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Este trabalho tem como objetivo entender a formação dos pastores pentecostais: o processo da constituição de suas subjetividades, bem como as práticas e representações envolvidas na definição daqueles que seguirão a carreira de pastor pentecostal. Apresentarei dois processos que entendo serem essenciais para a formação do pastor: o primeiro é a construção da narrativa do chamado, na qual o líder pentecostal consolida sua vocação e mostra que foi escolhido por Deus para exercer um ministério específico no mundo. O segundo processo consiste na necessidade – e obrigação - que os vocacionados têm de serem “usados por Deus”, ou seja, agirem direcionados pela unção de Deus, termo por eles designado para representar o poder transcendental, especial e principalmente, na performance da prédica direcionada ao restante dos fieis. As análises aqui apresentadas baseiam-se em trabalho de campo conduzido, primeiramente, na Escola de Líderes da Associação Vitória em Cristo (ESLAVEC), realizada na cidade de Águas de Lindóia, em São Paulo, em dezembro de 2012. Após o congresso, acompanhei jovens pastores e candidatos ao pastorado pentecostal em algumas igrejas, principalmente nas filiais da Assembleia de Deus Vitória em Cristo no Recife, nos bairros de Boa Viagem (a sede pernambucana) e Cordeiro. Tendo percebido a dimensão interdenominacional da ESLAVEC, também acompanhei e entrevistei jovens pastores pentecostais das igrejas Vida e Paz, na cidade de Camaragibe (PE), e a Igreja Batista Missionária Palavra Viva, no bairro da Várzea, em Recife, como contraponto reflexivo, no intuito de testar os limites de minhas generalizações no campo pentecostal a respeito da constituição do líder pentecostal.Palavras Chaves: Pentecostalismo, liderança pentecostal, pastores, chamado, unção, poder transcendental, performance, experiência.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA E MUSEOLOGIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA
CLEONARDO MAURICIO JUNIOR
VASOS NAS MOS DO OLEIRO: A CONSTITUIO DO PASTOR
PENTECOSTAL
Orientadora: Profa. Dra. Roberta Bivar Carneiro Campos
Recife
2014
CLEONARDO GIL DE BARROS MAURICIO JUNIOR
VASOS NAS MOS DO OLEIRO: A CONSTITUIO DO PASTOR
PENTECOSTAL
Dissertao orientada pela Profa. Dra.
Roberta Campos e apresentada ao
Programa de Ps-Graduao em
Antropologia da Universidade Federal
de Pernambuco como parte das
exigncias para obteno do ttulo de
Mestre.
Recife
2014
Catalogao na fonte
Bibliotecria Maria do Carmo de Paiva CRB-4 1291
M455v Maurcio Jnior, Cleonardo Gil de Barros.
Vasos nas mos do oleiro : a constituio do pastor pentecostal / Cleonardo Gil de Barros Maurcio Jnior. Recife: O autor, 2014.
126 f. : il. ; 30 cm.
Orientadora: Prof. Dr. Roberta Bivar Carneiro Campos.
Dissertao (mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco, CFCH. Programa de Ps-Graduao em Antropologia, 2013.
Inclui referncias.
1. Antropologia. 2. Pentecostalismo. 3. Igrejas pentecostais. 4. Liderana Aspectos religiosos. 5. Uno. I. Campos, Roberta Bivar Carneiro (Orientadora). II. Ttulo.
301 CDD (22.ed.) UFPE (CFCH2014-128)
Cleonardo Gil de Barros Maurcio Jnior
Vasos nas mos do Oleiro: A Constituio do Pastor Pentecostal
Dissertao apresentada ao Programa de
Ps-graduao em Antropologia da
Universidade Federal de Pernambuco como
requisito parcial para a obteno do ttulo de
Mestre em Antropologia
Aprovado em: 26/02/2014
BANCA EXAMINADORA
Profa. Dr
a. Roberta Bivar Carneiro Campos (Orientadora)
Programa de Ps-Graduao em Antropologia UFPE
Profo. Dr
o. Roberto Mauro Cortz Motta (Examinador Titular Interno)
Programa de Ps-Graduao em Antropologia UFPE
Profa. Dra. Claudia Wolff Swatowiski (Examinadora Titular Externa)
Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ
minha av Alice, que me ensinou a cantar as palavras
(in memorian)
AGRADECIMENTOS
minha v Alice, a quem dedico este trabalho. Quando tinha uns doze anos, fui at ela
dizendo que no conseguia entender de jeito nenhum a classificao das palavras de acordo
com a slaba tnica: Oxtona, paroxtona, proparoxtona, enfim, no tinha jeito de acertar e
uma prova de portugus vinha pela frente. Vov, com sua experincia de ter alfabetizado
centenas de pessoas (fundou e dirigiu duas escolas em Camaragibe), me disse: - Voc fala
guaRna, ou guaraN? Cante comigo: GuaraN, beBIIIIIIda, sorVEEEEte. E assim,
eu e ela ficamos ali uma tarde inteira, cantando as palavras. Ela se balanava naquela cadeira
de balano - que fazia um barulhinho servindo como a msica de nossas palavras cantadas
fazendo a segunda voz. E eu, de to empolgado, devo ter cantado quase um dicionrio inteiro
junto com ela. V, se ainda erro no culpa sua. Onde estiver, muito obrigado por ter me
ensinado a cantar as palavras. H mais de 46.000 delas neste trabalho, todas dedicadas a voc
(P.S: No precisei cantar todas elas).
Aos meus pais, como se dissesse gua (Estou copiando uma dedicatria de Saramago a
Pilar, eu sei, mas eu no poderia dizer melhor).
minha orientadora, a professora Roberta Campos. Ela foi o oleiro que moldou este
vaso. Foi a responsvel por eu ter escolhido a Antropologia como carreira (com a contribuio
do meu eterno tutor do PET Cincias Sociais, Peter Schrder). Mas Roberta a grande
responsvel por minha formao. Minhas falhas, porm, no so culpa dela. Trago-as de
muito antes.
A Tiago e Ivan, lderes dos jovens da Assembleia de Deus Vitria em Cristo (na filial da
Caxang e na sede pernambucana, respectivamente). As conversas que tivemos ultrapassaram
a formalidade de uma entrevista e acredito ter feito novos amigos. Tambm agradeo ao
pastor Rafael, lder da ADVEC em Pernambuco, pela acolhida que me proporcionou em sua
igreja no perodo de meu trabalho de campo.
Cora Sales, artista que desenhou a capa deste trabalho.
Ao CNPq, por ter me concedido a bolsa de estudos que possibilitou a realizao deste
trabalho e ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia da UFPE, onde me sinto em casa.
E a Gabriela, meu amor, que guarda no seu sorriso o poder de me fazer sorrir tambm.
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo entender a formao dos pastores pentecostais: o processo da
constituio de suas subjetividades, bem como as prticas e representaes envolvidas na
definio daqueles que seguiro a carreira de pastor pentecostal. Apresentarei dois processos
que entendo serem essenciais para a formao do pastor: o primeiro a construo da
narrativa do chamado, na qual o lder pentecostal consolida sua vocao e mostra que foi
escolhido por Deus para exercer um ministrio especfico no mundo. O segundo processo
consiste na necessidade e obrigao - que os vocacionados tm de serem usados por Deus,
ou seja, agirem direcionados pela uno de Deus, termo por eles designado para representar o
poder transcendental, especial e principalmente, na performance da prdica direcionada ao
restante dos fieis. As anlises aqui apresentadas baseiam-se em trabalho de campo conduzido,
primeiramente, na Escola de Lderes da Associao Vitria em Cristo (ESLAVEC), realizada
na cidade de guas de Lindia, em So Paulo, em dezembro de 2012. Aps o congresso,
acompanhei jovens pastores e candidatos ao pastorado pentecostal em algumas igrejas,
principalmente nas filiais da Assembleia de Deus Vitria em Cristo no Recife, nos bairros de
Boa Viagem (a sede pernambucana) e Cordeiro. Tendo percebido a dimenso
interdenominacional da ESLAVEC, tambm acompanhei e entrevistei jovens pastores
pentecostais das igrejas Vida e Paz, na cidade de Camaragibe (PE), e a Igreja Batista
Missionria Palavra Viva, no bairro da Vrzea, em Recife, como contraponto reflexivo, no
intuito de testar os limites de minhas generalizaes no campo pentecostal a respeito da
constituio do lder pentecostal.
Palavras Chaves: Pentecostalismo, liderana pentecostal, pastores, chamado, uno, poder transcendental, performance,
experincia.
ABSTRACT
This study aims to understand the formation of the Pentecostal pastors: the process of
formation of their subjectivities, as well as the practices and representations involved in the
definition of those who will follow the career of a Pentecostal pastor. I will present two
processes that are essential to understand the formation of the pastor: the first is the
construction of the narrative of the calling, in which the Pentecostal leader consolidates his
vocation showing that he was chosen by God to exercise a particular ministry in the world.
The second process is the need - and obligation - of being "used by God", ie, to act driven by
the anointing of God, a term designated by them to represent the transcendental power,
especially the preaching performance displayed to the rest of the faithful. The analysis
presented here is based on fieldwork conducted primarily at the School of Leaders
Association Victory in Christ (ESLAVEC), held in the town of Aguas de Lindia, in So
Paulo, in December 2012. After the conference, I followed young pastors and pastor
candidates in some churches, especially in branches of Assembly of God Victory in Christ
church, in Recife, in the districts of Boa Viagem and Cordeiro. Having realized the
interdenominational of ESLAVEC, I also followed and interviewed young Pentecostal pastors
from Life and Peace church, in the city of Camaragibe (PE), and the Living Word Missionary
Baptist Church, in the Vrzea neighborhood, in Recife, pursuing a reflective counterpoint in
order to test the limits of my generalizations concerning the formation of leaders in the
Pentecostal field.
