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Trata-se de uma proposta de educação ambiental, a partir da sensibilização para o meio ambiente a partir do canto dos pássaros.
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O canto de céu aberto e de mata fechada,
Marta Catunda
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A questão ambiental é o assunto do momento, mais polêmico do que
esclarecedor. Marta Catunda, buscou inspiração na incontestável
monumentabilidade sonora universal do canto dos pássaros. Demonstra como
nossa sensibilidade para a ecologia e suas implicações na vida
contemporânea está comprometida até para a percepção de um simples canto
de pássaro e nos convida a ouvir. Ouvindo, nos estimula a pensar na própria
audição como um sentido enfraquecido em nossa época de comunicação
intermediada por meios tão sofisticados. Assim, nos leva a compreender por
que considera a ecologia uma disciplina que nos fala ao pé do ouvido.
O trabalho ora apresentado por esta pedagoga, artista plástica e
compositora autodidata é baseado na dissertação de mestrado em Ciências da
Comunicação, defendida na Escola de Comunicações e Artes da USP/SP, em
junho de 1993. Durante três anos a pesquisadora dedicou-se a ouvir e
classificar os timbres de dezenas de pássaros do Pantanal (Céu Aberto) e da
Amazônia (Mata Fechada), selecionando, a partir de audições, em laboratório e
em campo, 23 espécies por critérios próprios que considera de aproximação,
na tentativa de tornar o estudo do canto dos pássaros mais acessível ao leigo.
Mas, não se deteve apenas nesse aspecto. Segundo o processo de pesquisa,
recolheu informações em várias disciplinas biológicas e sociais, objetivando
iniciar a formação de um quadro conceitual multidisciplinar para o que
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considera um campo de conhecimento para os músicos do ouvido e para
pesquisadores em bioacústica e geofonia.
Para tanto, teve como ponto de partida os estudos de zoophonia de
Hercules Florence, pesquisador e desenhista participante da expedição
Langsdorff, que tem merecido atenção especial da Universidade Federal de
Mato Grosso (UFMT) em publicações recentes.
Florence é mais conhecido como desenhista por suas aguadas, mas é
também apontado como um dos inventores da fotografia e por muitos
considerado pai da bioacústica.
Finalmente, Marta Catunda conseguiu produzir uma obra inquietante,
sensível e palpitante, que acaba por conceder uma amplitude notável ao tema,
até então restrito a bioacústica e músicos, isoladamente. Por isso, enfrentou
dificuldades acadêmicas que, no entanto, transformaram este livro numa leitura
desafiante para os que acreditam na liberdade do conhecimento científico ou
no rigor de observação imaginativa da ciência.
Prof. Fernando Tadeu de Miranda Borges
Coordenador da EDUFMT
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O Canto de Céu Aberto e de Mata Fechada
Índice para catálogo sistemático.
1. Zoofonia – Ecologia
2. Canto de Pássaros – Ecologia
3. Música – Antropologia cultural
4. Audição – Percepção e espaço de tempo – Psicologia
5. Educação ambiental – Comunicação
Copyright ©1994 by Marta Catunda
ISB: 85-327-0032-2
Universidade Federal de Mato Grosso
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Ficha Catalográfica - Biblioteca Central/ UFMT
C 355c CATUNDA, Marta O canto de céu aberto e de mata fechada/ Marta Catunda-
Cuiabá Editora Universitária da UFMT, 1994. 138p.: il Dissertação de Mestrado : Ciências da Comunicação. Bibliografia: p. 131 – 138 CDU – 591.58
Copyright ©1994 by Marta Catunda
ISB: 85-327-0032-2
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Universidade Federal de Mato Grosso
Av. Fernando Correa da Costa, s/n, Coxipó
78.060-900 Cuiába – Mato Grosso
Fax: (065)315-1119/ EdUFMT
Telefone: (065) 315- 8322
Telex : 65137/UFMT/BRA
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Depósito legal / BN / Decreto 1825 (20/12/1907).
Este ensaio recebeu o prêmio Allejandro Jose Cabassa de melhor
ensaio cultural de 1995, pela União Brasileira de Escritores/UBE – Academia
Brasileira de Letras
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Agradecimentos
À colaboração da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), que investiu, apoiou todos os desdobramentos da pesquisa.
À participação estimuladora da Fundação Vitae do Arquivo Sonoro da UNICAMP e da Fundação Cultural do Acre.
À Coordenação de Ensino e Superior, CAPES, o apoio financeiro para o curso de pós-graduação em Ciências da Comunicação e para a dissertação que foram a base deste livro.
À fé criativa de Aline Figueiredo, Humberto Espíndola e Wlademir Dias Pino.
À inspiração instigante dos professores Ciro Marcondes Filho e José Teixeira Coelho, da Escola de Comunicações de Artes ECA/USP.
Ao geógrafo e tradutor Cláudio Frederico da Silva Ramos, que ajudou a questionar todos os embates metodológicos, todas as certezas, enfim, todos os momentos desafiantes, sem desmerecer os sinais da intuição.
A Dante Renato Buzetti, por tantos ensinamentos nas audições em campo, cuja crença encorajadora foi fruto de inúmeras experimentações.
Enquanto preparava os textos finais, fui auxiliada de várias maneiras por Alberto Elias Chenu, Maria Isabel da Silva Ramos, Alexandre e Márcia Marcovici, Carlos Navas, Joana Ferreira Daltro, Lincoln Barbosa e Ralf Wegmann.
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À paciente editoração eletrônica de João Batista Epaminondas Malhado.
Ao entusiasmo dos associados do Centro de Estudos Ornitológicos CEO/USP, que, em tardes descontraídas de sábado, abrem espaço para todos os que se interessam pelo estudo de pássaros.
Ao Povos da Floresta, dos seringais do Rio Macauã, no município de Sena Madureira. Acre, por sua acolhida calorosa e enriquecedora.
A Tetê Espíndola e Arnaldo Black, pela oportunidade de ingressar no universo sonoro dos pássaros.
Aos meus pais e irmãs e , finalmente, à compreensão e o carinho de Flávio Daltro Filho e de nossos filhos, Flávia e Guilherme.
Cópia xerocrafada com paginação diferente da original sem/imagem
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Este livro é dedicado à memória de meu avô Ivar Catunda, por deixar como
herança saudável e afetuosa o convívio na Praia das Cigarras, que despertou
os acordes da liberdade: viver com as marés e construir sonhos com castelos
de areia. E também a memória de Hercules Florence, por intuir, há um século e
meio, a zoophonia, como semente do futuro.
“Inumeráveis brechas, sobreviventes isoladas da destruição do tempo,
jamais darão a ilusão de um timbre original lá, onde ressoaram harmonias
perdidas”
Lévi-Strauss, 1952
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 12
Pássaros (para uma introdução) 23
I. OUVIR 26
Ou-vendo 34
Ou-vindo 38
Ou-vido 48
Audi-ação 52
II. OUVINDO VOZES DO CÉU E DA TERRA 56
Por uma geofonia da comunicação 67
Zoofonia (para uma aproximação música – bioacústica) 71
III. NO CÉU ABERTO E NA MATA FECHADA 76
Canto Instrumento 77
Critério sonoro 85
Critério ecológico 91
Critério biogeográfico 97
IV. PERCEBENDO CANTOS 99
Mata fechada ( Expedição Macuã) 105
Céu aberto (Pantanal) 110
11
Seleção de espécies 112
Verbetes das espécies selecionadas 114
V. ANILHAMENTO 127
O pássaro e o sentido
Nova sensibilidade 127
Considerações finais 139
VI. BIBLIOGRAFIA 143
12
APRESENTAÇÃO
A pesquisa que levou ao Canto do Céu Aberto e de Mata Fechada
surgiu de um processo de audição ocorrida em três etapas – em laboratório,
no dia a dia e em campo- de 23 espécies dos ecossistemas Pantanal e
Amazônia, selecionadas por critérios próprios advindos deste processo. No
entanto, é importante notar que diversos caminhos foram seguidos antes de se
chegar a este resultado preliminar, ora apresentado. Tanto da seleção, como
das associações observadas. Isto porque a relação investigada homem –
ambiente é um objeto de estudo riquíssimo, no qual, à profusão dos cantos,
timbres e tons, acrescenta-se a façanha de uma antiga e longínqua história de
comunicação e convivência com o homem.
Esta investigação poderia ter sido feita na cidade, ou onde
estivéssemos; em qualquer lugar do planeta, lá estarão os pássaros. A escolha
do Pantanal e da Amazônia nasceu de duas preocupações. A primeira é que
apesar da terça parte da avifauna planetária pertencer a América Neotropical,
o estudo de aves em seu ambiente é ainda pouco desenvolvido no Brasil. A
segunda é que dos estudos desenvolvidos na área específica da ornitologia,
13
bem poucos se dedicaram exclusivamente ao estudo da vocalização dos
pássaros.
A escolha do Pantanal e da Amazônia deveu-se em grande parte à
oportunidade aberta pela existência do Arquivo Sonoro Neotropical1 da
UNICAMP, que possibilitou a consulta a partir dos cantos de pássaros ali
registrados, com condições técnicas adequadas para investigação. Por outro
lado, apesar de ser cada dia maior o interesse científico, muito ainda nos resta
conhecer sobre o Pantanal e a Amazônia. De qualquer modo, seria difícil, no
estudo sobre o canto de pássaros no Brasil, passar despercebida a
prodigiosidade e a profusão de cantos daqueles ecossistemas. Uma
verdadeira biblioteca sonora, como referência.
As 23 espécies escolhidas mereceram um destaque especial pó:
melhor representarem a ambiência sonora dos ecossistemas escolhidos
(sonoridade, musicalidade); pelas características onomatopaicas do canto
(toponímia do mundo tupi); por serem as mais conhecidas, mais comuns ou
familiares (popularidade), e pela função ecológica (distribuição de sementes,
controle biológico) e uma atenção especial à qualidade timbrística desses
cantos.
A participação no projeto de pesquisa para o Lp Ouvir, de Tetê
Espíndola e Arnaldo Black, premiação pela FUNDAÇÃO VITAE, em 1990,
possibilitou abertura para o desenvolvimento deste estudo. Os compositores
pretendiam identificar, a partir de experimentações diversas com o canto da 1 A região Neotrópica ( adaptado por Haffer, 1974) se estende do sul do México (20º N) até o Cabo de Horn (57º
S), incluindo a parte meridional não- tropical da América do Sul.
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avifauna, o que definiam como pássaros da comédia, da tragédia e do drama.
A partir de observações diretas em laboratório e em campo, sugeri aos
compositores e elaborei os critérios, que serviram de referência para as
composições do Lp Ouvir e que, posteriormente, levaram à elaboração da
dissertação de mestrado e finalmente a este livro.
Outro motivo da escolha do Pantanal e da Amazônia vai ao encontro
das primeiras observações amadoras sobre o canto dos pássaros, feita em
1975, com o canto da araras da Chapada dos Guimarães, em Mato Grosso2.
Neste período, a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) conceituava-se
como UNISELVA, uma das instituições participantes do Projeto Aripuanã
(1973/76), que propunham a lançar bases para conhecimento científico da
Amazônia (Cidade Laboratório de Humboldt), visando ao aproveitamento
racional de seus recursos em consonância com o projeto de integração
nacional. Havia um clima verde aliado ao apelo à causa indígena. Este clima
era disseminado por uma política estatal de regionalização, para a integração
nacional. Inauguravam-se projetos culturais em vária frentes na UNISELVA,
destacando-se: o Museu Rondon (MR), em 1973, voltado para o índio; o Museu
de Arte e de Cultura Popular (MACP/ 1973), e mais tarde, o Núcleo de
Documentação e Informação Histórica e Regional(NDHR/ 1976). A euforia
contagiante pela Amazônia era gerada por grande quantidade de recursos e
investimentos vultuosos que fomentaram projetos grandiosos – todos
componentes do que se convencionou chamar de milagre brasileiro. 2 Em exercícios vocais com o canto das aves, Tetê Espíndola descobrira o timbre agudo de sua voz. Na ocasião,
cursávamos Pedagogia, na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
15
No entanto, até o momento, a falta de pesquisas que reúnam o
referencial documental da UNISELVA, para uma análise criteriosa, tem
dificultado a compreensão da medida deste ousado gesto instituidor. Tanto a
importância da criação de uma base científica na Amazônia, como a nova
frente do Museu Rondon para a causa indígena, bem como a capacidade de
reunir movimentos culturais, científicos e artísticos, nascentes ou marginais em
Mato Grosso têm sido clivados em avaliações superficiais, reducionistas e por
vezes oportunistas, até mesmo ingênuas.
A UFMT não soube ainda ocupar o território aberto pelo canto da
UNISELVA, não captou esta chance da história, não soube ouvir, renovar e
atualizar conceitos para exorcizar o milagre, dando concretude à inteligência.
Isso impede que se reconheça , de forma adequada, a vocação ambiental da
UFMT de 1970, como uma universidade de e para o ambiente no agora, vinte e
quatro anos depois.
Nesta confusão de homens e causas, enfim dos interesses
mesquinhos, o lado obscuro da academia, todo esforço da causa maior da
construção do homem do Brasil de dentro foi terreno fértil para o rolo
compressor da infindável crise universitária geral. Poucas universidades
tiveram um veio tão rico em suas origens. Há ainda necessidade de identificar
a UNISELVA como um vetor de significações imaginárias e sociais para que se
possa estabelecer como um marco de sementes lançadas. Poucos souberam
cultivá-las com distanciamentos das idiossincrasias ideológicas e particulares,
portanto, não tiveram a sensibilidade de ultrapassar criativamente aquilo que
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as circunstâncias ditatoriais do período não permitiram a produção dos
fundadores, dos primeiros professores, técnicos e estudantes. Mas o canto da
bandeira UNISELVA pode ser reconhecido para continuar ecoando e
motivando crítica e imaginativamente toda a comunidade da UFMT.
Neste contexto é que tem sido despertada a atenção para o grande
potencial biológico do estado de Mato Grosso. Premiado com duas grandes
bacias hidrográficas, a Amazônia ao norte e a do Pantanal ao sul, situado entre
a Cordilheira Andina e o Planalto Brasileiro. Mato Grosso é o estado divisor
destas águas.
Agraciado com nada menos que três ecossistemas: Pantanal,
Amazônia e Cerrado – o destino pulsante de ser o coração da América e com a
marca deste magnetismo geodésico, firmado com a criação de Brasília. A
vocação ambientalista da UFMT de 1972, como Universidade da Selva, deverá
ser firmado de fato.
De julho a outubro de 1990, foram realizadas audições semanais em
laboratório, no Acervo Sonoro Neotropical da UNICAMP, sob a orientação e a
responsabilidade do Prof. Dr. Jacques Vielliard, pesquisador em canto de
pássaros que já realizou o registro de aproximadamente 17.000 cantos nesta
região.
Enquanto ouvia as fitas preparadas no laboratório em audições em
casa, me dedicava à disciplina Nova Teoria da Comunicação, do Prof. Dr. Ciro
Marcondes Filho, que abordava a nova sensibilidade nas chamadas
sociedades pós-industriais, a mediatização da vida pelos meios de
17
comunicação e a revolução eletrônica, Marcondes oferecia subsídios para a
discussão sobre a crise dos modelos duais, a crítica da ciência (iluminismo) e o
retorno do místico, como novas formas de neutralização das oposições, num
universo de desaparecimento da realidade e das perspectivas ideológicas.
Em outubro do mesmo ano, formamos uma equipe e realizamos a
expedição Macauã, em Sena Madureira, Acre, durante cinco dias, para ouvir a
ambiência sonora. Neste lugar de matas altas, pousamos nossa esperança na
margem de uma rica troca.
O processo de audição possibilitou a percepção de como o ouvido
urbano é surdo para captar sons sutis, e que a compreensão da nova
sensibilidade passa necessariamente pela mudança dos sentidos e das formas
de comunicação com o mundo.
A audição em si leva à aproximação do ambiente, principalmente por
sua complexidade enquanto sentido. O ouvido é, também, sede do equilíbrio e
da orientação.
Do ponto de vista das Ciências da Comunicação, dentro da linha de
pesquisa escolhida – Comunicação, Arte e Educação- , a questão ambiental foi
compreendida nos matizes que apresenta, como uma preocupação das
sociedades contemporâneas com a qualidade de vida. A sugestão aqui
contida procura, a partir do canto de pássaros, contribuir para experiências que
auxiliem a educação ambiental. No entanto, é importante esclarecer que o
processo de pesquisa e a metodologia não pretenderam desenvolver o que
pode ser identificado como uma pedagogia para audição do canto de
18
pássaros, e se as inúmeras estratégias para ação neste campo. Ou seja, foram
indicados alguns caminhos ou pistas (no processo de audição) que podem ser
entendidos como feixe de opções a serem seguidos para o desenvolvimento
de uma ação pedagógica, ou possível modelo pedagógico. Isto porque pode-
se considerá-la uma etapa posterior. O objetivo inicial foi estabelecer uma
aproximação do canto dos pássaros do ponto de vista das Ciências da
Comunicação, hoje restrito à bioacústica. Notou-se que diversos compositores
utilizaram o canto dos pássaros como tema de inspiração, mas a abordagem
aqui proposta busca a compreensão da zoofonia como uma forma de
comunicação entre o homem e o ambiente, tentando compreender os
entraves e as possibilidades deste campo multidisciplinar. Portanto, seria
prematuro determinar um modelo.
O tema proposto situa a pesquisa na fronteira entre o dado e o criado,
ou seja, entre a natureza e a cultura. Ao aproximar-se da bioacústica, descobre-
se uma ciência que ouve a vida como uma linguagem falada antes que pareça
ou independente de qualquer locutor. Para introduzir a comunicação homem-
natureza, procura perceber a sensibilidade humana como articulação de um
desejo constituído diferente e independente do que diz a consciência. Para
aproximar-se da ecologia como uma ciência do meio ambiente, procurou não
se isolar das estruturas naturais, já que a ecologia transforma a extensão
indefinida das construções sociais.
O material sonoro (canto de pássaros) pertence ao Arquivo Sonoro da
UNICAMP e foi utilizado apenas para fins de pesquisa.
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O objetivo é sensibilizar os agentes educativos ou formadores de
opinião, quais sejam: professores, arte-educadores, guias turísticos, agentes
culturais, músicos e outros interessados. O roteiro seguiu as estratégias que se
evidenciaram no processo de audição em laboratório e em campo e teve
como objetivos específicos:
(1) treinar o ouvido para identificar o canto de pássaros em três etapas
de audição;
(2) identificar os critérios propostos: sonoro, ecológico e biogeográfico
durante a audição;
(3) discriminar as diferenças dos tipos de canto e analisar a associação
sugerida: canto- instrumento musical, e
(4) aproximar(diferente de classificar) da ambiência sonora a partir de
audições em campo: no Pantanal e na Amazônia.
A educação ambiental é hoje uma tarefa não só da escola, mas de
toda a sociedade, a fim de estimular a compreensão dos limites e
possibilidades da ação humana para a elaboração da cidadania planetária.
Diante da horizontalidade azul do Pantanal, que funde céu e terra num
ritmo de cheia e vazante, e da verticalidade verde da Amazônia, num ritmo
caleidoscópio de umidade e calor, boa parte do potencial musical da cultura
brasileira, na terra e no ar, está presente nos animais que sonorizam a
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paisagem. Como os demais ecossistemas do planeta, estes trazem muitas
perguntas sem resposta. Porém, mais que respostas mecânicas, emergentes
de soluções racionais e modelos prontos, nos cabe compreender, antes,
nossas próprias inquietações sobre estes lugares, numa era de dissensos e
incertezas, repleta de caminhos e igualmente de obstáculos.
A ecologia como disciplina biológica adquire importância para as
Ciências Sócias quando os conflitos da relação homem-natureza mudam de
polo de reflexão para a relação homem-meio ambiente. Ao nível global esta
compreensão só se dá, efetivamente, neste século. Assim, todo o esforço do
homem de se distinguir da natureza e de sobrepujá-la com sua cultura, é
extinto como uma espécie de condenação e substituído pela necessidade de
interação, que começa a ser largamente estudada. A natureza passa a ser vista
antes como ambiente, embora os conflitos biológicos e sociais não se
confinem nem se restrinjam mais entre si.
Os dons da natureza são exortados de seu lado benéfico (que justificou
todas as atrocidades e excessos cometidos pela Humanidade contra seu
ambiente). Assim, os mecanismos desconhecidos dos equilíbrios sociais e
biológicos se libertam de leis fixas e estáticas e passam a se aproximar do
dinamismo e da complexidade frágil de viver, do sobreviver.
A natureza é generosa quando fala da vida. Cantos também contam as
estórias de seu próprio som – estão pelo ar, para ouvir e sentir, compreender e
investigar.
21
Avisos, alarmes. A Terra engloba uma pluralidade sonora monumental:
a geofonia- como universo sonoro que contém as galáxias dos ecossistemas,
que possuem dentro de si inúmeros sistemas sonoros tais quais os sistemas
estelares, solares e planetários, em escalas diferentes e muitas vezes
inaudíveis ao ouvido humano (o infra-som). A zoofonia pode ser vista como um
destes sistemas, onde o canto dos pássaros se integra.
Em 1829, Hercules Florence transcreveu para notas musicais, durante a
Expedição Langsdorff, a vocalização de vários animais, inaugurando um novo
terreno de conhecimento que nomeou zoophonia. A preocupação do
pesquisador não se prendia apenas ao aspecto científico, hoje objeto da
bioacústica, mas acreditava, também, na possibilidade de expressar, por meio
de partituras musicais especialmente elaboradas com códigos próprios, o
sentimento de estimulação da sensibilidade humana despertado pela
vocalização dos animais em seu ambiente. Na época, a elaboração de
partituras consistia na única forma de registro das vocalizações dos animais.
Em suas observações sobre a zoofonia, Florence demonstrou a importância da
formação de novos campos de conhecimento. Seus estudos são fruto de uma
mente inquisidora e sensível, que tanto expressa o rigor cientifico quanto a
vitalidade criativa.
Durante as etapas da pesquisa, foi possível notar que escala ocidental,
ou qualquer outra criada pelo homem, não é adequada para demonstrar toda
a gama de tons e timbres da fauna planetária.
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As velhas acústicas naturais oferecem uma outra dimensão para a
compreensão dos sons à nossa volta, uma vez que hoje dispomos de
tecnologia necessária para bem investigá-los. Um terreno pouco conhecido e
estudado, onde tanto os ritmos dos ecossistemas, quanto os ritmos humanos,
são afetados pelo impacto ambiental no compasso da multissinfonia da vida,
seus sinais, seu movimento, enfim, sua harmonia dissonante.
Pássaros em viveiros ou animais em zoológicos não favorecem as
condições de reprodução e só podem oferecer uma pálida representação do
que é a vida em seu próprio ambiente: nem a dieta, nem a cor, nem as
características comportamentais são as mesmas, embora venham se
intensificando formas de controle das populações de diversas espécies criadas
em cativeiro, para reintegração posterior em seus habitats naturais.
Também os Acervos Sonoros, por mais sofisticados que sejam seus
recursos tecnológicos para o registro e reprodução, apresentam limitações
metodológicas para a compreensão da ambiência sonora.
Em todos os campos do conhecimento científico correm-se os riscos
da estória de João e Maria que, na ânsia da busca dos elos perdidos com o
passado, passaporte para o futuro, e obrigados a seguir um caminho que não
foi escolhido previamente (condicionamento biológico e social), tiveram o
cuidado de marcá-lo ingenuamente com migalhas de pão.
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PÁSSAROS (para uma introdução)
Costuma-se dizer que a imaginação tem asas . O voo dos pássaros
predispõem associações que simbolizam a comunicação entre o céu e a terra.
Mensagem, presságio, avisa-nos sobre mudanças, perigos e outros fenômenos
naturais. Em todas as religiões e culturas, o pássaro é sinônimo de sagrado.
Anjos são homens com asas, mensageiros, protetores. Representam os
estados superiores do ser, da alma e da imortalidade.
De certo modo, todas estas associações estão ligadas às
potencialidades destes ágeis seres em relação à distribuição de sementes e à
polinização. Basta pensarmos que, se todas as aves fossem extintas de uma só
vez, os insetos tornariam a vida humana impossível em poucos dias.
