sócio-econômico. São os condomínios, os shopping centers, os centros
empresariais e até mesmo ruas de comércio, nas quais os muros construídos
não existem, mas a segregação se dá a partir da seleção de um público-alvo
consumidor daquele espaço, portanto, de qualquer modo, os ―excluídos‖ não
têm porque estar ali. São segregados pela recusa - escancarada em seus
corpos, roupas e pertences - do controle previsto nos planos urbanísticos
modernos. Os moradores de rua, ocupando espaços de maneira insolente,
denunciam direta ou indiretamente o insucesso dos urbanistas que, distantes
das micro-narrativas do cotidiano, reportam-se à sociedade como
especialistas, ou seja, profissionais que garantem a segurança do patrimônio e
dos cidadãos através da organização clara dos espaços e de suas funções.
Se os pobres não conseguirem permanecer migram segundo duas
lógicas: ou buscam no centro melhores preços em habitações decadentes, tais
como cortiços e ocupações, ou fixam-se nas periferias que, se por um lado
impõe-se a falta de infra-estrutura, por outro favorece a autoconstrução e a
―liberdade urbanística‖ em lotes clandestinos, distantes do interesse e da
supervisão do poder público. (ABRAMO; FARIA, 1998)
Pulsões de valorização, desvalorização e revalorização do solo urbano
contribuem para a circulação dispersa dos ―nenês‖ pela cidade, que seguem
resistindo à força centrífuga que os empurra para fora das fronteiras da cidade.
Movem-se como ―navegantes nômades‖ (DELEUZE; GUATTARI, 2002, p.
186)44. Por mais que essas populações nômades sejam vigiadas e a cidade seja
esquadrinhada pelos radares da polícia e pelos diagnósticos sociais, a
permanência dos ―nenês‖ nos centros superpõe-se à organização imposta pelo
Estado. O controle não extingue sua navegação errante.
44
Deleuze e Guattari citam a navegação nômade, empírica e primitiva, guiada por ventos, ruídos, cores e sons do mar, anterior às determinações da longitude e da astronomia. (2002, p. 186).
112
Termos como dobra, brechas, nomadismo, plataforma ou platôs são não somente metáforas geográficas e geológicas como também uma tentativa de organizar a diversidade espacial. Instalação, fluxo, produção ou intempestivo são também termos que procedendo das experiências estéticas contemporâneas se convertem em verdadeiras categorias filosóficas.45(SOLA-MORALES, 2002, p. 72)
A cidade libera buracos e trincheiras como formas de resistência
nômade, são ―imensas favelas móveis, temporárias, de nômades e trogloditas,
restos de metal e de tecido, patchwork, que já nem sequer são afetados pelas
estriagens do dinheiro, do trabalho ou da habitação. Uma miséria explosiva...―
(DELEUZE; GUATTARI, 2002, p. 189). Os controles impostos não param de ser
transgredidos, mas a cidade também abriga sistemas que exigem tradução, e
para além da migração centro–periferia–centro-etc., o que resiste são as
passagens, as alternâncias e as sobreposições.
O espaço liso e o espaço estriado, - o espaço nômade e o espaço sedentário, - o espaço onde se desenvolve a máquina de guerra e o espaço instituído pelo aparelho do Estado, - não são da mesma natureza. Por vezes podemos marcar uma oposição simples entre os dois tipos de espaço, outras vezes devemos indicar uma diferença mais complexa, que faz com que os termos sucessivos não coincidam inteiramente. (DELEUZE; GUATTARI, 2002, p.179-180)
O conceito de liso e estriado de Deleuze e Guattari (2002, p. 185 - 188)
nos ajudam a entender como as relações entre o Estado e o informal operam
em jogos para além das oposições. Para os autores, o espaço estriado é
comparável às tramas de um tecido urdido no tear. Há o lado direito e o avesso,
a trama se desenvolve em direções ordenadas. O espaço estriado entrecruza e
organiza os elementos fixos e variáveis, vertical e a horizontal, portanto
assemelha-se à máquina do Estado. Já os espaços lisos são comparáveis ao
feltro, um aglomerado coeso de filamentos, um sólido flexível que não tem lado
direito nem avesso, desenvolvendo-se igualmente em todas as direções. O
espaço liso aproxima-se do espaço do informal pois ―dispõe sempre de uma
45
Termos como plegamiento, greta, nomadismo, plataforma ou platôs non son solo metáforas
geográficas y geológicas sino um intento de organizar la diversidad espacial. Instalación, flujo,
producción o intempestivo, son también términos que procediendo de lãs estéticas
contemporâneas se convierten em verdaderas categorias filosóficas.
113
potência de desterritorialização superior ao estriado‖ (DELEUZE; GUATTARI,
2002, p. 187), porém as relações, segundo os autores, não se dão apenas no
sentido da ocupação da organização diabólica do estado (estriado) sobre as
potências em devir do liso (informal). Os autores ressaltam a importância não da
polarização, mas da passagem de um estado a outro, ou, em outras palavras,
trata-se da tradução. Traduzir para Deleuze-Guattari é a passagem do liso ao
estriado que consiste, certamente, na compreensão, o que significa domar,
codificar e metrificar o liso, mas a intromissão da estriagem, ao mesmo tempo o
que propaga, renova e estende o liso. ―A ciência maior tem perpetuamente
necessidade de uma inspiração que procede da menor; mas a ciência menor
não seria nada se não afrontasse às mais altas exigências científicas, e se não
passasse por elas‖. (DELEUZE; GUATTARI, 2002, p. 195)
Os dois tipos de espaços operam na cidade em jogos ―dessimétricos‖, ou
seja, distintos, mas não opostos, ambos existindo graças às misturas entre si: o
espaço liso não para de ser traduzido, transvertido num espaço estriado; o
espaço estriado é constantemente revertido, devolvido a um espaço liso
(DELEUZE; GUATTARI, 2002, 185).
Os ―nenês famintos‖, os ambulantes, os moradores de rua, escancaram
na existência nômade na cidade como um revide à força da estriagem. Ser
nômade não significa necessariamente o eterno ir e vir, podendo mesmo
significar uma permanência, resistir aos estriamentos dos espaços justamente
por não migrar.
São nômades por tentarem manter um espaço de intensidades, no qual
―prossegue o afrontamento entre o liso e o estriado, as passagens, a
alternância, e superposições‖. A urbanidade comprova a todo instante a
ineficiência da classificação, do rastreamento das populações nômades e da
circunscrição de seus espaços ―lisos‖, como estratégia de proteção. É que a
cidade continua sendo esburacada pela vida urbana, abrindo brechas apesar e
por causa da ―estrialização‖. Uma ―cidade menor‖ introduz-se numa ―cidade
maior‖, ou seja, esses movimentos insistindo em acontecer.
114
Ao mesmo tempo em que resistem aos sistemas de controle pela
permanência, reivindicam a tradução de sua marginalidade, provocando mais
deslocamentos. Novamente podemos enxergar esses fluxos urbanos como as
correntes marítimas, que acontecem a partir do encontro de diferentes calores
das águas, trazendo na correnteza elementos de longe ou do fundo,
esquecidos.
Há como viver sem temer ser esmagado pelo ―pé transcendente‖ de que
fala Flusser? É preciso entender que a ―cidade menor e a cidade maior‖
(Deleuze-Guattari) não param de se influenciar, isto é, a cidade maior inspira-
se na cidade menor e vice-versa. A cidade é espaço de tradução da
urbanidade, suas brechas são fronteiras tradutórias das quais podem sair
novos textos urbanos ou a vitória (transitória) da cidade maior sobre a menor. A
questão que Flusser apresenta é um contraponto ao cinismo do urbanismo
atual: é impossível e ineficaz represar e neutralizar os nenês nas periferias e
não se render ao território-desterritório da vida urbana.
Quando esbarramos em carrinhos de catadores de papelão
transformados em dormitórios provisórios e ambulantes sob viadutos e
marquises, somos tomados por consternação, mas também podemos aceitar,
se nos dispusermos a tanto, o convite à edição de nossos sensos de
permanência e transitoriedade, de público e privado na cidade.
115
Capítulo 3: vida nas Ruas
Ética para olhar o informal
Não se trata de estetizar a miséria, a pobreza dos outros, de forma alguma,
mas de destacar o que há de vivo, de intenso nas configurações do informal e
extrair dessas intensidades o que há de político, de invenção de vida. Foi assim
que terminou nossa conversa depois de olharmos as fotos que o Marcelo havia
feito.
Marcelo Min, o fotógrafo que realizou o ensaio fotográfico deste capítulo,
narrou as impressões de sua viagem ao Haiti, antes do terremoto de 2010. Na
ocasião de sua visita ao país, foi organizado um passeio monitorado aos
jornalistas na enorme favela de Porto Príncipe, a Cité Soleil, que mergulha na
escuridão ao cair do dia porque não há luz elétrica. Marcelo contou que o calor
é extremo e que somente ao entardecer a temperatura ameniza um pouco. A
comunidade que durante o dia se arrasta letargicamente, ganha uma vida
pulsante durante a noite. As populações vão para fora dos barracos e
mergulham na escuridão com olhos de gato. Comércio, banho, trabalhos,
música, tudo é feito na escuridão, que só é quebrada pelas luzes de velas e
fogueirinhas aqui e ali. A vida é radicalmente vivida nas ruas. As pessoas
encostam-se em qualquer lugar para dormir no chão, direto no asfalto. Às
vezes delimitam áreas do chão com cadeiras para fazerem dormir os bebês,
também direto no asfalto.
odemos dizer que a ausência do Estado Haitiano na proteção e cuidado
de seus cidadãos determina esse modo assustadoramente precário de vida,
que inclui fome, doença, violência e miséria, que em conjunto constitui-se como
a realidade menos desejável do mundo. Porém, ao mesmo tempo, há aspectos
que desviam da miséria justamente por divergir de qualquer intervenção
retificadora que o Estado possa promover, que é a do uso coletivo dos
espaços, porque ali a vida só se sustenta em conjunto. A rua, espaço público
por excelência, é apropriado pelo haitiano para usos que, no Brasil, por
exemplo, acontecem na esfera do privado e do íntimo: banho, alimentação,
repouso. Em países nos quais o estado ainda tem a função de regular tais
116
usos, a apropriação do espaço público é reprimida em nome das normas de
segurança urbana e da dignidade humana, pautadas na idéia de que moradia é
um direito.
Foto de marcelo Min no Haiti, favela Cité Soleil, antes do terremoto
No Haiti a vida na rua é resultado da miséria, mas também é cultura.
Não cultura miserável, o crivo não pode ser comparativo. Mas a vida voltada
para fora é uma tendência forte no continente e, ainda que a habitação seja um
direito constitucional, viver a rua como espaço de usos coletivo é uma
configuração que não se assenta exclusivamente na pobreza. A composição
poderia ter sido outra não fosse o calor insular, a sobrevivência coletiva, a
ausência do Estado, etc. Ocupar a rua é tudo isso, mas tudo junto, operando
em zigue-zague.
Apropriar-se de uma coisa não significa possuí-la, mas reconhecê-la como própria, no sentido de apropriada, o que equivale dizer, apta e adequada para algo. Por isso, ao menos conceitualmente, a rua ou praça, enquanto espaços públicos, não podem reconhecer senão usuários, ou seja, indivíduos que se apropriam delas ao usá-las e somente enquanto o fazem. Então, esse princípio de livre acessibilidade, do qual depende o
117
exercício da natureza deste espaço como sendo público, se vê matizado na medida em que quem arroga sua titularidade – a Administração, que entende o público como o que lhe pertence – pode considerar inaceitáveis e inadequados – o que equivale dizer inapropriados – certos usos que não se ajustem às suas expectativas modeladoras do que deveriam ser os cenários sociais por excelência. (DELGADO, 2005)46
Esse aspecto vibrante que Min experimentou no Haiti é cotidianamente
vivido também em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Havana. Persiste nestas
cidades a sensação de que a ―realidade é irrepresentável, puro devir, puro
sentido‖ (Daniel Lins) e por isso mesmo o que conseguimos formalizar foi a
narração de mini-epopéias urbanas, nas quais foi possível, momentaneamente,
habitar demolições de sentido. As fotos não são ilustrações ou representações
do terrível e da miséria para provocar um choque que nos tire da inércia dos
sentidos. Desejamos uma composição, um mosaico intensivo de potências
geradoras de sentido, muito mais fortes, onde o radar do poder central falha.
Mas se o poder central falha em determinados lugares, há que se
lembrar que o mesmo radar, por insistência, detecta e captura aquilo que
desejava desbaratar: as potências do informal. É o movimento, do centro às
margens e das margens ao centro, uma correnteza necessária para a
constituição da urbanidade. Trataremos então não tanto de quem venceu o
embate, mas do conjunto de forças que estão em jogo em determinados
nódulos urbanos. Forças centrífugas e centrípetas constituindo redemoinhos
nos fluxos que se desejam regulares e redemoinhos sendo apaziguados por
conseqüência da regularização dos espaços e das relações. São zigue-zagues
deleuzeanos, fronteiras mestiças e naufrágios urbanos.
Os territórios escolhidos para serem olhados tiveram como critério
primeiro a importância da arquitetura e do urbanismo nas relações e usos,
porém esta importância determina mais do que a funcionalidade dos espaços 46
Livre tradução: Apropiarse de una cosa no es poseerla, sino reconocerla como propia, en el sentido de apropiada, es decir apta o adecuada para algo. Por ello –al menos conceptualmente– la calle o la plaza, en tanto que espacios públicos, no pueden conocer sino usuarios, es decir, individuos que se apropian de ellas en tanto que las usan y sólo mientras lo hacen. Ahora bien, ese principio de libre accesibilidad, del que depende la realización de la naturaleza de ese espacio en tanto que público, se ve matizado en la medida en que quienes se arrogan su titularidad –la Administración, que entiende lo público como lo que le pertenece– puede considerar inaceptables e inadecuados –es decir inapropiados– ciertos usos que no se adecuan a sus expectativas de modelación de lo que deberían ser los escenarios sociales por excelencia.
118
ou o cumprimento do programa original. São os usos funcionais (abrigar-se,
locomover-se, etc.) mesclados ao intrincado, noduloso, tumoroso, proliferante,
insolente da informalidade.
Em primeiro lugar a rua: fronteiras mestiças do urbanismo barroco
A rua faz as celebridades e as revoltas, a rua criou um tipo
universal, tipo que vive em cada aspecto urbano, em cada
detalhe, em cada praça, tipo diabólico que tem dos gnomos e
dos silfos das florestas, tipo proteiforme, feito de risos e de
lágrimas, de patifarias e de crimes irresponsáveis, de abandono
e de inédita filosofia, tipo esquisito e ambíguo com saltos de
felino e risos de navalha, o prodígio de uma criança mais
sabida e cética do que os velhos de setenta invernos, mas cuja
ingenuidade é perpétua, voz que dá o apelido fatal aos
potentados e nunca teve preocupações, criatura que pede
como se fosse natural pedir, aclama sem interesse, e pode rir,
francamente, depois de ter conhecido todos os males da
cidade, poeira d'ouro que se faz lama e torna a ser poeira - a
rua criou um garoto! (DO RIO, 2007, p. 27)
Entre as instituições e os territórios estruturados da cidade, as ruas e os
espaços públicos configuram-se como os lugares mais dinâmicos; só neles a
sociabilidade urbana é plena. A rua contrapõe-se à cidade, pois ainda que
possa ter um traçado regular, sua vivacidade não é exclusivamente
determinada por ele. A cidade, ao contrário, é representada pelo que há de
estável nela – o construído. A rua é alimentada pelo acontecimento e pelo
instante ao passo que a cidade deseja a perenidade da pedra.
Oh! Sim, as ruas têm alma! Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres, delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem história, ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas, spleenéticas, snobs, ruas aristocráticas, ruas amorosas, ruas covardes que ficam sem pinga de sangue... (DO RIO, 2007, p. 30)
O excesso de contingências, próprio dos acontecimentos da rua, trata
de torná-la lugar dos desvios e do descontrole, enquanto a cidade deseja o
contrário, o espaço do apaziguamento e da clareza. ―Porque (as ruas) são
zonas de difícil ou impossível vigilância, tornam-se com frequência, cenários de
todos os tipo de deserções, desobediências, desvios ou insurreições, tanto
massivas quanto moleculares‖ (DELGADO, 1999, p. 178).
119
A rua torna impossível a realização do desejo autoritário de
planejamento pleno da cidade, pois os usuários não se contentam em seguir o
programa proposto nos projetos. O desenho é o pano de fundo sobre o qual a
sociedade urbana vai ―amaciando‖ as linhas duras do desenho, traçando rotas
movidas por infinitos e insondáveis apelos, que o traçado idealizado jamais
contemplará totalmente. Há um labirinto de ruas que só a aventura pessoal
pode penetrar e um labirinto dos signos que só a inteligência racional pode
decifrar (...) (RAMA, 1984, p. 53).