Keywords: Pentecostalism, Pentecostal leadership, pastors, calling, anointing, transcendental
power, performance, experience
SUMRIO
Introduo................................................................................................................................10
Cap. 1: O crescimento mais explosivo da histria das religies.....................................28
1.1 Os evanglicos e seus nmeros no panorama religioso brasileiro......................................30
1.2 E por que tanto crescem os pentecostais?...........................................................................34
1.3 O pentecostalismo e sua intensa atividade ritual................................................................41
1.4 Unindo os pontos................................................................................................................43
Cap. 2: Ser Chamado por Deus.............................................................................................47
2.1 Outros elementos constitutivos do chamado......................................................................52
2.2 O chamado e a Mitoprxis das narrativas bblicas.............................................................55
2.3 A construo da narrativa do chamado como performance, e como mitoprxis................61
Cap. 3: Ser Usado por Deus...................................................................................................69
3.1 Uma pequena introduo prdica pentecostal..................................................................72
3.2 O ritual da prdica como performance...............................................................................74
3.3 Uma tentativa de construo da Tipologia da Prdica pentecostal.....................................76
3.4 A estrutura da performance da prdica pentecostal............................................................79
3.5 Tanto oleiro quanto vaso.....................................................................................................89
Cap. 4: Perspectiva e Consonncia: Ensaio sobre as fontes do poder...............................93
4.1 Mary Douglas e o poder da estrutura..................................................................................94
4.2 mile Durkheim e o poder da sociedade............................................................................96
4.3 Victor Turner, liminaridade e o extra-cotidiano.................................................................99
4.4 Durkheim, Turner e o Poder da Consonncia entre Liminaridade, Dinamogenia e
Communitas............................................................................................................................102
4.5 Mary Douglas e a liminaridade de uma boa piada...........................................................106
4.6 O ponto para o qual o transcendente converge.................................................................110
4.7 A perspectiva e a consonncia na constituio da liderana pentecostal..........................111
Consideraes Finais.............................................................................................................116
Referncias ............................................................................................................................122
10
Introduo
De tudo o que voc puder pedir a Deus durante estes dias, pea somente uma
experincia com Ele. Esta foi a frase em tom de conselho solene que ouvi de um participante
da ESLAVEC (Escola de Lderes da Associao Vitria em Cristo) enquanto nos dirigamos
ao local onde seria dado incio programao. J havamos nos apresentado assim que
cheguei ao quarto do hotel (reservado somente para participantes do Congresso) que
dividiramos, ao longo daquela semana, com mais dois jovens vindos de diferentes estados do
pas. quela altura tambm j dissera estar ali no intuito de fazer o trabalho de campo para
minha dissertao de mestrado (comuniquei minhas intenes assim que cheguei). Durante
aquela semana, ns (os quatro jovens) participamos juntos da programao e tivemos a
oportunidade de conversar sobre cada momento dos (muitos) cultos voltados especialmente
para os lderes pentecostais. Compartilhando com eles desde a intensa programao do
Congresso at as refeies, pude conversar sobre suas expectativas com relao aos seus
ministrios (a forma como os pentecostais nomeiam o trabalho pelo qual foram designados
por Deus para exercerem no mundo, sua vocao). Fiz inmeras perguntas sobre suas vidas
nas suas respectivas igrejas e respondi muitas mais sobre o meu trabalho. Tanto despejei
arguies a torto e a direito quanto fui alvo de debates que varavam a noite quando eles, no
intuito de me evangelizarem, revezavam-se horas tentando me convencer da necessidade
urgente de minha converso. Gravei horas de conversa, recebi oraes, empunhei o gravador
na direo deles, tive mos impostas sobre minha cabea ( assim que eles oram por algum),
pedi para repetir entrevistas, pediram-me para que me ajoelha-se, perguntei como aquelas
coisas nas histrias por eles contadas podiam realmente acontecer, e perguntaram-me de
volta: como no poderiam?
O conselho que recebi (pea a Deus uma experincia) foi relegado por mim, em um
primeiro momento, a somente mais uma tentativa de proselitismo (ao qual j estava
acostumado por ter feito, desde a iniciao cientfica, trabalho de campo entre os
pentecostais1). Uma semana de intensa convivncia, no entanto, seria responsvel por me
1Participei como aluno de graduao do projeto Textualidade e Oralidade da Bblia, coordenado pela
professora Roberta Campos (PPGA - UFPE) e financiado pelo CNPq. Da participao neste projeto originou-se
meu Trabalho de Concluso de Curso de Graduao:; Da Cultura Pentecostal ao Lder Carismtico: Os Crentes da Assemblia de Deus e a Performance do Pastor Silas Malafaia. Continuei participando do projeto como aluno de mestrado, resultando da a publicao de dois artigos em parceria com a prof. Roberta
11
fazer compreender a significncia daquela declarao para os crentes pentecostais, e,
consequentemente, para o meu trabalho. Antes, a frase inaugural do primeiro preletor da
semana, o prprio pastor Malafaia, lder do evento, foi significativa para dar incio forma
como, hoje, entendo a constituio do lder pentecostal: Eu quero que voc me encontre um
dia e diga aquela semana mudou a minha vida. Era exatamente isto o que as pessoas
procuravam ali. Uma experincia inesquecvel que se erguesse portentosamente do fluxo de
suas vidas cotidianas dividindo-as entre antes e depois do que ali acontecesse. verdade que
estavam ali tambm procurando dicas de administrao eclesistica, de resoluo de conflitos,
melhores formas de aconselhar seus liderados, etc. No entanto, a forma como compreendo os
eventos a serem analisados neste trabalho derivou-se, acima de tudo, do mergulho naquela
atmosfera embebida de uma expectativa crescente, real e iminente de que algo extraordinrio,
a cada culto, fosse acontecer. Atmosfera que, de to densa, era quase passvel de ser tocada.
Vi, ento, ao longo dos cultos, lgrimas, abraos, cnticos realizados em um nvel de
contrio difcil de ser presenciado, arroubos de risos e prantos, palmas e danas, brados e
murmrios, pedidos e agradecimentos. Quando, no clmax de toda a programao, presenciei
bem ao meu lado um rapaz retornar da convocao feita pelo pregador da noite (para que
todos os jovens - e eram inmeros - fossem frente a fim de receberem uma orao) e abraar
fortemente aquele que me pareceu ser seu pai enquanto dizia: agora eu sei, agora eu tenho a
resposta, entendi o conselho que recebi no comeo da semana e baseei nele minhas anlises.
Este trabalho tem como objetivo entender a constituio dos pastores pentecostais: o
processo de construo de suas subjetividades, bem como as prticas e representaes
envolvidas na definio daqueles que seguiro a carreira de pastor pentecostal. Apresentarei
dois processos que entendo serem essenciais para a formao do pastor: O primeiro a
construo da narrativa do chamado, na qual o lder pentecostal consolida sua vocao e
mostra que foi escolhido por Deus para exercer um ministrio especfico no mundo. Quando
perguntados sobre o porqu de terem se tornado pastores, os crentes pentecostais prontamente
afirmavam que tinham certeza de terem sido chamados por Deus para este ministrio. E como
tinham certeza? Para responder (mais) esta pergunta narravam, geralmente, uma histria
Campos (CAMPOS & MAURICIO JUNIOR, 2012, 2013), bem como a participao em vrios eventos
acadmicos, dentre eles a Reunio Brasileira de Antropologia (2012) e o Congresso da Associao Latino
Americana de Sociologia (ALAS, 2013), onde discutimos verses preliminares destes artigos. Esta dissertao
de mestrado tambm fruto do mesmo projeto.
12
permeada de encontros extraordinrios, os quais me levaram a entender que tais narrativas
eram informadas pelo que chamei de doutrina do eleito misticamente escolhido.
O segundo processo consiste na necessidade e obrigao - que os vocacionados tm de
serem usados por Deus, ou seja, agirem direcionados pela uno de Deus, termo por eles
designado para representar o poder transcendental, especial e principalmente, na ocasio da
prdica direcionada ao restante dos fieis. A prdica representa a culminncia da busca pela
forma perfeita dos vocacionados, lderes e pastores compartilharem suas experincias (the
perfect expressive form for their experience, TURNER, 1982, p. 15), consideradas
formativas e transformativas (TURNER, 2005, p 178, 179). Quando esto no plpito,
pregando, os lderes carismticos exercem a atividade mais importante do seu ministrio. Ali
pretendem compartilhar as experincias que tiveram com Deus, e, acima de tudo, promov-las
entre seus ouvintes, conduzindo-os a partir das estruturas (cognitivas, afetivas, volitivas e
corporais) autorizadas na comunidade de significao (sensational forms, MEYER 2010) para
construir o sentido da presena do transcendente, produzindo a imanncia (no corpo do fiel)
desta transcendncia.
Ser chamado por Deus e ser usado por Deus, portanto, so premissas indispensveis a
todo lder pentecostal. importante ressaltar a relao intrnseca que tais processos tm com a
experincia pentecostal. Depois do episdio no qual vi o rapaz chorando abraado ao seu pai,
dirigi-me at ele para fazer algumas perguntas. Afirmei t-lo ouvido afirmar que agora
sabia. O que voc, agora, sabe?, perguntei. Deus quer que eu seja pastor, como meu pai,
tenho certeza. somente porque obteve a resposta, nesta experincia vivenciada na
ESLAVEC, que este jovem pode contar a histria de seu chamado quando perguntado, e
desenvolver um sentido de self empoderado para promover os mesmos tipos de experincias
entre seus ouvintes nas suas futuras prdicas. Entendo que o foco na experincia, como afirma
Mellor (2010), pode iluminar a natureza incorporada (embodied) das crenas e prticas,
evitando as limitaes de um esforo interpretativo que se resume a descrever cosmologias e
cosmogonias de um grupo religioso. Esta preocupao posta, por exemplo, por Montero
(2012) quando afirma que grande parte dos estudos antropolgicos sobre os fenmenos
religiosos ainda permanece demasiadamente voltada para o esforo de leitura e decodificao
das cosmologias e universos simblicos (Montero 2012, p. 167). O problema a seria, para a
autora, o fascnio pela retrica da experincia e o foco nela (na experincia), faria com que
os antroplogos se preocupassem exclusivamente com a experincia do transcendente, e se
13
limitassem a traduzi-lo, ficando satisfeitos em terem exclusividade nesta capacidade de
traduo. A consequncia, no entanto, seria to somente proceder com a reificao
ontolgica das vises de mundo que descreviam e analisavam (p. 168).
Concordo com Montero a respeito do perigo de reificao das vises de mundo estudadas.