Como animais voláteis, percorrem grandes extensões o dia inteiro e
necessitam de quantidade de comida proporcional ao tamanho de seu corpo.
Com idade aproximada de 150 milhões de anos, sobreviveram ao Cretáceo e,
de lá pra cá, proliferaram velozmente.
Ao deixar sua marca semi-réptil suavemente desenhada no barro, há
cerca de 140 milhões de anos, o arqueoptérix (Archaeopteryx) relata-nos a
história de sua característica peculiar: penas.
Esse vestígio suave, mas consistente (descoberto em 1861), a certeza
de que já não se tratava de um verdadeiro réptil, tornava indiscutível o elo, não
mais perdido, entre os répteis e as aves. Cabeça de lagarto, mandíbulas
24
providas de dentes, delgada cauda e vértebras móveis, em tudo o esqueleto
semelhante ao de um réptil, com ossos e asas terminando em dedos finos, não
fundidos e com garras.
Se a vida na Terra abrange dois bilhões e meio de anos, as aves são
criaturas recentes. Os Paleontólogos acreditam tenham elas se originado dos
tecodontes, animais possuidores de longos membros posteriores, sobre os
quais corriam semi-eretos, usando a longa cauda para manter o equilíbrio.
A era atual, conhecida como Idade dos Mamíferos, surgiu em oposição
à Idade dos Répteis, que chegou ao fim com o desaparecimento dos
dinossauros e pterossauros. As aves derivam do tronco dos répteis, surgiram
pouco depois dos primeiros mamíferos. Um elo entre as Idades.
Se lembrarmos que os dinossauros reinaram na Terra e estão extintos
há 60 milhões de anos, vislumbramos uma encruzilhada onde homens e
dinossauros se espreitam, no voo do tempo, nas asas emplumadas das aves.
As aves em evolução tiveram que romper a barreira reptiliana que impedia o
vôo verdadeiro para que pudessem se tornar veículos da herança dos
dinossauros e do advento dos mamíferos.
As aves atuais, adaptando-se e transformando-se, ocuparam
praticamente todos os habitats disponíveis do globo. Por essa versatilidade são
notáveis animais vertebrados, os mais conhecidos e estudados.
Já na tradição bíblica, Noé aparece como o primeiro criados de
pombos. Os egípcios criaram pombos para a alimentação e, provavelmente,
para a transmissão de mensagens (3.000 a.C.). Não se sabe, exatamente,
25
quando foram usados pela primeira vez como meio de comunicação a longa
distância. Sabe-se que Júlio César mandava por meio deles notícias de suas
vitórias. No oriente, foram também utilizados como meio de comunicação. Só
na Segunda Guerra Mundial, os pombos-correio foram suplantados pelos
equipamentos eletrônicos.
Fica aqui um convite e um aviso. Refletir sobre pássaros é exercitar a
liberdade. De saltar sobre assuntos, arriscar curiosidades, tecendo ligações,
aninhando coisas aparentemente desconexas. É afastar para avaliar de longe,
é pousar para observar com firmeza, é migrar para o continente de diversas
ciências, na busca de alimento para seguir refletindo, exercitando a própria
natureza do conhecimento, que em si não tem fronteiras.
Os ornitólogos costumam anilhar (anéis de metais e outros materiais)
para monitorar as rotas cíclicas das aves migratórias; assim, algumas
conexões e associações foram aqui anilhadas para melhor compreensão dos
desdobramentos do processo da pesquisa.
Enfim, apesar de a proposta do tema não possuir bibliografia
específica, à medida que as observações foram se efetuando no decorrer da
pesquisa, buscou-se a fundamentação necessária na bioacústica, na
ornitologia, comunicação, ecologia, antropologia, sociologia e na música, de
acordo com os objetivos propostos.
Pássaros têm a ver com a comunicação não só porque voa – ou
porque voar requeira uma aerodinâmica própria que, de Ícaro a Santos
Dumont, até as naves espaciais e as esportivas asas delta, inspiram o homem
26
a libertar-se do peso da gravidade – mas também porque voar significa
conhecer detalhadamente o espaço terrestre. Nem tão somente porque emite
alertas naturais, mas porque, além de tudo isso, canta. O canto é a mensagem,
sobretudo porque nos sensibiliza.
O filósofo grego Heráclito observou o paradoxo do pensamento que
pretende imobilizar coisas móveis, no limite de definições fixas.
Se pudermos compreender a importância do cuidado das áreas
verdes, porque nelas vivem seres especialmente notáveis pelo canto e pelo
constante ir e vir por sobre praças, jardins e ruas arborizadas, estaremos mais
próximos do meio-ambiente.
Talvez possamos enxergar melhor o verde não como escudo da vida,
porque ouvindo-o estaremos em sintonia com sua celebrização. Ouvir
pássaros é notá-los, e notá-los é deixar de perceber o verde auto-
ecologicamente. Por sua inquietude expressiva, os pássaros põem a ecologia
em movimento.
I. Ouvir
Desde o início deste estudo, verificou-se que a análise das formas de
ouvir ao fundamentais para a comunicação. Do homem em seu ambiente,
porque implicam profundo conhecimento foi originalmente desenvolvido pelas
espécies não-humanas que destacam as aves, depois dos insetos, como os
27
seres vivos vertebrados mis bem dotados. As culturas humanas chamadas
primitivas, por necessidade de adaptação e sobrevivência, também
desenvolveram, como veremos, formas de conhecimento das diferenças
ambientais a partir da percepção auditiva.
As aves desenvolveram complexo sistema de comunicação sonora.
Dentre eles, o principal é o canto territorial que perpetua as espécies. Acredita-
se que estes sistemas estejam alicerçados numa eco-lógica.
Por outro lado, as culturas humanas desenvolveram-se na defesa e
contra a natureza. Nisso todas as formas de civilização agem de maneira
semelhante. Foi justamente por causa da percepção dos perigos com que a
natureza ameaça, que a civilização foi criada, a qual também, entre outras
coisas, se destina a tornar possível a vida comunal, pois a principal missão da
civilização, “sua raison d’être real, era nos defender da natureza”1, ou seja,
defender-nos contra a eco-lógica.
A civilização não se detém apenas na tarefa de defender o homem
contra a natureza, mas como afirma Freud prossegue por outros meios. Trata-
se, portanto, de um múltipla tarefa.
O pesado fardo de sacrifícios que se espera dos indivíduos a fim de
tornar possível a vida comunitária, faz com que a civilização seja defendida,
num plano, contra o próprio indivíduo e, em outro, contra a natureza.
Este é um dos aspectos que se evidencia na comunicação com o
ambiente. A mesma natureza que sinaliza os perigos a partir do som que avisa 1 Sigmund Freud. O futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p. 26.
28
terremotos, erupções vulcânicas e a proximidade de inundações perceptíveis à
longa distância, a chegada de tempestades e ciclones arrasadores, em outro
extremo, ostenta o poder de se fazer presente e ativa através do silêncio das
doenças a cada dia mais complexas e, por último, do enigma da morte, como
o fim do som, o silencio radical.
As vozes da natureza que avisam, protegem, também coíbem e
condenam ao mais total dos silêncios. O poder inexorável do som, leva ao
terror do som. E cada vez mais a civilizações fazem calar o poder dessas vozes,
ouvindo outras em seu lugar.
A voz da salvação é a voz da civilização e a de todos os instrumentos
tecnológicos “inclusive os musicas” que esta ou estas, em qualquer estágio
civilizatório fazem ouvir. Também as vozes “in off” dos mitos, das religiões e da
política.
As vozes dos gênios da humanidade podem ser consideradas as
únicas vozes que ouvem detalhadamente: portanto destoam das vozes que
ressoam. “tudo que é sólido desmancha no ar”2 como o som. A solidez do som
é apenas perceptiva e não a sua essência como fenômeno físico.
O papel da ciência é de ser a voz questionadora, fundamenta-se no
diálogo entre a fala das teorias e a voz dos dados observados ou tirados da
2 Baseado nesta frase de Marx, Berman desenvolve sua crítica da modernidade, investigando a dialética da
modernização de um lado e do modernismo do outro ( dissonância de vozes), que no séc XX leva os processos
sociais a um constante turbilhão e a um perpetuo “vir a ser”. Refere-se ao “ ritmo afogueado” compartilhado por
Marx e Nietzsche como “uma voz que ressoa como autodescoberta e auto-repúdio, como auto-satisfação e auto-
defesa”, acreditando na capacidade bem sucedida de conhecer a dor e o terror. Marshall Berman . Tudo que é
sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, pp.16, 22-5.
29
experiência. Assim, a racionalidade cientifica pode ser definida na ressonância
– um acordo orientado entre a voz dessas teorias e desses dados.
Em cada grande momento tecnológico da civilização, vamos encontrar
outro funcionamento das palavras, que se fazem acompanhar tanto por uma
política como por uma razão nova. Em nossa época, numa cultura altamente
visual, é tão difícil comunicar propriedades não-visuais das formas espaciais
“quanto explicar a visualidade dos cegos”3.
Freqüentemente, nos referimos a coisas ouvidas como coisas vitais.
Um exemplo da necessidade de dar ênfase visual ao que ouvido encontramos
na própria bioacústica. Para demonstrar que a “eficiência de propagação de
uma fonte emissora próxima do solo é baixíssima, devido à grande absorção
de energia sonora pelo solo e outros gradientes atmosférico, ocorre o que
chamamos como zona de sombreamento (shadow zone)4
Um outro exemplo encontramos na definição de “ruído branco”. O som
do mar é considerado um ruído branco porque oferece durações oscilantes
entre a pulsação e a inconstância num movimento ilimitado, com alturas em
todas as frequências, das mais graves às mais agudas. Por causa das alturas e
frequências, acaba sendo um ruído, para usarmos um adjetivo do ouvido,
brando.
Mas, a adjetivação visual das propriedades sonoras não pára por aí.
Sons ouvidos são frequentemente referidos como sons visíveis. È mais do que
comum usar expressões, como : “-Você viu o que fulano disse?” , quando na 3 Marshall MacLuhan : os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo, Cultrix, 1964, p. 347.
4 Hernán Fandiño Marino . A comunicação sonora do anu-branco. Campinas: Unicamp, 1989, p. 97.
30
verdade acabamos de “ouvir” estas declarações. O próprio texto musical, ao
invés de ser apresentado em termos sonoros é substituído por comandos
óticos, “espécies de sinais de trânsito” 5
Adorno observou que os ouvintes costumam não dar atenção ao que
ouvem, mesmo durante o próprio ato da audição. Sempre se acreditou que,
como as demais formas de expressão humana, a música possuísse a ação
saneadora e educativa. No sentido disciplinar, Platão propunha um programa
ético-musical que possuísse a característica de “ação de purificação Ática”, ou
seja, uma campanha de saneamento de estilo espartano. 6
No sentido em que foi realizado o processo de audição do canto de
pássaros, a proposição foi captar, com o ouvido, os sons, e tentar identificá-los
sonoramente ou musicalmente. Apesar de as formas de audição serem
permeadas pela cultura, pelo ambiente, incluindo o gosto musical e a própria
acuidade auditiva (capacidade de ouvir medida em decibéis), a audição é o
sentido-suporte que leva à profundidade do que é vivenciado musicalmente.
Portanto, o treino da audição deve ser anterior à própria educação
musical. Antes de ouvir música, seja de qual tipo for, é necessário, sobretudo,
aprender a ouvir.
Nos processos de alfabetização, vamos encontrar ema ênfase nas
técnicas de audição. As crianças são iniciadas, na mais tenra idade, na
educação musical, antes de aprenderem a discernir sons intensos, de sons
5 Theodoro Adorno . Fetichismo na música e na regressão da audição, Textos escolhidos XLVIII. São Paulo:
Abril., 1967, p. 192. 6 Op. cit. ,p. 174.
31
frequentes, o colorido timbrístico dos sons, o sentido do ritmo e da passagem
dinâmica para a melodia.7
Decididamente, não estamos numa época de ouvir. A psicologia dos
ouvintes é regressiva, porque está desvinculada de qualquer relação com a
música; dirige-se, antes, ao sucesso acumulado comandado pela mídia, não se
expressa mais pela espontaneidade ou subjetividade. Assim, Adorno anuncia a
desaurização da música, cuja aparência externa cede em favor do puramente
lúdico.
Mas, não podemos compreender a aparência externa da música se
não pudermos compreender que o próprio som não tem nada a ver com a
aparência.
Tudo que compreendemos como aparência não tem nada a ver com
a música ou com as músicas. A performance da obra musical erudita há muito
substituiu o lugar original da música. Visa a identidade entre o intérprete e a
obra, entre o intérprete e o ouvinte, levando, finalmente, a ilusão ao próprio
intérprete e ao ouvinte da criação da obra no ato da execução.8
A noção de que existe uma música séria e uma música ligeira não
satisfaz, não é uma percepção suficiente que possamos ter do próprio som
7 Sobre educação musical O som e o sentido, São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 19) José Miguel
Wisnick afirma que a pedagogia musical costuma dar nenhuma atenção a essa passagem, a essa correspondência
entre diferentes dimensões vibratórias, e perde aí todo um horizonte de insights possíveis extremamente
estimulantes para fazer e pensar músicas. 8 Edward Said. Elaborações musicais São Paulo: Imago, 1992, p. 142.
32
eletrônico e deste som como matéria-prima da música, seja ela séria ou
ligeira.9
A música, como trilha-sonora do cinema, tem uma aparência, assim
como o vídeo-clip investe exclusivamente na aparência visual da música ao
invés de investir na própria música. A pior faceta do momento, das chamadas
sociedades pós-industriais, é investir na aparência de tudo, e , definitivamente,
pretender transformar o mundo na aparência, enquanto questões seculares
tais como o racismo, as desigualdades, a violência, a destruição ambiental
continuam a desafiar os caminhos da civilização e da civilidade.
O tipo de audição que se tem na música-trilha ou no clip tem a ver
com o audível apenas na aparência. É o produto de uma sociedade que
precisa se contentar com um mundo aparente, nele viver como se fosse real.
Não que se condene a visualidade como superfície, já que ela pode
investir na visibilidade. A conexão som-imagem em nossa época investe na
redução da imagem ao visual, assim como na redução do som ao áudio. De
forma alguma promove a ampliação da imagem como visibilidade ou no
audível do som; ao contrário, funde os dois sentidos para promover um
terceiro, o da aparência, que substitui o lugar da essência de ambos os
sentidos. Uma sociedade que não satisfaz as necessidades humanas
essenciais deve preencher esse vazio com som e imagens e todo um recheio
de necessidades aparentes e virtuais, para dissimular sua incapacidade de
9 Sobre a música eletrônica, observe-se que a orquestra sinfônica tradicional, em comparação, pode ser tida como
uma máquina de instrumentos separados, que produziam o efeito de uma unidade orgânica. Com o instrumental
eletrônico, começa-se com a própria unidade orgânica, com um fato imediato de sincronização perfeita, fazendo
com que a busca de efeitos de unidade orgânica careça de maior sentido. Marshall MacLuhan, op. cit. , p. 400.
33
resolvê-las essencialmente. Resolve-as não só as ignorando, mas criando
outras em seu lugar. Como se pode apenas dissimular o lugar da essência, o
vazio é indisfarçável.
De um outro lado, existe uma impossibilidade técnica. É recente a
conexão som-imagem. Vive ainda sob o impacto do fascínio da revolução
eletrônica. Os efeitos implosivos desta revolução são deslocalizados no tempo
e no espaço.
Por um lado, leva à especialização acelerada e por outro abre
territórios para a invenção de códigos e combinações. No que tange o
conhecimento musical, percebe-se que não está mais necessariamente
vinculado ao domínio da escala e das regras musicais tradicionais. A
impossibilidade técnica é também uma questão de tempo acelerado.
Falar de som sem recorrer à imagem é praticamente impossível;
principalmente com a palavra escrita. Deste modo, vamos recorrer a uma
imagem que se assemelhe ao desenho invisível que o som faz no ar.
A mudança profunda que estamos vivendo funciona tal qual uma
pedra lançada na água, se faz perceber apenas na superfície, no movimento
circular geométrico. É ela que se agita, é ela que levará ao abismo ou ao
aprofundamento deste gesto. Quanto mais fundo for a pedra, maior será a
ressonância do gesto na superfície.
34
Ou-vendo
Desde a exploração do Novo Mundo, os viajantes observaram com
espanto e decepção, nossas selvas majestosas. O cenário esplendoroso
sugeria uma fauna exuberante, animais fantásticos10, de grande porte como os
do continente africano. Assim, o “olha ávido dos conquistadores a procurar no
emaranhado das nossas selvas a figura gigantesca de qualquer animal que
lhes lembrasse o elefante ou o rinoceronte, ou na vastidão dos nossos
campos, a mancha movediça do que poderiam ser bandos de búfalos, zebras
ou antílopes.”11
Ao contrário, o ambiente das florestas tropicais não facilita a
movimentação das plantas forrageiras. A densidade da floresta impõe a vida
nômade e solitária, afasta o gregarismo ligado aos rebanhos. Se comparada
aos mamíferos, a grandeza da avifauna Neotropical é significativa. Para cada
seis espécies de aves, encontramos uma espécie de mamífero. A América do
Sul é o continente das aves.
O testemunho de ouvir está presente nas culturas indígenas como
tradução do que o ambiente à volta comunica. Ao selecionar nomes tupis de
algumas aves, a intenção foi identificar tipos semelhantes de canto a partir das
10
Sobre os seres imaginários, ver BORGES,Jorge Luis ; GUERRERO,Margarita. O livro dos seres
imaginários.Porto Alegre: Globo, 1981. 11
Gastão Cruls . Hiléia amazônica. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1944, p. 60.
35
características onomatopaicas. Chama atenção, a toponímia da língua tupi,
por oferecer pistas detalhadas do território e,e portanto da cartografia.
A língua Tupi, Nheêngatu, Língua Geral ou Língua Brasílica, é um
campo de investigação científica para a biogeografia e para a ecologia
humana. Os topônimos são sempre descrições ricas, traduzindo a fina
observação ao incluir, no nome do lugar, as características dele; associações
com o tipo de terreno, clima e até muitas vezes o som dos lugares, por
exemplo: Amazonas = Ama(chuva) + ssununga (barulho ou ruidoso). Podemos
encontrar nomes de aves, fora aqueles onomatopaicos, relacionados a um rio,
por exemplo: Anhembi = rio das anhumas ou anhimas – como eram
chamadas antigamente. Sem dúvida estas associações sugerem pistas para a
observação de inúmeras relações biogeográficas, fitogeográficas e outras que
de certo modo faziam parte do conhecimento destas nações, sinalizadas na
própria toponímia da língua.
A região Amazônica e o Pantanal somam centenas e milhares de
espécies que junto ao Cerrado formam um continente para a biodiversidade.12
Mesmo assim, toda essa fabulosa fauna e flora foi nomenclaturada pelas
nações indígenas até suas ínfimas variedades.
A audição como reconhecimento espacial implica conhecimento
minucioso da geografia, como forma de equilíbrio com o meio ambiente a
partir da identificação sonora. A audição biaural (dos dois ouvidos) só foi
12
Diversidade biológica significa a variedade dos seres vivos (animais, vegetais ou microorganismos). Não se
refere apenas à diversidade das espécies, mas também às variações entre indivíduos de cada espécie que são
transmitidas hereditariamente (diversidade genética) – assim como às variações que ocorrem entre diferentes
habitats naturais (diversidade de ecossistemas).
36
devidamente estudada e reconhecida em 1934 por cientistas da Universidade
de Harvard. O homem tropical utilizava, instintivamente, este potencial para
calcular distâncias, orientar caminhadas e prever perigos de longe. Mas
quantos viajantes não morriam e ainda morrem na inanição dentro da
floresta? Morte por inanição, claro, do sentido da audição – falta de
sensibilidade auditiva para se orientar no monocromatismo da floresta.
As culturas pré-letradas que contrastam “os caracteres francamente
divergentes da palavra escrita e falada podem hoje ser mais bem estudados” ,
graças ao contato íntimo que com elas temos hoje.13 Diz MacLuhan que um
único nativo alfabetizado de seu grupo, ao falar de sua função de leitor de
cartas para os outros, sentia-se impelido a tapar os ouvidos com os dedos,
durante a leitura, para não violar a intimidade das cartas. Sem a “pressão
visual” da escrita fonética, a palavra falada não permite extensão e a
ampliação da força visual requerida para os hábitos do individualismo e da
intimidade. O autor aponta o filósofo francês Henri Bérgson como
representante de uma tradição de pensamento que considera a língua, como
uma “debilitadora dos valores do inconsciente coletivo”. Bergson opina que
sem a linguagem a inteligência humana teria permanecida totalmente
envolvida nos objetos de sua atenção.14 Esta linha de raciocínio acredita que a
fala supera o homem e a humanidade do inconsciente cósmico, e como 13
Ver Marshall MacLuhan. Os meios de comunicação como extensões do homem, São Paulo: Cultrix, 1964,p.
96. 14
A linguagem é para a inteligência o que a roda é para os pés, “permite deslocar de uma coisa para outra com
desenvoltura e rapidez, envolvendo-se cada vez menos. Projeta e amplia o homem, mas também divide suas
faculdades, a consciência coletiva e o conhecimento ficam diminuídos por esta extensão técnica da consciência
que é a fala”. Op. cit. , p. 98.
37
“extensão” , manifestação ou exposição de todos os nossos sentidos a um só
tempo, a linguagem sempre foi considerada a mais rica forma de arte
humana,15 posto que a distingue da criação animal.
Com os descobrimentos, inaugura-se o período dos grandes relatos
escritos sobre trópicos. Eles apresentam uma clara oposição entre o visto e o
ouvido.16 O olho está a serviço da “descoberta do mundo”. Existe uma
verdadeira “vertigem de curiosidade” está a serviço do que está oculto.
A vertigem da curiosidade desloca os sentidos, o olho que a tudo
devassa também fareja a riqueza camuflada, desconhecida. Os sons ouvidos
são como fantasmas – inarticulados, ruídos sem conteúdo inteligível -, são
“chamados fora da órbita do sentido”17 – sons sem referência na memória. O
impacto visual da fábula ofusca impedindo a visibilidade, o delírio do olho a
serviço da escrita promove o deslocamento fracionando o mundo dos
sentidos.
Com os “descobrimentos” inaugura-se o período dos deslocamentos. A
Europa ocidental (XVI ao XVIII) se deslocaliza. Esta deslocalização generalizada
está na base das clivagens sociais que acompanham o nascimento de uma
política e de uma razão nova, que a partir dos relatos de viagem “engendram
15
Em Antropologia Estrutural (Rio de Janeiro, 2. ed. 1985, pp. 77-83; cap. III, Lévi-Strauss afirma que, de
todos os fenômenos sociais somente a linguagem parece presentemente suscetível de um estudo verdadeiramente
científico, que explique a maneira pela qual ela se formou e preveja certas modalidades de sua evolução ulterior 16
Em A Escrita da História (Rio de Janeiro, 1988, pp. 21-41, “Etnografia, A oralidade e o espaço do outro:
Léry”) Michel de Certeau mostra a pressão da escrita como uma energia demolidora dos próprios estatutos da
etnologia. Demonstra a oposição entre o visto e o ouvido dos relatos de viagem, o “face a face do descobridor,
vestido, armado, cruzado e da índia nua”; - o desnudar sem compreender. 17
As estruturas do sentido “projetadas nas diversas línguas, são tão diversas como os estilos na moda e na arte”.
Cada língua materna “ensina aos seus usuários um certo modo de ver e sentir o mundo, um certo modo de agir
no mundo e que é único.” Marshall MacLuhan , op. cit. P. 98.
38
um outro funcionamento da escrita e da palavra”.18 Esta verdadeira
compulsividade pela descoberta foi reforçada no século XVIII, veio favorecer a
“expansão ilimitada do domínio racional”.19
Ou-vindo
Na caça, na transmissão de sinais e defesa de seu território é costume
antigo entre indígenas a utilização de pios para arremedar certas aves,
sobretudo os tinamídeos.3 Geralmente são aves que cantam à noite, assim, o
arremedo do canto noturno destas aves servia à emboscada – quando o
invasor era surpreendido na escuridão.