Para Delgado (1999, p. 181 – 183) a cidade contém duas expressões
paradoxais: uma é a cidade planejada, resultado da determinação política do
planejamento. Seus sistemas urbanos são inteligíveis e funcionais. A outra é a
cidade praticada, na qual o sujeito é que determina como vai mover-se na
trama, propondo novas rotas além das planejadas pelo desenho,
destacando que essa codificação alternativa que o usuário faz da rua não gera algo parecido com um continente homogêneo e ordenado, mas sim um arquipélago de microestruturas fugazes e mutáveis, descontinuidades mal articuladas, incertas, embaralhadas, contestáveis, impossíveis de subjugar. (DELGADO, 1999, p. 182)47
A rua é a superfície complicada, na qual os monumentos são resíduos
fugazes dos acontecimentos que ela protagoniza.
Delgado parece ter percebido a efemeridade das relações que
transcende a materialidade da cidade, ainda que na Europa as cidades sejam
centros mais atrelados aos componentes de perenidade - dado que aquelas
cidades são milenares. É mais penoso para o europeu lidar com a efemeridade
dos eventos cotidianos descontrolados do que no Brasil e no restante da
América Latina, onde a efemeridade é vivida como um processo intenso e
ininterrupto de constituição em palimpsesto da urbanidade.
No urbanismo latino-americano fronteiras se estabelecem e se diluem
tão rapidamente que para captá-las devemos seguir as pistas mínimas dos
47
A destacar que esa codificación alternativa que el usuario hace de la calle no genera algo pareceido a um continente homogéneo y ordenado, sino um archipélago de microestruturas fugaces y cambiantes, discontinuidades mal articuladas, inciertas, hechas um lío, dubidativas, impossibles de someter.
120
eventos efêmeros, insignificantes e informes. São narrativas cotidianas que dão
conta da vida nestas cidades, mas que certamente não pertencem ao universo
do êxito ou do sucesso formal. São os urbanismos duvidosos, incompletos,
sub-urbanismos, proto-urbanismos...
Edifício Copan
Dias de pesquisa de personagens para o documentário 3 Edifícios, de
Jurandir Muller. 48
Vista aérea de São paulo com o edifício Copan. Foto sem autoria em fotosedm.hpg.ig.com
48
A pesquisa de personagens para o documentário-instalação do diretor Jurandir Muller consistiu em visitas diárias ao edifício durante dois meses para a abordagem de moradores. O objetivo era, através da gravação de entrevistas com moradores em seus apartamentos a fim de perceber de que modo a arquitetura moderna e seus discursos sobreviveram até hoje. O documentário se estruturou num mosaico de 24horas ininterruptas de gravação nas quais foram gravadas entrevistas e escolhidas paisagens arquitetônicas do edifício e do entorno que mostrassem a realidade atual do prédio concebido sob os postulados do modernismo. Foram três edifícios modernistas documentados do mesmo modo: o Copan em São Paulo, o JK em Belo Horizonte e o Pedregulho no Rio de Janeiro. A experiência de levantamento de personagens no Copan durou cerca de dois meses até o dia da gravação. No edifício Pedregulho, do arquiteto Eduardo Reidy, somente participei da gravação de 24 horas como assistente de produção. No JK não participei de nenhuma ação. A captação das entrevistas se deu entre setembro e novembro de 2009
121
Há como falar que o edifício Copan é barroco? Há aproximação possível entre
uma igreja de Ouro Preto e o prédio modernista?
Não queremos provar que um objeto é ou deixa de ser barroco, mas
desejamos as possibilidades quando certa realidade é observada a partir do
barroco. Se a diferença se afirma demais, ela se torna identidade e o olhar
barroco não deseja a essência, mas a existência.
“Os físicos referem-se a esse ―mínimo barroco‖ – mínimos de variedade e complicação – que qualquer sistema vivo requer para sobreviver‖ (DELGADO, 1999, p. 104).
―O Copan é um navio encalhado em São Paulo, uma mistura de Arca de
Noé com Circo Vostok ―(Geraldo Anhaia Mello). Encalhou precocemente, na
fase do projeto, porém mais de duas mil pessoas habitam a velha nau. Oscar
Niemeyer pulou do navio prevendo o encalhe quando o Bradesco assumiu a
massa falida da CNI, que construiria o Copan. A intervenção do banco salvou a
construção do prédio residencial, mas truncou a construção do hotel em terreno
anexo, que contaria com piscinas e o teto jardim, integrando-se ao Copan
através de uma marquise. O Bradesco se apropriou da área prevista para o
hotel para construir um prédio administrativo do banco, que não dialoga em
nada com o edifício modernista. Uma vez mutilado o programa inicial do
complexo residencial e hoteleiro, Niemeyer entregou a execução da obra para
Carlos Lemos. Depois de sua saída do projeto, os blocos E e F também
tiveram suas tipologias alteradas, passando de espaçosos três quartos para
tipologias quitinetes e quarto-sala. Esses apartamentos menores, junto com o
bloco B, atenderiam a demanda de moradia no centro a baixo custo numa
época em que o centro velho era ocupado pela aristocracia paulistana.
Outra séria modificação no projeto original foi a compra pela Companhia
Telefônica da área destinada ao jardim suspenso do Copan, no pavimento
acima das lojas do térreo. Os pilotis ali existentes, que sustentam a laje de
transição de três metros de altura, estão encobertos por vidros causando "uma
mutilação estética", como enfatiza Carlos Lemos. Mas apesar de todas estas
mudanças no projeto, foi tarde demais para Niemeyer abandonar o Copan, sua
122
marca foi mais forte do que a desfiguração promovida pelo Bradesco, além do
que, a passagem do tempo reafirmou a dignidade do casco do edifício. Como
em todo naufrágio, novas vidas floresceram nos escombros das idealizações e
o velho edifício continua vibrante.
O edifício, um dos cartões-postais paulistanos, já teve momentos de
glória, de decadência e de recuperação. O Copan vive atualmente o resultado
de uma longa administração condominial de pulso forte, que eliminou
atividades tais como prostituição e venda de drogas explícitas, principalmente
nos corredores do bloco B, tendo como contrapartida a recuperação do valor
econômico dos apartamentos. Os moradores, principalmente os mais antigos,
apóiam incondicionalmente o síndico atual. Morar no Copan, hoje, pode ser
sinal de status social, e o edifício é um símbolo ―cult‖ dos paulistanos. Porém
não são todos os que concordam com as medidas retificadoras do condomínio
e há vários focos de resistência que, no entanto, não conseguem, e talvez nem
desejem, retirar o síndico do cargo. Do mesmo modo o síndico percebe que
tem poder para reprimir, mas não vai conseguir eliminar os feixes de desvios
que correm pelos corredores do edifício. Há informalidade suficiente para não
deixá-lo seguro demais de sua posição.
O Sr. Affonso, o síndico, está há mais de 15 anos no comando da
administração do edifício. Seu escritório funciona como uma mini-prefeitura e,
para tanto, assume poderes polêmicos que alcançam a esfera da vida privada
dos moradores, sempre em nome das leis do Copan. Por exemplo, travestis e
prostitutas podem morar no prédio desde que ―trabalhem‖ fora do edifício e não
circulem ―montadas‖ pelos corredores. Suas roupas devem ser decentes,
―normais‖. A venda de drogas dentro do edifício é reprimida, embora não possa
ser extinta, já que a demanda interna é alta. A tolerância está condicionada à
invisibilidade das transações. Geraldo Anhaia Mello nos dizia que há traficantes
morando no edifício, mas tudo isso é velado com um ar de lenda urbana; todos
sabem, mas ninguém dá os contatos.
No edifício sobram histórias poéticas e outras duras, algumas
nitidamente fantasiosas e por fim as escatológicas, e todas constroem
ininterruptamente a história do Copan. As lendas começam já nos números de
123
habitantes do prédio. Céticos dizem que a população é de cerca de dois mil
moradores, mas a estimativa preferida são de cinco mil pessoas, o que tornaria
o Copan um verdadeiro cortiço vertical... Mas esperamos que muitos dos casos
contados não sejam nunca averiguados ou interpretados. Devem permanecer
―nas fronteiras da história não realizada, da história possível: nelas vemos como situações imaginadas engendram – por força do potens49 - uma germinação, cujo valor não cede pelo fato de viver na margem da história orgânica, poderosa; nela nos esperam as surpresas do absurdo criador histórico, tão valiosas como os momentos verificados nos anais do mundo objetivo. (PRIETO, 1988, p. XXIV)
O Copan transcende a poética de suas narrativas particulares para
constituir-se como uma massa móvel de temporalidades ativas, no ―tempo
poemático‖ (Lezama Lima) que acolhe o que não pôde configurar-se como
tempo clássico – a linha dura da cronologia - mas como ―esferas de tempo
negadoras do tempo‖ (PRIETO, 1988, p. XXIV), ou temporalidades paralelas e
concomitantes às dos ―tempos dos grandes relatos‖ (Severo Sarduy), mas no
―contínuo da imagem‖( Lezama Lima).
En cuanto espacio próprio de lo poético, no solo puede configurarse en el texto; tambien en el mundo objetivo, algunas peculiares confluências de elementos diversos suelen fundar uma zona de mistério, uma zona de poesia: son las llamadas coordenadas poéticas. ―uma mágica, imponderable combinatória espacial, tocada apenas(...) por una temporalidad reverente llegada como um halo‖ es capaz de procrear uma situación poética, absolutamente extraliterária. (PRIETO, 1988, p. XXI)
O edifício não é só palco das histórias, como também colaborador na
constelação de situações tão excepcionais que ―penetram no invisível poético‖
(Lezama Lima) das realidades que ali se apresentam. Arquitetura e poética se
aproximam no Copan, são ―com-possibilidades‖ (Deleuze) de vínculo com o
mundo.
49
O potens, ou potência é uma das chaves do pensamento poético de Lezama, segundo Abel Prieto (Lezama Lima: 1988, XXIII). Trata-se de aniquilar a dualidade homem x história para complicar de vez esta relação. Para Lezama, a supra-história, essa ―outra‖ história, cujos elementos estão cristalizados na memória poética do homem oferece a infinita possibilidade de recombinar fatos geográficos e temporais distantes em jogos mágicos, livres e absurdos, subvertendo a obediência à história realizada, clássica e formal. Ele clama pela invenção da história O potens lezamiano se aproxima sobremaneira da idéia de virtualidade em Deleuze. O virtual para Deleuze não é o que não existe, mas é o real em forma de potência.
124
A funcionalidade modernista está embutida em sua estrutura edificada e
o fracasso da utopia que ronda o edifício é, não obstante, o gatilho de sua
vitalidade. O modernismo do Copan é espectral, cuja ideologia não está no
vivido, mas ecoa na materialidade do construído, em forma de escombro e
poesia.
Fachada Copan. Foto de Regina Kalmann
Fachada posterior Copan. Foto Tuca Vieira
125
Os brises de soleil do prédio, elementos que identificam e tornam o
Copan mundialmente famoso são também o cenário de inúmeros casos de
suicídios e de quedas acidentais ali protagonizadas. Depois de tantos objetos e
pessoas arremessados ou despencados pelas janelas, ficou expressamente
proibido limpá-las pelo lado de fora dos apartamentos ou sentar-se nos brises
para apreciar o fim da tarde, e faz parte das lendas do Copan acreditar que o
síndico tenha mandado colocar câmeras de vigilância em pontos externos, nos
edifícios frontais à grande onda, a fim de controlar, identificar e multar aqueles
que desobedecerem à regra de segurança.
O edifício representa a desmesura de São Paulo nas dimensões e no
número de moradores. Sua população é equivalente a de uma pequena cidade,
tanto que os Correios decidiram designar para o condomínio do edifício um
CEP especial, 01066-900. E porque as tipologias dos apartamentos são muito
variadas, a população também é bastante diversa, tanto em termos
econômicos como em tipos de agrupamentos, familiares ou não. Há seis blocos
de apartamentos com portarias separadas. A famosa fachada com os brises de
soleil é a fachada principal do prédio. Os elementos horizontais amenizam o
gigantismo da massa construída. Como o centro da cidade é muito
densamente ocupado, não há vista frontal com afastamento suficiente da
fachada que permita a um transeunte observar dentro dos apartamentos. O
brise filtra esta visão, uniformizando a fachada.
No entanto a fachada dos ―fundos‖ do edifício, voltada para a Rua
Augusta é um vertiginoso mosaico de cores. A ausência dos brises engendra
movimentos muito mais variados do que a horizontalidade da onda frontal do
prédio. A face descarnada do edifício despe-se da máscara de ícone
arquitetônico, oferecendo a pulsação dos moradores que os brises escondem.
São as janelas dos quitinetes do populoso bloco B, apelidado como ―ala
psiquiátrica‖ por Anhaia Mello, que dizia que o número de doidos por andar é
altíssimo e que neste quesito ele se incluía, portanto era congruente que
morasse no bloco. Os apartamentos deste bloco podem ser ―quitinetes‖ ou
tipologias quarto-sala, com brises. Já no bloco D (D de Dollar, como diz o
morador Paulo) os apartamentos têm até 220m2.
126
O elevador do bloco B atende a dois andares por parada e entre seus
pavimentos há uma enorme rampa. O vão que se forma entre os andares ecoa
a movimentação nos corredores e os barulhos abafados vindos de dentro dos
apartamentos. O bloco B emite um estranho som intermitente de vozes,
passos, máquinas e TVs, além do encanamento, muito antigo, que solta
―gemidos‖ metálicos como se fosse realmente habitado por fantasmas. E para
completar, os corredores curvos do bloco B reproduzem a arquitetura
hospitalar, ―panóptica‖ (Foucault). São incontáveis as portas dos dois lados,
intercaladas em espaçamentos pequenos como de celas, que acompanham o
formato curvo da onda do edifício. Se estivermos no meio do corredor, não
temos a visão das pontas, o que gera uma sensação de estar sendo vigiado. O
efeito é realmente de um espaço disciplinar.
Portas, (...) assim também a delimitação encontra sentido e dignidade pela primeira vez naquilo que o movimento da porta faz perceber: a possibilidade de sair a qualquer instante dessa limitação para a liberdade. (SIMMEL apud DELGADO,1999, p. 29)
O síndico ameaça colocar câmeras de vigilância nos corredores, mas ainda
não foi possível instalá-las em tão grande quantidade. A vigilância no bloco B
restringe-se aos halls dos elevadores. A limpeza também é outra forma velada
de controle do síndico sobre a vida dos moradores, porque está associada à
cruzada moral empreendida no início de sua gestão quando - nos anos 80 e 90
- o lixo ocupava os corredores do bloco B. A vitória sobre a prostituição e o
tráfico explícito de drogas também eliminou o lixo dos corredores. Limpeza e
moralização tornaram-se sua bandeira de re-eleição. Os corredores são
lavados com máquina de pressão duas vezes por semana. Se alguma porta for
pichada, pintada de outra cor ou adesiva da será imediatamente restaurada na
cor amarelo pastel de todas as outras. O máximo que os moradores podem
fazer para personalizar suas portas é um tapete diferente ou um pequeno
enfeite, desde que não altere o padrão geral.
127
Corredor do Bloco B. Foto de caio Guimarães no flickr.com
No bloco B, os zeladores são menos formais do que nos outros blocos, pois,
acostumados com acontecimentos descontrolados e numerosos, tendem a ser
menos exigentes na liberação do acesso de visitantes, cujos dados são
anotados em um caderno. Eles conhecem os moradores, suas histórias de
amor, seus desafetos, seus problemas com o síndico e até costumam intervir
em brigas, quando chamados.
Os quatro elevadores que servem ao bloco são maquinários antigos,
datam da inauguração do edifício em 1966, com caixas revestidas de uma
fórmica ordinária, mas os metais cromados na cor dourada polidos com
capricho, a lentidão dos elevadores e os solavancos nas paradas, contribuem
para a atmosfera mitológica do Bloco B. A troca por maquinários novos com
seus inevitáveis painéis com botões digitais em aço inox, de efeito pobre e
128
hospitalar, está prevista, mas o dourado ainda enriquece as narrativas do bloco
mais instigante do edifício.
Ruas do Copan: modernismo e o “comum”
A urbanidade consiste nessa reunião de estranhos, unidos pelo impedimento, anonimato e outras películas protetoras, expostos às intempéries, e ao mesmo tempo, protegidos, camuflados, mimetizados, invisíveis. (DELGADO, 1999, p. 35)
Existe um interesse em comum por parte dos moradores em torno do
morar no Copan? Melhor dizendo, o edifício é capaz de juntar em torno dele
um coletivo ou uma espécie de ―endereço‖ social, uma congruência própria e
consciente dos moradores?