Discordo, porm, que se incorra neste erro devido ao foco na experincia religiosa. Montero
quer transferir o foco das instituies para as prticas, deixando de lado os modelos
fundados nos comportamentos e nas crenas em direo aquilo que efetivamente fazem os
indivduos (p: 170). Tambm pretendo focar naquilo que efetivamente os indivduos fazem,
porm entendo, juntamente com Mellor (2010), que a religio um embodied phenomenon
e, portanto, a dimenso da experincia no pode ser negligenciada. De forma oposta ao que
entende Montero, o foco na experincia pode ajudar a iluminar a natureza incorporada
(embodied) das crenas e prticas, no somente descrev-las, traduzi-las, e, muito menos,
reific-las. A dimenso da experincia pode ser entendida como um intermedirio entre
crenas e prticas, ajudando-nos a compreender como estas ltimas so incorporadas
(embodied) nos, e pelos fiis. Voltando a Mellor (2010), os aspectos da crena, das prticas e
da experincia, abrangendo, os trs, todos os aspectos do que ser religioso so intimamente
e inextricavelmente relacionados s capacidades e potencialidades dos corpos, e aos variados
padres de modelagem social e cultural aos quais estes so necessariamente sujeitos (p: 587,
traduo nossa)2.
a partir, principalmente, da Antropologia da Experincia de Victor Turner (1982,
2005; TURNER & BRUNER 1986), preocupada em entender como os indivduos realmente
experenciam sua cultura, ou seja, como os eventos so recebidos pela conscincia, que
pretendo analisar as experincias, prticas e representaes pentecostais acerca da
constituio do lder carismtico. Por experincia, importante lembrar, Turner e seus
discpulos, como Bruner (1986), no querem dizer apenas sentido, dados, cognio, ou, nos
dizeres de Dilthey, o suco diludo da razo, mas tambm afetos e expectativas (p. 04,
traduo nossa)3. A cognio, obviamente, um aspecto, faceta ou dimenso importante da
estrutura de qualquer experincia, afirma Turner. O pensamento esclarece e generaliza a
2 intimately, and inextricably, related to the inherent capacities and potentialities of bodies, and the varied
patterns of social and cultural shaping to which they are necessarily subject (MELLOR, 2010, p. 587).
3 The anthropology of experience deals with how individuals actually experience their culture, that is, how
events are received by consciousness. By experience we mean not just sense, data, cognition, or, in Diltheys phrase, the diluted juice of reason, but also feelings and expectations (BRUNER, 1986, p. 04).
14
experincia vivida, mas necessrio enfatizar que a experincia tambm carregada de
emoo e volio (TURNER, 1982, p 13, traduo nossa)4. Experincia ope-se aqui,
portanto, a comportamento (BRUNER, 1986). Enquanto este se refere a um observador
descrevendo a ao de outrem e implica somente em engajar-se num comportamento
rotineiro, aquela exige um self ativo que no somente vivencia, mas tenta dar seus prprios
contornos a uma ao. Pode-se at descrever o comportamento de outros, mas quando se trata
de experincias, s possvel t-las (p. 05)
Se podemos experienciar apenas nossas prprias vidas, ou seja, aquilo que recebemos
atravs de nossas prprias conscincias, evidencia-se a um impasse epistemolgico. Como
falar, ento, das experincias dos candidatos a lderes pentecostais? Bruner nos lembra a
resposta de Dilthey para tal questionamento: Ns transcendemos a esfera restrita da
experincia a partir da interpretao das expresses. Estas so consideradas como um
encapsulamento da experincia dos outros (encapsulations of experience of others). Por
expresses, Bruner continua, Dilthey quis dizer representaes, performances,
objetivaes ou textos (BRUNER, 1986, p. 05, traduo nossa)5. Turner (2005) nos lembra,
ainda, que a experincia incita a expresso. Com isso, ele continua, os significados obtidos
s duras penas devem ser ditos, pintados, danados, dramatizados, enfim, colocados em
circulao (p. 180). Uma experincia, assim, , em si mesmo, um processo que pressiona
por uma expresso que a complete (TURNER, 1982, p. 13, traduo nossa)6. Entendo que o
chamado e a prdica pentecostal (mais esta do que aquela) so performances narrativas
(AUSTIN, [1962]1990; BAUMAN, 1975; TURNER, 1982, 1988, 2005) que completam
apropriadamente as experincias que acompanharemos aos longe deste trabalho.
O Trabalho de Campo e as Estratgias Metodolgicas
As anlises aqui apresentadas baseiam-se em trabalho de campo conduzido,
primeiramente, na Escola de Lderes da Associao Vitria em Cristo (ESLAVEC), realizada
4 Cognition is, of course, an important aspect, facet or dimension of any structure of experience. Thought
clarifies and generalizes lived experience, but experience is charged with emotion and volition, sources
respectively of value judgments and precepts. (TURNER, 1982, p 13).
5 we transcend the narrow sphere of experience by interpreting expressions by expressions he meant
representations, performances, objectifications, or texts (BRUNER, 1986, p. 05)
6 An experience is itself a process which presses out to an expression which completes it (TURNER, 1982,
p. 13)
15
na cidade de guas de Lindia, em So Paulo, em dezembro de 2012. Aps o congresso,
acompanhei jovens pastores e candidatos ao pastorado pentecostal em algumas igrejas,
principalmente nas filiais da Assembleia de Deus Vitria em Cristo (a igreja do organizador
do evento) no Recife, nos bairros de Boa Viagem (a sede pernambucana) e Cordeiro. Depois
de perceber a dimenso interdenominacional da ESLAVEC (falaremos disso mais adiante),
tambm acompanhei e entrevistei jovens pastores pentecostais das igrejas Vida e Paz, na
cidade de Camaragibe (PE), e da Igreja Batista Missionria Palavra Viva, no bairro da
Vrzea, em Recife, como contraponto reflexivo, no intuito de testar os limites de minhas
generalizaes no campo pentecostal a respeito da constituio do lder carismtico.
Decidi voltar-me exclusivamente para o acompanhamento de jovens candidatos a pastor
e jovens pastores (com pouco tempo de ministrio) por entender que, entre eles, as
subjetividades requeridas para a carreira pastoral ainda estariam em construo e, portanto,
mais sujeitas observao. O processo de confirmao da vocao ainda estaria em
andamento, enfim. Os jovens pentecostais vocacionados, alm disso, se mostraram mais
dispostos (at mesmo empolgados) a conversar sobre o tema. O contato com os que ainda no
se tornaram lderes de grandes igrejas mostrou-se bem mais acessvel, em comparao aos
lderes de igrejas de alcance nacional, sem mencionar os pastores-celebridade. Em
contrapartida, a observao do segundo processo que entendo ser essencial para a constituio
do pastor, o ritual da prdica pentecostal, mostrou-se mais difcil no caso dos jovens
candidatos ao pastorado pentecostal. Como estes no possuem uma agenda fixa de pregaes,
foram raros os momentos em que foi possvel observ-los em ao.
A ESLAVEC e a Associao Vitria em Cristo
A 4 Escola de Lderes da Associao Vitria em Cristo aconteceu, como disse
anteriormente, em guas de Lindia - SP7 (a 180 km de So Paulo capital, 65 km de
Campinas), de 11 a 15 de dezembro de 2012. O evento direcionado para a formao de
lderes evanglicos e tem como intento promover o preparo e ensino das pessoas que vo
lidar com o povo, visando o crescimento com qualidade, segundo o prprio Silas Malafaia,
lder do evento, na sua fala de abertura do Congresso. Malafaia nos conta, em um dos vrios
momentos em que assumiu o plpito no congresso, como a ESLAVEC surgiu: a partir de sua
7 O evento costuma acontecer em guas de Lindia, com exceo da terceira edio, que se deu em Foz do
Iguau (PR), e da quinta edio, que ocorrer em Fortaleza (CE)
16
participao em uma escola de lderes nos Estados Unidos, promovida pelo Pr. Morris
Cerullo8, a School of Ministry (e que contou, segundo ele, com a participao de seis mil
inscritos). L, Malafaia afirma que o Esprito Santo o teria convocado para fazer uma escola
de lderes semelhante, no Brasil. Assim, a primeira edio da ESLAVEC aconteceu em 2009,
contou com mil participantes e foi sediada em um hotel9. A edio onde iniciei meu trabalho
de campo, por sua vez, j contava com cinco mil inscritos e acontecia na praa central da
cidade, em duas tendas gigantes com ar refrigerado10
, e com vrios hotis fechados
exclusivamente para participantes do evento. O sonho de Malafaia, segundo o prprio,
realizar uma escola com vinte mil participantes dentre lderes e candidatos liderana.
O evento teve incio na tera noite com uma pregao do Pr. Silas Malafaia. A partir
da, at a sexta-feira, a programao constou de trs cultos dirios. Dois acontecendo pela
manh, sendo que em um deles, no primeiro horrio (08:30h s 10:30h), homens e mulheres
ficavam em lugares separados com uma programao especfica para cada grupo11
. No
segundo horrio matinal (10:30h s 12:30h), todos se encontravam. O outro culto acontecia
noite (19:30h s 21:30h), totalizando dez cultos durante toda a programao, sendo as tardes
livres12
. Em cada encontro, vrios cantores e cantoras pertencentes Central Gospel
(gravadora de Malafaia) eram responsveis pelo louvor (momento musical do culto), que era
seguido de uma pregao, a conferncia. Malafaia foi conferencista por duas vezes. Outros
8 Cerullo um dos principais tele-evangelistas americanos e divulgadores da Teologia da Prosperidade. Seu
ministrio, o Morris Cerullo World Evangelism (MCWE), sediado em San Diego, California, e se caracteriza
por promover eventos evangelsticos em todo o globo. Para mais detalhes: www.mcwe.com
9 A segunda edio, em 2010, contou com 4.000 participantes. A terceira edio, em 2011, teve 4.500 inscritos.
10 As tendas em forma de galpo se comunicavam internamente. Em uma delas funcionava a secretaria do
evento, onde recolhemos o material do congresso no primeiro dia e onde pegamos nossos certificados, no ltimo.
A tambm, durante a programao, estavam venda os materiais da Editora e Gravadora Central Gospel.
Mesmo no tendo livros, Cds ou Dvds da Editora, os conferencistas do evento tambm expunham seus materiais
nos seus respectivos estandes. No ltimo dia do evento, os Dvds das conferncias j estavam todos disponveis
para compra. Na outra tenda, um palco gigante, ladeado por dois teles imensos, estava de frente para as filas de
cadeiras (com um grande corredor no centro, e dois corredores laterais), dispostas da mesma forma que em uma
igreja. No meio desta tenda, mais dois teles transmitindo o que acontecia no palco.
11 Os homens se reuniam na tenda principal e assistiam conferncias com temtica voltada para a vida familiar.
As mulheres se reuniam no auditrio de um dos hotis. A programao voltada especificamente para elas
recebeu o nome de Congresso das Mulheres Vitoriosas, com preletoras como Elizete Malafaia, esposa do Pr.
Silas Malafaia e a missionria Edmia Williams.
12 Na verdade, o segundo culto da manh nunca acabava s 12:30h, mas se estendia aps as 13h. Era o tempo de
voltar aos hotis, almoar, descansar um pouco, jantar (as trs refeies estavam inclusas na estadia) e voltar
para a programao. Um esquema de logstica funcionava com nibus pegando os congressistas nos hotis mais
distantes para lev-los tenda e traz-los de volta aos hotis. Fiquei hospedado em um local onde podamos
caminhar at o local dos cultos.