Esta antiga arte de defesa demonstra que, a seu modo, os índios
desenvolveram formas de observação que auxiliaram na diferenciação dos
diversos chamados, identificando as características comportamentais das aves
pelo canto e pela vocalização. O arremedo dos pios indica uma compreensão
da relação canto-defesa de território, que, assim, era utilizado para os mesmos
fins.
18
Michel de Certeau, op. cit. P. 213. 19
Ver , CASTORIADIS,Cornelius. O mundo fragmentado: as encruzilhadas do labirinto 3. Rio de Janeiro: paz
e Terra, p. 96. 20
Aves pertencentes a uma ordem típica das Américas (Neotrópico), possuem uma família com nove gêneros
divididos em diversas espécies e subespécies. Carne saborosa, são características: o esterno bem desenvolvido e
capacidade de voar limitada pela pequena envergadura das asas. Terrícolas, vivem exclusivamente em matas ou
campos. São os conhecidos nhambus, perdizes e codornas.
39
A função do canto territorial das aves é processada durante longos
períodos com intervalos regulares; estas emissões independem de uma
estimulação externa.4 Isto é, o canto territorial de aves é dado constante na
ambiência sonora das paisagens. Vai daí, justamente, a utilização por índios
deste tipo de emissão, em situações de defesa de território, pois a chance de o
invasor identificar estes arremedos é quase nenhuma.
No continente das aves, o homem ou qualquer outro mamífero sempre
foram minoria. E talvez esta percepção tenha sido inata entre as grandes
nações tropicais que partilham este território, mesmo antes da chegada do
invasor. É possível que, ao observarem a grande quantidade e qualidade de
aves, em sua faina diária à busca de alimento, atraídos pelo canto ( o que
permite a localização) descobrissem territórios favoráveis (de caça e pesca)
para o desenvolvimento de suas culturas. Não é mero acaso, a importância
das aves na cosmologia indígena, na arte plumária5, na arte de defesa.
A ideia que supõe a América Neotropical antes do século XVI como
continente que vivia na plenitude de sua natureza exuberante e tórrida, onde o
homem tropical em suas nações e tribos numerosas vivia com amplo conforto
e plena liberdade espacial para o desenvolvimento de suas culturas, vai de
encontro à base dos sentimentos que condenam e restringem a colonização
como um processo brutal de escravização, opressão e clivagem. A conquista
territorial levada a cabo por espanhóis e portugueses, sem negar as
21
Ver Hernán Fandiño, op. cit. , p. 107. 22
Haja vista a técnica da tapiragem, pela qual os índios modificavam ao seu gosto a cor das penas dos pássaros
em geral.
40
atrocidades e violências cometidas, acabam escondendo outros elementos
que insistem em ficar de fora.
A diversidade ecológica guarda um destino submerso no qual a
monumentalidade da riqueza natural sempre fez frente de igual altura, senão
de maior envergadura, aos processos sociais e culturais. Sem dúvida a
biodiversidade contribuiu e contribui para que, apesar dos feitos conseguidos,
do jugo e da destruição de boa parte dos sistemas tradicionais de
sobrevivência de seus povos nativos, continue sendo a América Neotropical a
pátria planetária das possibilidades, pela qualidade e quantidade de seus
ecossistemas.
Não havia aqui antes da chegada dos colonizadores nada semelhante
à harmonia6. Pelo menos a harmonia como costumamos compreendê-la. As
dificuldades e limitações ambientais obrigavam à vida nômade, desenraizada.
Os territórios de caça de animais de que porte. No mosaico das grandes
sombras florestais da mata Atlântica à Amazônica, a vida se desenrolava entre
os perigos e a lentidão do tempo gotejado. Algumas tribos conseguiam se fixar
em litorâneas e menos acidentadas, ou próximas a manguezais. É sabido que
do lado oriental da Amazônia, próximo à região dos Yanomamis, os rios são
considerados famintos7. A vida nestes territórios é de diário desafio.
Tal qual pássaros, as tribos partilhavam este território que impunha
ritmos de constantes deslocamentos entre as grandes estações de cheia e
23
Ver na epígrafe a mensagem que Lévi-Strauss nos deixou sobre as “harmonias perdidas” e o timbre original do
tempo, op. cit.,p. 139. 24
Ver documentário de Rondon sobre a expedição Cuniná, que revela a decepção da pobreza da fauna
amazônica. Conferências. Rio de janeiro, 1916.
41
seca. A disputa pelos territórios que impunha ritmos de constante movimento,
lentos cíclicos entre as grandes estações de cheia e seca. A disputa pelos
territórios de caça favorecia o surgimento de tribos guerreiras que
escravizavam outras menos desenvolvidas na arte da guerra silenciosa dos
pios e outros sinais sonoros. Menos desenvolvidas na arte da zoofonia.
O descobrimento da América foi fundamental para o desenvolvimento
das ciências naturais e antropológicas. Nos fins do século XVII, a botânica era
descritiva; consistia unicamente na classificação de espécies. Com as
expedições científicas, as relações entre os caracteres climáticos, junto às
complicações dos botânicos, se avolumaram de tal modo que houve uma
“verdadeira revolução no domínio da taxinomia”.8 Isso contribuiu, diretamente,
para o aparecimento da ecologia como disciplina da biologia.
Como vimos, o continente das aves é sobretudo o da grande variedade
de vegetais que, por sua vez, está diretamente relacionada com a riqueza da
avifauna: a ecologia surgiu da geografia das plantas.9
Mas, até hoje, é incômodo admitir que formas de observação da
natureza, das chamadas civilizações primitivas, possam estar na base da
formulação da biogeografia e da própria ecologia, formulada mais adiante.
Evidentemente, a grande quantidade de espécies vegetais classificadas iam
acompanhadas não só de seus nomes, mas também de outras informações
25
Ver .ACOT,Pascal , História da Ecologia, Rio de Janeiro: Campus, 1990, p. 13.
26
“Onde se vê que a geografia vegetal do século XIX, integrando no seus desenvolvimento os métodos e
resultados de disciplinas vizinhas, constituiu o quadro conceitual da elaboração dos conceitos centrais de
ecologia”. Ibid
42
fornecidas pelos próprios “habitantes” dos locais onde eram encontradas,
informações dobre o clima, sobre a geografia, que serviam para compor um
panorama detalhado. As teorias que expandiram a noção da Amazônia como
um grande vazio, isolado, perdido na imensidão infestada de selvagens, não
conseguem esconder este paradoxo.
O vazio, na verdade, estava ocupado por numerosas tribos. Sensíveis
foram os contrastes fornecidos por estes grupos ambientados com a natureza10
tropical e estrategicamente localizados, que se movimentavam com destreza
por todo o complexo continental, ou parte dele, convivendo, intimamente, com
a textura da terra e conhecendo precisamente suas mudanças climáticas.
Grupos que possuíam compreensão diretamente do tempo e do espaço, o
ontem e o hoje, e o próximo ou distante. Enfim, homens que não tinham para si
nada de sui generis: grupos organizados, com seus conflitos próprios,
convivendo com tudo aquilo que para o colonizador ou naturalista viajante era
um imenso e tenebroso vazio.
Na verdade o desconhecido não foi apenas impacto entre o civilizador
e o civilizado; mais para um do que para o outro, existiram formas de interação,
embora isso nem sempre seja admitido. O conceito sobre as culturas
“primitivas” continua contaminado de equívocos.
27
Sobre o caráter ambíguo da noção de natureza entre os povos ditos “primitivos”. “A natureza é pré-cultura e
também subcultura, o terreno no qual o homem pode entrar em contato com seus ancestrais, os espíritos e
deuses”. Portanto, na noção de natureza há um componente “sobrenatural” e esta “sobre-natureza está
incontestavelmente acima da cultura, como a própria natureza abaixo dela” (Lévi-Strauss, Antropologia
estrutural dois, cap. XVII; B, “O respeito pela natureza”). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro., p. 325.
43
Um matiz desta questão está cravado na própria tradição
antropológica. As ciências sociais e antropológicas desenvolveram poucos
conceitos para analisar, por exemplo, como os grupos indígenas reproduzem
em seu interior o desenvolvimento capitalista, para melhor compreender como
constituem dentro dele “formações mistas”11. Cancline afirma que os estudos
etnológicos tendem a registrar de um lado a sociedade colonial e de outro o
grupo étnico, como blocos homogêneos. As desigualdades internas são
camufladas e vistas como unidades compactamente enfrentadas pelo poder
invasor. Assim, as formas de interação permanecem clivadas.
O etnocentrismo dificulta a compreensão das culturas populares, que
continuam a ser enxergadas como “resquícios de tradições étnicas” ou como
subculturas e não como configurações concretas do social, ou como
fragmentos, partes de um sistema maior de dominação.12
Mesmo não sendo um fenômeno à parte, não foi apenas a desnutrição
e a exploração direta ou indireta das culturas ditas primitivas, mas foi também
a apropriação do conhecimento e da sabedoria desses povos que permitiu
que boa parte do desenvolvimento ocidental. O contato com culturas que
desenvolveram modos de comunicação, de convivência e de conhecimento
minucioso da natureza inspirou e até gerou metodologias de observação
científica.
28
Ver , CLACINI, Nestor Garcia, Um debate entre tradicion y modernidad, Clacso XVII, 52, 1987, p. 40. 29
Para Canclini é o próprio vínculo da antropologia com a história que provoca estas distorções, pois ao abarcar
a larga temporalidade da dimensão diacrônica acaba por fortalecer a estratégia de dominação dos grupos
indígenas, que sempre foi manter a sua diferença, ibid.
44
Não é segredo a vasta contribuição destas culturas para as ciências
biológicas e farmacológicas; como também hábitos e costumes alimentares e
medicinais, conhecidos como “naturais”, são desde a colonização, até hoje,
largamente utilizados e popularizados no mundo inteiro. Também boa parte da
indústria farmacológicas alopática utiliza substâncias retiradas de diversos
vegetais e animais da floresta tropical, a partir da medicina praticada há
milhares de anos por estes povos, que não recebem retribuição alguma por
essa incalculável contribuição. Por isso as interpelações feitas hoje aos
indígenas, como guardiões ideais das reservas florestais, merecem uma
reflexão à parte.
Não há como esconder que o desenvolvimento ocidental tem sido
orquestrador de diversas atrocidades que encontram na clivagem das
interações e conflitos sociais um dos seus maiores desafios. Não seria exagero
admitir que as penas de pássaros presentes nos adereços ou empalhadas em
museus são sintomáticas de um fenômeno: a partir do quinhentismo, acertam-
se os ponteiros para a contemporaneidade da devastação acelerada.
O calvinista Jean Lery (1557) foi o primeiro a registrar os nomes
indígenas de aves nas aldeias tupinambás, tendo escrito uma canção desses
índios sobre o canindé (Ara ararauna), uma arara de barriga amarela.
A convite do Conde Maurício de Nassau-Siegen, muito interessado em
zoologia, o naturalista George MacGrave (1610-1643) foi incubido de executar
de executar a primeira expedição científica zoológica, botânica e astronômica
45
em solo brasileiro13. Apesar de não ter coletado material científico, MacGrave
organizou vasto material iconográfico a óleo e aquarelas.
Em 1783, Alexandre Rodrigues Ferreira (nascido na Bahia, em 1756),
veio chefiando a “Viagem filosófica pelas capitanias do Grão Pará, Rio Negro,
Mato Grosso e Cuiabá”, organizada em Portugal, para fazer pesquisas durante
dez anos. As coleções desta viagem constituíram-se no primeiro material
científico que foi do Brasil para a Europa.14
Uma experiência de apresentar vozes de pássaros em notas musicais
foi elaborada, primeiramente, pelo príncipe Maximilian Von Wied Neuwied
(1816), quando registrou, no Brasil, o assobio do saci (Tapera naevia). A
narrativa da viagem do príncipe Wied contém vasto material sobre fauna, flora
e sobre a vida nativa e constitui-se, também, em documento do mais alto
interesse biogeográfico.
O registro do canto dos pássaros em notas musicais se tornou uma
prática entre alguns cientistas e viajantes que conheciam teoria musical. Era o
único instrumento de registro do canto das aves; outras técnicas surgiram
mais tarde, como examinaremos mais adiante.
No período colonial era prática comum a captura de animais,
principalmente das aves. O Brasil era conhecido como a terra dos papagaios.
Como troféus das façanhas empreendidas nos continentes conquistados eram
30
A Historia naturalis Brasiliae de MacGrave foi editada em 1648.
31
Ver Helmut Sick. Ornitologia Brasileira: uma introdução. Brasília, UNB, vol. 1, 1984, p. 107.
46
exibidas para o deleite do mundo europeu, como exóticas.15 Práticas como a
Caça de Altaneira foram registradas na corte do infante Dom Luís (1616), um
tipo de caça desconhecido nos trópicos.16
No século XIX, proliferaram as expedições científicas aos estudos
biológicos e zoológicos. Milhares de espécimes de aves foram coletados e
depositados em museus da Europa. Entre as coleções que está a de Friedrich
Sellow (1814), que enviou 5.457 aves empalhadas para o museu de Berlim.
Suas coleções só foram superadas por Johannes Spix e Johannes Natterer.
Estes dois naturalistas alemães, ao lado do botânico Carl Friedrich Philip Von
Martius, fizeram parte da expedição que veio ao Brasil com a princesa
Leopoldina em 1817.
As coleções de Natterer contavam com 12.239 aves empalhadas, 1.000
mamíferos, 35.000 plantas secas e milhares de objetos indígenas, enviados ao
Museu de Viena.
Em 1800, Humboldt, que também incluía aves em seus estudos, veio
ao Brasil com o botânico Bompland, mas foi proibido de entrar no país por
decisão da Coroa. Na Venezuela, descobriu o guácharo (Steotornis caripensis).
O cientista pertenceu a uma corrente que elaborou conceitos importantes para
a ecologia – sendo um dos precursores da biogeografia.
32
Exótico é tudo aquilo que se desconhece. Ser exótico é, sobretudo não ser compreendido, é ser considerado
mal feito, mal acabado, curioso e intrigante, justamente por ser desconhecido. V. Aurélio Buarque de Hollanda,
Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa. 33
A caça de altaneira é típica de savanas, desertos e de montanhas desprovidas de mata.
47
Os naturalistas Alfred Russel Wallace e Henry Walter Bates viajaram
pelo Brasil em 1848. A obra de Bates, O naturalista e o rio Amazonas, (1863)
está entre as publicações mais conhecidas e estudadas sobre a Amazônia.
Wallace ficou mais famoso pela formulação da teoria da seleção natural, em
1859, em conjunto com Charles Darwin. Seus estudos baseavam-se em
registros feitos na região oriental da Amazônia. Darwin, que aqui esteve em
1832, conclui que a botânica e a ornitologia do Brasil já eram bastante
conhecidas.
Poucos cientistas reconheciam a nomenclatura nativa de aves e
animais.17 A própria forma de classificação implicava, na época das expedições,
verdadeira corrida científica. Isto porque os nomes das espécies novas que
iam sendo descobertas podiam e podem incluir o nome de pessoas, dentro da
sistematização introduzida por Linneu, 18 em 1758. A classificação proposta por
Linneu fez nascer grande interesse pelo estudo científico de aves, estimulando
verdadeira corrida à consagração científica. As viagens pelos trópicos
proporcionavam aos viajantes naturalistas o verdadeiro mérito e
reconhecimento científico.
O ato de dar nomes científicos hoje é controlado pela Comissão
Internacional de Nomenclatura Zoológica (C.L.N.Z.) e baseia-se na lei da
34
Martius compreendeu a importância da língua tupi, para estudos de zoologia, na publicação Nomina
animaliun in língua tupi, 1863 -, e Rodolfo Garcia realizou uma interpretação de nomes indígenas em Nome de
Aves em Tupi, 1913.
35
Autores bem familiarizados com o latim latinizam o nome na nomenclatura, por exemplo: Spixius, em vez de
Spix. Em conseqüência, o respectivo nome deve ser escrito com dois “i” no genitivo latino, por exemplo:
Cyanopsita spixii, Wagler, 1932; e ainda se escreve Synallaxis spixi, Sclater, 1856, simples genitivo de Spix
sem latinização, op. cit., p. 36, Op. cit.,p.38.
48
prioridade: o nome válido é o mais antigo, para evitar que a nomenclatura se
torne caótica. A taxonomia baseia-se principalmente na morfologia externa,
mas existem hoje outras técnicas para métodos bioquímicos (quimio-
taxonomia e sistemática genética), estudos etológicos e pesquisas fisiológicas,
tais como: análise da vocalização para tentar investigar problemas não
solucionados com as técnicas morfológicas.
Até 1950, técnicas morfológicas predominaram. Nos anos posteriores,
inicia-se a investigação de técnicas não-morfológicas. Destacam-se pesquisas
sobre a musculatura mandibular dos passeriformes; de possíveis caracteres
nos esqueletos, que sirvam para separar famílias e ordens; dos estapes19, uma
parte do ouvido interno: e ainda das estruturas que não estão sujeitas à
seleção. A capacidade de comunicação pelo canto ou vocalização subentende
mecanismos desenvolvidos ao longo da evolução, nas aves extremamente
ligados à audição.
Ou-vido
Em repouso ou em movimento o ar é um material elástico que
transmite o som. A sutileza sonora e as forças constitutivas da audição,
presentes nos pássaros demonstram inequivocamente a leveza de ser. 36
Op. cit. P. 37.
49
Só se pode perceber o quanto a audição é preciosa, quando ela falta.
Se uma criança nasce surda terá enorme dificuldade de adaptar-se ao mundo.
Fatalmente seu desenvolvimento intelectual estará comprometido, não
podendo ouvir sequer o próprio choro, primeira forma de comunicação.
Como centro auditivo, o ouvido é tão ativo, quanto sensível, por isso
considerado pedra fundamental da comunicação. A audição biaural permite
aos cegos calcular com exatidão a distância dos objetos. O ouvido é a sede
não só da audição, mas de outros dois sentidos independentes: o equilíbrio e a
orientação, situados no labirinto.
No século XVIII, questionava-se a existência do som. Perguntava-se: Se
uma árvore cair na floresta haverá som?20 A natureza era colocada em dúvida
nesta procura de um mundo real. Especulava-se o som como fenômeno
organizado, ou como uma sensação que só poderia ser reconhecida pela
mente ouvinte.
Ainda no início do século XIX, acreditava-se que o som não ocupava
espaço. Assim como os objetos têm textura e forma e podem ser vistos pelos
olhos e tocados pelo tato, o som, ao contrário, não poderia ser localizado por
meios auditivos. Até pouco tempo, muitas destas ideias impediam a
compreensão da audição biaural. Existem outras razões para a audição ter
sido um sentido relegado ao segundo plano.
37
Sobre a discussão de causa e efeito do som entre filósofos e físicos, Stevens e Warshofsky, O som e a
audição, Rio de Janeiro: Edições Life, 1968, p. 9.
50
Com a escrita, o som passa a ser uma “extensão da função visual”.21 O
alfabeto fonético leva à redução do papel dos sentidos da audição, do tato e
do paladar. MacLuhan afirma que isto não se deu em culturas como a chinesa,
que utilizam a escrita não-fonética, o que capacita à manutenção de uma
percepção abrangente e profunda da experiência. Nas culturas do alfabeto
não fonético, o ideograma é uma gestalt abrangente, que ao mesmo tempo
não promove a dissociação analítica dos sentidos e das funções, como ocorre
coma escrita fonética.
A separação introduzida entre o som e a visão, de um lado e o
conteúdo verba e semântico, de outro, transforma esses dois sentidos na mais
radical das tecnologias que tange à tradição. O alfabeto fonético divide a
experiência antes unida, “dando um olho, por um ouvido, liberando o homem
do transe tribal, da ressonância da palavra mágica e da teia do parentesco”.22
Assim as culturas tribais não conseguem compreender a ideia do indivíduo
separado. Para elas, a ideia de espaço e tempo é descontínua e desuniforme,
seu fundamento é emotivo.
Somente as culturas letradas dominaram as sequências lineares,
concatenadas como formas de organização psíquica e social, fragmentando a
experiência em unidades uniformes capazes de produzir ações e mudanças
formais mais rápidas através do conhecimento aplicado. Este último é o
segredo do domínio ocidental sobre o homem e sobre a natureza. Baseada na
38
Marshall MacLuhan, op. cit. P. 103. 39
Op. cit., p. 103.
51
alfabetização, a civilização promove um processamento uniforme da cultura
pelo sentido da visão, projetado no tempo e no espaço pelo alfabeto.
Nas culturas tribais, o que organiza a experiência no mundo é o
sentido vital da audição, que reprime os valores visuais.
MacLuhan, em sua “tese genérica”23, preconiza a Idade Elétrica como o
fim da cultura visual, da divisão técnica, do individualismo, do nacionalismo
reintroduzindo a comunicação instantânea e a relação tribal (como foi com as
culturas orais que precederam a imprensa). Anuncia a Era Elétrica (implosão)
como um período de reencontro com os esquemas de participação das
culturas orais e tribais, que precederam a Era Gutemberguiana (explosão).
As afirmações de MacLuhan abrem caminho para o estudo da História
Moderna, em função dos meios de comunicação dominantes em sua leitura
otimista e atraente de divisão da história em grandes eras tecnológicas.24 O
caráter imediato da tele-informação faz do mundo uma tele-aldeia, introduz o
neoarcaismo,25 um fenômeno importantíssimo que está diretamente ligado ao
neomodernismo.
MacLuhan viu a humanidade em três grandes idades. A primeira dá
ênfase à audição nas culturas orais; a segunda, à visão nas culturas do
alfabeto fonético; e a terceira, ao tato nas culturas elétricas. No momento
40
, BADRILARD,Jean. Analisis de Marshall MacLuhan : Undersatnding Media, Buenos Aires, Tempo
Contemporâneo, 1967, p. 26. 41
Jean Baudrillard afirma que o autor omite o conhecimento da história social destes meios, apesar de apoiado
em grandes verdades. Ao enfatizar que “o medo é a mensagem”, MacLuhan esvazia a sociologia e a história
política destes meios; suas revoluções e convulsões históricas, omitindo os nacionalismos e o feudalismo
burocrático numa era de participação acelerada, “astúcia sutil”, op. cit., p. 35. 42
MORIN,Edgar. Para compreender MacLuhan, op. cit., p. 39: à maneira de Lévi-Strauss, MacLuhan
redescobre a notável modernidade da consciência arcaica.
52
vivemos um período de interpenetração da passagem da segunda para a
terceira. No entanto, a mudança de ênfase do visual para o tátil retornava as
formas de envolvimento das culturas orais, do ouvido.
Audi-ação
A audição, como sentinela dos sentidos, por suas funções
independentes de equilíbrio e orientação, evoluiu de mecanismos simples, os
estatocitos.26 Primeiro órgão sensitivo, esse mecanismo é conhecido nos peixes
como “linha lateral” e são extremamente semelhantes, em construção, às
células ciliadas do ouvido interno dos mamíferos que convertem vibrações em
impulsos nervosos.
Comparável a um receptor de rádio, o ouvido humano é capaz de
decodificar as ondas eletromagnéticas e redecodificá-las como som.27 Assim, a
voz humana pode ser comparada a um transmissor de rádio, ao traduzir o som
em ondas eletromagnéticas. A voz tem o poder de moldar o ar e o espaço em
formas verbais, embora se acredite que tenha sido precedida, provavelmente,
de uma expressão menos especializada: “de gritos, grunhidos, gestos e
comandos de canções e danças”.28
43
Bolsas que mantêm o equilíbrio em animais marinhos, tais como a água-viva. 44
Marshall MacLuhan, op. cit., p. 97. 45
Ibid.
53
O ouvido capta, amplifica, converte e transmite para o cérebro,
simultaneamente, o que os dispositivos artificiais só conseguem fazer em
seqüência. Dentro da abóboda cerebral, não são os sons, mas os estímulos é
que provocam as reações que respondem a esses mesmos estímulos.