O que pudemos perceber nas entrevistas é que há uma consciência
geral de que habitar o Copan é uma experiência de urbanidade ímpar e
sentimos nas falas que o orgulho de morar no edifício é presente. Há também
uma disposição geral em conceder entrevistas e abrir a casa para visitações,
tendo em vista a massiva presença de estudantes de arquitetura e de
profissionais da mídia no local. Todos se admiram da vista de São Paulo que
se tem das janelas e parecem entender o valor arquitetônico do edifício. Muitos
apreciam a diversidade de pessoas que habitam o prédio.
Segundo Delgado50, o pensamento moderno pôs em circulação a idéia
de que entre espaço público e espaço coletivo há uma coincidência, a vontade
imperativa de conviver. Ou seja, ocupar o espaço público é ter interesses em
comum com os demais usuários daquele espaço e, mais, é ter interesse por
aquele ―outro‖ que ali se encontra.
Ora, para o consenso fabricado pelo modernismo se materializar, tanto a
arquitetura como o urbanismo prestaram-se à redenção do ideal da
comunidade perdida, aquela sempre pronta a se relacionar, mas que se
encontra impossibilitada de exercer essa ―característica natural‖ por uma
desordem espacial das cidades.
50
Delgado, Manuel. Lo común y lo colectivo, [s/d]. Disponível em: <http://medialab_prado.es/mmedia/0/688/688.pdef>. Acesso em: agosto de 2009.
129
Mas será que o exercício da urbanidade é a arte do encontro por
natureza? Quando andamos nas ruas passamos a maior parte do tempo
evitando proximidades e desviando de obstáculos, atentos à preservação de
nossa integridade física e do nosso anonimato em meio à multidão.
Delgado(1999, p. 183) diz ―o espaço urbano não é um lugar, mas é um ter lugar
momentâneo e reconfigurante do corpo‖. Como o instante urbano é efêmero,
não há como associar a urbanidade ao êxito duradouro, ―mas aos micro
sucessos: acidente, incidente, micro-espetáculo – emergência arbitrária‖ que
mais se parece com performances imprevistas encenadas não por atores, mas
por atuantes (DELGADO, 1999, p. 187).
Robinson Crusoé, o náufrago de todos os tempos, percebeu, devido à
sua imensa solidão na ilha Speranza que o ―outro‖, mesmo que em mini-
encontros contingenciais é aquele que ―nos arranca ao pensamento atual‖ e
que ―a simples possibilidade de seu aparecimento lança um vago luar sobre um
universo de objetos situados à margem da nossa atenção, mas capaz de a
todo o momento de se lhe tornar o centro‖. (TOURNIER, 1991, p. 32)
Percebemos no Copan atual ecos do desejo regulador modernista, na
qual a arquitetura deveria facilitar as relações de sociabilidade através da
racionalidade dos espaços. Por exemplo, o síndico tentou emplacar o uso do
teto como local para caminhadas, atividades ao ar livre, na tentativa de
reembolsar os moradores da ausência do jardim suspenso, mas o ambiente da
cobertura é árido e inadequado; o chão de cimento é transpassado por
encanamentos altos. Há muita interferência de micro-ondas por conta das
antenas de telefonia, além das casas de máquinas e das zeladorias que
impedem a continuidade do espaço, a todo momento interrompido por algum
destes obstáculos. Embora a vista 360º da cidade seja estonteante, a
atmosfera é de ficção científica e não esportiva.
Além de todos estes inconvenientes espaciais, há a limitação do acesso
ao piso pelos moradores, pois foram fixados horários nos quais a freqüência ao
teto é liberada e nesses períodos a vigilância é constante para evitar acidentes
e usos ilícitos. Fora dos horários estabelecidos, as portas permanecem
trancadas e as chaves ficam em poder dos zeladores. Segundo Anhaia Mello,
130
antes da revitalização sindical do Sr. Affonso, o teto era usado para churrascos,
consumo de drogas e banhos de sol de travestis e prostitutas seminuas.
Evidentemente o controle dos acessos visa evitar estes tipos de ocupação, que
Anhaia afirmava ser muito mais interessante do que encontrar o síndico
vestindo roupas esportivas fazendo seu jogging burocrático.
Outro vestígio de memória modernista é a integração do térreo do
Copan à paisagem urbana de São Paulo, que subsiste e cumpre seu papel
previsto. Se não é exatamente um aglutinador de sociabilidades, ao menos
integra a cidade ao edifício através dos serviços comerciais abertos à
população em geral, moradores ou não. As portarias dos blocos também são
acessadas por estas ruas internas. Niemeyer lançou mão desta conformação
espacial, imaginando que, em conjunto com o jardim suspenso, estariam
garantidas as condições de sociabilidade nesta arquitetura de escala quase
urbana.
A rua interna reuniria serviços, na perspectiva de que certas atividades
deveriam ser retiradas da esfera íntima da casa, liberando tempo para o lazer e
aumentando as áreas de estar nas células habitacionais. A ausência de
lavanderias na planta dos apartamentos é conseqüência desta idéia. O Copan
teve uma lavanderia coletiva no térreo, mas o serviço não vingou por muito
tempo, embora o ponto comercial tenha sido sucessivamente alugado por
comerciantes donos de lavanderias até os dias de hoje.
Barbearia e cabeleleiro mais antigo do Copan. Frame do documentário 3 edifícios.
Imagem de Marcelo Lacerda
131
Segundo os comerciantes donos de pontos, tais quais restaurantes,
lavanderia, locadora de vídeo, lan house e salões de beleza, mais da metade
do faturamento vem de clientes dos arredores do Copan, o que comprova que
a rua de serviços é uma forma muito interessante de garantir a permeabilidade
entre o prédio e a cidade, mas não como local de encontro. A locadora de
vídeo é um caso exemplar. O edifício fechou um acordo com uma distribuidora
de canais de TV a cabo em troca do espaço do teto para a instalação de
antenas. Todos os condôminos têm acesso gratuito à TV por satélite. Para quê
alugar filmes?, reclama o dono da locadora, que também assiste à TV gratuita
do Copan no estabelecimento. Ele atende mais os moradores da vizinhança.
Até a lavanderia Uósh - que nos pareceu ser um ótimo negócio num edifício tão
grande no qual a maioria dos apartamentos não possui área de serviço51 - tem
seu faturamento vindo de clientes de fora. Segundo a proprietária, seus clientes
são na maior parte os hotéis e flats da região, ―porque os moradores do Copan
não têm dinheiro para pagar lavanderia e se viram como podem dentro de
casa‖.
Mas um comerciante que trabalha bastante para os moradores e que
conhece muitas histórias do prédio é o discreto chaveiro do Copan. Ele
comenta que presta muitos serviços de arrombamento em casos de
falecimento e também em brigas de casais, quando as fechaduras são
trocadas na ausência de um dos cônjuges, que chega à casa e não consegue
entrar porque a fechadura foi trocada à surdina. Geralmente a polícia precisa
ser envolvida no imbróglio, para que ele não seja agredido.
Apesar da sensação de desconexão entre os moradores, separados por
portarias diferenciadas, há uma rede de solidariedade, de informações e de
notícias que corre de boca em boca e transcende os blocos. Os grandes
personagens do edifício são conhecidos, seja por conta dos problemas que
causam à ordem geral, seja por afinidades, ou por acaso, no elevador ou nos
51
Como dissemos antes, no projeto original a lavanderia deveria ser um serviço coletivo, não situado individualmente nos apartamentos. Esse é um dos postulados modernos que não tiveram aderência no Brasil. Parece importante para os agrupamentos familiares que a roupa seja lavada em casa. Essa diferença cultural não foi prevista em muitos projetos da época e, portanto, a lavanderia é improvisada dentro dos banheiros nos apartamentos menores e nos maiores muitos moradores executaram uma reforma para acomodar a área de serviço. A mesma coisa aconteceu com o edifício Pedregulho, de Affonso Eduardo Reidy, no Rio de Janeiro.
132
bares. O síndico e os porteiros também têm conhecimento das pessoas idosas
ou com necessidades especiais que vivem sós nos apartamentos e praticam
algumas verificações rotineiras para checar se estão todos bem, se precisam
de algum apoio.
Rua Unaí: o comum na sarjeta
Rua Unaí. Foto de divulgação do bar e restaurante Dona Onça.
―Se o poder político se ocupa do distante, do projeto, da perfeição, a massa se ocupa do cotidiano, do estruturalmente heteróclito‖. (DELGADO, 1999, p. 93)
Mais um território imprevisto parece ser o eleito para momentos de lazer
e de encontro: a Rua Unaí, conformada entre o Copan e o Bradesco. Essa rua
externa parece se encaixar como alternativa para a área da praça, playground
que faltou no projeto de Niemeyer, embora não disponha de nenhum
equipamento para atender tal demanda – todos sentam na sarjeta - a rua é
ponto de encontro de mães, avós, crianças e principalmente de cães e seus
donos. Os animais são mais numerosos do que as crianças. Perguntamos ao
síndico-prefeito porque os animais eram permitidos num edifício com regras
internas de limpeza e silêncio tão rígidas. Ele respondeu que não permitir é
impossível, pois seriam inúmeros os processos contra a administração
133
alegando dependência psicológica dos moradores em relação aos animais e
―isso é causa ganha pelos moradores‖.
Cachorros e donos na rua Unaí à noite. Foto de Geraldo Anhaia Mello
Rua interna de comércio. Frame do documentário 3 difícios. Imagem de Marcelo Lacerda
Cachorro na Rua Unaí. Sem autoria, no site www.dipity.com
134
A animação em torno dos bichos é intensa. O badalado estilista Walério
Araújo, que mora no edifício e tem uma loja-atelier no térreo, ajuda a promover
um desfile de modas para os cães do Copan - ele mesmo tem uma cadelinha
de raça que é modelo das roupas caninas que costura para o evento – junto
com a veterinária, que trabalha em uma das lojas petshop do térreo. Ela milita
na campanha de adoção pelos moradores do prédio de animais abandonados
no centro, e afirma que o grande número de casais gays e de idosos solitários
são os responsáveis pelo enorme número de cães de estimação no prédio.
A Rua Unaí é uma zona escorregadia entre o ―fora‖ e o ―dentro‖ das
delimitações do Copan. Apesar de ser pública para pedestres, essa rua ainda é
imantada pelas forças do edifício, que se derrama sobre a calçada. A rua é
engolfada pelo prédio, pela sombra da marquise, pela curva possessiva da
grande onda, tornando difícil a definição do que é público ou coletivo ali.
Os bares e comércios do térreo do edifício voltados para a calçada garantem
movimentação pública durante o dia todo. A rua também oferece acesso às
portarias dos blocos, servindo como atalho para quem vem de fora acessar
rapidamente os blocos desejados.
Embora prevaleça um ambiente neutro, de passagem, há momentos
específicos do dia em que os moradores fazem uso da rua como espaço de
lazer e de encontro. Nestes momentos é muito importante a visibilidade. Os
moradores desejam ser vistos e reconhecidos. Ali o síndico pode vigiar,
diagnosticar, controlar horários através das leis urbanas do silêncio, mas não
pode banir a ocupação. A Unaí funciona como adro do edifício, um grande hall
entre a efervescência do velho centro e os mistérios dos apartamentos.
No último blackout em São Paulo, em novembro de 2009, tivemos a
oportunidade de verificar a rápida re-configuração da Unaí como espaço
comum aos moradores. Naquele início de noite, o vai e vem era de moradores
voltando do trabalho para casa e do ―happy hour‖ nos bares. Quando a queda
de energia se prolongou por mais de uma hora, muitas pessoas confirmavam
pelos celulares que o blackout havia sido um evento em nível nacional. Saímos
do bar AMAM, localizado ao lado do Copan, em direção à entrada do café
135
Floresta na rua Unaí, onde já começavam a se acumular moradores. Como o
edifício conta com gerador para os elevadores, centenas de pessoas desceram
de seus apartamentos para observar a cidade no escuro. A rua foi ficando
cheia de gente e muitos se sentaram nas sarjetas compartilhando cervejas,
falando nos celulares em busca de notícias e olhando a confusão de faróis de
carros e buzinas no breu inédito da cidade. Até o síndico estava lá, sempre
vigilante, numa roda de conversa com uma senhora e um jovem transexual de
minissaia branca e prata, atrasado para seus compromissos.
Nos espaços públicos e semi-públicos, segundo Delgado (2007, p. 189),
em boa parte das relações impera a ―desatenção cortês: os princípios de
reciprocidade simétrica, nos quais os que se intercambia podem ser
perfeitamente o distanciamento, a indiferença e a reserva‖. Mas em situações
singulares ou emergenciais a indiferença transforma-se rapidamente em ―ajuda
mútua e cooperação espontânea. Para que isso ocorra é indispensável que os
atores sociais ponham entre parêntesis seus universos simbólicos particulares
e posterguem para melhor ocasião a proclamação de sua verdade‖
(DELGADO, 2007, p. 189).
A voz do Copan é ouvida ao longe como um coro sem solistas, sem
destaques, mas quanto mais perto e maior a infiltração no cotidiano do edifício,
mais nítido é o entrelaçamento das narrativas particulares com a arquitetura
onipresente do prédio. Não é uma voz em uníssono, mas uma intrincada
massa sonora. Foi mais fácil perceber o quanto a arquitetura e as realidades
particulares se entretecem depois de passar uma noite em claro perambulando
por elevadores e corredores, entrando nas esferas íntimas das casas para as
entrevistas, sempre em companhia do barulho da boate vizinha - a Love Story,
que funciona com grande estardalhaço de terça a domingo até ás 10 da manhã
- e ao amanhecer, perceber a inclemência do sol dentro dos apartamentos,
pois não há cortina blackout que impeça a luz de entrar pelas imensas janelas
de vidro, isso tudo depois de ouvir 24 horas de vozes singulares impregnadas
pelo edifício, que formam juntos, voz e arquitetura, um tecido cuja trama não
tem avesso.
136
No final das 24 horas, na última entrevista, o Copan fez encontrar em mim a
solidão pessoal de cada entrevistado. Vazava uma melancolia amplificada pelo
cansaço da noite em claro e a permanência da imagem, não do naufrágio
arquitetônico, mas do morar náufrago, como o Robinson de Tournier, que teve
que re-inventar sua humanidade a partir dos escombros do navio, brindando o
―outro‖ a partir de sua ausência.
Frame de documentário 3 Edifícios. Imagem de Marcelo Lacerda.
Sei agora que todos os homens trazem em si – e dir-se-ia, acima de si – uma frágil e complexa montagem de hábitos, respostas, reflexos, mecanismos, preocupações, sonhos e implicações, que se formou, e vai se transformando, no permanente contato com seus semelhantes. (...) O próximo, coluna vertebral do meu universo... Todos os dias meço quanto lhe devo, ao verificar novas fendas no meu edifício pessoal. (...)Quando um pintor ou um gravador introduz personagens numa paisagem ou na proximidade de um monumento, não é por gosto do acessório. As personagens dão a medida e, o que é ainda mais importante, constituem pontos de vista possíveis que, ao ponto de vista real do observador, acrescentam indispensáveis virtualidades. (TOURNIER, 1991, p. 47)
137
Edifício Pedregulho: o modernismo e o sol, naufrágio intensivo
Do nosso ponto de vista mais disciplinário como arquitetos urbanistas, o que nos interessa especialmente é o aspecto vital do informal. Aquilo que se manifesta como uma enorme energia de interação social, apesar da desordem visual e funcional, produto de sucessivas crises econômicas, da corrupção governamental e a falta de políticas públicas para suportar os acontecimentos. 52Jorge Mário Jaurégui
Foto por satélite do edifício Pedregulho, encontrada no sítio Google Earth
Uma moradora contou que a mãe usava a rua comum do térreo para
estacionar seu fusca. Um dia, ao invés de brecar a mãe pisou no acelerador e
o fusca arrebentou o guarda-corpo, lançando-se quase 10 metros abaixo,
caindo na mata. O pai foi avisado e veio correndo do trabalho, temendo pelo
pior; mas qual não foi a surpresa ao encontrar sua esposa bem, até demais,
tomando café na sala com as amigas. “Prejuízo mesmo foi o fusca”, conta a
52
Desde nuestra perspectiva, mas disciplinaria, como arquitectos-urbanistas, lo que nos interesa especialmente es el aspecto vital de lo informal. Aquilo que se manifesta como uma enorme energia de interacción social, a pesar del desorden visual y fucional producto de sucesivas crises econômicas, la corrupción gubernamental y la falta de políticas públicas para encalzar los acontecimientos JAURÈGUI, JORGE M.. La ciudad en devenir: economías informales / espacios efímeros. Disponível em: <http://www.ciutatsocasionals.net/textos/textosprincipalcast/jauregui.htm>. Acesso em: junho de 2009.
138
filha, carregando nos “s” cariocas, o que tornava a narrativa mais saborosa e
irreverente.