17
pastores de diferentes igrejas foram convidados (cada um ministrando uma conferncia).
Foram eles: Pr. Coty, presidente da ONG crist Jovens com uma Misso, no Paran; Pr.
Marco Antnio, da igreja Comunidade Internacional da Zona Sul, no Rio de Janeiro; Pr.
Silmar Coelho, da Igreja Viva, no Rio de Janeiro; Pr. Walmir Cohen, da igreja evanglica F
para Todos, tambm do Rio de Janeiro.
O principal conferencista, porm, no foi o pastor Silas Malafaia. Este papel coube ao
Reverendo Thomas Dexter Jakes (chamado de T. D. Jakes), pastor americano da mega-igreja
The Potters House (com mais de 30.000 membros segundo seu website oficial, em Dallas,
EUA13
). Couberam a ele as quatro ltimas conferncias, bem como o clmax do congresso.
Foi T. D. Jakes quem pediu para que os jovens sassem de seus lugares e se aproximassem do
plpito, ocasio descrita anteriormente, estando entre eles o jovem que afirmara ter recebido
seu chamado justamente ali. A traduo de suas mensagens ficava a cargo do pastor Gidalte
Alencar, membro da equipe do pr. Malafaia. Jakes, alm de comandar sua igreja, tambm
escritor de diversos livros e produtor de filmes voltados para o pblico evanglico nos
Estados Unidos. Em 2001, foi eleito pela revista Time Magazine, o melhor pregador
americano14
, sendo comparado por esta publicao ao maior fenmeno tele-evangelstico da
histria americana, Billy Graham. Seu ministrio, T. D. Jakes Ministries, promove grandes
eventos que lotam estdios por todo os EUA15
.
V-se que os pastores miditicos, alm de presidirem igrejas com vrias filiais, possuem
seus ministrios16, ou seja, agncias que cuidam de suas imagens, produzem os programas
de televiso e promovem os eventos onde quem est evidncia o pastor e no a instituio (a
igreja) que coordena. Malafaia, como Morris Cerullo e T.D. Jakes, tem o seu ministrio
pessoal gerenciado pela Associao Vitria em Cristo (AVEC). Esta agncia cuida da
arrecadao de fundos e produz o programa de TV de Silas Malafaia (o Vitria em Cristo,
veiculado na Bandeirantes e Rede TV), alm de promover os mega-eventos liderados pelo
pastor. A partir da Associao busca-se a formao de uma rede inter-denominacional de
13
Para mais informaes sobre a igreja de T. D. Jakes, consultar: www.thepottershouse.org
14 Time, 17 de setembro de 2001, vol. 158, n. 11. A capa deste nmero trazia uma foto de T.D. Jakes
acompanhada dos dizeres Is this man the next Billy Graham? (Este homem o prximo Billy Graham?, traduo livre).
15 Para mais informaes sobre o ministrio pessoal de T. D. Jakes, consultar: www.tdjakes.org
16 Coloco aqui entre aspas para diferenciar do outro significado dado ao mesmo termo, como sinnimo de
vocao e trabalho na obra de Deus, conforme mostrei anteriormente.
18
relaes, capitaneada obviamente por seu lder maior, o prprio Malafaia, haja vista a
participao de pastores de vrias denominaes na ESLAVEC, como mostrei anteriormente
(e tambm nos outros eventos que apresentarei a seguir). Empunhando a bandeira do inter-
denominacionalismo (o que Malafaia afirma ser uma preocupao com o Reino de Deus e
no somente com sua igreja), todos os eventos e congressos realizados pela Associao tm o
intuito ou de alcanar os no-crentes, ou de abenoar os fiis quaisquer que sejam suas
denominaes.
Alm da ESLAVEC, a Associao promove outros eventos (todos com a participao de
Malafaia como pregador principal, ou concedendo este lugar para um tele-evangelista
americano, acrescida da participao de pastores de diferentes igrejas nacionais). A Cruzada
Vida Vitoriosa para Voc, um evento itinerante, realizado geralmente em praa pblica,
voltado para a converso de no-crentes. Os ltimos aconteceram em Recife e So Luis,
atraindo centenas de pessoas. O Congresso de Avivamento Despertai (CAD) e o Congresso
Pentecostal Fogo para o Brasil assemelham-se no objetivo de atrair os crentes e promover o
despertamento espiritual, ou seja, o convite a um envolvimento mais intenso com a viso de
mundo pentecostal. A diferena que o primeiro acontece geralmente em Recife, para atender
a regio Nordeste do Brasil, e o segundo em Braslia, para alcanar o eixo Sudeste-Sul. A
ESLAVEC por sua vez, como vimos, voltada exclusivamente para o desenvolvimento da
liderana pentecostal: pastores e jovens vocacionados candidatos ao pastorado pentecostal.
Alm da observao participante nos cultos, realizei dez entrevistas com congressistas da
ESLAVEC (destas, sete entrevistas semi-estruturadas e trs em profundidade). Uma das
caractersticas deste evento, desde a terceira edio, financiar a participao de jovens
vocacionados. Para tanto, estes precisam participar de uma seleo, enviando para o endereo
eletrnico da AVEC uma carta de inteno e outra de recomendao do pastor de sua igreja
local. Consegui conversar com vrios destes jovens sobre suas vocaes. Tambm entrevistei
pastores, em sua maioria pessoas mais jovens com pouco tempo de comando de uma igreja.
Uma semana imerso no congresso ainda no me proporcionaria, no meu entendimento,
dados suficientes para cumprir meu objetivo: investigar a constituio das subjetividades dos
pastores e candidatos a pastor pentecostal. Queria v-los em ao, como desempenhavam sua
vocao em suas respectivas igrejas, quais anseios os acometiam e que categorias definiam
um jovem como separado por Deus para ser pastor. Decidi fazer trabalho de campo nas
19
filiais da Assembleia de Deus Vitria em Cristo (ADVEC), no Recife. Meu intento,
inicialmente, era acompanhar pessoas que tivessem frequentado a ESLAVEC. Conversei com
alguns jovens que estavam no mesmo Congresso do qual participei. Posteriormente, no
entanto, a abrangncia do campo foi ampliada no intuito de alcanar igrejas de outras
denominaes, na busca de pessoas que no necessariamente houvessem participado da
ESLAVEC, como veremos mais adiante. Antes, falarei da ADVEC e da sua contextualizao
no campo institucional das Assembleias de Deus.
As Assembleias de Deus e a ADVEC
Sempre que mencionarmos as Assembleias de Deus no Brasil, deveramos faz-lo assim,
com o termo no plural. No meu trabalho de concluso de curso (MAURICIO JUNIOR, 2011)
j havia enfatizado a heterogeneidade das ADs no Brasil, chamando esta denominao de a
igreja dos ministrios17. Desde sua fundao realizada por dois missionrios suecos, em
Belm do Par, nos idos de 1910, a AD tem se divido em vrias redes de igrejas (os ditos
ministrios) que possuem, cada uma delas, seus prprios lderes, correspondendo na maioria
das vezes a convenes estaduais ou regionais, tendo algumas delas, tambm, alcance
nacional, podendo ou no estar ligadas ao rgo maior das ADs no Brasil, a CGADB
(Conveno Nacional das Assembleias de Deus no Brasil).
Esta fragmentao assembleiana j foi alvo de anlise de Freston (1994). Por ser
extremamente descentralizada nas suas deliberaes, proporcionando autonomia s igrejas
locais, a AD possibilitaria o surgimento de caudilhos, os lderes regionais dos ministrios,
muitas vezes mais fortes que a prpria CGADB (FRESTON, 1994). Este caudilhismo seria
apontado ainda como o fator responsvel pelos cismas ocorridos no governo da AD,
formadores, a cada ciso, de novos ministrios com seus respectivos novos lderes. O grande
racha, ocorrido em 1989, entre o ministrio Misso, descendente direto da misso sueca que
fundou a igreja em Belm, e o ministrio Madureira, cujo lder se desligou da CGADB no
momento em que atingiu um nmero de filiais tal a ponto de no fazer mais sentido a
subordinao a outro rgo, o maior exemplo elencado por Freston para afirmar que este
17
Mais uma utilizao do termo ministrio, desta feita significando as subdivises institucionais da Assembleia
de Deus. Alm disso, departamentos de uma igreja local tambm so chamados de ministrios, por exemplo, o
ministrio de louvor ou o ministrio com jovens, responsveis pela msica nos cultos e por cuidar dos membros
da igreja pertencentes esta faixa etria, respectivamente.
20
modelo de governana levaria falncia da AD. Madureira formou sua prpria conveno
nacional (CONAMAD) e adquiriu grfica e editora prprias, confirmando, para Freston, que a
AD estaria cada vez mais fora de sintonia com a moderna sociedade urbana (p. 88). A
questo dos usos e costumes seria mais um sinal da crise na AD para este autor, j que
muitos adeptos estariam trocando de denominao por no mais desejarem se adequar
rigidez asctica desta igreja (FRESTON, 1994).
Se Freston viu as constantes cises como um indicador de crise, Ronaldo Almeida (2009)
apresenta a mesma questo como a principal causa da expanso institucional18
do
pentecostalismo. Os quinze anos que separam as duas obras permitiram a Almeida perceber
que o pentecostalismo se expandiu institucionalmente justamente atravs da dissidncia e da
diversificao, possibilitando o alcance de um escopo maior de perfis e demandas religiosas
na medida em que consegue atingir cada vez mais os diferentes grupos que convivem numa
realidade complexa como a das grandes sociedades brasileiras (ALMEIDA, 2009, p. 36).
sabido que Almeida se referia ao pentecostalismo em geral ao tratar de suas dissidncias e a
consequente diversificao do movimento como fator de expanso. Ele se referia ao
surgimento de novas denominaes. H uma caracterstica peculiar dos rachas na AD: deles
no se originam novas denominaes, mas novos ministrios. No entanto, podemos entender
estas novas redes oriundas das cises como (sub) denominaes independentes que preferiram
manter o carisma do nome da instituio. Com isso, o modelo de Almeida, de expanso pela
dissidncia e diversificao, pode enquadrar-se dinmica de cises assembleianas. Assim,
importante observar que, se em Freston a AD est inadaptada modernidade, utilizando-se do
modelo proposto por Almeida vemos exatamente o contrrio: essa multiplicidade de
ministrios teria possibilitado a acomodao, sob um mesmo rtulo denominacional, de
demandas religiosas as mais dspares possveis presentes nas grandes cidades brasileiras.