O som vivo do ambiente provoca uma gama enorme de emoções e de
reações físicas. O reflexo do movimento do mundo, da fala, desperta
lembranças e imagens mentais remotas e esquecidas. É a memória do som
que põe em movimento as imagens esquecidas na memória. No centro de
memória sonora no interior do cérebro, os sons acumulados são referências
precisas para o estado de alerta e prevenção de perigos.
Mas é justamente na atualidade, em que a audição em si passa alertar
e prevenir. Uma ciência cujo método está em busca de orientação para a
compreensão dos mecanismos de equilíbrio do meio ambiente.29 Investiga-se
hoje a complexidade destes mecanismos naturais, para desenvolver formas de
controle biológico que surtam efeitos mais duradouros. Assim a ecologia pode
ser considerada a ciência que busca ouvir, em vez de devassar para
determinar ou provar, que busca orientar e equilibrar seus métodos com a
complexidade ambiental.
Físicos, matemáticos, biólogos, e astrônomos estão criando uma série
de idéias alternativas. Sistemas simples dão origem ao comportamento
46
GLEIK,James. Caos: a criação de uma nova ciência. Rio de Janeiro: Campus, op. cit., p. 292.
54
complexo e sistemas complexos dão origem a comportamentos simples: as
leis da complexidade têm validade universal.30
Os mecanismos complexos não são visíveis e estão submersos em
associações tão sutis que, de forma independente, se equilibram e orientam,
sujeitos a mudanças inesperadas, condicionadas a mínimas variações
impostas pelo ambiente. Variações tão dinâmicas quanto as nuvens do céu,
que exigem, portanto, experimentos de observação que apresentem o mesmo
dinamismo.
MacArthur compreendeu que a ecologia baseada num senso de
equilíbrio “estático” está condenada a falhar. Os modelos tradicionais são
traídos por suas tendências lineares.
A audição é um sentido complexo. Para cifrar sinais perfeitamente
claros exige malabarismos do aparelho auditivo. Cada fibra nervosa que
maneja um sinal forma ligeiramente modificada. Seus numerosos elementos
parecem todos exercer as funções de captar, para gerar energia, a qual
partindo do sistema nervoso central é sinalizada para todo o organismo. São
os impulsos nervosos, e não a fonte externa de eletricidade, que realmente
geram a sensação. Esta “marcha do som para a audição, das vibrações
mecânicas aos impulsos elétricos, é marchada por elaboração e
complexidade cada vez maiores”.31
47
lbid.
48
Stevens e Warshofsky, op. cit., p. 60.
55
Os pássaros, em posição relevante na escala do desenvolvimento
evolucionário, têm ouvidos bem parecidos com os do homem. Mas os ouvidos
dos insetos são considerados os mais eficientes sistemas de audição. Apesar
dos pássaros ouvirem mais ou menos com o mesmo alcance dos homens,
chegam a superá-los.32Este sistema auditivo mais avançado está relacionado
com a complexidade de seu sistema vocal.Uma única espécie pode emitir
mais de 50 tipos de vocalizações diferentes derivadas de um vocabulário de
mais de 300 notas estudos etológicos têm demonstrado uma paralelismo não
desprezível entre aves e mamíferos (primatas)33 no que diz respeito aos
sistemas de comunicação. Os chamados complexos, que servem de
espaçamento em populações de primatas são comparáveis aos de
passeriformes.
Ondas sonoras são usadas, também para “ver” objetos na escuridão,
ou invisíveis, porque fora do alcance do raio de visão, usam a audição para
colher informações detalhadas dos obstáculos. A observação destes
mecanismos inatos estão na base da descoberta do sonar e do ultra-som.
A velocidade do som foi alcançada, mas a da luz esta distante as
gerações mais próximas. Porém, mais veloz que a luz somente o cérebro – a
velocidade do pensamento, do insight.
49
Uma pequena diferença na cóclea, que nos pássaros é ligeiramente encurvada e nos mamíferos, enrolada em
espiral. 50
Hernán Fandiño Mariño , op. cit . , p. 107.
56
Entre o dito de uma descoberta cientifica e a sua prova visível reina o
silêncio. Assim o tempo desse silêncio funciona como um eco. É neste eco
que ressoa a verdadeira descoberta. O silencio do tempo ´e quem fala. Assim o
tempo social-histórico não acompanha o tempo cientifico.
II. OUVINDO VOZES DO CÉU E DA TERRA
Hércules Florence, em 1829, durante a expedição Langsdorff realizou
uma experiência de registro de “vozes” de animais, a qual denominou
zoophonia1. Um relato publicado sobre essas experiências ofereceu pistas2
sobre um novo caminho para a percepção dos sons naturais. Apesar de ser
um documentário científico importante, não pode ser classificado como um
texto da ciência que hoje se encarrega da investigação da vocalização dos
animais, a bioacústica. Esta ciência investiga a vocalização dos amimais como
1 Ver Hercules Florence, Zoophonia. Rio de Janeiro: R.I.H.G.B. , tomo 39, 1876.
2 Recentemente, foi publicado pela UFMT uma tradução de Jacques Vielliard de um dos textos escritos por
Florence sobre zoofonia. O texto de Taunay foi escolhido para análise, por ter sido autorizado para a publicação
pelo próprio Florence, entre 1875 e 1976 e que, portanto possui um timbre mais próximo do século em que o
autor produziu sua obra como artista e pesquisador, vindo a falecer em Campinas em 1879. Ver Viagem Fluvial
do Tietê ao Amazonas pelas Províncias de So Paulo e do Grão- Pará (1825 – 1829). Museu de Arte de São
Paulo Assis Chateaubriand, 1977.
57
“exibições comportamentais”3 e detém seu interesse exclusivamente no que
concerne a “ função biológica destas exibições”.
Tampouco se tratava de uma investigação musical. Isto porque, na
época, não havia outra forma de registrar essas “vocalizações” a não ser
através de notas musicais. De certo modo, isso não era novidade, outros já
haviam se adiantado nesta forma de registro.
Novidade era a ousadia de Florence de esboçar uma união da ciência
da natureza (biologia) com a sensibilidade (música), ou de demonstrar que em
matéria do estudo dos sons de animais não é possível descartar sensibilidade,
ao afirmar:
[...] a ninguém ocorreu a ideia de tornar a voz dos animais
assunto de estudos e cuidadosas observações, como sem dúvida é
sua história natural. Entretanto dentre todas as majestosas ou suaves
harmonias da esplendida e nunca assaz admirada natureza é a
zoofonia unicamente que fere nossos sentidos por meio de notas
musicais[...]4
No entanto, o lugar híbrido onde aparece que estas afirmações vão
dar, na verdade, é o terreno fértil em que Florence semeia suas ideias. Nas
3 Herman Fandiño Mariño, op. cit., p. 106.
4 Hercules Florence, pó. cit., p. 221.
58
observações do tradutor Taunay, encontramos afirmações que definem o
“viajante” Florence como homem de “ variado fundo de instrução”, cuja
vitalidade criativa e espírito inventivo já havia imaginado diversos meios, “todos
engenhosos”, quando inventou a polygraphia5 . Segundo Taunay, as tentativas
de Florence de inventar a fotografia, antes de Niepoe e Daguerre, só não foram
reconhecidas porque o pesquisador viva numa província onde faltavam
recursos, e quando soube que outros, com melhores condições, tinham lhe
tirado o valor da prioridade do invento, caiu em desânimo e retraimento.
Apesar de não caber neste estudo uma indagação sobre a veracidade
destas afirmações, elas fielmente demonstram a vivacidade da mente
inventiva de Florence e certificam que ele não era um viajante comum. Sua
sensibilidade criativa está presente na obra iconográfica da expedição
Langsdorff e também na intuição da zoophonia:
[...] quando o sábio examina cuidadosamente e lentamente
tudo o que o cerca; quando o mais insignificante inseto não escapa à
sua análise, que perscruta até o mundo microscópico, não lhe deve
parecer inútil e despido de qualquer vantagem apreciar, debaixo de
determinadas regra, não direi a linguagem, porém sim a voz dos
animais[...]6.
5 Op. cit., p. 322.
6 Op. cit. , p. 323.
59
A proposta de exame cuidadoso e lento demonstra o rigor científico de
perscrutar, não devendo parecer inútil ou desvantajoso apreciar, no sentido de
estimar e avaliar a voz dos animais (como ele mesmo deixa bem claro) dentro
de determinadas regras. Fica evidente, também, a preocupação com a
utilidade de suas indagações. A suspeita de que talvez estivesse atendo-se em
causas inúteis e estéreis.
Mas se, nem tanto como precursor da bioacústica, a intenção de
Florence parece esboçar timidamente um novo campo de conhecimento, que
não era a bioacústica, também não somente se tratava de uma investigação
musical, mas sim da zoophonia, talvez um limiar entre estes dois campos.
Ainda quando não servisse esse estudo mais do que para
mero entendimento do espírito, não deverá merecer indiferença e
pouco caso; mas não é só isso que nela acharemos, encontrando
também cores novas e vivas, faces do verdadeiro valor cientifico e
juntando sem contestação o tão apregoado útil ao agradável[...] 7
Florence se refere à música da natureza e busca o verdadeiro valor
científico desta música que não deveria soar aos ouvidos apenas por sua
beleza, e para tanto encontra um álibi na união (insuspeita) do tão apregoado
útil ao agradável. Na verdade, a beleza de que nos fala é a experiência estética
7 Ibid.
60
estética. Mesmo porque seria hipocrisia admitir que as atividades mais
racionais não perpassam pelo sentimento estético.
Demonstrando estar consciente da suspeita metodológica (da
inutilidade) sobre as reações que poderia suscitar esta aproximação entre a
ciência biológica e a ciência musical como os meios de expressar as
mensagens da natureza. Florence busca apoio recorrendo ao tão apregoado
útil, este sim, insuspeito. A suspeita ocorre de fato, mas não porque estivesse
seguindo o caminho errado. Se ainda hoje são raros os esforços
interdisciplinares neste campo, que dirá há 150 anos?
Há pelo menos duas décadas ouvimos discursos sobre a multi, inter
ou transdisciplinaridade e temos visto que não forma suficientes para eliminar
as suspeitas metodológicas. Essa desconfiança e marginalização das
pesquisas multi-referenciadas continuam sem poder fazer o devido contrapeso
à especialização acelerada e a marcha automatizada da tendência 8que
funciona como reator super-aquecido.
Por outro lado, o surgimento de novas ciências como a do caos, só é
possível mediante o desafio dos modos de pesquisa atuais. O caos, valendo-se
do comportamento universal da complexidade, investiga o aleatório e i
complexo, “extremidades entrecortadas e saltos súbitos”9, especula o
determinismo e o livre arbítrio, a evolução e a natureza da inteligência
8 Cornelius Catoriadis, op. cit. , p. 97.
9 Cf. James Gleik, Caos: a criação de uma nova ciência., Rio de Janeiro: Campus, 1990, p.5.
61
consciente. Estes cientistas sentem que estão fazendo recuar a propensão da
ciência ao reducionismo, e “ acreditam estarem a busca do todo”10.
Não existe aqui a intenção de apresentar a zoofonia como campo de
conhecimento ligado ao caos; mas apenas a de demonstrar que inúmeros
outros campos de conhecimento estão surgindo no lugar dos saberes em
dissolução. A própria ecologia, como disciplina da biologia, ao abarcar outros
campos de conhecimento muda a fisionomia da própria biologia.
A ousadia de Florence é ter proposto a zoofonia no limiar de duas
disciplinas científicas, não escondendo sua sensibilidade criativa ao captar as
mensagens das vozes do céu e da terra.
Não entraremos no mérito ou na análise das partituras que elaborou
durante a viagem (que apenas esboçam tentativas de aproximação), visto que
só recentemente, com a possibilidade de gravar audioespectogramas11, as
vocalizações podem ser traduzidas mais fielmente. Mas não é neste aspecto
que interessam estes registros, mas as associações e as relações investigadas:
[...]ao passarmos de uma região para outra surpreendiam-nos
os gritos de viventes que nos eram desconhecidos, ao passo que
desapareciam outros que já se nos tinham tornado familiares ou, se
continuavam a se fazer ouvir, era já com modificação sensível do
órgão vocal[...]12
10
Ibid. 11
Mostra a altura em quilohertz por segundo; a intensidade pela espessura das linhas e a duração. 12
Hercules Florence, op. Cit., p. 321.
62
Florence percebeu que a mudança de uma região para outra poderia
ser identificada pela ambiência sonora, ou seja, configuração acústica do
ambiente, e que a mudança da ambiência sonora ocasionava formas
diferentes para a propagação das mesmas vozes. Assim, para melhor
comunicar suas observações, tratou de tecer inúmeras associações:
[...]assim a araponga, belo pássaro de plumagem
branca...pousa nas franças das árvores e produz um canto metálico,
que recorda exatamente o bater, ao longe o martelo...ao cair da noite
éramos incomodados pelo coachar dos sapos, tão forte que imitava
os sons de um tambor de batuque de negros[...]13.
Afirma, ainda, que sem contestação a voz dos animais harmoniza-se
com as localidades e com a hora em que se faz ouvir. Relaciona as vozes de
animais com instrumentos musicais. Tece, também, observações sobre a
solidão dos homens em relação aos ambientes silenciosos, como que mortos,
numa alusão ao conforto da companhia das vozes que, nas paisagens,
sinalizam a existência de vida:
13
Op. Cit., p. 325.
63
[...]No Spitzberg os ecos não repercutiram jamais senão
lúgubres acentos próprios daquela desolada solidão, ao passo que
nos países tropicais, em que a natureza expande luxuriante de viço e
explendores, mil cânticos alegres, mil ruídos e gritos animados ainda
mais encantos incutem às arrebatadoras paisagens...Em meio às
áreas e ardentes áreas da Arábia, as ouças14 do viajante, que morto de
sede e de cansaço, se arrasta penosamente, não serão acariciados
pela voz dos inúmeros voláteis que povoam o interior do Brasil[...]15.
De que outro modo poderemos afirmar que existe imensa diversidade
de vida no ambiente se não for pelo ouvido? Esta pergunta fica no ar com o
som. Os olhos não podem ver tudo o que os ouvidos ouvem, principalmente as
aves fugidias, ou animais selvagens na mimese monocromática da mata.
Assim, se a capacidade de decifrar imagens ao mesmo tempo sobrepostas ou
longínquas e dimensioná-las no espaço, fundi-las e isolá-las, é limitada para a
visão, sem prótese, para a audição este é o potencial do próprio sentido.
Florence tem o mérito de ter sido um viajante ouvinte, apesar dos olhos
atentos nas paisagens que reproduzia em suas aguadas. Teve a humildade de
se render à monumentalidade sonora da ambiência tropical. Sensibilidade de
ouvi-la . Com isso aproximou-se mais desta faceta cultural tropical da oralidade
– o espírito dos trópicos, da fala da natureza com o homem, pródiga em vozes,
14
O mesmo que ouvido. 15
Ibid
64
ou seja, a história das espécies, mas com as estórias de comunicação dos
homens com os também “viventes” animais, que nessa convivência também
elaboram histórias no decorrer do tempo. Por isso, relata estas estórias como
fizeram outros cientistas viajantes, como meras curiosidades, permeadas pela
fábula de um mundo novo.
Nestas meras curiosidades, revela-se o papel cruel do processo do
colonizador que traduziu boa parte da sabedoria nativa em folclore, em
crendice, não admitindo quantas pistas tais crendices forneceram para a
chamada verdadeira ciência. Este papel de revelar ocultando, desempenhado
pelos relatos dos naturalistas viajantes, é que permeou boa parte do
conhecimento científico medicinal e biológico nativo dos trópicos.
Florence foi sensível a tudo que ouvia durante a viagem ao coração da
América. A mudez da polygraphia não intimidou o atento viajante, embora ele
mesmo fosse cético em relação à repercussão da zoofonia:
[...]Dirão que perdi meu tempo, mas terei sempre assaz
filosofia para responder: diverti-me e tanto me basta. Demais não
somos tão inúteis como pensam, nós artistas[...]16.
16
Op. cit,. p. 335.
65
Esta filosofia encontra paralelo em nosso mais famoso inventor, de
colocar o prazer acima do utilitário. Permitindo-me este vôo, decolemos. Da
orelha do livro O brasileiro voador ouvimos:
[...]Na virada do século um homem pontificava em Paris. Era
uma dinâmica presença nos mais exclusivos salões da cidade, seu
nome diariamente aparecia na imprensa mais frívola e seus feitos
eram celebrados nas melhores publicações cientificas. Circulando
num meio onde todos eram ricos, charmosos e belos conseguiu se
distinguir de forma inimitável: ele voava[...]17.
Santos Dumont, segundo Marcio Souza, encarnou como poucos
nossos desencontros ao contribuir decisivamente para a invenção do avião,
questão de tecnologia de ponta, mas sonhando com a aplicação artesanal e
esportiva do invento, na brasileiríssima atividade de pôr a alegria acima do
utilitário, repudiando a massificação industrial e imaginando o avião como
uma máquina de prazer.18
Florence também repudia a utilidade da zoofonia, e ironicamente
admite que, afinal, não são os artistas tão inúteis assim, numa clara alusão aos
seu oficio de registrara animais. Paisagens, vegetais, a serviço da ciência. A
arte se torna mais nobre , porque útil quando está a serviço da ciência. 17
SOUZA,Márcio., O brasileiro voado., Petrópolis:, Marco Zero, 1986. 18
Ibid.
66
Hoje em dia, as vozes que Florence ouviu in natura e delas intuiu a
zoofonia, não são mais privilégio apenas da natureza. Arquivos de cantos de
pássaros, e outros animais, espalhados no mundo inteiro, estão aptos a
reproduzir esses sons das mais variadas formas e configurações. Possuem
utilidade científica, mas também são comercializados, ou seja, utilizados na
sonorização de filmes, vídeos, discos, e outros produtos, e até como pano de
fundo em ambientes virtuais como a Disneyworld. Aquele que registrar com
equipamentos apropriados uma voz qualquer do ambiente, seja apara uso
científico ou uso estético, detém os direitos sobre a reprodução desta voz (
direito fonográfico), sobre a gravação e, consequentemente, sua
comercialização. Nunca, em outros tempos, pode ser tão concreta a união do “
tão apregoado útil ao agradável”.
Existem contradições quando se fala em ambiente, porque tem sido
crucial o destino “útil” da natureza. A atenção de Florence foi sensível, ao
perceber alguns sinais deste destino:
[...]Vede, por toda parte neste imenso Brasil tombam a golpes
do destruidor machado e o poder de fogo e do incêndio dilatadas e
seculares florestas, abrigo de inúmeros quadrúpedes e voláteis.
Perdidos os sombrios recantos que lhes são preciosos, tornar-se- ao
cada vez mais raros, esquivos; e por fim sumir-se-ão, inocentes
últimas da conquista do homem à solidão[...]19.
19
Hercules Florence, op. cit., p. 335.
67
Talvez este viajante ouvinte não pudesse imaginar que a solidão do
homem não se daria apenas com a progressiva ausência das vozes, mas
também com a incapacidade de percebê-las; que esta incapacidade é que
apressaria o seu sumiço. Afinal, vozes que não poderão ser ouvidas serão
vozes cuja falta não será notada. E a solidão pior será com o silêncio do que foi
calado.
Por uma geofonia da comunicação
Ouvindo estrelas é como orientam-se radioastrônomos e exobiólogos
ocupados em procurar sinais de vida inteligente imersos nas profundezas do
espaço extra-biosfera. O espaço cósmico pode ser compreendido como um
novo oceano para o mergulho dos olhos e ouvidos da Terra.
Recentemente, a NASA vem realizando uma escuta minuciosa das
estrelas, buscando um eventual padrão de inteligência , que acuse uma
fórmula matemática ou, quem sabe, um sinal capa de descrever a estrutura de
um átomo de hidrogênio.
A hipótese de não sermos as únicas criaturas inteligentes do Universo
exige uma atenção redobrada dos sentidos e da própria racionalidade
68
científica. Por que, mesmo equipada com próteses tão sofisticadas como o
telescópio Huble, a percepção sensível do cidadão da biosfera não é muito
diferente daquela dos primeiros viajantes das grandes expedições científicas?
É preciso ainda navegar mares “nunca antes navegados”.
A proximidade com que se alcança estrelas longíquas mediada e
revelada por radiotelescópios possantes não deixa de ser um desafio
semelhante à exploração do Novo Mundo. O mesmo espanto e a mesma
decepção experimentam hoje os exobiólogos na perscrutação do cosmo.
Mesmo com olhos e ouvidos equipados, a percepção sensível continua
exigindo a conivência e a vivência sensível desses novos espaços. Os
mistérios contidos nas selvas das galáxias e aglomerados globulares, tanto
quanto nas selvas da biosfera, são ainda desafio – tanto para o passado
quanto para o futuro da vida inteligente.
A questão ecoa. A consciência planetária é diferente da globalizante e
excluidora, seja para o diálogo com as estrelas ou para audição de um trinado
de pássaro, exige um redimensionamento da escala humana. Em relação ao
mais ínfimo inseto ou desde a menor parte da matéria detectada por um
acelerador de partículas até o mais distante sinal de vida disperso anos-luz no
cosmo.
Vimos que a audição, o mais primitivo dos sentidos, sede também do
equilíbrio e da orientação, tem sido relegada a um plano inferior. Desde a
escrita mais rudimentar, à mais engenhosa “máquina de visão”. Portanto,
69
audição, equilíbrio e orientação são sentidos enfraquecidos e atrofiados no
presente.
Não é mero acaso o fato de astrônomos e cosmólogos depararem-se
com indícios intrigantes da distribuição da luminosidade óptica do cosmo.
Dedicados na investigação da idade do Universo e no estabelecimento da
distância de galáxias e outros fenômenos astronômicos, a partir do escopo de
intrincadas fórmulas matemáticas, possíveis coma ajuda de velozes
computadores, estão chegando a compreensão de que os filamentos visíveis
das galáxias são como “espuma entre halos de matéria escura”. Matéria não
luminosa, mas que está por toda a parte do Universo, controlada por
influências que estão além da visão.
O que não é visto pode ser ouvido? A ideia originalmente concebida
por George Lemaire (1894-1966), padre cosmólogo belga, de encontrar provas
da teoria do Big-Bang, foi reiterada em 1964 pelos norte-americanos Robert
Wilson e Arno Penzias, que ganharam o prêmio Nobel por captarem as
reverberações do som daquela explosão. Mas foram os “ecos” dessa radiação
cósmica de fundo, captados pelo satélite Cobe, que o americano George
Smoot exibiu na forma de imagens em abril de 1992. Prova contundente não
só do Big Bang, mas também de que até hoje as ciências, nos mais variados
campos, se baseiam na lei de São Tomé, “ver para crer”. Uma teoria só é
verdadeiramente reveladora quando pode apresentar-se visível em imagens,
de preferência, coloridas.
70
Florence não esboçou apenas um gesto visionário da bioacústica ao
formular timidamente a zoofonia. O fato de seus conhecimentos musicais
deixarem dúvidas sobre a validade do registro tão sutil mas, tão contundente
como suas pinceladas, em sinais equilibrados que forjamos interpretar como
“partituras” não invalidam sua percepção, ao contrário, aguça-nos os sentidos.
Se admitirmos que a própria escala musical varia de acordo com as culturas e
que, no decorrer dos tempos, tem sido uma interpretação forjada da escala
natural, podemos afirmar que pode um músico ser um músico, mesmo sem
saber transcrever fielmente, de acordo com as normas das teorias musicais
estabelecidas, um dó ou um mi. Basta que tenha ouvidos.
Mas, nas pistas de Florence, nos vestígios de sua perscrutação
encontramos um esboço precioso para o estudo dos timbres20 da natureza,
timidamente soprados como “vozes”. Florence tentou reproduzir estes timbres
como se tentasse compor as partituras para cada instrumento de uma
orquestra. A orquestra da mata, das beiras dos riachos e corricho, das curvas
de rio, serras, de descampados cerrados, nas várias horas do dia, dos lugares
por onde passou. E na atenção aos timbres, não apenas a altura, a frequência
que o gerou, mas a pista que levou à compreensão de que o timbre não é
apenas só a cor do som21, mas a identidade a textura do som, como a matéria
20
A complexidade da onda sonora pode ser traduzidas em “feixes de onde mais ou menos densos ou mais ou
menos esgarçados, mais concentrados no grave ou no agudo”, demonstrando a impureza do som real. Esta
complexidade ( produzida pelo objeto que o gerou) dá ao som a singularidade colorística que chamamos timbre.