Nada de milagres nem metafísica no Pedregulho. Trata-se da existência levada
às últimas e inevitáveis conseqüências. Mas os moradores contam que quem
cai do prédio por acidente, não morre. “Já os suicidas... disse a moça, nunca
escaparam”.
O Pedregulho, cujo nome oficial é Conjunto Residencial Mendes de Moraes, foi
inaugurado em 1950 por Affonso Reidy como um emblema da solução da
demanda habitacional de baixa renda do Rio de Janeiro, que na ocasião ainda
era a capital federal do Brasil. O residencial introduz no mínimo duas novidades
na questão da habitação popular: ―habitar em apartamentos e a moradia de
aluguel com desconto direto em folha de pagamento.‖ (Silva, Helga:2006,26)
Sua concepção arquitetônica segue os preceitos do modernismo funcionalista:
espaços flexíveis, serviços e espaços de lazer coletivos, arquitetura
monumental, padronização dos espaços internos da moradia a partir de
modulações, produção em série dos elementos construtivos que acarretariam
numa redução de custos e velocidade de produção para atender a crescente
população urbana no país.
Mas o norteador de toda radicalidade do conjunto residencial é a crença
na mudança da sociedade através da arquitetura e do urbanismo, que passa a
ter um caráter normativo e pedagógico, pois o Homem Novo (Le Corbusier)
ainda precisava ser educado para viver nas cidades do ―amanhã‖. Para tanto,
além da moradia, o conjunto contava com os serviços coletivos, tais como a
escola, o ginásio de esportes, o serviço gratuito de lavanderia, posto de saúde,
etc. A rua de pilotis mais uma vez entra no cenário arquitetônico para a
promoção da convivialidade, dos jogos e do lazer.
Interessante lembrar que os apartamentos, com diversos tamanhos, eram
cedidos aos moradores segundo o tamanho da família e não de acordo com a
renda. Um garagista com sete filhos recebeu uma moradia com quatro quartos,
um solteiro recebeu um quitinete.
As moradoras mais antigas contam sobre a presença constante das
agentes sociais que eram, em sua maioria, mulheres. Estas agentes atendiam
139
os moradores em qualquer tipo de problema, desde vazamentos até brigas de
casal. É notório que através do cuidado com os moradores as agentes sociais
mantinham um grande controle sobre o cumprimento das normas do edifício,
inibindo a sublocação ou modificações nas tipologias dos apartamentos através
de reformas, o que era proibido.
Segundo depoimento de uma moradora mais antiga (SILVA, 2006, p. 75), até a
companheira de Reidy e engenheira de obras, Carmen Portinho, visitava os
apartamentos e palpitava na decoração, orientando as moradoras que não
enchessem os apartamentos com muitos móveis, o que tinha mais a ver com
os ideais de Le Corbusier do que com a cultura carioca. Carmen esqueceu-se
que o homem que habitaria os conjuntos residenciais modernistas ainda
guardava quinquilharias, enxoval de casamento, toalhas de crochê, estátuas de
santos e tantos outros tantos objetos inúteis que não combinavam com o
apartamento de linhas retas e limpas.
Toda essa regulamentação do cotidiano era parte de um projeto
totalizante, pedagógico e grandioso, mas tanto controle não resultou no
desejado homem clean, despojado de excessos e de ornamentos inúteis.
Quando a produção do documentário 3 Edifícios pesquisou um apartamento
maior, de quatro dormitórios, para a gravação, encontrou um domicílio ocupado
desde a inauguração do prédio pela família de numerosos filhos de um músico
da banda da prefeitura federal. O apartamento está impecavelmente
conservado e da enorme família restaram no apartamento apenas a esposa e
dois dos sete filhos. Ali foi possível perceber a qualidade espacial projetada por
Reidy. A luz, a ventilação cruzada, os armários embutidos na cozinha, uma
inovação para a época... Mas o mobiliário da família não tem nada de
modernista, os lustres da sala são de pingentes de cristal e de porcelana. As
louças e taças finas são guardadas em uma cristaleira rococó, com vidros
bisotés. A mesa de jantar tem pés torneados e as cadeiras de espaldar alto são
de veludo, sem contar os arranjos de flores artificiais e o cortinado de tule
bordado. Tudo neste apartamento destoava tanto das linhas limpas do prédio e
do modo de morar proposto por tal arquitetura, como também do estado geral
dos outros apartamentos visitados, já bastante desfigurados e subdivididos.
A desfiguração do ideal: monumentalidade à deriva
140
A idéia de monumento que eu desejo apresentar é aquela que podemos encontrar no objeto arquitetônico: ser uma abertura, uma janela para uma realidade mais intensa, ao mesmo tempo que sua representação é produzida como um vestígio, como a badalada de um sino que reverbera após ter cessado de tocar; assim deve ser constituído como resíduo, como recordação.53 (SOLÁ-MORALES, 1999, p. 71)
Rua de pilotis do Pedregulho durnate a noite. Frame do documentário 3 edifícios. Imagem de Marcelo Lacerda
Apesar da inauguração em 1950, o edifício residencial só ficou pronto
em 1962, quando a capital federal já havia sido transferida para Brasília e
Carlos Lacerda já havia assumido o governo. O terreno no qual foi construído o
Pedregulho era da prefeitura municipal e foi comprado, na época, pela
prefeitura do Distrito Federal do Rio de Janeiro. Com a transferência da capital
para Brasília, o terreno passou a fazer parte do patrimônio da União Federal.
Assim que Lacerda assumiu, apartamentos vazios foram distribuídos como
moeda de troca política para qualquer um, desrespeitando a regra condominial
que garantia que os moradores fossem antecipadamente apresentados aos
novos moradores que ganhavam a concessão de usos do apartamento. Os
critérios passaram a ser favorecimentos políticos, gerando a desmobilização
dos moradores, que eram agora vizinhos contingenciais. Já estava extinto o
53
Livre tradução: the idea of monument that i want to bring in here is that which we might find in an architectural object: for all its being an opening, a window on a more intense reality, at the same time its representation is produced as a vestige, as the tremulous clangor of the bell that reverberates after it has ceased to ring; as that which is constituted as pure residuum, as recollection.
141
interesse do poder público pelo Pedregulho e pelos ideais utópicos que ele
representava. A administração do Conjunto passou de mão em mão até cair no
descaso.
Os apartamentos não pertencem aos moradores e ainda foi encontrado
um caminho legal para criar-se um condomínio de usuários ou moradores, o
que resulta na impossibilidade da manutenção predial. Em alguns pontos, a
estrutura de concreto começa a demonstrar fadiga pela umidade, e a
conservação das fachadas, a troca das janelas e a substituição dos elementos
cerâmicos é feita pelos moradores sem que haja unidade nos acabamentos;
cada um faz o que pode. O varal é na janela, melhor lugar para secar a roupa.
Varanda barroca: os cobogós
Em Le Corbusier, a promenade architectural não é uma diversidade, mas um itinerário que inclui a possibilidade de controle54. (SOLÁ-MORALES, 1999, p. 68)
Varanda do pedregulho com substituição de cobogós por tijolos baianos.
Frame do documentário 3 Edifícios. Imagem de Marcelo Lacerda
De longe o edifício apresenta-se como uma ruína magnífica, magnética
e imponente, mas nada tem da frieza museificada dos monumentos
patrimonializados; a vida está instaurada e vaza pelas janelas que perderam as
venezianas de madeira ao longo das décadas. O que se mantém é o traço
arquitetônico magistral do arquiteto, concretizado na dignidade dos espaços de
54
Livre tradução: ―In Le Corbusier, the promenade architectural is not a diversity, bat an itinerary that admits the possibility of control‖.
142
morar. Há uma força na arquitetura que mantém a coesão, e a qualidade
espacial é sensível e desejável pelos moradores.
No Pedregulho não há o fantasma do modernismo que assombra através da
vontade de manutenção do ―original‖, fato que ocorre no edifício Copan, em
São Paulo55. O Pedregulho afirma-se como experiência estética atualizada pela
fragilidade das construções de sentido que ali habitam. Não há espaço para a
nostalgia da pretensa solidez do modernismo - sistema que acreditava que sua
estética era portadora de uma experiência cervical - porém nos interessa sua
escavação, pois o espólio do Pedregulho é dos mais ricos possíveis, pois
continua recriando realidades sobre as ruínas ideológicas do moderno.
De acordo com Solá-Morales,(1999, p. 60 - 61) a apreensão estética é,
atualmente, um esforço prometeico; Quando achamos que é possível
apreender uma forma, é quando a perdemos, no instante antes da
compreensão; estamos sempre aquém da apoteose do encontro apaziguador
da unidade. A apreensão estética só pode ocorrer, segundo o autor, se for uma
experiência periférica, fragmentada, diluída nos acontecimentos comuns.
É somente dessa posição periférica que a estética continua a exercer sua influência sedutora, sua potência desveladora, sua capacidade de implicar, mais do que de constituir a apreensão intensiva da realidade‖. 56(Solá-Morales, 1999, p. 61)
55
Não queremos afirmar que a restauração do edifício não seja importante e que a precária informalidade em que vivem os moradores seja desejável. Desejamos iluminar o fato de que certas apropriações espaciais dos moradores repercutem diretamente, e de forma positiva, no edifício e que não podem ser descartadas em troca de um ideal formal do moderno. Há um uso bastante real que compõe a força estética atual do edifício e que deverá ser considerado no projeto de reforma e recuperação da construção. Como diz Sousa Santos (2009, p. 333), ―Nenhuma transformação paradigmática será possível sem a transformação paradigmática da subjetividade.‖ 56
It-s only from this peripheral position that the astetic continues to exercise its seductive influence, its power to unveil, its capacity to imply rather than to constitute the intense apprehension of reality.
143
Foto da fachada com mosaicos de cobogós improvisados pelos moradores. O Globo, sem autoria
Contudo a vida no Pedregulho não virou as costas para o modernismo contido
no construído, forte demais para ser ignorado. Deu-se, de fato, uma conversa
com proveitos e concessões mútuas. Ali o modernismo já não se deseja centro,
portanto a conversa entre a utopia modernista do Pedregulho e as ocupações
informais do edifício é uma conversa entre margens.
144
Trata-se da escavação das utopias (tratada no capítulo 2) como explica
Sousa Santos (2009, p. 332). Para o autor, as utopias chamam atenção para o
que não existe como contraparte excluída do existente em determinada época.
Ao mesmo tempo, Sousa Santos ressalta que o novo imaginado pela utopia só
pode estar atrelado ao que já existe, ―e que são, na verdade, quase sempre
meros pormenores, pequenos e obscuros, do que realmente existe‖ (SANTOS,
2009, p. 332). Dessa forma, a informalidade estava já contida no modernismo
do Pedregulho, naquilo que foi pensado para evitá-la.
O impressionante edifício, que desde os anos 70 já denunciava o descaso na
manutenção predial, foi vitimado por corrupção política e abandono e sobrevive
num grau de informalidade altíssimo, porém não há como chamá-lo de favela
vertical, mesmo porque a horizontalidade de sua linha é preponderante em
seus duzentos e sessenta metros de extensão para 06 pavimentos de altura. A
horizontalidade é ainda reforçada pela rua de pilotis - acesso aos blocos de
apartamentos – que corta o edifício pelo meio. São quatro pavimentos para
cima e dois para baixo, sendo que os quatro andares de cima são de
apartamentos duplex. O máximo que se sobe para chegar aos apartamentos
são três andares, o que excluiu a necessidade do elevador.
A ocupação real do prédio revolucionou completamente a cartilha
modernista, mas partes da utopia resistem. As varandas, antes corredores de
circulação, viraram propriedade coletiva, mas ao contrário do que desejavam
Reidy e Portinho, a área foi parcelada em alas. Cada ala tem um portão
chaveado e até campainha. Os moradores dizem que não é por medo de
violência de fora, porque o ambiente do edifício é seguro e tranqüilo, mas é por
causa das crianças, que usam a varanda para brincar e o portão trancado
ajuda no cuidado e assim as portas dos apartamentos podem ficar abertas o
dia todo.
145
Portões das que limitam acesso público às varandas. Foto de Helga Silva
Esse parcelamento nos parece uma iniciativa importante, que apesar de
macular a idéia de circulação desimpedida do modernismo, agencia uma rede
de solidariedade importante para a vida do edifício. As crianças são
aglutinadores da coletividade do Pedregulho. Os pais e avós revezam-se no
cuidado de todas as crianças da ala, extrapolando as organizações parentais
tradicionais. Na varanda se aproveita do sol, os velhos colocam cadeiras e
mesas, as crianças correm e muitas portas dos apartamentos ficam abertas o
dia todo. Há a manutenção de uma sociabilidade solidária, necessária para
viver em conjunto, que se acomodou confortavelmente na varanda, usufruindo
da luminosidade fantástica que atravessa pelos cobogós.
146
O cobogó, cabe explicar, é um elemento cerâmico vazado, provavelmente
inspirado pelos musharabis árabes, que foi muito utilizado na arquitetura
moderna brasileira para amenizar o calor, vedando sem fechar, contribuindo
com a desejável circulação cruzada do ar e filtrando a luz nas horas mais
incisivas. Os desenhos dos elementos criam mosaicos riquíssimos e sombras
não menos surpreendentes. O cobogó é um elemento barroquizante,
incrustado definitivamente na cultura brasileira, assim sendo, reafirmamos o
que Carpentier (1982, p. 12) dizia ser um pendor americano para uma relação
sensualizada com a natureza (esconder, revelar) e que Lezama (1988, p. 81)
nos faz desfrutar através do Sr. Barroco, no pleno domínio da paisagem latino-
americana, coincidentemente através de sua varanda. Dessa forma, assimilada
sua eficiência em apaziguar os rigores da luz e do calor tropical, os rendilhados
que produzem são da ordem da poesia e tanto a arquitetura modernista
brasileira como a arquitetura anônima e popular souberam tirar partido dela.
Podemos encontrar cobogós em fachadas de monumentos públicos do Brasil
inteiro como em casas interioranas e nas áreas de serviço dos prédios, etc.57
Muitos dos cobogós do Pedregulho, pela falta de manutenção predial,
estão soltos da fachada e os pedaços que caem são grandes, abrindo buracos
nas fachadas e se esborrachando nas áreas circundantes do prédio, o que é
bastante perigoso para as crianças que brincam nas varandas (que podem
despencar junto com os grumos cerâmicos) e para as pessoas que circulam
pelo lado de fora do edifício, que podem ser atingidas pelos destroços.
Os cobogós de Reidy, fabricados especialmente para o edifício, não
existem mais. Os moradores, no entanto, sabem apreciar a maravilhosa
qualidade da luz filtrada pelos elementos cerâmicos, e improvisam substituindo
os pedaços que caem por materiais semelhantes, com um custo viável. Os
moradores poderiam fechar com vidros, emparedar totalmente parcelas de
varanda, mas não o fazem. O material escolhido pelos moradores é o tijolo
57 Apesar da palavra cobogó parecer de origem indígena é, na verdade, o conjunto das iniciais
dos sobrenomes dos três engenheiros de Recife que conjuntamente idealizaram o elemento vazado, originariamente feito em cimento: Amadeu Oliveira Coimbra, Ernest August Boeckmann e Antônio de Góis.
147
baiano, que tem a mesma cor e textura dos cobogós e do jeito deles tentam
preservar o que é bom. Reconstituir a fachada do Pedregulho com os
elementos originais será importante, mas não há como não admirar os
mosaicos criados a partir dos tijolos baianos, empilhados de modos diferentes,
provocando sombras e texturas diversas, em diálogo com o antigo.
Vista da rua de pilotis. Frame do documentário 3 Edifícios. Imagem de Marcelo Lacerda.
No final da noite, um pouco antes do amanhecer, a equipe do documentário,
exaurida de tanto percorrer os duzentos e sessenta metros de edifício, subindo
e descendo escadas, teve um sobressalto. Três rastros de luz, quase
simultâneos, traçaram zunindo linhas paralelas ao edifício, na altura da rua de
pilotis. Eram balas das armas de fogo dos traficantes contra os policiais, ou
vice versa, não importa. Corremos para nos esconder atrás dos pilotis,
agachados, com medo de bala perdida.
Ao amanhecer, o resultado do confronto entre o tráfico e a polícia era a
paisagem panorâmica vista do alto do morro, no parapeito da rua de pilotis: três
colunas de fumaça. Foram dois ônibus queimados e um helicóptero da polícia
derrubado por armas militares em posse dos traficantes. A Avenida Brasil
estava interditada pela polícia e pelos bombeiros. No entanto, a violência
parecia estar longe dali, a atmosfera domingueira do prédio era tranqüila, como
sempre, e o confronto entre a polícia e os traficantes era apenas notícia.