A ADVEC originou-se justamente de mais um racha entre as Assembleias de Deus. Era
conhecida anteriormente por Ministrio Penha e, sob a liderana do pastor Jos Santos,
contava com 85 igrejas espalhadas exclusivamente pelo estado do Rio de Janeiro. Aps o
falecimento de Jos Santos, seu genro, o pastor Silas Malafaia, assume o Ministrio Penha,
separa-se da Conveno Geral das Assembleias de Deus no Brasil (CGADB) e muda o nome
de sua igreja para Vitria em Cristo, mesmo nome do programa televisivo que comandava h
18
Em sua obra Almeida divide a expanso pentecostal nas suas dimenses institucional, (das) relaes
sociais, e simblica. Utilizo-me aqui apenas da primeira.
21
anos. Desde que transformou o Ministrio Penha em Vitria em Cristo, em 2010, Malafaia
elevou para 92 o nmero de suas igrejas no Rio de Janeiro e deu incio ao objetivo de
nacionalizar sua denominao: foram seis templos inaugurados em Pernambuco19
, quatro no
Paran, trs em Santa Catarina e um templo no Rio Grande do Norte, Minas Gerais e Esprito
Santo, respectivamente. Pernambuco, portanto, o segundo estado em importncia para a
ADVEC, considerando o nmero de templos a inaugurados. Seu templo-sede em
Pernambuco est localizado em Recife, no bairro de Boa Viagem, sob a liderana do Pastor
Rafael, coordenador (pastor-regional) da ADVEC em Pernambuco.
A ADVEC tambm serve de resposta segunda colocao de Freston sobre a sangria que
a questo dos usos e costumes seria responsvel por provocar nas fileiras de adeptos da AD,
j que surgiu justamente para responder s demandas por relaxamento nos usos e costumes.
No contexto pernambucano, podemos comparar a ADVEC ao ministrio Campo do Recife, o
maior das ADs em Pernambuco, ligado CGADB e descendente direto da misso sueca
surgida em Belm. A CONADEPE (Conveno da Assembleia de Deus em Pernambuco),
instituio que abrange as igrejas formadas pelo Campo do Recife, segundo seu website
oficial20
, tem mais de 3.000 igrejas em todo o estado, reconhecidas pelas suas cores cinza e
azul e tendo por sede o enorme templo na Avenida Cruz Cabug21
, no Recife. Ali chegou em
1918 (sete anos aps a fundao em Belm) sendo criada tambm por missionrios suecos. O
Campo do Recife caracteriza-se pelo seu forte rigor asctico contra-cultural e seus membros
podem ser considerados os tpicos crentes da Assembleia de Deus: Os homens sempre se
dirigindo aos cultos trajando terno e gravata, as mulheres sempre usando longos cabelos
soltos ou presos em coques no alto da cabea e saias abaixo do joelho (MAURICIO JUNIOR,
2011). Ao entrar em um culto da ADVEC, por sua vez, este esteretipo cai por terra. Entre os
membros masculinos comuns os ternos so dispensados (obreiros e pastores ainda mantm a
indumentria), e as mulheres no mais esto submetidas obrigao de usar saias e no cortar
o cabelo, adotando o padro de beleza comumente aceito na sociedade mais ampla. Um dos
fiis da ADVEC por mim entrevistados afirma que saiu de uma igreja pertencente ao Campo
19
So trs igrejas em Recife, nos bairros de Boa Viagem, Imbiribeira e Cordeiro. Alm das igrejas nas cidades
de Moreno, Escada e Caruaru.
20 Para maiores informaes, consultar www.ieadpe.org.br
21 Esta avenida consiste em um caso interessante, pois se trata de um tipo de corredor pentecostal da capital
pernambucana. O templo-sede da Assembleia de Deus Campo do Recife vizinho do templo-sede estadual da
Igreja Universal do Reino de Deus. Um pouco mais frente, parede com parede, esto os templos-sede no
estado das igrejas Internacional da Graa de Deus e Mundial do Poder de Deus.
22
do Recife a pedido de sua esposa, que no mais se adequava ao rigor asctico, principalmente
esttico, exigido pela igreja.
Assim, de maro a setembro de 2013, frequentei os cultos da ADVEC em Recife.
Durante este perodo, revezei minhas idas a duas filiais: A sede pernambucana, no bairro de
Boa Viagem (600 membros), e a filial do bairro do Cordeiro, na Avenida Caxang (800
membros)22
. Estes mesmos templos, no segundo semestre de 2011, foram o foco de minha
pesquisa na ocasio de meu trabalho de concluso de curso (MAURICIO JUNIOR, 2011).
Alm da observao participante nos cultos, entrevistei e acompanhei, principalmente, os
lderes dos departamentos de jovens e adolescentes destas igrejas, alm do pastor-regional
(pastor da sede em Boa viagem). A maioria das igrejas evanglicas descentraliza suas aes a
partir do que chamam de departamentos. H desde os departamentos que cuidam dos jovens e
adolescentes da igreja, at o ministrio com casais, crianas, educao religiosa, ao social,
etc. Na ADVEC, os departamentos dos jovens e dos adolescentes so chamados de JVC
(Juventude Vitria em Cristo) e Interligados, respectivamente, e promovem uma programao
especfica para o seu pblico alvo. Funcionam como se fossem, de acordo com a palavra de
um dos lderes, uma igreja dentro de outra, porque obrigam, segundo este mesmo lder (da
JVC Boa Viagem), seus coordenadores a preocuparem-se desde o aconselhamento dos
jovens e adolescentes administrao das finanas. Estes departamentos tambm so
entregues, na maioria das vezes, aos jovens com vocao pastoral, sendo entendido, este
perodo no qual atuam como lderes dos jovens e adolescentes (a liderana dos jovens ainda
considerada de mais prestgio que a dos adolescentes), como preparao para os seus futuros
trabalhos como pastores. Foi justamente com os lderes da JVC das filiais de Boa Viagem e
do Cordeiro todos23 participaram tambm da ESLAVEC na qual fiz trabalho de campo - que
mais conversei sobre suas expectativas e anseios com relao ao futuro como pastores (todos
j tem certeza que o sero), sobre os detalhes de suas vocaes, alm de acompanhar suas
performances na direo do culto dos jovens, desde a organizao da programao s
pregaes que os mesmos faziam nestes momentos.
22 A informao acerca da quantidade de membros de ambas as igrejas, bem como das igrejas por mencionar, advm de conversas informais com seus lderes. No foi realizada por mim uma contagem oficial, nem tive
acesso direto aos dados de contagem de membros realizada pelas respectivas igrejas.
23 So quatro lderes, j que este departamento, a JVC, tem lder e vice-lder.
23
Ampliando o campo
Voltando ESLAVEC, necessrio falar de minha surpresa ao chegar neste evento, no
que diz respeito ao seu alcance inter-denominacional. Desde minha chegada ao hotel e dos
primeiros momentos dos cultos, percebi que no se tratava de um evento voltado para a
ADVEC, como havia imaginado antes. Durante uma de suas falas, Silas Malafaia,
apresentando os nmeros do evento, afirmou estarem ali presentes cerca de 500 denominaes
diferentes. De acordo com estes dados, teramos uma igreja para cada dez participantes do
congresso (com cinco mil inscritos no total, tambm de acordo com a organizao do evento).
Se no possvel confirmar as informaes de Malafaia, uma vez que no tive acesso aos
nmeros oficiais - aos dados das inscries - posso, por outro lado, fazer uma comparao
com minha amostra do evento: Os dez congressistas por mim entrevistados pertenciam a oito
igrejas diferentes24
. Diante desta constatao, vislumbrei a possibilidade de construir um
modelo analtico acerca da constituio do pastor pentecostal com um alcance mais amplo, ou
seja, que contemplasse no apenas a ADVEC, como era meu objetivo inicial, mas que
abrangesse o campo pentecostal em geral.
Para tanto, paralelamente observao participante nos cultos da ADVEC em Recife, fiz
trabalho de campo em mais duas igrejas de diferentes denominaes. Participei do Congresso
de Homens da Igreja Vida e Paz (200 membros), em Camaragibe, e entrevistei o pastor (um
dos pregadores do evento) que tinha deixado h pouco a liderana dos jovens desta igreja j
que, recm-ordenado25
, acabara de assumir uma congregao (filial) aberta pela Vida e Paz no
bairro da UR-07, em Recife. Tambm frequentei alguns cultos da Igreja Batista Missionria
Palavra Viva (60 membros), no bairro da Vrzea, em Recife, e entrevistei o lder desta igreja,
um jovem tambm recm-ordenado pastor e que estava assumindo a primeira igreja de sua
carreira. Assim, pude acompanhar, conversar, entrevistar e observar pastores e candidatos a
pastores pentecostais pertencentes desde s igrejas pentecostais clssicas at igrejas
protestantes pentecostalizadas, ou protestantes renovadas (esclarecei estes rtulos a seguir),
que estiveram ou no na ESLAVEC, conforme tabela abaixo:
24
Aqui estou considerando diferentes ministrios da AD como diferentes igrejas (no caso, o ministrio Belm, com dois entrevistados, e o ministrio Madureira e a prpria ADVEC, com um entrevistado cada). As outras
igrejas foram: Igreja do Evangelho Quadrangular, Igreja Batista Renovada (2), Igreja Peniel, Projeto Amar e
Presbiteriana Renovada.
25 Ao assumir o cargo de pastor o vocacionado passa pelo ritual da ordenao, onde ungido com leo e recebe
uma orao dos lderes da igreja
24
Denominaes dos Entrevistados*
Igrejas Pentecostais /
Nome Denominao Foi ESLAVEC
Nome Denominao Foi ESLAVEC
S N S N
Ivan ADVEC Boa Viagem X Pr. talo Presbiteriana Renovada X
Pr. Rafael ADVEC Boa Viagem X Pr. Bartolomeu Batista Renovada X
Florncio ADVEC Boa Viagem X
Tiago ADVEC Caxang X
Gabriel Igreja do Evangelho Quadrangular X
Pr. Renato Vida e Paz X
* Refiro-me aqui somente aos entrevistados que tm suas falas reproduzidas ao longo do texto26
necessrio, no entanto, estabelecer desde j os limites de minhas generalizaes.