José Miguel Wisniki.O som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 21. 21
“ Uma mesma nota ( ou seja, uma mesma altura) produzida por uma viola, um clarinete ou um xilofone soa
completamente diferente graças à combinação de comprimentos de ondas que são ressoadas pelo corpo de cada
instrumento”. O som possui essa propriedade de vibrar dentro de si mesmo, além da freqüência que “percebemos
71
que nos cerca pode ser lisa, dura, porosa, rugosa, como as folhas, as pedras, a
água, a madeira, o fogo. Um timbre pode ser crepitante, enfim ter a mesma
infinidade de texturas22 que percebemos no ambiente, que só os ouvidos são
capazes de conhecer.
A bioacústica, ao subtrair suas origens dos estudos de Florence, não
emudece a atualidade da zoofonia como uma disciplina para o estudo dos
timbres do ambiente, que nos sensibilizaram. Numa era de escutar estrelas, a
zoofonia salta para o futuro como geofonia, o estudo dos timbres da biosfera,
talvez capaz de orientar uma linguagem mais apropriada para o diálogo com
as demais estrelas.
Zoofonia
(para uma aproximação Música - Bioacústica)
O pássaro está no território da nação, mas não conhece meridianos
nem as demarcações abstratas das populações humanas. A importância da
vocalização indica o próprio sentido de sua existência. Se não cantasse, não
se reproduziria.
mais lenta e grave), um feixe de freqüências mais rápidas e agudas, que não ouvimos como altura isolada,mas
como um corpo timbrístico, muitas vezes caracterizado como a cor do som”.Ibid. 22
O timbre, como textura do som, está ligado a traços “qualitativos” que “ resultam da sua singularidade
material, não estando subordinado a nenhuma escala gradual” por isso é mais difícil defini-lo e classificá-lo.
Poucos autores dão atenção especial ao timbre, na análise musical.Op. cit., p.205.
72
Os estudos de voz permitem associações de parentesco, bem como
auxiliaram no vôo da imaginação. Na adaptação da paisagem carias aves
mudaram seu aspecto exterior, numa demonstração da influência da
biogeografia na constituição de suas raças. Os dialetos correspondem às
raças geográficas.
Como parte do processo de reprodução o canto da avifauna é
indissociável, se dirige antes aos indivíduos da mesma espécie. Incluindo o
homem como observador, os gestos de advertência do canto da espécie
elaboram no ouvido humano uma mensagem, mesmo tendo o pássaro
emitindo qualquer alarme porque se assustou. O papel do canto
desempenhado para a reprodução ( atração da fêmea), comunicação entre
casais ou demarcação do território, não impede a percepção humana
sensível, imaginativa e criativa. Ao contrário, a zoofonia pode constituir parte
fundamental de sua cultura musical:
Tudo nos leva a crer que o homem desenvolveu sua música
aprendendo com as aves, cuja vocalização já existia quando o
homem começou a preparar sua produção sonora23.
23
Helmut Sick, op. cit., p. 56.
73
É praticamente impossível para o especialista em bioacústica deixar
de usar expressões como notas melódicas, em suas observações de campo,
ou passar anos estudando a sutileza dos matizes de canto dos beija-flores ou
sabiás e admitir ou render-se à musicalidade das espécies que registra. Assim
também para o músico se torna fascinante este universo capaz de lhe ampliar
o conhecimento dos modos escalares e dos timbres, tão particularmente ricos
do canto de pássaros. Mas é um disfarçável a timidez existente entre estes dois
campos do conhecimento. A intuição de Florence em relação à zoofonia deve
merecer uma atenção mais detida, no limiar de uma época onde a
compreensão do ambiente extrapola fronteiras para a compreensão mais
próxima dos processos de comunicação do homem com seu ambiente.
Se nos parece mais ou menos óbvio que o homem preparou sua
música com o material sonoro existente à sua volta, isso até hoje não é tão
óbvio assim. Na música, os sons da natureza aparecem como tema e a
natureza apenas inspira. Na bioacústica, as vocalizações dos animais são
examinadas como funções biológicas estritas e específicas, sendo a música
mera referência elucidativa. Ambas lidam com o mistério da vida e com suas
mensagens em movimento no caótico universo dos sons.
Os pássaros produzem os sons mais musicais das vozes conhecidas e
assim evocam forças supratemporais de conservação – resistentes à usura do
tempo, comprovando a importância da comunicação aves-homem conforme
observou acima Sick, ao sugerir a primeira idade da humanidade como um elo
não perdido. O fato de existir ritmo e melodia num movimento dinâmico no
74
canto dos pássaros implica dizer que a música apenas como a conhecemos
(modal, tonal, serial) não é um privilégio das culturas humanas, mas um dos
modos contundentes de comunicação na natureza.
As possibilidades abertas com a eletrônica, através do teclado
informatizado (sampler), um instrumento eletrofônico, não invalidam e até
evidenciam uma compreensão mais elaborada das acústicas naturais.
Durante as gravações do LP Ouvir, as experiências na acústica da
mata serviram de base para a utilização do sampler, na elaboração de timbres
novos. Serviram também para orientar o processo de mixagem, fazendo uma
ligação com o que foi ouvido no ambiente natural, o som de fundo, a
movimentação das vozes e dos instrumentos. Os critérios aumentaram a
possibilidade do mergulho criativo no canto dos pássaros, ao contrário de
interferir na liberdade imaginativa.
A musicalidade da floresta Amazônica e do Pantanal começa nas
culturas não-humanas continua através delas. No primeiro estágio, ouvimos a
musicalidade dos insetos, pássaros, animais (zoofonia). Em um segundo
estágio, existe a aproximação, destes sons dos povos da floresta e do
pantanal, através da elaboração de instrumentos musicais, ou mesmo do
simples arremedos de pios para a defesa de território. No terceiro estágio,
ocorre a produção industrial a partir dos recursos florestais e pantaneiros, raros
ou de uso cotidiano, como o papel, o mobiliário, vestuário e assim por diante. A
reprodução pela indústria fonográfica dos sons originais destes ambientes,
75
incluindo o registro da criação musical dos seus povos habitantes, faz parte
deste estágio.
A conservação das grandes paisagens nativas e o cultivo de florestas
novas, com base em critérios ecológicos rigorosos, representam um quarto
estágio. Neste estágio, incluem-se também experiências com os sons do
ambiente, com intuito não apenas de reproduzir mas, principalmente, de
conservar a preciosa mensagem da vida.
A compreensão sonora da musicalidade ambiental, aliada a uma
aproximação dos estudos de bioacústica, oferece possibilidades que devem
ser estudadas. A investigação das relações sonoras possíveis do canto dos
pássaros na tentativa de salientar as características que possuem em seu
ambiente, pode levar à compreensão da infinidade de escalas ao estudo mais
detido dos timbres, dos microtons, presentes na natureza, abrindo um campo
de investigação para a música e para o ensino da música.
As sugestões obtidas neste estudo inicial sobre o canto dos pássaros
apontam para a necessidade de outras concepções dos Acervos Sonoros
existentes no planeta.
76
III. NO CÉU ABERTO E NA MATA FECHADA
A ornitologia classifica as ordens e famílias das espécies brasileiras em
não-passeriformes e passeriformes. Esta distinção obedece a um princípio de
organização por idade. A classe das aves compreende grupos de idade maior
e evolução mais lenta (não passeiformes) e grupos mais novos de evolução
mais rápida (passeiformes).
Tal distinção foi considerada neste estudo, porém fixando-se na
vocalização como uma expressão sonora a partir dos critérios propostos,
advindos do processo de audição que diferem de um estudo de bioacústica.
Assim, a vocalização da avifauna foi compreendida dentro do conceito de
musicalidade1; por isso, apesar de prestar atenção às diferenças entre os
diversos chamados, incluindo o de alerta e o de voo, analisa a sonoridade
emitida através: do ritmo, da melodia, do timbre a partir da associação com os
instrumentos musicais, e outras combinações. Na relação homem-ambiente, o
canto ou vocalização é mensagem, expressa uma interação de sentimentos
que a rigor fogem da especulação científica. Da musicalidade ambiental
emana uma poderosa energia geradora de emoções.
A bioacústica estuda o fenômeno social dos animais em relação à
interdependência que se estabelece, devido a certas funções fisiológicas
1 Levou-se em conta a sonoridade do canto do pássaro como emissões que podem ser compreendidas
musicalmente, mesmo sendo algumas emissões ruidosas. Para tanto tentamos nos aproximar dos sons ruidosos
dentro do conceito contemporâneo de ruído, como manifestação sonora passível de ser entendida musicalmente.
77
fundamentais que implicam numa cooperação entre os indivíduos. A coesão
dos indivíduos de uma espécie é realizada pelo sinal de comunicação. As
manifestações sonoras das aves são tão exatamente características quanto
seus aspectos morfológicos.
Neste estudo, a concepção da proposta original de Tetê Espíndola e
Arnaldo Black foi transposta para um critério sonoro, que auxiliou os
compositores em experimentações diversas, incluindo o próprio canto do
pássaro como instrumento musical. A princípio pode parecer estranha a
relação do pássaro com o instrumento musical, porém isso não impede a
investigação da seguinte observação: as características sonoras dos
instrumentos musicais criados pelo homem possuem uma estreita ligação
com a percepção auditiva dos sons existentes na natureza.
Canto instrumento
Os pássaros são versáteis em matéria de som, os instrumentos
musicais também. Ambos produzem sons complexos e difíceis de classificar.
Embora um seja fruto da natureza (ambiente) e outro da cultura
(sobrenatureza) se considerarmos a natureza como pré-cultura ou subcultura,
estamos no território onde o homem interage coma natureza, comunicando-se
com ela, identificando suas “vozes”, das mais variadas formas.
78
Porém, é notável que o canto dos pássaros se destaque dentre os
demais sons da natureza. Primeiro, porque os pássaros chamam a atenção
através do constante movimento; segundo, porque se integram perfeitamente
na acústica dos diversos ambientes, utilizando eficazmente os diferentes
gradientes térmicos. Dependem da propagação adequada da comunicação
sonora para sobreviver.
A cultura esconde a dependência do homem em relação à natureza no
plano da sobrevivência biológica porque se coloca acima da natureza
(sobrenatureza). Assim o território de comunicação com os animais é
sobreterritório, “animais totêmicos tornam-se os animais sagrados dos deuses,
e as mais antigas, mais fundamentais restrições morais – as proibições contra
o assassinato e o incesto – originam-se do totemismo”.2
Assim a sobrevivência da cultura está acima da sobrevivência do
próprio homem, pretende livrá-lo da dependência biológica, da condenação
do peso da gravidade e do plano horizontal dos animais.
A música é poderosa porque reconcilia o homem tanto com o
ambiente (pré-cultura) como com a própria cultura. Na modernidade o mito é
agonizante, perde terreno para o saber científico e para novas formas de
expressão, “suas estruturas teriam migram para a música, onde encontram
meios adequados para uma surpreendente e renovada sobrevivência”3 A
música modal vincula-se ao universo de correspondências míticas, sendo ela
2 Sigmund Freud. O futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: Imago, p. 35.
3 WISNICK,José M. O som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 149.
79
mesma um instrumento sacrificial, “que se realiza mais como rito do que como
mito”.4
Por outro lado, o impasse colocado pela idéia evolucionista da
linguagem como “progressão permanente”, como organização das alturas
melódico-harmônicas, se encontre, no limiar da quase música indo ao
encontro da “ estimulante sincronia das músicas pré-tonais”, evocando a não
linearidade do tempo, retornando ao princípio do pulso5. Neste encontro da
linha contemporânea com as tradições musicais mais remotas6 é que
podemos introduzir a zoofonia.
O canto dos pássaros sinaliza e celebriza a vida, colocando a emoção
em movimento. Ajuda a libertar da dependência do peso da gravidade porque
se movimenta entre a rigidez da terra e a flexibilidade do ar.
A bioacústica define o canto das aves de diversas maneiras,
frequentemente referindo-se a uma estrutura espacial e complexa, ou às suas
funções, particularmente a defesa territorial e a atração do parceiro sexual. O
4 lbid.
5 A esse respeito José M. Wisnick observou que podemos detectar o processo de aproximação entre a moderna
concepção musical e a música modal. O minimalismo se encontra com o modalismo na obra de Steve Reich. O
compositor observou que o marcante interesse pela música eletrônica, nos anos 60, dissolveu-se nos anos 70,
marcados por um grande interesse pela música mundial, sobretudo música não ocidental; ou seja, a tradição
modal como a mais importante fonte de inspiração para os compositores ocidentais à procura de idéias novas, op.
cit., p.88. 6 Neste encontro temos diferentes qualidades de tempo, que apontam, como é da natureza das ordens temporais,
para a prioridade da ordem dos objetos: o tempo cadenciado das músicas tonais, em seu balanço entre tensões e
repousos; o tempo descentrado e não- periódico das músicas pós-tonais ( do tipo serial, eletrônico, aleatório); o
descentramento centrado das músicas modais ( em seu retorno); o tempo de repetições gradualmente diferidas do
minimalismo, op. cit., p.89.
80
uso das definições tanto funcionais quanto na base da complexidade da forma
tem conduzido a uma ambiguidade considerável na literatura ornitologica7.
A definição corrente de canto é o som musical produzido pela voz do
homem ou do outro animal. Na definição simbólica é o sopro da criatura que
responde ao sopro do criador, unindo a potência criadora à sua criação, no
momento em que esta última reconhece a dependência da criatura
exprimindo-a na alegria, na adoração ou na imploração. Na tradição da
antiguidade, os cantores são homens livres e não membros da classe
sacerdotal como músicos e poetas.
Por instrumento musical entende-se tudo aquilo, ou aquele objeto
como o qual o som possa ser produzido intencionalmente; um termo auto-
explicativo para alguém que o considere dentro de sua própria sociedade8. Em
relação `a música e ao som do instrumento, faz-se necessária a distinção
entre organografia e organologia. A primeira ocupa-se da descrição pura e
simples; a segunda , do corpo do conhecimento que se relaciona com
problemas de taxonomia e com princípios que servem de base aos sistemas
de classificação. Ambas preocupam-se com o detalhe estrutural. Ou seja, para
dissecar a estrutura de um instrumento musical e descrevê-lo, é preciso
conhecimento de sua organografia – seus aspectos enquanto objeto de
atividades musical, social e biológica e suas determinantes corpóreas9(
7 MARIÑO,Hernán Fandiño. A comunicação sonora do anu-branco: avaliações eco-etológicas e evolutivas.
Campinas: Unicamp, 1989, p. 105. 8 Klaus Wachsmann, “ Classificação dos instrumentos musicais Hornborstel & Sachs” in Dictionary of musical
instruments, The New Grove: London MacMillian Press Limited, 19984, p. 407. 9 Ibid.
81
referem-se aos movimentos do corpo do executante) tais como : puxar, bater e
levantar, tensão e distensão de músculos entre outras atividades. Para
classificar os instrumentos musicais é preciso levar em conta o conhecimento
de sua organologia – suas implicações contextuais, tais como: crenças,
simbolismos, sociologia e historia de sua evolução. Muitos estudos prendem-
se exclusivamente à cosmologia e defrontam-se com o desafio da
aplicabilidade universal10.
Entre os sistemas de classificação de instrumentos musicais,
especializados e que reclamam por validade mundial, o mais altamente
debatido é o de Hornbostel e Sachs(1914)11 . Os autores, além de lançarem um
debate aberto dos problemas inerentes à classificação, preocuparam-se em
demonstrar como seu sistema funcionaria na prática. Para tanto recorreram ao
sistema decimal de Dewey12.
A classificação propriamente dita compreende definições onde os
termos auto-explicativos são: Aerofone, Cordofone, Idiofone e Membranofone.
Hood (1917) incluiu um quinto gênero nessa divisão quadripartinte: Eletrofone13
.
O sistema de Hornbostel e Sachs chama atenção pelo tamanho e raio
de ação da classe dos idiofones. São 80 entradas, indicando as determinantes
10
Para o colecionador de instrumentos musicais cujo interesse é o objeto em si ou para um executante que toca
sua própria música nativa, a compreensão tanto descritiva como contextual do instrumento pode parecer
rebuscada; isto porque algumas classificações podem ser estritamente locais, utilitárias ou étnicas: referem-se à
terminologia de um povo. Ibid. 11
Ibid. 12
Ver sistemas de classificação, op. cit., p. 406. 13
Hood procurou is além da organografia e tentou lançar uma organologia genuína, que se ocupasse de técnicas
particulares de desempenho, da função musical, do acabamento (enquanto distinto da construção) e de uma
variedade de cogitações sócio-culturais, op. cit., p. 408.
82
corpóreas. Justamente aí encontra-se um parâmetro de aproximação com os
critérios propostos neste estudo. Na grande maioria, as características sonoras
dos cantos dos pássaros são tais, que bem podem ser associadas à
sonoridade dos idiofones:
Exemplo de uma associação canto-instrumento14:
Canto da araponga (Procnias nudicollis):
Martela (som batido) estridulado
1 1 idiofone batido
Ou ainda:
Canto do fri-frió (Lipagus vociferans)
Assobia estridulando
1 4 idiofone de sopro
Em resumo, a categoria dos idiofones abarca uma série de
instrumentos: batidos , ( direta ou indiretamente), puxados, dedilhados, ou em
14
Ibid.
83
combinação mistas, friccionados ( ou atritados, raspados), ou soprados
(placas ou bastões). Uma classe que produzem sons complexos.
Na base das críticas feitas ao sistema de Hornbostel e Sachs se
esconde na verdade a enorme dificuldade dos sistemas classificatórios, de
satisfazerem a complexidade do assunto. Todos os tratados apresentam
limitações. Isto porque os objetos a classificar são vivos e dinâmicos,
indiferentes a qualquer demarcação. Os sistemas são estáticos e necessitam
de demarcações mais nítidas15.
Os sistemas de classificação foram distintos em naturais e artificiais
por Heyde16 (1975), que levou em conta em relação aos primeiros a gênese e a
evolução histórica dos instrumentos e, aos segundos, qualquer ponto de vista
arbitrário que desconsidere os fatores genéticos. Nesta segunda categoria
incluía a classificação de Hornbostel e Sachs.
Os instrumentos de som como estamos acostumados dividem-se em
três categorias principais: instrumentos de corda, de sopro e percussão.
Apesar da alegação de atender às necessidades do dia-a-dia, nada é mais
incorreto. Grande parte dos instrumentos musicais não se enquadra em
nenhuma dessas categorias. Os instrumentos de percussão, por exemplo,
possuem uma íntima proximidade com os tambores17. As imprecisões não
param por aí.
15
Instrumentos são como os timbres, em geral, de difícil classificação. 16
Op. cit., p. 410. 17
As divisões costumeiras seguem dois princípios diferentes ( a lógica não é satisfatória) em que os instrumentos
de corda distinguem-se pela natureza da substância vibratória, mas os de sopro e os de percussão, pelo modo de
excitação do som- ignora-se o fato de haver instrumentos de corda que são soprados, como a harpa eólia, ou
batidos, como o pianoforte, ibid.
84
As deformações derivam por um lado da enorme dificuldade de
estudar a distribuição universal dos instrumentos musicais. Mesmo as
sondagens e pesquisas de distribuição raramente incluem informações sobre
a densidade das ocorrências. De outro lado é difícil i desenvolvimento de uma
tipologia propriamente dita, não-estática, que permita abarcar toda a gama
dos fenômenos sonoros e outros.
Na aproximação, aqui proposta, do instrumento musical com o canto
dos pássaros, todos estes fatores foram levados em conta, ou seja, as
limitações relatadas. Existe uma cadeia de elementos pela qual um
instrumento musical traduz em energia acústica (isto é, som) a energia
nervosa (mecânica ou eletrônica) que o músico (ou corrente elétrica) aplique
ao instrumento. A própria fonte de energia é ela própria usada como um
princípio de classificação.
85
Critério sonoro
A voz do pássaro é produzida pela seringe, localizada na extremidade
inferior da traquéia. Nisso difere dos mamíferos em geral, cuja voz vem da
laringe, situada na parte superior da traquéia, que na ave serve sobretudo para
vedar o sistema respiratório enquanto bebe e come. A seringe é um aparelho
muito simples, mas que produz sons extremamente complexos. Suas
capacidade está ligada à amplitude auditiva; portanto, a capacidade de
resolução acústica das aves é muito maior que a nossa. No entanto, a
capacidade de audição é semelhante.
Foram observadas as seguintes características do canto dos pássaros
ouvidos:
Percussivo
Melódico
Percussivo-melódico/
Melódico-percusssivo
O canto percussivo foi identificado primeiro pela predominância do
ritmo, do pulso. O pulso é uma metáfora corporal, o som obedece a um pulso,
segue o principio de uma pulsação18. O complexo mente-corpo é um mediador
18
José Miguel Wisnick op. Cit., p. 19.
86
frequencial de frequências. Existem padrões de pulsação somáticas e
psíquicos que entremeiam nossa relação com os universos sonoros, em que
nos ambientamos, e com a música. Os pulsos rítmicos são complexos e
podem ser traduzidos em tempos e contratempos:
Sons e ritmos são tão velhos quanto o homem...a voz, a
respiração, a batida do coração produzem sons com ritmo...une a
poesia, a dança e a música numa só arte19.
O ritmo celebra a vida como movimento, gozo de viver. Nas regiões
observadas, este tipo de canto presenteia a ambiência sonora coletiva, a
algazarra dos bandos e dos ninhais. O canto típico da avifauna pantaneira é
percussivo.
Para os estabelecimento deste critério de aproximação dos timbres
considerou-se o modo de excitação do som (percussivo), a sonoridade rica e
variada dos idiofones que se comina também com as “determinantes
corpóreas”, como vimos anteriormente.
Assim, a mesma complexidade dos idiofones em matéria de produção
de som pode ser comparada à complexidade dos sons produzidos pela
seringe de um pássaro. Foi notado que, em comparação com o sistema vocal
do homem, a seringe é um mecanismo mais simples. No entanto, é capaz de
19
ANDRADE, Mário de. Dicionário Musical Brasileiro. Rio de Janeiro: Itatiaia & EDUSP, 1989.
87
produzir um som mais complexo. É preciso esclarecer, também, que escolhi o
nome percussivo, em vez de idiofônico , porque tem a ver também com o
modo de repercussão do som no ar, como veremos a seguir.
No canto melódico, como o próprio nome indica, a melodia é forte. A
melodia consiste em sons musicais organizados, que combinam diversos
intervalos e valores, bem timbrados. O canto do pássaro possui linhas
melódicas e ainda trechos que se repetem com intervalos iguais. Não
compõem propriamente uma melodia, mas desenvolvem temas bem que
podem ser considerados embriões de canções. São cantos agradáveis ao
ouvido.
Existe o ponto de inflexão20, o salto qualitativo, que muda o padrão da
escuta, do ritmo para a melodia. As durações e alturas são as formas como se
apresenta o pulso na música: durações rítmicas e alturas melódico-
harmonicas. Se o bater de um tambor é um pulso rítmico, este mesmo som,
tocado por um instrumento capaz de acelerá-lo a partir de 10 ciclos por
segundo, estabilizando em cem e disparando em direção ao agudo até a faixa
audível de cerca de quinze mil hertz, o ritmo vira melodia. O ouvido percebe
sinais discretos separados e portanto, rítmicos até dez hertz ( ciclos por
segundo); dez a quinze hertz o som entra numa faixa difusa e indefinida entre
duração e altura, registros oscilatórios mais rápidos que levam a sensação de
20
José Miguel Wisnick, op. Cit.,p. 19.
88
permanência espacializada do som melódico quando a periodicidade das
vibrações fará então que escutemos um dó, um mi , um lá21.
Foi notada ainda a importância do silêncio. Por exemplo, no pássaro
melódico o silêncio funciona como uma respiração profunda22, cogita com a
magnitude dos temas, conspira com o inusitado.