148
A equipe tomou café da manhã vendo simultaneamente a repercussão dos
acontecimentos pela janela e pela televisão. Ao terminarmos a gravação,
exatamente ao meio-dia, não tínhamos vontade de ir embora. Ficamos
bastante tempo sentados, comendo juntos, trocando impressões sobre o prédio
e conversando com os moradores. Recolhemos os equipamentos sem pressa,
com pena de perder aquele gosto bom, inexprimível.
Favela Vila Praia
Vila Praia: a véspera do amanhã
Foto de Marcelo Min desde a Avenida Luis Migliano.
A constatação da emergência de revoluções sociais que distribuam de
forma menos desigual as riquezas materiais tem sido paralisante para mim,
porque fica evidente que a máquina da organização socioeconômica,
onipresente como macroestrutura mundial, tem como verdadeiro e potente
motor a manutenção dessa desigualdade. É frustrante conviver com a
149
impossibilidade de se alterar o estado das coisas em escala sensível. Todas as
grandes revoluções urbanísticas do passado, hoje, parecem pequenas e
insuficientes para resolver as emergências humanas mais básicas, que já
deveriam ter sido superadas dado o estágio tecnológico e intelectual em que a
humanidade se encontra.
No entanto, a produção acadêmica em torno das questões relativas aos
desdobramentos das pobrezas é infindável e se parece com a multiplicação do
―mesmo‖. Na angústia de querer mover algo em outra direção, aqui estamos
nós, no mesmo fluxo acadêmico, mas, honestamente, desejando enxergar não
o que deve ser feito, mas em como pode ser pensado o objeto favela Vila Praia
a partir de seus aspectos potentes, germinais, de urbanidade.
Quando escrevemos acima a palavra pobreza no plural foi por
acreditamos que a pobreza não seja única, uma idéia genérica da qual se
possa falar no singular. Há diversas pobrezas, diferentes umas das outras.
Torná-la uma idéia geral é achatar suas variações, tratando todas da mesma
forma. De modo análogo, as questões que se avizinham da pobreza também
são coladas a ela como desdobramentos ―naturais‖ de sua ocorrência. A
violência é um exemplo evidente desse mecanismo redutor. Dessa forma o
pobre será sempre e somente pobre, além de potencialmente violento.
Lícia Valladares58 (VALLADARES, [s/d], p. 17) diz que, assim como a
pobreza, as favelas também são tomadas como uma identidade espacial, ou
seja, uma unidade que representa o território da pobreza por excelência, não
importando nem o local de sua ocorrência nem sua população específica. Uma
vez que áreas sejam classificadas como favelas, elas permanecem favelas
mesmo que suas questões fundiárias e de infra-estrutura recebam melhorias
significativas. ―O que era inicialmente definido como um tipo de estrutura
urbana permanece favela por causa de sua identidade social, supostamente
permanente, como favela‖. (VALLADARES, [s/d], p. 22)
58
VALLADARES, LÍCIA. Social science representations of favelas in Rio de janeiro: a historical perspective. Disponível em: <http://lanic.utexas.edu/project/etext/llilas/vrp/valladares.pdf>. Acesso em: agosto de 2010.
150
A autora (VALLADARES, [s/d], p. 11) diz que o meio acadêmico
participou ativamente na concepção desta idéia, visto que a Universidade
brasileira, tradicionalmente sensível à situação política, envolveu-se fortemente
na busca de explicações para a evolução do crime e da violência nas cidades
brasileiras ao longo das últimas três décadas. Valladares ([s/d], p. 15 - 18)
realizou uma pesquisa detalhada sobre a produção acadêmica em torno do
objeto favela no Rio de Janeiro, ao longo dos últimos trinta anos, que, segundo
a autora, foi profusa em temas e disciplinas envolvidas; mas os trabalhos
acadêmicos concentraram-se em um número restrito de favelas. São várias as
hipóteses que a autora levantou para explicar a causa dessa preferência por
um determinado grupo de favelas, mas o dado que nos chamou a atenção foi
que, segundo suas observações, a favela é mais estudada tanto maior a
notoriedade da ocorrência da violência das batalhas em torno do tráfico de
drogas. Ao mesmo tempo a autora (VALLADARES, [s/d], p. 13) percebe que
nos estudos acadêmicos analisados por ela, o interesse por assuntos ligados
às características demográficas e sociais específicas dos residentes das
favelas foi se tornando cada vez mais raro.
Uma das conclusões a que podemos chegar é que a academia pode ter
colaborado com o reforço da identidade negativa do objeto favela e uma das
causas desse resultado é a longa tradição comparativa nos estudos
promovidos pelas universidades brasileiras. Segundo Valladares ([s/d], p. 24),
mesmo quando, por exemplo, a abordagem sociológica de uma favela tem em
vista a valorização de aspectos positivos tais como a participatividade dos
moradores, suas habilidades políticas, as relações de solidariedades entre as
vizinhanças, o contraponto é geralmente através da denúncia da ausência
destes aspectos positivos em outra favela. Afirma-se a positividade de um
através da consolidação imperativa do contrário do que se quer apresentar: a
idéia de que a favela é o lugar próprio – no sentido de apropriado - do pobre. E
o que pensamos é: como foi possível uma comunidade ou pessoa “ser boa”
nessas condições?
Por esses motivos escrever e emitir juízos sobre a favela Vila Praia
exige um compromisso que vai além da narrativa do observável nesta pequena
favela, localizada no bairro do Morumbi, em São Paulo. Temo usurpar uma
151
situação extremamente singular, que é a vida na Vila Praia, para fazer um
encaixe - talhado com minhas próprias expectativas - que entrelace a teoria
com a vida. O desafio está em verificar em que medida e de que modo as
conexões, das quais me servi até agora, entre autores, vindos de variados
campos do conhecimento (literatura, semiótica, antropologia, filosofia) se
sustentam – ou não se sustentam - em situações de incerteza, como é o caso
do momento atual da Vila Praia.
Situação 1: o fogo
Favela Praia, miolo do quarteirão devastado pelo fogo. Foto Marcelo Min
A favela em questão sofreu um incêndio em junho deste ano que, apesar
de não ter afetado materialmente a parcela que eu desejava abordar nesse
capítulo, modificou as relações nas quais eu apostava: a relação dos
moradores da favela com a Avenida Luis Migliano, local onde a favela faz
fronteira com a cidade formal. O fogo consumiu o miolo da favela, que era
constituído por barracos de madeira ou de construção mista. As demais casas,
que fazem uma divisa compacta com a avenida, pouco sofreram. A destruição
152
só é visível para quem adentra a favela pelos corredores constituídos entre os
barracos.
Nesse momento da vida da Vila Praia, as forças que parecem ter poder
para selar o destino da favela são aquelas conseqüentes do recente desastre59;
são as forças desmobilizadoras, as mais visíveis diante da destruição e das
determinações do poder público.
A prefeitura logo deu as cartas, aproveitando-se da destruição de 25%
da favela, que está situada numa área de interesse imobiliário bastante
aquecido. A prefeitura proibiu os afetados pelo incêndio de reconstruir no local,
por ser uma área alagada pelo deságüe de uma mina vinda do terreno ao lado.
Foi prometida a canalização da água e a construção de uma área de lazer para
as inúmeras crianças da favela. Foram pagos R$ 1.800,00 por família
desabrigada mediante a assinatura de um recibo de ajuda de aluguel de três
meses, mas não há previsão de realocação das pessoas em programas
habitacionais existentes na região. Os desabrigados estão dormindo por lá
mesmo em casa de parentes e amigos, em bares ou mesmo nos corredores e
vielas.
O entulho está concentrado no centro da favela e virou pátio para as
crianças, que brincam em meio aos destroços de suas próprias casas e da
água imunda. A prefeitura alega que para limpar a área precisaria derrubar
duas ou três casas que fazem divisa com a avenida para poderem entrar com
as máquinas, já que não há acesso largo o bastante para a passagem de
tratores e caminhões. O curioso é que a favela, de cerca de apenas 2.000
metros quadrados, faz divisa com um enorme e valioso terreno desocupado.
Para a entrada das máquinas bastaria derrubar o muro que os separa e depois
reconstruí-lo. Não faz muito sentido desalojar mais três famílias ao invés de
reconstruir um muro, a menos que o interesse seja de abrir um flanco para a
59
Há um estudo em andamento que contabiliza, de janeiro de 2008 até agosto de 2010, mais de 176 incêndios em favelas de São Paulo, de acordo com o Corpo de Bombeiros. O jornal Folha de São Paulo afirmou (caderno Cotidiano, sábado, 14 de agosto de 2010) que seus jornalistas apuraram em abril do ano passado que moradores de favelas( grifo meu) colocam fogo para receber dinheiro da prefeitura.
153
demolição completa da favela. Apesar de ninguém ter falado ainda a palavra
―remoção‖, a ameaça paira no ar.
Vila Praia depois do incêndio. Foto Marcelo Min
Favela Vila Praia após o incêndio. Foto Marcelo Min
154
A relação dos moradores com a avenida esfriou. Desconfiança,
insegurança e medo acompanham certo esvaziamento das ocupações de vida
na avenida. A Vila praia não se organizou em torno de uma liderança ou de
movimento pró-moradia; até agora não sentiram necessidade de lutar em
conjunto, ou separadamente, por nenhuma melhoria ou reivindicação, a não
ser por uma rápida manifestação, que gerou bastante mídia, bloqueando a
avenida depois do incêndio para cobrar apoio da prefeitura. Assim que
receberam o dinheiro, o compasso tornou-se o da espera.
Situação 2: o íntimo alargado
Usos impertinentes de espaços públicos
Vila Praia. A calçada é lavanderia e quintal. Foto Marcelo Min
Ainda que a diminuição da vitalidade na ocupação da Avenida Luis Migliano por
parte dos moradores da Vila Praia seja a camada de realidade mais
imediatamente sensível (mais visível quanto maior a comparação com o
período anterior ao fogo), a implantação entrincheirada da favela em uma
antiga praça, com as fachadas alinhadas diretamente com o asfalto da avenida,
ainda é uma imagem muito potente que atiça a discussão acerca das fronteiras
155
entre espaço público e privado e as apropriações que subvertem estas
relações, transformando os espaços em territórios.
A sarjeta é salão de beleza. Favela Vila Praia. Foto de Marcelo Min.
Lavanderia na beira do asfalto. Favela Vila Praia. Foto Marcelo Min.
156
Fachadas das casas da favela Vila Praia. Foto de Marcelo Min.
Varal na calçada oposta. Foto Marcelo Min
157
Localização da favela Vila Praia em relação aos prédios de alto padrão. Disponível no site Google Earth
O Entulho foi organizado por moradores no meio do terreno, mas não tem por onde ser retirado.
Prédios de classe média alta ao fundo. Foto de Marcelo Min
Os vizinhos da Vila Praia são edifícios de classe média alta do bairro do
Morumbi, empoleirados no alto dos morros e que espiam de cima a
movimentação da favela. Estes prédios de alto padrão são ilhas de segurança
e lazer concebidos dentro dessa lógica, basta ver a foto aérea - formatados
segundo a cartilha neoliberal, que estimula a privatização do solo em políticas
158
não participativas. As justificativas para remoções de favelas são a renovação
urbana e a segurança, tanto para os ―favelados‖ como para os ―incluídos‖.
Os empreendimentos imobiliários atuais apostam em afirmar uma cidade
fora dos muros que não vale a pena. Com as promessas dos condomínios
fechados – segurança 24hs, ―lazer de clube‖ - não será mais necessário
relacionar-se com a cidade, além da garantia de simetria nas relações
intramuros, determinadas pela homogeneidade dos padrões socioeconômicos.
Não se vende apenas um apartamento, mas uma idéia de mundo, atrelado a
certo padrão de consumo.
Muitas moradoras da favela trabalham nesses prédios, na função de
empregadas domésticas, faxineiras, cozinheiras, etc. Uma delas nos contou do
desespero de ver o fogo consumir sua casa da janela do apartamento da
patroa. Hoje ela se aperta com suas duas filhas pequenas na casa do filho
casado, que também teve o segundo andar de sua casa, feito de madeira,
consumido pelo fogo.
A cota das casas da Vila Praia raramente ultrapassa o segundo andar.
Pela foto aérea podemos observar a alta densidade da ocupação horizontal
antes do incêndio. Não havia ruas internas visíveis, nem pátios. A circulação se
dava por corredores que se formam passando praticamente por dentro dos
barracos - e agora há aquele imenso pátio de destroços e água suja. Mas a
textura que se vê da avenida é a de um casario simpático, quase cenográfico,
de pequenas casas de alvenaria, muitas coloridas, outras com soluções
construtivas curiosas, alguns bares, carros velhos estacionados e roupa lavada
pendurada por toda parte.
As casas foram se amontoando sem recuos até a beirada da via pública
e, se houve anteriormente uma faixa destinada ao passeio, ela foi
paulatinamente ocupada por ampliações dos espaços das moradias. Tornaram-
se lavanderias, salas, espaços para guardar bicicletas. E os moradores que
possuem veículos os estacionam em frente às suas casas, roubando um pouco
mais do espaço viário. É interessante notar que a circulação de pedestres pela
rua obedece a uma faixa invisível de asfalto, regulada apenas pelo bom senso,
tanto dos motoristas quanto dos pedestres. Os carros passam sempre a partir
159
dessa linha invisível por onde circulam pessoas e muitas crianças.
Estabeleceu-se uma margem de segurança através de um acordo tácito de
respeito aos pedestres. Uma calçada direto no asfalto.
Outra peculiaridade deste tipo de favela em beira de vias públicas é que
a fronteira entre os espaços íntimos e o espaço público são as finas paredes.
Ao passarmos de carro pela Avenida Luis Migliano, podemos observar as
atividades mais prosaicas, que normalmente se inscrevem dentro dos espaços
estritamente privados do lar. No final de semana as faxinas, o ócio, a vaidade
escapam pelas portas. Os homens lavam os carros, as mulheres lavam e
penduram roupas no varal, fazem da sarjeta salão de beleza, ponto de
encontro e muitas portas permanecem abertas o dia todo. Há uma
permeabilidade muito maior entre o fora e o dentro, o que também implica em
uma maior vivência festiva da coletividade e dos espaços externos do que na
contrição da cidade formal.
As forças que a Vila Praia coloca em campo são práticas urbanas que
merecem atenção, não no sentido do perigo que a cidade formal denuncia, mas
naquilo que a cidade murada desaprendeu sobre a cidade vivida e que, aos
poucos, foi assimilando os atritos naturais da experiência da urbanidade como
fatores de risco e de medo.
Mas o desafio que está posto é o estabelecimento de um espaço ―entre‖
as duas cidades, uma fronteira no sentido de Lotman, na qual textos estranhos
entrem em contato para a criação de um terceiro texto, não uma síntese, mas
uma conversa.
Ao observar durante anos a inserção da favela naquele local, o objetivo
era a escuta e a amplificação dos aspectos positivos das urbanizações
informais, tais como a coletividade, a ocupação da rua e as relações espaciais
voltadas para o aberto, acreditando que há forças politicamente ativas que
desmontam as retificações do estado com ações simples, tais como portas
abertas para uma avenida - que teve sua velocidade reduzida pela simples
percepção de uma espacialidade singular. O que nos leva a pensar que estas
ocupações perduram não apenas por descaso do governo, mas porque há um
―comum‖ a ser defendido - o direito de habitar, o direito à cidade e ao usufruto
160
dela, para além dos espaços públicos hiper-codificados, tais como praças,
parques e locais de consumo cultural. Favelas como a Vila Praia são espaços
não reclamados por nenhum projeto de cunho social, mas que desperta
interesse comercial por localizar-se em ilhas urbanas de solo valorizado, com
sólidos investimentos da construção civil. A favela é um impedimento, mas
pode ser uma grande oportunidade para investidores, por ser pequena e
facilmente removível.
Mas depois do incêndio parece que a escuta captou uma emergência: a
Vila Praia ainda não despertou para o risco de seu desaparecimento. Há a
necessidade imediata de refazer a conversa com a ―cidade maior‖. Será
preciso que se organizem em torno de um objetivo político, aprender sua
jurisprudência, lutar pela permanência.
Porém, ainda que permaneça, o que deverá ser negociada é a forma de
permanência. A política neoliberal prevê que o direito à cidade consolida-se
através do direito de posse do solo urbano, mas entendemos que a
propriedade não garante a permanência e valorização de certos mecanismos
importantes da informalidade, que não vão desaparecer nem ter sua
importância diminuída pelo simples fato da posse da casa.
O primeiro destes dilemas consiste em como fazer para integrar, formalizando, um tipo de espaço urbano cujas características aparecem totalmente imbricadas com uma economia popular que prospera e se reproduz com a marca da informalidade, quando não, da ilegalidade no sentido forte do
termo.60
(DUHAU, 2003, p. 9)
Há naquela clareira gerada pelo fogo signos, tanto do fim da favela como
de seu fortalecimento. Ainda é cedo para saber.