Chamo de pentecostais, neste trabalho, os fiis que participam das denominaes que Mariano
(2005) classificou como representando as duas primeiras ondas do pentecostalismo no
Brasil27
, as quais tem a AD e a Igreja do Evangelho Quadrangular como igrejas-cone,
respectivamente, alm das igrejas histricas (ou protestantes) pentecostalizadas, conhecidas
como protestantes renovadas. Estes segmentos, juntamente com as igrejas neo-pentecostais,
estariam contidos no que chamo de campo pentecostal mais amplo; J este ltimo, por sua
vez, formaria o campo evanglico juntamente com os protestantes histricos (batistas,
congregacionais, presbiterianos, etc; ver figura abaixo).
26
Foram dez entrevistas realizadas na ESLAVEC e mais 07 entrevistas realizadas com lderes das igrejas em
Recife e Camaragibe (17 no total).
27 Mariano (2005) apresenta a histria do pentecostalismo no Brasil em trs ondas: o pentecostalismo clssico,
oriundo dos anos 1910 (AD e Congregao Crist no Brasil); o deuteropentecostalismo, dos anos 1950 (Igreja
do Evangelho Quadrangular, principalmente), que seria diferente da primeira onda por enfatizar os dons de cura
ao invs da glossolalia; e o neo-pentecostalismo, a terceira onda, dos anos 1970, que introduziu a teologia da
prosperidade e a nfase na doutrina da batalha espiritual, ou seja, a luta entre Deus e o diabo como tendo
influncia direta na vida dos fiis (Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Mundial do Poder de Deus, etc).
25
Assim, minhas anlises sobre a constituio do pastor pentecostal a partir da construo
narrativa do chamado baseada na doutrina do eleito misticamente escolhido, e a partir,
tambm, da performance ritual da prdica, so aplicveis aos pentecostais e protestantes
renovados (representados pelos nmeros 1 e 2 na figura acima), com algumas diferenas de
grau que veremos nos captulos a seguir (no tanto no que diz respeito questo do chamado,
e mais na performance da prdica). No anularia a possibilidade de minhas concluses serem
generalizadas a ponto de alcanar o segmento neo-pentecostal dando conta, por conseguinte,
do campo pentecostal mais amplo. No entanto, no tenho dados para embasar esta afirmao,
uma vez que foi, enfim, nas igrejas pertencentes aos grupos 1 e 2 onde fiz trabalho de campo.
Alguns fatores promovem a unificao de prticas e representaes permitindo
elencarmos algumas caractersticas, tanto institucionais quanto culturais (relativas ao seu
sistema simblico), que pertenceriam ao campo pentecostal mais amplo e no somente a
algumas igrejas especficas. Dentre estas caractersticas comuns poderamos citar a existncia
da converso individual com nfase na subjetividade e emotividade, o batismo no Esprito
Santo, a explicao de parte substancial da vida a partir do acionamento de elementos
sobrenaturais, o entendimento da converso como ruptura com uma vida passada, o
crescimento na f como dever de cada crente, entre outras. Como fatores unificadores,
poderamos citar a Bblia como elemento cultural que normatiza prticas e representaes
26
fornecendo os mitos que sero revividos pelos crentes pentecostais (como veremos no
captulo II), bem como a noo do Esprito Santo como potncia geradora (exclusiva) de
atitudes divinamente inspiradas, alm da necessidade desta potncia ser absorvida pelo fiel,
internalizado em seu corpo, atravs das disciplinas espirituais (orao, jejuns, leitura da
Bblia) e do ouvir das prdicas.
Se estas prticas e representaes pentecostais no so de todo intercambiveis, tais
elementos unificadores possibilitam, pelo menos, uma comunicao que se intensifica em
momentos como os congressos de alcance inter-denominacional, como a ESLAVEC, e devido
ao trnsito existente entre fiis das igrejas evanglicas, comum, sobretudo, entre os
pentecostais. Sem esquecer do intercmbio de prticas engendrado pelos meios de
comunicao de massa. Entendo, ainda, que as igrejas da AD, tanto pela sua dimenso no que
diz respeito ao nmero de fiis (como veremos no prximo captulo), quanto por sua tradio
na histria do pentecostalismo ( a primeira igreja a ser fundada no Brasil neste segmento),
funcionam como disseminadoras de prticas e representaes no campo pentecostal. A igreja
Vida e Paz onde fiz trabalho de campo, por exemplo, foi fundada por um ex-pastor da
Assembleia de Deus. comum ver ex-membros das ADs no inmero contingente de igrejas
pentecostais que surgem no cenrio brasileiro. Assim, a estas prticas e representaes
comuns ao campo pentecostal (nos limites apresentados anteriormente) pretendo acrescentar,
embasado nas anlises que veremos nos captulos seguintes, a forma como so moldadas as
subjetividades dos lderes pentecostais. Como um lder se levanta acima dos crentes comuns
para se tornar pastor? Como se estabelece a convico de ter sido chamado por Deus? Quais
os requisitos para que a prdica pentecostal sirva como sinal diacrtico para que a comunidade
confirme que o poder de Deus tem sido derramado naquele vaso?
Os captulos
Para responder estas perguntas percorreremos o seguinte caminho: No captulo I, O
Crescimento Mais Explosivo da Histria das Religies, ao tomar como ponto de partida os
dados dos ltimos Censos, ofereo uma reflexo sobre as razes do crescimento vertiginoso
do pentecostalismo. O captulo II, Ser Chamado por Deus, lana luz sobre o primeiro fator
indispensvel para a constituio do pastor pentecostal, a narrativa do Chamado. No captulo
III, Ser Usado por Deus, trago o segundo elemento sem o qual um crente pentecostal no
27
pode ser lder, o domnio das nuances do ritual da prdica pentecostal. O quarto e ltimo
captulo apresenta, primeiro, um Ensaio sobre as Fontes do Poder que consiste em uma
anlise eminentemente terica sobre as dimenses da experincia pentecostal, tentando
compreender o que acontece quando, em seus rituais, os grupos entendem estarem diante, ou
recebendo, ou sendo preenchidos em seus corpos com poder transcendental, espiritual ou
mstico. Em seguida, ainda neste captulo, fao uma tentativa de aplicar as construes
tericas do ensaio ao caso pentecostal. Apresento nas Consideraes Finais to somente uma
recapitulao de minhas concluses, j que no as guardarei para este momento, mas as
apresentarei paulatinamente ao longo de todo o trabalho. Antes de tudo, porm, tentemos
contribuir com a resposta de uma pergunta que acomete tantos estudiosos do assunto: Por que
tanto crescem as igrejas pentecostais?
28
CAPTULO I - O crescimento mais explosivo da histria das religies
The Conversion of Saint Paul, 1601. Oil on canvas, 230 x 175 cm
29
Por que cresce o pentecostalismo? E por que o faz to rapidamente a ponto de se tornar,
quando se fala de crescimento, o maior fenmeno religioso brasileiro? Por que tantas pessoas
tm escolhido o pentecostalismo como opo em meio ao pluralismo religioso? Tentativas de
resposta a estas perguntas se multiplicam quase que acompanhando a velocidade dos ndices
de crescimento da religio pentecostal no s no Brasil, mas ao longo de todo o globo.
Apresentarei neste captulo algumas delas, cujos contedos, assim entendo, representam
equaes demasiado simplificadas (pentecostalismo igual pobreza, ao imperialismo,
modernizao, etc) e, ao mesmo tempo, relegam ao segundo plano (alguns sequer
consideram) os fatores propriamente religiosos do sistema pentecostal, ou seja, a eficcia de
seu sistema simblico. Logo depois, apresentarei algumas de minhas reflexes sobre o tema.
No pretendo dar respostas definitivas aqui a respeito das razes para o vertiginoso
crescimento pentecostal. Desejo to somente chamar ateno para a especificidade do seu
sistema simblico - e a forma como este perito em modelar subjetividades como um dos
motivos, se no o principal, pelos quais os fieis vm a abraar esta opo religiosa. Afinal,
atravs da converso de fiis que as fileiras das igrejas pentecostais so engrossadas. Sigo,
principalmente, as colocaes de Joel Robbins (2004, 2008, 2009) sobre o tema. Em seus
ltimos trabalhos, este era exatamente seu objetivo: chamar ateno para a prpria vida ritual
pentecostal como um dos principais fatores de seu crescimento. Digo um dos principais
porque no estou excluindo, por exemplo, o uso extensivo da mdia e o poderio econmico de
algumas das igrejas pentecostais como fatores importantes para seu crescimento. Entendo,
porm, que sem um sistema simblico internalizado pelos fiis a partir de atividades rituais de
alta intensidade, sistema que responde eficazmente a ansiedades tpicas de nossa poca, estes
outros fatores que certamente compem o sucesso pentecostal poderiam ser, e certamente
seriam, incuos.
Tento, porm, com relao aos trabalhos de Robbins, avanar em algumas questes. A
sntese de minha reflexo se d na percepo do pentecostalismo como uma resposta,
eficiente e eficaz, ao dficit simblico da surmodernit28
(Aug, [1994] 1997, [1992] 2012).
As figuras de excesso que caracterizariam a contemporaneidade, na viso de Aug, seriam, no
meu entendimento, contra-atacadas pelo pentecostalismo com uma rara eficcia. s
28
Mantenho o termo no original por entender que a traduo para o portugus, sobre-modernidade, no
contemplaria o sentido do autor. Com o prefixo sur-, no original em francs, Aug pretende falar de um exagero
das caractersticas da modernidade, o que em ingls seria representado pelo termo overmodernity.
30
superabundncias fatual e espacial, e individualizao das referncias (as tais figuras de
excesso de Aug), somente um sistema simblico que se caracteriza por uma superabundncia
mtico-ritual e de experincia poderia servir como contrapartida.
Antes, porm, para embasar minha afirmao sobre o crescimento vertiginoso do
pentecostalismo no Brasil, apresentarei alguns dados do Censo 2010, contrastados com censos
anteriores. Vejamos:
Os evanglicos e seus nmeros no panorama religioso brasileiro
No pas mais populoso da Amrica Latina, os evanglicos passaram a representar mais de
vinte por cento (22,16%) dos brasileiros no final da primeira dcada do sculo XXI, de acordo
com o Censo 2010 (IBGE). Estes dados confirmam uma tendncia de crescimento dos
evanglicos e, paralelamente, a constante diminuio do contingente catlico no pas, que
vem ocorrendo a passos largos desde a dcada de 1980. Naquele momento, os catlicos
representavam 89% da populao, ao passo que os evanglicos somavam pouco mais de seis
pontos percentuais. Os dados atuais nos mostram um decrscimo de filiao catlica para
64,6%, enquanto que o montante evanglico do pas, desde ento, somente cresceu, e
vertiginosamente (ver tabela abaixo).