O pássaro melódico se destaca individualmente como um solista
admirável. São cantos envolventes e apaixonantes, que despertam uma
relação epidérmica com a quietude, paralisando a atenção, promovendo o
instante para o vôo da imaginação, que inspira lendas e estórias de amor. O
canto melódico do uirapuru verdadeiro (Cyphorhnus arada) é bem
significativo. A pausa entre um tema e outro é que constrói a magia da
atenção. A impressão que se tem é de que o canto vai ser consumido pelo
silêncio, quando inesperadamente surge como uma surpresa para o ouvido,
cada vez com novos elementos e assim gradativamente prende, promovendo
um estado de êxtase.
A arquitetura das selvas, inúmeras vezes comparada com catedrais, é
também espaço para a expectação, sentimento que eleva e promove o
verdadeiro estado de graça.
O canto percussivo-melódico ou melódico-percussivo é identificado
como um tipo de canto que combina diversas características sonoras tais
como : rangidos,bufados, cacarejos, com variações melódicas. O ritmo ou
21
Ibid. 22
Sobre respiração do sabiá durante o ato de cantar, Helmut Sick, Ornitologia Brasileira
89
pulso é facilmente identificado. Foi notado que este tipo de canto sobressai
tanto individualmente quanto em ambiência sonora coletiva. Além da
sonoridade e de conciliar ritmo e melodia, o destaque especial do canto
percussivo-melódico ou melódico-percussivo é evidenciar a acústica natural
dos diversos estratos aéreos onde são emitidos. A variação tem como objetivo
identificar o canto percussivo-melódico com o ambiente e o melódico-
percussivo, com o ambiente fechado.
Os estudos de bioacústica tem demonstrado que a reprodução
magnetofônica mantém a expressão vocal, em microestrutura, para análise.
Pouco podem proporciona as figuras em papel de sonogramas, e ainda de
oscilogramas, quanto à idéia de voz, porque não se detém aos estudo dos
timbres. Para tanto é uso comum do especialista, ainda que de modo
imperfeito, a descrição em sílabas do caráter da respectiva produção de tons,
ou seja, a macro-estrutura23.
O critério sonoro proposto permite ainda uma outra forma de
aproximação:
Arrolar melódico
Assoviar melódico
Bufar percussivo
Chalrar melódico
Chirrear melódico 23
Op. cit.,pp. 53-4.
90
Chilrear melódico
Clarinar melódico
Crocitar percussivo
Estridular melódico
Gemer melódico
Grasnar percussivo
Gazear melódico
Gloterar percussivo
Martelar percussivo
Piar melódico
Ranger percussivo
Ulular melódico
A literatura registra numerosos termos regionais indicativos das vozes
das aves. Embora possam variar na interpretação de região para região,
podem auxiliar na aproximação, relacionando estes sons com instrumentos
musicais.
No entanto, para formar o critério sonoro de cada espécie selecionada,
foi identificado nas audições por exemplo:
Araponga percussivo-melódico (martela estridulando).
91
Ou seja, não é possível formar o critério de aproximação24 apenas com
os termos indicativos da literatura, mas sobretudo pela audição é que se pode
identificar com mais segurança as características sonoras. Por exemplo, o
bico-de-brasa pia, no que poderia ser classificado como canto melódico, e
também porque é um pássaro que canta na copa das árvores, seu canto é
agudo e repercute na imensidão mais livre.
O critério sonoro, portanto, procura analisar a sonoridade
considerando, além do ritmo e da melodia as possíveis associações com as
características: aerofônicas, cordofônicas, idiofônicas e membranofônicas que
possibilitem uma aproximação.
Critério Ecológico
A atmosfera como um cinturão protetor é também condutora do som,
como textura do ar. Este cinturão possui diversas camadas acústicas sutis25,
diretamente relacionadas ao relevo, depressões e cobertura de matas,
campos, brejos, pântanos, rios, mares e oceanos. Esta diversidade acústica
proporciona a ambiência sonora. 24
Aproximação é aqui uma palavra chave. Isso porque podemos concluir que os sistemas de classificação sonora
devem acompanhar os novos ventos da ecologia que implicam em sistemas menos rígidos, que atendam a uma
nova fase de observação dos fenômenos ambientais. Portanto, é exagero, como observa Sick, afirmar que tudo já
foi feito em matéria de classificação de aves, como querem alguns. Isto só enfatiza a rigidez dos velhos cânones
que não conseguem dar conta da complexidade ambiental, op. cit. p. 27. 25
Camada acústica ou estratos acústicos, não regulares, que formam o território sonoro das espécies.
92
Para efeito de reconhecimento desta ambiência foi estabelecido o
critério ecológico com o objetivo de nos aproximarmos da universalidade da
expressão do canto de pássaro. Deste modo, os ambientes estudados foram
compreendidos como duas dimensões de canto e suas respectivas acústicas
assim identificadas.
Céu Aberto
Mata Fechada
Muitas aves cantam do alto de árvores ou de outros objetos elevados.
Espécies comuns de campos abertos emitem chamados de vôo em pontos
altos ou aproveitam poleiros feitos pelo próprio homem como fios de luz entre
outros26.
O som varia de acordo com a umidade do ar, a qual influencia a sua
propagação. Existe uma correlação da estrutura do som com a acústica do
habitat: consiste no horário de emissão dos chamados das aves em espaços
abertos. Morton observou que algumas espécies, que usam freqüências
relativamente altas e tonalidades puras, cantam só nas primeiras horas das
manhãs, provavelmente para evitar os gradientes térmicos do dia27.
O critério de aproximação proposto procurou levar em consideração
as características acústicas do habitat, porque são o marco de fundo no qual
26
Hernán Fandiño Maiño, op. cit., p. 97. 27
Ibid.
93
outras fontes seletivas – aqui não estudadas, tais como: distância de contato,
tamanho do território e outras - operam para modelar os sons, constituindo as
estruturas encontradas.
Entre as aves de Céu Aberto predominam cantos percussivos , que na
imensidão mais livre repercutem sem grande destaque para o individual. São
cantos que se assemelham a brilhos, detalhes sonoros que sobressaem,
refletindo uma ambiência sonora mais fluida. Várias destas aves migram por
longas extensões. Nas orlas de mata e na copa das árvores, dominam o
espaço aéreo com liberdade. O Pantanal é um ambiente típico para o canto de
Céu Aberto. Nas lagoas, lagoinhas e meandros pode ser ouvido o canto
percussivo e celebrativo dos bandos, das colônias e dos ninhais.
Na Mata Fechada encontram-se os matizes de canto mais melódicos
e elaborados. Nos estratos interiores onde a acústica é especial, despertam
um sentimento gótico de elevação, como se quisessem conter sozinhos todas
as cores melódicas possíveis. A Floresta Amazônica constitui um ambiente
típico para o canto de Mata Fechada. Nas camadas acústicas interiores
sobressaem através de magníficos embriões melódicos.
O território do pássaro é definido nos estratos aéreos onde habitam e
voam. Se a referência tomada for a verticalidade da floresta, existem vários
estratos que localizam através do canto os grupos de pássaros. Assim se
verifica que na copa das árvores a acústica é mais difusa no exterior. De cima
para baixo e de fora para dentro, na galhagem mais fina da abóbada há outra
camada acústica; sucessivamente descendo ficam os estratos onde os
94
rebatedores são as folhas; mais abaixo, próximos à dimensão da estatura
humana, estão os troncos mais grossos de reverberação sonora mais nobre.
Já quase na altura do chão encontram-se interferências variadas da base e
eventualmente de raízes, Pássaros melódicos como o uirapuru cantam nas
camadas acústicas próximas aos troncos mais grossos. Existe também uma
relação da altura do canto com o estrato acústico onde os pássaros definem
seu território sonoro.
Pássaros que vivem nas copas das árvores costumam ter voz aguda28
ou fina. Ou seja, existe uma perfeita correlação entre o estrato em que vivem e
a frequência de seu canto, que diminui de cima para baixo. Neste sentido,a
vegetação fechada de mata alta tropical tende a eliminar vozes muito finas e
elaboradas, beneficiando a evolução de uma vocalização mais baixa em
ambiente florestal e mais alta em campo (Céu Aberto). Já foi comprovada esta
diferença entre indivíduos da mesma espécie quando habitam os respectivos
lugares.
A relação biológica da utilização do artifício solar chega a ser poética.
O canto noturno necessita da escuridão, basta haver um eclipse para que as
aves noturnas cantem. A atividade vocal depende de um certo grau de
claridade29 para se expressar. Na copa das árvores estão as aves de colorido
28
O som agudo associa-se à ligeireza e à leveza, enquanto que o som grave ao peso da matéria, á lei da
gravidade e a vibrações mais lentas. 29
Sobre a luminosidade em quatro andares, - sobre a coloração dos insetos e a íntima correlação entre o colorido
das aves e a intensidade da luz no interior da floresta. “À medida que se baixar do zimbório ao chão, aceita a
divisão da mata em andares, à gradual rarefação da luz corresponderia nas espécies da avifauna em gradual
empobrecimento da roupagem viva”, (Tropical Wil Life, vol. 1 New York, 1917) Willian Beebe, Innes G.
Hartley and Paul Howes. Outro autor que estuda a floresta por estratos é o biólogo Donald Perry (A vida na copa
das florestas) São Paul:, Interação, 1991.
95
mais vivo (cores mais quentes) de canto percussivo, que permanecem
seguras na exata medida da luz solar abundante, ofuscante, portanto,
protetora. Assim, entre a abóbada e o chão a intensidade da coloração vai
sendo pintada, intergradando matizes de cores e melodias, até no chão
alcançar as aves de plumagem mais escura de canto mais grave.
Em geral a passarada começa a cantar gradativamente ao
amanhecer, tornando mais profusos os cantos à medida que o sol vai subindo
- quando está alto vão escasseando, reaparecendo com toda a força para
tingir o entardecer.
A acústica é um ramo da física que se ocupa da produção, da
transmissão e dos efeitos do som e das ondas sonoras30. A bioacústica ocupa-
se com a produção do som dos seres vivos, estudando os sistemas de
comunicação e associando os estudos de voz às características biológicas das
espécies. No campo de estudo da música, as características acústicas básicas
de um som são a altura, na escala geral dos sons, o diapasão, a intensidade e
o timbre.
Em relação à emissão e reprodução, os sons na natureza ou em
determinado ambiente estão sujeitos a incontáveis interferências. O teatro ou a
arena do espaço terrestre oferecem uma infinidade de lugares, de inúmeros
tamanhos e formas que, por assim dizer, se configuram com suas sonoridades
próprias. Ao formular as dimensões Céu Aberto e Mata Fechada a intenção foi
30
A acústica relaciona-se ao desenvolvimento de diversas técnicas para a construção de espaços físicos:
edifícios, salas, auditórios, teatros – onde seja possível ouvir em seu interior, sem nenhuma distorção.
96
nos aproximarmos, em linhas gerais, da universalidade dos sons produzidos
em relação aos ambientes onde se propagam.
Na dimensão Céu Aberto, foi considerada uma quantidade menor de
obstáculos, já que ela constitui uma forma de sonoridade diferente, como é o
caso do Pantanal e do Cerrado. A Mata Fechada contém espaços abundantes
em vegetação, onde existem inúmeros obstáculos à propagação, o que influi
diretamente na qualidade do som. Não se trata simplesmente de dizer que nos
ambientes mais abertos o som se propaga com mais facilidade, e nos espaços
fechados com mais dificuldade, apenas é fundamental que se compreenda
que o som vai variar de acordo com a diversidade do relevo, com os
gradientes térmicos, enfim inúmeros fatores vão influir em sua propagação. Foi
notado, por exemplo, que nos diversos estratos da floresta os obstáculos
podem ser prejudiciais, mas também favoráveis à propagação.
Ao observar que as aves de Céu Aberto trabalham mais com o pulso e
com o agudo, e as de Mata Fechada com as matizes mais elaboradas entre
grave e agudo, para a definição de território, é lícito perceber que esta relação
não é meramente aleatória. Ou seja, apenas reflete o conhecimento
fundamental dos voláteis da ambiência sonora.
97
Critérios Biogeográficos
No continente sul-americano vive quase a terça parte da avifauna
planetária. Cerca de 2.9000 espécies reconhecidas. O Brasil conta com 53,3 por
cento do total das aves do continente.
A seleção de canto por critério biogeográfico identificou os
ecossistemas privilegiados pela biodiversidade:
Pantanal
Amazônia
Há uma grande transversal de formações abertas, que liga a caatinga
brasileira ao chaco paraguaio, atravessando o cerrado do Brasil central. Esta
faixa serviu de corredor para a dispersão da fauna e da flora campestres, nos
últimos anos do Pleistoceno Superior. O Pantanal está nessa faixa, ocupando
uma área de 75.000 km², constituindo a região maior e mais rica em aves
paludícolas do continente, com lençol de águas quase contínuo durante a
cheia, que vai de dezembro a maio.
Durante a estação da seca a água acumula-se em lagoas (baías) e
nos rios que formam meandros. A vegetação do Pantanal é em parte
98
aparentada àquela que ocorre na caatinga nordestina, destacando o carandá
Copernicia Alba, palmeira muito parecida com a carnaúba, a Copernicia
cerifera.
A Amazônia é o maior corpo florestal do planeta – floresta equatorial
que vai do Atlântico aos contrafortes dos Andes, limitada ao norte e ao sul por
formações mais secas. Esta área coincide com a da seringueira, Hevea, a qual
serve para caracterizar a hiléia botanicamente. A expressão floresta amazônica
designa coletivamente vários tipos de floresta úmida, que devem ser
consideradas separadamente: mata de terra firme, várzea, mata igapó,
cerrado. Mas existem outras formações dentro do domínio amazônico tais
como: várzeas de buritizais, as caatingas dos rios Negro e Solimões, as
campinas, as savanas e pequenas serras com matas secas. A particularidade
da Amazônia é a existência de rios de cores diferentes, que têm influência
direta sobre a flora e a fauna.
Importante notar que a diversidade encontrada dentro da Amazônia
como um todo faz com que possamos encontrar tanto aves do Céu Aberto
quanto as de Mata Fechada; no entanto foi considerada a predominância dos
espaços cobertos de matas, e das acústicas de mata.
99
IV. PERCEBENDO CANTOS
A audição do canto dos pássaros transcorreu de junho de 1990 a julho
de 1991 e realizou-se em três etapas.
Na primeira, foram realizadas audições semanais ou quinzenais ( 4 a 6
horas) no Arquivo Sonoro Neotropical da UNICAMP. Em fitas organizadas pelo
Prof, Jacques Vielliard, foram ouvidas algumas seleções que o pesquisador
utiliza como ferramenta de trabalho. Estas fitas não estão ordenadas por
ecossistema – constam dezenas e até centenas de cantos da região
Neotropical.
Nesta etapa foi registrado em fitas cassete, durante, durante cada
audição, o canto das espécies que mais agradavam ao ouvido, ou seja cantos
melodiosos, harmoniosos, de timbre especial, ou que possuíam características
curiosas ( que soavam como risadas ou lamentos). Nesta etapa o critério foi a
sensibilidade. Não havia ainda uma preocupação classificatória do processo,
era o início, a penetração neste universo novo, que já nas primeiras audições
deixava transparecer a riqueza e a complexidade.
Essas audições em laboratório destinavam-se primeiro a selecionar o
canto das espécies ouvidas para, posteriormente, em audições em casa
escutá-lo mais detalhadamente. Isto quer dizer que as audições em laboratório
adquiriram novos rumos a partir das audições mais apuradas em casa.
100
A partir de gravações iniciais, nesta primeira etapa, foram realizadas
também audições diárias em casa, (15minutos à 2 horas), em gravador
comum. Estas audições serviam para treinar o ouvido, além de identificar
possíveis características que traduzissem mensagens sonoras evidenciáveis e
classificáveis (posteriormente).
Esse treino do ouvido, no entanto, resultou em observações
desconcertantes: a insensibilidade para a sutileza e a dificuldade para manter
a atenção. Para uma pessoa comum, com audição normal (0 a 20 na escala
de decibéis), parece absurda a proposta de um treino do ouvido1. Até para
pessoas que trabalham com música, é surpreendente como certas sutilezas
sonoras passam despercebidas.
A insensibilidade para a sutileza consiste na dificuldade para identificar
auditivamente um som mais sutil entre outros, que sejam mais intensos e
frequentes. Este tipo de dificuldade numa analogia às avessas com a surdez
total, pode ser comparada a uma pessoa com um grau de surdez, mas que
pode obter a sensação do som através do tato, por exemplo: sentir o som das
batidas de um tambor com as pontas dos dedos, e compará-las com as
vibrações que ouve em um aparelho de correção. Notadamente esta pessoa
devido ao grau de surdez poderá distinguir nas batidas do tambor os sons de
1 As crianças em idade pré-escolar aprenderam a discriminar o som das mais diversas formas para, em um
período posterior, associá-las a letras, iniciando pelo tato e outras técnicas a letra, iniciando pelo tato e outras
técnicas de prontidão corporal e motora, ou seja, o treino dos sentidos até chegar na elaboração das palavras.
Uma vez que o processo de alfabetização representa o ingresso no mundo escrito, e o alafabeto-fonético em si,
como vimos, contém uma oposição entre o visto e o ouvido ou a próprio fragmentação dos sentidos, parece
óbvio ser inevitável uma grande perda, tanto para a audição quanto para os demais sentidos.
101
baixa freqüência e de grande intensidade, mas deixará de perceber as
gradações ou modulações menos intensas.
Nosso ouvido urbano pode ser comparado ao ouvido do homem da
pré-história, está mergulhado em um oceano de sons, numa massa sonora
onde só os sons intensos e freqüentes incomodam ou sobressaem.2Mas em
relação à arte, o ruído como uma “desordenação interferente” adquire um
caráter mais complexo, por que se torna um elemento criativo desorganizador
de códigos cristalizados e estimulador de novas linguagens.
Foi notado que o canto de muitas espécies ouvidas é essencialmente
ruidoso, contudo, isso não foi considerado antimusical, pelo contrário, este tipo
de canto nos apresenta uma sonoridade variada em matizes tais como:
rangidos, atritados, bufados, gargarejados, trinados e assim por diante. Isso
implica admitir, enfim, que todas as aves são canoras.
A dificuldade para manter a atenção revelou-se freqüente na audição
do canto de pássaros já que vamos encontrar em muitas aves uma
sonoridade ruidosa.Por exemplo, ao mesmo tempo emitem ou em pulsos
mínimos, rangidos, atritados e estridulados entremeados por uma ou mais
notas melódicas. Por causa dessas características ruidosas, soam estranhos
ao ouvido, mas depois de várias etapas de audição começam a ganhar
sentido. Mas para chegar até aí, porém, é necessário consegue manter a
2 Existe uma “ecologia do som que remete a uma antropologia do ruído” (O som e sentido. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989, p. 29) José Miguel Wisnick afirma que a teoria da informação entende o ruído
como uma interferência na comunicação, ou seja, deixa de ser natural e torna-se uma categoria relacional.
Assim, o ruído é aquele som que desorganiza o outro, bloqueando o canal, desmanchando a mensagem ou
deslocando o código.
102
atenção em lapsos de tempo mais curto, que com o passar dos dias passam
gradativamente a ser mais longos.
Como vimos, a audição é a sentinela dos sentidos. Mas uma vez que
para nos orientarmos não utilizamos toda sua complexidade, e por causa da
ruidosa massa dos sons urbanos em que estamos mergulhados, aprendemos
inclusive para nossa defesa a nos abstrair dos sons e não ao contrário. Mas,
esta abstração ocorre apenas num plano psicológico, na verdade estamos
sujeitos fisiologicamente aos efeitos nocivos e estressantes dos decibéis
excessivos.
O efeito desta abstração no nível psicológico se manifesta de forma
nociva também, como dificuldade de manter a atenção, que, por conseguinte,
se manifesta como dificuldade de manter a quietude para ouvir.3 As
dificuldades encontradas no processo de audição nesta primeira etapa,
portanto, demonstraram que: sem um preparo prévio, não é possível penetrar
neste universo sonoro.
Em vista destas dificuldades as audições em casa foram realizadas da
seguinte forma:
a) Ouvir toda a fita (60 min), em volume médio, contendo a seleção
dos cantos ouvidos em laboratório em ambiente silencioso e escurecido
(penumbra, luz amarela ou de um pequeno abajur com lâmpada bem fraca,
isto para ter luz suficiente para as anotações) na tentativa de:
3 Adorno observou que se o filme como totalidade parece adequado para a apreensão desconcentrada, é certo que
a audição desconcentrada torna impossível a apreensão de uma totalidade, “Feitichismo na música e a
regressão na audição”. São Paulo: Abril, 1967, p. 190.
103
1. identificar as espécies ouvidas sem recorrer à listagem, ou seja:
associar de ouvido o canto com a espécie.
2. identificar as características sonoras por exemplo:
araponga: estridula e martela
pássaro-boi: muge e range
garça: pia e sibila
b) ouvir pelo menos quinze minutos por dia o canto dos pássaros em
silêncio na escuridão, e ou deixar a fita rolar como música de fundo (por
exemplo, como se ouve um disco comum), para:
1. acostumar com o som dos pássaros.
2. observar o que as demais pessoas da casa percebem, associação,
comentários que devem ser anotados prontamente.
Estas fitas de 60 minutos continham os cantos gravados em
laboratório na semana ou quinzena anterior, isto é: a cada quinze dias uma
nova seleção era ouvida.
As audições em laboratório e em casa aproximaram-se do universo
sonoro do canto dos pássaros. Contribuíram, também, para treinar o ouvido.
Tal treino ficou evidente a partir da percepção das sutilezas sonoras e no
desenvolvimento da atenção. O canto dos pássaros que antes passava
despercebido, podia ser identificado com prontidão, mesmo nas ruidosas
avenidas e ruas da cidade. Nesta etapa as observações efetuadas durante o
processo foram apontadas em listagens simples, assim concebidas:
104
sabiá-verdadeiro (nome vernáculo); Turdus fumigatus (nome
científico). Observação: canto melódico.
Estas listagens serviram para: (1) discutir as observações realizadas
em casa e nas audições em laboratório na Unicamp. (2) ajudar a orientar e
aprofundar as audições em laboratório; (3) dar início à pesquisa bibliográfica
sobre as espécies ouvidas, anexando novas informações tais como: onde
canta, onde vive e de que se alimenta, concorrendo para a elaboração dos
verbetes, incluindo comentários e outras observações.
Mata Fechada (Expedição Macauã)4
Na floresta a beleza se revela inquietante. Quem nos dá este
testemunho são os inúmeros seres que se distribuem nos diversos andares,
camadas, como estratos irregulares, semelhantes a nuvens. Onde a vida é
trama de perigos e conquista de alimento, da sobrevivência e continuidade das
espécies, necessidades enfim essenciais, não tão aparentes, mas que revelam
uma faceta sutil da beleza. A própria vida e a própria morte inexistem em si,
mas como movimento de inexistir para deixar existir, continuar a harmonia do
universo florestal.
4 Idealizada por Tetê Espíndolla, Sena Madureira, no Acre (14 a 19 de outubro de 1990). Contou com o apoio
cultural da Fundação Vitae, da Universidade Federal de Mato Grosso/UFMT e da Fundação Cultural de Rio
Branco. Dela participaram: Tetê Espíndolla, Jacques Viellard (pesquisador em canto de pássaros), Humberto
Espíndolla (artista plástico mato-grossense), Dante Renato Buzetti (ornitólogo, assistente) e Marta Catunda.