Em tempo: O fotógrafo Marcelo Min me enviou um email ontem, 17/08/2010,
dizendo que os bares da favela continuam a ser lacrados pela prefeitura: ―O
pessoal da Vila Praia me ligou hoje. Disse que a prefeitura estava
lá, com força policial e tudo para fechar todos os bares (e as casas
que ficam em cima)”. As casas que ficam em cima são residências, mas o
60
DUHAU, EMILIO. La ciudad informal: el orden urbano y el derecho a la ciudad Disponível em: <http://free-books-online.net/LA-CIUDAD-INFORMAL-EL-ORDEN-URBANO-Y-EL-DERECHO-A-LA-CIUDAD-pdf>. Acesso em: agosto de 2010.
161
morador, para entrar em casa, precisa necessariamente passar pelo bar. Como
é que vai ser agora?
O comércio da Vila Praia atende somente a população da favela, que é
bem pequena, situação bastante diversa da favela Paraisópolis, bastante
próxima dali, onde o comércio florescente atraiu prestadores de serviços do
mercado formal para dentro da favela, comportando empresas tais como o
banco Bradesco, Casas Bahia, posto de saúde do hospital Albert Einstein e
muitas ONGs. A concessão de áreas para estas atividades regulares tem que
ser negociada, pois a situação fundiária ainda é informal. A grande diferença
entre as duas favelas está no poder de atração que a economia informal pode
gerar para a economia formal. Neste caso é verificável a hipótese de Torroja,
que diz que61(...) ―o informal pode muito bem surgir e ser criado inclusive a
partir do formal e supostamente já estruturado, e talvez o formal só possa
mesmo existir como parte da informalidade generalizada‖. (2005, p. 65)
Rua 25 de março
Trabalho, festa e guerrilha nas ruas
Na rua dos sentidos é somente andar, olhar, ouvir, cheirar. Será interessante
arriscar-se em elevadores antigos, pequenos e sacolejantes, com portas
pantográficas de uma São Paulo vestigial para comprar toda espécie de
miçanga, vidrinhos coloridos e artigos religiosos, maquinários de relógios,
ponteiros e tantas outras partes para montar coisas. Nada se vê do antigo porto
fluvial que justificou o nome da rua contígua, a Ladeira do Porto Geral, fica
difícil imaginar pra onde foi tanta água. O formigueiro humano que se configura
diariamente naquela região próxima ao Mercado Municipal é um enclave de
festim urbano na cidade de São Paulo.
O Estado muda as táticas de controle do comércio informal e da pirataria
diariamente, pega daqui, escapa dali. Os ambulantes reagem com
solidariedades momentâneas na hora do rapa. São diariamente reprimidos,
mas também diariamente reinventam a ocupação da rua. Não adianta colocá-
los em áreas separadas e planejadas. Eles reclamam a permanência na rua, a
despeito da precariedade e do desamparo social.
61
TORROJA, PÍO. Cinzento público americano. Publicado em 2005. Disponível em: <http://www.seacex.es/Spanish/Publicaciones/POST_IT_CITY_CIUDADES_OCASIONALES/Post-It%20City.%20Occasional%20Urbanities.pdf>. Acesso em: maio de 2005.
162
As fotos de Marcelo Min feitas na Rua 25 de março no final do dia estendem o
olhar para depois do caos dos pregões e rapas. Novas configurações
acontecem a partir do cair da tarde.
Os ritmos exprimem o desigual, como apresenta Richard Pinhas: ―é o ritmo impulso desigual e complexo que efetua a simbiose da música e dos elementos. O ritmo ou desigual torna sensíveis as vibrações‖. Porém, Deleuze adverte que o caos não é o contrário do ritmo, ele será o meio dos meios. ―O que há de comum ao caos e ao ritmo é o entre-dois, entre dois meios, ritmo-caos, ou caosmos: entre a noite e o dia, entre o que é construído e o que cresce naturalmente, entre as mutações do inorgânico ao orgânico, da planta ao animal (...) O ritmo é crítico, liga a passagem de um meio a outro e trabalha por blocos heterogêneos. Os esgotamentos e as intrusões do caos sobre os meios ganham ritmos e estes se produzem entre dois meios, são devires. É no meio que o ritmo é produzido. O meio, então, se constitui de uma repetição produtora‖. Rodrigo Carqueja de Menezes62
Uma crônica publicada por Rubem Braga63 ilustra como em 1935 o embate
entre ambulantes e comerciantes, proprietários e despossuídos, entre a força e
a astúcia já estava instaurado. A narrativa tem os desfavorecidos
representados pelos engraxates, figuras então muito presentes nas praças,
marquises, galerias e barbearias do centro. Já os donos de barbearia
representam o comércio formal incomodado com os ambulantes.
Rubem Braga nos faz percorrer com ele um trecho central muito conhecido da
cidade, conduzindo o leitor até o lugar do conflito entre ambulantes e
comerciantes.
A São Paulo, Avenida São João. A vida em São Paulo está
barata. Vemos ali sandwiches de queijo ou de presunto a
duzentos réis. A avenida é larga, é bella, cheia de gente e de
barulho. Desçamos no meio da turba. Na praça do Correio
existe a estatua mais feia da America do Sul. É de Verdi. Amo
este trecho entre a praça do Correio e o largo Paissandu.
Vinde ver os engraxates. Aí, engraxates de São Paulo! Aí,
62
Rodrigo Carqueja de Menezes. Revista Eletrônica COMUM num. 26. Disponível em: <http://www.facha.edu.br/publicacoes/comum/comum26/artigo3.pdf>. Acesso em: junho de 2010. 63
BRAGA, Rubem. Engraxates de São Paulo: Folha da Noite, domingo, 14 de abril de 1935. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/almanaque/rubembraga1.htm>. Acesso em: 17 de out. de 2009.
163
sobretudo engraxates volantes de São Paulo! Engraxates
civis, engraxates militares.64
(BRAGA, 1935).
Então Rubem Braga entra numa barbearia da época para nos mostrar um
mundo que não existe mais. São oito os barbeiros e mais ao fundo duas
manicures. Ao lado delas um homem com a importante tarefa de renovar,
limpar e lavar chapéus. À frente, quase na calçada, os engraxates contratados,
quinze ao todo, os tais que o autor chama de ―engraxates militares‖, com o
uniforme da casa. Embora sejam tão miseráveis quanto os ambulantes
perseguidos pela polícia, os ―engraxates militares‖ sentem alívio por não
estarem, pelo menos naquele dia, na pele dos miseráveis ambulantes.
Os ambulantes são os engraxates volantes, os chamados ―engraxates civis‖
pelo autor, que trabalham de cócoras, que vestem farrapos. São aqueles que
(...) estão na rua, e sabem a technica do combate de rua. Sabem jogar pedra, jogar xingamentos, provocar, fugir, voltar, vaiar, atormentar. O homem [o dono da barbearia, que contrata os engraxates militares] teme a concorrência dos engraxates volantes. Além de tudo - affirma - elles não pagam licença. De modo que um commerciante honesto que paga a sua licença fica prejudicado por esses vagabundos. (BRAGA, 1935).
Rubem Braga conclui que a vida não é justa, e que os engraxates de todos os
tipos, todos vivendo miseráveis vidas, deveriam unir-se. E pensa revoluções,
enquanto seus sapatos são engraxados pelos ―engraxates militares‖, sempre
esperando gorjetas que dêem sentido à miséria de suas vidas.
É humilhante. Humilhante? Quem foi que disse, poeta, que isso é humilhante? Humilhante é a vida. Será que não ha um meio de concertar a vida? Deve haver. Tenho meditado sobre esse assumpto. Nós faremos muitas coisas pouco recomendáveis e contra os sentimentos do povo brasileiro, que em sua enorme maioria é catholico, ordeiro e syphilitico. Com excepção dos tuberculosos e de outros. As balas das metralhadoras ferirão os caules das rosas suaves. Mas agora não. Agora o melhor é mandar engraxar os sapatos enquanto se medita. (BRAGA, 1935).
64
A grafia da época foi mantida.
164
Engraxates no centro de São paulo. Foto de Deltafrut, no flickr.com
Mas os ―civis‖ foram vencidos pelos ―militares‖? Todos foram vencidos pelas
evoluções do capitalismo. As grandes barbearias foram vencidas pelas
multidões sem paletós, usando sapatos nobuck, tênis esportivos, sem gravatas
nem chapéus, que fizeram encolher a presença dos engraxates do centro. Os
―engraxates militares‖ foram para o ―olho da rua‖, literalmente. Há atualmente
algumas cadeiras de engraxate localizadas na praça D. José Gaspar, que
existem graças à luta da Associação dos Engraxates em Vias Públicas no
Município de São Paulo, porém com um detalhe - os engraxates devem
trabalhar em cadeiras padronizadas. Os ―engraxates civis‖ continuam pobres,
em geral são ainda crianças, circulam com caixas improvisadas.
165
Cidadania latino-americana: a nódoa móvel na cidade
Homem descansa em canteiro durante uma passeata do MSTC , movimento social pró-moradia no centro de São Paulo. Foto Marcelo Min
Um território debilmente governado não significa, a priori, que seja uma terra de ninguém, mas sim que os sistemas de registro mais interligados e densos, os estatais e os legais, deixam vazios, ou seja, não quer dizer que haja uma ausência de lei ou de sociedade, mas sim que se trata de lugares e situações onde os sistemas de registro apresentam zonas de ligação fracas,...65 Pío Torroja (2005, p. 65)
A cidade, pensada de acordo com Manuel Delgado (Sociedades
Movedizas), é tudo o que existe de estável no urbano, logo podemos pensar
que a cidade dedica-se à permanência do seu patrimônio construído, mas
também à manutenção das instituições que regulam a vida de seus
moradores. O Estado coloca-se então no papel de representante-mor da
cidade, pois é quem traz para si a tarefa de criar e por em andamento os
dispositivos reguladores que faz a cidade perdurar. (TORROJA, 2005, p. 64).
65
TORROJA, PÍO. Cinzento público americano. Publicado em 2005. Disponível em: <http://www.seacex.es/Spanish/Publicaciones/POST_IT_CITY_CIUDADES_OCASIONALES/Post-It%20City.%20Occasional%20Urbanities.pdf>. Acesso em: maio de 2005.
166
Torroja diz que a cidadania - um tema complexo e inesgotável, somente
apontado aqui como um prelúdio às questões da informalidade - indica uma
inserção do habitante em um território através de sua inscrição em diversos
dos sistemas regulamentadores do Estado. Existe a chamada ―luta pela
cidadania‖, o que significa lutar por existir na cidade, mas o que o autor afirma
é que na América Latina a cidadania não pode ser facilmente definida, pois não
é nem mesmo definitiva.
Isto é importante, uma vez que grande parte da população latino-americana não é cidadã no sentido tradicional, o seu registro é cinzento: gradual, ambíguo, contraditório e intermitente. (...) Nesse ponto, se quisermos entender como o público se manifesta na América, teremos de ter a precaução de evitar o juízo comum de que este caráter gradual e contraditório seja um defeito. A idéia de um cinzento, de um caráter gradual, põe em evidência o fato de que os processos de formalidade e informalidade não sejam substanciais, mas sim relacionais, e de que não possam ser localizados definitivamente. (TORROJA, 2005, p. 65)
O autor dá o nome de zona cinzenta para a cidadania latino-americana, como
se esta fosse um dégradé, melhor dizendo, uma passagem gradual de um tom
para outro, de um estado para outro. Essa comparação suaviza demais a idéia
da cidadania latino-americana, tão interessante que o autor nos traz. Ora, mais
do que um dégradé, a imagem da mancha contém todos os quesitos para
representar nossa cidadania amorfa e móvel, resultado contingencial do
derramamento de informalidades. De novo é o movimento do maior para o
menor, ―entre a vida no território e a vida dentro do Estado‖ (TORROJA, 2005,
p. 65), do formal para o informal e vice-versa. Mas o autor avisa que as
transações entre o ―formal e o informal‖ não são reflexos apenas da pobreza e
da exclusão. Nunca será, segundo Torroja, uma separação radical: pobreza e
gagueira civil de um lado e riqueza e legalidade de outro.
A mancha cidadã instaura-se nos territórios geometrizados do
Estado através de mini-governanças relacionais: solidariedades homem-a–
homem, alianças fracas pelas emergências e às vezes até através da pequena
corrupção: excluídos, invisíveis, pactuam-se com funcionários e fiscais de
menor categoria, vizinhos, ativistas e pastorais. Estes pactos, muitas vezes,
salvam só o dia.
167
Está claro que nosso modelo de Estado, ao menos na América, não
determina as representações do ―público‖, embora seja um dos atores mais
fortes. ‖É um dos peões principais, mas não é um tabuleiro‖ (TORROJA, 2005,
p. 65). O ―público‖ na América Latina é, para o autor, uma emergência, o
imprevisível que se mantém como crítica viva e mutante ao projeto, ao
planejamento.
A rua-bazaar: o oriente somos nós
Rua 25 de março. Foto de Sérgio Alberti, no flickr.com
[o barroco] assume o caráter inquieto do contexto social, via linguagem, fazendo do tecido estético um ícone da loucura que vivemos. Nessa operação, recupera a fala do Outro, do excluído, do marginal. Cláudio Daniel66
A tradição urbana de comércio ambulante é, segundo Díos (2004), parte
da América profunda que se apropria de ruas e de praças para viver e
sobreviver na cidade. Esta tendência, já presente nas culturas ameríndias de
colonização espanhola, juntou-se às contribuições coloniais ibéricas e
mozárabes. Segundo Díos (2004), os colonizadores que chegaram ao
66
DANIEL, Cláudio. A escrita como tatuagem. Disponível em: <http://www.elsonfroes.com.br/cdnbaroc.htm>. Acesso em: agosto de 2010.
168
continente nos primeiros tempos já se deparam com um forte comércio de rua,
feiras ao ar livre que posteriormente equiparam-se com barraquinhas à moda
das feiras de Medina. Bernal Diaz Castillo comentou o mercado de Tlateloco,
no México; Pedro de Cieza y de León comenta animado sobre a feira de
Potosí.
A través de las ferias de Medina del campo o de las granadinas se transmitió a América, a su vez, la tradición moura del comercio ambulante, com sus caballetes, sombrillas, toldos y tenderetes que coexistiron com las mantas, petates y huacales indígenas. De alguna manera, se compartia así la fruición de lãs callejuelas de la casbah de Túnez o de Argel, com los vendedores de dátiles, túnicas y baratijas, com los que leen el Coráno el diário a las ruedas de vecinos analfabetos, com los bebedores de te verde y los fumadores de narguile. (...)Qué distancia trazar entre ambular por allí y caminar hoy las calles densas, morenas de Cartagena de Indias, com las pregoneras de papaya e ciruela verde, las de cocada de piña y panela, los vendedores de loteria, los cafés y el Portal de los Escribanos que redactan cartas de amor y declaraciones de impuestos? Cuan distintas se nos puedem presentar la plaza-mercado de Djema‘a el-Fna en Marrakech, tan maravillosamente descripta por Juan Goytisolo y la Chichicastenango en Guatemala? 67 (DÍOS, 2004)
Toda esta textura de personagens urbanos e materiais culturais, que Díos faz
conviver e traduz, não discrimina o que é ―alto‖ do que é ―baixo‖ na cultura,
porque quer evidenciar que a cultura é o conjunto que se arranja a partir destas
diferenças e, portanto, quanto mais heterogêneos os elementos, mais ricas as
sintaxes, as traduções. Assim é o barroco no urbanismo de nossas cidades.
―Traduzir/deglutir alteridades próximas e distantes, transitar entre um
cosmopolitismo sem fronteiras e um americanismo feito de matizes e rizomas‖
67
Livre tradução: Qual distância traçar entre perambular por aí e caminhar nas ruas densas, escuras de Cartagena das Índias, com as ―pregoneiras‖ de papaya e de ciruela verde, as de cocada de abacaxi e de bolchachinhas, os vendedores de bilhetes de loteria, os cafés e o Portal dos Escrivães que redigem cartas de amor e declarações de impostos? Quão distintas podem apresentar-se a praça-mercado de Djema‘a el-Fna em Marrakech, tão maravilhosamente descrita por Juan Goytisolo e a Chichicastenango en Guatemala?
(...)Através das feiras de Medina del Campo ou de Granada foi transmitida para a América, por sua vez, a tradição moura do comércio ambulante, com cavaletes, guarda-sóis, toldos e barracas que coexistiram com mantas, capachos e ―huacales‖ indígenas. De alguma maneira, compartilhava-se assim a fruição dos becos da casbah na Tunísia ou a de Argel, com vendedores de tâmaras, roupas e bijuterias, tanto com quem lê o Corão diariamente como com a rodas de vizinhos analfabetos, com bebedores chá verde e fumantes de narguille
169
(MACIEL, [s/d])68. Em São Paulo, os paradoxos que nos arremessam
instantaneamente da era digital para a barbárie, em uma simples parada no
semáforo, parecem favorecer as sintaxes barrocas. As pontes e costuras que o
barroco faz entre fragmentos proliferantes são frágeis e efêmeras, bem como
os sentidos que formulam. O barroco permite a existência fluente entre
sistemas de valores diferentes e às vezes opostos, ―oscilando entre as culturas,
mas pertencendo a todas, indissociavelmente‖ (GRUZINSKI, 2001, p. 27). Para
o autor, as contradições latino-americanas apresentam-se como dobras,
avesso e direito de um mesmo tecido.