Tabela 1
Percentual de catlicos e evanglicos em relao ao
total da populao brasileira 1980-2010
Censo (de) Catlicos (%) Evanglicos (%)
1980 89,0 6,6
1991 83,3 9,0
2000 73,9 15,4
2010 64,6 22,2
Fonte: IBGE
Este declnio acentuado da religio catlica, bem como o concomitante crescimento dos
evanglicos, pode ser visualizado mais detidamente no grfico a seguir:
31
Grfico 1
Fonte: IBGE
difcil observar este grfico sem imaginar as curvas que representam os contingentes
catlico e evanglico da populao se tocando no futuro. De fato, Faustino Teixeira (2012, p.
15) nos lembra de previses estatsticas que calculam um empate entre os evanglicos e
catlicos em 2040, sendo que, j em 2030, os catlicos passariam a representar menos de 50%
da populao. Obviamente, tratam-se de previses que s se confirmaro ao se manterem
estas taxas de (de)crescimento de ambas as religies.
O crescimento evanglico no homogneo, no entanto. necessrio analisar, ainda, a
diversidade interna deste segmento para entendermos os fatores mais importantes do seu
crescimento no cenrio religioso brasileiro. Em 1980, por exemplo, os Evanglicos de
Misso29
representavam a maioria do segmento, 3,38% da populao brasileira (ver tabela 2).
A partir da, o crescimento vertiginoso pentecostal que aparece. Se na dcada 1980-1991 os
evanglicos de misso perderam adeptos (apenas 0,4%), recuperando-se na dcada seguinte,
mas voltando a perder adeptos na dcada 2000-2010 (- 0,05%), o que significa a manuteno
29
As igrejas evanglicas de misso recebem esta denominao por se originarem de misses estrangeiras. So
conhecidas tambm como evanglicas tradicionais ou protestantes histricas. No Censo 2010, so discriminadas
como evanglicas de misso as igrejas Luterana, Presbiteriana, Metodista, Batista, Congregacional e Adventista.
89,0
83,3
73,9
64,6
6,6 9,0
15,4
22,2
Catlicos
Evanglicos
32
de uma mdia de 3,62% da populao brasileira entre 1981-2010, a populao pentecostal,
por sua vez, praticamente dobrou a cada dcada (ainda tabela 2).
Tabela 2
Censo Populao
total
Evanglicos de
Misso
% em relao
ao total da
populao
Evanglicos
Pentecostais
% em relao
ao total da
populao
1980 119.009.778 4.022.330 3,38 3.863.320 3,25
1991 146.814.061 4.388.165 2,99 8.768.929 5,97
2000 169.870.803 6.930.765 4,08 17.617.307 10,37
2010 190.755.799 7.686.827 4,03 25.370.484 13,30 Fonte: IBGE, Atlas da Filiao Religiosa e Indicadores Sociais no Brasil
Assim, e sem dvida, o carro-chefe da mudana significativa no panorama religioso
brasileiro em direo a um pas que parece deixar para trs, ou pelo menos desafiar, seu ethos
catlico o pentecostalismo. Pode-se visualizar melhor seu crescimento meterico em
comparao aos evanglicos de misso no grfico abaixo (Grfico 2). Atualmente (Censo
2010), os pentecostais so a esmagadora maioria dos evanglicos, chegando a representar
mais de 60% deste segmento (grfico 3, abaixo) e mais de 13% da populao brasileira
(tabela 2 acima).
Grfico 2
Fonte: IBGE, Atlas da Filiao Religiosa e Indicadores Sociais no Brasil
Evanglicos de Misso
EvanglicosPentecostais
33
Grfico 3
Fonte: IBGE (Censo 2010)
Levando em considerao que o IBGE no esclareceu a contento se a categoria filiao
evanglica no determinada resultado da no explicitao, por opo, do entrevistado, ou
se foi problema do recenseador (ver grfico 3 - com 22% os no-determinados representam
uma porcentagem do total de evanglicos maior at que o montante dos evanglicos de
misso), o crescimento pentecostal pode ter sido ainda maior. Entendo que a hiptese mais
plausvel para o nmero expressivo desta categoria tenha sido um problema na coleta dos
dados. Como as denominaes pentecostais proliferam quase que diariamente, pode ter
havido uma dificuldade por parte dos recenseadores em reconhecer as respostas como
denominaes pentecostais. Entendo que esta situao factvel mesmo com a existncia da
categoria outras igrejas evanglicas de origem pentecostal. Aumenta a possibilidade de o
pentecostalismo ter uma dimenso ainda maior quando se percebe que as igrejas renovadas,
ou seja, as igrejas de misso que se pentecostalizaram e se separaram de suas convenes
originais, esto, na minha opinio, sub-representadas. Consta no Censo 2010 to somente a
categoria evanglica renovada no determinada, sem nenhum tipo de discriminao que
contemple a diversidade deste segmento (ver Almeida, 2009, p. 42, tabela 3, onde o autor
discrimina este segmento sob a rubrica protestantes carismticos).
Entre os pentecostais tambm se deve evitar cair numa anlise homognea. As igrejas que
compem o segmento evanglico pentecostal no crescem em bloco, sendo necessrio,
portanto, analisar sua diversidade interna. A Igreja Universal do Reino de Deus, por exemplo,
60% 22%
18%
% em relao ao total de evanglicos Evanglicos de origempentecostal
Filiao Evanglica nodeterminada
Evanglicos de Misso
34
perdeu adeptos ao longo da ltima dcada (de 2.101.887 para 1.873.243 filiados - 11% de
seus fiis). Entre as igrejas que mais cresceram, de acordo com o ltimo censo, esto a
Assembleia de Deus, 46,4%; a Igreja do Evangelho Quadrangular, 38,5%; e a Igreja
Pentecostal Deus Amor, 9,2%. A Assembleia de Deus a maior igreja evanglica brasileira,
com mais de doze milhes de adeptos; 6,46% do total da populao brasileira; 29,3% dos
evanglicos. Leonildo Campos (2012) nos lembra que a Assembleia de Deus ganhou 3,8
milhes de novos fiis na dcada, o que representa um total de 1.082 novos fiis por dia,
durante 10 anos (p. 24), ratificando a dimenso de sua pujana.
Com isso espero ter chegado ao meu objetivo ao apresentar os nmeros do crescimento
evanglico desde a dcada de 1980. Primeiro, o plurarismo religioso cristo se estabelece no
Brasil com os evanglicos desafiando a relao direta entre brasilidade e catolicismo. Em
segundo lugar, quem comanda este crescimento vertiginoso o segmento pentecostal.
Podemos afirmar, enfim, que a face da populao evanglica brasileira pentecostal e,
sobretudo, assembleiana. Os nmeros que atestam a Assembleia de Deus como a maior igreja
evanglica do Brasil, no meu entendimento, confirmam o que disse anteriormente sobre o
papel desta igreja como disseminadora de prticas e representaes entre os pentecostais, no
s por sua importncia numrica, mas tambm por ser uma instituio doadora de fieis,
quando falamos da circulao de fiis entre as igrejas pentecostais, fenmeno comum neste
segmento. Como tambm j afirmei, comum ver ex-fiis assembleianos na infinidade de
igrejas pentecostais menores que surgem a cada dia no cenrio religioso brasileiro.
E por que tanto crescem os pentecostais?
Uma vasta bibliografia j se formou no rastro dos que buscam a resposta a esta pergunta,
reunindo alguns trabalhos que j podem ser chamados de clssicos. As primeiras reflexes
apresentavam a privao social e a situao de anomia como os fatores que explicariam o
sucesso da mensagem pentecostal (Willems 1967; DEpinay 1970; Procpio Camargo 1973).
Christian Lelive DEpinay, por exemplo, definiu o pentecostalismo como o refgio das
massas: uma religio de migrantes advindos de reas rurais, que abraavam a f pentecostal
diante das agruras da adaptao ao mundo urbano moderno. Baseados claramente nas teorias
de secularizao, o problema nestes trabalhos entender o pentecostalismo como resqucio
35
pr-moderno que se desvaneceria quando estes segmentos de populao estivessem
plenamente adaptados modernizao das cidades. Procpio Camargo (1973) chegou a
afirmar que o pentecostalismo desapareceria com a chegada da modernidade. Viu-se que este
no foi o caso. Pelo contrrio. Passada a grande onde de migrao das dcadas 1960/1970, o
pentecostalismo somente cresceu.
Outros estudos, principalmente os originados a partir de trabalho de campo realizado no
continente africano por autores como Comaroff & Comaroff (1992), entendiam o
pentecostalismo como um tipo evidente de colonizao das conscincias. Ou seja, o
imperialismo capitalista que empurraria o pentecostalimo goela abaixo mundo afora. A
populao local, no entanto, segundo estes autores, resistia, mostrando-se capaz de reinventar
a tradio crist a ela apresentada sua maneira, de modo a no se modificar culturalmente.
Estudos mais recentes se afastaram desta equao que iguala o pentecostalismo ao
imperialismo tentando, como Csordas (2009), ao invs de afirmar taxativamente a existncia
de um vetor unidirecional de imperalismo cultural, ressaltar a multiplicidade dos canais
globais, entendendo que o fluxo de fenmenos religiosos no mnimo bidirecional, e muito
provavelmente multidirecional.
Alguns, ainda, entendem o pentecostalismo como a religio dos rejeitados e pobres
(Corten 1996; Campos, L. 2005). Nestas anlises, as igrejas que promovem a cura
substituiriam os hospitais, os transes entrariam no lugar da terapia e a teologia da
prosperidade seria praticamente uma cartilha para prestar consultoria de empreendorismo na
ps-modernidade. Em suma, por compensar a falta de acesso a vrios recursos, o
pentecostalismo floresceria entre os mais pobres. Esta relao entre religio e classe
complexificou-se em trabalhos mais recentes, mas no abandonou o entendimento do
pentecostalismo como religio dos pobres. Em um paper apresentado recentemente no ltimo
congresso da Associao Latino Americana de Sociologia (ALAS), por exemplo, Arenari
(2013) apresentou esta relao direta entre pentecostalismo e classe social. Segundo o autor,
ele deixa de lado o que chama de funcionalismo dos trabalhos anteriormente citados e segue
com o objetivo de mostrar, a partir do paradigma dos estudos culturais, que o
pentecostalismo tornou-se a expresso religiosa por excelncia de uma classe social com
maior presena numrica em sociedades perifricas, ou seja, a massa de trabalhadores
excludos da expanso capitalista na periferia de seu sistema (p. 07). Portanto, assim como o
36
calvinismo teria sido a religio dos protestantes, e o metodismo, do proletariado, o
pentecostalismo para Arenari seria a religio das massas sub-integradas na periferia do
sistema capitalista. Por haver se originado nos Estados Unidos, o pentecostalismo seria apto
para integrar modernidade as massas sub-integradas. Mas no somente no sentido do dficit
de servios pblicos como outrora (por isso o autor afirma estar se afastando do
funcionalismo), mas no campo das subjetividades. A integrao viria a partir de uma
promessa religiosa baseada na ascenso social levada para os pases onde os grupos sociais
estariam sub-integrados dinmica da sociedade. Enfim, o pentecostalismo levaria o ideal do
self made man americano para a periferia do sistema.