105
O biólogo Donald Perry, em seus estudos das florestas tropicais, tem
demonstrado que muitos aspectos ainda desconhecidos encontram-se fora
dos limites comuns, numa zona aérea chamada abóbada e descortina estes
estratos de difícil acesso:
Para poder explorar esta parte da selva é preciso conseguir
andar sobre galhos altos como os macacos, ou viajar pelo ar como os
animais que voam [...] O dossel começa cerca de dez metros do solo e
continua por vários estratos, ultrapassando a altura de um prédio de
17 andares. Os cientistas usam métodos comuns como bastões de
poda e escadas de extensão, podem alcançar até 10m, porem dois
terços das plantas e animais da floresta vivem acima desta altura,
sendo que muitos só raramente ou nunca são encontrados perto do
chão. Cerca de 80 por cento do alimento para a floresta toda são
produzidos no estrato superior, o que o torna, sem duvida, o nível
principal deste ambiente.5
De fato notamos durante a expedição que a técnica de gravação, com
o uso de microfone direcional ultra-sensível, registra o som no caso do canto
dos pássaros do chão. Apesar de captar a vocalização das espécies com boa
qualidade sonora, deixa a desejar em relação às características sonoras do
território do passaro, ou do estrato onde este define o território. Por outro lado,
por mais que registre a vocalização, e esta possa ser identificada de pronto, é
5 PERRY,Donald . A vida na copa das árvores. São Paulo: Interação, 1991.
106
praticamente impossível eliminar o ruído de fundo. Seria interessante se este
ruído representasse a ambiência sonora dos estratos, mas isso com as
técnicas atuais ainda está longe de ser alcançado.
As observações na mata sugeriram a realização de gravações acima
de 10 metros, com microfones estrategicamente colocados em diversas
alturas, para verificação das variações acústicas da abóbada ao chão para
podermos tecer com mais fieldade as relações sonoras existentes nesses
estratos. Mas para isso seria necessário uma outra expedição, outros
equipamentos e estratégias de audição.
Em seus estudos nesses estratos de difícil acesso, Perry identificou
espécies novas de insetos e outras funções até então desconhecidas para
espécies já identificadas. Admitindo a atualidade dessas pesquisas, fica claro
compreender o quão pouco conhecemos e o quanto nos falta ainda conhecer
sobre as florestas úmidas da Terra.
Durante a Expedição Macauã, tivemos o privilégio de vasculhar trechos
de matas altas no município de Sena Madureira, onde vivem os povos da
floresta, caboclos e índios, nos seringais de extração da borracha nativa.
Picadas avançam na mata como artérias, até as arvores da seiva.
Com a orientação dos mateiros, barqueiros, cozinheiros, Tatinho e Zé
Augusto, percorremos durante cinco dias os arredores do rio Macauã.
Salvadores, farmacêuticos, conselheiros e amigos, rio abaixo rio acima,
praticam a medicina cabocla. Aquela que não se aprende na universidade. A
habilidade, o espírito comunitário e o profundo conhecimento da região ainda
107
não foram solapados. Longe da televisão, do radio, de qualquer outro meio,
além do barco que navega, o tempo escoa lentamente. Cinco dias são uma
eternidade.
No batelão, um modesto arsenal de primeiros socorros acode a
população ribeirinha, permitindo que, devidamente medicados, cheguem até a
cidade de Sena com vida, para então receberem os cuidados necessários.
Entre tantas informações nos confessaram que era a primeira vez que
escoltavam uma equipe de pesquisa naquelas bandas:
- Muita gente tem vindo aqui farejar ouro... (e provavelmente outros
minérios).
Aportamos nos seringais. Cerradinho, Providência (ou Promissão) e
São Bento, também conhecido com o sugestivo nome de Perigoso de Baixo.
Nestes locais foram realizadas gravações e experiências musicais nas diversas
acústicas ali encontradas.
Percorríamos as trilhas em dois períodos – matutino (das 4 às 8 horas)
e vespertino (das 17 às 19 horas) – até encontrarmos as seringueiras. Entre os
galhos e folhagens eram preparadas as locações, que nomeamos estúdio da
mata. Primeiro eram instalados os equipamentos, em suportes, sobre troncos,
onde a acústica favorecesse as gravações, para depois extrair a selva do som
desses espaços.
108
Nesses locais eram atraídas as espécies a partir de um artifício comum
utilizado pelo pesquisador: soltava-se um play-back do canto da espécie local
que se queria atrair, até que esta respondesse àquele que acreditava ser o
invasor de seu território. Em outro momento, a cantora realizava diversos
exercícios vocais, gravados a distâncias que variavam entre 20m e 10m, e
efetuou até mesmo alguns registros de voz da cabeça (ressonância craniana).
Outras experiências foram realizadas, à noite, gravações a beira-rio,
especificamente em curvas, a fim de se registrar a acústica nestes locais 6. A
acústica de curva de rio é privilegiada, por causa dos barrancos altos, ladeados
de mata.
Muitas gravações foram feitas durante exercícios de voz da cantora,
que atraíam pássaros, da mesma forma que o artifício do play-back. O
chamado agudo da cantora atraiu o uirapuru-da-terra (Microcerculus
marginatus) inesperadamente no seringal da Providência, enquanto a cantora
buscava o tom exato de uma canção chamada Amazônia. O pequenino cantor
se aproximou, chegando a poucos metros. No entanto não conseguimos vê-lo.
Nitidamente respondia ao canto humano, ora com um tom mais agudo, ora
mais grave.
As espécies que se destacaram nas audições foram: bico-de-brasa,
(Monasa nigrifons), jacu-verde (Psarocolius viridis), tucano (Ramphastos
tucanus) e uirapuru-da-terra (Microcerculus marginatus). Foram identificadas
6 Foram utilizados os seguintes equipamentos: gravador digital, microfone direcional e naghara.
109
ainda 151 espécies nos cinco dias de viagem, e composta uma canção por
todos os participantes da Expedição.
Nas audições em campo, é necessário manter extrema quietude
durante o percurso até as locações na mata, para não espantar os pássaros.
Deve-se andar levemente sobre as folhas e respirar suavemente durante as
gravações porque os equipamentos ultra-sensíveis registram os mínimos
ruídos. Binóculos são instrumentos importantes. Primeiro, ouve-se o pássaro
identificando-o pelo canto; depois tenta-se avistá-lo com o binóculo. Tarefa
nada fácil para o leigo, que muitas vezes acaba tão somente ouvindo. Assim,
podemos concluir que em locais fechados o recurso ideal de identificação de
pássaros é o ouvido.
Mesmo o preparo das locações dentro da mata exige silêncio total. A
comunicação com o grupo de observação deve ser feita através de gestos
suaves. O especialista com prática é capaz de localizar várias espécies ao
mesmo tempo, bastando alguns minutos para identificá-las.
Nas primeiras horas da manhã a profusão dos cantos é enorme,
alguns pássaros cantam em bando, outros em casais e até alguns solitários.
De imediato o leigo acha-se perdido nessa massa de som. Com o passar do
tempo, por causa do silêncio e da quietude necessária já no final da manhã é
possível abstrair-se de si mesmo7 para apreciar os diversos matizes de som,
incluindo o mais minúsculo inseto.
7 Semelhante ao que ocorre com os processos de mediação como a ioga, para ouvir detalhadamente é preciso
aquietar a mente, por fim abstrair-se de si mesmo para aproximar da sutileza e dos detalhes sonoros que
surpreendentemente ressoam na acústica da mata.
110
A ambiência sonora da Amazônia é tão diversificada quanto as
espécies animais e vegetais que abriga. Entre arvores de porte magnífico, com
seus grossos troncos, formam-se em diversos locais verdadeiros “teatros”,
“catedrais de acústica excepcional”, onde ouve-se tudo com clareza, já em
outros trechos do caminho, grandes raízes, e galhos e folhagens volumosas
dificultam a audição.
Céu Aberto (Pantanal)8
As audições em campo no Pantanal foram realizadas nas cercanias da
fazenda Conceição, à cavalo ou de barco, nas baías, lagos e lagoinhas. Foram
realizadas no período matutino (das 4 às 9 horas) e vespertino (das 17 às 19
horas). O mês de julho, período de vazante, é ideal para a observação dos
ninhais.
Não foram gravados os cantos ouvidos, apenas foi observada a
ambiência sonora dos viveiros, ninhais e colônias. Nessas audições foram
anotados os pássaros que se destacavam na convivência com o pantaneiro,
que acompanham as boiadas e os que têm mais afinidades com a população
local.
8 Realizada no Pantanal de Mato Grosso do Sul, em Rio Verde, na Fazenda Conceição (20 a 25 de julho de
1991).
111
As espécies que mais se destacaram nessas audições foram sobretudo
os psitacídeos, com destaque para a araraúna (Anodorhynchus hyacinthinus),
a garça (Sirigma sibilatrix) e o cafezinho (designação local), conhecido
também como jaçanã (Jacan jacana).
Os capões consistem numa atração especial onde concentram-se as
aves paludículas de grande porte como a garça, tuiuiú (ou jaburu), biguás,
colhereiros e aracuãs.
Ao amanhecer e ao entardecer o som das aves no Pantanal é intenso
sendo quase impossível discriminar os matizes. Os locais mais favoráveis para
as audições são as baías, próximas aos ninhais. O canto que acaba
sobressaindo é o canto dos bandos, pois o canto em coro imprime uma alegria
que contamina a tudo e a todos.
O pantaneiro acorda disposto, junto com as aves. Após o quebra-torto
(pequena refeição matinal), sai para campear o gado, volta perto das 9 horas
da manhã, quando as aves estão mais caladas. No entanto, durante o dia todo
o som das aves está presente. No Céu Aberto não só o som se propaga com
mais facilidade, bem como é mais fácil enxergar as aves. Pode-se passar o dia
todo observando-as.
Nesta etapa das audições em campo, foram aprimorados os critérios
de aproximação desenvolvidos inicialmente nas audições em laboratório e nas
audições diárias. A partir do estudo de cada espécie que se destacava nas
audições, foi elaborado o critério sonoro; a partir do conhecimento da
ambiência sonora, o critério ecológico; e a partir da escolha dos ecossistemas
112
Pantanal e Amazônia, o critério biogeográfico. Foram observadas as relações
canto-paisagem e canto-instrumento musical.
Seleção de espécies
Entre as centenas de espécies cujos cantos ouvimos nas duas
primeiras etapas foram selecionadas 45. Destas, 34 foram selecionadas por
Tetê Espíndola e Arnaldo Black, para o LP independente “Ouvir”.9
Para este estudo foram selecionadas 23 espécies observando os
seguintes critérios:
a) sonoridade, musicalidade;
anhuma, araraúna, araponga (Céu Aberto/Pantanal):
bico-de-brasa, fri-frió, inhambu-relógio, jaó, japu-verde, pássaro-
boi, rendeira, sabiá-poliglota (Mata Fechada/Amazônia);
b) características onomatopaicas (toponímia):
acauã, aracuã (Céu Aberto/Pantanal);
uru (Mata Fechada/Amazônia);
9 Lançado em junho 1991, em Brasília, como o apoio cultural da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT),
do Instituto de Pesquisas Espaciais (INPE) e pela IBF da Amazônia.
113
c) por serem as mais conhecidas, mais comuns ou familiares
(popularidade):
garça, jaçanã, periquito, quero-quero (Céu Aberto/Pantanal);
pica-pau, saci (Mata Fechada/Amazônia).
d) função ecológica (controle biológico e distribuição de sementes):
curicaca, seriema (Céu Aberto/Pantanal)
tucano (Mata Fechada/Amazônia).
Destacou-se a sonoridade ou musicalidade das espécies sobretudo as
de Mata Fechada, os malabarismos vocais e as sutilezas, já que são cantos
que se destacam na acústica da mata.
O processo de audição em campo levou à classificação e seleção das
espécies, bem como elaboração dos verbetes contendo informações gerais
consideradas de interesse para a consecução dos objetivos propostos.
114
Verbetes das espécies selecionadas
De acordo com os seguintes critérios:
1. Critério Sonoro:
- percussivo
- melódico
- percussivo-melódico
- melódico-percussivo
2. Critério Ecológico:
- Céu Aberto
- Mata Fechada
3. Critério Biogeográfico:
- Pantanal
- Amazônia
Em ordem alfabética foram indicados:
- nomes vernáculos
- nomes científicos
115
Os critérios de seleção foram os seguintes:
- sonoridade e musicalidade: (SON)
- características onomatopaicas: (ONO)
- popularidade ou familiaridade: (POP)
- função ecológica: (ECO)
Céu Aberto (Pantanal)
acauã Herpetotheres cachinnans
percussivo-melódico
47 cm
ONO
Espécie de fácil reconhecimento, lembra a coruja. Vive
na orla da mata. O nome tupi, onomatopaico, significa ave ligeira, violenta, é
conhecida também como pájaro guaicuru (Argentina). Alimenta-se de répteis,
morcegos e especialmente de cobras. O canto forte, percussivo-melódico, do
acauã apresenta também um cacarejar parecido com uma risada.
anhuma Aninha cornuta
percussivo-melódico
80 cm
SON
116
Plumagem alvinegra, exibe um chifre no crânio, que
pode ser reto ou curvo (para frente ou para trás), e esporões nas asas. Vive em
bandos, da pesca em água doce, ao norte onde pode ser melhor observada.
Existe a crença de grandes virtudes curativas da anhuma. Nos escritos dos
antigos viajantes são feitas alusões ao uso do unicórnio, dos esporões e dos
ossos da perna esquerda, com os quais faziam amuletos contra mau-olhado,
estupore mordedura de cobras venenosas. Anhembi quer dizer “rio das
anhumas” ou anhimas como eram chamadas antigamente. A considerável
diminuição destas aves de deve à perseguição, estimulada por suas virtudes
curativas. O canto melódico, grave e de características sonoras aerofônicas
lembra o som da corneta.
aracuã Ortalis guttata
percussivo
48 cm
ONO
Colorido pardo e garganta vermelha emplumada,
alimenta-se de frutas, folhas e brotos. Vive nas matas baixas e capões,
podendo ser encontrado no Pantanal mato-grossense, no Alto Amazonas e no
Xingu, em pequenos bandos. O canto ritmado do aracuã lembra um
instrumento de percussão.
araponga Procnias nudicollis
117
percussivo melódico
27 cm
SON
Ave típica do Neotrópico, muito procurada no
mercado de gaiolas. Vive na mata primária, montanhas, baixadas e capoeiras
que possuam árvores frutíferas. Seu canto metálico e estridente pode ser
comparado ao som da martelada em uma bigorna. Chama a atenção o canto
percussivo-melódico da araponga, como os demais pássaros com esta
características: demarca seu território em estratos acústicos que necessitam
tanto do ritmo quanto de melodia. O canto agudo da araponga ilude quanto à
localização, pois pode ser ouvido a grande distância.
araraúna Anodorynchus hyacinthinus
percussivo
93 cm
SON
É o maior psitacídeo do mundo, pertence à família que
destaca o Brasil como o mais rico território destas aves, com cerca de 70
espécies. O nome tupi descreve a performance de vôo contra a luz, quando
sua plumagem azul-cobalto parece totalmente negra. Nas copas de árvores e
em casais, podem viver juntas até oitenta anos. Apreciam muito cocos de
palmeiras, como buritis, acuris, tucuns e bocaiúvas. Preferem as sementes do
que a polpa das frutas. Esse hábito alimentar faz com que se desloquem e se
118
movimentem constantemente por grandes extensões. Apesar do vôo
aparentemente pesado, são ágeis ao se empleirarem e silenciosas nos vôos a
curta distância. O canto percussivo alegre e cômico, característico da família, e
o colorido da plumagem, são ingredientes que, somados, fazem dessas aves
“produtos” cobiçados no mercado de gaiolas.
curicáca Theristicus caudatus
percussivo-melódico
43 cm
ECO
De asas largas, vive em campos secos, pernoitando
em bandos ou aos casais. Plana em grande altitude. Protegida por fazendeiros
para controle biológico, porque se alimenta de animais considerados nocivos:
aranhas, centopéias, gafanhotos, lagartixas, cobras e ratos. No pantanal mato-
grossense é conhecida como despertador, porque seu canto alardeia a
chegada de visitantes.
garça Syrigma sibilatrix
percussivo-melódico
POP
58 cm
Face azul clara e bico róseo, e de fácil observação no
Pantanal em viveiros e ninhais. Alimenta-se de peixes e insetos. O viveiro de
119
garças em coro apresenta uma profusão de pios ritmados e agudos, o canto
solo consiste num agudo sibilo, que é emitido no mesmo ritmo das asas.
jaçanã Jacana jacana
percussivo
58 cm
POP
Ave tipicamente migratória, conhecida no Pantanal
como cafezinho. Possui esporões amarelos e afiados nas asas, que lhes
servem de arma. Vive em bandos. O corpo leve permite caminhar sobre plantas
flutuantes, nos banhados e brejos, à cata de insetos, moluscos, peixinhos e
sementes. O canto percussivo de sonoridade atritadora (idiofônico), costuma
alardear qualquer alteração nos arredores.
periquito Myopsitta monachus
percussivo
30 cm
POP
Conhecido também como caturrita, é robusto e verde.
Vive nos campos e cerrados, onde nidifica em árvores altas e isoladas.
Abundante no sul de Mato Grosso. Freqüentemente combatido como praga em
regiões onde predomina a agricultura, pelos danos que causa às plantações. O
canto alegre do periquito é de fácil reconhecimento, quando os bandos cantam
120
em revoada. Está entre nós nas grandes cidades onde se destaca como
presença marcante, nos coqueirais dos bairros mais arborizados.
quero-quero Vanellus chilensis
percussivo
37 cm
POP
Ave aquática, está entre as mais populares do Brasil.
Nidifica em cavidades no solo. Nas fazendas é conhecida por causa da
convivência com o pantaneiro na lida diária do gado. Em bando, vive em
banhados e pastagens, alimentando-se da pesca de larvas e peixinhos. A
estrutura bem ritmada do seu canto estridente é de fácil identificação.
seriema Cariama cristata
melódico
90 cm
ECO
Plumagem cinzenta, com ligeira tonalidade parda, a
seriema, ave típica do cerrado, está entre as mais conhecidas e estudadas.
Esguia, de porte marcial e olhar aguçado, passeia na ramaria rala onde devora
grande quantidade de cobras. Em Mato Grosso é ave querida e inspira
canções populares. Vive vagando aos casais e em pequenos bandos. Antes de
121
alçar vôo, chega a atingir de 40 a 70 km/h. O canto melódico e melancólico da
seriema soa como um lamento na planura do Pantanal.
Mata-fechada (Amazônia)
bico-de-brasa Monasa nigrifon
melódico-percussivo
27,5 cm
SON
Maior espécie da família, belo bico cor de tijolo, vive
em matas de diversos tipos. Durante a Expedição Macauã, foi observada na
copa das altas árvores, onde pousam as aves e o olhar. Ao amanhecer,
ouvimos os bandos de bico-de-brasa à beira do rio Macauã. Arborícola,
alimenta-se de insetos e vegetais. O canto do bico-de-brasa é marcado por
assobios melodiosos que vão acelerando e crescendo, terminando a
seqüência com leves trinados de timbre agradável.
fri-frió Lipaugus vicuferans
melódico-percussivo
24 cm
SON
122
Conhecido também como tropeiro ou seringueiro,
porte de um sabiá grande e plumagem cinzenta, vive em matas altas. Habita os
estratos intermediários, onde a acústica oferece um eco natural proporcionado
pelo tom agudíssimo e cortante de seus assobios, entremeados por uma pausa
sutil. O canto do fri-frió, especialmente por causa do agudo, soa como um
alarme. Interessante notar que timbres agudos nem sempre são apreciados
por todos os ouvidos. Isso tem a ver em parte com a acuidade auditiva. Em
várias culturas existe uma associação do canto de certas aves e determinados
estados: muito grave soa como hostilidade ou mau agouro, quando muito
agudo, como alerta.
inhambu-relógio Crypturellus cinereus
melódico
29 cm
SON
Espécie difícil de ser observada, vive embrenhada em
mata densa ou escondida na várzea. No entanto, seu canto pode ser ouvido a
grande distância. O inhambu emie um canto melódico puro: podemos
compará-lo a um diapasão da mata, como se afinasse a orquestra florestal.
jaó Crypturellus undulatus
melódico
31 cm
123
ONO
Comum no Brasil Central e em grande parte da
Amazônia, habita matas ralas e secas, cerrado, mata de várzea e capoeira, ou
ainda matas ribeirinhas. Pertence à família dos tinamídeos, cujos exemplares
são muito procurados para caça, graças ao sabor da carne. Hábitos terrícolas,
é presa fácil: seu vôo é pesado e retilíneo. A melhor forma de identificação
desta família é o canto. O jaó pausadamente assobia uma melodia que se
destaca pela sutileza melancólica.
japu-verde Psarocolius viridis
percussivo
12,5 cm
SON
Costado verde, bico esbranquiçado com a ponta
encarnada, alimenta-se de brotos, folhas enroladas, flores e paus podres. Vive
em bandos e freqüenta a copa das árvores altaneiras. Na Expedição Macauã
foi observada sua performance acrobática. Quando canta, impulsiona o corpo
para frente, despenca em volta do galho, com grande agilidade, voltando a
empoleirar-se. O canto do japu-verde foi classificado como de timbre especial
por causa da característica sonora idiofônica.
pássaro-boi Perissocephalus tricolor
melódico-percussivo
124
35,5 cm
SON
Plumagem parda, alimenta-se de frutos grandes e
secos.Em grupo, realiza verdadeiro ritual de canto, inclinando-se para trás,
emitindo um mugido com todo vigor. Vive em pequenos bandos nos estratos
intermediários. O canto do pássaro-boi se assemelha ao som de um berrante,
entremeado por um forte grasnado e tons melódicos de característica
cordofônica, semelhante à sonoridade da cítara.
pica-pau Phloeoceates rubricollis
melódico-percussivo
32 cm
POP
Vive na floresta e em matas ribeirinhas. Alimenta-se de
larvas, insetos e besouros, que exploram no oco dos troncos, martelando com
o bico. Além de cantor é também musico: o batuque e o tamborilar do bico do
pica-pau pode ser percebido independente do canto. Espécie florestal, é
solitário e arborícola a rigor. Eficiente e especializado na exploração de
alimento nas árvores, começa tarde suas atividades que se estendem pelo dia
todo. A grande maioria dos pica-paus não é madrugadora.
rendeira Manacus manacus
percussivo
125
11 cm
SON
Pequenina com grandes barbas e pernas altas,
destaca-se pelo estalo que faz com o corpo. Espécie de performática família
dos priprídeos, a rendeira alem de cantar, grita, estala, grasna e sussurra. As
rendeiras fêmeas juntas tecem um ritual de canto dançando na ramaria.
sabía-poliglota Turdus lawrenci
melódico
21,6 cm
SON
Os sabiás fazem parte de uma família de mais de
trezentas espécies. O canto do sabiá é exaltado em todo o mundo. Comum nas
cidades, eles estão entre nós. O sábia-poliglota, no entanto, é uma espécie
exclusivamente encontrada o Alto Amazonas, ao sul do Pará, ao norte de Mato
Grosso e ao norte da Venezuela. Ferrugíneo, bico amarelado com a ponta
negra, tem um canto admirável por arremedar vozes de outras espécies,
combinando uma grande variedade de melodias.
saci Tapera naevia
melódico-percussivo
29 cm
POP
126
Espécie conhecida embora de difícil observação, vive
em arbustos perto de brejos. Seu canto agudo, um assobio em dois tons ilude
quanto à sua localização, o que certamente está ligado à Lenda do Saci.
Considerada espécie parasita pelo hábito de pôr seus ovos em ninhos de
funarídeos, gostam de tomar sol e banho de poeira. Alimenta-se de gafanhotos,
percevejos, aranhas, lagartas peludas e urticantes, lagartixas e camundongos.
O canto noturno do saci pode ser ouvido horas a fio dentro da noite.
tucano Ramphastos tucanus
melódico
55 cm
ECO
Inquieto, vistoso, é considerado importante distribuidor
de sementes, por causa do hábito de se alimentar de frutas silvestres sem
destruir o caroço. Aos casais, vive perambulando pela floresta. O bico é enorme
e tem a cumeeira abobadada. No interior da copa das árvores pode ser ouvido
seu canto melodioso. Tem gosto pelo banho em folhagens molhadas. O canto
do tucano foi ouvido nas altas árvores, à beira do rio Macauã. A característica
sonora do canto do tucano pode ser aproximada ao som de uma instrumento
de corda.