Mas a alegria de termos herdado - não só nas nossas feiras livres e
festividades, como na cultura como um todo – as habilidades necessárias para
a vida transbordante e a convivência com o excesso de variação não ressoa
com a mesma vibração e simpatia quando o assunto é o planejamento urbano.
Frúgoli (2000, p. 63) transcreve uma entrevista em 1997 com o ex-
prefeito da cidade de São Paulo, Olavo Setúbal, que faz uma autocrítica
arrependendo-se do seu plano de revitalização do centro através dos
calçadões quando prefeito. Setúbal diz que foi uma ilusão pensar que em São
Paulo, megalópole de um país pobre como o Brasil, o calçadão teria o mesmo
resultado de sucesso que teve em cidades da Europa. Ele diz que, ―o calçadão
virou no Brasil um permanente problema69 de mercado persa‖.
É até engraçado observar como por meio de uma expressão popular para
significar baderna (mercado persa), o ex-prefeito trouxe à tona a inesgotável
facilidade cultural em viver a variabilidade da rua ao mesmo tempo em que
escancarou a enorme dificuldade das classes dirigentes em validar estas
particularidades culturais das cidades que governam. Ao suscitar o ―mercado
persa‖ como sinônimo pejorativo do comércio informal instalado em São Paulo,
o ex-prefeito esqueceu-se de nossa tendência cultural ao espaço aberto, à
proliferação sensorial de elementos visuais, táteis e sonoros, muito próximos
realmente dos mercados orientais e que essas características são, ao contrário
68
MACIEL, MARIA ESTHER in Ocidente/Oriente: uma conversa com Haroldo de Campos. Disponível em: <http://www.revistazunai.com/entrevistas/haroldo_de_campos.htm>. Acesso em: agosto de 2010. 69
Grifo meu.
170
de sua afirmação, sinônimos de riqueza cultural, o que obviamente não
significa ignorar os problemas relacionados à inevitável precariedade do
mercado informal, problemas estes extensamente observados tanto pela
academia quanto pelas instituições do poder.
Rua 25 de Março. Foto de Marcelo Min
Rua 25 de março em São Paulo. Foto de Deltafrut, no flickr.com
171
Lixo, desordem, vagabundagem, degradação: essas são as palavras
associadas aos camelôs e aos moradores de rua. Isso porque praticam a
violação das distâncias confortáveis entre os corpos e entre as coisas. Criam
pontos na trama da cidade que são como defeitos, porém desbancam leis e
sistemas dominantes, gerando outras centralidades, complicando e
multiplicando os contextos marginais, que se tornam realidades policêntricas.
São realidades marginais-centrais, mas nunca homogeneamente uma coisa ou
outra, vagando entre situações. As atividades ambulantes e nômades
pertencem exclusivamente à rua e são responsáveis por sua vitalidade.
Ambulantes, vagabundos e roleiros são sistematicamente contidos, reprimidos
e expulsos em nome da reconsagração dos espaços centrais como espaços
legítimos das populações solventes, que se não são mais os aristocratas de
São Paulo, são as multidões de sequiosos consumidores culturais, sequiosos
por cultura, depositada no patrimônio arquitetônico urbano histórico.
Já as populações que ocupam as ruas do centro e que tiram dali o
sustento têm em comum o fato de terem um dia migrado; mesmo que vivam há
décadas na cidade, com filhos e netos nascidos e criados aqui, sempre serão
vistos como migrantes, como ―nenês famintos‖ (FLUSSER, 1983).
Mas estas mesmas populações que vivem da informalidade, que criam ricas
texturas urbanas, um burburinho alegre e vital, sem o qual as ruas pereceriam
(...)camelôs, engraxates, desempregados, aposentados,
―plaqueiros‖, vendedores de ervas, de bilhetes de loteria, de
churrasquinho, pregadores religiosos, videntes, prostitutas,
travestis, homens e menores de rua, artistas de rua, rolistas,
batedores de carteira, trapaceiros e muitos outros. (FRÚGOLI,
2000, p. 59)
As ruas, cuja efervescência é essencial para a vitalidade dos jogos
sociais, tornam-se referências para convivências de diferenças em situações
onde não se acreditaria que poderia florescer alternativas interessantes. São
interessantes justamente porque lidam com a existência para além das
idealizações, criam estratégias para escapar das retificações, mas para
sobreviver e não para superfaturar a idéia de vida. São alternativas para
172
sobreviver sem a proteção da cidadania clássica que não os inclui. Na verdade
criam manchas de cidadania, cidadanias falsificadas, partes de cidadania.
O Socorro da Alegria: grátis, nas ruas
Alagamento na região do Minhocão, em São Paulo. Foto Marcelo Min
Um mau humor totalitário me tomava por completo numa tarde ensolarada na rua
25 de março. Eu desbravava, à força de cotoveladas, as calçadas lotadas com o
único objetivo de comprar um tecido e voltar correndo para o estúdio de T.V, a fim
de evitar mais uma madrugada em claro, montando uma cenografia difícil.
Andando vigorosamente, de cabeça baixa, não olhava nada nem ninguém.
De repente ouço uma voz forte acompanhada de um cheiro pestilento e imediato.
Olhei para frente e a menos de dois passos estava um mendigo muito alto, escuro,
fedido e esfarrapado, de braços abertos para mim, repetindo: vem cá, me dá um
abraço!!!
Abaixei rapidamente, passei por baixo daqueles braços enormes, e quando olhei
para trás ele sorria com dentes inacreditavelmente brancos, destoantes da sua
sujeira ancestral. Ele disse: ah, não foi dessa vez!
Seria ele um anjo ou escapei do abraço da morte? O fato é que sorri e o mau
humor foi embora. Olhei em volta e os seguranças de porta de loja, os desviantes
do mau cheiro do meu anjo, todos prontos para testemunhar o abraço, sorriram
também...
173
O estranho é que, entretanto, a alegria permanece, embora suspensa em nada e privada de qualquer base. E é esse extraordinário privilégio da alegria: essa aptidão para perseverar quando sua causa é ouvida e condenada, essa arte quase feminina de não se render à razão alguma, de ignorar alegremente tanto a adversidade mais manifesta quanto a contradição mais flagrante. Pois a alegria, tal qual a feminilidade, permanece indiferente a qualquer objeção. (ROSSET, 2000, p. 8)
Nas formas de existir dos moradores de rua, dos sem teto e dos ambulantes,
falar do acontecimento da alegria não é uma ilusão apaziguadora das culpas
sociais, nem é ingenuidade acreditar nas suas manifestações. Embora nesses
contextos a crueldade da vida se sobreponha a todo o resto, a alegria se dá
não importa onde, excêntrica aos mecanismos de captura capitalista do desejo
e de ilusões idealizadas de mundos sem sobressaltos. Entretanto a alegria se
apresenta em condições inconcebíveis e é inclemente contra tudo aquilo que
desaprova a vida. Seu paradoxo vital é a capacidade de compor-se com o
trágico. A alegria conecta-se com o trágico, cuja presença é paradoxalmente
necessária e invariavelmente ignorada para que a alegria aconteça. ―Rimos
porque sabemos que vamos morrer‖. (PINHEIRO, 1994)
O humor que interessa, segundo Pinheiro, é o riso do traído, cujas
convicções foram subitamente canceladas e não tem outra coisa a fazer além
de conviver com a crise do descentramento. Este riso é o flagrante da nossa
desproteção diante do estranho com o qual ainda não entramos em relação.
Desta forma os discursos oficiais e o consenso se desnaturalizam e tornam-se
novamente estranhos.
(...)só há comunicação dialógica e diferencial se nela está contida algum elemento de choque pelo riso, de consciência binária em fricção, de morte. Só se pode educar, só se pode informar com a morte, pois ela aparece sempre que qualquer setor do que pretendíamos como natureza é abalado. (PINHEIRO, 1994, p. 35 - 40)
Onde não há contraste a alegria se amorna. Pinheiro diz que o riso
crísico é a festa de quem sabe que vai morrer. Este é o riso que festeja a vida
da alegria sem pretensão nem ironia. A ironia deseja-se superior àquele do
qual se distancia. O humor não se localiza nas causas, mas nos efeitos, sem
jogos de palavras, mas criador de acontecimentos.
174
Fim de expediente, ainda dá tempo.
Rua 25 de Março ao entardecer. Fim de expediente. Foto Marcelo Min
Rua 25 de Março ao entardecer. Os catadores em ação. Foto Marcelo Min
175
Rua 25 de Março ao entardecer. Comerciantes e últimos clientes aproveitam as últimas ofertas do dia.
Foto Marcelo Min
Rua 25 de Março ao entardecer. Comerciantes juntam-se para jogar. Foto Marcelo Min
176
Descontração de fim de expediente. Fotos Marcelo Min
Foto Marcelo Min
177
Conclusões
Meninos no centro de São Paulo. Foto Marcelo Min
Custamos a nos livrar da idéia de que todo sistema possuiria uma espécie de estabilidade original a que ele tenderia inexoravelmente. (GRUZINSKI, 2001, p. 59)
Há décadas observamos a luta pela revitalização do centro histórico da
cidade de São Paulo. Porém, na última gestão da prefeitura, a revitalização
tornou-se uma bandeira, uma luta com a assinatura pessoal do prefeito. Seu
projeto de centro histórico para a região da Luz enquadra-se nos modelos
neoliberais de cidade, que transformarão a região num parque cultural,
recebendo investimentos de empresários da construção civil e distribuindo
concessões de comercialização, de negociação direta das desapropriações,
etc. Foram feitos inclusive seminários com urbanistas estrangeiros
responsáveis por uma revitalização similar, a de Barcelona, que, segundo
alguns urbanistas espanhóis, foi um ―urbanicídio‖.
A região da Luz é ocupada por populações não só não previstas na
agenda neoliberal como indesejáveis para qualquer governo. São as
populações de rua e os consumidores de crack; por isso a região é conhecida
178
como cracolândia70. O que vemos a prefeitura empreender na região é uma
verdadeira cruzada, não contra as drogas e a exclusão, mas contra os
―drogados‖. Apesar das incursões midiatizadas de ação policial na região, não
só a cracolândia persistiu, como houve a dispersão dos consumidores de crack
pelo centro, alcançando bairros de classe alta como Higienópolis.
O projeto de revitalização avança e empaca, recua e avança novamente.
E este movimento incerto começou a incomodar os investidores, que por
enquanto tiraram a mão do bolso, mas não o olho.
Verificamos que o paradoxo da simultaneidade entre dominação e
emancipação, liberdades e autoritarismos é um traço constante na história do
nosso continente e que se torna materialmente presente nas cidades.
Atualmente observamos que o neoliberalismo submete às leis intransigentes do
mercado financeiro questões do desenvolvimento social, tais como a habitação
social. Este processo induz à definição de cidadania a partir da capacidade de
inclusão no mercado de trabalho e de consumo, fato que aumenta muito a
segregação entre quem está dentro e fora do sistema financeiro. E, justamente
através da segregação, o neoliberalismo alimenta o aumento da informalidade,
tanto para aqueles que precisam sobreviver sem cidadania como para aqueles
que aproveitam-se da ausência do Estado como centro para tirar vantagens,
tais como concessões de uso do solo, privatizações, etc. Portanto, a
informalidade não é apenas fruto da pobreza social, mas um mecanismo que
facilita apropriações quando o poder central é fraco, no sentido de não ser
densamente determinante, de ter brechas e vazios que podem ser ocupados
por vetores de força alertas às possibilidades.
O exemplo da luta entre a prefeitura e os meninos da cracolândia
é uma ilustração de um caso de insubordinação radical às estriagens do
Estado, mesmo sob a saturação da vigilância que os governos empreendem.
Tanto quanto a favela Vila Praia e a rua 25 de março, que analisamos no
terceiro capítulo.
70
Antes da revitalização a região era ocupada pelas prostitutas que faziam ponto na Estação da Luz. Hoje em dia, apesar da existência da prostituição, a cracolândia é a irregularidade que mais chama atenção da mídia.
179
Quanto mais os dispositivos se difundem e disseminam o seu poder em cada âmbito da vida, tanto mais o governo se encontra diante de um elemento inapreensível, que parece fugir... (AGAMBEN, 2009, p. 50)
Agamben nos mostra que a insubordinação não nos dá a esperança de
uma revolução, nem nos indica um modo de frear a máquina governamental,
mas, para o autor (2009, p. 51), o ingovernável ―é o início e o ponto de fuga de
toda a política‖. Na América Latina, elementos de ingovernabilidade e
governabilidade se mesclam, num trânsito alucinado entre profanações e
institucionalizações.
Quando analisamos as arquiteturas modernistas através do edifício
Copan em São Paulo e do Edifício Pedregulho no Rio de Janeiro, já as
compreendemos como o resíduo, embora ativo, de um sistema estético-político
que já não emana forças do ―centro‖ para as ―margens‖, do idealizado para o
vivido. Se o modernismo ainda reverbera, é através de vestígios, ora através
de um piloti, ora através de um fragmento da promenade architectural.
Portanto, o que o modernismo entabula com o informal nestes dois edifícios é
uma conversa, mas entre margens - nenhum é determinante sobre o outro.
No entanto, o que talvez interesse mais aqui seja demonstrar
como essa experiência restabelece o vínculo do homem com o
mundo. Não se trata de um outro mundo, de um além do
mundo, mas deste mundo, o nosso mundo... (LEVY, 2003, p.
92 - 93)
Assim como verificamos que o trânsito dialógico entre o formal e o
informal está definitivamente incorporado nas urbanidades de cidades como
São Paulo e Rio de Janeiro, entendemos que estas hipóteses poderão ser
verificadas, com variáveis desejáveis, em outras cidades da América Latina, ou
até mesmo em cidades de países de cultura que tendam ao aberto, tais como a
Turquia e a Grécia, recentemente incluídas no bloco da União Européia,
portanto sujeitas a novos poderes em jogo. Acreditamos que a continuidade
deste trabalho se daria no sentido de verificar nódulos tradutórios entre as
exigências do capitalismo avançado e vetores culturais já instalados e em
relação nestes territórios, além de estender a verificação do barroco como
180
ferramenta analítica em espaços comunicacionais da cidade que exijam
sintaxes complexas.
Referências Bibliográficas
ABRAMO, Pedro; FARIA,Teresa Cristina. Mobilidade residencial no Rio de Janeiro: considerações sobre o setor formal e informal do mercado imobiliário. Disponível em: <http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/PDF/1998/a139.pdf>. Acesso em: abril de 2010.
ABRAMO, Pedro. A dinâmica do mercado de solo informal em favelas e a mobilidade residencial dos pobres. Disponível em: <http://portalgeo.rio.rj.gov.br/estudoscariocas/download/2344_A%20Dinâmica%20do%20Mercado%20de%20Solo%20Informal%20em%20Favelas.pdf>. Acesso em: fevereiro de 2010.
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Trad. de Vinícius
Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.
_________. Profanações. Trad. de Silvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007.
ALCÂNTARA, Antônio Pedro. Aspectos do espaço barroco na aquitetura civil dos séculos XIX e XX. In: ÁVILA, Affonso (Org.). Barroco 12. Belo Horizonte: Imprensa
Universitária, 1982/3.
AMARAL, Aracy. Da terra: madeira e barro como suporte para a cor e o ouro. In: ÁVILA, Affonso (Org.). Barroco: Teoria e análise. São Paulo: Editora Perspectiva, 1997.
ARANTES, Otília Beatriz Fiori. Uma estratégia fatal ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2000.
AUGÉ, Marc. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Trad.
Maria Lúcia Pereira. Campinas: Papirus Editora, 1994.
BAETA, Rodrigo Espinha. A configuração da cidade colonial hispano-americana e o problema do barroco. Disponível em: <http://www.xienanpur.ufba.br/571.pdf>. Acesso em: novembro de 2009.
_________. Ouro Preto, Cidade Barroca. Disponível em: <www.upo/es/depa/webdhuma/areas/arte/actas/3cibi/documnetos/077f.pdf>. Acesso em: novembro de 2009.
BANDEIRA, Manoel. Crônicas da província do Brasil. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
BAZIN, Germain. Barroco: um estado de consciência. In: ÁVILLA, Affonso (Org.). Barroco: teoria e análise. São Paulo: Editora Perspectiva, 1997.