Diferentemente de Arenari, Gracino Junior (2008) escolhe outra classe social para
relacionar com o pentecostalismo. Segundo ele, este fenmeno religioso afinar-se-ia com os
anseios dos estratos mdios urbanos da populao brasileira, em seus dizeres, empresrios,
profissionais liberais e universitrios (p. 63) por ensinar, principalmente atravs da Teologia
da Prosperidade, como se comportar em uma sociedade de risco. Ele nos traz um exemplo de
uma profissional liberal, odontologista, convertida Igreja Universal do Reino de Deus
(IURD) que, nos cultos, e principalmente e na Corrente dos Empresrios (culto da IURD
voltado para empreendedores e profissionais liberais), apreende mecanismos subjetivos para
no ficar deriva na sociedade de risco. Gracino Junior afirma que a maioria das
universidades brasileiras no tem como mote principal preparar seus alunos para o puro risco
do mercado. Na sociedade brasileira contempornea quem cumpre este papel so os livros de
auto-ajuda, os cursos MBA e, agora, as igrejas neopentecostais (p. 61). O que o
pentecostalismo oferece, em suma, para este autor, uma soluo biogrfica (Bauman, 2005)
que ajuda o fiel a sobreviver no capitalismo flexvel. Ou seja, no se buscam mais solues
coletivas porque no se acredita mais na sociedade, mas na fora do indivduo para superar o
problema. Assim, o pentecostalismo ofereceria uma narrativa que no possui um carter
social, fazendo com que seus adeptos no se vejam conectados a outras pessoas, dependendo
delas para produzir eventos (p. 62)
Esta outra equao que iguala, primeiro, o pentecostalismo a uma pedagogia da
moderninade, principalmente do individualismo, e depois elege uma classe social para definir
como alvo da afinidade eletiva com o esprito do novo capitalismo, tambm precisa ser
analisada mais detidamente. Em primeiro lugar, entendo ser inconsistente atrelar o
37
pentecostalismo a uma classe especfica, apesar de reconhecer que os dados ratificam a
presena deste segmento majoritariamente entre as camadas menos abastadas. Estudiosos
como Marion Aubre30
, por exemplo, j chamam ateno para a superao do que ela chamou
de abrangncia to somente geogrfica da expanso pentecostal, ou seja, os pentecostais
no esto somente a desbravar novos pases a cada dia. J possvel verificar tambm uma
expanso interna, no que diz respeito s relaes entre classes sociais, da periferia ao centro, e
uma abertura maior da populao francesa (seu campo de estudo) ao pentecostalismo. A
observao de Aubr confirmada em meu trabalho de campo na Assembleia de Deus Vitria
em Cristo, no Recife. L pude conviver tanto com crentes estabelecidos nas classes mdia e
mdia-alta, no caso da igreja sede em Boa Viagem (bairro nobre do Recife), quanto com
estratos mais baixos da estratificao social na filial da igreja situada no bairro da Caxang,
zona oeste da capital pernambucana. Parece-me que a resistncia momentnea (no passado)
de alguns estratos sociais ao pentecostalismo deu-se principalmente devido a uma questo de
estigma, do entendimento da religio pentecostal como uma religio dos pobres. Com o
crescimento e diversificao das igrejas pentecostais, os estratos mdios, como nos mostrou
Gracino Junior, aderiram a este fenmeno religioso. Parece nos restar agora to somente
esperar as anlises que explicaro a adeso das classes mais altas ao pentecostalismo. No
estou afirmando que diferentes classes sociais freqentam necessariamente a mesma
denominao pentecostal (apesar de poderem faz-lo) e nem sequer o mesmo templo (no
mesmo bairro) quando se trata da mesma denominao, mas aposto na grande diversidade de
igrejas pentecostais para afirmar que todos os estratos sociais podem ser encontrados em suas
fileiras. Como exemplo, a Igreja Renascer em Cristo, em So Paulo, ou a igreja Sara Nossa
Terra, congregando dos estratos mdios classe alta, inclusive celebridades artsticas e
esportivas; e a Igreja Assembleia de Deus Campo do Recife, recebendo estratos de mdios a
mais baixos da populao.
Alm disso, preciso relativizar esta afinidade eletiva estabelecida sem maiores critrios
nos trabalhos citados anteriormente (Gracino Junior 2008, Arenari 2013) entre o
pentecostalismo de um lado, e o capitalismo ps-fordista atrelado sua idelogia individualista
do outro lado. Robbins (2008) nos lembra que, se por um lado podemos falar de uma relao
30
Comunicao proferida no ciclo de palestras sobre Crenas no Mundo Globalizado, realizado na Fundao
Joaquim Nabuco PE, 08 a 10 de Agosto de 2011.
38
entre o pentecostalismo e a participao individual no mercado capitalista, por outro lado,
algumas interpretaes no somente relacionam o fenmeno pentecostal, e sua teologia da
prosperidade, a formas no capitalistas de troca, como tambm mostram como este
fenmeno religioso pode ir na direo contrria ao individualismo capitalista. (p. 1150,
traduo nossa)31
.
Simon Coleman (2006), por exemplo, relaciona com uma troca dadivosa, uma economia
da ddiva, a forma como os pentecostais colocam em circulao tanto palavras quanto
finanas. Direcionar uma profecia a algum, nos diz Coleman, uma forma de entrar em uma
cadeia de circulao verbal onde a identidade pentecostal construda. No ato de expressar-se
a outrem atravs de palavras sagradas, a persona do falante, enfim, um aspecto de seu self,
tambm estendido ao recipiente da fala, na medida em que, exatamente neste ato, o crente
pentecostal coloca sob avaliao seu status de pessoa pentecostal (para mais detalhes ver
Campos & Mauricio Junior 2012, 2013). Aquele que entrega, a um ouvinte qualquer,
palavras inspiradas por Deus, est externalizando o poder do Esprito Santo outrora
internalizado em seu corpo (considerado templo do Esprito Santo) e espera uma
reciprocidade que o autor chama de reabsoro deste poder, ou seja, quando palavras
inspiradas por Deus retornaro ao doador da mensagem, no necessariamente provenientes do
seu interlocutor imediato. De forma similar, afirma o autor,
a doao de recursos financeiros por fieis pentecostais uma
externalizao do self, e, claro, existe a expectativa de que acontea sua
reabsoro: se as palavras, quando reabsorvidas, retornam na forma de
declaraes consideradas como inspiradas por Deus, o sinal e a medida da
inspirao divina da doao financeira a sua [re]aquisio posterior... Uma
esttica constate de movimento comum a ambos, uma vez que a doao de
dinheiro e a transmisso do self a partir da linguagem extraem a essncia espiritual da pessoa pentecostal e torna esta essncia avalivel e aberta ao
escrutnio dos outros crentes e de si mesmo (Coleman 2006, p. 178-179,
traduo nossa)32
.
31
...These observations not only problematize the notion that Protestantism more often than not runs contrary to
the existing networks of social obligation; by illustrating the capacity of Christianity to work against capitalism
individualism, such interpretations also relate the prosperity gospel to non-capitalist forms of exchange
(ROBBINS, 2008, p. 1150).
32 the giving of money by Faith Christians is an externalization of the self, and of course it is expected that
reabsorption will take place: if words when reabsorbed come back in living and inspired form, the sign and
measure of moneys inspiration is the interest it has acquired An aesthetic of constant movement is common to both, as the giving of money and the broadcasting of the self in language extract the spiritual essence of the person and render it available to and open to scrutiny by others and oneself (Coleman 2006, p. 178-179).
39
O prprio Coleman conta como foi alvo desta troca que visa a reciprocidade ao chegar a
um dos cultos na Word of Life, em Uppsala na Sucia, onde realizou trabalho de campo - e
receber de uma fiel uma quantia em dinheiro. Mesmo tentando recusar, Coleman foi instado
pela mulher a receber o dinheiro por que, segundo ela, Deus havia ordenado que o entregasse
a primeira pessoa que ela visse no culto. O autor nos explica que aquela mulher no estava
necessariamente criando um vnculo duradouro com ele a partir desta atitude: ela estava
estendendo sua ddiva ao mundo onde o outro desconhecido poderia ser o aparente recipiente
de sua doao, mas onde o maior beneficirio seria ela mesma (Coleman 2006, p. 180, traduo
nosa)33
. Isto por esperar que, de alguma forma, ela fosse abenoada nos mesmos moldes em
outras situaes. Esta constatao torna a relao entre pentecostalismo e individualismo no
to bvia assim. Pelo menos a torna mais complexa, na medida em que implica ser o self
espiritual constitudo, necessariamente, na relao com os outros (reaching out to others, p.
180). De fato, a equao pentecostalismo igual a individualismo desafiada ao observarmos
como tanto o interesse prprio quanto o fazer o bem aos outros (ainda que a um
desconhecido) no so vistos como questes mutuamente excludentes, mas, de fato, como
dependendo um do outro (p. 181, traduo nossa)34.
Enfim, o pentecostalismo, aponta Robbins (2008), pode ser tanto dnamo de relaes
modernizantess quanto apresentar caractersticas e promover relaes anti-modernas (como
acabamos de ver). Para ele, a plasticidade do pentecostalismo faz com que este fenmeno
religioso se comporte de uma maneira onde os aspectos da modernidade, e o prprio
Cristianismo, j esto estabelecidos desde sempre, neste caso, opondo-se a foras geralmente
reconhecidas como modernas; e de outra maneira nas culturas de converso (Robbins
2007), ou seja, onde o Cristianismo considerado um sistema estrangeiro, agindo, a sim,
como fora modernizante, mormente individualizadora (Robbins, 2008, p. 1151). Como
exemplo do pentecostalimo agindo em uma cultura de converso, podemos ver o trabalho de
Van den Kamp (2012), em coletnea recente sobre transnacionalizao religiosa, o qual
33 she was extending her gift into a world where the Unknown other could be the apparent recipient of the
donation, but where the greatest beneficiary would be herself (Coleman 2006, p. 180)
34 self-interest and benefit (even unknown) others are not seen as mutually exclusive, indeed are made
dependent upon each other (ibid, p. 181)
40
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