127
uru Odontophorus gujanesis
melódico-percussivo
21 cm
ONO
Pequeno galináceo florestal de hábitos terrícolas
pouco conhecidos e estudados. O nome onomatopéico é de origem guarani e
significa ave. O canto do uru é extraordinariamente vigoroso, se repete por um
longo tempo numa seqüência variada de dois tons, revelando um fôlego
surpreendente.
V. ANILHAMENTO
O pássaro e o sentido
(Nova sensibilidade)
O conhecimento das aves, por proporcionar um estrito contato com a
espacialidade, com o meio-ambiente onde se insere por si só, proporciona um
ensinamento dos mais férteis. A versatilidade desses seres em relação à
locomoção, ao movimento no céu, na água e no ar, permite conhecer melhor
as relações tróficas.
128
Inúmeros vegetais dependem do vento e das aves para a dispersão de
sementes, por exemplo: samambaias e outras, cujos esporos são levados por
suaves filigranas de ar para outros locais onde irão se desenvolver. Muitas
espécies possuem sementes microscópicas, por volta de 3,5 milhões ou mais
por planta. O ar da floresta é repleto destes propágulos, uma verdadeira poeira
viva. Vale dizer, que encontram o leito ideal nas penas das aves.
Em rotas constantes, as aves procuram alimento onde se incluem
árvores que contem epífitas adultas1. Estes vegetais, além dos frutos, contem
reservatórios repletos de habitantes comestíveis. O que explica por que as
árvores não-atraentes para as aves são colonizadas mais lentamente, com a
exceção das que estejam ao longo de suas rotas.
Foi no decorrer das audições, que aqui e ali surgiram sinais, indícios, de
como penetrar neste universo até então desconhecido e retirar desta
oportunidade uma experiência para passar adiante.
Mesmo sabendo que as inúmeras descobertas de uma ciência
contribuem para a abertura e até para a formação de campos experimentais
de conhecimento, existem barreiras que impedem a um pesquisador saltar de
um campo para o outro sem esbarrar em dogmas, sem ferir cânones e
paradigmas estabelecidos.
No caso da experiência inicial, não foi proposital, o consentimento foi
dado pelo processo de audição, que levou à pesquisa. Na rica, porém delicada
teia, a racionalidade se manifesta pelo diálogo entre as estruturas do nosso
1 Vegetais comuns que vivem sobre outros apenas apoiando-se neles; não são parasitas.
129
espírito e o mundo exterior: ela se caracteriza pela aptidão em argumentar, em
encarar objeções adversas e as resistências da realidade, no confronto de
teorias e fatos. A racionalidade aberta é evolutiva, não pode pretender esgotar
o real numa teoria, deve se opor a racionalização que bebe na mesma fonte,
mas que se fecha a tudo o que não cabe no sistema que construiu.2
Assim como o Céu é Aberto e a Mata é Fechada, existe a
racionalização que se fecha, e a racionalidade que se abre: em todos os
campos do conhecimento científico existe este embate.
O ritmo destas consonâncias e dissonâncias é que levou a ciência a se
render à complexidade da natureza. Não podemos mais acreditar no
determinismo que rejeita tudo que parece acentuar a desordem e o aleatório.
Para um pesquisador da área da comunicação pode parecer
totalmente inusitado estudar o canto dos pássaros, como foi a principio o caso
deste estudo de aproximação. Penetrar em território alheio não é possível
quando a mente pretende visualizar um outro assunto, colocar em foco um
outro ponto, enxergar um outro panorama, fazer que seja um close, ou mirar o
alvo para tentar desvendar e descobrir por fim, quem sabe, o ovo de Colombo.
Os pássaros ensinam a ouvir. Seguindo esta pista, é necessário não
colocar o assunto em foco na mira da mente. Mas, sobretudo ter humildade
para deixar a mente ouvir, para poder orientar-se na dimensão de um caminho,
2 John Von Neurmann afirmou que as ciências não tentam explicar, dificilmente tentam interpretar; elas fazem
modelos, principalmente. Por modelo entenda-se um construto matemático que, com acréscimo de certas
interpretações verbais, descreve fenômenos observados. A justificação desse construto matemático é apenas, e
precisamente, o que se espera que funcione, James Gleick, Caos: a criação de uma nova ciência. São Paulo:
Campus, p. 264.
130
equilibrar-se nele, captar os sinais onde se movimentam as sugestões e
aproximar-se delas para perceber suas sutilezas.
Durante muitos dias, nestes três anos de estudo, as incertezas foram
muito maiores que as certezas, o que não permite concluir o assunto, mas
anilhar alguns pontos que durante o processo de audição se evidenciaram. Os
critérios de seleção e classificação buscam aproximar e não propor um modo
de classificação definitivo.
Pode estar a mente ouvindo ou sondando o canto das sereias: “ora
direis ouvir estrelas”, isto é literalmente o que fazem os radioastrônomos, de
certo não perderam o senso, estão apenas orientando-se.
A ciência que doma não tem nenhum domínio sobre a utilização de
seu saber – “a ciência que quer ser elucidativa se encontra arrastada e nos
arrasta para um futuro cego”.3
Preocupa-nos sobretudo um futuro também surdo aos sinais mais que
evidentes de todo excesso produzido e reproduzido nesta nossa onipotente era
onde tudo o que vem depois dela acaba sendo tido como pós. Tomara não
póstumos, como assim também não sejam os desígnios da inteligência
cerebral.
Estamos ingressando de qualquer modo numa era que depende de
mais energia (era elétrica) tanto da natureza quanto da própria mente humana.
Para as ciências naturais e biológicas estamos apenas na Idade dos
Mamíferos. 3 MORIM, Edgar. A ciência está perdendo a razão? Jornal da Tarde, Caderno de Sábado, 5 de dezembro de
1992, p. 3.
131
As criticas de irracionalidade feitas à ecologia se mesclam com a
crença na nostálgica volta à natureza, ligada à angústia do desencantamento
do mundo, como foi no Renascimento, é suscitadora de limitações para a
compreensão da ecologia humana como disciplina. Embora estas
comparações sejam repletas de associações úteis, não se trata de uma volta.
Se recuarmos na história, para os primeiros sinais de destruição da
natureza causada por seres humanos, chegaremos ao Neolítico, e de lá até a
extinção dos dinossauros. Mas a armadilha semântica do sentido nostálgico é
limitadora por minimizar a importância da ecologia como um campo do
conhecimento que se orienta na atualidade. Seria mais adequado admitir que
toda época de profundas mudanças culturais esboça um efeito de
desencantamento. Decididamente estamos diante de outra dimensão.
O relacionamento entre homens, os animais domésticos, as
ferramentas e a habilidade para utilizar formas de energia cada vez
mais complexas é a mais poderosa sinergia que já resultou do
processo evolucionário[...] esta comunidade sinergística devastará
todos os ecossistemas existentes da mesma forma que a sinergia
angiosperma-aves-insetos extinguiu os dinossauros.4
Na incerteza é melhor ser prudente. Morim declarou que deve ser útil
escutar as cassandras, isto é, a previsão catastrófica, mais do que dar ombros,
4 PERRY,Donald. A vida na copa das árvores. São Paulo: Interação, 1991, p. 150.
132
como fizeram os “racionalistas” durante a Guerra de Tróia5. Com os pássaros
aprendemos como é útil ouvir seus alertas, assim também mergulhar em seu
canto. Embora sejam precisos cinco meses de audições diárias, no mínimo,
como foi indicado no processo de audição, muito mais tempo demoramos
para aprender uma língua, sem entrar no mérito da discussão se este
aprendizado terá uma utilidade prática ou não. Em principio, nossa cultura
altamente visual enfatiza também a aplicação prática (visível) de tudo, a
racionalização do mundo e dos sentimentos. Costumamos desconfiar de tudo
que não tenha uma utilidade prática imediata.
A audição do canto de pássaros pode ser útil para colocar nossa
sensibilidade em movimento em relação ao ambiente, e isso é em principio a
base onde deve assentar nossa compreensão da questão ambiental, para que
a ecologia não seja ouvida apenas pelas cassandras que propaga, mas como
uma ciência que nos fala ao pé do ouvido. Ela não apresenta nenhuma
imagem atraente, na grande maioria das vezes coloca todas as certezas em
duvida, incomoda porque nos fala o tempo todo de morte e de extinção,
imagens para nós nebulosas e fora de foco que não encontram nenhum
paralelo cultural tangível que nos oriente. São rejeitadas como apelos
irracionais porque nos levam a considerar a morte, para compreender melhor a
vida.
A ênfase prognostica igual “bola de cristal” pouco auxilia no
desenvolvimento de metodologias próprias para a ecologia humana. Aliada ao 5 Edgar Morim, op. cit., p. 3.
133
debate público, a ecologia adquire ares de disciplina prognostica cuja
deformação futurológica é estranha à área particular da biologia ou da
zoologia.
Os movimentos ecologistas estão na grande maioria ligados a uma
visão de “equilíbrio ecológico” que guarda um sentido de sagrado, intocado.
Este sentido é enfatizado pela ótica tradicional que privilegia o pensamento
lineano, que embora tenha sido laicizado6 por Lyell, Darwin e Haeckel, surte
ainda efeitos. O fato desta tradição ter sido evidenciada em detrimento do
pensamento biogeográfico criou um impasse dentro da própria história da
ecologia. Isto tem impossibilitado uma abertura maior à compreensão da
relação homem-ambiente nas sociedades contemporâneas.
Até agora as abordagens globais no tratamento das relações causais
entre a Natureza e a Sociedade evidenciam mais o lado ideológico, do que
buscam modelos científicos capazes de avaliar e orientar as abordagens
destas relações.
A inteligência humana é o limiar sensível enquanto o universo das
sociedades permanecer associado ao desfrute negando a fruição ambiental.
As formas de viver atuais impõem o afastamento da condição animal pelo lado
ideológico, sublimando a eco-lógica das milhares de formas de vida, das
6 Ver sobre laicização (História da Ecologia. Rio de Janeiro: Campus, 1989, p. 6.). Pascal Acot afirma que a
problemática lineana não se situa num quadro conceitual que privilegie a consideração das relações existentes
entre os seres vivos e seu meio abiótico, pois, sendo a repartição geográfica dos “Seres naturais” providencial,
importa pôr em evidência a sabedoria do Divino Criador mais do que detectar as causas materiais que presidem
a essa repartição. Fenômenos de predação (competição) migração, invasão, colonização, os movimentos no
mundo vegetal (estritamente relacionados com aves e insetos), ou seja, o estudo dos vínculos com o meio
abiótico, não estão no centro do pensamento de Linneu.
134
inteligências não-cerebrais existentes cujo conhecimento apenas começa a ser
compreendido. O mecanismo destas inteligências põe em cheque a
superioridade da raça humana, que é também ingrediente básico e fermento
de todos os racismos, este assunto intocado em virtude das ideologias de
todas as dimensões que impõem o predomínio do homem sobre a natureza, o
reino animal e do homem sobre o próprio homem.
Os riscos de culturalizar a biologia ou de biologizar a cultura não estão
descartados quando situamos a ecologia humana entre a natureza e a
sociedade. Esse risco deve ser avaliado a partir do óbvio de que as relações
humanas com o meio ambiente formam uma parte indissociável da ecologia,
já que o humano é um organismo e como tal constitui parte integrante do meio
ambiente. Mas já vimos que o óbvio dessas constatações não é tão evidente
quanto parece. Não é um caminho visível, uma avaliação integrativa que
estimule metodologias para os campos da antropologia física e cultural,
ecologia vegetal, animal, agrícola e por fim para outros campos que estão em
formação. Basicamente introduz-se neste século uma readequação
problemática para as ciências em geral, como desafio de todas as ortodoxias
que põem em foco antes a necessidade de reorientar seus métodos e reavaliar
profundamente os objetivos buscados. Esta nova orientação embaça os focos
tradicionais e principalmente apela para um basta na confiança exacerbada
que dissemina ainda uma noção de que cabe à ciência, com a varinha de
condão da tecnologia (tecnociência), tirar leite de pedras.
135
Muitas armadilhas estão colocadas nesse caminho. O conceito de
preservação contém duvidosa armadilha semântica. Significa agir antes do
perigo ou dano, como se perigo ou dano não fosse fato. O conceito de reservar
e conservar não casa com o dispositivo econômico do capitalismo mundial
integrado7: o valor da moeda é volátil, ela precisa ser trocada com grande
velocidade. Aí entra em jogo um dispositivo explosivo. As tecnologias atuais de
manejo, criação de florestas novas e outras, de controle biológico e da
poluição, exigem tempo de avaliação para a obtenção das mínimas garantias
cientificas. Precisam provar exaustivamente sua validade, ecos barrados dentro
dos próprios meios científicos. Nessa contagem regressiva mas, necessária – a
discussão exaustiva dos novos rumos científicos – ganham terreno as
justificativas econômicas que mascaram a vontade política frouxa das ágeis
corporações transnacionais detentoras dos meios poluidores e destruidores,
provando que já está exaurida boa parte das reservas de sensibilidade
humana.
O terror do som das vozes ou das trombetas do apocalipse hoje deve
ser visto como alerta, diante do impacto do homo-sapiens em contraposição
ao esforço silencioso, lento e imprevisível da natureza.
A mediatização da vida pelos meios de comunicação e a revolução
eletrônica modificaram sensivelmente o relacionamento homem-ambiente e,
por conseguinte, o horizonte da sociedade global. A dimensão concreta do
espaço, que a integridade sensível não revela mais, é dilacerada pela
7GATARRI, Felix. As três ecologias. Campinas: Papirus, 1991.
136
velocidade que orquestra um mundo cinemático, construindo uma relação
vertiginosa e ficcional com a realidade.
A velocidade e a simultaneidade dissolvem o senso de equilíbrio e de
orientação, e os verbos do ouvido. Monitorada pela “telinha” ao sabor do
controle remoto, nos lares da esfera terrestre, o contato com a natureza é
distanciado, permeado antes pelo fascínio e pela sedução do próprio meio.
Entre o homem e a natureza a janela-vídeo8 oferece uma possibilidade
romântica, surge como uma visão do paraíso, passagem para o turismo de
cartão-postal. Mas pode ser esteticamente aterrorizante na aparência de
imagens que reportem queimadas e outras atrocidades manipuladas no tempo
congelado; que espiem um mundo de paz e amor flertando com o espetáculo
do apocalipse.
Cinematograficamente, a extinção dos dinossauros provocada por
asteróides tem maior receptividade junto à opinião publica, mas também seduz
especialistas. É preferível admitir que fenômenos exteriores, fora do alcance do
controle humano, podem afetar a vida na Terra. Embora notáveis teorias
biológicas suscitem acontecimentos surpreendentes – acidentes nucleares
fomentando um desfecho inesperado – elas combinam mais com o efeito de
um script de um filme de odisséia. Essas teorias estão enraizadas na tradição
religiosa ocidental. O planeta-paraíso é cenário do juízo final.
Na batalha pela vida com qualidade e prazer vence o discurso vazio da
publicidade, que transforma a ecologia num modismo passageiro, como tudo e
8 Rolf Freier. A perspectiva reduzida e as janelas para o mundo. Marbug, Jonas Verlag, 1984, pp. 11-29.
137
aliás todos somos, passageiros bem afivelados no vetor velocidade-imagem.
Expectativas ecológicas são transformadas em camisetas coloridas,
verdadeiros rótulos de falsa consciência ecológica.
A expansão emancipacionista e pró-sensibilidade é um fenômeno
planetário. A preocupação com o fortalecimento da percepção sensorial9 e as
técnicas de auxilio as crises psíquicas e existenciais estão condicionadas pela
destrutividade do ambiente industrial. De outro lado, surge a chamada “nova
interioridade”, “novo espiritualismo” e a proliferação de centenas de seitas
religiosas e pseudo-religiosos.
Este novo espiritualismo possui um forte traço de religiosidade
“natural”, esteve muito ligado ao movimento das comunidades rurais nos
países anglo-saxões. Estas comunidades “alternativas” procuram distinguir-se
dos grupos que consideram politicamente conscientizados.
O desaparecimento gradativo das formas de viver e das formas de vida
não se resolve apenas com o equacionamento de crises. Não pode ser
monitorado como um fantástico efeito especial. Se tudo o que está sumindo
gradativamente “a nossa volta, desde uma árvore até o canto dos pássaros,
não puder mais ser percebido, estará comprometida a dimensão do passado
que especializa o futuro; e, também, os milhões de anos da própria cronologia
humana e das centenas de milhares de organismos vivos que sobreviveram e
9 Sobre percepção sensorial, ver: grupos de maratona, psicodrama e sociograma, análise transacional,
psicossíntese, meditação transcendental; e terapia do movimento, expressão corporal, grupos gestálicos,
bioenergética, grupos de auto-representação corporal, grupos gestálicos, terapia respiratória, ioga, massagem,
acupuntura, acupressura, karatê, aikendô zen, tai-chi, (Quem deve mudar todas as coisas: alternativas do
movimento alternativo,. São Paulo. 1985, pp. 24-6). Joseph Huber refere-se a estes movimentos “como uma
explosão de idéias”.
138
sobrevivem na Terra. As teorias sobre as extinções do passado só surgirão dos
conhecimentos que pudermos ter dos organismos vivos.
Por preferirem o conformismo expectativo, as teorias pós-modernas
assumem um niilismo radical, eclipse do homem-sujeito, e optam por enxergar
como uma sina a sensibilidade obstruída, ao invés de ouvir os apelos que
levam a perceber não só os efeitos colaterais e a ressaca do chamado pós-
industrialismo, mas também o ritmo palpitante das suas possibilidades –
enquanto a ironia e o cinismo contaminam os poderes e os saberes no pano
de fundo da ofuscante transitoriedade de néon.
Ouvir é especializar o tempo para a formação verdejante das matas e
florestas, com suas veias-rios que guardas o manancial da vida futura, com ou
sem o homo-sapiens. O conhecimento da avifauna é referencia milenar da
sabedoria inata de vencer o peso terrestre, imposição da gravidade que
condena a inteligência humana ao plano horizontal. Lição de pássaros é
desafio de leis; ouvir seu canto é desafiar todos os agouros; é reflexão etérea
que não usurpa. Sua rapidez não-maquínica, como contraponto de velocidade,
permite o movimento, a mudança e a autonomia nas rotas de imaginação.
139
Considerações finais
O processo de audição levou aos seguintes pontos que orientaram
este estudo preliminar:
As formas de ouvir são fundamentas para a comunicação do homem
com o ambiente; levam a uma aproximação mais equilibrada e orientada e
implicam no conhecimento (envolvimento) da especialidade e da diversidade
ambiental, favorecendo estudos fitogeográficos, biogeográficos e das diversas
disciplinas da biologia.
Formas de comunicação com o ambiente foram desenvolvidas pelas
culturas primitivas – incluindo o conhecimento do canto dos pássaros – para a
defesa territorial (guerra dos pios), funcionando como pistas indicadoras de
territórios de caça e como forma de equilíbrio e orientação ambiental.
Observou-se ainda que a música contemporânea reencontra na música modal
um universo experimental para o som do futuro. De outro lado o canto dos
pássaros e das demais formas de vocalização dos animais (zoofonia) podem
ser compreendidos como matéria- prima desse som, no sentido de conservar a
vida e suas preciosas mensagens.
Foram indicadas as expedições científicas dedicadas ao estudo das
aves que desenvolveram formas de registro do canto; as principais coleções de
aves empalhadas que foram do Brasil para a Europa no período da
colonização e, as formas de interação cultural que inspiraram o surgimento de
140
metodologias de observação da natureza. As pistas foram fornecidas pela
própria toponímia da língua tupi. A língua brasílica é sonora, rica em
associações climáticas, geográficas e outras. No mundo indígena tropical tudo
estava integrado numa teia de relações. Essa busca de harmonia de relações
está na base da biogeografia e das demais disciplinas científicas relacionadas
com a natureza que surgiram mais tarde.
As culturas letradas (alfabeto fonético) que dominaram as seqüências
lineares concatenadas como formas de organização psíquica e social
inauguraram um período que levou à fragmentação da experiência dos
sentidos em unidades uniformes; e foram capazes de produzir ações e
mudanças mais rápidas através do conhecimento aplicado. Aí está o segredo
do domínio ocidental sobre o homem e sobre a natureza.
A audição do canto de pássaros implica sensibilidade em movimento,
ajuda a desenvolver a atenção (prontidão), a quietude, (silêncio) e a percepção
das sutilezas sonoras do ambiente. O ouvido urbano é insensível para captar
sons sutis.
Pelo fato de estarem presentes nos mais diversos ambientes, o estudo
dos pássaros é acessível a todos, especialmente porque o canto é a principal
forma de identificação desses animais.
Os critérios propostos buscaram: (1) identificar as características
sonoras dos cantos selecionados: percussivo, melódico, percussivo-melódico e
melódico-percussivo, e a relação com os instrumentos musicais (critério
sonoro); (2) aproximar da ambiência tentando compreender as diferentes
141
dimensões acústicas (Céu Aberto e Mata Fechada) e a universalidade do canto
dos pássaros (critério ecológico); (3) identificar os ecossistemas pesquisados,
Pantanal e Amazônia, como lugares privilegiados pela biodiversidade e pela
diversidade sonora (critério biogeográfico). Os critérios levaram a elaboração
de verbetes contendo 23 espécies selecionadas e classificadas.
A compreensão da zoofonia implica interação entra a música e a
bioacústica. Como intuiu Florence, a compreensão da musicalidade ambiental,
aliada à aproximação dos estudos da bioacústica, oferece possibilidades que
merecem estudo. Além das partituras registradas durante a expedição
Langsdorff, Florence, o viajante ouvinte, tece inúmeras associações e chama a
atenção para a possibilidade do envolvimento sensível, sem descartar o rigor
científico; a zoofonia salta para o futuro como geofonia.
Apesar da fabulosa riqueza da nossa avifauna, o estudo de aves em
seu ambiente é pouco desenvolvido no Brasil. Constatou-se durante as
audições em campo na Amazônia e no Pantanal que esses ambientes
oferecem locais de acústica excepcional para experiências musicais.
Verdadeiros estúdios naturais, evidenciam outras técnicas de registro da
ambiência sonora, bem como outras concepções para os Arquivos Sonoros
existentes no planeta.
O caráter auto-ecológico e estático aplicado no ensino e o modo como
se rotula a ecologia através dos meios de comunicação em geral
desenvolvimento uma noção equivocada em bases individualistas ou
agregativas, dificultando o ensino, a comunicação e a integração necessária
142
das ciências biológicas com as ciências sociais. A suspeita dos métodos multi-
referenciados continua sem poder fazer o devido contrapeso à marcha
automatizada da tecnociência. Uma questão mais ideológica do que um
entrave cientifico.
A ecologia é uma disciplina do ouvido, surge para alertar e prevenir,
está à busca de orientação para a compreensão dos mecanismos de equilíbrio
complexo (não-estático) do meio ambiente, que são invisíveis mas não
presentes como o som. A audição é um sentido geográfico.
Mas numa cultura altamente visual é problemático comunicar as
propriedades não-visuais das formas espaciais. O mundo é orquestrado por
comandos ópticos, promove a aparência, e tudo que compreendemos como
aparência ( audição regressiva) não tem nada a ver com o som, ou com a
música. A conexão som-imagem reduz o sentido do som e da visão, enfatiza
também a performance.
A preocupação com a qualidade de vida, nas sociedades
contemporâneas, passa necessariamente por uma readequação dos sentidos
e das formas de comunicação com o mundo e aponta para o surgimento de
uma nova sensibilidade. Compreendeu-se esta nova sensibilidade sobretudo
como surgimento de uma identidade mundial proclamada na busca de
qualidade de vida. Uma preocupação proveniente dos excessos produzidos e
reproduzidos que lograram as promessas de conforto da industrialização,
aliada à especialização acelerada e onipotente da tecnologia. Ambas
contrapõe a tecno-lógica, apontando para a complexidade dos equilíbrios. O
143
ouvido continua sendo o lugar privilegiado da ação política, como observou
Sartre.
A educação ambiental é hoje uma tarefa de toda a sociedade. Este
estudo propõe a audição do canto de pássaros no sentido de promover uma
comunicação mais próxima com o meio-ambiente, estimulando a
compreensão do limites e possibilidades da ação humana a fim de contribuir
para a elaboração da genuína cidadania planetária.
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