181
BITTENCOURT, Maria das Mercês. Urbanização Colonial: Estudo de um modelo de espaço Urbano em Sabará. In: ÁVILA, Affonso (Org.). Barroco 12. Belo Horizonte:
Editora Imprensa Universitária, 1982/83.
BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 1: a palavra plural (palavra de escrita). Trad. de Aurélio Guerra Neto. Revisão técnica Jean R. Weisshaupt. São Paulo: Escuta, 2001.
_________. A parte do fogo. Trad. de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
BORGES, Jorge Luís. História Universal da Infâmia. Trad. Flávio José Cardoso. São Paulo: Global, 1998.
BRAGA, Rubem. Engraxates de São Paulo: Folha da Noite, domingo, 14 de abril de 1935. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/almanaque/rubembraga1.htm>. Acesso em: 17 out. 2009.
CALABRESE, Omar. A Idade Neobarroca. Trad. de Carmen de Carvalho e Artur Morão. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, 1987.
CAMUS, Albert. Diário de viagem: a visita de Camus ao Brasil. Trad. de Valerie R. Chaves. São Paulo: Editora Record, 1978.
CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas. São Paulo: Edusp, 2003
CARPENTIER, Alejo. A harpa e a sombra. Trad. de Reinaldo Guarani. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1987.
_________. Ensayos selectos. Buenos Aires: Ediciones Corrigidor, 2003.
_________. La ciudad de las columnas. Habana: Editorial Letras Cubanas, 1982.
_________.. Literatura & consciência política na América Latina. Trad. de Manuel J. Palmeirim. São Paulo: Global Editora e distribuidora ltda, 1969.
_________. O reino deste mundo. Trad. de João Olavo Saldanha. Rio de Janeiro:
Editora Civilização Brasileira, 1985.
_________. Visão da América. Trad. de Rubia Prates e Sérgio Molina. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
CENDRARS, Blaise. Brasil, vieram os homens. Trad. de Célia Henriques e Vitor S.
Tavares. Lisboa: Edições Culturais do Subterrâneo, 1996.
CERTAU, Michel de. A invenção do cotidiano 1: artes do fazer. Trad. de Ephraim Ferreira Alves. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1994.
CHIAMPI, Irlemar. A História tecida pela imagem. In: A Expressão Americana.
Tradução, introdução e notas de Irlemar Chiampi. São Paulo: Editora Perspectiva,1988.
_________. Forma e ideologia no romance hispano-americano. São Paulo:
Perspectiva, 1980.
182
_________. O Barroco e a modernidade: ensaios sobre literatura latino-americana.
São Paulo: Editora Perspectiva, 1998.
_________. O moderno e o contramoderno: a metáfora barroca de Jose Lezama Lima. Publicado em março de 1998. Disponível em: <http://www.usp.br/revistausp/01/13-irlemar.pdf>. Acesso em 07 de agosto de 2009.
CHOAY, Françoise. O urbanismo: utopias e realidade, uma antologia. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1979.
COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2003.
DANIEL, Cláudio. A escrita como tatuagem. Disponível em:
<http://www.elsonfroes.com.br/cdnbaroc.htm>. Acesso em: agosto de 2010.
DEL BRENNA, Giovana Rosso. Medieval ou barroco? Proposta de leitura do espaço urbano colonial. In: ÁVILA, Affonso. Barroco 12, Belo Horizonte: Imprensa Universitária, 1982/3.
_________. Medieval ou barroco? Proposta de Leitura do Espaço Urbano Colonial. ÁVILA, Affonso. Barroco 12. Belo Horizonte: Imprensa Universitária, 1982/3.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs v. 5. Trad. de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Editora 34, 2002.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Trad. de Eloisa A. Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998.
DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Trad. de Luis B. L.Orlandi. Campinas: Papirus, 1991.
_________. Foucault. Trad. de Cláudia Sant‘anna Martins. São Paulo: Brasiliense, 1988.
DELGADO, Manuel. Apropriaciones inapropriadas: usos insolentes do espaço público en Barcelona. Publicado em 2005. Disponível em: <http://www.ciutatsocasionals.net/textos/textosprincipalcast/delgado.htm>. Acesso em: abril de 2005
_________. El animal público. Barcelona: Editorial Anagrama, 1999.
_________. Lo comum y lo colectivo. Disponível em: <http://medialab_prado.es/mmedia/0/688/688.pdf>. Acesso em: abril de 2010.
_________. Sociedades Movedizas: pasos hacia uma antropologia de las calles. Barcelona: Editorial Anagrama, 2007.
DIOS, Jorge Ramos de. El gato y el ratón. Ambulantes urbanos y poder
municipal. Arquitextos. São Paulo, 04.046, Vitruvius, março 2004. Disponível
em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/04.046/598>. Acesso
em: fevereiro de 2005.
DO RIO, João. A alma encantada das ruas. São Paulo: Martin Claret, 2007.
183
DUHAU, Emilio. La ciudad informal: el orden urbano y el derecho a la ciudad. Publicado em 2003. Disponível em: <http://free-books-online.net/LA-CIUDAD-INFORMAL-EL-ORDEN-URBANO-Y-EL-DERECHO-A-LA-CIUDAD-pdf>. Acesso em: agosto de 2010.
FERREIRA, João S. Whitaker. O mito da cidade-global: o papel da ideologia na produção do espaço urbano. São Paulo/Petrópolis/Salvador: Editora Unesp/Vozes/
Anpur, 2007.
FIX, Mariana. Parceiros da exclusão: duas histórias da construção de uma ―nova cidade‖ em São Paulo. São Paulo: Boitempo, 2001.
FLÓREZ, Fernando Castro. El post-voyeurismo en la época de la favelización inevitable: unas consideraciones sobre el imaginário fotográfico de Dionisio González. Publicado em 2004. Disponível em: <http://www.dionisiogonzalez.es/txt/texto_folkwang_fcas.pdf>. Acesso em: fevereiro de 2010.
FLUSSER, Vilém. Pós história: vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo: Duas Cidades, 1983.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. de Luis Felipe Baeta Neto. São Paulo: Forense Universitária 2009.
_________. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Trad. de Inês A. D. Barbosa. São Paulo: Forense Universitária 2009.
FRÚGOLI, Heitor. Centralidade em São Paulo: trajetórias, conflitos e negociações na metrópole. São Paulo: EDUSP/Cortez/FAPESP, 2000.
GASPARINI, Graziano. A arquitetura barroca latino-americana: uma persuasiva retórica provincial. In: ÁVILA, Affonso. Barroco: Teoria e análise. São Paulo: Editora Perspectiva, 1997.
GIL, José. Metaenomenologia da monstruosidade: o devir monstro. In: SILVA, Tomás Tadeu. Pedagogia dos Monstros: os prazeres e os perigos das confusões de fronteiras. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
GLISSANT, Edouard. Introdução a uma poética da diversidade. Trad. de Eunice A. Rocha. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.
GONZÁLEZ, Dionisio. La víspera del acontecimento: uma visión de São Paulo. Disponível em: <www.dionisiogonzales.es/>. Acesso em: fevereiro de 2010.
_________. Paulicéia desvairada: visões do perímetro. Disponível em: <www.dionisiogonzales.es/>. Acesso em: fevereiro de 2010.
GRUZINSKI, Serge. O Pensamento Mestiço. Trad. de Rosa Freire d‘Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
GUATTARI, Felix. La ciudad subjetiva y post-mediática: La polis reinventada. Cali: Fundación Comunidad, 2008.
_________. Plan sobre el planeta: capitalismo mundial integrado y revoluciones moleculares. Madrid: Traficantes de Sonhos, 2004.
184
JACQUES, Paola Berenstein. A estética da ginga: a arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001.
_________. Cartografias da mare. In: VARELLA, D.; BERTAZZO, I.; JACQUES, P.B. Maré vida na favela. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.
JÁUREGUI, Jorge Mario. La ciudad en devenir: economías informales, espacios efímeros. Publicado em 2005. Disponível em:
<http://www.ciutatsocasionals.net/textos/textosprincipalcast/jauregui.htm>. Acesso em: março de 2005.
JORNAL DA COMUNICAÇÃO CORPORATIVA. Jesuítas fundaram Sampa. Empresários ajudam a reconstruir. 27 de nov. de 2004. Disponível em: <http://www.megabrasil.com.br/jcc/not002.htm>. Acesso em: 27 set. 2009.
KAFKA, Franz. Narrativas do espólio. Trad. de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras,1997.
_________. Um médico Rural. Trad. de Modesto Carone. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1990.
LAPLANTINE, François; NOUSS, Alexis. A mestiçagem. Lisboa: Instituto Piaget, [s/d].
_________. Mestizajes: de Arcimboldo a zombi. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 2007.
LAPLANTINE, François; OLIEVENSTEIN, Claude. Um olhar francês sobre São Paulo. Trad. de Maria C. Cunha. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993.
LEVY, Tatiana Salem. A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
LIMA, José Lezama. Tratados en la Habana. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 1969.
_________. A dignidade da poesia. Trad. de Josely V. Baptista. São Paulo: Editora Ática, 1996.
_________. A expressão Americana. Trad. introdução e notas de Irlemar Chiampi. São
Paulo: Editora Perspectiva, 1988.
_________. Confluencias: seleccion de ensayos. Habana: Editorial Letras Cubanas, 1988.
_________. Las eras imaginárias. Madrid: Editorial Fundamentos, 1971.
_________. Relatos. Madrid: Alianza Editorial, 1999.
_________. Sucesivas e coordenadas. Buenos Aires: Espasa Calpe, 1993.
LINS, Daniel. A morte como acontecimento. Publicado em 21/04/2010. Disponível em: <http://www.cpflcultura.com.br/video/morte-como-acontecimento-daniel-lins>. Acesso em: julho de 2010
LOTMAN, Yuri M.. La semiosfera 1: semiótica de la cultura e del texto. Trad. de Desiderio Navarro. Madrid: Ediciones, 1996.
185
_________. Universe of the mind: a semiotic theory of culture. Bloomington –Indianapolis: Indiana University Press, 2000.
MACHADO, Lourival Gomes. Barroco mineiro. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973.
MACIEL, Maria Esther. Ocidente/Oriente: uma conversa com Haroldo de Campos. Disponível em: <http://www.revistazunai.com/entrevistas/haroldo_de_campos.htm>. Acesso em: agosto de 2010.
MAFFESOLI, Michel. Notes sur le syncrétisme, le baroque et la posmodernité. In: MOSER, W; GOYER, N. (DIR.). Résurgences baroques. Barthélemy: La Lettre Volée, 2001.
MANRIQUE, Jorge Alberto. A formação da arquitetura barroca americana. In: ÁVILA, Affonso (Org.). Barroco: teoria e análise. São Paulo: Editora Perspectiva,1997.
MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Trad. de Ronaldo Polito e Sérgio Alcides. Rio de janeiro: Editora UFRJ, 2006.
_________. Ofício de cartógrafo: travesías latinoamericanas de en la cultura. Santiago: Fondo de Cultura Económica, 2002.
MARX, Murillo. Seis conventos franciscanos, seis cidades paulistas. In: ÁVILA, Affonso. Barroco 12. Belo Horizonte: Imprensa Universitária, 1982/3.
MENEZES, Rodrigo Carqueja de. Devir e Agenciamento no pensamento de Gilles Deleuze. Junho 2006. Revista Eletrônica COMUM. Disponível em: <http://www.facha.edu.br/publicacoes/comum/comum26/artigo3.pdf>. Acesso em: junho de 2010.
MORENO, César Fernandez (Org.) América Latina em sua literatura. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972.
NEGRI, Toni. Qu‘est-cequ‘um événement ou um lieu biopolitique dans la metrópole? Disponível em: <http://eurozine.com/articles/2008-01-21-negri-fr.htm>. Acesso em: agosto 2010.
NUNES, Benedito. O universo filosófico e ideológico do barroco. In: ÁVILA, Affonso (Org.). Barroco 12. Belo Horizonte: Imprensa Universitária, 1982/3.
PEREIRA, Gabriela de Gusmão. Rua dos Inventos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul,
2004.
PESSÔA, José. Cidade barroca ou tardo-medieval? A arquitetura na definição da América portuguesa. Disponível em: <http://www.upo.es/depa/webdhuma/areas/arte/actas/3cibi/documentos/089f.pdf>. Acesso em: novembro de 2009.
PINHEIRO, Amálio. Aquém da identidade e da oposição: formas na cultura mestiça. Piracicaba: Editora Unimep, 1994.
_________. Por entre mídias e artes, a cultura. Húmus 2. Caxias do Sul: Lorigraf,
2007.
186
PORTO, Antônio Rodrigues. História urbanística da cidade de São Paulo (1554 a 1988). São Paulo: Cartago &Forte, 1992.
RAMA, Angel. A cidade das letras. Trad. de Emir Sader. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984.
RAMALHO, Marina. Imóveis em favela são concorridos no mercado informal.
Disponível em: <http://www.faperj.br/boletim_interna.phtml?obj_id=3093>. Acesso em: abril de 2010.
REIS FILHO, Nestor Goulart. Notas sobre o urbanismo barroco no Brasil. In: ÁVILA, Affonso. Barroco: Teoria e análise. São Paulo: Editora Perspectiva, 1997.
ROSSET, Clément. Alegria: A Força Maior. Trad. de Eloisa Araújo Ribeiro. Rio de Janeiro: Editora Relume Dumará, 2000.
SANT‘ANNA, Gilka Goulart; SILVA, Valdete C. P. Imagens barrocas de Roca da Bahia. In: ÁVILA, Affonso (Org.). Barroco 12. Belo Horizonte: Imprensa Universitária, 1982/3.
SANTOS, Boaventura Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Editora Cortez, 2009.
_________. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Editora Cortez, 2006.
_________. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo:
Cortez Editora, 2005.
_________. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
SARDUY, Severo. Antología. México D. F., Fondo de Cultura Económica, 2000.
_________. Barroco. Trad. de Maria de Lurdes Júdice e José Manuel de Vasconcelos. Lisboa: Editora Vega Universidade, 1988.
_________. Cobra. Trad. de Gerardo Mello Mourão. Rio de Janeiro: José Alvaro, 1975.
_________. Escritos sobre um Corpo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979.
SENNET, Richard. Carne e Pedra. Trad. de Marcos Aarão Reis. Rio de janeiro: Best Bolso, 2008.
_________. Vida urbana e identidad personal: los usos del desorden. Trad. de Josef Rovira. Barcelona: Ediciones Península, 1975.
SILVA, Helga Santos da. Arquitetura moderna para habitação popular: a apropriação dos espaços no conjunto residencial Mendes de Moraes (Pedregulho) – tese de mestrado da UFRJ. Publicado em fevereiro 2006. Disponível em:
<http://www.cipedya.com/web/FileDownload.aspx?IDFile=162556>. Acesso em: julho
de 2010.
187
SILVA, José Humberto. Os filhos do desemprego: jovens itinerantes do primeiro emprego. Brasília: Líber Livro, 2009.
SILVA, Tomás Tadeu. Pedagogia dos Monstros: os prazeres e os perigos das confusões de fronteiras. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
SODRÉ, Muniz; PAIVA, Raquel. O império do Grotesco. Rio de Janeiro: editora Mauad, 2004.
SOLÁ-MORALES, Ignasi. Differences: Topographies of contemporary architecture. Janson: MIT Press, 1999.
_________. Territorios. Barcelona: Gustavo Gilli, 2002.
TAN, Pelin. Las comunidades en médio de las transformaciones urbanas. Disponível em: <http://www.ciutatsocasionals.net/textos/textosprincipalcast/tan.htm>. Acesso em: junho 2009.
TORROJA, Pío. Cinzento público americano. Publicado em 2005. Disponível em:
<http://www.seacex.es/Spanish/Publicaciones/POST_IT_CITY_CIUDADES_OCASIONALES/Post-It%20City.%20Occasional%20Urbanities.pdf>. Acesso em: maio de 2005.
TOURNIER, Michel. Sexta-feira ou os limbos do Pacífico. Trad. de Fernanda Botelho. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991.
VAINER, Carlos. Pátria, empresa e mercadoria. In: ARANTES, Otilia; VAINER, Carlos; MARICATO, Erminia. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2000.
VALLADARES, Lícia. Social science representations of favelas in Rio de janeiro: a historical perspective. Disponível em: <http://lanic.utexas.edu/project/etext/llilas/vrp/valladares.pdf>. Acesso em: agosto de 2010. VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. Trad. de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
VIGARELLO, Georges. O limpo e o sujo: a higiene do corpo desde a Idade Média. Lisboa: Fragmentos: 1985.
VILLAÇA, Nízia. Revista Eletrônica Logos 25: Corpo e Contemporaneidade. Ano 13, 2º semestre de 2006. Disponível em: http://www.logos.uerj.br/PDFS/25/07_Nizia_Villaca.pdf. Acesso em: maio de 2010.
Recommended